Você está na página 1de 12

O ÍNDIO NO BANCO DOS RÉUS: PROCESSO CRIME DE 1923 NA VILA DA

PITANGA, PARANÁ.

Grazieli Eurich
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Estadual de Maringá- UEM
graeurich@hotmail.com

O presente artigo trata das primeiras reflexões acerca dos enfoques sobre o
conflito entre índios Kaingang e colonizadores ocorrido em abril de 1923 na Vila da
Pitanga, Paraná, nos dois livros regionais: Abril Violento: a revolta dos índios
Kaingangs (1999), de Manuel Borba de Camargo, e Lendário Caminho do Peabiru na
Serra da Pitanga (2002), de Terezinha Aguiar Vaz e seu contrapondo com a fonte
processual, Processo Crime datado de 1923. A pesquisa em desenvolvimento está
vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de
Maringá.
Primeiramente, é preciso refletir sobre a questão da história indígena no estado.
Para tentar entender e contextualizar o conflito de 1923 na Vila da Pitanga em busca da
compreensão do processo da Promotoria Pública é preciso antes verificar como os
indígenas foram tratados pela historiografia paranaense. Para a “construção da memória
do Estado” nos baseamos na produção do autor Romário Martins, e em contraponto,
comentamos obras de autores que se dedicam à chamada “nova história indígena”.
Um dos principais autores paranaenses, membro do IHGB (Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro) e fundador do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná, em
1900, Romário Martins contribuiu para a construção da história do Estado. Em 1899,
publicou o livro História do Paraná, apresentado como monografia no Ginásio
Paranaense, para ser publicado e adotado nas escolas oficiais. O livro trata da
distribuição geográfica das tribos indígenas, dos kaingangs, e trata os índios como
selvagens, apesar de considerá-los “nobres e admiráveis”.
Em outro livro publicado em 1944, intitulado Terra e Gente do Paraná, o
mesmo autor elabora um dicionário histórico e biográfico do Paraná. Discorre sobre os
pioneiros, os desbravadores, os heróis paranaenses e seus feitos. O autor analisa o
período compreendido entre os séculos XVI e XIX, contando a história do Paraná
através dos seus “homens importantes”. Narra a entrada dos portugueses no sertão

Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca.
06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
paranaense, as bandeiras preadoras de índios e a resistência dos mesmos. Os heróis são
os desbravadores que conquistam e civilizam os selvagens.
Ao tratar dos índios, o faz sempre a partir da temática do aprisionamento,
resistência, transferência das terras ou do plano de civilização dos indígenas. Apenas no
século XIX, na ocupação dos Campos de Guarapuava, surgem dois nomes indígenas na
biografia de Martins: Condá, cacique kaingang que possibilitou a pacificação dos
índios, e o cacique guarani Guairacá, condutor da defesa contra os invasores. Em
síntese, para Romário Martins os índios são selvagens, bárbaros domesticados, e, afora
os dois nomes citados como grandes líderes, não influenciaram a formação do Paraná e
não devem ser considerados Terra e Gente do Paraná, como propõe o título da obra.
Muitos outros autores fizeram a história do estado, mas não é de interesse desse
artigo debatê-los, mas sim fazer um breve panorama com as obras selecionadas.
Partimos assim para o trabalho da antropóloga Kimiye Tommasino que oferece uma
contribuição para os estudos dos indígenas no Paraná. Esta proposta está vinculada ao
Programa Interdisciplinar de Estudos de Populações – Laboratório de Arqueologia,
Etnologia e Etno-história da UEM, criado em 1997. O estudo “Os povos indígenas no
Paraná: 500 anos de encobrimento”, publicado no livro Geografia social e agricultura
no Paraná, de 2001, é uma mostra dessa proposta. Nele, a autora faz uma crítica à
história oficial, que, segundo ela, é contada pelos conquistadores e oculta uma face da
história nos livros didáticos.
Tommasino ressalta que quando os alunos estudam a História do Brasil, os
povos indígenas aparecem até o século XVIII e depois desaparecem como se os
bandeirantes tivessem destruído a todos. “Contam uma história na qual os povos
indígenas que aqui estavam e continuam até o presente são encobertos”
(TOMMASINO, 2001, p.06-07).
A ocupação do território e a construção da sociedade moderna paranaense foram
efetuadas contra os interesses e sobre as terras dos povos indígenas que ali existiam.
Tommasino afirma que a guerra contra os índios ainda não acabou, os índios continuam
lutando para não serem física e culturalmente exterminados. “Os índios e os negros
foram tomados como „raízes‟ do „povo brasileiro‟, pertencentes ao passado e sem
direito ao presente” (TOMMASINO, 2001, p.10).

Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca.
06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
Em perspectiva de estudo dos indígenas consonante com a de Tommasino, o
historiador Lúcio Tadeu Mota, no texto “A Guerra de Conquista nos Territórios dos
Índios Kaingang do Tibagi”, apresentado no V Encontro Regional de História da
ANPUH-PR, em 1996, e publicado na Revista de História Regional, em 1997, mostra
como os territórios da bacia do rio Tibagi, no Paraná, foram ocupados desde “tempos
imemoráveis” por populações indígenas e que estas sempre defenderam suas matas,
seus campos e rios dos invasores.
Mota discorre sobre a guerra de conquista movida contra essas populações e
seus territórios pelos brancos, europeus e brasileiros, até o século XIX. “Ela teve início
já nas primeiras décadas do século XVI, em nome do „Rei‟ (Espanha e Portugal) e
„Deus‟ (Reduções Jesuíticas), com as expedições portuguesas e espanholas cruzando a
região em busca de metais, escravos, e de uma rota para o Paraguai e Peru”. (MOTA,
1997)
A exploração das populações indígenas pelos conquistadores não foi feita sem
obstáculos, a conquista dos territórios não ocorreu de forma pacífica como a história
paranaense costuma afirmar. Em todos os momentos, e por várias etnias, a resistência
foi sangrenta, algumas vezes, segundo o autor, os índios faziam alianças com os
colonizadores, mas de forma estratégica. O território do Guairá foi palco de guerras
variadas e constantes.
O mesmo autor no livro As guerras dos índios Kaingangs: a história épica
dos índios Kaingangs no Paraná (1769-1924), publicado em 1994, colabora uma vez
mais para preencher as lacunas da história indígena no Paraná, sobretudo da resistência
dos kaingangs. O autor mostra que os kaingangs rejeitam “o avanço da sociedade
nacional sobre suas terras e defendem seu modo de vida e liberdade” (MOTA, 1994,
p.05).
O livro mostra a construção da idéia do “vazio demográfico” (terras desabitadas,
abandonadas, virgens) na historiografia paranaense e a repetição, nos livros didáticos,
que as terras estavam prontas para serem ocupadas e colonizadas. Discute também a
presença do indígena no Paraná desde a pré-história, por meio do relato dos viajantes,
dos relatórios de presidentes de províncias e ofícios, bem como debate-se as relações do
indígena com o “civilizado”, trabalhando a resistência dos kaingangs, as armas, as
expedições de Afonso Botelho e Diogo Pinto.

Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca.
06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
Neste livro, Mota também analisa o conflito na Vila da Pitanga, tema deste
trabalho, utilizando-se das seguintes fontes impressas (jornais): “Gazeta do Povo”,
“Diário da Tarde” e “Jornal Comércio do Paraná”, todos de 1923. “Nossa análise sobre
a resistência Kaingang, no Paraná, inicia-se com os relatos da expedição do tenente-
coronel Afonso Botelho em 1768 e termina com os acontecimentos na serra da Pitanga
na década de vinte deste século” (MOTA, 1994, p.06).
As fontes do autor são documentação primária, manuscrita e impressa, bem
como documentos da burocracia governamental existentes no Arquivo Público do
Paraná, relato de viajantes e a literatura etnológica sobre os Kaingangs. No último
capítulo, se Romário Martins fez uma biografia de seus heróis no livro Terra e Gente
do Paraná, Mota faz uma biografia dos líderes Kaingangs, daqueles que conduziram
seus grupos a resistir à violenta política de colonização e civilização, e mesmo líderes
como Pahy, Gacom, Condá e Viri “que de certa forma colaboraram com os brancos,
jamais lhes foram totalmente submissos e confiáveis” (MOTA, 1994, p.208).
No intuito de construir um quadro de referências sobre o conflito, e trabalhado
na pesquisa também como fonte, utilizamos a bibliografia regional: Manuel Borba de
Camargo, Abril Violento: a revolta dos índios Kaingangs (1999) e Terezinha Aguiar
Vaz, Lendário Caminho do Peabiru na Serra da Pitanga (2002).
Por seu turno, a bibliografia regional deve ser entendida como colaboradora para
a construção da história da cidade. Segundo Janotti (1990), consideramos objetos do
estudo historiográfico tanto obras que foram escritas visando o conhecimento da
História, como aquelas que, sem empreender investigações originais, utilizaram-se
desse conhecimento para explicar a evolução de uma determinada formação social.
O autor do livro Abril Violento: a revolta dos índios Kaingangs (1999),
Manuel Borba de Camargo, formado em direito e letras, é membro do Instituto
Histórico e Geográfico do Paraná. Também tem seis livros publicados sobre a história
da cidade, um em forma de pequenos poemas. Neste livro – e no outro de Vaz – há
características de uma interpretação que se situa em um limite tênue entre a história, a
memória e a ficção, em um livro que, no prefácio, é apresentado como: “documento
histórico de grande valia [...] constitui um valioso registro das reais dificuldades
enfrentadas na colonização de Pitanga” (ADUR apud CAMARGO, 1999, p. 3).

Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca.
06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
No livro de Terezinha Aguiar Vaz, Lendário Caminho do Peabiru na Serra
da Pitanga (2002), também se configura o objetivo de elaboração de uma história
“pitanguense e paranaense”. Formada em Letras, a autora pertence à Academia de
Letras, Ciências e Artes de Guarapuava e é reconhecida por esta como pesquisadora. O
livro, que pretende contar a história da cidade, foi patrocinado pela administração
municipal de Pitanga, em 2002. “Conta a história” das famílias pioneiras e reserva
especificamente sete páginas para tratar do conflito e do ano de 1923.

O Processo Crime
O documento que está sob a guarda do Centro de Documentação e Memória de
Guarapuava – UNICENTRO é um processo de promotoria pública que tem como
principais réus os índios Manoel José Bandeira e Joscelym Borba dos Santos. Acerca
desse tipo de documento, cabe ressaltar que: “O processo criminal é uma fonte
institucional, produzida pela justiça e carregada de manifestações de interesses distintos,
que filtram – por meio da pena do escrivão – os relatos dos envolvidos” (FERREIRA,
2005, p.26).
O processo data de três de setembro de 1923 e foi feito em Guarapuava, já que a
Vila da Pitanga pertencia ao município, e quem o assina é o escrivão interino Fernando
Cleve. “Ao examinar os processos crimes é preciso estar atento aos elementos que se
repetem de forma sistemática, mentiras ou contradições que aparecem com freqüência,
versões que se reproduzem várias vezes” (CHALHOUB apud FERREIRA, 2005, p. 27).
As 131 páginas contêm a denúncia por parte do Ministério Público, exames
cadavéricos, exames de corpo de delito nas casas e estabelecimentos comerciais,
mandado de prisão preventiva, auto de perguntas às testemunhas, interrogatório dos
índios detidos, libelo, ata do júri que absolveu os réus.
Segundo Carlos Bacellar (2005, p.37), os processos crimes são fontes
abundantes que dão voz a todos os segmentos sociais, do escravo ao senhor, e, poder-se-
ia dizer, também aos indígenas. “A convocação de testemunhas no caso de crime de
morte, de agressões físicas e de devassas, permite recuperar as relações de vizinhança,
as redes de sociabilidade e de solidariedade, as rixas, enfim, os pequenos atos do
cotidiano das populações do passado” (BACELLAR, 2005, p.37).
Já Michelle Perrot afirma que,

Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca.
06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
não existem „fatos criminais‟ em si mesmos, mas um julgamento criminal
que os funda, designando ao mesmo tempo seus objetos e seus atores; um
discurso criminal que traduz as obsessões de uma sociedade. Toda a questão
é saber como ele funciona e muda, em que medida exprime o real, como aí se
operam as diversas mediações. (PERROT, 1988, p. 244-245)

Na tese de Livre Docência na área de Etnologia, subárea História Indígena e do


Indigenismo, Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de História Indígena e do
Indigenismo, 2001, o antropólogo John M. Monteiro, ao falar, da nova historiografia
indígena na América Espanhola, fala da experiência marcante de autores pioneiros
como Miguel León-Portilla e de Charles Gibson, na exploração dos testemunhos
nativos, abrangendo desde as crônicas e as genealogias escritas por índios e mestiços
aos relatos mais prosaicos que figuram em registros territoriais, em documentos dos
cabildos das comunidades indígenas, em testamentos, em processos da Inquisição, em
investigações criminais e em litígios de todos os tipos, etc., que “permitiu aos
historiadores atribuírem uma voz própria aos índios”. (MONTEIRO, 2001, p.02).
Ainda segundo Monteiro, a década de 1980 foi marcada pela exploração de
arquivos antes inexplorados (como dos cartórios e das dioceses). Emergiram estudos
sobre um vasto elenco de novas personagens que passaram a desfilar no palco da
história brasileira, os escravos e a escravidão, os cristãos novos e a Inquisição, as
mulheres, os pobres, os “desclassificados”, junto com novas perspectivas sobre a
história social, demográfica, econômica e cultural.
No trabalho com os processos criminais, é necessário que o historiador analise-
os de forma crítica, bem como deve fazer com as demais fontes, orais, escritas,
iconográficas, por exemplo. “Ler nas entrelinhas, explorando pequenos indícios,
tentando mesmo ouvir os silêncios” (FERREIRA, 2005, p.18).
Segundo o processo do conflito indígena datado de 1923, foram cometidos os
crimes previstos no Código Penal de 1890 (PIERANGELI, 2001). O Código Penal de
1890 baseava-se nas concepções da Escola Clássica de Direito. O sociólogo Marcos
César Alvarez (2002) afirma que houve com a Proclamação da República entusiasmo
por reformas jurídicas e a espera do novo código penal por parte dos juristas, porém,
constatou-se a decepção.
No Brasil, a Proclamação da República foi saudada com grande entusiasmo
por muitos juristas, que viam na consolidação do novo regime a possibilidade
de reforma das instituições jurídico-penais, segundo os ideais da Escola
Criminológica Italiana que ainda dominava o debate no interior do direito
penal na Europa. Embora o otimismo inicial tenha dado lugar a uma certa

Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca.
06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
decepção, uma vez que o Código Penal de 1890 ficou muito aquém do que se
esperava, por se organizar como um código ainda alicerçado nos ideais da
Escola Clássica, a percepção dos juristas reformadores – de que as
transformações sociais e políticas pelas quais o Brasil passou da segunda
metade do século XIX ao início do XX colocavam a necessidade de novas
formas de exercício do poder de punir – mantém-se ao longo de toda a
Primeira República. (ALVAREZ, 2002 ,692)

Nas acepções da Escola Clássica, o crime é produto da vontade livre do


indivíduo por meio da violação da lei penal, “o homem possui o livre arbítrio e por isso
é moralmente culpado e legalmente responsável por seus delitos” (ARAGÃO, 1963,
p.72).
Para o criminalista clássico o homem que comete o delito é um elemento
inteiramente secundário, “o crime encarado não como um produto natural e social, mas
como uma entidade jurídica abstrata, constitui, se pusermos de parte a pena, o objeto
quase que exclusivo das suas especulações metafísicas” (ARAGÃO, 1963, p.158). Mas
há os que criticam essa afirmação, dizendo que a Escola Clássica se preocupa com o
estudo do orgânico e psíquico do criminoso ao examinar, por exemplo, se este “é
menor, louco ou idiota, se encontra em estado de inconsciência ou em uso da sua razão”
(ARAGÃO, 1963, p.161), ou seja, na verificação da imputabilidade.
O enquadramento do crime que trata o processo de 1923, nos artigos e
parágrafos do Código Penal de 1890, é descrito adiante: artigo 294, parágrafo 1º, “matar
alguém”, combinado com o §3º do art. 66, “quando o criminoso, pelo mesmo facto, e
com uma só intenção, tiver comettido mais de um crime, impor-se-lhe-á no grau
máximo a pena mais grave em que houver incorrido”. O artigo 8º, §1º, diz que “são
autores os que directamente resolverem e executarem o crime”. Do artigo 39, o
parágrafo 4º, “ter o delinqüente sido impellido por motivo reprovado ou frívolo”, o
parágrafo 5º, “ter o delinqüente superioridade em sexo, força ou armas, de modo que o
offendido não pudesse defender-se com probabilidade de repellir a offensa”, e o
parágrafo 15º “ter sido o crime comettido faltando o deliquente ao respeito devido à
idade, ou à enfermidade do offendido”. E ainda segundo o processo, tudo o que tange o
Código Penal Brasileiro.
Percebe-se a necessidade postulada pela Escola Clássica de não se ocupar com o
estudo da personalidade do criminoso, mas na extrema preocupação com o crime e a

Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca.
06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
aplicação da pena, que tem aspecto punitivo, o castigo que a sociedade inflige ao
culpado, e o preventivo, impedindo o aumento de crimes.
Deixa de parte o delinqüente e estuda o crime, em sua forma abstrata, como
uma entidade puramente jurídica [...] não se busca saber se o delinqüente é
mais ou menos perverso, nem o grau de sua temebilidade, mas qual a porção
da sua responsabilidade moral e gravidade do delito praticado (ARAGÃO,
1963, p.401).

Em 29 de abril de 1923, na denúncia do processo, são citados 29 índios


residentes no Toldo de Pitanga e no Município de Reserva. Foi decretada a prisão
preventiva dos réus Manoel José Bandeira e Joscelym Borba dos Santos dado o fato de
terem domicílio incerto e, pela sua incapacidade legal, é nomeado um curador, “na
forma do que preceitua o paragrapho único do art. 341 do Código de Processo Criminal
do Estado e demais disposições da lei” (PROCESSO, 1923, p.04).
O termo incapacidade legal utilizado no processo do conflito ao tratar dos
indígenas fazendo menção ao Código Criminal do Estado, contraria o que prescreve a
Escola Clássica, proclamando a igualdade de todos, honestos e criminosos, para ela,
o criminoso é um ser normalmente constituído e psicologicamente são,
provido de idéias e de sentimentos iguais aos de todos os outros homens [...]
salvo nos casos excepcionais e evidentes de infância, de loucura, de
embriaguez, surdi-mudez, etc. (ARAGÃO, 1963, p. 157 - 158).

Porém, no último trecho da classificação do criminoso, “salvo nos casos


excepcionais”, podemos relacionar o termo incapacidade legal, ou seja, um indivíduo
que não pode responder por seus atos. Assim, há uma complementaridade na definição
do criminoso com o Código Criminal do Estado. O criminoso no processo de 1923 não
tem total igualdade, mas sim, tem especificidade de tratamento presumida pelo termo
incapacidade legal.
Os cinco autos de perguntas, interrogatório, foram feitos com os indígenas ainda
na vila, na data de 18 de abril de 1923. Treze pessoas residentes no distrito Serra da
Pitanga são arroladas como testemunhas pelo promotor público Antonio Ribeiro de
Brito, porém apenas oito são ouvidas.
É no processo que temos pela primeira vez nas fontes o “outro lado”, a “voz”
dos índios acusados, ainda que, norteados pelos rituais e disputas inerentes à construção
pactuada da verdade jurídica. Em busca da compreensão de sujeitos históricos que
tiveram pouca ou nenhuma “voz” nos diversos tipos de documentos, como, por
exemplo, escravos e indígenas, inúmeros historiadores têm utilizado como fonte a

Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca.
06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
documentação judiciária. Trabalhos com enfoques diversos, como Crime e Cotidiano,
de Boris Fausto, sobre a criminalidade na São Paulo imperial, e Nas fronteiras do
poder, de Márcia Motta, sobre litígio de terras no sudeste cafeeiro, utilizam tais
registros como: “Fontes para reconstrução de comportamentos cotidianos, reveladores
das práticas de distintos grupos sociais” (FERREIRA, 2005, p.17).
Na fonte processual, foram “ouvidos”, pela primeira vez, os “protagonistas”,
tanto os índios detidos como os colonos. Mas não devemos aceitar esse discurso como
“puro”, o detentor da verdade. É preciso considerar o filtro que passa pela pena do
escrivão, as escolhas das palavras, a síntese que faz do todo, o apontamento das
diferenças. No entanto, podemos notar que tanto nos interrogatórios como nos
testemunhos há uma linha coerente de raciocínio, um relato cronológico dos fatos,
apontamentos dos culpados ou motivos que não poderiam ser apenas obra do escrivão,
mas sim versões dos próprios envolvidos.
A causa principal do conflito apontada em dois livros regionais, Abril Violento:
a revolta dos índios Kaingangs (1999), de Manuel Borba de Camargo, e Lendário
Caminho do Peabiru na Serra da Pitanga (2002), de Terezinha Aguiar Vaz, é a
questão de terras, porém, esse motivo é desconsiderado no processo, que assegura,
através do interrogatório dos acusados e das testemunhas, que o objetivo era o saque
seguido de mortes.
São apontados também no processo, como tipos de armas utilizados, arma de
fogo e facão. Nos laudos de exames cadavéricos feitos em 17 de abril de 1923, nos
índios Manoel Mendes, Domingo de Tal e José Caetano, são especificadas como armas:
espingarda de chumbo, winchester e instrumento de corte (facão). O laudo também
indica o lugar em que foram encontrados os corpos. O primeiro e o segundo no lado
direito da igreja, e o terceiro numa picada de mato que ia da sede à margem do rio Ivaí.
Não há nenhuma menção de corpo encontrado dentro da igreja (PROCESSO, 1923, p.
04-10). Somam-se a esses autos sete exames de corpo de delito nas casas de moradores
e estabelecimentos comerciais (PROCESSO, 1923, p. 13-20).
Um possível desdobramento que ainda será investigado mais a fundo, mas que
traz certas evidências pela absolvição dos réus do conflito de 1923, é o que a Escola
Clássica diz sobre a pena, com dois pontos principais que se atrelam ao processo aqui
tratado, o da incapacidade legal (discutido anteriormente), e também da atribuição do

Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca.
06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
crime. A incapacidade de discernimento e a manipulação dos indígenas são argumentos
presentes na fonte processual, evidente no interrogatório dos índios.
A pena, pois, só é legitima se é culpado o indivíduo que a sofre, se praticou o
ato punível na posse ou gôzo da responsabilidade moral. Esta se funda em
duas condições: inteligência normal e vontade livre. Conseqüência do livre
arbítrio, a punição sem ele não pode existir logicamente: se depende do
homem ser ou não ser criminoso, ele merece um castigo, se se torna culpado.
Ao contrário, se não possui, ao cometer a ação delituosa, a faculdade de livre
escolha, não é um criminoso e não pode, portanto ser punido. (ARAGÃO,
1963, p.261).

Um aspecto importante que somente é percebido no trabalho com a fonte


processual é a diferenciação de dois grupos, os índios do Ivaí e os índios da Pitanga.
Nos livros regionais, os índios são tratados de forma homogênea apenas como “índios
da Pitanga”.
Também no processo podemos perceber, em contradição com as outras fontes
que tratam os índios como selvagens, que os indígenas de Pitanga têm contato com a
população da vila, pois as testemunhas os identificam dando nome e sobrenome. Outro
elemento é que muitos se identificam em uma profissão, lavradores e diaristas. Ou seja,
o conceito de selvagem está longe temporalmente da literatura regional produzida em
1999 e 2002.
Assim, como se pode notar, há condições de produzir uma interpretação do
conflito ocorrido na Vila da Pitanga, em 1923, tomando o Processo da Promotoria
Pública como fonte principal da investigação e, mais especificamente, procurando
analisar de que maneira há uma construção do indígena neste documento. Buscar-se-á,
portanto, interpretar esse documento à luz de uma série de referências da historiografia
brasileira, estudos que se debruçaram sobre questões da história indígena, da história da
escravidão, da história social e política. Além disso, a interpretação dos demais
documentos contribuirá para o aprofundamento das questões propostas em relação ao
processo crime.
As reflexões acerca do processo trazem novas questões que até então eram
ignoradas ao tratar-se desse conflito. A análise e interpretação da fonte criminal
pretendem contribuir para aprofundar um tema pouco estudado pela historiografia
regional, que considerou até agora a literatura produzida sobre o conflito a única versão,
história verdadeira e incontestável.

Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca.
06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
FONTE:
Juízo de Direito de Guarapuava, processo criminal nº. 92321391, caixa nº. 62, 1923.
Centro de Documentação e Memória/Guarapuava. UNICENTRO.

CAMARGO, Manuel Borba de. Abril Violento: a revolta dos índios Kaingangs.
Curitiba: Base Editora, 1999.

VAZ, Terezinha Aguiar. Lendário Caminho do Peabiru na Serra da Pitanga.


Guarapuava: Grafel, 2002.

REFERÊNCIAS:

ALVAREZ, M. César. A Criminologia no Brasil ou Como Tratar Desigualmente os


Desiguais. In: Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 45, nº 4. 2002.
p. 677-704.

ARAGÃO, Antônio Moniz Sodré. As três escolas penais. 7.ed. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1963.

Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca.
06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.
BACELLAR, Carlos. Fontes documentais: uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY,
Carla Bassanezi (org). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no


Rio de Janeiro da Belle Epoque. 2. ed. São Paulo: UNICAMP, 2005.

FERREIRA, Ricardo Alexandre. Senhores de poucos escravos: cativeiro e


criminalidade num ambiente rural, 1830-1888. São Paulo: Ed. UNESP, 2005.

IURKIV, José Erondy. A revolta do Tigre (1955). Posseiros, proprietários e


grileiros: uma luta de representação. Dissertação (Mestrado em História) – UFSC,
Florianópolis, SC, 1999. p. 20.

MONTEIRO, John M. Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de História


Indígena e do Indigenismo. Tese de Livre Docência na área de Etnologia, subárea
História Indígena e do Indigenismo, IFCH-Unicamp, 2001.

MOTA, Lúcio Tadeu. A Guerra de Conquista nos Territórios dos Índios Kaingang do
Tibagi. Revista de História Regional, Ponta Grossa, v. 02, n. 1, 1997.

______. As guerras dos índios Kaingang: a história épica dos índios Kaingang no
Paraná (1769-1924). Maringá, PR: EDUEM, 1994.

______; NOELLI, Francisco Silva. Índios, jesuítas, bandeirantes e espanhóis no Guairá


nos século XVI e XVII. Revista GeoNotas, Maringá, v. 3, n. 3, jul./set.1999.

PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 244 e 245.

PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. 2. ed.


São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

SILVA, Marcos A. da (Coord.). República em Migalhas: História Regional e Local.


São Paulo: Marco Zero, 1990.

TOMMASINO, Kimiye. Os povos indígenas no Paraná: 500 anos de encobrimento. In:


VILLALOBOS, Jorge Guerra (org). Geografia social e agricultura no Paraná.
Maringá: EDUEM, 2001.

WACHOWICZ, Ruy Christovan. História do Paraná. 2. ed. Curitiba, PR: Editora dos
Professores, 1968.

Texto integrante dos Anais do XX Encontro Regional de História: História e Liberdade. ANPUH/SP – UNESP-Franca.
06 a 10 de setembro de 2010. Cd-Rom.

Você também pode gostar