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1

ANTROPOLOGIA

BÍBLICA

[Estudo da Doutrina
do Homem e do Pecado]

Heber Carlos de Campos


2

Índice
Índice ......................................................................................................................... 2
INTRODUÇÃO........................................................................................................... 11
A DOUTRINA DO HOMEM NA SISTEMÁTICA............................................................. 12
PARTE 1 ................................................................................................................... 13
A CONDIÇÃO DO HOMEM ANTES DA QUEDA .......................................................... 13
CAPÍTULO 1 ............................................................................................................. 14
A CRIAÇÃO DO HOMEM ........................................................................................... 14
ANTROPOGENIA ....................................................................................................... 14
Conceito Evolucionista da Origem do Homem ............................................................ 14
1. Evolucionismo Materialista ................................................................................ 14
2. Evolucionismo Teísta ......................................................................................... 15
Conceito Criacionista da Origem do Homem .............................................................. 15
A Unidade da Raça ................................................................................................ 15
Criação Mediata ou Imediata? ............................................................................... 16
A criação do ser humano completo ........................................................................ 16
Distinções entre o Homem e os outros Animais Inferiores ....................................... 16
CAPÍTULO II ............................................................................................................. 18
A NATUREZA DO HOMEM ........................................................................................ 18
1. UM SER DEPENDENTE E RESPONSÁVEL ............................................................. 19
Livre Arbítrio & Livre Agência .................................................................................... 20
2. UM SER SANTO .................................................................................................... 22
Santidade Derivada e Finita ........................................................................... 24
CAPITULO III ............................................................................................................ 26
A NATUREZA CONSTITUCIONAL DO HOMEM ........................................................... 26
Base Escriturística da Natureza Constitucional do Homem ........................................ 26
1. O HOMEM É CORPO (Adão foi criado um ser material ou físico) ............................. 27
2. O HOMEM É ALMA (Adão foi criado um ser imaterial ou espiritual)........................ 29
A Unidade do Homem ............................................................................................... 29
A) A ESCRITURA FREQÜENTEMENTE DISTINGUE ENTRE CORPO- ALMA E/OU
CORPO-ESPÍRITO. ............................................................................................................... 30
(1) O VT SUGERE UMA DISTINÇÃO CORPO-ALMA (ESPIRITO), ............................. 30
(2) O NT TAMBÉM SUGERE A DISTINÇÃO CORPO-ALMA (ESPIRITO): ................... 31
B) A ESCRITURA PARECE, AO MESMO TEMPO, DISTINGUIR OS TERMOS ALMA E
ESPÍRITO. ........................................................................................................................... 32
C) A ESCRITURA USA, FREQÜENTEMENTE, OS TERMOS ALMA E ESPIRITO
INDISTINTAMENTE .............................................................................................................. 33
(1) Alma e espírito são usados indistintamente quando a referência é a uma pessoa
desincorporada. ................................................................................................................ 33
(2) Alma e espírito são usados indistintamente quando a referência é a expressões de
emoção e de devoção. ....................................................................................................... 34
(3) Alma e espírito são usados indistintamente para descrever o objeto da obra
redentora e santificadora de Cristo. .................................................................................. 37
3. O HOMEM É CORAÇÃO ........................................................................................ 39
A) A ABRANGÊNCIA DO SIGNIFICADO DO TERMO ―CORAÇÃO” NA ESCRITURA: . 39
(1) Referência a ―coração‖ no Livro de Provérbios ................................................ 39
(2) Referências a coração no uso de Jesus Cristo ................................................ 40
(3) Referências a ―coração‖ na mensagem de Paulo ............................................. 40
B) A ESCRITURA USA O TERMO CORAÇÃO COMO INDICATIVO DE: ..................... 40
1. Coração como Indicativo de Atividade Intelectual............................................ 41
2. Coração como Indicativo de Atividade Volitiva ................................................ 41
3. Coração como Indicativo de Atividade Emotiva ............................................... 41
3

c) A ESCRITURA APRESENTA O CORAÇÃO COMO A SEDE DO PECADO ............... 41


No Antigo Testamento ........................................................................................ 41
No Novo Testamento .......................................................................................... 42
D)A ESCRITURA APRESENTA TAMBÉM O CORAÇÃO COMO O CENTRO DA OBRA
REDENTORA DA GRAÇA. ................................................................................................. 42
CAPITULO IV ............................................................................................................ 44
TEORIAS SOBRE A ORIGEM DA ALMA HUMANA ...................................................... 44
1.PRE-EXISTENCIALISMO .................................................................................... 44
2. TRADUCIANISMO (ou PROPAGAÇÃO) ................................................................ 44
a) Argumentos a favor do Traducianismo ........................................................... 44
(a) A Escritura parece favorecer a apresentação do traducianismo................... 44
(b) Pelas leis naturais da vida vegetal e animal ............................................... 45
(c) As Leis genéticas favorecem o Traducianismo ............................................ 45
(d) O Traducianismo oferece mais base para explicar a depravação moral e
espiritual .................................................................................................................. 45
b) Objeções ao Traducianismo ........................................................................... 45
3) CRIACIONISMO................................................................................................. 46
a) Argumentos a favor do Criacionismo .............................................................. 46
b) Objeções ao Criacionismo .............................................................................. 46
4) PONDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 47
a) Há que se ter prudência ao falar deste assunto............................................... 47
b) Alguma forma de criacionismo merece preferência .......................................... 47
CAPITULO V ............................................................................................................. 48
A IMAGEM DE DEUS NO HOMEM ............................................................................ 48
SOBRE O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS .................................................................. 49
―Imagem‖ e ―Semelhança‖ ......................................................................................... 49
SOBRE A REFLEXÃO DA IMAGEM DE DEUS ............................................................ 49
De que consiste o reflexo da imagem de Deus? ................................................... 50
Reflexo 1 ....................................................................................................... 50
Reflexo 2 ....................................................................................................... 50
Reflexo 3 ....................................................................................................... 51
Reflexo 4 ....................................................................................................... 52
OS ESTÁGIOS DA IMAGEM DE DEUS ....................................................................... 52
1. A IMAGEM ORIGINAL........................................................................................ 52
Composição da Justiça Original ............................................................................ 52
Relacionamento Tríplice Perfeito ............................................................................ 53
a) Relacionamento com Deus ............................................................................. 53
b) Relacionamento com o semelhante ................................................................. 53
c) Relacionamento com a natureza ..................................................................... 54
Posse Non Peccare ............................................................................................. 54
2.A IMAGEM DESFIGURADA ................................................................................ 55
A Quebra do Relacionamento Tríplice ........................................................................ 55
a) O Homem quebrou o relacionamento com Deus.............................................. 55
b) O homem quebrou o relacionamento com seu semelhante .............................. 56
c) O homem quebrou o relacionamento com a natureza ...................................... 56
Non Posse Non Peccare ....................................................................................... 56
3.A IMAGEM RESTAURADA .................................................................................. 57
Posse non peccare (?) ......................................................................................... 58
4.A IMAGEM APERFEIÇOADA ............................................................................... 58
Non Posse Peccare ............................................................................................. 59
A IMAGEM DE DEUS NA TEOLOGIA CRISTÃ ............................................................ 59
1) Catolicismo ....................................................................................................... 59
2) Socinianismo .................................................................................................... 59
3) Luteranismo ...................................................................................................... 59
4) Calvinismo ........................................................................................................ 60
4

CAPÍTULO VI ............................................................................................................ 61
O HOMEM NO PACTO DAS OBRAS ........................................................................... 61
Teologia do Pacto ou Teologia Federal ........................................................................ 61
O SIGNIFICADO DO TERMO ―PACTO‖ ....................................................................... 61
O NOME ―PACTO DAS OBRAS‖ ................................................................................. 62
EVIDÊNCIA BÍBLICA DO PACTO DAS OBRAS ........................................................... 63
O PACTO DAS OBRAS E A LEI DE DEUS .................................................................. 64
1. Deus deu ao homem uma lei natural. ............................................................ 64
2. Deus deu ao homem uma lei expressa em palavras. ....................................... 65
OS ELEMENTOS DO PACTO DAS OBRAS ................................................................. 65
1. Partes Contratantes .......................................................................................... 65
2. Promessa de Vida Condicionada à Obediência .................................................... 66
Este é o ensino de Moisés .................................................................................. 66
Este é o ensino de Davi ...................................................................................... 66
Este é o ensino de Paulo .................................................................................... 67
Este é o ensino de Jesus .................................................................................... 67
Este é o ensino dos Padrões de Fé de Westminster ............................................. 68
3. A Ameaça de Morte em Caso de Desobediência .................................................. 68
4. O Sacramento do Pacto ..................................................................................... 69
A VIOLAÇÃO DO PACTO DAS OBRAS ....................................................................... 70
A Gravidade da Violação do Pacto .......................................................................... 70
A IDÉIA DE REPRESENTATIVIDADE NO PACTO DAS OBRAS .................................... 70
Adão é o Cabeça Natural da Raça .......................................................................... 71
Adão é o Cabeça Representativo da Raça ............................................................... 71
Paralelo entre o Primeiro Adão e o Último Adão ...................................................... 72
FUNÇÃO ATUAL DO PACTO DAS OBRAS .................................................................. 74
Sentidos em que o Pacto das Obras Ainda Vigora ................................................... 74
O Pensamento Arminiano .................................................................................. 74
O Pensamento Reformado .................................................................................. 74
Sentidos em que o Pacto das Obras Não Mais Vigora .............................................. 75
PARTE 2 ................................................................................................................... 76
A CONDIÇÃO DO HOMEM E A QUEDA ..................................................................... 76
A LIBERDADE E A MUTABILIDADE PARA O PECADO ............................................... 77
CAPITULO VII ........................................................................................................... 79
A ORIGEM DO MAL MORAL ...................................................................................... 79
A) DADOS BÍBLICOS SOBRE A ORIGEM DO MAL ................................................. 79
Análise de Is 45.1-7 .................................................................................................. 80
B) DADOS BÍBLICOS SOBRE O CARÁTER DO PECADO ........................................ 85
1) O Pecado é uma classe específica de mal ........................................................ 85
2) O Pecado tem um caráter absoluto ................................................................. 85
3) O Pecado tem a ver com a transgressão da Lei ................................................ 86
C) A ORIGEM DO PECADO NO MUNDO ANGELICAL ............................................. 86
D) A ORIGEM DO PECADO NO MUNDO DOS HOMENS ......................................... 87
Análise de Gn 3.1-6 .................................................................................................. 87
PARTE 3 ................................................................................................................... 92
A CONDIÇÃO DO HOMEM DEPOIS DA QUEDA ......................................................... 92
(DOUTRINA DO PECADO) ......................................................................................... 92
CAPÍTULO VIII .......................................................................................................... 93
A TRANSMISSÃO DO PECADO .................................................................................. 93
CONEXÃO DO PECADO DE ADÃO COM O DA POSTERIDADE .................................. 93
A. OS QUE NEGAM ESTA CONEXÃO ..................................................................... 93
1) Os Pelagianos ................................................................................................ 93
2) Os Semi-Pelagianos ....................................................................................... 95
3) Os Arminianos Consistentes .......................................................................... 98
B. OS QUE AFIRMAM ESTA CONEXÃO ............................................................... 100
5

1) Todos os que Sustentam a Teoria Realista .................................................... 100


2) Todos os que sustentam o Pacto das Obras .................................................. 101
a) A Relação Natural de Adão com a Raça ..................................................... 102
b) A Relação Pactual de Adão com a Raça ..................................................... 102
c) Distinção de sentido nas Palavras JUSTO e INJUSTO ............................... 103
d) A Base Bíblica da Imputação do Pecado de Adão ....................................... 104
Análise do texto de Rom. 5.12-21: ........................................................................... 104
O Princípio da Representação na Escritura ................................................... 108
3) Os que Sustentam a Teoria da Imputação Mediata ....................................... 109
CAPITULO IX .......................................................................................................... 111
AS CONSEQÜÊNCIAS DO PECADO NA VIDA DA RAÇA HUMANA ............................ 111
1. CONSEQÜÊNCIAS PARA ADÃO ....................................................................... 111
Análise de Gn 3.7-24 ........................................................................................... 112
2. CONSEQÚÊNCIAS PARA A RAÇA HUMANA ..................................................... 117
CAPITULO X ........................................................................................................... 119
O PECADO ORIGINAL ............................................................................................. 119
1. CULPA ORIGINAL ............................................................................................ 119
Reatus Culpae ................................................................................................. 119
Reatus Poenae ................................................................................................. 120
2. CORRUPÇÃO ORIGINAL .................................................................................. 120
a) Ausência de Justiça Original ........................................................................ 120
Justiça ........................................................................................................ 120
Santidade .................................................................................................... 120
Conhecimento Verdadeiro ............................................................................ 121
b) Presença de um Mal Verdadeiro ....................................................................... 121
DEPRAVAÇÃO TOTAL ............................................................................................. 121
a) Descrição Bíblica da Corrupção do Pecado ....................................................... 121
b) Descrição Bíblica do Homem Corrupto ............................................................. 122
A DEPRAVAÇÃO DO CORAÇÃO HUMANO ............................................................... 122
OS VÁRIOS NOMES PARA DEPRAVAÇÃO NA ESCRITURA ....................................... 126
1. Corrupção do Coração ..................................................................................... 126
2. Cegueira do Coração ....................................................................................... 126
3. Dureza de Coração .......................................................................................... 127
4. Consciência Corrompida .................................................................................. 127
5. Escravidão do Pecado ...................................................................................... 128
6. Escravidão da Corrupção................................................................................. 129
7. Escravidão de Satanás .................................................................................... 129
CARACTERÍSTICAS DA DEPRAVAÇÃO .................................................................... 130
1. É comum a todos desde o Ventre Materno ....................................................... 130
2. Afeta a Totalidade do Ser Humano ................................................................... 132
A DOUTRINA DA DEPRAVAÇÃO TOTAL .................................................................. 133
Sobre o termo depravação ............................................................................ 133
Sobre o adjetivo "total" ................................................................................. 133
1. O CORPO ........................................................................................................ 133
2. ALMA .............................................................................................................. 134
a) Mente .......................................................................................................... 134
b) Emoções...................................................................................................... 137
C. Vontade ...................................................................................................... 141
A Vontade e os Motivos ................................................................................ 141
INCAPACIDADE TOTAL ........................................................................................... 144
1. O Homem é Incapaz de Sensibilidade Moral ................................................. 147
2. O Homem é Incapaz de Obediência Moral ..................................................... 149
3. O Homem é Incapaz de Amar a Deus ........................................................... 149
4. O Homem é Incapaz de Amar Aqueles que são de Deus ................................ 150
5. O Homem ê Incapaz de Perceber e Fazer as Coisas Santas ............................ 151
6

6. O Homem é Incapaz de Vir a Cristo .............................................................. 153


PARTE IV ................................................................................................................ 155
A CONDIÇÃO DO HOMEM NO PLANO REDENTOR DE DEUS .................................. 155
(A DOUTRINA DO PACTO) ....................................................................................... 155
CAPITULO XVI ........................................................................................................ 156
O HOMEM NO PACTO DA GRAÇA ........................................................................... 156
A Necessidade do Estabelecimento do Pacto da Graça .......................................... 156
O PACTO DA GRAÇA CONCEBIDO NA ETERNIDADE .............................................. 156
1. Este Pacto foi feito na Eternidade .................................................................... 156
2. Este Pacto foi feito entre o Pai e o Filho ............................................................ 157
3. Este Pacto teve Cristo como Fiador e Cabeça .................................................... 158
a) Cristo Como Fiador do Pacto .................................................................... 158
b) Cristo como Cabeça do Pacto ................................................................... 159
4. Este Pacto foi de Obras Para Cristo .................................................................. 159
5. Este Pacto possuía Requisitos e Promessas ...................................................... 159
a) Requisitos ................................................................................................ 159
b) Promessas ............................................................................................... 159
6. Este Pacto foi feito em favor do Pecador Eleito .................................................. 160
O PACTO DA GRAÇA REALIZADO NA HISTÓRIA ..................................................... 160
1. A Base para a Intervenção Graciosa de Deus ................................................... 160
2. A Intervenção Divina é Soberana e Incondicional ............................................. 161
AS PARTES CONTRATANTES .............................................................................. 161
AS PROMESSAS DO PACTO ................................................................................ 161
AS CARACTERÍSTICAS DO PACTO ...................................................................... 161
É um Pacto Gracioso ........................................................................................... 161
Com Origem Trinitária ........................................................................................ 161
Tem Conseqüências Eternas ................................................................................ 161
Destinado a um Povo Especial ............................................................................. 161
É o mesmo em Ambas as Dispensações ............................................................... 161
O PAPEL DE CRISTO NA REALIZAÇÃO HISTÓRICA DO PACTO ........................... 161
ASPECTOS DO PACTO ............................................................................................ 161
Relação Legal ...................................................................................................... 161
Relação de Comunhão de Vida ............................................................................ 161
AS VÁRIAS DISPENSAÇÕES DO PACTO DA GRAÇA ................................................ 161
1. PACTO DE DEUS COM NOÉ ............................................................................... 162
Sua Relação com os outros Pactos ............................................................... 163
As Promessas do Pacto com Noé .......................................................................... 164
As Características do Pacto com Noé .................................................................... 165
2. PACTO DE DEUS COM ABRAÃO ......................................................................... 165
Partes Contratantes ............................................................................................ 165
Um Pacto Incondicional ....................................................................................... 165
Um Pacto Amoroso .............................................................................................. 165
Um Pacto Eterno ................................................................................................. 165
A Eternidade do Pacto Afirmada ................................................................... 165
A Eternidade do Pacto Demonstrada ............................................................ 166
As Promessas desse Pacto ................................................................................... 166
Promessas Gerais ................................................................................................ 166
Promessas Específicas ......................................................................................... 167
a) Promessa de Deus estar presente no meio do povo .................................... 167
É uma promessa de restauração ........................................................... 167
É uma promessa de comunhão ............................................................. 168
b) Promessa de Yehovah ser o Deus da Descendência de Abraão ................... 168
c) Promessa de a Descendência de Abraão ser Povo de Yehovah .................... 168
O Povo de Yehovah é um povo Santo ..................................................... 169
O Povo de Yehovah é um povo Peculiar ................................................. 169
7

O Sacramento do Pacto com Abraão .................................................................... 169


3. O PACTO SINAÍTICO ........................................................................................... 169
Partes Contratantes ............................................................................................ 169
O Estabelecimento do Pacto Sinaítico .................................................................. 170
Tipo - Um Pacto Condicional ............................................................................... 170
O Pacto é confirmado quando há a obediência ao Senhor .............................. 170
O Pacto é quebrado quando há a desobediência ao Senhor ........................... 170
O Pacto é Renovado quando há a volta sincera para o Senhor ....................... 170
A Singularidade do Pacto Sinaítico ...................................................................... 171
O Sacramento do Pacto Sinaítico ......................................................................... 171
Aspectos do Pacto Sinaítico ................................................................................. 171
O Pacto Sinaítico é uma continuação do Pacto Abraâmico ............................ 171
O Pacto Sinaítico é um Pacto da Graça ......................................................... 172
O Pacto Sinaítico é um Pacto Nacional ......................................................... 172
4. O PACTO DE DEUS COM OS LEVITAS ................................................................ 173
Tipo - Um Pacto Incondicional ............................................................................. 173
Estabelecimento do Pacto .................................................................................... 173
Um Pacto Perpétuo .............................................................................................. 174
A Violação Pacto.................................................................................................. 174
5. PACTO DE DEUS COM DAVI .............................................................................. 175
Estabelecimento do Pacto .................................................................................... 175
Aspectos do Pacto Davídico ................................................................................. 176
1. É uma Continuação do Pacto da Graça .................................................... 176
2. E um Pacto Eterno ................................................................................... 176
3. É um Pacto cumprido em Cristo ............................................................... 177
6. O NOVO PACTO .................................................................................................. 178
PARTES CONTRATANTES ................................................................................... 178
O ESTABELECIMENTO DO NOVO PACTO ........................................................... 178
TIPO - UM PACTO INCONDICIONAL .................................................................... 178
O TEMPO DO CUMPRIMENTO DO NOVO PACTO ................................................ 178
RELAÇÃO DO NOVO PACTO COM OS PACTOS ANTERIORES .............................. 179
Relação com o Pacto Abraâmico ........................................................................... 179
Relação com o Pacto Sinaítico .............................................................................. 180
Relação com o Pacto Levítico ............................................................................... 180
Relação com o Pacto Davídico .............................................................................. 180
CONTRASTES ENTRE O VELHO PACTO E O NOVO PACTO ................................. 180
SEMELHANÇAS .................................................................................................. 181
Os dois pactos possuíam algumas promessas comuns ......................................... 181
Os dois pactos eram caracterizados pelo sacrifício de um Cordeiro ....................... 181
Os dois pactos são sancionados com sangue ........................................................ 181
Os dois pactos possuem o mesmo livro da lei ....................................................... 181
DIFERENÇAS ...................................................................................................... 181
1. O Antigo Pacto era Condicional e o Novo era Incondicional ............................... 181
2. O Novo Pacto ê superior ao Antigo Pacto .......................................................... 181
a) Superioridade quanto ao Sacerdócio ......................................................... 181
b) Superioridade quanto aos Sacrifícios ........................................................ 182
c) Superioridade quanto ao Lugar dos Sacrifícios .......................................... 182
c) Superioridade quanto à Administração da Lei: .......................................... 182
d) Superioridade quanto às Promessas ......................................................... 182
e) Superioridade quanto ao conceito de Redenção ......................................... 183
PROMESSAS DO NOVO PACTO ........................................................................... 183
1. A Promessa da doação de um novo coração ...................................................... 183
2. A Promessa da Interiorização da lei de Deus .................................................... 183
3. A Promessa de um Conhecimento Pessoal do Senhor ....................................... 185
a) É uma promessa de caráter pessoal .......................................................... 185
8

b) É uma promessa de caráter universal ....................................................... 185


c) É uma promessa de caráter nivelador ....................................................... 185
d) É uma promessa de caráter eficaz ............................................................ 186
e) É uma promessa de cumprimento pleno no futuro .................................... 186
4. A Promessa de Ser o Deus do Povo e deles serem Povo de Deus ........................ 186
"Eu serei o seu Deus" ........................................................................... 186
"Eles serão o meu povo" ........................................................................ 187
5. A Promessa do Perdão dos Pecados .................................................................. 187
6. A Promessa deles terem o Temor de Deus no Coração ...................................... 188
7. A Promessa de Bênçãos Contínuas .................................................................. 189
8. A Promessa da Perseverança deles no Senhor .................................................. 189
9. A Promessa de terem para sempre o Tabernáculo do Senhor ............................ 190
10. A Promessa de prover o grande Pastor para o seu povo ................................... 190
a) Cristo é o Pastor Prometido ...................................................................... 191
b) Cristo é o Grande Pastor .......................................................................... 191
c) Cristo é o Único Pastor ............................................................................. 191
d) Cristo é o Pastor das Ovelhas ................................................................... 191
e) Cristo tornou-se Pastor Pelo Sangue do Pacto ........................................... 191
f) Cristo é o Pastor que venceu a morte ......................................................... 191
ASPECTOS DO NOVO PACTO ................................................................................. 191
1. É uma Continuação do Pacto da Graça ............................................................ 191
2. É um Pacto Eterno .......................................................................................... 192
3. É um Pacto que tem Jesus como o Fiador ........................................................ 192
4. É um Pacto que tem Jesus como Mediador ...................................................... 192
A CONTINUIDADE DO PACTO DA GRAÇA NO N.T. .................................................. 192
UNIDADE DO PACTO DA GRAÇA NOS DOIS TESTAMENTOS .................................. 192
1. A Expressão Resumida do Pacto é a Mesma nos dois Testamentos ................... 192
2. O Evangelho do Pacto é o mesmo nos dois Testamentos ................................... 192
3. O Modo da Recepção da Salvação é a mesma nos dois Testamentos ................. 193
4. O Mediador do Pacto é o mesmo em ambos os Testamentos ............................. 193
5. As promessas do Pacto são as mesmas em ambos os Testamentos ................... 193
a) A Promessa á Descendência de Abraão ser Povo de Deus no VT e NT ......... 193
Raça Eleita ........................................................................................... 194
Sacerdócio Real .................................................................................... 194
Nação Santa ......................................................................................... 194
Povo de Propriedade exclusiva de Deus ................................................. 194
Antes não éreis povo............................................................................. 194
Agora sois povo de Deus ....................................................................... 195
b) A Promessa de Yehovah de ser o Deus da Descendência de Abraão no VT e no
NT .......................................................................................................................... 195
c) A Promessa da Posse da Terra no VT e NT ................................................. 196
6. Os Sacramentos do Pacto da Graça são os mesmos em ambos os Testamentos . 196
CAPITULO XIII ........................................................................................................ 197
OS PECADOS ATUAIS ............................................................................................. 197
A ORIGEM DOS PECADOS ATUAIS ......................................................................... 197
Veja o Ensino de Jesus ....................................................................................... 197
Veja o ensino de Paulo ........................................................................................ 198
Veja o ensino de Tiago ......................................................................................... 198
OS VÁRIOS NOMES DOS PECADOS ATUAIS ........................................................... 198
OS PECADOS ATUAIS E SUA RELAÇÃO COM A LEI DE DEUS ................................ 198
A MULTIPLICIDADE DOS PECADOS ATUAIS ........................................................... 198
OS OBJETOS DOS PECADOS ATUAIS .................................................................... 199
Pecados diretos contra Deus ................................................................................ 199
Pecados contra o próximo .................................................................................... 200
Pecados contra si próprio .................................................................................... 200
9

OS MODOS DOS PECADOS ATUAIS ....................................................................... 201


Pecados Internos ................................................................................................. 201
Pecados Externos ................................................................................................ 201
AS PARTES DOS PECADOS ATUAIS ........................................................................ 202
Pecados de Omissão ............................................................................................ 202
Pecados de Comissão .......................................................................................... 202
OS GRAUS DOS PECADOS ATUAIS ........................................................................ 203
Pecados de Ignorância ......................................................................................... 203
Pecados deliberados ............................................................................................ 204
A gravidade de ambos os pecados:................................................................ 204
DISTINÇÕES DOS PECADOS ATUAIS ..................................................................... 204
Pecados Remissíveis e Irremissíveis ..................................................................... 204
CAPITULO XV ......................................................................................................... 206
A PUNIÇÃO DO PECADO ........................................................................................ 206
A ORIGEM DA PUNIÇÃO ......................................................................................... 206
OS PROPÓSITOS DA PUNIÇÃO DIVINA ................................................................... 206
a) Vindicar a Retidão ou a Justiça Divina ............................................................. 206
b) A Reforma do Pecador ..................................................................................... 206
c) Fazer com que os homens desistam de pecar .................................................... 206
TIPOS DE PUNIÇÃO DIVINA.................................................................................... 206
(a) Castigos Naturais ........................................................................................... 206
(b) Castigos Positivos ........................................................................................... 207
A PUNIÇÃO DE MORTE .......................................................................................... 207
O Conceito de Morte ............................................................................................ 207
O poder sobre a morte ......................................................................................... 207
A Causa Judicial da Morte .................................................................................. 207
PUNIÇÃO NA EXISTÊNCIA PRESENTE .................................................................... 208
1. MORTE ESPIRITUAL ....................................................................................... 208
A Natureza dessa morte ....................................................................................... 208
O tempo dessa morte .......................................................................................... 209
O Modo que essa morte chegou até nós ............................................................... 209
A Inescapabilidade dessa morte ........................................................................... 209
A Duração dessa morte ....................................................................................... 210
2. OS SOFRIMENTOS DESTA VIDA ..................................................................... 210
Sofrimentos no ser material ................................................................................. 210
Sofrimentos no ser Imaterial ................................................................................ 210
Sofrimentos do ser Social .................................................................................... 210
3. MORTE FÍSICA ............................................................................................... 211
A Natureza da Morte Física .................................................................................. 211
O Processo da Morte Física .................................................................................. 211
A Inescapabilidade da Morte Física ...................................................................... 212
A Morte Física do Cristão .................................................................................... 213
Diferença entre o Cristão e o Ímpio na morte Física .............................................. 215
PUNIÇÃO NA EXISTÊNCIA FUTURA ........................................................................ 215
4. MORTE ETERNA ............................................................................................. 215
O Lugar desse Castigo ......................................................................................... 215
O uso da palavra grega Hades...................................................................... 215
O Uso do Termo Grego Gehenna .................................................................. 216
O Uso do Termo Grego Tártaro ..................................................................... 217
A plenitude desse castigo .................................................................................... 217
O Tempo desse castigo ........................................................................................ 217
A Duração desse castigo ...................................................................................... 218
O Sentido da palavra “eterno" ....................................................................... 218
As Teorias dos Adversários das Penas Eternas .............................................. 219
A teoria da Não-Punição ....................................................................... 219
10

A Teoria do Aniquilacionismo ................................................................ 219


A Teoria da Segunda Chance ................................................................ 219
A Teoria da Redenção Universal ............................................................ 219
Objeções a essas teorias .............................................................................. 220
A Condição em que se suporta esse castigo .......................................................... 220
Os sofrimentos desse castigo ............................................................................... 220
Os Objetos desse castigo ..................................................................................... 221
A Inescapabilidade desse castigo ......................................................................... 222
11

INTRODUÇÃO
Não devemos confundir essa matéria com a antropologia cultural, ou a ciência da raça,
que inclui todas as outras ciências ligadas ao homem, como por exemplo: psicologia, sociologia,
lingüística, etc. Neste capitulo estudaremos uma antropologia bíblica e teológica, não uma
antropologia filosófica ou cultural. O homem sempre foi o centro das preocupações filosóficas,
mas não será esta a preocupação deste estudo. Veremos o homem à luz do que Deus pensa dele.
Esta é uma abordagem desafiadora, especialmente num tempo quando Deus não entra na conta
dos homens, quando estes se estudam a si mesmos.
Vamos analisar como o homem veio de Deus, qual foi seu comportamento no Éden, quais
foram as causas da sua queda, os resultados dela, e a redenção do homem em Cristo, no pacto da
graça, tudo com base na revelação de Deus como está nas Santas Escrituras.
Na antropologia bíblica vamos estudar o homem no seu relacionamento com Deus. É uma
tolice tentar conhecer o homem sem que o conheçamos à luz da revelação divina. Por causa da
tentativa de se estudar o homem à parte das informações que o próprio Deus dá do ser humano,
muitos erros são cometidos na avaliação do homem pelo homem. Portanto, o estudo da
antropologia tem que ser feito à luz da teologia que é baseada na revelação da Escritura.
O estudo da antropologia é extremamente importante, especialmente dentro da esfera
teológica. A teologia cristã foi elaborada quando, cientificamente, o homem pensava
geocêntricamente, isto é, que a terra era o centro de tudo. O grande astro girava em torno da
terra, e tudo servia a terra. Com a entrada de Nicolau Copérnico, o mundo passou a pensar
heliocentricamente. Com essa mudança do geocentrismo para heliocentrismo, diz Verduin, a
terra, a habitação do homem, pareceu muito menos importante. Com o advento do
heliocentrismo, com a revolução Copérnica, a terra perdeu o seu lugar central. ―Esta mudança
tendeu a diminuir o lugar e a importância do homem; esta mudança fé-lo sentir-se pequeno e
menos importante‖. 1 A enormidade do universo veio à tona com a implementação das
descobertas telescópicas. Cada vez mais a terra tornou-se menor, e menor ainda a importância
daquele que foi feito ―menor do que Deus‖. De lá para cá, pouca atenção tem sido dada ao estudo
do homem, como parte da criação de Deus.
A diminuição da importância do homem devido à descoberta do tamanho do universo, e o
empequenecimento de sua existência tão curta, em vista da suposta longa duração e existência
do universo material, não devem desanimar o homem no estudo sério das suas origens e do seu
comportamento. E este estudo tem crescido neste últimos dois séculos, mas sem as devidas
precauções. Os cientistas têm desprezado as informações que Deus dá das origens e do
comportamento dos homens na Sua Palavra. Isto tem levado a distorções sérias no estudo da
antropologia.
O estudo do homem deveria merecer uma atenção maior da parte de todos nós, não que o
homem seja o centro absoluto do universo, mas pela dedicação e atenção que o próprio Deus lhe
deu, quando o criou à sua própria imagem e semelhança. Essa atenção deveria ser dada, ao
menos, pelos psicólogos, antropólogos e outros cientistas cristãos. Deveríamos devolver ao
estudo da teologia, uma boa base de antropologia bíblica.
Fazemos jus a uma boa antropologia bíblica, quando estudamos as origens do homem
dentro da Escritura. Por essa razão, a primeira parte da antropologia tem a ver com a criação do
homem.

1 Leonard Verdum, Somewhat Less than God, (Eerdmans, 1970), 9-10.


12

A DOUTRINA DO HOMEM NA SISTEMÁTICA


E perfeitamente natural a transição do estudo do ser de Deus (Teontologia) para o estudo
do ser humano (Antropologia). Este não é somente a coroa da criação, mas é o objeto especial da
preocupação de Deus. A Escritura mostra essa preocupação de Deus nos muitos textos que
tratam da criação, da queda e da redenção do homem. Na Escritura, o homem sempre é visto nas
suas relações com Deus e, como ato reflexo, em suas relações com os seus semelhantes. Estas
relações mostram a grande importância para todos nós do estudo da antropologia.
A transição da teontologia para a antropologia é absolutamente necessária, porque a
primeira prepara o terreno para a segunda. A visão que temos do homem dependerá, em última
instância, do conceito que tivermos de Deus. Os departamentos da sistemática estão
absolutamente interligados, de tal forma que o conceito que temos de um, determina o conceito
de outro.
13

PARTE 1

A CONDIÇÃO DO

HOMEM ANTES DA

QUEDA
14

CAPÍTULO 1
A CRIAÇÃO DO HOMEM

ANTROPOGENIA
O livro do Gênesis, que é o livro dos começos, não trata simplesmente da cosmogonia, que
é o vir à existência do cosmos material, mas também de antropogenia, que é o vir à existência do
ser humano. A criação do mundo material foi em função da criação do dominador dele. Deus
colocou o homem como governador e dominador de toda a criação, conforme nos diz o Salmo 8.
Depois do propósito da glória de Deus, todas as coisas foram feitas para que o homem
desfrutasse delas. O nosso planeta e o restante do cosmos foram designados para o bem-estar do
último dos seres criados, o homem. Por isso é dito do homem como sendo a coroa da criação. O
homem é apresentado na Escritura como o capeamento ou o acabamento da empreitada criadora
total do Todo-Poderoso. Da criação do homem Leonard Verduin diz: ―Antes do homem entrar em
cena, no fim de cada dia da atividade criadora de Deus, o Artífice Divino chama o produto da Sua
criação ―bom‖; mas só após o homem entrar em cena ele é chamado ―muito bom‖. 2
Contudo, ignorando em parte aquilo que a narrativa da criação diz nos primeiros
capítulos de Gênesis, no século passado alguns estudiosos tentaram derrubar tudo o que até
então havia sido crido pela igreja cristã. Levantou-se no seio da igreja, especialmente na Europa,
a doutrina do evolucionismo que permeou até os limites do cristianismo ortodoxo. O
evolucionismo da criação do homem teve um número crescente de adeptos até algumas décadas
atrás, mas o seu número está decrescendo ultimamente devido à queda de algumas das teorias
anteriormente cridas, no mundo científico, pelos primeiros evolucionistas.

Conceito Evolucionista da Origem do Homem


Há dois tipos de evolucionismo ainda vigentes no mundo teológico e científico, que devem
ser analisados, mesmo que de maneira bastante superficial: o primeiro é o evolucionismo
materialista (dentro dos círculos não-cristãos), e o segundo é o evolucionismo teísta (dentro dos
círculos cristãos).

1. Evolucionismo Materialista
Há muitas variações do evolucionismo, mas Berkhof resume dizendo que ―qualquer que
seja a diferença de opinião que possa haver nesse ponto, é seguro que, segundo a evolução
materialista, o homem descende dos animais inferiores no corpo e na alma, mediante um
processo natural de perfeição, controlado totalmente por energias inerentes.‖ 3
A doutrina do evolucionismo materialista é um ataque frontal às doutrinas da Escritura.
É uma negação de toda a história, como revelada por Deus, que é o fundamento de todo o
cristianismo. Se os animais e os homens evoluem, então não houve os primeiros pais, não houve

2 Leonard Verduin, Somewhat Less than God, (Eerdmans, 1970), 9.


3 Louis Berkhof, Teologia Sistemática (Grand Rapids: Tell, 1981) 216 (edição castelhana).
15

Paraíso, não houve queda. E se não houve queda, não houve necessidade de redenção. Jesus veio
ao mundo sem qualquer razão. O evolucionismo nega tudo o que aconteceu, que é fundamental
para a vida humana. O evolucionismo nega Deus.

2. Evolucionismo Teísta
O problema do cristianismo hoje não é somente o evolucionismo materialista, mas o
evolucionismo teísta, que se tem tornado palatável a vários teólogos modernos. O evolucionismo
teísta crê que há um Deus, um Criador pessoal nas origens. Deus criou os céus e a terra, mas
todas as coisas sofrem um desenvolvimento de acordo com certas leis inerentes criadas e
colocadas na matéria por Deus. E uma espécie de deísmo, onde Deus cria e solta as espécies, sem
intervir no seu desenvolvimento.
Há também uma pequena variação de evolucionismo teísta que diz que Deus criou a terra
original, mas então supõe que todas as plantas subsequentes e a vida animal evoluíram-se de
uma forma mais baixa para uma mais alta, sem qualquer ato criador separado de Deus para
cada espécie. E possível, portanto, ser um teísta, mas ao mesmo tempo sustentar o
desenvolvimento da vida de uma forma protozoária para uma forma bem superior de vida, até
chegar à vida humana. O problema é que a Escritura, que é fonte de autoridade para os cristãos
genuínos, diz que os insetos, os répteis, os anfíbios, os pássaros, os outros animais e os homens,
foram originados em atos distintos e separados de Deus, não um sendo o desenvolvimento ou a
evolução de outro.
Os evolucionistas teístas tentam mostram que não há qualquer contradição ou conflito
entre as narrativas do Gênesis e as teorias do evolucionismo.
Todavia, é impossível alguém ser um evolucionista e, ao mesmo tempo, crer nas
afirmações do Gênesis. Como pode alguém ser um evolucionista e ainda crer na criação de Deus
em seis dias, como a Escritura afirma? A única saída para os evolucionistas teístas é interpretar
o Gênesis alegoricamente. Nada da narrativa do Gênesis é literal, tudo é alegórico. O
evolucionista teísta crê que Deus criou alguma coisa no começo, mas Ele deixou o que criou
passar por um processo de evolução, como por exemplo uma célula viva que se desenvolveu até
chegar a um animal primitivo, e deste ao homem. E esse o teísmo evolucionista deles.

Conceito Criacionista da Origem do Homem


A Unidade da Raça
O Testemunho da Escritura: Além da narração do texto de Gênesis, há outras indicações
de que a raça humana tenha vindo de um só casal. Eles se multiplicaram e encheram a terra (Gn
1.28), como aconteceu com os animais. A raça humana não constitui somente uma unidade
racial, mas todos os homens vêm de um só tronco, sendo todos membros da mesma árvore
genealógica. Paulo, o apóstolo, ensinou isto claramente quando estava instruindo os sábios no
Areópago. Referindo-se ao ―Deus desconhecido‖ dos helênicos, ele apresentou o Deus verdadeiro
como sendo o Deus criador, que fez todas as cousas que há no mundo (At 17.24), o Deus
auto-suficiente (v.25) e, então, mostra a unidade da raça humana, dizendo: ―de um só fez toda
raça humana para habitar sobre a face da terra, havendo fixado os tempos previamente
estabelecidos e os limites da sua habitação‖ (v.26). Citando provavelmente o poeta pagão Arato,
Paulo diz que ―Dele também somos geração. Sendo, pois geração de Deus...‖ (v.28b-29a). Há uma
ligação orgânica entre todos os membros da raça humana. Todos procedem de uma só raiz.
Há outros textos da Escritura que indicam que a humanidade toda veio de um só homem
(Rm 5.12,19; 1 Co 15.21-22).
O Testemunho da Ciência: — As várias ciências têm corroborado para mostrar a
veracidade do testemunho das Santas Escrituras com respeito à unidade da raça humana.
O estudo da história tem mostrado a veracidade da Escritura. Muitos grandes eruditos
têm crido que a civilização teve o seu começo nas terras mencionadas no Gênesis (região da
Mesopotâmia, Armênia, Babilônia, etc.). Todos os homens vieram de uma região somente, e que,
16

ao depois, se espalharam por todas as parte da terra.


O estudo da filologia comparada tem mostrado o fato da íntima relação entre todas as
divisões da raça humana. Todas as línguas tiveram a sua origem num centro comum.
O estudo da psicologia tem mostrado que a parte imaterial do homem, a alma, seja onde
for que ele viva, é essencialmente a mesma. Todos os homens, em todos os lugares, têm os
mesmos apetites, os mesmos desejos, as mesmas inclinações, as mesmas capacidades mentais,
afetivas e emocionais, o que aponta para a origem comum deles.
O estudo da fisiologia aponta para a unidade da raça humana, também. As variedades
de raças dentro da raça humana apenas apontam para as diferentes regiões onde vivem, mas
basicamente todas as raças vem de um só tronco original. Todos os homens têm a mesma
conformação física, não importa quão separadas as raças tenham estado por milhares de anos.

Criação Mediata ou Imediata?


A Escritura parece indicar claramente que a criação do homem não foi ex-nihilo, nem uma
criação sem ter material pré-existente. Quando Deus criou o homem, Ele usou material
pré-existente. Deus tomou o pó da terra e formou o homem, usando algo que já existia. Se por
criação Imediata entendemos a operação direta de Deus, então a criação do homem foi imediata,
pois Deus disse de Si para Consigo: ―Façamos o homem...‖; mas se por criação Imediata
entendemos a feitura do homem sem ter qualquer material pré-existente, então, ela não foi
imediata, mas mediata, usando os meios já existentes, como o barro, por exemplo. A alma do
homem foi uma criação imediata, pois Deus não somente agiu diretamente, mas não usou nada
já existente para criá-la.
Todas as outras partes vivas foram criações mediatas, como a dos animais e das árvores
(Gn 1.11-12, 20-21, 24-25), tudo foi feito, ―segundo a sua espécie‖, mas Deus agiu diretamente
na criação do homem, criando-O à Sua imagem e semelhança.

A criação do ser humano completo


As Escrituras negam qualquer idéia de que o homem seja um mero produto de forças
naturais não inteligentes. Elas se referem à existência do homem como um ato criativo de Deus:

Nm 16.22 – ―Mas eles se prostraram sobre os seus rostos e disseram: Ó Deus,


Autor e Conservador de toda vida, acaso por pecar um só homem indignar-te-ás
contra toda esta congregação?‖ (ver 27.16)

A inteligência, a consciência, o senso moral, o poder de autodeterminação, etc., mostram


que o homem não foi derivado, por um processo natural de desenvolvimento, a partir de criaturas
inferiores, como ensina o evolucionismo. Somos compelidos a crer segundo o que prescreve a
Palavra de Deus, quando diz: ―Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa
semelhança...‖ (Gn 1.26).
Deus é o autor tanto do corpo como do espírito (Gn 2.7; Hb 12.9; Ap 22.6), e o ser humano
é muito superior às inteligências dos animais inferiores.

Distinções entre o Homem e os outros Animais Inferiores


Berkhof diz que

―com respeito aos peixes, aves, e as bestas lemos que Deus os criou segundo a
sua espécie, a saber, de uma forma típica própria. Sem dúvida, o homem não foi
criado desse modo e muito menos conforme o tipo de uma criatura inferior. Com
respeito a ele, Deus disse: ―Façamos o homem a nossa própria imagem, segundo a
nossa semelhança‖.4

4 Berkhof, p. 215 (edição castelhana).


17

A despeito de o homem ser considerado um animal, a diferença entre ele e os outros


animais é enorme, como conseqüência da maneira especial como Deus o criou.
As enormes diferenças entre eles podem ser consideradas desta forma:
1. O animal é consciente, mas não tem auto-consciência. O animal não reconhece-se a si
mesmo, não tem nenhum conceito sobre mesmo. Jamais qualquer macaco pensaria de si
mesmo: ―Eu sou um macaco‖, porque se isso acontecesse, ele deixaria de ser um macaco. Um
animal não distingue a si mesmo de suas sensações.
2. Um animal percebe, mas somente o homem concebe. Os animais conhecem as coisas
brancas, mas não sabe o que é a alvura. Ele lembra coisas, mas não as pensa. Só o homem tem
o poder de abstração, o poder de derivar idéias abstratas de coisas particulares ou da
experiência.
3. O animal não tem linguagem. Linguagem é a expressão de noções gerais através de
símbolos. As palavras são símbolos de conceitos. Onde não há conceitos, não há palavras. Visto
que a linguagem é sinal, ela pressupõe a existência de um intelecto capaz de entender o sinal. Por
que os animais não falam? Porque eles não têm nada a dizer. Eles não possuem idéias gerais que
possam ser expressas em palavras.
4. O animal não é capaz de estabelecer um julgamento. Não sabe diferenciar uma cousa
de outra. O animal não sabe associar idéias e nem tem senso do ridículo.
5. O animal não é capaz de raciocínio, de ligar os fatos, de saber que isto vem daquilo,
acompanhado de um sentimento de que a seqüência é necessária. A associação de idéias sem
juízo é o processo típico da mente animal.
6. O animal não é um ser religioso, não tem idéia para o sobrenatural, nem é um ser
moral.
18

CAPÍTULO II

A NATUREZA DO HOMEM

A quem Adão era semelhante antes da queda? A única fonte de informação que
possuímos nesta matéria é a Escritura. Nenhuma outra fonte de informação confiável temos à
nossa disposição.
Segundo a Escritura, a condição de nossos primeiros pais era de perfeição natural. Estes
podiam perfeitamente cumprir todas as exigências de Deus. Adão, por um certo tempo, foi um
exemplo de vida natural perfeita e normal (relativo a norma), o que exatamente Deus queria de
todos os seus descendentes. A única cousa anormal no Paraíso foi o pecado. Pecar era
anormalidade, e ainda o é, embora seja extremamente comum. Foi por causa dessa
anormalidade que Jesus Cristo teve que vir ao mundo. Ser normal para o homem é estar em
Cristo, dizer o que Ele diz e fazer o que Ele faz.
O homem foi originalmente criado num estado de perfeição, maturidade e liberdade. Isso
não quer dizer que a humanidade em Adão, antes da queda, estava no seu mais alto estado de
excelência. É bem possível que o estado de maior excelência seja aquele em que os homens
estiverem após a completação da redenção deles, porque nem mesmo serão expostos ao pecado,
em virtude de sua união com Cristo. Serão os homens, certamente, elevados a uma condição de
maior glória do que aquela que Adão teve antes da queda. Contudo, é importante ter-se em mente
que essa glória futura do homem é devida à sua união com Cristo, o redentor dos filhos de Deus.
Quando dizemos que Adão foi criado num estado de maturidade, estamos dizendo que ele
não foi criado num estado de infância, como todos os outros seres humanos que vieram ao
mundo. Diferentemente dos outros humanos, Adão não teve um desenvolvimento de sua
inteligência ou de outras das suas faculdades, como nós o temos. Deus fé-lo completo, sem lhe
acrescentar nada posteriormente.
Quando dizemos que Adão foi criado perfeito, estamos querendo dizer que ele era
perfeitamente adaptado ao fim para o qual foi criado e na esfera na qual foi designado viver. Seu
corpo e alma eram perfeitamente adaptados um ao outro. Adão era perfeito na sua criação. Era
livre de qualquer corrupção ou deficiência. Não havia nada na sua natureza que pudesse dar a
idéia de fraqueza ou falha.
O estado primeiro de nossa raça, não foi como os livros científicos dizem, de primitivismo
ou de barbarismo, que se evoluiu até se tornar o homo sapiens desenvolvido como o conhecemos
hoje. De forma alguma! Deus criou o homem perfeito que, com o passar dos tempos e levado pela
queda, veio a sofrer algum tipo de involução, passando a viver em estado de ―barbarismo‖.
Quando dizemos que Adão foi criado num estado de liberdade, estamos querendo dizer
que Ele possuía tanto a capacidade de permanecer na condição em que foi criado, isto é, santo,
mas de tal forma que também pudesse cair do estado em que foi criado, agindo contra a sua
natureza.
Adão era livre de qualquer corrupção, doença ou morte. Não havia nada na sua
constituição que pudesse denotar fraqueza ou falha. O estado primitivo de nossa raça, portanto,
não foi de barbarismo, ou o produto de um processo de desenvolvimento longo e gradual.
Pelo ensino geral das Santas Escrituras e das ciências, podemos concluir:
— que o homem foi criado na perfeição de sua natureza. Por perfeito não queremos dizer
num estado de pleno desenvolvimento, mas perfeito no sentido de não haver qualquer falha na
sua natureza. Esta é uma matéria decisiva para os cristãos;
19

— que as tradições de todas as nações falam de uma "era dourada", da qual os homens
caíram. Tem havido uma involução da raça, não uma evolução para um estado melhor. O estado
primitivo de homem segundo a narrativa da Escritura, está em harmonia com as melhores
tradições de nações antigas;
— que os mais antigos registros em escritos e monumentos têm demonstrado a existência
de nações no mais alto grau de civilização em períodos bem antigos da história humana;
A teoria de que a raça humana passou através da idade da pedra, bronze, ferro, estágios
de progresso do barbarismo para a civilização, é destituída de comprovado fundamento científico.
Tem sido crença universal de que o estado original do homem é aquele que a Bíblia
ensina. Seu mais alto estado começou no Éden. O que existe hoje são civilizações que vão se
deteriorando, como já aconteceu no passado com muitas delas.
E verdade que as civilizações mais modernas têm tido a oportunidade de desenvolver suas
potencialidades nas áreas das ciências e da filosofia, mas nunca houve um desenvolvimento na
personalidade ou nas faculdades da alma humana. O homem foi sempre o mesmo em todas as
épocas.

1. UM SER DEPENDENTE E RESPONSÁVEL


Esta parte trata do homem como criatura e como pessoa. São dois aspectos distintos e
muito importantes para que compreendamos as peculiaridades da ―coroa da criação‖. Como
criatura o homem é dependente e como pessoa o homem é responsável. Esta matéria pode ser
desenvolvida da seguinte maneira:
Deus criou o homem à sua própria imagem e semelhança. Uma característica importante
dessa criação é que o homem é uma pessoa humana ―que não existe autonomamente ou
independentemente, mas como uma criatura de Deus‖. 5
O fato de o homem ser uma criatura o torna absolutamente dependente. Para colocar de
uma forma diferente, Shedd diz: ―A natureza dependente da santidade finita implica que ela é
criada.‖6 Todas as coisas criadas têm um sentido de absoluta dependência do Criador (Ne 9.6).
Não há nada que não precise da assistência providencial de Deus.
Mas como uma pessoa que é, o homem tem um certo grau de independência,

―não uma independência absoluta, mas relativa. Ser uma pessoa significa ser
capaz de fazer decisões, de estabelecer metas e de mover-se em direção às metas
estabelecidas. Isto significa possuir liberdade — ao menos no sentido de ser capaz
de fazer suas próprias escolhas. O ser humano não é um robot cujo curso é
totalmente determinado por forças externas. Ele tem o poder de
auto-determinar-se e de auto-dirigir-se‖.7

O homem é, portanto, uma criatura e uma pessoa. Como criatura é dependente


totalmente de Deus, e como pessoa possui uma independência relativa no sentido de poder
tomar decisões, que não é o caso de outra criatura não racional.

―Ser uma criatura, portanto, significa que eu não posso mover um dedo ou
emitir uma palavra sem a ajuda de Deus; Ser uma pessoa significa que quando
meus dedos são movidos, eu os movi, e quando as palavras são emitidas dos meus
lábios, eu as emiti. Ser criatura significa que eu sou barro e que Deus é o oleiro

5 Anthony Hoekema, Created in God's Image, (Grand Rapids: Eerdmans, 1986), 5.


6 W.G.T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. 2, (Nashville: Thomas Nelson publishers, 1980 edition),
101.
7 Hoekema, 5.
20

(Rm 9.21); ser uma pessoa significa que somos aqueles que moldamos nossas
vidas pelas nossas decisões (Gl 6.7-8)‖.8

É importante que se faça essa distinção para que vejamos a grande diferença que há
entre nós e os seres irracionais, que agem instintivamente, e para que se tenha clara na mente a
idéia de que dependência e liberdade não são conceitos incompatíveis entre si. Os dois conceitos
estão claramente presentes na Escritura. Estas duas verdades devem ser preservadas para o
correto entendimento do que seja o homem. Alguns conceitos antropológicos e soteriológicos são
distorcidos justamente porque os estudiosos não distinguem corretamente o fato do homem ser
criatura e pessoa. Há que se guardar ambas as idéias juntas, em equilíbrio.
Se enfatizarmos em excesso o fato do homem ser criatura, subordinando sua
pessoalidade, haveremos de cair num determinismo, onde o homem não tem qualquer
participação na realização da sua própria história. Deus é o Senhor da história, mas os homens,
nesse caso, seriam meros robots. Nesse caso o homem ―é desumanizado‖.9 Quando damos ênfase
exagerada na pessoalidade, em detrimento do caráter de criatura do homem, ―o homem é
divinizado e a soberania de Deus é comprometida.‖10 Neste caso a ênfase na pessoalidade faria
Deus um servo do homem. Estes extremos devem ser evitados. Temos que ter uma visão
equilibrada e bíblica da constituição da alma humana.
Estes conceitos são muito importantes para que compreendamos o problema da
responsabilidade do homem nos pecados e nos atos bons que são a expressão da santificação,
assunto esse que já vimos no estudo da providência de Deus.

Livre Arbítrio & Livre Agência


Quando estudamos sobre a responsabilidade do ser humano, não podemos deixar de
tocar no delicado assunto do livre-arbítrio. É uma pena que poucos volumes tocam seriamente
neste assunto, à luz da Escritura. Grande desentendimento tem havido entre os estudioso desta
matéria por causa da impropriedade no entendimento e no uso desses termos, mesmo nos
círculos Reformados.
Neste estudo fazemos uma diferença entre os dois termos usados acima. O primeiro foi
uma propriedade singular de nossos primeiros pais; o segundo é propriedade inalienável de todos
os seres humanos.
Livre Arbítrio - Se por livre-arbítrio entende-se a liberdade que a vontade tem, sendo
independente dos outros movimentos da alma humana, ou seja, da razão e das afeições, devemos
negar a existência dele. A vontade, como uma das faculdades da alma humana, não é soberana
ou independente das outras, mas depende do julgamento da razão ou das disposições afetivas
que a influenciam. Uma pessoa não toma nenhuma decisão sem que seja levada pelo crivo da
razão ou das emoções.
Se por livre-arbítrio entende-se a escolha livre que a vontade faz, independente das outras
partes do alma humana, temos que negar esse livre-arbítrio, porque a vontade humana não
controla as outras faculdades, mas é serva delas. As decisões da vontade são sempre calcadas
nas disposições das outras faculdades.
Então, quer dizer que os Reformados negam a doutrina do livre-arbítrio? Não. A fé
Reformada não nega o livre-arbítrio. A resposta a essa pergunta depende, portanto, do
entendimento que temos dele. A fé Reformada afirma o livre arbítrio, mas o entende da seguinte
forma: é a capacidade que nossos primeiros pais tiveram, quando criados, de escolherem as
coisas que combinavam com a sua natureza santa, mas que, mutavelmente, pudessem escolher
aquilo que era contrário à sua natureza santa.
A Confissão de Fé de Westminster traduz essa idéia assim:

8 Hoekema, 6.
9 Ver Hoekema, 7.
10 Ver Hoekema, 6
21

―O homem, em seu estado de inocência, tinha a liberdade e o poder de querer


e fazer aquilo que é bom e agradável a Deus, mas mudavelmente, de sorte que
pudesse decair dessa liberdade e poder.‖ (IX, 2)

Adão possuiu essa capacidade de fazer tudo o que era justo e santo, mas também foi
dotado com a capacidade de fazer alguma coisa que era contrária à santidade com que foi
originalmente criado. Ele possuiu aquilo que ninguém hoje mais possui, isto é, a capacidade de
fazer algo que é contrário à sua natureza moral. Ele teve, nesse sentido, a capacidade para uma
escolha contrária, isto é, com natureza santa, escolheu o que era mau.
Livre Agência - Esta é uma capacidade que todos os seres humanos possuem. Ninguém
pode prescindir dela, pois esta é uma característica de um ser racional. E essencial no homem a
livre-agência. Sem ela o homem deixa de ser o que é: um ser racional. Homens e anjos agem de
acordo com a natureza deles, sendo para eles impossível agir de modo contrário a ela.
A livre agência, então, poderia ser definida como a capacidade que todos os seres
racionais têm de agir espontaneamente, sem serem coagidos de fora, a caminharem para
qualquer lado, fazendo o que querem e o que lhes agrada, sendo, contudo, levados a fazer aquilo
que combina com a natureza deles.
A CFW traduz este pensamento nestas palavras:

―Deus dotou a vontade do homem de tal liberdade, que ele nem é forçado para
o bem ou para o mal, nem a isso é determinado por qualquer necessidade absoluta
de sua natureza.‖ (IX, 1)

Os agentes livres agem espontaneamente, com a autodeterminação da vontade deles. Eles


não São seres amorais. Sempre penderão para um lado ou para outro, dependendo de como são
interiormente. Os seres racionais são seres morais que agem conforme as suas disposições
interiores. A vontade deles não age independentemente da natureza deles. A vontade deles é
sempre inclinada a pender para um lado ou para o outro em termos morais. Ela não existe num
equilíbrio de indiferença. Anselmo contende que ―se a vontade do homem ou de um anjo é
suposta ser criada num estado de indiferença, sem qualquer inclinação para nada, então, não
poderia começar qualquer ato de forma alguma. Ela permaneceria indiferente para sempre, e
nunca teria qualquer inclinação.‖11 Se a vontade do homem está em indiferença moral, nenhum
homem pode ser responsabilizado por nada do que faz, porque ele não começa nenhum ato. Mas
a Escritura apresenta o homem de uma outra maneira. Ele foi criado com disposição e com
inclinação, e sua disposição ou inclinação está sempre ligada à sua condição moral. Adão foi
criado não somente com a livre agência, mas também com o livre-arbítrio, com a capacidade de
escolha contrária que nenhum de seus descendentes veio a possuir. Ela foi perdida com a queda.
Nesse sentido, nossos primeiros pais foram singulares. Os seus descendentes, agora, não mais
podem agir de modo contrário à sua natureza.
Mas é importante que não percamos de vista este ponto: o ser racional é sempre movido
pelo seu ego. Nunca ele é movido por outra coisa que não seja por seu próprio ego. Quando ele faz
coisas pecaminosas, ele obedece ao seu ser interior pecaminoso. Quando ele faz coisas santas e
justas, ele o faz mediante o seu eu interior que foi renovado pelo Espírito Santo. A
responsabilidade dele sempre estará diretamente ligada à voluntariedade do seu ato. Todos os
atos dele devem ser auto-inclinados e auto-determinados. O homem possui responsabilidade em
tudo que faz, porque tudo que faz é produto das disposições de sua natureza interior.
Para fins didáticos é bom que se distinga a inclinação do ato volitivo. Shedd faz essa
distinção que ajuda bastante:

A ação central da vontade está na pronta inclinação; e a ação superficial em

11 Citado por W.G.T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. 2, p. 101.


22

sua volição momentânea está num instância particular. O ódio de um assassino é


a atividade central da sua vontade; o ato do assassinato é superficial. Ambos São
auto-movidos, para que haja responsabilidade e culpa. E ambos São
auto-movidos. O assassino não é forçado a odiar. Ele é desejoso no seu ódio, e em
todos os seus desejos morais e sentimentos;...Todavia, enquanto a atividade
central e superficial são iguais no que diz respeito ao livre-movimento, elas são
diferentes no que diz respeito à capacidade para coisas contrárias. A atividade
superficial, ou o ato volitivo, é acompanhado com este poder; a atividade central,
ou a inclinação, não é. O assassino pode refrear-se no ato de matar, por uma ação
volitiva, mas ele não pode refrear o seu desejo interior, o ódio que pode levar ao
assassinato. Uma volição pode parar uma outra volição, mas uma volição não
pode parar uma inclinação. Um homem pode reverter sua volição pecaminosa,
mas não pode reverter sua inclinação pecaminosa. 12

Portanto, para que haja responsabilidade, não é necessário que haja o poder de escolha
contrária, mas sim, que haja o poder de autodeterminação, que a ação seja nascida nas
inclinações do ser racional. ―A fim de responsabilizar o pecador por uma inclinação pecaminosa,
não é necessário que ele seja capaz de reverter sua inclinação pecaminosa. E necessário somente
que ele seja capaz de originar a ação, e que ele de fato a origine‖. 13
Para ser responsável por seus atos, portanto, o homem tem que simplesmente agir de
acordo com sua vontade, espontaneamente, sem ser forçado de fora por ninguém. Apenas ele age
de acordo com as suas disposições interiores.
Originalmente, antes da queda, o homem teve tanto o livre arbítrio como a livre agência.
Depois da queda o homem ficou somente com a livre agência, pois perdeu tanto o desejo quanto
a capacidade de fazer o bem, isto é, o poder de agir contrariamente à sua natureza pecaminosa.

2. UM SER SANTO
A Confissão de Fé de Westminster, com tradição Agostiniana14 e Calvinista, assevera que
o homem foi criado no estado de "inocência". Por inocência os padrões de Westminster querem
dizer que o homem, quando criado, não tinha qualquer mancha ou pecado, nem propensão para
pecar, embora pudesse cair do estado em que foi criado. 15 Shedd contesta que a palavra
inocência seja a melhor para explicar o estado de Adão antes da queda. Com precisão ele diz que

―santidade é mais do que inocência. Não é suficiente dizer que o homem foi
criado no estado de inocência. Isto seria verdadeiro, se ele houvesse sido
destituído de sua disposição moral, para o errado ou para o certo. O homem foi
criado não somente negativamente inocente, mas positivamente santo‖. 16

Deus fez o homem positivamente santo no seu caráter. Nada errado poderia ter saído das
mãos de Deus. Deus dotou os homens de ―inteligência, retidão e perfeita santidade, segundo a

12 Shedd, vol. 2, p. 103-104.


13 Shedd, vol. 2, p. 105.
14 Agostinho disse: ―A natureza do homem, de fato, foi criada sem qualquer falha e sem nenhum

pecado; mas aquela natureza do homem na qual cada um é nascido de Adão, necessita agora do Médico,
porque ela não é sadia mais. (On Nature and Grace, 3, citado por Norman Geisler, What Augustine Says,
(Baker, 1982), p. 96.
15 Ver CFW, IX, ii.
16 W. G. T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. 2, (Nashville: Thomas Nelson Publishers, 1980 edition),

p. 96.
23

Sua própria imagem.‖17 Estas coisas têm sido cridas pelos grupos de tradição Agostiniana e
Calvinista, mas têm sido negadas em movimentos teológicos na história da Igreja, como o
Pelagianismo18 e o Semi-Pelagianismo.19 O Semi-Pelagianismo, que, com algumas variações, no
protestantismo assume o nome de Arminianismo, através de alguns de seus defensores, nega o
caráter original santo do homem por sustentar a tese do donum superadditum 20 à natureza
constitucional do homem.
O Calvinismo, contudo, afirma categoricamente a santidade original do homem, em
consonância com as Sagradas Escrituras.21 Para os Calvinistas em geral, a santidade original do
homem tem dois aspectos: 1) sua percepção e seu conhecimento; 2) sua inclinação e seu
sentimento.22
1) O conhecimento tem a ver com o entendimento. A fim de que o homem seja santo ele
tem que entender e apreender as coisas de Deus. O conhecimento que Adão e Eva possuíam
antes da queda era diferente daqueles que tiveram depois da queda. Isto é provado por Gn 2.5 –
―Ora, um e outro, o homem e sua mulher, estavam nus, e não se envergonhavam‖. - Eles estavam
conscientes da sua santidade, e não possuíam nenhuma consciência de pecado. Mas quando
eles se apartaram de Deus, o conhecimento do mal veio. Gn 3.7 diz: ―Abriram-se, então, os olhos
de ambos; e, percebendo que estavam nus, colheram folhas de figueira, e fizeram cintas para si.‖
Deus, então, após a queda do homem disse em Gn 3.22: ―Eis que o homem se tornou
como um de nós, conhecedor do bem e do mal‖. 23 Deus conhece o bem conscientemente, mas o
mal intuitivamente, através de Sua onisciência. E Seu conhecimento do bem e do mal é perfeito,
embora Ele nunca tenha conhecido este último experimentalmente.
Antes da queda, contudo, o homem conhecia o bem conscientemente e o mal apenas
especulativa e teoricamente. Nesse sentido, o seu conhecimento do mal foi imperfeito, porque ele

17 CFW, IV, ii.


18 Os Pelagianos não aceitam a santidade congênita do homem. A idéia do pelagianismo era que a
vontade do homem era neutra, sem qualidades morais em si mesma. Através de um ato da vontade, o
homem se torna bom ou mau. A neutralidade moral é característica do Pelagianismo. Shedd diz que ―a
posteridade de Adão é nascida como ele, sem santidade e sem pecado.‖ (Shedd, vol. 2, p. 96).
19 O Semi-Pelagianismo também sustenta quase a mesma posição, embora considere os efeitos da

queda, que o Pelagianismo não considera. O Semi-Pelagianismo crê que o homem tem a iniciativa nos atos
maus, tanto quanto nos bons. Nestes últimos, ele tem a cooperação conseqüente de Deus. Shedd diz que o
―Semi-Pelagiano assevera que a santidade, igual ao pecado, deve ser auto-originada em cada indivíduo. A
Antropologia Tridentina é uma mistura de Pelagianismo e Agostinianismo.‖ (Shedd, vol. 2, p. 96).
20 Qual é a razão desse posicionamento Semi-Pelagiano? A razão está no fato de a santidade ser algo

acrescido posteriormente à criação do homem, não fazendo parte originalmente dela. A isso eles chamam
―donum superadditum‖. O que é o donum superadditum? E um dom gracioso de Deus que foi acrescido apôs
a criação, mas antes da queda. O conceito surge da dificuldade de se explicar o problema da capacidade
hipotética de Adão e Eva de reterem a sua justiça original. Sem essa graça adicional, Adão não seria capaz
de resistir no estado de retidão. Na verdade não houve uma concordância absoluta entre os teólogos
medievais sobre se o donum superadditum fazia parte da natureza original do homem. Tomás de Aquino
sustentava que o donum superadditum era parte da constituição original do homem, e que sua perda foi a
perda da capacidade original para a justiça. Visto que essa graça acrescentada não foi merecida no começo,
ela não poderia ser reconquistada por mérito após a queda. A teologia Franciscana, particularmente aquela
orientada no final da Idade Média por Scotus, argumentava que o donum superadditum não era parte da
constituição original do homem ou sua justiça original, mas foi considerado como um dom merecido pelo
primeiro ato de obediência da parte de Adão, apresentado por ele de acordo com sua capacidade puramente
natural. Visto que Adão podia, num ato finito ou mínimo, merecer o dom inicial da graça de Deus, o homem
caído deveria, por apresentar um ato mínimo, também merecer o dom da primeira graça (Richard A. Muíler,
Díctionary ofLatin and Greek Tkeological Terms, (Baker, 1986), p. 96.
21 Ver, como exemplo, Ec 7.29; cí 3.10.
22 Idéias tiradas de Shedd, vol. 2, pp. 97-98.
23 Através de Sua apostasia, Adão veio a ter um conhecimento do mal, similar ao de Deus (embora

Deus nunca tivesse pecado), e foi um conhecimento completo do pecado, pois ele o experimentou. Foi um
conhecimento do mal consciente e idêntico ao de Satanás, porque foi conhecimento experimental e
consciente.
24

não possuía a mesma onisciência de Deus. Depois da queda, contudo, o homem passou a
conhecer o mal conscientemente e o bem apenas especulativa e teoricamente (Gn 3.7-8; 1 Co
2.14). Com respeito ao conhecimento do pecado e da santidade no homem antes da queda e
depois dela, Shedd diz:

Assim parece, que em Adão a consciência do conhecimento experimental da


santidade implicava somente em um conhecimento inadequado e especulativo do
pecado; e o conhecimento experimental consciente do pecado implicou somente
num conhecimento especulativo e inadequado da santidade. O homem santo era
ignorante do pecado, e o pecador era ignorante da santidade. 24

2) Por inclinação e sentimento, devemos entender a vontade e as emoções ou afeições. A


fim de que o homem seja santo, ele deve desejar e sentir prazer em Deus e nas coisas divinas.
Quando Deus criou a vontade no homem, Ele criou, portanto a inclinação, porque
vontade e inclinação são inseparáveis.

A vontade humana é por criação voluntária, como o entendimento humano


por criação é cognitivo. Quando Deus cria o entendimento, Ele o capacita com
idéias inatas, e leis de pensamento, por virtude do qual ela é uma faculdade
inteligente. Este é o conteúdo do entendimento. E quando Ele cria a vontade
humana, Ele a capacita com uma inclinação, ou disposição, ou uma
auto-determinação.. em virtude da qual ela é uma faculdade voluntária. 25

Essa inclinação era originariamente santa. O homem não era


originariamente um ser moral neutro, mas possuía inclinações que
refletiam Aquele que o havia criado.

A inclinação e a disposição moral com a qual o homem foi criado, consistiam


numa harmonia perfeita de sua vontade com a lei Divina. A concordância era tão
perfeita e total, que não havia distinção entre as duas na consciência do Adão
santo. A inclinação era um dever, e o dever era uma inclinação... Numa perfeita
condição moral a lei e a vontade eram uma coisa só, como na esfera da natureza
física, as leis da natureza e as forças da natureza são idênticas. 26

Na verdade, o homem santo não precisa de lei do mesmo modo que os caídos precisam. A
lei, no fundo, é dada para aqueles que estão no estado de desobediência, mas para os que estão
em santidade a lei e o desejo de cumprir a lei são a mesma coisa (Ver 1 Tm 1.8-9).
A santidade positiva, com que o homem foi capacitado na criação, consistia de um
entendimento iluminado no conhecimento espiritual de Deus e de Suas coisas, e uma vontade
totalmente inclinada para elas.

Santidade Derivada e Finita


A santidade em Deus é essencial e infinita. Diferentemente de Deus, a santidade no
homem é derivada e finita.
É derivada porque não faz parte da essência do homem, embora originariamente ela

24 Shedd, vol. 2, p. 98
25 Shedd, vol. 2, p. .100.
26 Shedd, vol. 2, p. 98.
25

tenha sido dada ao homem. Deus tem santidade essencial, sem a qual Ele não pode ser o que é.
O homem originalmente possuía santidade, mas ele a perdeu, mas assim mesmo ele continuou
sendo exatamente o que é: homem. Ele não continuaria sendo homem se a santidade fosse
essencial nele.
É finita porque é santidade de criatura dependente. Por essa razão é uma santidade
mutável. A santidade no homem é dependente, em última instância, da ação do Criador. Deus a
deu às Suas criaturas racionais, homens e anjos, mas eles a perderam voluntariamente, porque
a santidade neles é algo finito e dependente de uma ação direta, imediata do Criador. Se o
Criador decide definitivamente não mantê-las em santidade, elas voluntariamente a perdem.
26

CAPITULO III

A NATUREZA CONSTITUCIONAL DO HOMEM27


Houve sempre dois conceitos predominantes na história da igreja com respeito à
composição da natureza essencial do homem: dicotomia e tricotomia.
Historicamente, especialmente nos círculos cristãos, concebeu-se o homem composto de
duas partes: corpo e alma. No decorrer do desenvolvimento do pensamento cristão, contudo,
apareceu outro conceito que compunha o homem de três partes: corpo, alma e espírito — a
tricotomia.
Este último movimento apareceu com a influência da filosofia grega, que concebeu a
relação entre o corpo e o espírito ligados entre si por meio de uma terceira substância, ou um
terceiro elemento, que é a alma. A alma era considerada, por um lado, como imaterial quando
relacionada com o espírito e, por outro lado, material, quando se relacionava com o corpo. ―A
forma mais familiar e mais crua da tricotomia é a que toma o corpo como a parte material
humana, a alma como o principio da vida animal, e o espírito como o elemento racional e imortal
que há no homem para relacionar-se com Deus.‖28 Berkhof ainda diz: ―A alma se apropriava do
―nous‖ (ou pneuma) se fosse considerada como imortal; mas se fosse relacionada com o corpo, ela
era carnal e mortal.‖29
O pensamento tricotômico encontrou apoio em vários pais da igreja grega, nos primeiros
séculos da era cristã. O pensamento dicotômico já teve seus adeptos na igreja ocidental ou latina,
como por exemplo, em Agostinho. Na Idade Média, foi crença comum a dicotomia. Na Reforma
aconteceu o mesmo, exceto uns poucos estudiosos.

Base Escriturística da Natureza Constitucional do


Homem
A apresentação que a Escritura dá do homem não é a de uma tricotomia (embora haja
dois textos que pareçam favorecer essa corrente), nem da dicotomia (embora muito mais textos
favoreçam, como veremos, a apresentação dicotômica), mas é a da unidade do homem. Cada ato
do homem contempla-se como sendo um ato do homem completo. Não é a alma que peca, mas o
homem que peca; não é o corpo que morre, mas o homem que morre; não é a alma que Cristo
redime, mas o homem. O homem é uma unidade. Portanto, quando a Escritura fala do corpo, ela
está falando do homem; quando fala da alma, está falando do homem; ou quando fala do coração,
está falando do homem. A concentração das Escrituras não é nas partes que compõem o homem,
mas na unidade que cada parte apresenta.
Temos sempre que ver o homem como uma unidade. E assim que a
Bíblia o apresenta.
Analisaremos o material bíblico debaixo dos seguintes tópicos:
1. O homem é Corpo (Adão foi criado um ser material)

27 Ensino retirado basicamente da Apostila não-publicada, preparada pelo Dr. Fred H. Klooster,

para seus alunos no calvin Seminary.


28 Berkhof, p. 225, (edição castelhana).
29 Berkhof, p. 225 (edição castelhana).
27

2. O homem é Alma (Adão foi criado um ser espiritual)


3) O homem é Coração.
Antes da exposição destes três tópicos, vejamos as palavras hebraicas e gregas usadas
para os termos:

a) Corpo VT —rfpf( ('apar) = pó


rf&fB (basar) = carne
hfl"b:n (nebhlah) = corpo (cadáver)
NT — sw=ma
b) Alma VT — $epeN (nephesh)
NT — yuxh\n
c) Espírito VT — axUr (ruah)
NT — pneu=ma
d) Coração VT — bfb"l (lebhabh)
b"l (lebh)
NT — kardi/a

1. O HOMEM É CORPO (Adão foi criado um ser


material ou físico)

a) Considere a ênfase sobre homem nos seguintes textos:

Gn 2.7 — ―Então, formou o Senhor Deus ao homem do pó (rfpf() da terra, e


lhe soprou nas narinas o fôlego da vida, e o homem a passou a ser alma vivente.‖

Esta é a primeira informação a respeito da natureza constitucional do homem. Neste


verso é-nos dito que o ser humano possui uma natureza física ou material. Antes dele ser ―alma
vivente‖, já é dito que ele é homem. Contudo, quando o autor sagrado fala dessa natureza ele não
está pensando numa parte do homem, mas do homem na sua unidade.

Gn 3.19 — ―No suor do rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois
dela foste formado: porque tu és pó (rfpf() e ao pó tornarás.‖

Este outro verso de Gênesis mostra a materialidade que o homem é. Antes de botar a
―alma vivente‖ Deus fez o homem. Novamente posso afirmar que o autor quis mostrar a natureza
terrena do homem, não enfatizar que ele tem um corpo. Esse corpo (pó) é o homem. Esse
elemento de unidade não pode ser perdido de vista quando se estuda este verso.
Nesses textos acima, embora se esteja falando da parte física do homem, que é o seu
corpo, a ênfase é no homem como uma unidade.

Jó 34.15 — ―Toda a carne juntamente expiraria, e o homem voltaria ao pó.‖

Novamente aqui a ênfase recai sobre o elemento físico ou material do homem,


28

considerando-o como uma unidade. A verdade é que quem expira é o homem, não o corpo. A
morte é do homem, não do corpo.
Essa é a grande dificuldade que muitos ministros da Palavra enfrentam quando vão
oficiar uma cerimônia fúnebre. Partamos do pressuposto que a pessoa que morreu seja cristã. O
oficiante geralmente fala de Fulano que foi estar com Cristo, como se a pessoa consistisse
unicamente da sua alma. ―O corpo do Fulano‖, diz o oficiante, ―vai ser enterrado, mas o Fulano já
está no céu‖, como se o corpo não fosse o homem, ou como se o homem não fosse corpo. Embora
a morte separe o homem (alma) de si mesmo (corpo), devemos sempre pensar no ser humano
como uma unidade. Quem morre é o homem (não o corpo) e quem ressuscita é o homem (não o
corpo). A morte é a separação do homem de si mesmo, enquanto que a ressurreição é reunião do
homem consigo mesmo. Isto se dará somente no dia final, quando haverá a completação da
salvação do pecador.

b) Considere a expressão: “O homem é espirito, mas ele tem um corpo”.

Não seria mais próprio dizer que o ―homem é corpo‖? A Escritura indica que o corpo
representa o homem como uma unidade e também como um ser total, completo. O corpo não é
um mero acessório (apêndice, departamento), nem é a prisão da alma (ou espirito). Se dizemos
que o ser humano é um espirito que tem um corpo, o corpo não tem muita importância.
Mas não é esta a idéia que a Escritura dá do corpo, como já vimos acima.

c) Veja as seguintes observações sobre esta doutrina:

Quando a Bíblia ensina que Adão foi feito ―do pó da terra‖ (Gn 2.7), está claramente
afirmada a natureza material do homem. Desde o principio houve uma identificação, harmonia e
continuidade com este mundo. O homem é terreno.
Portanto, todas as noções gnósticas da criação material como pecaminosas, devem ser
terminantemente rejeitadas. Deus não somente declarou a criação material ―muito boa‖ (Gn
1.31), mas fez o homem de elemento material. Vários textos do NT São respostas às heresias
gnósticas, nas quais o universo material era mau. Veja a luta de Paulo e João contra as heresias
gnósticas em Cl 1.19; 2.9; 1 JO 1.1; 4.2; 5.6-8. Esta é a razão porque Paulo, quando fala da
morte, diz a respeito do anelo próprio do crente em assumir um outro corpo, porque seria algo
anormal não querê-lo (2 Co 5). A morte é um estado anatural para o homem. E natural para o
homem sempre ser corpo. Na morte, o homem fica sem o que é muito importante nele, o corpo,
que é a devida expressão da alma. E de grande importância para nós o estado de Cristo
ressuscitado ser corporal, e o nosso estado final vai ser similar ao dEle. No novo céu e na nova
terra, viveremos em plenitude a nossa humanidade perfeita.

―O corpo não é para ser considerado, como os antigos filósofos pensaram dele,
como a prisão material, da qual o homem deveria ficar feliz se pudesse escapar na
morte. Ele (o corpo) é parte de si mesmo: uma parte integral de sua
personalidade total, e corpo e a alma em separação, não completam o homem.‖ 30

O ser humano não funciona melhor sem o corpo. O corpo é o veículo adequado para a
expressão da alma. Essas duas realidades São o homem e o homem é essas duas realidades. E
verdade que a criação material foi amaldiçoada por causa do pecado, tanto os elementos da
natureza como o corpo humano, mas não por causa da materialidade dele (porque os anjos foram
pecaminosos, sem terem qualquer forma corporal). A materialidade humana nunca deve ser
considerada (como infelizmente alguns o fazem) a parte mais baixa da natureza humana, e a
parte espiritual (imaterial) a mais elevada. Ambas as criações, material e espiritual, São

30 James Orr, God's Image in Man, (Grand Rapids: Eerdmans reprint, 1948), p. 251-52.
29

igualmente boas e igualmente importantes, porque ambas vieram de Deus e vão para Deus (1Co
6.14-15). Ambas as partes, igualmente, foram corrompidas pelo pecado e têm que ser redimidas.
Freqüentemente, num pensamento pecaminosamente distorcido, o espiritual é
identificado com Deus e o material com o diabo. E bom ser lembrado que Satanás é espiritual
(imaterial), e que sua esfera de ação é no mundo material. A materialidade humana, portanto,
jamais deve ser identificada com o mal, pois a matéria não é má. Ela é criação de Deus.
Corpo e espírito não São antitéticos (isto é, opostos entre si). Não há necessariamente
qualquer conflito entre esses dois aspectos da natureza humana.

2. O HOMEM É ALMA (Adão foi criado um ser imaterial


ou espiritual)
Não podemos deixar de fazer referência a esse aspecto tão importante da composição da
natureza humana. Este é o outro lado da mesma moeda. Ambos os elementos, o material e o
imaterial, aparecem na narrativa da criação: Adão foi formado do pó da terra, mas somente
quando o espírito foi soprado é que Adão foi tornado ―alma vivente‖. O fato de Adão ser ―alma
vivente‖ não foi único. Em Gn 1.21, 24 e 30 o mesmo é dito de outras criaturas vivas não -
humanas. O único ponto digno de nota na criação do homem é a maneira pela qual Deus fez
isso.: Ele soprou em Adão o espírito da vida. Este ato da parte de Deus foi pessoal, direto,
singular, que distinguiu a criação humana (e a vida humana) das outras vida animadas (Gn 2.7).
O homem pertence aos dois mundos, ao espiritual e ao físico.
O sopro da vida animada mostra que o homem é mais do que corpo. O próprio Deus deu
vida ao corpo por soprar o espírito nele. Este ato especial aponta para um caso especial. Este
soprar do espírito é a fonte da vida animada, e sem ela o homem propriamente pode ser chamado
de morto (Tg 2.26).
Há uma referência óbvia a Gn 2.7 em Ec 12.7 onde se lê: ―e o pó volte a terra como o era,
e o espírito volte a Deus, que o deu.‖ — Está claro que o uso que o autor de Eclesiastes fez do
Gênesis refere-se à natureza dupla do homem. Diferentemente dos animais, Adão foi formado de
um elemento tomado da terra (pó) e um elemento que veio diretamente de Deus, que Ele ―deu‖.
Na morte, estes dois elementos novamente se tornam distintos, e retornam às suas fontes
distintas. Está claro também que o autor de Eclesiastes entendeu que a vida humana diferiu da
vida animal em sua fonte e composição. Ec 3.20-21 diz: ―Todos vão para o mesmo lugar; todos
procedem do pó, e ao pó tornarão. Quem sabe que o fôlego de vida dos filhos dos homens se dirige
para cima, e o dos animais para baixo, para a terra?‖ — Aqui, o principio que anima é
mencionado e usado para ambos os casos, mas há uma clara distinção entre os dois, o homem e
os animais: o espírito do homem vai para cima, para Deus que o deu (Ec 12.7), enquanto que a
―alma‖ do animal desce para a terra, de onde veio (Gn 1.24 — ―produza a terra seres viventes
(hfYah $epen) conforme a sua espécie...‖).O espírito humano, então, é separado do corpo humano
na morte por causa dos aspectos singulares que ele recebeu na criação (ele veio diretamente de
Deus, de cima), enquanto que o poder animador das outras criaturas é preso aos seus corpos, e
ambos deixam de existir como constituintes daquele animal, sendo sepultados na terra.
Este assunto, o da natureza dual do homem, tem conduzido os estudiosos àquilo que,
infelizmente, tem sido chamado de dicotomia e tricotomia.
A questão do número dos elementos distintos que compõe a natureza humana é muito
importante, mas o foco tem sido o da separação, como os termos dicotomia e tricotomia
claramente indicam.

A Unidade do Homem
A ênfase das Escrituras, contudo, é sobre a unidade desses elementos. O homem não é o
que é sem o corpo, e nem pode ser o que é sem a alma.
30

―Corpo e alma existem somente em e um para o outro; o corpo não é um


corpo, mas o corpo da alma; a alma não é uma alma, mas a alma do corpo; na
nossa consciência do 'eu' os dois são um...O homem é uma unidade, não uma
junção de duas partes separadas ou mesmo faculdades separadas, e a Bíblia trata
com ele como tal.‖31

É por isso que neste estudo preferiremos o termo duplo ou dúplex, ao nos referirmos à
natureza humana, ao invés da idéia tradicional da dicotomia. Os termos duplo ou dúplex
enfatizam a unidade dos elementos, antes que sua separação.
O número desses elementos que compõe a natureza humana é importante, por causa das
diferenças práticas que resultam em problemas sérios, dependendo da posição que se toma. O
psicólogo cristão Clyde Narramore, por exemplo, mostra que sua tricotomia o levou a um ponto
insustentável biblicamente. No aconselhamento ele diz que o corpo deve ser tratado pelo médico,
o espírito pelo pastor, e a alma pelo psicólogo. E estranha tal separação na Escritura.
A Escritura não permite a visão triplex (tríplice) do homem. Quando há separação é só por
causa da morte, mas a ênfase é sobre a unidade. Além disso, na separação da morte, só há dois
elementos. Em adição a Gn 2.7, examine Mt 10.28.
Nesse verso de Mateus, é ensinado que o todo (a totalidade) do homem sofre no inferno. A
verdadeira ênfase é sobre a totalidade (unidade) do homem sofrendo e não apenas o corpo ou a
alma. A afirmação "alma" e "corpo" mostra que a natureza humana é dúplex (veja outro exemplo
em 1 Co 7.34b).

Vejamos este ensino de maneira sistemática:

A) A ESCRITURA FREQÜENTEMENTE DISTINGUE


ENTRE CORPO- ALMA E/OU CORPO-ESPÍRITO.
(1) O VT SUGERE UMA DISTINÇÃO CORPO-ALMA (ESPIRITO),

Contudo, esta distinção só entrou em uso mais tarde, debaixo da filosofia grega. A idéia é
de que as duas partes formam uma unidade, um conjunto harmonioso — o homem, um ser que
vive.

Gn 3.19 — (após a queda com respeito à maldição) — ―...tu és pó e ao pó


tornarás.‖

A ênfase neste verso cai na parte física, mas o intento de Deus é tratar o ser humano como
uma unidade. O particular é tomado como sendo a totalidade.

Ec 12.7 — ―e o pó (rfpf( - corpo) volte à terra, com o era, e o espírito (axUr) volte
a Deus, que o deu.‖

Este verso já mostra o homem com uma composição dúplex, mostrando a sua origem.
Ambas as partes, material e imaterial vieram de Deus.

Jó 32.8 – ―Na verdade há um espírito no homem (corpo), e o sopro do

31 James Denny, Studies in Theology, (Grand Rapids: Balcer repriflt, 1967), p. 76.
31

Todo-Poderoso o faz entendido.‖

Neste verso de Jó a ênfase cai sobre a parte material (corpo), que é chamada de ―homem‖.
Contudo, a parte imaterial, o espírito, foi colocado no homem por Deus. Portanto, este verso trata
da composição dúplex da natureza humana, embora dê mais força ao aspecto material. A mesma
ênfase vem neste verso seguinte, do mesmo autor: (Jó 33.4) – ―O Espírito de Deus me fez: e o
sopro do Todo-Poderoso me dá vida.‖

(2) O NT TAMBÉM SUGERE A DISTINÇÃO CORPO-ALMA (ESPIRITO):

1 Co 2.11 – ―Porque qual dos homens sabe as cousas do homem, senão o seu
próprio espírito que nele (corpo) está?‖

A mesma ênfase dada no VT está agora no NT. A parte enfatizada aqui é o corpo porque
ela é chamada de ―homem‖ e que ―nele‖ está o espírito. Contudo, o intento de Paulo é falar da
unidade, embora os dois elementos apareçam claramente nesse verso. Certamente o propósito de
Paulo é tratar da capacidade perscrutadora do espírito humano, mas deixa evidente a
composição dual da natureza humana.

Mt 10.28 – ―Não temais os que matam o corpo (soma) e não podem matar a
alma (yuxh\n) temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma
como o corpo.‖

Jesus Cristo está ensinando neste verso sobre o poder de Deus em contraste com o poder
dos homens. Obviamente, ele usa o linguagem comum das pessoas quando fala da morte do
corpo, pois o corpo fica inerte sem a presença da alma. Contudo, quando Deus exerce o seu poder
ele pode fazer perecer tanto o aspecto físico como o aspecto espiritual do homem. A idéia de morte
ai é de separação, não de extinção. O mesmo acontece se fala da morte do corpo: é a separação
dele da alma — por isso o homem fica sem vida. Sem entrar mais do mérito desta questão, o texto
mostra essa distinção entre as duas partes constituintes da natureza humana. E exatamente
essa mesma idéia que Tiago mostra no verso a seguir:

Tg 2.26 — ―Porque, assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a
fé sem as obras é morta.‖

Mesmo embora ele esteja falando da morte do corpo (que é a separação do homem de si
mesmo), o texto nos ensina sobre a composição dual da natureza humana.

1 Co 7.34 — ―.. Também a mulher, tanto a viúva quanto a virgem, cuida das
cousas do Senhor, para ser santo, assim no corpo como no espírito.‖

A pureza de uma mulher, segundo Paulo, em qualquer estado civil que possa estar, deve
produzir uma vida que evidencie a santidade cristã na totalidade do seu ser: no material e no
espiritual.

2 Co 7.1 — ―Tendo, pois, ó amados, tais promessas, purifiquemo-nos de toda


impureza, tanto da carne (sarko\j) como do espírito (pneu/matoj) aperfeiçoando a
nossa santidade no amor de Deus.‖

Este verso de Paulo aos Coríntios e muitíssimo claro quanto à obra santificadora do
Senhor que é feita na totalidade do homem, isto é, na sua parte material como na imaterial. Deus
32

realiza a obra da redenção. Assim como a santificação é uma obra de Deus, também ela é um
dever do homem que deve ser puro tanto na sua natureza física quanto na sua natureza
espiritual.

Mt 26.41 — ―…o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.‖

Jesus ensina sobre o dever de orar e vigiar e, ao fazê-lo, ensina sobre


a fraqueza da natureza humana. E provável que espírito esteja ligado com
uma nova natureza e que carne significa as fraquezas de nosso ser. Seja
como for, a idéia da composição dúplex não deve ser deixada de lado,
mesmo neste texto que pode ter dupla interpretação.

B) A ESCRITURA PARECE, AO MESMO TEMPO,


DISTINGUIR OS TERMOS ALMA E ESPÍRITO.
Sem dúvida, há duas passagens que parecem contradizer a idéia da apresentação da
composição dual da natureza humana. São os dois únicos textos usados pelos chamados
tricotomistas: 1 Co 5.23 e Hb 4.12.
A pergunta levantada é esta: ―Não ensinam estes dois textos sobre a separação de alma e
espírito, o que indica uma tríplice concepção do homem?‖ A resposta é enfaticamente, ―não‖!!!

a) Vejamos, primeiro, Hb 4.12

―Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer


espada de dois gumes, e penetra até o ponto de dividir alma e espírito (yuxh=j kai\
pneu/matoj), juntas e medulas, e apta para discernir os pensamentos e os
propósitos do coração.‖

A Palavra de Deus, a Escritura, é como uma espada aguda, de dois gumes, que penetra
bem fundo, ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas. Diz o tricotomista: ―Se a Bíblia
afirma a possibilidade de separar alma de espírito, por que não podemos fazer?‖ - O fato é que o
pensamento grego não está dizendo realmente isso. O problema não é de tradução. O texto grego
não diz que a alma é separada do espírito, ou que as juntas podem ser separadas das medulas.
Ao contrário, o que é dito é que a Palavra de Deus divide o espírito e também a alma, assim como
as juntas e as medulas. Os escritor, de mentalidade hebraica, está usando paralelismos,
utilizando-se de sinônimos para reforçar a idéia da natureza tanto material como espiritual do
homem. Ele fala de ―alma‖ e ―espírito‖ e de ―juntas‖ e ―medulas‖, mostrando a composição dual,
não tríplice da natureza humana.
Esse paralelismo também se evidencia na idéia básica do texto de que a Palavra de Deus
penetra profundamente, o suficiente para discernir no ser mais interior do homem, que é o
coração, onde o autor usa duas idéias similares - os seus pensamentos e propósitos (vv. 12c e 13).
O quadro aqui fala em dividir as juntas, medulas, alma e espírito. Observe que há duas
categorias básicas aqui: material (juntas e medulas) e imaterial (alma/espírito), não três.
Exatamente como os ―pensamentos e propósitos‖ do coração não podem ser divididos, mas São
colocados juntos, abrangentemente, a fim de expressar o aspecto total do intelecto, assim espírito
e alma São mencionados para mostrar que nenhum aspecto do interior do homem está além do
poder penetrante da palavra de Deus.

b) Vejamos agora 1 Ts 5.23


33

―O mesmo Deus vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo, sejam
conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo.‖

Novamente a ênfase do texto não está sobre o número dos elementos que compõe a
natureza humana, nem como podemos dividi-la. Antes, está sobre a totalidade do homem.
Poderíamos traduzir este verso, da seguinte maneira:

―O mesmo Deus vos santifique em tudo (completamente); e o vosso ser total


(corpo, alma e espírito), seja conservado integro e irrepreensível na vinda de nosso
Senhor Jesus Cristo.‖

Paulo aqui não está dividindo, mas unindo. Se você não se conforma com essa
argumentação, mas crê que Paulo está somando ao corpo a alma e o espírito, formando três
partes, o que você faria com os seguintes textos: Mt 22.37; Mc 12.30; Lc 10.27? Estes textos
falam de alma, coração, força e entendimento. Você acresceria essas partes mencionadas à
composição do homem? Naturalmente que não!
A Escritura usa freqüentemente dois, três ou até quatro termos sobre a natureza
imaterial do homem, para enfatizar a idéia de totalidade. E necessário que observemos o sentido
da passagem à luz de toda a verdade, vê-la à luz de seu propósito e não daquilo que queremos que
o texto diga.

C) A ESCRITURA USA, FREQÜENTEMENTE, OS


TERMOS ALMA E ESPIRITO INDISTINTAMENTE

Alma e espírito são


(1) usados indistintamente quando a referência é a uma
pessoa desincorporada.

a) Nos texto abaixo as pessoas desincorporadas São chamadas de espírito:

Todas as pessoas que morrem, isto é, que têm a sua natureza material separada da sua
natureza imaterial, São consideradas como ―espíritos‖. Na morte de qualquer ser humano,
aplica-se a velha máxima de sábio Salomão em Ec 7.12- ―E o pó ( 'apar) volte à terra, como o era,
e o espírito volte a Deus que o deu.‖ Tanto os homens comuns como o Salvador deles provaram a
mesma experiência:

Lc 23.46 — ―Então, Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o
meu espírito! E, dito isto, expirou.‖

Desde a encarnação, o Redentor é vere Deus e vere homo, possuindo as duas naturezas —
a divina e a humana. Como homem, ele possuía os dois aspectos da natureza humana — o
material e o espiritual. Quando o Redentor morreu, seu corpo foi para a sepultura e o seu espírito
(que não é o Espírito Santo) voltou para Deus, até que ele ressurgiu ao terceiro dia. Nesse período
essa pessoa desincorporada era um espírito.

At 7.59 — ―E apedrejavam a Estevão que invocava e dizia: Senhor Jesus,


recebe o meu espírito (pneu=ma/ mou).‖
34

Quem morreu apedrejado foi Estevão, seu corpo ficou inerte porque foi separado do seu
espírito. Essa parte, que veio diretamente de Deus, voltou para Deus onde goza da alegria até que
a redenção se complete. Mas é o espírito de Estevão que está com Deus.

Hb 12.23 — ―… e igreja dos primogênitos arrolados no céus, e a Deus, o juiz de


todos, e aos espíritos dos justos (pneu/masi dikai/wn) aperfeiçoados.‖

Todos aqueles que fazem parte dos remidos, que já morreram com Cristo, estão na
presença de Deus gozando de suas delicias, sendo ―justos e aperfeiçoados‖, São chamados de
―espíritos‖.

b) Nos textos abaixo uma pessoa desincorporada também é descrita na Escritura como
alma:

Esta observação cabe tanto aos homens comuns como ao Redentor deles.

At 2.27 — ―Porque não deixarás a minha alma (yuxh/n) na morte, nem


permitirás que o teu santo veja corrupção.‖

Como humano que também era, Jesus possuía o seu corpo que foi sepultado, separado de
sua alma até o terceiro dia. Perceba que o texto fala da morte da alma. Ora, morte significa
separação. O que o escritor bíblico profeticamente diz é que o Senhor Deus não haveria de deixar
a alma humana do Redentor no estado de morte, isto é, no estado de separação do seu corpo.
Nem o seu corpo haveria de experimentar corrupção. A razão dessa incorrupção física e da alma
não poder ficar par sempre no estado de morte é que ambos os aspectos da natureza humana do
Redentor estavam indissoluvelmente ligadas à sua natureza divina, ao Logos. Portanto, quando
houve a morte do Redentor, estando desincorporado, ele foi chamado de ―alma‖, que é a mesma
coisa que ―espírito‖.

Ap 6.9 — ―...vi as almas (yuxa\j) daqueles que tinham sido mortos por causa da
palavra de Deus.‖

Ap 20.4 — ―vi ainda as almas (yuxa\j) dos decapitados por causa do


testemunho de Jesus...‖

Esses dois textos acima falam da situação dos remidos do Redentor. Quando eles
morrem, e nestes textos há o motivo de suas mortes, eles São separados de si mesmos. O físico
deles repousam na sepultura e espírito deles vai estar com Deus. No entanto, quando
desincorporados eles São chamados de ―almas‖, o que eqüivale a ―espíritos‖.
Obs.: a) Note que a Escritura apresenta a pessoa desincorporada como espírito que é,
auto-consciente, cônscio de sua identidade pessoal: Lc 23.43; Lc 16.19-31; Fp 1.22-23; 2 Co
5.1-10 (especialmente vv.6-8).
b) quando se fala de almas ou espíritos das pessoas desincorporadas, deve se ter em
mente que o escritor bíblico tem como meta falar de pessoas em sua unidade, não somente uma
das partes delas.

(2) Alma e espírito são usados indistintamente quando a referência é a


expressões de emoção e de devoção.
35

Esta argumentação que se segue destrói qualquer possibilidade de alguém reivindicar a


tese tricotomista. A Escritura é a intérprete de si própria. Ela mesma dá as respostas às nossas
inquirições.

(a) A Dor faz alusão tanto à alma como ao espírito: isto está claro nos ensinamentos sobre
a pessoa de Jesus Cristo:

Este ponto pode e deve tanto ser aplicado aos homens comuns como ao Redentor deles.
Vejamos primeiro sobre Jesus:

Jo 12.27 — ―Agora está angustiada a minha alma (yuxh/), e que direi eu?...‖

Jo 13.21 — (após lavar os pés dos discípulos) – ―Ditas estas cousas,


angustiou-se Jesus em espírito (pneu/mati).‖

Esses dois textos acima falam de uma situação de sofrimento angustiante de nosso
Redentor. De acordo com o ensino geral dos tricotomistas, somente a alma deveria ser a
portadora dessa angústia. Contudo, como esses termos São usados indistintamente, tratando da
mesma natureza espiritual do homem, é dito também que o espírito estava angustiado.

Mt 26.38 — (No Getsêmani) – ―Então lhes disse: a minha alma (yuxh/ mou) está
profundamente triste até a morte...‖

Mc 8.12 — (quando os fariseus pediram um sinal) – ―Jesus, porém, arrancou


do intimo do seu espírito (pneu/mati au)tou=) um gemido, e disse: por que pede esta
geração um sinal?...‖

O mesmo caso se aplica nestes dois textos acima. A emoção chamada ―tristeza‖ que
normalmente é atribuída pelos tricotomistas à alma, a Escritura atribuí ao espírito, porque as
duas palavras São indicativas da mesma coisa — a natureza imaterial do homem.
(Obs.: note que o uso que Marcos faz de espírito é menos intenso do que na situação de
Mateus, quando este usa a palavra alma. Isto é uma grande dificuldade para quem pensa
tricotomísticamente).
Também no caso dos homens comuns, a dor é atribuída tanto a alma como ao espírito.

At 17.16 — ―Enquanto Paulo os esperava em Atenas, o seu espírito (pneu=ma


au)tou=) se revoltava em face da idolatria reinante na cidade.‖

2 Pe 2.8 — (Sobre Ló em Sodoma) – ―Porque este justo, pelo que ouvia e via
quando habitava entre eles, atormentava a sua alma justa (yuxh\n dikai/na), cada dia,
por causa das obras iníquas daqueles.‖

Tanto Paulo como Ló, ao contemplar o mal, num reflexo da imagem de Deus que já havia
sido restaurada neles, pois eram justos, sentiram dor que lhes atormentava a ―alma‖ (ou
―espírito‖- pois essas duas palavras São usadas indistintamente) deles, pois é essa sensação
dolorida que o pecado causa na vida dos redimidos.
Veja-se ainda Sl 77.3; 142.3; 143.7 - aplicando a dor ou a tristeza ao espírito.

(b) Alegria Ação de Graças estão relacionadas tanto à alma como ao espírito:

O escritor sacro narra uma ocasião quando Maria deixa os tricotomistas numa situação
36

muito embaraçosa, pois ela inverte a ordem estabelecida por eles na distribuição dos elementos
distintos na natureza não material do homem. Veja o que Maria, a mãe do Redentor, diz:

Lc 1.46-47- ―Então disse Maria: a minha alma (yuxh/ mou) engrandece ao


Senhor, e o meu espírito (pneu=ma/ mou) exulta em Deus meu salvador.‖

Segundo a teoria geral dos tricotomistas, o que é próprio da alma é o sentimento, é


atribuído ao espírito — ―o meu espírito exulta em Deus meu salvador‖. E o que é próprio do
espírito, a adoração cristã, é atribuído a alma — ―a minha alma engrandece ao Senhor‖.
Por que Maria faz esse uso ―indevido‖ dessas palavras? Obviamente, não há uso indevido.
O que acontece é que não há nenhuma autorização nas Escrituras para considerarmos essas
duas palavras — alma e espírito — como elementos distintos na composição da natureza
humana.
Na adoração dos crentes comuns é muito usada a expressão do Salmista no Sl 42.1-2 —
―Como a corça suspira pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma. A
minha alma (yi$:pan) tem sede de Deus, do Deus vivo...‖ — Todos os verdadeiros cristãos adoram
a Deus com todos os anelos de sua alma. Eles poderiam perfeitamente usar duas outras palavras
para expressar a mesma idéia. Eles poderia dizer que suspiram pelo Senhor com todo o seu
coração ou com todo o seu espírito. São termos usados indistintamente para expressar o mesmo
sentimento de adoração num desejo ardente por Deus.

(c) Adoração e Devoção São também atribuídos a ambos: alma e espírito.

Os textos abaixo criam uma dificuldade enorme para aqueles que possuem uma
mentalidade tricotomista, pois se a regra for aplicada literalmente, os tricotomistas não mais
poderiam ser tricotomistas, mas pentatomistas, pois o verso abaixo fala de cinco partes. Uma
dela obviamente, se refere ao corpo (―toda a tua força‖). As quatro restantes dizem respeito às
partes imateriais do homem que deveriam ser consideradas distintas se fôssemos aplicar a tese
tricotomista. Veja o texto:

Mc 12.30 - (pergunta sobre o l.º grande mandamento) – ―Amarás, pois, o


Senhor teu Deus de todo o teu coração (kardi/aj sou), de toda a tua alma (yuxh=j sou), de
todo o teu entendimento (dianoi/aj sou), e de toda a tua força (i)sxu/oj sou).

Observe os outros textos paralelos:


Mc 12.30 - coração, alma, entendimento, força
Mt 22.37 - coração, alma, entendimento,
Lc 10.27 - coração, alma, entendimento, força
Dt 6.5 - coração, alma, força
Obs.: Uma observação que não pode deixar de ser feita é esta: A parte mais importante no
nosso culto a Deus e na expressão de nosso amor a Deus, segundo o entendimento tricotomistas
é o espírito do homem. Contudo, a ausência de espírito nestes textos é um problema sério para o
tricotomista.
Perceba no verso abaixo que o que é dito de um (espírito) é dito do outro (alma) no que
respeita ao esforço do cristão em preservar o corpo de doutrinas que ele recebe, que aqui é
chamado de ―fé evangélica‖. Isto é assim porque não se trata de elementos distintos, mas do
mesmo elemento. Paulo, obviamente, está usando um paralelismo hebraico.

Fp 1.27 — ―Vivei, acima de tudo, por modo digno do evangelho de Cristo, para
que, ou indo ver-vos, ou estando ausente, ouça, no tocante a vós outros, que estais
firmes em um só espírito (pneu/mati), com uma alma (yuxv=), lutando juntos pela fé
evangélica.‖
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Ef 6.5-6 — ―Quanto a vós outros, servos, obedecei a vossos senhores, segundo


a carne com temor e tremor, na sinceridade do vosso coração (kardi/aj u(mw=n) como a
Cristo, não servindo à vista, como para agradar a homens, mas como servos de
Cristo, fazendo de coração (e)k yuxh=j) a vontade de Deus.‖

Note: de todas as referências à dor, alegria, adoração, perceba que o lugar dos exercícios
espirituais de um homem regenerado está, tanto na alma como no espírito. Nenhum exercício
espiritual da alma deve deixar de ser atribuído ao espírito, porque ambos os termos significam a
mesma coisa — o aspecto imaterial do ser humano.
E importante ser observado que é a alma que tem anelos de Deus em vários textos da
Escritura (Sl 42.1-2; 62.1, 5, 8; 84.2; 86.4; 130.5-6; 143.6; Is 26.9.).
Observe-se ainda que é a alma que é devota a Deus (S1103.1, 2, 22; 104.1, 35; 108.1;
119.175; 143.8).

(3) Alma e espírito são usados indistintamente para descrever o objeto da obra
redentora e santificadora de Cristo.

(a) Quem vai para o céu ou para o inferno é a alma ou o espírito.

A existência humana no futuro, seja em vida ou em morte, isto é, em comunhão com Deus
ou em separação de Deus, é dita pertencer à alma ou ao espírito.
Os dois textos paralelos abaixo demonstram que a existência em morte pertence à alma.

Mt 16.26 — ―Pois que aproveitaria o homem se ganhar o mundo inteiro e


perder a sua alma (yuxh\n)? Ou o que dará o homem em troca de sua alma (yuxh=j
au)tou=)?‖ (cf. Mc 8.36)

Lc 12.20 — ―Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma
(yuxh/n), e o que tens preparado, para quem será?‖

Nos textos abaixo é dito que a existência em vida dos cristãos pertence à alma. E curioso
que, na concepção tricotomista, quem vai para o céu é o espírito, não a alma. No entanto, a
Escritura usa o termo alma como equivalente a espírito.

Lc 21.19 — ―E na perseverança que ganhareis as vossas almas (yuxa\j u(mw=n).‖

Hb 10.39 — ―Nós, porém, não somos dos que retrocedem para a perdição;
somos, entretanto, da fé para a conservaçao da alma (peripoi/hsin yuxh=j).‖

Tg 1.21 — ―Portanto, despojando-vos de toda impureza e acúmulo de


maldade, acolhei com mansidão a palavra em vós implantada, a qual é poderosa
para salvar as vossas almas (yuxa\j u(mw=n).‖

Tg 5.20 — ―Sabei que aquele que converte o pecador do seu caminho errado,
salvará a alma dele (yuxh\n au)tou=) e cobrirá multidão de pecados.‖

1 Pe 1.9 — ―Obtendo o fim da vossa fé, a salvação das vossas almas (u(mw=n
swthri/na yuxw=n).‖

Ez 3.19 — ―Mas, se avisares o perverso, e ele não se converter da sua maldade


e do seu caminho perverso, ele morrerá na sua iniquidade, mas tu salvaste a tua
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alma (!:$:pan)).‖

Nos dois textos abaixo é mostrado que um cristão que morre vai para a vida com Jesus.
No entanto, a palavra usada aqui é ―espírito‖ não ―alma‖, como nos textos anteriores.

At 7.59 — ―E apedrejavam a Estevão que invocava e dizia: Senhor Jesus,


recebe o meu espírito (pneu=ma/ mou).‖

1 Co 5.5 — ―... seja entregue a Satanás para a destruição da carne (sapko/j), a


fim de que o espírito (pneu=ma swqv=) seja salvo no dia do Senhor.‖

(b) A Santificação é da alma (ou espírito).

A salvação é alguma coisa que já aconteceu no passado, mas ainda é uma realidade
presente. Deus continua ainda a nos salvar. A isto a Escritura chama ―santificação‖. O processo
da santificação acontece com a totalidade do seu humano, tanto da sua parte material como da
imaterial. Escrevendo aos Coríntios, Paulo deixa bem claro esta verdade. A parte material ele
chama de ―carne‖ e a parte imaterial ele chama de ―espírito‖. Estes são os únicos dois elementos
que compõem a natureza humana.

2 Co 7.1 — ―Tendo, pois, ó amados, tais promessas, purifiquemo-nos de toda


impureza, tanto da carne (sarko\j), como do espírito (pneu/matoj) aperfeiçoando a nossa
santidade no temor de Deus.‖

Pedro, no entanto usa, nos textos abaixo, a palavra ―alma‖ como sendo o locus da
santificação que Deus opera em nós, e que nós operamos mediante nossa obediência à verdade.

1 Pe 1.22 — ―Tendo purificado as vossas almas (yuxa\j) pela vossa obediência à


verdade, tendo em vista o amor fraternal não fingido, amai-vos de coração uns aos
outros, ardentemente.‖

1 Pe 2.11 — ―Amados, exorto-vos como peregrinos e forasteiros que sois, a vos


absterdes das paixões carnais que fazem guerra contra a alma (yuxh=j).‖

Is 38.16-17 — ―Senhor, por estas disposições tuas vivem os homens, e


inteiramente delas depende o meu espírito (yixUr); portanto, restaura-me a saúde,
e faze-me viver. Eis que foi para a minha paz que tive eu grande amargura; tu,
porém, amas a minha alma (yi$:pan) e a livraste da cova da corrupção porque
lançaste para trás de ti todos os meus pecados.‖

O ensino dos profetas do Antigo Testamento não é diferente dos escritores do Novo
Testamento. A contaminação da ―alma‖ torna necessária a purificação dela. Da mesma forma a
saúde do ―espírito‖ do homem depende da obra santificadora de Deus. Analise com propriedade
estes dois textos abaixo e verifique que alma ou espírito São o locus da obra santificadora de
Deus, pois são termos usados indistintamente.

Ez 4.14 — ―Então, disse eu: Ah! Senhor Deus! eis que a minha alma (yi$:pan)
não foi contaminada, pois desde a minha mocidade até agora, nunca comi animal
morto de si mesmo nem dilacerado por feras, nem carne abominável entrou na
minha boca.‖

Is 38.16-17 — ―Senhor, por estas disposições tuas vivem os homens, e


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inteiramente delas depende o meu espírito (yixUr); portanto, restaura-me a saúde,


e faze-me viver. Eis que foi para a minha paz que tive eu grande amargura; tu,
porém, amas a minha alma (yi$:pan) e a livraste da cova da corrupção porque
lançaste para trás de ti todos os meus pecados.‖

(c) O Perdão de Deus é para a Alma

Na concepção tricotomista, o perdão de Deus deveria ser para o espírito humano, não
para a alma. Contudo, a Escritura diz em vários lugares que a alma humana é objeto da
compaixão perdoadora de Deus.

Sl 41.4 — ―Disse eu: compadece-te de mim, Senhor; sara a minha alma,


porque pequei contra ti.‖

S1102.2-3 — ―Bendize, ó minha alma ao Senhor, e não te esqueças de


nenhum só de seus benefícios. Ele é quem perdoa todas as tuas iniquidades.‖

Observe: É muito importante que se leve em conta que, quando a Escritura se refere ao
perdão da alma, ao fato dela ir para o céu, a ênfase não está na divisão da pessoa,
mas na unidade dela. Portanto, é salutar pensar que Deus perdoa a
pessoa, e não apenas o lado imaterial dela; que é a pessoa que vai para o
céu, não um pedaço dela.
Explicação: O fato de que a Escritura usa alma e espírito indistintamente em muitos
contextos, como sinônimos básicos em tais contextos, não implica que não possa haver outro
sentido do seu uso em outros contextos; o mesmo acontece com carne e corpo.

3. O HOMEM É CORAÇÃO
Numa tentativa de compreender a doutrina bíblica do homem, atenção foi dada às
referências ao corpo, tanto quanto às variações no uso com respeito à alma e espírito. Entretanto,
a Escritura também apresenta o homem como coração. Este termo enfoca a unidade da natureza
básica do homem.

A) A ABRANGÊNCIA DO SIGNIFICADO DO TERMO “CORAÇÃO” NA ESCRITURA:

O livro de Provérbios é abundantemente rico no uso do termo ―coração‖ especialmente


quando fala que ele é a sede da personalidade humana.

(1) Referência a “coração” no Livro de Provérbios

Pv 2.10 — ―Porquanto a sabedoria entrará no teu coração, e o conhecimento será


agradável à tua alma.‖
3.5 — ―Confia no Senhor de todo o teu coração, e não te estribes no teu próprio
entendimento.‖
4.23 — ―Sobretudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as
fontes da vida.‖
12.25 — ―A ansiedade no coração do homem o abate, mas a boa palavra o alegra.‖
14.10 — ―O coração conhece a sua própria amargura, e da sua alegria não participará o
estranho.‖
40

14.13 — ―Até no riso tem dor o coração, e o fim da alegria é a tristeza.‖


14.14 — ―O infiel de coração dos seus próprios caminhos se farta...‖
15.13 — ―O coração alegre aformoseia o rosto, mas com a tristeza do coração, o espírito se
abate.‖
Ver também: 15.14; 15.30; 16.5; 18.12,15; 19.3; 23.17.

(2) Referências a coração no uso de Jesus Cristo

Mt 5.8 — ―Bem aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.‖


Mt 5.28 — ―Eu, porém, vos digo: qualquer que olhar para uma mulher com intenção
impura, no coração já adulterou com ela.‖
Mt 15.19 — ―Porque do coração procedem maus desígnios, homicídios, adultérios,
prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias.‖
Mt 22.37 — ―Respondeu-lhes Jesus: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de
toda a tua alma, e de todo o teu entendimento.‖
Lc 8.11-15 — (Parábola do Semeador) ―A que caiu na boa terra são os que, tendo ouvido
de bom e reto coração, retém a palavra; estes frutificam com perseverança.‖ (v. 15).

Observação: Há dezenas de outras referências de Jesus a coração como a essência da


natureza humana, como o âmago de nosso interior, e são referências usadas indistintamente
para descrever não somente toda a personalidade, mas as coisas da própria alma (ou espírito).

(3) Referências a “coração” na mensagem de Paulo

H. Wheeler Robinson, em seu livro "Christian Doctrine of Man" resume o ensino de Paulo
como se segue:
15 vezes — Personalidade, ou vida interior em geral. Cf 1 Co 14.14, 24, 25 – ―Porém se
todos profetizarem, e entrar algum incrédulo ou indouto, é ele por todos convencido, e por todos
julgado; tornam-se-lhes manifestos os segredos do coração e, assim, prostrando-se com a face
em terra, adorará a Deus, testemunhando que Deus está de fato no meio de vós.‖
13 vezes — lugar do estado emocional da consciência, cf Rm 9.1-3 ―Digo a verdade em
Cristo, não minto, testemunhando comigo, no Espírito Santo, a minha própria consciência: que
tenho grande tristeza e incessante dor no coração, porque eu mesmo desejaria ser anátema,
separado de Cristo, por amor de vós, meus irmãos, meus compatriotas segundo a carne.‖
11 vezes — lugar das atividades intelectuais. Cf Rm 1.21-22 ―Porquanto, tendo
conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes se tornaram
nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo- lhes o coração insensato. Inculcando-se por
sábios, tornaram - se loucos.‖
13 vezes — lugar da vontade. Cf Rm 2.4-5 ―Ou desprezas a riqueza da sua bondade, e
tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao
arrependimento? Mas, segundo a tua dureza e coração impenitente, acumulas contra ti mesmo
ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus.‖

B) A ESCRITURA USA O TERMO CORAÇÃO COMO INDICATIVO DE:

Pensamento = intelecto
Querer = vontade (volição)
Sentimento = emoção (afeições)
41

1. Coração como Indicativo de Atividade Intelectual

Dt 29.4 — ―Porém o Senhor não vos deu coração para entender, nem olhos para ver, nem
ouvidos para ouvir, até o dia de hoje.‖
Lc 5.22 — ―Jesus, porém, conhecendo-lhes os pensamentos, disse-lhes: que arrazoais em
vossos corações?‖
Jo 12.40 — ―Cegou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, para que não vejam com os
olhos, nem entendam com o coração, e se convertam e sejam por mim curados.‖
At 8.22 — ―Arrepende-te, pois, da tua maldade, e roga ao Senhor; talvez que te seja
perdoado o pensamento (e)pi/noia) do coração.‖

2. Coração como Indicativo de Atividade Volitiva

Mt 15.19 — ―Porque, do coração, procedem maus desígnios, homicídios, adultérios...‖


Ex 25.2 — ―Fala aos filhos de Israel que me tragam ofertas; de todo homem cujo coração o
mover para isso, dele recebereis a minha oferta.‖
1 Cr 22.19 — ―Disponde, pois, o vosso coração, e a vossa alma para buscardes ao Senhor
vosso Deus....‖
Dn 1.8 — ―Daniel, porém, propôs no seu coração, não se contaminar com as finas iguarias
do rei…‖
At 11.23 — ―Tendo ele chegado e, vendo a graça de Deus, alegrou-se, e exortava a todos
que, com firmeza de coração, permanecessem firmes no Senhor.‖
1 Co 7.37 — ―Todavia, o que está firme no seu coração, não tendo necessidade, mas
domínio sobre o seu próprio arbítrio, e isto bem firmado no seu ânimo (kardi/#), para conservar
virgem a sua filha, bem fará.‖

3. Coração como Indicativo de Atividade Emotiva

Ex 4.14 — ―Então se acendeu a ira do Senhor contra Moisés, e disse: Não é Arão, o levita,
teu irmão? Eu sei que ele fala fluentemente; e eis que ele sai ao teu encontro e, vendo-te, se
alegrará em seu coração.‖
Ne 2.2 — ―O rei me disse: porque está triste o teu rosto, se não estás doente? Tem de ser
tristeza do coração. Então temi sobremaneira.‖
Sl 28.7 — ―O Senhor é a minha força e o meu escudo; nele o meu coração confia; nele fui
socorrido; por isso o meu coração exulta.‖
Jo 14.1 — ―Não se turbe o vosso coração....‖
At 2.26 — ―Por isso se alegrou o meu coração e a minha língua exultou...‖
2 Co 2.4 — ―Porque no meio de muitos sofrimentos e angústias do coração vos escrevi,
com muitas lágrimas, não para que ficásseis entristecidos, mas para que conhecêsseis o amor
que vos consagro em grande medida.‖

c) A ESCRITURA APRESENTA O CORAÇÃO COMO A SEDE DO PECADO

No Antigo Testamento

Pv 6.14 — ―No seu coração há perversidade; todo o tempo maquina o mal; anda semeando
contendas.‖
Pv 6.18 — ―Coração que trama projetos iníquos...‖
Pv 6.25 — ―Não cobices no teu coração a sua formosura, nem te deixes prender com as
42

suas olhadelas.‖
Pv 7.10 — ―Eis que a mulher lhe sai ao encontro, com vestes de prostituta, e astuta de
coração.‖
Pv 12.20 — ―Há fraude no coração dos que maquinam o mal, mas alegria têm os que
aconselham a paz.‖
Pv 12.23 — ―O homem prudente oculta o conhecimento, mas o coração dos insensatos
proclama a estultícia.‖
Jr 17.9 — ―Enganoso é o coração; mais do que todas as coisas e desesperadamente
corrupto. Quem o conhecerá?‖

No Novo Testamento

Jesus é absolutamente claro quando trata da pecaminosidade que atribuída ao coração


humano:

Mc 7.21-23 — ―Porque de dentro, do coração dos homens, e que procedem os maus


desígnios, a prostituição, furtos, os homicídios, os adultérios....; ora, todos esses males vêm de
dentro e contaminam o homem.‖

Paulo é o apóstolo que mais trata desta matéria:

Ef 4.17-18 — ver outros textos sobre o coração endurecido.

Obs.: averiguar esta matéria no Livro de Provérbios.

D)A ESCRITURA APRESENTA TAMBÉM O CORAÇÃO COMO O CENTRO DA OBRA


REDENTORA DA GRAÇA.

Sl 51.10 — ―Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova dentro de mim um espírito
reto.‖
Ez 36.26 — ―Dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um espírito novo.‖
At 16.14 — (Sobre Lídia) ―…e o Senhor lhe abriu o coração para atender às coisas que
Paulo dizia.‖
Rm 2.29 — ―Porém justo é aquele que o é interiormente, e circuncisão a que é do coração.‖
Rm 10.9-10 — ―Porque, como coração se crê para a justiça...‖
Ef 3.17 — ―E assim, habite Cristo em vossos corações, pela fé....‖

―O coração é o ponto de concentração, a raiz religiosa de nossa existência


humana total. Dele surgem todos os nossos pensamentos, ações, sentimentos e
desejos. Em nossos corações damos respostas às mais profundas e definitivas
questões, e em nossos corações o nosso relacionamento com Deus é determinado.
A regeneração, a renovação do coração pelo Espírito Santo, faz-nos voltar para
Deus e redirige-nos o coração do caminho da apostasia para Deus. O coração, ou
alma do homem, jamais pode ser identificado com qualquer outra função vital, tal
como sentimento ou fé. Ele é mais profundo do que qualquer outra função vital e
transcende o temporal. O coração é o ponto do homem que determina o seu
relacionamento com Deus. Não é possível dar uma conceituação ou uma definição
científica do coração, porque como o centro de nossa existência em seu todo, o
coração é a pressuposição mais profunda de nosso pensamento. Nós podemos
somente repetir através da fé o que Deus nos tem revelado em Sua Palavra a
43

respeito do centro de nossa vida.‖32

Resumo — A fim de ajudar-nos a compreender melhor o significado bíblico de coração,


perguntamos: O que deve ser oposto ao coração, na Bíblia? A resposta é sempre, sem exceção,
aquilo que é visível, o homem exterior. A adoração que uma pessoa pode prestar com seus lábios
(exterior, visível, adoração audível), é contrastada com a adoração do coração (interior, invisível,
inaudível) ilustrada em Mt 15.8. Uma outra maneira de se ver esse contraste é observar 1 Sm
16.7 – ―aparência exterior‖ e ―coração‖ (Rm 10.8-10).
Sempre a Escritura usa a palavra ―coração‖ para falar do interior do homem (ou do
homem interior - 1 Pe 3.4; 2 Co 4.16). O coração é a parte interior de nossa vida diante de Deus
e de si mesmo, uma vida desconhecida dos outros, porque ela é escondida deles (Mt 5.28).
E bom que se lembre aos tricotomistas de que tudo o que é dito da alma e do espírito, é
também dito do coração (Dt 11.13; Mt 22.37; 1 Rs 4.48; 1 Cr 22.19; At 4.32; Sl 32.2; Mc 14.38;
8.12; Ef 4.23; Hb 4.12-13; 1 Pe 3.4; S164.6; 13.2).
Pode haver alguma distinção entre alma e espírito? Por que essas duas palavras São
usadas para descrever uma só entidade? Como essas duas palavras estão ligadas a coração?
Como já foi visto, o coração é a parte interior, não-observável, imaterial do ser humano.
ALMA — fala do homem em unidade dos elementos material e imaterial como um ser vivo
(1 Pe 3.20; Gn 46.22; alma também diz respeito ao ―eu‖ do homem (Sl 42.1; 103.1, etc.).
ESPIRITO — sempre pinta o aspecto imaterial da natureza humana, fora da relação do
corpo. O espírito fala do estado desincorporado. Deus, por exemplo, nunca é chamado Alma
(embora nephesh seja atribuída a Ele), mas sempre ele é chamado Espírito (Jo 4.24). A terceira
pessoa da Trindade é o Espírito Santo, não a Alma Santa. Quando Jesus disse que Deus é
Espírito, Ele enfatizou o fato de que a adoração requerida deveria ser mais do que exterior (física);
Deus deveria ser adorado em espírito e em verdade. Quando Cristo discutiu e definiu um espirito,
Ele disse: ―...apalpai-me e verificai, porque um espírito não tem carne nem ossos, com vedes que
eu tenho‖ (Lc 24.39). Um espírito é uma pessoa sem o corpo. Assim, como a palavra alma (de uma
forma ou outra) sempre descreve o aspecto não-material da natureza humana em relação ao (ou
em unidade) material, assim a palavra espírito refere-se ao mesmo aspecto imaterial da natureza
humana, mas fora de sua ligação com o corpo (o material).
CORAÇÃO — refere-se ao aspecto imaterial do homem em contraste com o aspecto
material (usualmente enfatizando sobre a visibilidade deste último e a invisibilidade do primeiro).
São três palavras distintas, contudo, todas elas referem-se a mesma entidade: a pessoa
imaterial.

32 J. M. Spier, Na Introduction to Christian Philosophy, 15-16.


44

CAPITULO IV

TEORIAS SOBRE A ORIGEM DA ALMA HUMANA

Três teorias disputaram a opinião da igreja desde os primeiros séculos da igreja cristã,
com respeito à origem da alma:

1. PRE-EXISTENCIALISMO33

Orígenes (séc. III) foi seu principal expoente. Esta teoria ensina que as almas dos homens
tiveram uma existência anterior à criação dos próprios homens. Alguns acontecimentos nesse
período pré-temporal determinaram a condição em que atualmente se encontram essas almas.
Houve uma espécie de queda pré-temporal. Orígenes considerou que a existência material
presente no homem, com todas as suas desigualdades e irregularidades físicas e morais, é um
castigo pelos pecados cometidos em uma existência anterior. O pecado, portanto, teve entrada no
mundo dos homens num estado pré-temporal, e isso fez com que o homem já entrasse no mundo
numa condição de pecado.
Objeções: a) É uma teoria sem base escriturística. Algumas de suas formas refletem uma
base filosófica pagã que aceita um dualismo, matéria-espírito, tornando um castigo para a alma
o fato dela ser unida ao corpo.
b) Faz com que o corpo seja meramente acidental. A princípio, a alma existia sem o corpo.
O homem estava completo sem o corpo. Isto apaga a distinção entre o homem e os anjos.
c) Destrói a unidade da raça humana, porque aceita que as almas individuais existiram
muito tempo antes de entrarem na vida presente. Não constituem uma raça.
d) Não tem apoio na consciência humana. O homem não tem uma consciência de uma
existência prévia, ou que o corpo seja uma espécie de prisão para a alma.

2. TRADUCIANISMO (ou PROPAGAÇÃO)34


Segundo o traducianismo, as almas dos homens se propagam juntamente com os corpos,
mediante uma geração ordinária, transmitida dos pais aos filhos.
Entre os Reformados há alguns que defendem a idéia traducianista. W.G.T. Shedd é o
principal expoente dessa corrente.

a) Argumentos a favor do Traducianismo


Os traducianistas apresentam vários argumentos em favor de sua teoria:

(a) A Escritura parece favorecer a apresentação do traducianismo


A Bíblia ensina que o homem é uma espécie, e a idéia de espécie implica numa
propagação da totalidade do indivíduo, e não de uma parte apenas, ou seja, o corpo, como ensina
o criacionismo.
— Gn 1.26, 27; 5.2 ensinam que o homem e mulher são denominados ―homem‖. A
palavra ―Adão‖ não denota simplesmente o nome de um homem, mas da espécie. Quando Deus
criou Adão, ele não criou o indivíduo, mas a espécie.

33 Dados tirados de Berkhof, p. 232 (edição castelhana).


34 Argumentos tirados de Berkhof, p. 233-34 (edição castelhana)
45

— A criação da alma de Eva esteve incluída na de Adão, pois dele ela foi formada ( 2 Co
11.8; Gn 2.21-23). A mulher toda (por inteiro), e não somente o seu corpo, foi derivada de Adão.
Alma e corpo são propagados. Deus criou a natureza humana em Adão, e depois essa natureza
humana foi transformada em milhões de indivíduos por propagação sexual. A criação do ―Adão‖
(natureza humana) foi terminada e completada no sexto dia. Após isso, há somente a propagação
da raça.
— Gn 2.2 diz que Deus cessou o trabalho da criação depois de haver feito o homem.
— Deus soprou somente uma vez nas narinas do homem, e depois o tornou fecundo para
a propagação da espécie (Gn 1.28; 2.7).
— Observe o uso da palavra ―carne‖ quando denota ―natureza humana‖ (corpo e alma), e
não apenas corpo (Jo 3.6; 1.14; Rm 1.3).
Estes textos parecem favorecer a posição traducianista, isto é, eles ensinam que o
indivíduo é propagado como um todo (consistindo de corpo e alma), e não somente em parte como
ensina o criacionismo.

(b) Pelas leis naturais da vida vegetal e animal


O crescimento nesses remos não é por um crescente de criação imediata, mas por meio de
derivação natural de novos indivíduos procedentes de um tronco paterno (mas observe-se Si
104.30).

(c) As Leis genéticas favorecem o Traducianismo


A herança das peculiaridades mentais e tendências familiares são notáveis, traços físicos
e mentais que não são explicáveis nem pela educação, nem pelo exemplo.

(d) O Traducianismo oferece mais base para explicar a depravação moral e espiritual
porque este assunto é mais um assunto da alma do que do corpo.
OBS. - Para justificar os seus argumentos, os traducianistas se juntam ao realismo para
explicar o pecado original.

b) Objeções ao Traducianismo
Contra o traducianismo há varias objeções:
(a) Ele é contrario à doutrina filosófica da simplicidade da alma. A alma é uma substancia
espiritual pura que não admite divisão. A propagação da alma implicaria na divisão da alma, já
que a criança recebe a sua alma dos pais. O problema maior é: de quem procede a alma da
criança? da mãe ou do pai? Ou ela vem de ambos? Se é assim, não seria uma alma composta?
(b) A fim de evitar essa dificuldade supra-mencionada, os traducianistas têm que recorrer
a uma dessas três teorias a serem mencionadas: Primeira, que a alma da criança tem uma
existência prévia, uma espécie de pre-existencialismo; Segunda, que a alma está potencialmente
presente no sêmen do homem ou da mulher, ou em ambos, e isso e. materialismo; Terceira, que
a alma é produzida, isto é, ela é criada de algum modo, pelos pais, e isto os torna, de algum modo,
criadores.
(c) Os traducianistas dizem que, após a criação original, Deus somente obra
mediatamente. Após os seis dias da criação Sua obra criadora cessou, por isso Deus não pode
mais criar almas. Mas a pergunta a ser levantada é esta: Onde fica, então, a regeneração, que não
é efetuada através de causas secundarias? Ela é uma nova criação!
(d) Geralmente o traducianismo se une ao realismo para explicar o pecado da raça, isto é,
a culpa do homem. Fazendo isto, o traducianismo afirma a unidade numérica da substância de
todas as almas humanas, o que é uma posição insustentável. Além disso, o traducianismo falha
46

em explicar a culpa individual de cada homem nos outros pecados de Adão, e nos pecados dos
outros antepassados.
(e) O traducianismo tem dificuldades insuperáveis na Cristologia. Se em Adão a natureza
pecou como um todo, e que o pecado foi de cada parte da natureza, então, a conclusão é que a
natureza humana de Cristo foi também pecaminosa e culpada, pois ela fazia parte da raça criada
numericamente uma e a mesma em Adão.

3) CRIACIONISMO
Esta teoria considera que cada alma é uma criação imediata de Deus, possuindo sua
origem num ato criativo direto de Deus, no qual o tempo não pode ser precisamente determinado.
Supostamente, a alma é criada pura, pois Deus não poderia tê-la criado impura, e ela é unida a
um corpo depravado. Não deve ser crido que a alma é criada separadamente do corpo e que ela se
torna poluída em contato com o corpo, o que tornaria o pecado algo simplesmente físico. Deve ser
crido que a alma é criada pura, mas que Deus imputa a culpa de Adão a ela e, então, se torna
corrupta também.
A alma, que é produto de um ato criador direto de Deus, já está pré-formada na vida
psíquica do feto.

a) Argumentos a favor do Criacionismo


(a) Ele é mais consistente com as apresentações dominantes da Escritura que o
traducianismo. O relato original da criação assinala uma distinção clara entre a criação do corpo
e da alma. O corpo foi tomado da terra e a alma vem diretamente de Deus. Em toda a Bíblia esta
distinção se conserva, onde a alma e o corpo não são somente substâncias diferentes, mas têm
origens diferentes (veja Ec 12.7; Is 42.5; Zc 12.1; Hb 12.9; Nm 16.22). Sobre o texto de Hebreus,
Delitzsch, um notável traducianista, disse: "Dificilmente pode encontrar-se um texto que dê
prova mais clássica a favor do criacionismo!"- O criacionismo é muito mais consistente com a
natureza da alma humana do que o traducianismo. A natureza individual da alma humana é
perfeitamente reconhecida pelo criacionismo. A teoria traducianista, por sua vez, implica. numa
separação e divisão da essência da alma.
(b) Evita os tropeços do traducianismo na Cristologia, e faz mais justiça à pessoa de Cristo
na Escritura. Cristo foi verdadeiramente homem, com verdadeira natureza humana, um corpo
verdadeiro e uma alma racional. Nasceu da mulher, foi feito semelhante a nós e, não obstante,
sem pecado. Diferentemente dos outros homens, não participou da culpa e corrupção da
transgressão de Adão, pois Deus não lhe imputou culpa. Isto foi possível porque Ele não
participou da mesma essência numérica dos que pecaram em Adão.

b) Objeções ao Criacionismo
(a) A objeção mais séria é a seguinte: a alma sendo depravada, ou possuindo tendências
depravadas, torna Deus o autor direto do mal. Se a alma foi criada pura, torna Deus o autor
indireto do mal, pois Deus a coloca num corpo que fatalmente a corromperá.
Este argumento é considerado pelos traducianistas como fatal para o criacionismo. Claro
que este é um tropeço a ser evitado. Para o criacionismo, o pecado original não é um problema
simplesmente de herança. Os descendentes de Adão são pecadores, não como resultado de
haverem sido postos em contato com um corpo pecador, mas em virtude do fato de Deus
imputar-lhes a desobediência original de Adão. Então, a justiça original é tirada, e a corrupção do
pecado, naturalmente, se desenvolve.
(b) O criacionismo considera os pais terrenos como gerando somente o corpo de seus
filhos, o que certamente não é a parte mais importante da criança e, portanto, não explica os
reaparecimentos de tendências mentais e morais dos pais nos filhos.
Até onde tenha a ver com as semelhanças mentais e morais dos pais e filhos, não
necessariamente precisam ser explicadas unicamente com base na herança. Nosso
47

conhecimento da alma é tão imperfeito para falar com absoluta segurança sobre esse ponto. Mas
esta semelhança, em parte, é explicada pelo exemplo dos pais, em parte pela influência do corpo
sobre a alma e, em parte, pelo fato de que Deus não cria todas as almas iguais, mas que cria em
cada caso particular uma alma adaptada ao corpo com o qual se unirá, e adaptada também às
complexas relações nos quais terá que ser introduzida.
(c) O criacionismo não está em harmonia com a relação atual de Deus com o mundo e com
sua maneira de trabalhar nele, visto que ensina uma atividade criadora de Deus e, deste modo,
ignora que Deus não mais obra diretamente, mas somente por meio de agência secundária.

4) PONDERAÇÕES FINAIS

a) Há que se ter prudência ao falar deste assunto


Deve admitir-se que os argumentos de ambas as partes, traducianismo e criacionismo,
estão equilibrados. A Escritura não faz uma afirmação direta a respeito da origem da alma no
homem em particular, exceto no caso de Adão. As poucas passagens da Bíblia que tratam do
assunto, só podem ser consideradas conclusivas por cada parte, já que algumas delas são
usadas pelas duas partes. Alguns teólogos são de opinião de que há verdades em ambas as
teorias.

b) Alguma forma de criacionismo merece preferência


Pelas seguintes razões:
(a) Não encontra dificuldade filosófica insuperável com a qual o traducianismo sofre;
(b) Evita os erros cristológicos que envolve o traducianismo;
(c) Está mais em harmonia com a nossa idéia de pacto.
Ao mesmo tempo, estamos convencidos de que a atividade criadora de Deus, ao formar as
almas humanas, deve ser concebida como muita estreitamente ligada ao processo natural de
geração dos indivíduos.
O criacionismo não evita todas as dificuldades, mas é uma garantia contra os seguintes
erros: (a) que a alma é divisível; (b) que todos os homens são meramente a mesma substância; (c)
que Cristo tomou aquela mesma natureza numérica que caiu em Adão.
48

CAPITULO V

A IMAGEM DE DEUS NO HOMEM


Hoekema diz que ―o conceito da imagem de Deus é o coração da antropologia cristã.‖ 35
Essa doutrina é fundamental para o entendimento de outros aspectos da antropologia, como por
exemplo, o do efeito do pecado na vida do homem, especialmente quando estudamos a imagem de
Deus após a queda.
Segundo Herman Bavinck, o homem não carrega ou tem simplesmente a imagem de
Deus, mas ele é a imagem de Deus, e diz também que a imagem de Deus não é um acidente, mas
algo essencial a ele, sem a qual ele não pode ser o que e.

―Da doutrina de que o homem foi criado à imagem de Deus segue-se a


implicação clara que a imagem de Deus estende-se ao homem em toda a sua
inteireza. Nada no homem é excluído da imagem de Deus. Todas as criaturas
revelam traços de Deus, mas somente o homem é a imagem de Deus. E ele é a
imagem totalmente, na alma e no corpo, em todas as faculdades e poderes, em
todas as condições e relacionamentos. O homem é a imagem de Deus porque e ao
grau em que ele é verdadeiro homem, e ele é homem, homem verdadeiro e real,
porque e ao grau em que ele é a imagem de Deus.‖36

Isto quer dizer que a imagem de Deus não é acidental, mas algo extremamente importante
e essencial à natureza humana. O homem não pode ser homem sem a imagem de Deus. Por isso
o homem é a imagem de Deus, não simplesmente a tem, como algo que foi acrescentado depois de
sua formação.
Quando criado, portanto, o homem era:
a) O espelho de Deus - Antes da queda, o homem refletia perfeitamente o seu Criador.
Bastava olhar para ele para ver a perfeição de Deus refletida nele. Tudo era harmonia. Hoekema
diz que

―Deus era o homem tornado visível na terra. Para ser exato, outras criaturas, e
mesmo os céus, declaram a glória de Deus, mas somente no homem Deus torna-se
visível. Os teólogos Reformados falam da revelação geral de Deus, na
qual Ele revela a Sua presença, poder e divindade através das obras de Suas mãos.
Mas na criação do homem, Deus revelou-Se a Si mesmo de um modo singular, por
tornar alguém que era uma espécie de espelho, uma imagem de Si próprio.
Nenhuma honra mais alta poderia ter sido dada ao homem do que a do privilégio
de ser a imagem de Deus que o fez‖.37

Esta imagem foi deformada pela queda, mas foi restaurada por Cristo, e será aperfeiçoada
até que volte de novo a ser como era.
b) O representante de Deus - O domínio que Deus deu ao homem sobre todas as obras de
Sua criação, indica que Deus deixou o homem como seu representante e governador da criação.

35 Anthony Hoekema, Created God‟s Image, (Eerdmans, 1986), p.66.


36 Herman Bavinck, Dogmatiek, 2:595-96, citado por Hoekema, p. 65.
37 Hoekema, p. 67.
49

Deus governa através do homem, a quem deu o domínio sobre tudo. Por essa razão, a
responsabilidade do homem aumenta, pois ele tem que fazer exatamente o que Deus faria, como
um embaixador de Deus que e.

SOBRE O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS

“Imagem” e “Semelhança”
As duas palavras aparecem juntas e Gn 1.26, mas não se referem a coisas diferentes,
como, por muito tempo, creu-se na história da igreja.38
As duas palavras, imagem e semelhança, são sinônimas e usadas indistintamente. Em
Gn 1.26 aparecem as duas palavras, enquanto que em Gn 5.1 aparece somente a ―semelhança‖,
e em Gn 5.3 as duas novamente. Em Gn 9.6 aparece somente a palavra ―imagem‖, como que
indicando a idéia total do homem. Hoekema assevera que ―se estas palavras pretendessem
descrever aspectos diferentes do ser humano, elas não seriam usadas, como as temos visto sendo
usadas, isto é, quase indistintamente‖. 39 Berkhof observa que

―a opinião corrente é que a palavra ‗semelhança‘ foi acrescentada à ‗imagem‘


para expressar a idéia de que a ‗imagem‘ foi extraordinariamente parecida, uma
imagem perfeita. A idéia é que, mediante a criação, aquilo que era arquetípico em
Deus, se transformou em cópia no homem. Deus foi o original de onde se tirou a
cópia que é o homem.‖40

A palavra hebraica para ―imagem‖ é {elec: (tselem) derivada de uma raiz que significa
―esculpir‖ ou ―cortar‖. Portanto, podemos entender ―imagem‖ como sendo o homem uma
representação de Deus.41
A palavra hebraica para ―semelhança‖ é "tUm:di (demuth), que vem de uma raiz que
significa ―ser igual‖. ―Alguém poderia dizer que em Gn 1.26 a palavra imagem é igual a
semelhança, uma imagem que é igual à nossa. As duas palavras juntas dizem-nos que o homem
é uma representação de Deus, que é igual a Deus em certos aspectos.‖ 42

SOBRE A REFLEXÃO DA IMAGEM DE DEUS


Gn 1.26 — ―Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança...‖

38 Irineu (175...) e Tertuliano (160-225) pensaram que ―imagem‖ e ―semelhança‖ fossem coisas

distintas. A primeira tinha a ver com as características físicas, enquanto que a segunda com a natureza
espiritual do homem;
Clemente de Alexandria (155-220) e Orígenes (185-254) pensaram que ―imagem” denotava as
características do homem como homem, enquanto que ―semelhança‖ dizia respeito ás qualidades essenciais
que não se podem perder ou cultivar;
Os escolásticos, com algumas variações, conceberam a ―imagem‖ como sendo as capacidades
intelectuais e da liberdade do homem, enquanto que ―semelhança‖ dizia respeito à justiça original. Num
desenvolvimento desse conceito, acrescentou-se posteriormente que a ―imagem‖ era um dom natural de
Deus ao homem, enquanto que a ―semelhança‖, ou a justiça original, é um dom sobrenatural que foi
acrescentado ao homem, para que fosse freio para a natureza baixa do homem. Este é o donum
superadditum.
39 Anthony Hoekema, Created in God‟s Image, (Eerdmans, 1986), p. 13.
40 Berkhof, p. 240, (edição em castelhano).
41 Hoekema, p.13.
42 Hoekema, p. 13.
50

A relevância deste verso está no fato de Deus usar a expressão ―nós‖ , uma expressão
plural que anuncia o conselho triunitário da criação do homem. ―Isto‖, diz Hoekema, ―indica
novamente a singularidade da criação do homem‖.43
Neste tópico, vamos analisar a imagem do homem teologicamente, tanto quanto possível,
baseado no ensino geral das Escrituras sobre o homem.

De que consiste o reflexo da imagem de Deus?

Reflexo 1

O homem reflete a imagem de Deus como um ser pessoal que é. Nesse sentido ele se
assemelha a Deus. Ele não pode viver isolado, como Deus não vive em solidão44, mas sempre em
relacionamento. Não existe a pessoalidade sem a noção de companheirismo. Foi por isso que
Deus fez uma companheira para o homem, pois como pessoa que ele é, não poderia ficar só.
Nessa capacidade de pessoalidade o homem reflete Aquele que o criou.

Reflexo 2

O homem reflete a imagem de Deus pela capacidade de domínio sobre as outras coisas
criadas. Esta é a indicação mais clara que a Escritura dá da imagem de Deus no homem.
Há divergência entre os teólogos sobre se o domínio da criação é parte essencial da
imagem de Deus. Alguns dizem que o domínio sobre a criação é resultado do homem ser criado à
imagem de Deus45, enquanto que outros afirmam que isso é essencial ao conceito de imagem de
Deus.46 Neste estudo, assumimos esta última posição.
O domínio do homem é parte essencial da sua natureza. A palavra domínio vem da
palavra latina dominus, que quer dizer ―Senhor‖. O homem foi colocado como o ―senhor‖ da terra.
Nesse sentido, ele é o imitador de Deus, como o Senhor absoluto e supremo. Deus, quando
estampou a Sua imagem no homem, colocou o senso de domínio sobre todas as obras da criação,
e ordenou esse domínio ao homem. Obviamente, é um domínio subordinado, não absoluto como
o do seu Senhor.
O texto de Gn 1. demonstra fartamente esta verdade:

Gn 1.26-28 — ―Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem,


conforme a nossa semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as
aves do céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os
répteis que rastejam pela terra. Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à
imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou, e lhes
disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os
peixes do mar, sobre as aves do céus, e sobre todo animal que rasteja pela terra‖.

Este texto de Gn 1.26-28 dá-nos uma idéia vaga, mas correspondente com a real, da
imagem de Deus. E o domínio do homem sobre a criação, especialmente sobre os seres vivos.

43 Hoekema, p. 12.
44 Eternamente Deus é tripessoal. Antes de haver a criação, Ele já se comunicava consigo mesmo,
nas pessoas da Trindade. A prova disto está no fato de Deus usar a frase ―Façamos o homem‖, numa espécie
de conselho, um acordo de pessoas que se entendem relacionando-se.
45 Vide J. Skinner, Critical and Exegetical Commentary on Genesis, (Nem York: Scribner, 1910), p.

32; Berkouwer, Man: The image of God, (Eerdmans, 1984), pp. 70-72.
46 Vide Berkhof, Systematics; L. Verduin, Somewhat Less Than God, (Eerdmans, 1970), pp. 27-48.
51

Quando o homem exerce devidamente esse domínio, ele está se portando como Deus, refletindo o
domínio que Deus tem sobre todas as coisas.
O Salmo 8 é uma ―linguagem poética imponente‖47 que descreve o conteúdo de Gn 1.26,
mostrando o poder e o domínio do homem. ―O homem é um rei, e não um rei sem território; o
mundo em derredor, com as obras da sabedoria criadora que o enchem, é o seu reino‖. 48 Segundo
este Salmo, o homem foi feito, por um pouco, menor do que Deus, e foi coroado de glória e de
honra, pelo domínio sobre a criação (vv.5-9). A glória e honra do homem está, na verdade, no fato
dele ser parecido com Deus no domínio sobre toda a criação. Nisto o homem reflete a imagem de
Deus, como nenhuma outra criatura racional, mesmo os próprios seres celestiais.
Esse domínio é chamado por alguns teólogos o ―mandato cultural‖, isto é, a ordenação
para o governo da terra no lugar de Deus, como representante de Deus.

Reflexo 3

O homem reflete a imagem de Deus por ter atributos que chamamos "essenciais" nele,
sem os quais ele não poderia continuar sendo o que é: Poder intelectual, afeições naturais,
liberdade moral, espiritualidade, imortalidade e o aspecto físico.
a) Por Poder Intelectual queremos dizer a faculdade do raciocínio, inteligência, e outras
capacidades intelectivas em geral, que refletem aquilo que Deus tem.
Se o homem perde as suas capacidades intelectivas, ele deixa de ser o que é. A
racionalidade é o aspecto distintivo dos outros seres criados. Estas capacidades foram afetadas,
mas não extintas pela Queda.
b) Por Afeições Naturais queremos dizer as capacidades que o homem tem de ligar-se
emocional e afetivamente a outros seres ou coisas. Deus tem essa capacidade e a passou para os
seres humanos.
c) Por Liberdade Moral queremos a capacidade que o homem tem de fazer todas as coisas
de acordo com os princípios morais que nele existem, de acordo com as leis que Deus implantou
no seu coração (Rm 2). Os teólogos também dizem que a liberdade moral está vinculada à
Libertas Naturae que o homem possui, independentemente de sua queda. Ele é capaz de agir
sempre de acordo com a sua natureza, também chamada de liberdade de agência. Essa é a
liberdade própria do ser humano, sem a qual ele não pode ser o que e.
d) Por Espiritualidade queremos dizer a natureza imaterial do homem, com a qual ele foi
criado. A Escritura diz que o homem foi feito ―alma vivente‖ (Gn 2.7). Deus é Espírito, e num certo
sentido, o homem tem traços dessa espiritualidade, embora ele não seja completo sem o corpo.
e) Por Imortalidade queremos dizer que o homem, depois de criado, não mais cessa de
existir. Não é somente a alma do homem que é imortal, mas o seu ser completo. A morte, não é
para o corpo, mas para o homem. Morte é separação, não cessação de existência. A imortalidade
é singular para Deus (1 Tm 6.16) no sentido de ser essencial para Ele. O homem a possui num
caráter secundário e derivado. A imortalidade é um dom que o homem recebe de Deus.
f) Por Aspecto Físico queremos nos reportar ao texto de Gn 9.6 que diz: ―Se alguém
derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem
segundo a sua imagem‖. Uma assassinato é a destruição do corpo, mas o texto diz que é a
destruição da imagem de Deus. ―Portanto, quando alguém mata o ser humano, não somente ele
tira a vida de uma pessoa, ele ofende o próprio Deus - o Deus que foi refletido naquele indivíduo.
Tocar na imagem de Deus é tocar no próprio Deus; matar a imagem de Deus é fazer violência ao
próprio Deus.‖49 Não podemos deduzir de Gn 9.6 que o Senhor Deus tenha uma aparência física,
mas temos que entender que quando a Escritura fala do corpo, do aspecto físico, ela está falando
do homem completo, que é a imagem de Deus. Hoekema diz com grande acerto que ―deveríamos

47 Esta é uma expressão usada por Franz Delitzsch, em seu comentário sobre o Salmo 8.7-9.
48 C. F. Keil and Franz Delitzsch, Commentary on the Old Testament, vol. 9, (Eerdmans, 1982), p.
155.
49 Hoekema, p. 16.
52

dizer não somente que o homem tem a imagem de Deus, mas que o homem é a imagem de Deus.
Do ponto-de-vista do Antigo Testamento, ser humano e carregar consigo a imagem de Deus.‖ 50
Não podemos menosprezar a idéia do corpo, como sendo algo descartável, que não faz
parte da imagem de Deus. Quando Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, o corpo
estava incluso, porque o homem total é a imagem de Deus.

Reflexo 4

O homem reflete a imagem de Deus por ter atributos que consideramos ―não essenciais” a
ele.
A rigor, o que não é essencial, é aquilo que alguém pode não ter, e mesmo assim,
continuar a ser o que é. Estes atributos dos quais vamos falar, o homem perdeu na queda e,
contudo, continuou a ser homem. O homem não poderia perder as faculdades que o fazem ser o
que é, mas perdeu as capacidades éticas de suas faculdades. Berkhof diz que o homem

―era, por natureza, dotado com aquela justiça original que é a glória
culminante da imagem de Deus e vivia, consequentemente, num estado de
santidade positiva. A perda dessa justiça significou a perda de algo que
correspondia à verdadeira natureza do homem em seu estado ideal. O homem
poderia perdê-la e continuar sendo homem, mas não poderia perdê-la e continuar
sendo homem no seu sentido ideal. Em outras palavras, sua perda significaria a
deterioração e ruína da natureza humana.‖ 51

OS ESTÁGIOS DA IMAGEM DE DEUS


Neste capítulo vamos tratar da imagem de Deus nos seus vários estágios, isto é, antes da
queda, depois da queda, depois da regeneração e no estado de glória.

1. A IMAGEM ORIGINAL
Neste ponto vamos falar de um aspecto extremamente importantíssimo, que os teólogos,
com o suporte das Escrituras, chamam de ―justiça Original‖.
Nesse tempo, antes da queda, no estado de integridade, o homem refletia perfeitamente a
imagem de Deus. Ele era capaz de viver perfeitamente de acordo com as prescrições de Deus.
Agostinho disse que ele era capaz de não pecar. A famosa frase latina posse non peccare expressa
bem a capacidade do homem em viver de acordo com a vontade preceptiva de Deus explicitada ali
no Éden.
Adão e Eva possuíam a justiça original. Esta justiça original é uma terminologia teológica,
que não é encontrada na Escritura para os nossos primeiros pais. Contudo, podemos deduzir
claramente do ensino bíblico que os nossos primeiros pais a possuíam, porque estas coisas
perdidas, são restauradas posteriormente.

Composição da Justiça Original

Essa justiça original que os nossos primeiros pais possuíram, é composta de:

a) ―Conhecimento verdadeiro‖
O NT indica que o conhecimento de Deus é restaurado no homem. Paulo, escrevendo a

50 Hoekema, p. 18.
51 Berkhof, p. 246 (edição castelhana)
53

pessoas nascidas de novo, diz: ―E vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno
conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou‖ (Cl 3.10). Este conhecimento restaurado
no homem através de Cristo (2 Co 4.6), havia sido perdido na queda. Após o Éden, o homem
perdeu a comunhão e, portanto, o conhecimento de Deus, porque foi expulso do lugar que
revelava perfeitamente a presença de Deus.

b) ―Justiça‖
Novamente, falando do novo homem, do homem renovado em Cristo, Paulo diz: ―E vos
revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade‖ (Ef
4.24). Por justiça, portanto, entendemos a conformidade com a lei divina. Antes da queda havia
uma harmonia perfeita entre a natureza moral do homem e todas as santas exigências da lei de
Deus. A regra de conduta estabelecida por Deus era cumprida perfeitamente antes da queda. A
Bíblia diz em Ec 7.29, que Deus fez o homem reto (justo), referindo-se à sua excelência moral.

c) ―Santidade‖
Aqui, santidade é sinônimo de ―retidão‖ de Ef 4.24. Essa santidade diz respeito à pureza
imaculada do ser humano quando criado. Ele possuía uma comunhão direta com o seu Criador.
A santidade não era simplesmente advinda da comunhão com Deus, mas uma qualidade moral
deles. Os nossos primeiros pais não eram apenas separados do mal, mas possuíam o bem. Eram
limpos de coração.
Esta é a imagem moral de Deus que foi perdida no Éden, mas o homem não deixou de ser
homem, por perdê-la.
O homem, portanto, por causa da imagem moral de Deus estampada nele, a justiça
original, possuía um relacionamento triplo perfeito:

Relacionamento Tríplice Perfeito

a) Relacionamento com Deus


A harmonia com Deus originalmente era patente. Ele respondia perfeitamente aos apelos
da revelação natural de Deus. A comunhão dele com Deus no Éden era perfeita. A Escritura diz
que Deus ―andava no jardim pela viração da tarde‖ (Gn 3.8). Não há erro em dizer que Adão
amava a Deus ―sobre todas as coisas‖, e dependia totalmente dEle. No sentido mais pleno da
palavra, podemos dizer que Adão vivia coram Deo, isto é, na presença de Deus.
Deus criou o homem capaz de responder ao Seu amor e providência. E foi assim no Éden,
até que o homem decidiu voluntariamente desobedecer.
Esse relacionamento perfeito com Deus determinava os outros relacionamentos. Os
relacionamentos horizontais eram diretamente relacionados com o relacionamento vertical. Do
nosso relacionamento com Deus dependem todos os outros relacionamentos.

b) Relacionamento com o semelhante


Como um resultado de andar bem com Deus, era perfeito o relacionamento de Adão com
sua mulher. Gn 2.18 diz que não era bom para o homem viver só. Por isso Deus quis uma vida
ainda melhor para ele, uma vida que incluía o relacionamento com um semelhante. Certamente,
a vida com Eva foi de perfeição relacional. Este foi o propósito de Deus para os seres humanos.
Uma pessoa, como pessoa, não pode viver em isolamento e, por isso, Deus fez a mulher, para ser
sua companheira, sua ajudadora, seu par, de tal forma que um não seria completo sem o outro.
As palavras de Gn 2.18 indicam

―que a mulher complementa o homem, suplementa-o, completa-o, é forte onde


ele pode ser fraco, supre suas deficiências preenche suas necessidades. O homem
e, portanto, incompleto sem a mulher. Isto vale tanto para o homem quanto para a
54

mulher. A mulher também é incompleta sem o homem; o homem suplementa a


mulher, complementa-a, preenche suas necessidades, e é forte onde ela é fraca.‖ 52

O casamento indica o melhor relacionamento que pode haver entre dois seres humanos, e
ilustra como podem ser os outros relacionamentos com os nossos semelhantes. O que queremos
dizer é que o ser humano não é completo sozinho. Ele precisa de outros seres humanos para se
realizar. O ser humano não alcança a sua plena satisfação sem o relacionamento, porque Deus
nos fez pessoas, e estas não podem viver em isolamento. Somos seres psicológicos, afetivos e
sociais, diferentemente de outros seres criados. Não podemos viver sem as afeições do
relacionamento. E os primeiros seres humanos viviam em perfeito relacionamento entre si, antes
da queda. Quando Jesus estava tratando da quebra do casamento, do divórcio, em Mt 19, Ele
disse, em palavras bem claras: ―Não foi assim desde o princípio‖. Isso quer dizer que, no Éden,
havia um perfeito relacionamento entre os seres humanos.

c) Relacionamento com a natureza


Este também era perfeito. Gn 1.26-28 descreve como Deus quis que os seres humanos
vivessem com a natureza.
Deus colocou o homem no mundo para viver em perfeita harmonia com a sua criação.
Deus o colocou para ter domínio sobre a vida vegetal e animal. E isto o que está claro em Gn
1.28-29. Tudo estava colocado para o bem-estar do homem, que a tudo dominava. A natureza foi
feita para servir ao homem, e este deveria viver em perfeita harmonia com ela, cuidando dela. Do
cuidado dela dependeria toda a sua subsistência.

―O homem é chamado por Deus para desenvolver todas as potencialidades


encontradas na natureza e na raça humana como um todo. Ele deve procurar
desenvolver não só a agricultura, horticultura, afazeres domésticos com os
animais, mas também a ciência, tecnologia e arte. Em outras palavras, nós temos
aqui o que e freqüentemente chamado de mandato cultural: a ordem para
desenvolver uma cultura que glorifica a Deus.‖ 53

Mas não foi assim até o fim. O pecado fez com que essa harmonia fosse quebrada, e
subsistência do homem ficou prejudicada pela desarmonia com a natureza.

Posse Non Peccare

O posse non peccare de Agostinho, era a condição natural do homem antes da queda. Ele
poderia perfeitamente viver sem transgredir as leis de Deus, porque ele possuía a habilidade para
tal. Ele não possuía natureza pecaminosa, e nada no seu interior que o levasse a pecar. A
obediência plena era perfeitamente possível para Ele. Ele poderia agir perfeitamente de acordo
com a sua natureza. Os escolásticos chamaram essa condição de libertas naturae. Adão possuía
o potentia non peccandi. No jardim, enquanto não pecou, Adão, portanto, refletia perfeitamente a
imagem de Deus, com a qual havia sido criado.
Mas o posse non peccare, não era uma condição imutável. Hoekema diz que –

―a integridade na qual Adão e Eva existiram, não foi um estado de perfeição


consumada e imutável. Para ser exato, o homem foi criado à imagem de Deus no
começo, mas ele não era ainda um ―produto terminado‖. Ele ainda necessitava
crescer e ser testado. Deus desejou determinar se o homem seria obediente a Ele

52 Hoekema, p. 77.
53 Hoekema, p. 79.
55

livre e voluntariamente, em face de real possibilidade de desobediência. Por esta


razão, Deus pôs Adão à prova (Gn 2.16-17). Se Adão e Eva houvessem guardado
aquela ordem, quem sabe igual a quê seria a história humana. Mas é triste dizer,
eles desobedeceram a ordem, e lançaram-se a si mesmos, e toda a raça humana
que veio depois, no estado de pecaminosidade.‖ 54

É esta também a opinião da Confissão de Fé de Westminster: ―O homem, em seu estado de


inocência, tinha a liberdade e o poder de querer e fazer aquilo que é bom e agradável a Deus, mas
mudavelmente, de sorte que pudesse decair dessa liberdade e poder.‖ (IX, 2)
Adão foi criado de tal forma que pudesse cair desse estado. E foi exatamente isso o que
aconteceu, com todas as suas conseqüências.

2. A IMAGEM DESFIGURADA

A imagem de Deus permanece depois da queda, mesmo embora não vejamos mais os
vestígios da justiça original. Todas as suas capacidades intelectuais, afetivas, sua liberdade
moral, seu domínio sobre a criação, etc., foram afetados pela Queda, mas mesmo depois da
Queda, é dito que o homem é a imagem de Deus (Tg 3.9 e Gn 9.6).
A condição da humanidade agora caída, portanto, é a da impossibilidade de não pecar.
Neste estado o non posse non peccare é uma realidade indiscutível. Não há forças no pecador
para fugir do pecado. Nesse estado, é também dito que o homem tem impotentia bene agendi, isto
é, ele é incapaz de fazer o bem.
Calvino diz ―mesmo embora concedamos que a imagem de Deus não tenha sido
totalmente aniquilada e destruída no homem, ela foi tão corrompida que, qualquer coisa que
permaneça, é uma deformidade horrenda‖. 55 Possivelmente pensando na justiça original,
Calvino acrescenta:

―Agora, a imagem de Deus é a excelência perfeita da natureza humana que


brilhava em Adão antes da queda, mas que subseqüentemente foi viciada e quase
apagada, de tal forma que nada permanece após a ruína, exceto que ela e confusa,
mutilada e doentia.‖56

Com a queda, a imagem ficou pervertida, e o homem quebrou os relacionamentos com os


quais Deus o havia dotado: O homem quebrou o relacionamento com Deus, com o seu
semelhante e com a natureza.

A Quebra do Relacionamento Tríplice

a) O Homem quebrou o relacionamento com Deus


Depois da queda, ele passou a adorar a criatura ao invés do Criador (Rm 1.20-23). A
idolatria antiga era bastante primitiva, pois o homem adorava estátuas de barro, madeira, coisas
bastante rudimentares. Hoje, não existe diferença de idolatria, apenas a confecção mais
elaborada dos ídolos modernos. Hoje os homens fazem outros tipos de idolatria sem se
ajoelharem literalmente diante delas, mas têm o dinheiro, a fama, o poder, os prazeres, as
posses, etc., como objetos de culto. Não podemos, contudo, nos esquecer, de que mesmo nesta

54 Hoekema, p. 83.
55 Institutes, I, xv, 4.
56 Institutes, I, xv, 4.
56

nossa sociedade contemporânea, ainda há idolatria à moda antiga, ou seja, o curvar-se diante de
ídolos feitos à imagem e semelhança de homens e animais.
O homem se esqueceu dAquele de quem foi feito imagem e semelhança.

b) O homem quebrou o relacionamento com seu semelhante


Ao invés de ser bênção para o seu semelhante, agora o homem perdeu a verdadeira
comunhão com eles. Hoekema diz que ao invés de ser útil para eles, os ―homens caídos agora
usam o dom do relacionamento para manipular os outros como ferramentas para os seus
propósitos egoístas. Ele usa o dom da linguagem para falar mentiras ao invés da verdade, para
ferir o seu vizinho ao invés de ajudá-lo.‖57

Os relacionamentos entre os caídos tornou-se altamente prejudicado. O amor não mais é


a tônica, e sim o ódio. O real interesse pelo bem estar dos outros tornou-se em indiferença e
descaso. Apenas nos interessamos pelos que são do sangue, e ainda assim quando eles não nos
decepcionam. Ninguém ama ninguém, porque a imagem de Deus está terrivelmente desfigurada.
Se as ciências dos homens estudassem o homem antes da queda, elas haveriam de
entender muito melhor os relacionamentos dos homens pós-queda. As ciências humanas que
não prestam atenção ao que Deus diz dos homens na Escritura, não são sábias, e podem
perfeitamente ser chamadas não-científicas, porque sempre ficarão sem analisar os verdadeiros
problemas dos homens. As antropologias que não estudam o homem à luz da revelação divina,
não são simplesmente não-cristãs, mas anti-cristãs.

―Todas as concepções do homem que não levam em conta o ponto-de-partida


da doutrina da criação e, que, portanto, olham para ele como um ser autônomo e
que pode chegar ao que é verdadeiro e reto totalmente à parte de Deus, ou da
revelação de Deus na Escritura, devem ser rejeitadas como falsas.‖ 58

c) O homem quebrou o relacionamento com a natureza


Como os outros dois relacionamentos, este também é fácil de ser percebido. O homem foi
colocado no mundo para ser o guardador da terra que belamente Deus havia criado, mas depois
da queda, o mundo vem sendo estragado e suas riquezas tem sido usadas para propósitos
tremendamente egoístas. A exploração das riquezas tem sido somente para o enriquecimento de
alguns mais ―espertos‖, em prejuízo da grande maioria de desfavorecidos. A natureza que deveria
ser para o bem de toda a humanidade, tem sido estragada para o beneficio de alguns
exploradores poderosos. Isso é tremendamente triste, porque o homem está se alienando de seu
próprio habitat. Modernamente, o homem pensa no futuro, mas não sem pensar antes em seus
próprios interesses, sem levar em conta os interesses do Criador. O interesse da humanidade
está aquém de Seus próprios interesses.
Embora possamos ver resquícios da imagem de Deus, é fácil perceber que ela está bem
distorcida, pervertida, desfigurada. E o homem revela muito bem essa condição de pecador com
a imagem de Deus desfigurada. Por isso uma grande Providência foi tomada para recuperar
aquilo que havia sido quase totalmente perdido.

Non Posse Non Peccare

Nesta altura o homem perdeu a capacidade de fazer o bem (o que é agradável a Deus).
Agora, escravo do pecado, faz com que o pecado seja uma necessidade nele. A condição

57 In God‘s Image, p. 84.


58 Hoekema, p. 76.
57

pecaminosa dele o obriga a pecar porque é a única coisa que ele sabe fazer, pois de agora em
diante, como um livre-agente que é, só poderá fazer o que está de acordo com a sua natureza.
Como ele só possui a natureza pecaminosa, ele só fará o que lhe é próprio. Por isso que ele não
tem capacidade de viver sem pecar. Daí a expressão latina non posse non peccare.

3. A IMAGEM RESTAURADA

Cristo Jesus é considerado na Escritura a imagem perfeita de Deus. Em vários lugares é


dito que Ele reflete Seu Pai de maneira perfeita.59
Por isso é dito na Escritura que Deus nos predestinou para sermos ―conformes à imagem‖
de Jesus Cristo. Ser igual a Jesus é ter de volta a imagem de Deus.

Rm 8.29 — ―Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou


para serem conformes à imagem de Seu Filho, a fim de que Ele seja o primogênito
entre muitos irmãos.‖

Os eleitos foram predestinados para se parecerem com Jesus Cristo, para refletirem a Sua
perfeita varonilidade, a humanidade plena de Jesus Cristo. Este texto de Romanos indica que
alguma coisa errada aconteceu com a imagem de Deus no homem após a queda, imagem essa
que precisava ser refeita. A conformidade com a imagem de Jesus Cristo é o mesmo que ser feito
à imagem de Deus. Jesus é a imagem e o reflexo exato do ser de Deus. A meta final da obra
redentora de Cristo é devolver ao homem aquilo que foi perdido na queda, isto é, a imagem de
Deus. Ser conformado à imagem de Jesus Cristo, é ser conformado à imagem de Deus. E é para
isso que fomos destinados de antemão. A completação da obra da redenção será o sermos
semelhantes a Cristo, nosso Redentor. Esta restauração da imagem já começou, mas ainda não
está completada. Ainda temos sementes do pecado em nós que impedem que a imagem de Deus
seja completamente vista em nós. À medida que Deus completa a sua salvação em nós,
restaurando-nos, Sua imagem será plenamente vista, e Cristo será visto em nós.

2 Co 3.18 — ―E todos nós com o rosto desvendado, contemplando, como por


espelho (katoptrizo/menoi) a glória do Senhor, somos transformados de glória em
glória, na Sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espirito.‖

No tempo do VT as pessoas se aproximavam de Deus com o rosto vendado, para não


verem a glória de Deus. Opostamente, nos tempos do NT, as pessoas não mais precisam tapar os
seus rostos, como medo de verem a glória de Deus. Essa glória de Deus, de alguma forma, vai ser
revelada na vida dos crentes, que estão sendo transformados pela obra redentora de Cristo, para
refletirem, de novo, a imagem de Deus que foi desfigurada na queda.
Perceba-se que essa transformação é paulatina, pouco a pouco, ―transformados de glória
em glória‖, até que reflitamos perfeitamente, amanhã, a glória de Jesus Cristo. Assim como
Cristo reflete a glória de Seu Pai, como Ele é a expressão exata do Seu Ser, também nós
haveremos de refletir perfeitamente a imagem daquele que nos redimiu.
Embora tenhamos a imagem do Senhor restaurada em nós, ainda não podemos vê-la
plenamente, porque há embaraços, há ainda pecaminosidade em nosso ser. Mas não podemos
negar que, de algum modo, já refletimos algo de nosso Senhor. O texto em português diz que nós
―com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor...‖ - Essa
tradução pode, às vezes, dar uma interpretação falseada. Ela pode dar-nos a impressão de que
por contemplarmos a glória é que somos transformados à imagem de Cristo. A idéia não é bem
esta. A melhor tradução do texto diz que nós estamos como que com ―o rosto desvendado,
refletindo (katoptrizo/menoi) a glória do Senhor, somos transformados... na sua própria imagem‖. Dr.
Hoekema diz que

59 Cl 1.15; Hb 1.3
58

―A palavra grega é derivada de katoptron, que significa ―espelho‖. Literalmente,


portanto, katoptrizo/menoi significa espelhando. A palavra poderia significar tanto
―contemplando como num espelho‖ como ―refletindo como um espelho‖. Eu prefiro
o segundo significado, visto que ele se encaixa tão bem no contexto. A face de
Moisés estava refletindo a glória de Deus, após ele ter estado face a face, em
comunhão com Ele. Visto que esta glória estava brilhante demais para os
Israelitas olharem para ela, .Moisés teve que esconder a face. Mas hoje, Paulo
aponta, nós podemos refletir a glória do Senhor Jesus Cristo, com as faces
desvendadas. E deste modo que vemos a superioridade do novo pacto sobre o
antigo.‖60

O processo de transformação pelo qual passamos, até que reflitamos perfeitamente a


imagem de Cristo, é paulatino, pois o verbo grego metamorfou/meta (―estamos sendo transformados‖)
indica essa idéia. O verbo dá a idéia de um processo continuo, ainda não acabado. Já refletimos
a imagem de Cristo, mas ainda não fomos transformados completamente a sua imagem.
O primeiro texto analisado, o de Rm 8.29, aponta a meta de Deus para nós - destinados
para refletir a imagem de Cristo; o segundo texto, o de 2 Co 3.18, indica o caráter progressivo
dessa transformação. Embora o Pai nos tenha destinado para sermos conformes à imagem de
Jesus, é dito que o Espírito nos transforma nesse continuado processo.
Com a imagem de Deus restaurada em nós, Cristo restaura também em nós os
relacionamentos perdidos:

a) Restaura a nossa comunhão com Deus;

b) Restaura a nossa comunhão com os semelhantes;

c) Restaura a nossa comunhão com a natureza.

Posse non peccare (?)

4. A IMAGEM APERFEIÇOADA

Os textos analisados na seção anterior, Rm 8.29 e 2 Co 3.18 indicam que a queda causou
aos homens a necessidade de serem transformados para terem de volta aquilo que perderam
quando da sua criação. A meta final de Deus para os redimidos é a perfeição de Cristo.
Que esta condição se dará somente depois da nossa ressurreição, está claro de alguns
textos da Escritura.

1 Co 15.49 — ―E, assim como trouxemos a imagem do que é terreno, devemos


trazer também a imagem do celestial‖.

―Terreno‖ aqui se refere ao primeiro Adão. ―Celestial‖ refere-se ao segundo Adão, Jesus
Cristo. O contexto dessa passagem está no ensino sobre a ressurreição. Somente depois da
completação de nossa salvação é que refletiremos a perfeição da imagem de Jesus Cristo. A
glorificação do homem é o estado final da redenção do pecador por quem Cristo morreu. Somente
no estado de glorificação é que o remido refletirá perfeitamente a imagem de Cristo. Por
enquanto, ele ainda está no processo, mas então, o processo já estará terminado. Nesse tempo,
até o corpo refletirá aquilo que Cristo já é. Teremos um corpo semelhante ao corpo de Sua glória

60 Anthony Hoekema, In God‟s Image, p. 24.


59

(Fp 3.21).
Hoje não somos o que seremos, mas quando Cristo se manifestar, isto é, na completação
de nossa salvação, haveremos de refletir perfeitamente Jesus Cristo. Por essa razão, João diz:
―ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando Ele se manifestar,
seremos semelhantes a Ele, porque havemos de vê-lo como Ele é.‖ (1 Jo 3.2). A idéia de imagem
de Cristo, está perfeitamente delineada nesse verso. Após a nossa ressurreição, haveremos de
exibir tudo aquilo para o que fomos destinados de antemão.

Non Posse Peccare

A reflexão da imagem de Cristo, nessa época, será vista na capacidade de não pecar. Não
teremos a impecabilidade61 de Cristo, porque continuaremos a ser homens, mas o Senhor Deus
nos livrará da presença do pecado e o non posse peccare de Agostinho, será uma grande e
maravilhosa realidade.

A IMAGEM DE DEUS NA TEOLOGIA CRISTÃ


1) Catolicismo
A justiça original dentro do catolicismo é uma espécie de donum superadditum, algo que
Deus acresceu ao homem depois da sua criação. O homem foi criado com uma justiça natural
(justitia naturalis), que é composta dos dons naturais que recebeu de Deus. Mas ainda assim,
com a justiça natural, o homem estava sujeito a paixões baixas e apetites indevidos. Esta
tendência é chamada concupiscência, que em si mesma, não é pecado, mas oferece elementos
para acontecer o pecado. Essa concupiscência é uma espécie de combustível para o pecado,
quando a ação se torna voluntária. Para refrear impulsos pecaminosos, Deus acrescentou, então,
aos dons naturais os dons sobrenaturais (dona supernaturalia), que inclui a justiça sobrenatural.
Este é o donum superadditum. Originalmente, portanto, a justiça original não fazia parte do
homem, mas foi acrescentada como uma recompensa pelo uso dos dons naturais. Mas esses
dons sobrenaturais, incluindo a justiça original, foram perdidos com a queda.
A dedução clara desse ensino é que o homem hoje é exatamente o mesmo que Adão antes
de receber a justiça original, ainda que agora tenha uma tendência muito mais forte em direção
ao mal, especialmente porque não tem o freio da justiça original, que é o donum superadditum.

2) Socinianismo
Segundo os socinianos, a imagem de Deus consistia, quase que unicamente, do domínio
do homem sobre os outros elementos da criação.
Os socinianos, assim como os arminianos primitivos, descartam qualquer possibilidade
de o homem ter sido criado num estado de santidade. Eles não criam que o homem foi feito
pecador, mas não criam que a justiça original fizesse parte deles na criação. Eles apenas criam
que o homem foi criado num estado de neutralidade moral, capacitado com uma vontade livre,
para poder ir para qualquer direção. O homem era inocente, sem pecado, mas não santo. Por
essa razão, eles colocaram a imagem de Deus apenas na esfera do domínio sobre a criação

3) Luteranismo
Os luteranos, às vezes, tentam distinguir a imagem de Deus num sentido mais estrito e
num mais amplo. No sentido mais estrito, o luteranismo viu a imagem de Deus como sendo a

61 Impecabilidade que advém do fato de Sua natureza humana estar inseparavelmente unida á

natureza divina.
60

justiça original. Sendo assim, O homem perdeu totalmente a imagem de Deus, por causa do
pecado. No sentido mais amplo, a existência do intelecto e da vontade, que ainda existem no
homem, que o diferem dos outros seres animais, nada tem a ver com o religioso ou teológico. Por
essa razão Piepper diz que ―chamar a imagem de Deus porque ele possue razão e vontade é não
levar em consideração o que o homem está para se tornar em Cristo.‖ 62 Portanto, é muito mais
comum para os luteranos enfatizarem o aspecto justiça original do que os outros aspectos
geralmente considerados dentro da teologia Reformada.

―Os teólogos luteranos são concordes em que imagem de Deus, que consiste
no conhecimento de Deus, santidade da vontade, está faltando no homem depois
da queda... Eles diferem, contudo, sobre a questão se em Gn 9.6 a imagem divina
é ainda atribuída ao homem após a Queda.‖ 63

Lutero preferiu esta interpretação, de que a queda aniquilou a imagem de Deus, em seu
comentário sobre Gn 9.6.

4) Calvinismo
Há idéias diferentes entre os vários teólogos Reformados: Robert Dabney insiste ―que a
imagem de Deus não consiste de algo absolutamente essencial à natureza do homem, mas
unicamente em alguns acidentes”.64 É provável que Dabney estivesse pensando aqui somente na
justiça original.
Alguns teólogos Reformados limitam a imagem de Deus apenas à justiça original,
enquanto que outros incluem toda a natureza racional e moral. Outros ainda incluem o corpo
como parte da imagem de Deus, como já vimos.
De qualquer modo, o conceito de imagem de Deus é extremamente importante para a
teologia reformada, porque essa imagem é o que há de mais distintivo no homem em sua relação
com Deus. O conceito reformado de imagem de Deus é muito mais abrangente e inclusivo do que
o luterano e o católico romano. O homem não perdeu a imagem de Deus, pois se a tivesse
perdido, haveria deixado de ser o que é — homem.

62 Francis Pieper, Christian Dogmatics, vol. 1, (Saint Louis: Concordia Publishing House, 1950), p.
520.
63 Francis Pieper, Christian Dogmatics, vol. 1, (Saint Louis: Concordia Publishing House, 1950), p.
518-19.
64 Systematic and Polemic Theology, p.293.
61

CAPÍTULO VI

O HOMEM NO PACTO DAS OBRAS

Teologia do Pacto ou Teologia Federal65


A Teologia Reformada é conhecida como a Teologia do Pacto, porque desde os seus
primórdios, creu-se no estabelecimento de pactos da parte de Deus. Do começo ao fim, a
Escritura mostra que Deus estabeleceu relacionamentos com os homens através de pactos. As
alianças de Deus com Israel é um tema dominante através de toda a Escritura.
Deus estabeleceu pactos para relacionar-se amorosamente com as Suas criaturas,
porque, doutra forma, não poderia haver ligação entre Ele e elas. Eis o que diz a Confissão de Fé
de Westminster:

―Tão grande é a distância entre Deus e a criatura, que, embora as criaturas


racionais lhe devam obediência como ao seu Criador, nunca poderiam fruir nada
dele como bem-aventurança e recompensa, senão por alguma voluntária
condescendência da parte de Deus, a qual foi ele servido significar por meio de um
pacto.‖ (VII, 1).

O SIGNIFICADO DO TERMO “PACTO”


Não é simples definir em nossa língua o termo hebraico tyir:b (berith), que traduzimos
como ―pacto‖. Etimologicamente é muito improvável que consigamos o seu significado
fundamental. Robertson diz que ―investigações extensivas na etimologia do termo do Antigo
Testamento para o termo ―pacto‖ (tyir:b) têm se provado inconclusivas na determinação do
significado da palavra.‖66 Ela tem muitas conotações dadas na própria Escritura.
Robertson define que ―pacto é um vínculo de sangue administrado soberanamente‖.67 Ele
sempre contém a idéia de vínculo ou relacionamento, antes que a idéia de ―obrigação‖ ou
―compromisso‖. McCoy diz:

―Enquanto os pactos divinos envolvem invariavelmente obrigações, o


propósito definitivo deles vai além do cumprimento garantido de um dever. Ao
invés disso, é uma interrelação pessoal de Deus com Seu povo que está no coração
do pacto. Este conceito do coração do pacto foi percebido na história dos
investigadores do pacto logo cedo no tempo de Coceius, como também foi visto por

65 O termo Federal vem do latin 'foedus", que significa "pacto". A doutrina dofoedus operum

pressupõe que Adão conhecia a lei moral de Deus, tanto a da natureza (Iex naturalis que foi impressa no seu
coração desde sua criação) quanto àquela que foi expressamente ordenada por Deus (Iex paradísiaca, lei do
Paraíso).
66 O Palmer Robertson, The Christ of Covenants, (P&R, 1982), p 5.
67 Ibid., p. 4
62

sua ênfase sobre o efeito de um pacto como o que estabelece a paz entre as
partes.‖68

Portanto, o estabelecimento de pacto é sempre o estabelecimento de um relacionamento


―em conexão com‖ ou ―entre‖ pessoas. O elemento essencial de um pacto é que alguém fica
vinculado a outrem pelo estabelecimento de um compromisso. O vinculo leva a obrigações
graciosas da parte de Deus para com o homem, e de uma resposta obediente da parte deste
último.
Essas obrigações ou compromissos são decorrentes do vinculo estabelecido. Por essa
razão, muitas vezes há a menção de ―juramentos‖69 nos pactos divinos. Um pacto faz com que
uma pessoa seja comprometida com outra. Isto mostra que um pacto é em essência um vinculo.
Robertson diz:

A Escritura sugere não meramente que um pacto geralmente contém um


juramento. Ao invés disso, pode ser afirmado que um pacto é um juramento. O
compromisso da relação pactual liga as pessoas com a solidariedade equivalente
aos resultados alcançados pelo processo de uma estabelecimento formal de
juramento. ―Juramento‖ adequadamente capta a relação efetuada pelo ―pacto‖ de
tal forma que os termos podem ser permutáveis (cf 51 89.3, 34 sgts; 105.8-10). O
processo de formalização da tomada de juramento pode estar ou não presentes.
Mas o compromisso pactual inevitavelmente resultará numa obrigação muito
solene.70

A quase identidade entre os termos pacto e juramento mostram estas duas palavras
enfatizam a idéia de relacionamento, de estreito vinculo, que é parte essencial do que a Escritura
chama de Pacto. As partes contratantes de um pacto estão profundamente comprometidas entre
si.
Na sua definição Robertson disse que pacto é "vinculko em sangue admistrado
soberanamente." A idéia de sangue é porque pacto sempre envolve uma questão de vida ou morte,
e quase que sempre mostra o derramamento de sangue de uma vitima.

O NOME “PACTO DAS OBRAS”


Vários nomes têm sido dados ao relacionamento entre Deus e o homem no Éden: Pacto da
Criação, Pacto da Natureza, Pacto Edênico, Pacto Adâmico, mas o que prevaleceu foi o nome
Pacto das obras. Embora não me agrade pessoalmente desse nome, vou usá-lo porque é este que
os nossos símbolos de fé usam.
Portanto, o primeiro dos pactos estabelecido historicamente, segundo os símbolos de
Westminster, é o pacto de obras.

―O primeiro pacto feito como o homem era um pacto de Obras; nesse pacto foi
a vida prometida a Adão e nele à sua posteridade, sob a condição de perfeita

68 Ver Charles Sherwood McCoy, The Covenant Theology of Johannes Coceius, (New Haven, 1965),

p. 166), citado por Robertson, p. 5, nota de rodapé 4.


69 Em quase todos os pactos estabelecidos por Deus há a menção de ―juramentos‖ de Deus, embora

esses juramentos formais não devam ser considerados como conditio síne qua non dos pactos. Robertson diz
que ―embora o juramento apareça repetidamente em relação a um pacto, não está claro que uma cerimonia
formal de tomada de juramento seja absolutamente essencial para o estabelecimento de um relacionamento
de pacto‖ Robertson, p. 6, nota de rodapé 7).
70 Robertson, p. 6, nota de rodapé 7.
63

obediência pessoal.‖ (VII, 2)

Nesse pacto de Obras Deus viu Adão, não como um indivíduo simplesmente, mas como o
―cabeça federal‖ de toda a humanidade, debaixo da obrigação de obedecer as leis estabelecidas
por Deus através da natureza e das Suas asseverações verbais. Tem sido chamado pacto das
obras para enfatizar a responsabilidade de Adão.

EVIDÊNCIA BÍBLICA DO PACTO DAS OBRAS


O termo ―pacto‖ (tyir:b) não aparece nos eventos do Éden. Isto tem dado motivo a alguns
teólogos Reformados para desistirem da teologia do pacto, tão fortemente sustentada pela
tradição Reformada. Contudo, há uma passagem na Escritura que considera o que se passou
entre Deus e Adão, como sendo um pacto. Oséias 6.7 diz: ―Mas eles transgrediram o pacto (tyir:b),
como Adão ({fdf):K); eles se portaram aleivosamente contra mim.‖
Alguns teólogos têm tentado dar uma outra interpretação a este texto, alterando o sentido
de ―como Adão‖ para ―em Adão‖. ―Adão‖ significaria o nome de uma cidade. Portanto, a idéia é a
de que os homens do tempo de Oséias transgrediram o pacto como os homens de Adão fizeram.
Isso altera o sentido do texto, invalidando assim, a doutrina do pacto lá no Éden. Esta
interpretação dificilmente encontraria apoio. Robertson diz:

―Somente uma pura suposição pode proporcionar uma ocasião concreta de


pecado nacional em Adão, localizada no Jordão, cerca de 12 milhas ao norte de
Jericó. A narrativa de um transbordamento do Jordão a Adão não faz qualquer
menção de um pecado da parte de Israel.‖ 71

Essa é uma interpretação tendenciosa. Há um único registro de uma cidade chamada


―Adão‖, mas não há nenhuma menção de os homens terem violado o pacto de Deus. ―Além disso,
esta interpretação pareceria requerer uma emenda ao texto massorético. Este verso não deve ser
traduzido ―em Adão‖, mas ―como Adão‖. 72 Há outros dois versos na Escritura que possuem a
mesma conotação e são traduzidos ―como Adão‖ (Jó 31.33 e 51 82.6-7), sem que alguém tente
afirmar que Adão ali signifique um lugar ou cidade.
Uma outra possibilidade de interpretação tem sido esta: que Israel tenha quebrado o
pacto ―como homem‖ ou ―igual a raça‖. 73 De qualquer forma, esta interpretação tem que estar
ligada à queda da raça ou do homem, o que não faz muita diferença se comparada com a
interpretação tradicional que assumimos neste trabalho.
Tradicionalmente, os teólogos do pacto, sejam eles Reformados ou não, têm traduzido as
palavras hebraicas {fdf):K (―como Adão‖) relacionando-as ao pecado do primeiro homem. Esta é a
tradução que oferece menos dificuldade que as outras. ―Como Adão transgrediu os arranjos
pactuais estabelecidos pela criação, assim Israel tem transgredido o pacto designado no Sinai‖. 74
De qualquer forma, as duas últimas interpretações falam de um pacto que foi quebrado
por um Adão indivíduo, ou por um Adão representativo da raça. Robertson diz:

―Se ‗Adão‘ é tomado genericamente, o termo se referiria a uma obrigação


pactual mais ampla que recai sobre o homem que lhe dá uma responsabilidade
solene no mundo de Deus pela criação. Em qualquer caso, Oséias 6.7 pareceria

71 O. Palmer Robertson, The Christ of the Covenants, (P&R, 1982), p. 22. O texto ao qual Palmer

Robertson se refere de um transbordamento do Jordão está registrado em Josué 3. 15-16.


72 Ibid., p. 22.
73 Robertson argumenta que a Septuaginta traduz a expressão hebraica mfdf):K como w(j a)/nqrwpoj, o

que favorecia esta interpretação. Calvino também sugere esta interpretação em seu Commentaries on the
Twelve Minor Prophets, (Edinburgh, 1846), 1:233, 235. (Robertson, p. 23, nota de rodapé 4).
74 Ibid., p. 23.
64

referir-se a uma terminologia pactual na relação de Deus com o homem


estabelecida pela criação.‖75

Ninguém duvida do pacto da graça, porque ele está afirmado explicitamente nas
Escrituras, mas porque não aparece explicitamente em Gênesis, há os que tentam destruir a
noção de pacto ali. Charles Hodge, um partidário da teologia do pacto, coloca nestes termos a sua
crença no pacto de obras feito entre Deus e Adão, por comparação ao que aconteceu no pacto da
graça:

―Embora a palavra pacto não seja usada em Gênesis… o plano de salvação é


contentemente representado como o novo pacto, novo, não meramente em
antítese ao que foi feito no Sinai, mas novo em referência a todas os pactos legais
quaisquer que fossem.. Está claro que a Bíblia representa o arranjo feito com Adão
como uma transação verdadeiramente federal. A Escritura não conhece nenhum
outro além dos dois métodos de se obter a vida eterna: um é aquele que exige
perfeita obediência, e o outro é aquele que exige fé. Se o último é chamado pacto, o
primeiro é declarado ser da mesma natureza.‖ 76

Portanto, queiramos reconhecer ou não, a idéia de pacto de obras está presente no


Gênesis, embora ali não esteja o termo próprio.

O PACTO DAS OBRAS E A LEI DE DEUS


Não há como se questionar que Deus deu lei para Adão. A lei foi dada para Adão como um
principio regulativo para a sua vida. Ela declara ao homem o que é bom e o que não é bom e, por
virtude de ser de autoridade divina, ela obriga o homem à obediência.
A lei dada no Éden indica que o homem é um ser moral, não um ser moralmente neutro
ou indiferente.
Deus deu duas espécies de lei a Adão no Éden: a lei da natureza e a lei expressa em
palavras.

1. Deus deu ao homem uma lei natural.


Paulo nos diz que há uma lei impressa nos corações dos homens desde que foram criados
(Rm 2.14-15). Esta é a lei da natureza. Essas leis não foram escritas nos corações dos homens
depois da Queda, mas na criação do homem. Se o homem depois da Queda ainda possuem essas
leis, quanto mais o homem antes da Queda! Essas leis fazem parte da natureza constitucional do
homem, e o tornam um ser absolutamente moral, com padrões a serem seguidos.
Essas leis naturais refletem não somente o caráter moral de Adão, mas também a
natureza de Deus. A natureza de ambos exige a presença de leis, porque um reflete o primeiro
reflete a imagem do segundo. Se Deus é um ser moral, o homem também tem que ser e, portanto,
há algumas normas dadas por Deus que refletem a moralidade do Criador na criatura. Por
virtude de Sua natureza, Deus está acima da criatura e tem a prerrogativa de estabelecer leis
para ser obedecido. Deus é soberano e o homem é criatura dependente dEle em todas as coisas,
sendo sujeito a Ele em tudo.
Essas leis naturais são uma sombra daquilo que foi posteriormente dado em forma
escrita no tempo de Moisés. Elas refletem os 10 Mandamentos quase que na sua inteireza. Essas

75 Ibid., p. 24.
76 Systematic Theology, vol. II, 117.
65

leis naturais são perfeitas, e Adão estava em posse dela. Ainda é possível perceber a impressão
delas na alma humana, embora os homens tenham sido afetados moralmente pela Queda,
mesmo os homens que vivem numa civilização muito distante daquela que conhecemos como
―civilização cristã ou ocidental‖. Todos eles têm noções básicas das leis morais de Deus, a quem
devem obedecer. Após a Queda, Paulo diz, essa lei tornou-se enferma por causa da natureza
pecaminosa do homem que obsta o homem de obedecê-la plenamente (Rm 8.3). A
inadequacidade não é da lei, mas daquele que se torna incapaz de obedecê-la, mas há algo claro
no texto: essa lei, se obedecida, concederia vida, porque ela é espiritual.
Portanto, desde a sua criação, Adão tinha deveres de obediência, embora estas leis
impressas não revelem um caráter pactual.

2. Deus deu ao homem uma lei expressa em palavras.


Elas estão afirmadas nas proibições de Gn 2.15-17. A lei natural dada na criação
expressão o caráter moral de Deus. Estas leis são a expressão da Sua soberania que agora é
formalmente declarada. Elas são expressão de Sua soberania porque Ele não precisava dá-las se
não quisesse. Ao homem foi ordenado o cuidado do jardim e a proibição de não comer da árvore
do conhecimento do bem e do mal.
Por quê Deus deu esta ordem a Adão? Se Deus não a houvesse dado, Adão não teria
pecado. A resposta a esta objeção é que Deus não costuma dar justificativa de todos os Seus atos,
e Ele agiu assim conforme o conselho da Sua vontade. Além disso, uma lei não significa
necessariamente que alguém deva desobedecê-la.
De uma coisa podemos todos estar absolutamente certos: Com essa ordem Deus declara
formalmente a Sua soberania, que Ele era o Senhor, e que Ele requeria a obediência da criatura
de maneira inequívoca, sem que esta lhe pedisse qualquer justificativa. Era dever do homem
obedecer à lei e fazer a vontade de Deus desejosamente, pois esta era a maneira de continuar em
boas relações com o Criador. A alegria e a santa comunhão só poderiam continuar e tornar-se
ainda num grau maior e definitivo com a continuada obediência da lei. Isto significava que o
homem deveria estar contente com aquilo que o Criador lhe havia dado até então, sem desejar
qualquer coisa superior a ela.
A resposta à pergunta feita logo acima não pode, portanto, ser respondida, a menos que a
entendemos à luz da soberania divina, que faz todas as coisas segundo o conselho da sua
vontade.

OS ELEMENTOS DO PACTO DAS OBRAS


Embora no Éden não apareça o termo, os elementos do pacto estão presentes nos atos
reveladores de Deus. Há as partes contratantes, há a promessa de vida sob a condição de
obediência, e há a penalidade fixada no caso da desobediência à lei estabelecida.

1. Partes Contratantes
Sempre há o envolvimento de duas partes num pacto. Neste caso são Deus, como
soberano e supremo Senhor e Adão. Este foi feito à imagem e semelhança dAquele. Foi tornado
cabeça e representante de toda sua progênie.
Deus prescreveu todas as coisas a Adão com poder absoluto, de forma que todas as
condições e promessas do pacto foram unilaterais, estando Adão apenas na posição de aceitar e
obedecer todas as exigências de Deus. Deus estabelece todas as condições virtude da sua
absoluta soberania, supremacia, majestade e eminência, que São Seus atributos essenciais. O
profeta Jeremias mostra esses atributo de Deus de uma forma bem simples e resumida, que
colocam o homem na posição de obedecer todas as prescrições divinamente enviadas:

Jr 10.6-7 — ―Ninguém há semelhante a ti, ó Senhor; tu és grande, e grande é


66

o poder do teu nome. Quem te não temeria a ti, ó Rei das nações? pois isto é a ti
devido; porquanto entre todos os sábios das nações, e em todo o seu reino,
ninguém há semelhante a ti.‖

Dessa idéia de Deus, segue-se que o homem está sob o dever de obedecer todas as
estipulações. Adão acatou todas as exigências divinas e, como criatura finita, não discutiu as
exigências de Deus porque conhecia o seu papel de criatura e das responsabilidades como
mordomo do jardim que Deus lhe havia confiado.

2. Promessa de Vida Condicionada à Obediência


Nenhum pacto é estabelecido por Deus sem promessas. A promessa deste pacto das
obras é a de vida eterna, que está implícita no texto de proibição de comer da árvore do
conhecimento do bem e do mal. No pacto das obras, ―a Adão foi prometida a mesma vida eterna
a ser obtida pela justiça que é da lei, da qual os crentes São tornados participantes através de
Cristo.‖77 A promessa de vida prometida no evangelho aos que crêem em Cristo é exatamente da
mesma natureza da que foi feita no Éden a Adão. Os dois tipos de vida prometidos São
absolutamente iguais. Quando Jesus disse: ―Aquele que crê em mim tem a vida eterna‖, é a
repetição da idéia que Moisés disse: ―Faze isso, e viverás‖.
Essa idéia de vida plena está no bojo de todos os homens. E isso o que todos desejam. O
desejo de felicidade eterna é algo que está ainda presente em todos os homens, mesmo nos mais
ímpios. Todos eles sabem que a felicidade está vinculada ao fazer o que é bom como a infelicidade
no fazer o que é mau. E uma noção universal a idéia de recompensa para os que obedecem e
punição para os que não obedecem as leis estabelecidas. Isso advém das leis naturais impressas
na alma humana, sem que ninguém ensine aos homens.
Contudo, a noção de vida eterna é muito mais claramente percebida pela ordem dada por
Deus como expressão da Sua Soberania no Éden. Se o pagão ainda hoje tem a noção de
recompensa para os que fazem o bem e a punição para os que fazem o mal, quanto mais Adão!
Ele que possuía o conhecimento advindo dois tipos de lei que Deus lhe havida dado no Éden. O
seu conhecimento dessas leis era perfeito, então.
O ensino de que a vida eterna vem pela obediência é uma tônica de toda a Escritura.

Este é o ensino de Moisés


O pacto das obras, num sentido estrito, tem relação absoluta com a Lei de Deus. A vida
eterna de Adão, assim como de toda a sua posteridade, estava vinculada à sua obediência estrita
à lei estabelecida por Deus. Mesmo após a desobediência, Deus não retirou a idéia de que a vida
eterna vem pela mesma obediência. Veja algumas sugestões da Escritura no tempo em que o
homem já havia caído:

Lv 18.5 — ―Portanto os meus estatutos e os meus juízos guardareis;


cumprindo os quais, o homem viverá por eles: Eu sou o Senhor‖.

Deus poderia ter retirado o mandado de ter vida pela obediência, pela simples razão de
que ele é o Senhor. No pacto das obras a ordem é ―Faze isto‖ e a promessa ―e viverás‖. Deus ainda
coloca uma ameaça: ―Se não fizeres isto, morreras‖.

Este é o ensino de Davi


Davi é um outro famoso escritor sacro. A sua ênfase na importância da obediência à lei é

77 Herman Witsius, The Economy of the Covenants between God na Man, vol. 1, (Phillispsburg, New

Jersy: Presbyterian and Reformed Publishing House, 1990), 75.


67

conhecida nos salmos que escreveu. O Salmo 119 mostra o seu apego à lei de Deus. Veja também
como se porta falando sobre a perfeição da lei do Senhor:

S119.7- 11 — ―A lei do Senhor é perfeita e restaura a alma.. .Além disso, por


eles se admoesta o teu servo...; os preceitos do Senhor São retos... e em os guardar
há grande recompensa.‖

Todo homem que guarda perfeitamente a lei do Senhor é recompensado com a vida
eterna, com a comunhão imperdoável. Contudo, mesmo embora saibamos que a lei do Senhor é
perfeita, não existe perfeição em nós para que a guardemos perfeitamente, a fim de que
recebamos a recompensa da vida eterna.

Este é o ensino de Paulo


A mesma vida eterna que alguém recebe pela fé em Cristo é prometida àqueles que
obedecem perfeitamente à lei de Deus. Paulo reafirmou o pensamento de Moisés de que a vida
eterna vem pela obediência irrestrita à lei de Deus.

Rm 10.5 — ―Ora, Moisés escreveu que o homem que praticar a justiça


decorrente da lei, viverá por ela.‖

Gl 3.12 — ―Ora, a lei não procede da fé, mas: aquele que observar
os seus preceitos, por eles viverá.”

Rm 7.10 — ―E o mandamento que me fora para a vida, verifiquei que


este mesmo se me tornou para morte.‖

Obviamente, Paulo sabe da impotência do pecador para cumprir a lei de Deus


perfeitamente. Por essa razão, ele trata abundantemente da justiça da fé (Rm 10.6-9). Ele ainda
argumenta que, porque ―ninguém pode ser justificado pelas obras da lei‖' (pela impotência de
pecador em cumprir todos os preceitos), Cristo teve que ―nos resgatar da maldição da lei‖ (Gl
3.10-13). Paulo argumenta que a lei tornou-se impotente de dar vida ao homem, mas o problema
não estava na lei, mas na impotência humana (Rm 8.3-4).
Mas ninguém pode negar que a vida eterna de um homem vem pela obediência. Os
mesmos preceitos que Deus propôs a Adão, que produzem vida eterna, e sobre os quais o pacto
das obras está fundado, São repetidos e reforçados na Lei de Moisés. Há uma continuação entre
a lei dada a Adão e a lei repetida a Moisés. A mesma lei que estava em vigor no Éden, antes da
entrada do pecado no mundo, ainda permanece em vigor. Se devidamente observada, ela produz
vida. Basicamente é a mesma lei à qual todos os homens devem obediência, se querem ter vida
eterna.
Paulo confirmou isso, mas reconheceu a incapacidade humana dessa obediência
irrestrita a todos os preceitos da lei. Por essa razão, Cristo obedeceu perfeitamente todos os
preceitos, para que Deus nos concedesse vida eterna. Cristo veio fazer o que o primeiro Adão não
fez: obedecer para conseguir vida eterna para os seus representados.

Este é o ensino de Jesus


Jesus confirmou o ensino do VT de que a vida eterna dos homens vem pelo cumprimento
da lei estabelecida por Deus no Éden e na confirmação dela por Moisés.
A lei natural dada no Éden era uma sombra da lei que haveria de ser dada de forma
escrita muito tempo depois, no Monte Sinai. E a lei dos 10 Mandamentos. Essa lei contém uma
68

noção de vida eterna para aqueles que obedecem a Deus. Jesus admitiu claramente que a
obediência à lei produz vida eterna. Isto está registrado em Mt 19.16-21 O jovem perguntou:

―Mestre, que farei eu de bom, para herdar a vida eterna? Respondeu-lhe Jesus:
Por que me perguntas acerca do que é bom? Bom, só existe um. Se queres, porém,
entrar na vida, guarda os mandamentos. E ele lhe perguntou: Quais? Respondeu
Jesus: Não matarás, não adulterarás, não furtarás, não dirás falso testemunho;
honra a teu pai e a tua mãe, e amarás o teu próximo como a ti mesmo.‖

Está claro que a obediência à lei produz vida. Os homens podem ganhar a vida eterna no
céu pela plena obediência à lei de Deus. O verso 21 afirma esta verdade inequivocamente. Jesus,
portanto, afirma a concessão da vida eterna por meio da obediência, e nisso, tem o apoio de
muitos outros escritores sagrados.

Este é o ensino dos Padrões de Fé de Westminster


A promessa do pacto é uma promessa condicional, porque a os benefícios dela dependem
do cumprimento de uma condição: a da obediência. A CFW deixa a idéia de obediência para se
obter vida como uma condição absoluta no pacto das obras:

―Deus deu a Adão uma lei como um pacto de obras. Por este pacto Deus o
obrigou, bem como toda a sua posteridade, a uma obediência pessoal, inteira,
exata e perpétua; prometeu-lhe a vida sob a condição dele cumprir com a lei e o
ameaçou com a morte no caso dele violá-la; e dotou-o com o poder e a capacidade
de guardá-la.‖ (XIX, 1)

A obediência à lei era condição para o homem obter vida eterna. Adão possuía vida
natural perfeita quando foi criado. Ele ainda não possuía vida eterna, que é sinônimo de
comunhão imperdível. Se ele a possuísse, obviamente ele não a perderia. A palavra ―eterna‖
implica em algo que não pode ser perdido.
Adão poderia ter vida eterna se ele obedecesse os preceitos de Deus. Por um tempo (não
fixado na Escritura) ele ficaria debaixo de prova. Se passasse no teste, poderia ter acesso à vida
eterna pelo comer da árvore da vida. O texto de Gn 3.22 mostra-nos claramente que ele ainda não
havia se apossado da vida eterna, porque não havia ainda comido da árvore que estava no meio
do jardim (Gn 2.9). Porque desobedeceu, não pode ter acesso a essa árvore (Gn 3.22).

3. A Ameaça de Morte em Caso de Desobediência


Ao mesmo tempo que o pacto incluía uma promessa de vida, ele apresentava uma ameaça
de morte. Por causa desse castigo de morte, toda a humanidade está, por natureza, debaixo da
culpa do pecado de Adão (Rm 5.12). Todas as pessoas estão debaixo da maldição da lei, mesmo
antes de terem cometido qualquer pecado voluntário. Todos devem a Adão a culpa de seus
pecados, pois o pecado dele foi imputado a todos os homens. Por essa razão, todos nascem ―por
natureza, filhos da ira‖ (Ef 2.3).
A idéia de obediência como condição para se obter vida eterna está deduzida do ensino da
Escritura de que Jesus Cristo teve que obedecer toda a lei para garantir-nos vida eterna (Rm
5.19). Por causa da nossa incapacidade de cumprir a lei por nós mesmos 78, Cristo teve que
morrer ―para resgatar os que estavam sob a lei‖ (Gl 4.5), a fim de que a lei não os condenasse.
Onde não há a obediência perfeita da lei, há o castigo da lei. Certamente a punição da lei vem
sobre todos aqueles que não São obedientes perfeitos dela. Se guardamos toda a lei, mas

78 Paulo disse com muita clareza sobre a impotência do pecador em cumprir a lei de Deus. Por essa

razão, ninguém pode ser justificado pelas obras da lei. A impotência, na verdade, não está na lei. Ela é a
mesma lei, santa, justa e boa, mas a inadequacidade está na condição do pecador, por sua pecaminosidade.
Por isso,. Paulo diz: ―É evidente que pela lei ninguém é justificado diante de Deus…‖(Gl 3.11).
69

tropeçamos num só preceito dela, tornamo-nos culpados de toda a lei. Este foi o ensino de Jesus
Cristo e o de Paulo (Gl 3.10). Por essa razão, a fim de livrar-nos do castigo dessa lei, Ele obedeceu
a lei, sofrendo a penalidade dela, porque todos nós nos tornamos violadores do pacto com Adão e
em Adão.

Gl 3.13 — ―Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio


maldição em nosso lugar, porque está escrito: Maldito todo aquele que for
pendurado em madeiro.‖

4. O Sacramento do Pacto
Em todos os pactos estabelecidos por Deus houve a colocação de sinais e selos neles. 79
Deus não somente nos instrui através das Suas Palavras, mas Ele também nos dá símbolos
visíveis para que aprendamos com eles. Deus nos ensina também através dos olhos, dando-nos
um ensino aprofundado pelo que vemos. Os nossos sentidos todos têm que ser exercitados no
aprendizado. Aquilo que vemos com os olhos causam profunda impressão em nós. Deus tem-nos
ensinado pelas palavras, mas ele também nos ensina pelos sacramentos de forma visível a
mesma verdade. Foi assim com a ceia e com o batismo.
O pacto das obras, que foi o primeiro estabelecido por Deus historicamente, não fugiu à
regra. No pacto de obras Deus também usou o recurso dos sacramentos para ensinar através
daquilo que os nossos primeiros pais viam. Assim como Deus estabeleceu um pacto com Adão,
também Ele se agradou em colocar um selo a esse pacto: a árvore da vida (Gn 3.22).
Não existe harmonia entre os teólogos reformados quanto ao número de sacramentos.
Alguns falam em quatro: Paraíso, árvore da vida, árvore do conhecimento do bem e do mal e o
sábado.80 Outros falam em apenas 3 sacramentos: as duas árvores e o paraíso; outros dois: as
duas árvores; enquanto que outros preferem um só: a árvore da vida. Esta é a mais comum das
opiniões da fé reformada, segundo Berkhof. 81
Há algumas menções sobre a árvore da vida na Escritura: Gn 2.2; 3.22; Ap 2.7; 22.2.
Juntamente com essa última há uma referência em Ez 47.12, que parece indicar que essa árvore
tem as mesmas propriedades da árvore da vida, embora o seu nome não apareça.
Essa árvore da vida parece possuir elementos medicinais, mas atribuir a ela essas
virtudes medicinais para a cura de doenças não parece ser uma idéia razoável, se examinarmos o
contexto geral da Escritura. No Éden, antes da queda, o homem não possuía enfermidades.
Depois da redenção completada, na nova terra, os remidos não terão qualquer enfermidade a ser
curada. As enfermidades são, em última instância, os efeitos do pecado.
A árvore da vida, portanto, deve ser entendida como símbolo e indicativa de Jesus Cristo,
o Filho de Deus encarnado. Ele é a vida encarnada, tendo vida em Si mesmo, e sendo o doador
dela. Todo aquele que se apropriar dEle tem a vida eterna. A árvore da vida no jardim do Éden
(tanto no Gênesis como no Apocalipse) aponta para Cristo, que é a cura de todos os povos. Ele é
o salvador e médico das gentes de todas as nações. Os que são da posteridade de Adão, a fim de
que sejam curados de seus pecados, têm que se apropriar da Vida, que é Jesus. Assim como no
novo pacto, o sacramento da ceia, com o pão e o vinho, aponta para Cristo, a Vida, assim, no
pacto das obras a árvore no jardim apontava para a vida eterna. O sacramento é uma figura que
trata de uma verdade, mas atinge os olhos, não somente os ouvidos com a mensagem falada. E o
evangelho visível que Deus nos deu.
Deus criou originalmente o homem com vida natural perfeita, mas a fim de que ele se
apropriasse da vida eterna ele teria que obedecer e tomar da árvore a vida (Gn 3.22).

79 No pacto com Noé, houve a colocação do arco nas nuvens (Gn 9.12-13); O pacto com Abrão

possuia o sinal da circuncisão (Gn 17.10-11); no Novo Pacto, o batismo.


80 Herman Witsius trata abundantemente desta idéia quádrupla dos sacramentos do pacto das

obras (The Economy of the Covenants Between God and Man, 105-117).
81 Louis Berkhof, Teologia Sistemática, 257 (edição castelhana).
70

A VIOLAÇÃO DO PACTO DAS OBRAS


Alguns cristãos mal informados pensam que a transgressão de nossos Primeiros pais foi
algo sem muita importância, ou que Deus tenha sido muito severo no julgamento da atitude
deles. Precisamos estar de acordo com as Escrituras, sem tentar suavizar o que Deus considera
algo extremamente sério.

A Gravidade da Violação do Pacto


Os 6.7 diz que Adão quebrou o pacto. Tratando dessa matéria, Paulo diz que o pecado
entrou no mundo através de um homem (Adão) e, por causa disso, a morte passou a todos os
homens. No texto de Rm 5.12-21, Paulo usa algumas expressões bastante fortes para expressar
o ato de Adão: Pecado (v. 12); transgressão (v. 13); ofensa (v.14,15,16,17,18, 20); desobediência
(v.19). Todas essas expressões mostram a gravidade do ato de Adão ao violar o pacto.

A Conseqüência da Violação do Pacto


A conseqüência imediata da violação do pacto foi a entrada do pecado no mundo (Rm
5.12).
Com a entrada do pecado no mundo a harmonia dele se foi. Até então, o mundo criado
havia considerado ―muito bom‖ por Deus, e não havia qualquer iniquidade nele. Havia perfeita
comunhão entre o universo criado e o homem, a criatura mais elevada de Deus, sob quem tornou
sujeitas todas as cousas. Quando o pecado entrou no mundo, essa harmonia absoluta entre as
cousas criadas desapareceu: Desapareceu a harmonia entre o homem e os animais; desapareceu
a harmonia entre o casal; desapareceu a harmonia entre irmãos carnais; desapareceu a
harmonia entre os próprios animais; mas acima de tudo desapareceu a harmonia entre a
criatura e o Criador.
Com a entrada do pecado no mundo apareceu a maldição de Deus sobre a natureza e
sobre o ser humano. A terra tornou-se maldita e agora o homem tinha que trabalhar com pesar
para ganhar o pão de cada dia, e a mulher haveria de sofrer dores para ter filhos, e as relações de
sexo ficaram prejudicadas, pois o prazer ficou mais voltado para o homem. Tudo por causa da
entrada do pecado no mundo.
Com a entrada do pecado no mundo não ficou ninguém sem ser afetado por ele. A morte
passou a todos os homens (Rm 5.12). A conseqüência mais séria do pecado, a morte, bateu à
porta de todos os homens, sem exceção.
A violação do pacto certamente foi um ato muito grave contra Deus para Ele mostrar tão
fortemente o seu desgosto contra o universo criado e, principalmente, contra o homem.

A IDÉIA DE REPRESENTATIVIDADE NO PACTO DAS


OBRAS
No pacto das obras Adão foi constituído uma pessoa pública, que agiu não somente em
seu próprio nome, mas foi considerado como agindo como representante de toda a raça.
A dedução desta matéria é claramente retirada do texto de Paulo aos Coríntios, onde fica
absolutamente evidente a presença de dois homens: o Primeiro Adão, e o Segundo Adão.

1Co 15.45-49 — ―Pois assim está escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito
alma vivente. O último Adão, porém, é espírito vivificante. Mas não é primeiro o
espiritual, e, sim, o natural; depois o espiritual. O primeiro homem, formado da
terra, é terreno; o segundo homem é do céu. Como foi o primeiro homem, o
terreno, tais São também os demais homens terrenos; e como é o homem celestial,
tais também os celestiais. E, assim como trouxemos a imagem do que é terreno,
71

devemos trazer também a imagem do celestial.‖

Conforme o texto acima, Adão possui conosco um relacionamento duplo:

Adão é o Cabeça Natural da Raça


Dele todos os homens descendem. Ele é o primeiro duma série enorme, todos derivados
naturalmente dele por propagação. No discurso em Atenas Paulo disse: Deus ―de um só fez toda
a raça humana para habitar sobre toda a face da terra‖ (At 17.26) e, citando provavelmente o
poeta Arato, ele continua: ―Porque dele também somos geração‖ (At 17.28b). O livro de Gênesis
indica que Eva, a esposa de Adão (Gn 2.21-24), ―é a mãe de todos os seres humanos‖ (Gn 3.20).
Dessa forma, Adão foi o pai de todos os seres humanos.

Adão é o Cabeça Representativo da Raça


Contudo, Adão não foi somente o primeiro de uma série de indivíduos, que constituíram a
raça humana, mas ele foi o primeiro e o representante de todos eles, de tal forma que o ato dele foi
considerado o ato de todos. A posição de Adão foi única com relação aos seus descendentes. Ele
foi considerado uma pessoa pública e agiu no lugar de todos representando a todos. Toda a raça
humana foi representada por ele de forma que o seu ato foi considerado por Deus o ato de todos.
A Escritura mostra que Adão agiu em favor e no lugar de seus descendentes. O que ele fez foi
considerado como se todos eles fizessem.82
Não há nenhuma dúvida de que todos os descendentes do primeiro casal receberam a
culpa e a corrupção do pecado de Adão, que em teologia é conhecido como o pecado original.
Com base em qual critério os descendentes receberam a culpa de Adão? Pelo processo da
imputação de culpa do representante aos representados.
O texto de Rm 5.12 começa indicando que o pecado de um é o pecado de todos. O texto diz
―que todos pecaram‖. Este verso não pode indicar o pecado individual de cada um porque eles
ainda não existiam quando Adão pecou. A morte passou a todos os homens que ainda não eram
historicamente existentes. Mas o pecado deles está no pecado de um, Adão. Todos eles pecaram
em Adão, representativamente.
Os versos subsequentes de Rm 5 mostram que o ato do representante é considerado o ato
dos representados.
O v. 15 diz que ―ofensa de um só‖ causa a morte de sua posteridade;
O v. 16 trata do pecado ―de um só‖, e do ―julgamento que derivou de uma só ofensa‖,
trazendo a condenação sobre a posteridade.
O v. 17 fala que ―pela ofensa de um, e por meio de um só‖, a morte veio a reinar sobre a
sua posteridade.
O v. 18 diz que o juízo de Deus veio sobre todos os da posteridade de Adão, por causa de
―uma só ofensa‖.

82 Há duas ressalvas a serem feitas nesta matéria: (1) Cristo não estava incluído nesta

representação. No texto de I Co 15.4549 Cristo está em oposição ao Primeiro Adão. Se Adão houvesse
guardado o pacto, Cristo não teria vindo, porque a Sua obra foi fazer exatamente o que o primeiro Adão não
fez — obedecer, para conseguir vida eterna para o seu povo. Embora Cristo seja, em última instância,
descendência natural de Adão, via Maria, Ele não é representado por Adão, não recebendo, portanto, a
culpa e a herança pecaminosa dele; (2) Não podemos afirmar de modo dogmático que Eva estava inclusa
nessa representação. Contudo, há indícios de que Adão era o cabeça da família, porque era o varão e o
primeiro a ser formado. Gn 2.16-17 dá-nos uma perfeita idéia de que o pacto foi feito com Adão, antes
mesmo de Eva ter sido formada. O pacto foi feito exclusivamente com Adão e Eva, ao que nos parece, foi
inclusa nessa representação. A razão disso está no fato de Eva ter pecado primeiro e Adão ter sido
responsabilizado por Deus. E verdade que ela caiu pela sua própria transgressão, mas a ruína da raça só
veio a ser anunciada depois de Adão caiu, porque o pacto havia sido estabelecido com ele. Adão foi o
primeiro a ser convicto do seu pecado, embora Eva fosse a primeira a ter caído. A culpa do pecado é
atribuído a Adão como representante da raça. Deus foi ajustar contas com ele, quando disse: ―Comeste da
arvore de que eu te ordenei que não comesses?‖ (Gn 3.11).
72

O v. 19 diz que o fato de a posteridade de Adão ser pecaminosa se deve ―á desobediência


de um só homem‖.
Com estas cousas em mente, não é possível ignorar o assunto da representatividade,
onde a imputação da culpa do pecado e de suas conseqüências São absolutamente nítidas.
Somente aqueles que não crêem que Deus estabeleceu um pacto de obras é que são capazes de
fechar os olhos para tão grande verdade. E o estabelecimento do pacto com Adão que nos dá o
direito de pensar que ele foi tornado o representante da sua posteridade, agindo em lugar deles.
O seu ato foi considerado por Deus o ato de todos aqueles que ele representou. Fechar os olhos
para essa verdade, é ignorar o modo de Deus de tratar o pecado. Se fizermos assim, teremos
também de fechar os olhos para o modo como Deus fez com que a justiça de Cristo fosse
imputada a nós. O processo é o mesmo. Este é o assunto do ponto seguinte.

Paralelo entre o Primeiro Adão e o Último Adão


Os textos de Rm 5 e de 1Co 15 São absolutamente claros em mostrar o paralelo entre o
primeiro Adão e o último Adão. Vejamos o paralelo nos dois textos mencionados:

1Co 15.21-22 – ―Visto que a morte veio por um homem, também por um
homem veio a ressurreição dos mortos. Porque como em Adão todos morrem,
assim também todos serão vivificados em Cristo.‖

Como o primeiro Adão está para a morte, assim o último homem está para a vida. O
primeiro traz morte e o segundo traz ressurreição, que é o mesmo que vida. Perceba que há um
paralelo absoluto entre eles. O que um faz traz conseqüência na vida de todos. O principio da
representatividade está revelado em ambos. O primeiro Adão representa toda a raça humana, e o
outro representa todo o seu povo. Dessa forma podemos entender que todos morrem em Adão
assim como todos vivem em Cristo.

1Co 15.45-49 – ―Pois assim está escrito: o primeiro homem, Adão, foi feito alma
vivente. O último Adão, porém, é espírito vivificante. Mas não é o primeiro o
espiritual, e, sim, o natural; depois o espiritual. O primeiro homem, formado da
terra, é terreno; o segundo homem é do céu. Como foi o primeiro homem, o
terreno, tais são também os demais homens terrenos; e como é o homem celestial,
tais também os celestiais. E, assim como trouxemos a imagem do que é terreno,
devemos trazer também a imagem do celestial.‖

Estes versos mostram que tanto o primeiro Adão como o último Adão eram pessoas
públicas, não simples indivíduos. Eles não agiram em favor de si próprios, mas o ato deles foi
considerado o ato de todos aqueles que eles representaram.
1) A idéia de representação está patente no fato de Paulo falar no primeiro Adão e
no último Adão.

v.45 – ―Pois assim está escrito: o primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente.
O último Adão, porém, é espírito vivificante.
v.47 - O primeiro homem, formado da terra, é terreno; o segundo homem é do
céu.‖

É verdade que linearmente falando Adão foi o primeiro homem, mas seqüencialmente não
podemos dizer que Jesus Cristo foi o último, ou mesmo o segundo Adão. É óbvio que Paulo está
tratando de duas pessoas especiais que agiram pactualmente. O primeiro Adão agiu como
representante do pacto das obras, agindo em lugar de toda a sua posteridade, enquanto que
Cristo agiu como representante do pacto da graça, atuando em favor e no lugar de todos aqueles
que o Pai lhe havia entregue.

2) A idéia de representação está patente do fato de Paulo fazer um contraste entre o


73

que é natural e o que é espiritual (v.46).

v.46 – ―Mas não é o primeiro o espiritual, e, sim, o natural; depois o espiritual.‖

O que é natural vem primeiro. O que é espiritual vem depois. Perceba que quando Paulo
fala do primeiro, o natural, ele está se referindo a um homem, não a um principio. Quando fala do
espiritual a mesma coisa. Isto significa que antes da redenção está a queda; que antes da
ressurreição está a morte; antes do segundo o primeiro. Ambos São representantes das coisas
diametralmente opostas: o primeiro, do pecado e o segundo, da salvação.
É importante que se observe que assim como natural (v.46) está para terreno (v.48), o
espiritual (v.46) está para celestial (v.48).

3) A idéia de representação está patente no fato de Paulo estabelecer as


conseqüências para os naturais assim como para os espirituais (v.48)

v.48 – ―Como foi o primeiro homem, o terreno, tais São também os demais
homens terrenos; e como é o homem celestial, tais também os celestiais.‖

O estado do representante reflete o estado dos representados. Todos os da descendência


de Adão refletem a situação baixa dele. Os da progênie de Cristo refletem também o estado dEle.
Por isso que Paulo chama de terrenos os de Adão e celestiais os de Cristo. Isso indica que o que
Um é os outros São, seja do primeiro Adão ou do último Adão.

4) A idéia de representação está patente do fato de Paulo a nossa participação tanto


no natural como no celestial (v.49).

v.49 – ―E, assim como trouxemos a imagem do que é terreno, devemos trazer
também a imagem do celestial.‖

Isto significa que todos aqueles que estão em Cristo, estiveram em Adão. Certamente nem
todos os que estiveram em Adão vieram a estar em Cristo, pois este agiu somente em favor do Seu
povo, mas indubitavelmente, todos os que estão em Cristo hoje, já estiveram em Adão. Todos os
que possuem a imagem do que é celestial já refletiram a imagem do terreno. Usando o próprio
raciocínio de Paulo, posso concluir: todos os que São de Adão refletem a imagem das coisas
pecaminosas, assim como devem refletir a santidade de Cristo todos os que estão nele. A imagem
nossa reflete aquele de quem somos.
Rm 5.12-2183 - O verso 14 diz que Adão era tipo daquele que haveria de vir. Há um
paralelo perfeito entre ambos. Nos versos subsequentes, os dois aparecem em paralelo
representando cada um o seu povo. O primeiro Adão representando a velha humanidade, e o
último Adão, Cristo, representando a nova humanidade.
O primeiro Adão, foi tornado representante de todos por causa do pacto das obras; o
segundo Adão, Cristo, foi tornado representante por causa do pacto da graça. O primeiro
desobedeceu o pacto, o segundo obedeceu todas as prescrições estabelecidas pelo primeiro pacto.
Cristo cumpriu todas as exigências do pacto de obras, obedecendo em nosso lugar. E a
obediência dEle é considerada por Deus como nossa obediência, assim como a desobediência de
Adão também é considerada nossa desobediência. Nós recebemos todas as cousas gratuitamente
por meio de Jesus Cristo (por isso é chamado de pacto da graça), mas para Jesus Cristo foi um
pacto de obras, porque Ele, como segundo Adão, teve que fazer todas as cousas por seu povo, que
o primeiro Adão não fez. Logo, assim como a culpa de Um é atribuída a todos, a justiça de Um
também atribuída a todos.

83 A análise deste texto aparecerá em detalhes quando tratarmos do capítulo sobre o Pecado
Original.
74

FUNÇÃO ATUAL DO PACTO DAS OBRAS


Sentidos em que o Pacto das Obras Ainda Vigora
O Pacto das obras não foi anulado. São evidentes as mostras de que ainda ele vigora.
Contudo, esse não é o pensamento sustentado pelos arminianos.

O Pensamento Arminiano
O próprio Armínio afirma que os pecadores não têm mais nada a ver com o pacto das
obras. Eis alguns dos argumentos arminianos: 84

1) Quando o homem está no estado de pecado, ele não esta pactuado com Deus. Portanto,
não há mais nenhum contrato entre Deus e o homem, pelo qual Deus possa requerer obediência;
2) Deus tem privado o homem da capacidade e do poder de cumprir a lei, por causa do
pecado. Por essa razão, Deus não mais pode requerer do homem o cumprimento das exigências
do pacto, o que seria injustiça, a menos que Ele devolva ao homem a sua capacidade de
obedecê-lo;
3) Deus não pode exigir do pecador que ele O ame, respeite e O obedeça no estado de
maldição em que o pecador se encontra. Deus não pode exigir do pecador que cumpra algo, se o
pecador está fora do seu favor.
Basicamente por estas razões, todos os segmentos arminianos rejeitam a idéia de que o
pacto esta ainda em vigor.

O Pensamento Reformado
Respondendo as objeções arminianas, podemos dizer o seguinte:
1) Quanto ao primeiro argumento: o fato de uma das partes violar o contrato não implica
que o contrato deva ser desfeito. Num contrato humano a parte lesada por ou não desfazer o
contrato, não quem lesa. Muito mais sério é o pacto de Deus com a criatura. Acima de tudo isso,
porém, temos que considerar que a parte ofendida é Deus, o Supremo Legislador e Soberano. O
homem não pode afrontar o soberano e ainda ficar impune pela desobediência.
2) Quanto ao segundo argumento: o fato de o homem ficar impotente por causa do pecado
não retira de Deus o direito de continuar exigindo dele a obediência. A perda da capacidade de
obedecer não foi uma decisão arbitrária. Deus havia avisado ao homem que, se ele
desobedecesse, ele haveria de morrer. A impotência do homem é uma das conseqüências dessa
morte. Como a parte ofendida no pacto, Deus pode ainda exigir que o homem continue debaixo
da obrigação de obedecer. Deus não retirou essa exigência, mesmo embora os homens não mais
sejam capazes dela.
3) Quanto ao terceiro argumento: Novamente o argumento arminiano esbarra na idéia da
soberania divina. E bom que nos lembremos de que Deus é quem estabeleceu todas as condições
e estipulações do pacto. Somente ele pode pô-las ou retirá-las. Ninguém mais. Não é a situação
do homem que vai alterar as exigências de Deus.
Passemos agora à argumentação positiva que os Calvinistas fazem a respeito dos sentidos
em que o pacto das obras ainda vigora:
1) Deus ainda afirma que se alguém obedecer a lei de Deus obtém vida eterna. Deus não
retirou essa lei.
Lv 18.5 diz: ―Portanto os meus estatutos e os meus juízos guardareis; cumprindo os
quais, o homem viverá por eles: Eu sou o Senhor‘. Deus poderia, se quisesse, ter retirado esta
obrigação, mas Ele não o fez. Os homens ainda podem obter vida eterna se obedecerem à lei.

84 Idéia retiradas de Witsius, p. 152.


75

Embora os homens sejam incapazes de cumprir essa lei, Deus não a retirou. Paulo deixou este
ensino bem claro, quando recordou seus leitores dessa lei de Moisés (Rm 10.5; Gl 3.12).
2) Deus ainda afirma que os homens estão debaixo da obrigação de obedecer à Sua lei de
modo perfeito.
Mesmo depois da promulgação do evangelho da graça de Jesus Cristo, aqueles que
violaram o pacto das obras não estão livres de guardar toda a lei, se se aventuram a querer
guardar um só princípio para obter vida. Essa lei exige deles absoluta obediência, e que, por
causa da impotência do pecado, eles continuaram a ser devedores de toda a lei (Gl 5.3). Deus não
facultou aos homens guardarem apenas alguns dos Seus princípios, mas toda a lei.
3) Deus ainda afirma que o homem continua a morrer por causa da violação do pacto das
obras.
Paulo diz: ―E o mandamento que me fora dado para a vida, verifiquei que este mesmo se
me tornou para morte.‖ (Rm 7.10). Lembremo-nos de que Paulo está falando milênios depois do
evento do Éden. Ainda continua a lei de morte para o transgressor dos preceitos divinos. A Alma
que pecar ainda morre. A lei que originariamente foi dada para que, por sua obediência, houvesse
a vida eterna, continua matando os homens.
Portanto, diferentemente dos arminianos, os calvinistas afirmam que o pacto das obras
ainda vigora. Contudo, há

Sentidos em que o Pacto das Obras Não Mais Vigora


Há algumas coisas que indicam que nenhum homem mais pode ter vida eterna pelo pacto
das obras:
O Apóstolo Paulo declara que Deus, por enviar seu único Filho ao mundo, fê-lo porque a
lei não podia fazer mais nada pelo homem. Este tornou-se impotente para cumprir a lei. Por essa
razão, ―o que fora impossível à lei, no que estava enferma pela carne, isso fez Deus enviando o seu
próprio Filho...‖ (Rm 8.3). Por ―carne‖, entenda-se a natureza pecaminosa. Por causa da ―carne‖,
o homem não mais pode observar todos os preceitos a lei. Por essa razão a lei é impotente para
dar vida. A vida que vem da lei depende da obediência absoluta do homem. Como isto é
impossível pela condição pecaminosa do homem, a lei torna-se ineficaz. Se não fosse pelo pecado,
todo homem poderia obedecer perfeitamente a lei e possuir vida eterna.
Se Adão houvesse obedecido a lei estabelecida por Deus, ele haveria de receber a herança
da vida eterna, que é equivalente à vida que Jesus Cristo nos traz. A lei sempre foi compatível
com a vida eterna. Paulo trata desse assunto, sem qualquer constrangimento:

Gl 3.21 – ―É, porventura, a lei contrária às promessas de Deus? De modo


nenhum. Porque se fosse promulgada uma lei que pudesse dar vida, a justiça, na
verdade seria procedente da lei.‖

Mas a justiça não procede realmente da lei, mas da obediência à lei, que o pecador não
mais tem condição de prestar. Por essa razão, não mais estão debaixo do pacto das obras para
conseguir a vida eterna aqueles em favor de quem Cristo obedeceu. Aqueles que São beneficiários
do pacto da graça, não mais estão na obrigação de guardar a lei perfeitamente para obterem vida,
pois Cristo já a obteve por eles e no lugar deles. Todas as obrigações que devíamos, Cristo as
satisfez por nós.
Daquele que está em Cristo já não mais se pode dizer que está sob o pacto das obras no
que concerne à obtenção da vida eterna.
76

PARTE 2

A CONDIÇÃO DO

HOMEM E A QUEDA
77

A LIBERDADE E A MUTABILIDADE PARA O PECADO

Deus criou o homem com capacidade de auto determinar-se, um agente livre, para agir
sempre de acordo com as disposições do seu coração. Ele poderia fazer tanto o bem, que era
próprio de sua natureza, mas também poderia, mudavelmente, fazer o que era contrário à sua
natureza, pecando contra o Senhor Deus e Suas leis.
Novamente a CFW diz:

O homem, em seu estado de inocência, tinha a liberdade e o poder de querer e


fazer aquilo que é bom e agradável a Deus, mas mudavelmente, de sorte que
pudesse decair dessa liberdade e poder. (IX.2)

Deus criou o homem com uma santidade mutável. Como já foi dito acima, a santidade no
homem não era parte essencial nele, como o é em Deus. Santidade não é um atributo
constitucional do homem. A prova disso é que ele a perdeu e, ainda assim, continua sendo
homem. Deus é livre na expressão da Sua santidade, e ela é sempre a mesma, por causa da
própria natureza imutável de Deus. Deus nunca vai fazer alguma coisa diferente daquilo que Ele
é. Por isso Ele não pode pecar. Sua vontade quer sempre aquilo que a Sua natureza determina.
Na Sua infinitude há a exclusão da idéia de mudança na vontade. Deus não tem o poder de
escolha contrária, isto é, de fazer algo que vá de encontro à Sua natureza. Deus é um ser moral
livre, todavia só faz aquilo que é próprio da Sua natureza. Portanto, em Deus liberdade e
necessidade moral São a mesma coisa. Para que haja liberdade, não há a necessidade de haver o
poder de escolha contrária.
A liberdade em Deus é uma auto-determinação imutável, mas no homem, como ser finito
que é, a capacidade de auto-determinação ou seja, a capacidade de fazer as coisas de acordo com
a natureza, é mutável. Deus deu ao homem, no principio, aquilo que Ele próprio não possuía, a
capacidade de escolha contrária. O homem era livre para expressar a santidade com a qual Deus
o havia criado, mas de tal modo que pudesse também fazer algo contrário à sua santidade. Para
que Adão fosse livre, ele não precisava ter o poder de fazer algo reverso. ―O poder de reverter a
auto-determinação existente não é a substância da liberdade, mas é um acidente dela.‖ 85 Deus é
livre sem esse acidente. Mas Deus deu ã criatura essa capacidade de escolha contrária, e ela a
usou para a sua própria vergonha.
Por isso é possível entender como uma pessoa santa como Adão poderia fazer o que fez.
Ele usou a capacidade de escolha contrária que lhe foi dada por Deus.
Há que se olhar essa atitude de Adão de um outro prisma. Ele era Simplesmente uma
criatura perfeita. Como criatura, contudo, dependia de Deus para todas as coisas da vida
natural, como dependia de Deus para que sua vida de comunhão com Ele continuasse. E próprio
de toda a criação essa dependência de vida. Vida é algo que é dado, mantido e renovado por Deus.
E Adão era santo, mas apenas uma criatura, desprovida de qualquer senso de onisciência,
passível de ser enganada, que poderia pensar no mal como algo que não fosse tão mal assim.
Embora a condição moral do homem fosse de excelência, sem tendência para o mal, todavia,
poderia cair desse estado.
Toda a criatura tem algo que Deus não tem — mutabilidade. Esta é uma das grandes
distinções entre Deus e a criatura. Imutabilidade e impecabilidade são atributos do Criador, não
das criaturas, sejam elas homens ou anjos.
A liberdade de Adão e Eva consistia no fato de fato deles poderem escolher ou abraçar
aquilo era bom e agradável ao seu entendimento, como Deus queria, ou para colocar de outro
modo, em recusar aquilo que era mau. Ele tinham o poder de continuar no estado em que foram
criados. Era só agirem de acordo com a natureza santa que Deus lhes havia dado. Mas não foi

85 Shedd, vol. 2, p. 107.


78

assim que fizeram. Simplesmente puseram em ação a capacidade de fazer aquilo que era
contrairão à natureza deles. Contudo, desobedeceram a Deus, agindo voluntariamente,
constituindo-se numa situação singular em toda a história humana. Usaram da liberdade de
escolha contrária que tiveram para perderem-se a si mesmos, imergindo-se a si mesmos e toda a
raça na escravidão da miséria.
79

CAPITULO VII

A ORIGEM DO MAL MORAL

O fato de Adão possuir a liberdade de escolha contrária, não explica todos os mistérios
relacionados ao problema da entrada do mal no mundo. Há que se pensar que o mal moral é
anterior ã queda do homem.
Há, na verdade, dois grandes problemas praticamente impossíveis de serem explicados: O
primeiro, que tem a ver com a entrada do mal no universo, é a dificuldade de entender a queda
dos anjos sem haver tentador externo e sem que tivessem natureza propensa para o mal; o
segundo, que tem a ver com a entrada do pecado no mundo dos homens, é a dificuldade de
explicar como Adão veio a pecar já que não possuía natureza pecaminosa. Este é um problema da
teodicéia, que estudaremos neste capítulo.
O problema da origem do mal tem sido considerado como um dos mais profundos dentro
da filosofia e da teologia. Não se pode fechar os olhos para o problema do mal que é universal. Ele
é uma mancha indelével que caiu sobre o universo e sobre a vida em todas as suas
manifestações, e tem sido a tônica diária de cada membro da raça humana. Os estudiosos têm
tentado encontrar um resposta para o problema do mal no universo, mas sem sucesso,
especialmente quando a resposta é procurada fora da esfera da revelação divina.
As grandes e freqüentes perguntas feitas são estas: ―Se Deus é bom como Ele permitiu a
entrada do mal no mundo? Se Deus é bom, por que Ele não tira todos as manifestações do mal no
mundo?‖
Há algumas respostas bíblicas e teológicas a essas perguntas, que são delineadas com o
maior temor diante de tão grande mistério, à luz de algumas sugestões que a Escritura dá sobre
o assunto.

A) DADOS BÍBLICOS SOBRE A ORIGEM DO MAL


A primeira grande descoberta no tratamento deste assunto é reconhecer a nossa
pequenez diante de tão grande problema e, a segunda grande descoberta é reconhecer a
soberania divina em todas as coisas que existem no mundo em que Ele nos colocou.
A CFW diz categoricamente:

―Pela Sua muito sábia providência, segundo a sua infalível presciência e o livre
e imutável conselho da Sua própria vontade, Deus, o grande Criador de todas as
coisas, para o louvor da glória da Sua sabedoria, poder, justiça, bondade e
misericórdia, sustenta, dirige, dispõe e governa todas as Suas criaturas, todas as
ações e todas as cousas, desde a maior até a menor‖ (V,1).

Este é um ponto-de-partida sem o qual vamos ter sérios problemas. Esta abordagem da
Confissão de Fé de Westminster é um ponto indispensável e a condição sine qua non para se ter
alguma luz sobre este assunto.
A Escritura ensina que Deus é bom, mas que também exerce a Sua soberania. Estas duas
coisas parecem não poder existir juntas na mente de muitos crentes, como se fossem atributos
incompatíveis. E por isso que esta pergunta surge freqüentemente: ―Se Deus é bom, como pode
80

permitir a entrada no mal no mundo?‖


Para que tenhamos resposta a perguntas como essa, precisamos ir ao profeta Isaías, no
capítulo 45, quando ele trata da soberania de Deus, onde o próprio Deus é quem Se dirige a Ciro,
o rei da Pérsia.
Neste capitulo, Isaías enfrentou corajosamente um assunto que muitos teólogos relutam
em aceitar hoje, mesmo depois de séculos de reflexão teológica, onde muitas vezes a teologia
deles tem sido controlada pelos seus pressupostos, sem que estes sejam submetidos ao crivo da
própria Escritura. Isaías enfrentou a questão que freqüentemente nos assedia: ―Quem é o
responsável pelo mal no mundo?‖ A resposta a essa pergunta vai, de algum modo, definir a nossa
teologia sobre quem Deus realmente é.

Análise de Is 45.1-7
Há algumas coisas preliminares que precisam ser ditas deste texto: Primeiro, Temos que
ver Quem é o autor destas palavras. Claramente Deus é o sujeito destas palavras e Ele fala, em
todos os versos, na primeira pessoa do singular; Segundo, a quem Deus se dirige. Ele se dirige a
Ciro, rei da Pérsia. Ele era um rei de uma terra onde se cria num dualismo, isto é, cria-se num
deus do bem e num deus do mal; terceiro, Deus está mostrando a Ciro que só existe um Deus
(v.5, 6), isto é, que não há o chamado dualismo persa, e que, como Deus, Ele faz tudo o que Lhe
apraz (v.7), inclusive usa os homens ímpios para cumprir os seus propósitos (v. 1).
No ponto culminante desta passagem majestosa de Isaías, há um verso que trata de
frente o problema do mal, encarando-o à luz da soberania divina (v.7). Nada pode ser mais claro
do que este verso. Esta é uma palavra inspirada pelo Espírito Santo, palavra que Deus quis que
fosse registrada para o nosso conhecimento. O profeta narra aquilo que Deus quer que
enfrentemos com o maior santo temor: o problema do mal. Mesmo não compreendendo todas as
razões de Deus, porque Deus é, pelo que faz, um ―Deus misterioso‖ (v. 15), temos que admitir que
este texto lança alguma luz sobre o tão importante e incomodante problema do mal. O texto não
trata das razões últimas de Deus. Não podemos entender por quê Deus faz o que faz, mas
podemos crer que Ele faz o que faz.
Quando Deus fala que ―crio as trevas e faço o mal‖, Ele assume perfeitamente a
responsabilidade pela entrada do mal no mundo. Esta é uma revelação que não devemos
desprezar para justificar a nossa teologia, porque, fazendo assim, estaremos andando de (não ao)
encontro à Sua revelação.
Nos capítulos 40 a 45, o tema de Isaías é a soberania divina. Aliás, este é um tema que
atravessa toda a Escritura, mas Isaías dá uma atenção especial a ele. Há um só Deus e Ele está
sobre todas as coisas.
Como Paulo, Isaías declarou todo o conselho de Deus e, fazendo isto, proclamou que Deus
está acima e sobre todas as coisas. A declaração pelo próprio Deus sobre a origem do mal nas
palavras do v.7, dá-nos algumas idéias sobre as quais passamos a discorrer:86
Em que sentido Deus é o criador do mal? 87 O que Ele quer dizer com Is 45.7? Será que o
mal do v.7 diz respeito apenas aos castigos, aos flagelos, às penalidades que Ele impinge aos
homens? Ou será muito mais que isso?
Não temos todas as respostas às perguntas sobre a origem do mal, mas cremos ser o mal
referido no texto de Isaías seja o problema do mal moral. De qualquer forma, de algumas coisas,

86 Fundamentalmente, essas idéias estão incluídas no livro de Willian Fitch, Deus e o Mal, (São

Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1984), 9-21.


87 A expressão ―crio o mal‖ não deve ser entendida com a clássica frase que torna Deus ―o autor do

mal‖ ou ―o autor do pecado‖. Deus é santo e não pode pecar, não envolve-se pessoalmente com aquilo que é
moralmente mau. Nem mesmo Deus induz os homens ao pecado (Tg 1.13, 14). Is 45.7 não diz que Deus leva
o homem a pecar, tentando-o. Do Deus da Escritura não pode ser dito que faz coisas moralmente mas,
embora faça coisas que sejam contrárias à lei que Ele estabeleceu como regra de vida para nós, e Ele está
acima dessa lei, não sujeito a ela Se Ele viola uma dessas leis, Ele não se torna pecador, porque a lei é para
homens, e não para Ele.
81

temos absoluta certeza:

1) Deus não foi tomado de surpresa nela Presença do Mal no mundo


Não creio que Deus seja o autor do mal no sentido dele envolver-se pessoalmente no mal,
mas sabemos que o mal não é produto do acaso. Ele é parte de um plano maior de Deus, plano
esse que Ele não deu a conhecer em todos os seus detalhes. Com certeza, o decreto eterno de
Deus tornou segura a entrada do pecado no universo. Nada é mais verdadeiro do que isso. Não
existe nada que acontece neste mundo que não seja parte dos desígnios de Deus.
O que é dito pelo profeta para confortar Ezequias, que havia sido ameaçado pelo rei
Senaqueribe, serve para ilustrar que Deus faz todas as cousas na história do mundo como
produto de um plano previam ente traçado.

2Rs 19.25 – ―Acaso não ouviste que já há muito dispus eu estas cousas, já
desde os dias remotos o tinha planejado? Agora, porém, as faço executar, e eu quis
que tu reduzisses a montões de ruínas as cidades fortificadas.‖

Todas as cousas que Deus executa na história são produto de um plano previamente
estabelecido. Todos os eventos, os grandes e os pequenos, vêm como produto do cumprimento
dos desígnios eternos de Deus. Não é diferente com o decreto da entrado do pecado no mundo.
A entrada do mal no universo angelical e humano serve para um propósito previamente
estabelecido, especialmente se entendemos o plano da salvação que foi proclamado e anunciado
antes da fundação do mundo (Tt 1.2).
A segunda verdade neste assunto é que, no texto de Isaías,

2) Deus assume a Responsabilidade pela Presença do Mal no Mundo

Ele não conta as razões pelas quais ele responsabiliza-se pela presença do mal no mundo,
mas é obvio que Ele não foi apanhado de surpresa pela presença do pecado no Seu universo.
Com certeza, sabemos que Deus rejeita algumas idéias errôneas a respeito da
origem do mal:
a) Neste texto de Isaías Deus rejeita a doutrina do Dualismo.88

O dualismo ensina sobre deuses rivais, de igual poder. Hughes define dualismo como ―a
teoria de que por dentro e por detrás de toda a realidade há a presença não de um, mas de dois
princípios eternos e absolutos que são irreconciliáveis, opostos um ao outro,‖89 especialmente
quando se trata do difícil problema da coexistência do bem com o mal neste mundo.
A presença do mal coexistindo com o bem teve uma solução simplista na teologia das
religiões do oriente. E assim que o livro sagrado do zoroastrismo, a mais elevada das religiões
não-bíblicas, contorna a dificuldade da presença do mal no universo. O zoroastrismo apregoa
dois deuses — Ormuz e Arimã. Ambos criaram o mundo. O bom deus Ormuz criou as coisas
boas; o mau Arimã criou todas as coisas más. O primeiro era o deus da luz, e o segundo o das
trevas, que sempre lutaram num conflito ininterrupto. Hughes nos diz que:

88 Dependendo do ponto-de-vista, vários ―dualismos‖ podem ser identificados na teologia. Um deles,

é o dualismo relacionado à matéria e ao espírito, muito comum no gnosticismo que a Escritura combateu,
logo no primeiro século da era cristã. Esta seita ensinava que havia dois poderes supremos, o da luz e o das
trevas. Ela ensinava que a luz não poderia abordar as trevas, que era irreconciliavelmente oposto a ela. A fim
de ligar esse abismo entre luz e trevas, tinha que haver seres intermediários. Jesus era um desses seres
intermediários (eons). Por ele ser da luz, ele não poderia ser matéria, não poderia ter vindo em carne. esse
tipo de erro que João combate na sua carta (1 JO 1.1-2).
89 Philip Edgcumbe Hughes, The True Image, (Grand Rapids: Willian Eerdmans Publishing

Company, 1989), 83.


82

―foi este tipo de dualismo que tornou-se um elemento proeminente na filosofia


sincretista do Maniqueísmo, fundado por um persa chamado Mani, no terceiro
século da era cristã, pelo qual Agostinho sentiu-se muito atraído antes de sua
conversão para a fé cristã.‖90

Esse tipo de dualismo pairava na Pérsia, onde reinava o rei Ciro, quando Deus se lhe
dirigiu, porque este cria dualisticamente. Foi por essa razão que Deus disse várias vezes: ―Eu sou
Deus. Além de mim não há outro...‖.
Esta solução dualista para explicar a coexistência do bem com o mal é uma solução
anti-escriturística porque ata o princípio do mal como algo inseparável do universo que Deus fez.
Em última instância, a religião do dualismo nunca dará a vitória ao bem, porque os dois
princípios são eternos e igualmente poderosos. ―A religião dualista é uma religião sem esperança
da eliminação definitiva do mal e do triunfo do bem.‖ 91 A teoria dualista é absolutamente
incompatível com a teologia do cristianismo. Por essa razão, Deus rejeita a possibilidade do
dualismo. no texto de Isaías 45.

b) Neste texto de Isaías Deus rejeita a idéia da espontaneidade do mal.

Este teoria da teodicéia de alguns estudiosos diz que o mal apareceu sem que alguém o
trouxesse à existência. Se o mal surgisse assim, Deus não teria tido qualquer controle sobre as
cousas deste mundo. O mal sendo gerado espontaneamente tira Deus do trono de sobre todas as
coisas. Mas Deus diz: ―Eu faço todas as coisas...‖.

c) Neste texto de Isaías Deus rejeita as idéias deterministas que apresentam o pecado
como uma necessidade inerente na natureza íntima de todas as coisas.

O filósofo alemão G. W. Leibniz (1646-1716) ensinou em sua teodicéia que existe uma
imperfeição metafísica que é inerente na real constituição de todas as cousas criadas. 92 A
presença do mal é parte constituinte e está embutida na estrutura de todas as cousas. Leibniz
admitiu claramente que ―há uma imperfeição original na criatura, mesmo antes de o pecado ser
cometido, porque a criatura é limitada em sua essência.‖ 93 Nesse ponto, Barth assimila algo de
Leibniz, porque sustenta que o problema do homem é o fato dele ser criatura. O pecado apenas
complica esse problema. O mal está inerente e necessariamente presente no mundo pelo fato dele
ser criação. Leibniz falou ainda do ―verdadeiro pecado necessário de Adão que é cancelado pela
morte de Cristo!‖94
Hegel sustenta que o aparecimento do mal é algo necessário para que o homem chegue à
sua humanidade plena. A idéia de Hegel é que ―a queda em si mesma foi um desenvolvimento
necessário para a realização pelo homem de sua humanidade autêntica.‖ 95 Hegel não nega que o
homem foi criado bom, mas afirma que a vinda do mal era necessária para que o homem se
tornasse completo. ―Assim, Hegel supôs que ambos, o bem e o mal, foram necessários se o
homem estava para desenvolver para a plenitude de sua humanidade, e que o alcance da síntese
fosse possível somente pelo modo da confrontação entre a tese e a antítese.‖ 96

90 Hughes, 85.
91 Hughes, 85.
92 Hughes, 93.
93 G. H. Leibniz, Theodicy: Essays on the Goodness of God, the Freedom of Man, and the Origin of

Evil, (London, 1951), parágrafo 21-21.


94 G. H. Leibniz, Theodicy: Essays on the Goodness of God, the Freedom of Man, and the Origin of

Evil, (London, 1951), parágrafo 40.


95 Hughes, 96.
96 Hughes, 97.
83

Estas teorias tornariam Deus o autor direto do mal, porque Ele teria criado todas as
cousas como necessitadas do mal. A teodicéia cristão não pode admitir tais teorias. Deus criou
todas as cousas e disse que elas eram muito boas! ―E viu Deus tudo o que criou e disse: Eis que
tudo é muito bom‖ (Gn 1.31).

d) Neste texto de Isaías Deus rejeita a idéia da eternidade do mal.

A idéia da eternidade do mal geralmente surge da idéia do dualismo dos deuses rivais.
Assim como houve sempre o bem, da mesma forma houve o mal.
Mas a Escritura rejeita essa teoria. O mal veio a existir no universo e no mundo dos
homens. Houve um ―tempo‖ quando não havia a presença do mal no universo criado. O mal
apareceu primeiro no mundo angelical e, depois, no mundo dos homens. O mal não é eterno.
Eterno é Aquele que é o bem.
Portanto, quando Deus diz que ―cria o mal‖, Ele está aceitando a responsabilidade pela
presença do mal no meio da Sua criação. Não basta dizer, como Calvino 97 e outros, que disseram
que o ―mal‖ mencionado por Isaías se refere aos males dos juízos e punições que Deus envia aos
homens. O texto parece ir muito mais profundo do que isso. A palavra usada para ―criar‖ aqui em
Isaías 45.7, é exatamente a mesma que foi usada em Gênesis, quando da criação das coisas sem
ter qualquer material pré-existente. Portanto, Deus também chamou o mal à existência, mas Ele
fez com que ele viesse ao mundo através da agência das criaturas racionais, tanto anjos como
Adão e Eva, que agiram livremente, isto é, sem compulsão exterior alguma, apenas levados por
seus desejos e conveniências, incompreensivelmente nascidos numa natureza santa com a qual
foram criados.
Vejamos alguma coisa relacionada com o contraste entre as palavras usadas em Is 45.7.
Deus disse: ―Eu faço a paz e formo a luz‖. Não havia necessidade de Deus ―criar‖ a paz e a luz,
porque Deus é luz e paz (1 JO 4.5; Gl 5.22). Deus compartilha a Sua vida com os homens quando
lhes dá o dom da luz e da paz. Mas o mal é cousa muito diferente. Ele ainda não existia, e, por
razões desconhecidas de nós, Deus resolveu dar origem ao que não havia antes. Por isso, o mal
requer uma criação especial e, assim, as Escrituras inspiradas empregam a palavra )frfB, para
referir-se à criação do mal.
Todas as respostas não estão, obviamente, aqui, mas não podemos fugir do assunto que
Deus aceita tratar abertamente, embora não nos revele todos os seus detalhes.
A terceira verdade que devemos apresentar sobre este assunto e:

3) Deus Restringe a Operação do Mal em Sua Criação


A Bíblia afirma que Deus restringe o pecado. Não há nenhum ponto nas Escrituras em
que a vitória seja concedida às forças das trevas. Muitos crentes podem até perguntar: ―Até
quando, Senhor, até quando o mal reinará?‖ — Mesmo em suas horas mais sombrias, quando
das profundezas do seu ser eles suplicam ao Trono nas alturas, os filhos de Deus ainda se
mantém confiantes em que a justiça haverá de triunfar e que, finalmente, o bem será visto
claramente como o supremo vencedor, porque crêem que Deus é poder e justiça.
O livro do Apocalipse fala do sangue do martírio dos filhos do povo de Deus, fala da
mutilação dos corpos deles, mas de forma alguma esse livro profético fala da vitória e do domínio
do mal no universo de Deus. O universo é de Deus, não do diabo. Deus ainda está no trono. Deus
não perdeu o controle sobre nada. Tudo o que acontece de mal é para o cumprimento dos Seus
santos e eternos propósitos, mesmo que as razões últimas deles sejam escondidas de nós.
A Escritura acentua que Deus nunca permite que o mal Lhe escape das mãos. Ele o
controla, restringindo-o. Satanás não tem o poder de frustrar os desígnios de Deus. O inimigo dos

97 No seu comentário de Isaías, Calvino interpreta o mal como sendo ―aflições, guerras e outras

ocorrências adversas‖. Isto ele faz para livrar-se daqueles que ele chama de ―fanáticos, que torturam a
palavra mal, como se Deus fosse o autor do mal; mas é muito óbvio quão ridiculamente eles abusam desta
passagem do profeta… Deus é o autor do mal de punição, não do mal de culpa‖.(Ver John Calvin,
Commentary on the Book of the Prophet Isaiah, (Baker, 1981 edition), p.403.
84

filhos de Deus pode acarretar grandes prejuízos para nós, causando um dano considerável em
nosso meio, mas o seu governo não é absoluto sobre o mal. Ele opera debaixo da ordem expressa
de Deus. Nada de mal é executado neste mundo sem que seja da vontade decretiva de Deus, que
está no controle da história. Se Deus não estivesse no leme do barco que caminha para o fim da
história, como poderia Deus ter certeza de que vai chegar onde determinou que haveria de
chegar? E fácil perceber nas Escrituras que, para que o fim chegue, muita coisa má ainda tem
que acontecer. O mal que ainda vai acontecer está determinado por Deus, que o executará
através da agências de suas criaturas racionais, mas tudo acontecerá sempre debaixo do
controle restringente dele.
Deus está executando um plano de redenção, e é redenção do mal, e resgate das forças do
Maligno. Para que sejamos confortados no meio de grandes males que o mundo enfrenta, é
necessário que olhemos a história do ponto-de-vista de Deus que a determina, embora nós
sejamos os agentes dela. Deus haverá de eliminar o mal do Seu mundo, e a implantação da
justiça é uma questão apenas do ―tempo‖ de Deus.
E interessante notar o otimismo da Escritura, quando ela observa o contraste entre o bem
e o mal. A Escritura

é completamente realista acerca do mal, porém jamais concede vitória ao mal.


Os poderes do mal são mantidos em constrição. As suas áreas de operação são
delineadas e delimitadas por Deus. Quando Cristo morreu na cruz, parecia que o
mal triunfara realmente. Mas, veja! — no terceiro dia Cristo ressurgiu dos mortos.
Satanás e suas legiões são frustrados e a sua fraqueza básica é exposta. E é sobre
isso que Isaías canta neste grande capitulo, qual Monte Everest: ―Destilai vós,
céus, dessas alturas, e as nuvens chovam justiça; abra-se a terra, e produza-se
salvação, e a justiça frutifique juntamente‖ (Is 45.8). Eis aqui o otimismo bíblico
em sua máxima e melhor expressão. Deus não está desamparado no meio da
aparente ruína da Sua criação. Deus está realizando os Seus propósitos, anos
após ano; e os Seus propósitos estão muito além da compreensão do homem
mortal. Todavia, isto é claro. Naquele propósito soberano, Deus usará o mal para a
Sua glória. Ele fará com que a ira dos homens O louve (Sl 76.10). Ele não
descansará enquanto o mal não se queimar totalmente e toda a criação não for
libertada para o glorioso dia em que o pecado não mais existirá. 98

A quarta verdade sobre este assunto é que

4) Deus Sempre Proporciona um Escape para o Mal


Deus diz: ―Eu formo a luz‖ e ―Eu faço a paz‖. Deus toma a iniciativa na provisão de um
meio de escape do domínio do mal. Veja que doce promessa para o escape do mal:

―Israel, porém, será salvo pelo Senhor com salvação eterna; não sereis
envergonhados, nem confundidos em toda a eternidade. Porque assim diz o
Senhor que criou os céus, o único Deus que formou a terra, que a fez e que a
estabeleceu; que não a fez para ser um caos, mas para ser habitada: Eu sou o
Senhor e não há outro. Não falei em segredo, nem em lugar algum de trevas da
terra; não disse à descendência de Jacó: Buscai-me em vão; eu, o Senhor, falo a
verdade, e proclamo o que é direito‖ (Is 45.17-19).

Parece que as promessas do Senhor demoram para serem cumpridas, mas Deus tem se
mostrado fiel a todas as Suas promessas, e também não falhará nesta. Jesus é a provisão de
Deus para a redenção do pecador do mal. Ele é a luz que, vinda ao mundo, dá vida aos homens
(Jo 1.9; 8.12). O calvário é a fonte onde somos lavados de todas as nossas imundícias da

98 Fitch, p. 18-19.
85

natureza pecaminosa. O pecado já não mais tem domínio sobre nós (Rm 6.14). Essa é a promessa
que temos de que Deus está no trono, sendo vitorioso sobre o mal, proporcionando um escape
para ele. O pecado não mais reinará sobre os nossos corpos mortais, porque Cristo já conseguiu
a vitória por nós e no nosso lugar, e bem logo, veremos esta coisas claramente, quando o Senhor
Jesus se manifestar em glória.
A quinta verdade sobre esta matéria é que

5) Deus Insta aos Homens para que Fujam do Mal e se Refugiem nele.
Veja o que Deus diz nesse mesmo capítulo de Isaías:

―Olhai para Mim e sede salvos, vós, todos os termos da terra; porque Eu sou
Deus e não há outro. Por mim mesmo tenho jurado; da minha boca saiu o que é
justo, e a minha palavra não tornará atrás. Diante de mim se dobrará todo o
joelho, e toda língua. De mim se dirá: tão somente no Senhor há justiça e força; até
Ele virão e serão envergonhados todos os que se irritarem contra Ele. Mas no
Senhor será justificada toda a descendência de Israel, e nEle se gloriará.‖ (Is
45.23-25).

A verdade é vista de forma duplamente completa: os do Seu povo têm salvação do mal nele
e nele serão justificados, e os ímpios haverão de prestar contas a Ele de suas maldades, porque
Ele é o Deus da justiça.
Deus continua no trono. E do Seu trono que Ele está falando aqui. E é para o Seu trono
que somos convocados a olhar. O homem terá que ser libertado do pecado, e isso acontecerá por
Jesus Cristo, em quem o homem deverá olhar com fé. A Escritura sempre encoraja os homens a
buscarem refúgio e socorro nele, afastando-se do mal. E isso que o Senhor deseja que façamos e,
para isso, necessitamos de Seu auxilio!

B) DADOS BÍBLICOS SOBRE O CARÁTER DO PECADO

99
1) O Pecado é uma classe específica de mal

Muito se fala na atualidade a respeito do mal, mas pouco se tem dito a respeito do pecado.
Esta é uma palavra omitida na maioria das publicações ou conferências científicas que tratam
dos problemas da raça humana. Contrariamente, a Escritura fala muito a respeito do pecado,
que tem a ver com a transgressão de uma lei divina, mas é preciso ter em mente que nem todo o
mal é pecado. O pecado não deve ser confundido com os males físicos que provocam as
calamidades e prejuízos, que tantas dores têm trazido à raça humana. Estes últimos, na maioria
das vezes, vêm como manifestação do julgamento parcial de Deus sobre os pecados dos homens.
Aquele, entretanto, é um mal moral, porque afeta e viola uma lei moral de Deus, é uma oposição
deliberada àquilo que Deus estabeleceu. No seu cerne, o pecado é sempre um ato positivo de
oposição a Deus, que envolve culpabilidade pessoal, e é produto de uma ação voluntária da parte
do homem, como agente livre que é (Gn 3.1-6; Rm 1.18-32; 1 Jo 3.4).

100
2) O Pecado tem um caráter absoluto
Na esfera ética o contraste entre o bem e o mal é absoluto. Não há um intervalo de
neutralidade entre ambos. Ainda que haja graus em ambos, não há grau entre um e outro. A

99 Ver Berkhof, p. 276 (edição castelhano).


100 Ver Berkhof, p. 277 (edição em castelhano).
86

transição de um para o outro não é de caráter quantitativo, mas qualitativo. Um ser moral que é
bom não se converte em mau por diminuir a sua bondade, mas unicamente por uma mudança
qualitativa radical volvendo-se para o pecado. O pecado não é um grau menor de bondade, mas
um mal positivo. A Escritura não reconhece qualquer posição de neutralidade entre o bem e o
mal. O homem está do lado do justo ou do ímpio.

Mt 12.30 – ―Quem não é por mim, é contra mim; e quem comigo não ajunta,
espalha.‖

O que Jesus está querendo dizer neste verso é que se Ele merece o nosso respeito, merece
que o recebamos de todo o coração. Se não rendemos todo o coração a Cristo, não lhe estamos
rendendo cousa alguma. Não existe a idéia de estar indiferente com respeito a Cristo. A
indiferença é considerada oposição a Ele. Ou Lhe damos a honra, a adoração e o amor que Ele
merece, ou O desonramos, cultuamos o demônio e odiamos ao Filho de Deus. Trata-se de ser oito
ou oitenta com Jesus. Não existe equilíbrio no sentido de ficar entre Jesus e Satanás. Não há
posição de indiferença ou neutralidade. Por isso, Ele disse: ―Quem não é por mim, é contra mim.‖
Não há forma de ser neutro nas coisas espirituais. Se alguém não é seguidor de Jesus
Cristo, certamente estará do lado do maligno. Aqueles que não estão fazendo a obra de Deus
estão fazendo as obras do diabo. Não estar do lado de Deus significa estar do lado de Satanás.
Não existe meio termo ou neutralidade na esfera espiritual.

3) O Pecado tem a ver com a transgressão da Lei


A Escritura afirma categoricamente que o pecado ―é a transgressão da lei‖ (1Jo 3.4). O
pecado propriamente não existiria para o homem se não houve uma lei estabelecida. Desde o
começo do mundo, no pacto de obras do Éden, Deus estabeleceu leis para serem cumpridas pela
sua criatura racional. Para que não houvesse dúvida quanto ao conceito de que pecado tem a ver
com a lei, Deus colocou duas leis para o homem: uma interna, quando imprimiu as suas leis nos
corações deles (Rm 2.12-15); a outra ele a transmitiu em palavras, quando no jardim deu as
devidas ordens (Gn 2.15-16). Posteriormente, Deus formalizou essas leis gravando-as em tábuas
no tempo de Moisés, para que ninguém pudesse alegar falta de conhecimento.
Portanto, quando o homem peca, ele transgride uma lei que Deus estabeleceu.

C) A ORIGEM DO PECADO NO MUNDO ANGELICAL

A Bíblia deixa absolutamente claro que o pecado não começou no Éden, com a queda dos
nossos primeiros pais. O pecado vai além de Gn 3. Deus havia criado as hostes angelicais, e todos
as cousas que Deus fez eram boas quando vieram das mãos do seu Criador (Gn 1.31; 2.1).
2 Pe 2.4 diz que ―Deus não poupou a anjos quando pecaram, antes, precipitando-os no
inferno, os entregou a abismos de trevas, reservando-os para juízo‖. A queda dos anjos ocorreu
quando legiões deles ―abandonaram o seu estado original‖ (Jd 6). O tempo exato dessa queda não
se sabe, mas Jo 8.44 diz que o Diabo foi ―homicida desde o princípio‖, e 1 Jo 3.8 diz que ele vive
―pecando desde o princípio‖.
Estas passagens mostram que houve um primeiro estado, um estado original no qual eles
eram santos, estado de criação esse que eles abandonaram. Eles caíram e foram tornados
instrumentos de ruína para os outros seres racionais, os homens. A Escritura, contudo, não diz
quase nada sobre a queda dos anjos. E possível que o ―orgulho‖ tenha sido o pecado de
Satanás 101 , mas não há nenhuma outra indicação que nos dê mais luz sobre a queda de
Satanás.

101 Esta é uma referência sacada de 1 Tm 3.6, onde se supõe que Satanás é orgulhoso, soberbo,
porque quis ser igual a Deus. O mesmo pode deduzir-se das palavras que ele usou para tentar Eva, em Gn
3, onde ela a induziu a ser como Deus.
87

Vários estudiosos da Escritura usam as passagens de Is 14.12; Ez 28.12-15 e 31.1-18


para explicar a queda de Satanás. Creio que estas passagens se referem a homens que viveram
em nossa história, e não se referem a Satanás. Contudo, podemos ver nessas passagens a
respeito de homens orgulhosos, uma ilustração do que aconteceu a Satanás, mas seria injusto
com a Escritura afirmar estas passagens são um registro do que aconteceu a Satanás. Assumo
esse ponto-de-vista, pelas seguintes razões: 1) Porque estas passagens não são vaticínios, isto é,
elas não estão dizendo que os reis são tipos de Satanás, porque este é anterior àqueles; 2) Porque
o NT não lança luz sobre essas passagens, explicando-as como fez com outras. Se houvesse uma
alusão do Novo Testamento àquelas passagens, então, poderíamos, com certeza, afirmar a queda
de Satanás, porque a Bíblia teria interpretado a si mesma; 3) Porque a Escritura fala claramente
que os personagens são seres humanos reais que viveram em nossa história.

D) A ORIGEM DO PECADO NO MUNDO DOS HOMENS


Não há outra maneira de se explicar o que está acontecendo à raça humana, se não
através do episódio do Jardim do Éden. A revelação divina é a única que dá uma resposta para o
problema dos pecados no pecado do homem. Os antropólogos, sociólogos e psicólogos ficam
totalmente perdidos quando começam a tratar do problema do pecado, embora essa palavra
quase nunca apareça nos seus escritos. Ficam totalmente perdidos nessa matéria porque não
levam em conta o registro bíblico sobre a origem e a queda do homem. Se o fizessem, muito mais
luz haveria entre os homens que estudam e lêem e ensinam sobre antropologia, psicologia e
sociologia. A ignorância da Palavra de Deus traz a ignorância da origem dos males nos corações
dos homens.
A filosofia também não tem respostas a perguntas como estas: Qual é a fonte das
imperfeições da natureza humana? Por que há tantos males que infestam a vida dos homens?
Por que o homem é sempre avesso à lei que lhe é imposta? Por que o homem sempre se opõe a um
código de ética que é útil para os seus semelhantes e, por conseguinte, para si próprio? Estas
perguntas não são respondidas, a não ser por aquele que estuda a Palavra de Deus, a única fonte
confiável de informação sobre a real condição humana. Nenhum cientista ou filósofo pode negar
as inclinações pecaminosas do ser humano, mas eles não sabem como ele se tornou assim. O
problema da hereditariedade não responde muito às indagações, porque deixa por explicar como
nossos ancestrais originais vieram a ser o que foram. Não há como fechar os olhos para o que
está diante de nós. Pink diz:

―Olhe não somente para os nossos presídios, hospitais, cemitérios, mas


também para a antipatia entre o justo e o ímpio, entre aqueles que temem a Deus
e os que não O temem. O antagonismo entre Caim e Abel, Ismael e Isaque, Esaú e
Jacó, é repetidamente duplicado em todas as épocas e lugares. Mas a Bíblia,
somente a Biblia, indica a fonte de todas essas coisas.‖ 102

A Escritura tem a resposta para os males no mundo dos homens, e seu terrível
comportamento, em Gn 3.1-6.

Análise de Gn 3.1-6
Este texto descreve o evento que deu origem aos males que há no mundo dos homens. O
que Moisés narra nestes versos diz muito mais do que todos os homens poderiam dizer juntos
sobre o pecado, se tivessem que descobrir a razão do comportamento deles por si próprios. Este
é um dos capítulos mais importantes da Escritura, porque é a chave para o entendimento da
pecaminosidade humana. Aqui começa o grande drama da miséria humana, e Deus é muitíssimo

102 A. W. Pink, Gleanings the Scriptures, (Chicago: Moody Press, 1977), p. 14.
88

claro quando trata da origem do pecado em nossa raça e, ao mesmo tempo, mostra a Sua
provisão para a miséria humana.
Vejamos a analise, verso por verso:

Gn 3.1 — ―Mas a serpente, mais sagaz que todos os animais selváticos que o
Senhor Deus tinha feito, disse à mulher: E assim que Deus disse: ―Não comereis
de toda árvore do Jardim?‖

Devemos ter muito cuidado ao interpretarmos este verso. Cremos que a afirmação do
texto refere-se a uma serpente literal como sendo instrumento103 de um ser superior. Cremos
que esta narrativa é histórica, e não alegórica, como sugerem alguns estudiosos. Observe outras
referências ao episódio de Gn 3.1 e veja que outros autores bíblicos a consideram como a
narração de um fato histórico (Jó 31.33; Is 43.27; Os 6.7; Rm 5.12, 14; 1 Tm 2.13, 14). Estes
versos que dizem respeito ao livro de Gênesis não devem ser interpretados figuradamente, mas
como que narrando eventos que realmente aconteceram. Perceba que Paulo trata de dois
personagens históricos: Adão e Cristo. A menos que Cristo tenha sido um mito, Adão deve ser
considerado um personagem histórico.
A serpente deve ser vista como um animal entre as criaturas de Deus. Não seria boa
exegese substituir ―serpente‖ por ―Satanás‖. Satanás não é igual serpente. O castigo mencionado
em Gn 3.14, 15, pressupõe uma serpente verdadeira, e Paulo não imagina uma serpente de outra
maneira.104 Houve, de fato, um poder sobre-humano na serpente, que não é mencionado em
Gênesis 3. Mas a Escritura deixa claro que a serpente era unicamente o instrumento de Satanás,
e que o verdadeiro tentador estava operando em e por meio da serpente, do mesmo modo que
posteriormente operou nos homens e nos porcos. A serpente foi o instrumento adequado de
Satanás para que fizesse o que fez. A serpente simboliza a natureza sutil e enganosa do pecado,
e tem um aguilhão venenoso que mata o homem. E por isso que Satanás, por sua astúcia e
sagacidade, é chamado de a ―antiga serpente‖ (Ap 12.9; 20.2).
O leitor atento haverá de perceber que a narrativa abrupta, que começa no verso 1, dá a
entender que a serpente estava replicando a alguma cousa que Eva havia dito antes. Com toda a
probalidade, quando a serpente chegou, Eva já estava observando a árvore proibida.
Concordamos com aqueles que têm concluído que Adão não estava com Eva quando a
serpente conversou com ela, embora saibamos que, logo após, ele juntou-se a ela. Eva estava só,
portanto, quando confrontou-se com a serpente. A base dessa afirmação está em 1 Tm 2.13-14,
onde o Espirito Santo deixou enfático o fato de Eva ter sido enganada, não Adão. Ela foi quem
seduziu Adão, não a serpente. Pode muito bem ser dito que Satanás tentou Eva que, por sua vez,
seduziria Adão; assim Satanás tentou Jó por sua esposa e Cristo através de Pedro. Esta é a sua
política: enviar tentações por mãos insuspeitas, isto é, por aqueles que têm interesse e influência
sobre nós.
A serpente, então, tentou Eva, na ausência do marido. O fato de Eva estar só, lança luz
sobre o que ocorreu. Ela não havia recebido pessoalmente a ordem de Deus, e, sim, Adão.
Sozinha, ela não teria ninguém para lembrá-la da ordem divina e, assim, foi presa mais fácil para
Satanás. Ela aproximou-se da árvore, brincando assim com a ordem de Deus. Como
conseqüência, recebeu o ataque da serpente sagaz. Ela entrou em território inimigo e foi ferida
por ela.
E por essa razão que a Escritura nos adverte para não andarmos no território do inimigo,
―para que Satanás não alcance vantagem sobre nós, pois não lhe ignoramos os desígnios‖ (2 Co
2.11), porque quem ―anda no caminho dos ímpios, detém-se no caminho dos pecadores e acaba
assentando-se na roda dos escarnecedores‖ (Sl 1.1; ver também Pv 4.14-15).
A serpente disse à mulher: ―É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvore do

103 Ver esta idéia desenvolvida por Berkhof, p. 266 (edição em castelhano).
104 Compare Gn 3.1 com 2 Co 11.3 onde Paulo temia que ―assim como a serpente enganou a Eva
com a sua astúcia, assim sejam corrompidas as vossas mentes, e se apartem da simplicidade e pureza
devidas a Cristo.‖
89

jardim?‖
Nessa pergunta da serpente percebemos a astúcia e a malícia de um inimigo. Sua alusão
à restrição divina é muito maior e mais severa do que parece ser. O Senhor havia feito alusão, de
fato, a uma provisão para a alimentação de nossos primeiros pais, dizendo que eles poderiam
comer ―livremente de todas as árvores do jardim‖, com uma simples exceção (Gn 2.16). Mas
Satanás alterou as providências de Deus na sua pergunta. Ele tentou não somente fazer com que
Eva duvidasse da veracidade de Deus, mas que também suspeitasse da ordem divina. Satanás
está sempre procurando injetar veneno em nossos corações: fazer com que desconfiemos da
bondade e da veracidade de Deus - especialmente em conexão com Suas proibições e preceitos.
Isto é o que realmente está por detrás de toda desobediência: um descontentamento com aquilo
que Deus nos dá. Este descontentamento a serpente plantou no coração de Eva. O veneno já
havia sido injetado. As palavras iniciais da conversa da serpente foram designadas para produzir
em Eva um espirito de descontentamento.
Observe, agora, que a reação de Jesus ante o tentador foi muito diferente. Ele recusou-se
a debater com Satanás, justamente porque Ele queria fazer a vontade Deus. Cada vez que o
inimigo atacava, simplesmente Ele se apegava à Palavra de Deus. Satanás tentou torcer a
verdade, mas Cristo conhecia muito bem as ordens de Deus. O que a mulher não foi capaz de
fazer, a Semente da mulher, Cristo, o fez.

Gn 3.2-3 — ―Respondeu-lhe a mulher: do fruto das árvores do jardim podemos


comer, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Dele não
comereis, nem tocareis nele, para que não morrais.‖

Ao invés de fugir do encontro com a Serpente, Eva entabulou conversa com ela, o que lhe
foi fatal. Satanás é muito mais hábil e inteligente do que nós, e se tentamos dialogar com ele em
seu próprio território, o resultado será desastroso. Sua influência má já tinha começado a afetar
Eva perigosamente, como podemos deduzir da primeira parte da resposta dela à serpente. O
Senhor havia dito: ―De toda árvore do jardim comerás livremente‖ (2.16), mas ela omitiu a palavra
―livremente‖. Isso é indicativo de que a generosidade de Deus já estava sendo questionada. Na
sua resposta parece-nos que Eva acrescentou à ordem de Deus, a expressão ―nem tocareis nele‖.
Isto não é um acréscimo necessariamente, porque dificilmente ela poderia comer do fruto sem
tocar nele.
Há um princípio importante que deve ser notado aqui: quando Deus proíbe qualquer ato,
Ele, ao mesmo tempo, proíbe tudo o que encoraja a realização dele. Esse princípio Ele deixou bem
claro no Sermão do Monte, quando combateu o legalismo dos escribas e fariseus. Jesus insistiu
que ―não matarás‖ não é restrito a um gesto físico de violência, mas já é crime o exercício da
mente precedente ao ato, como o ódio, por exemplo. De igual modo, Jesus declarou que o ―não
adulterarás‖ inclui muito mais do que simplesmente as relações sexuais. Os desejos e
imaginação impuros já constituem o adultério.
Eva, portanto, estava totalmente certa em concluir que a ordem divina a proibia de comer
da árvore do conhecimento do bem e do mal, inclusive tocá-la, porque o ato de comer envolve não
somente o desejo e a intenção, mas também o tocar, manusear, e colocar o fruto na boca.

Gn 3.4 — ―Então a serpente disse à mulher: E certo que não morrereis.‖

Percebendo sua vantagem, agora que havia ganho a atenção de Eva, o tentador tentou
contraditar a ordem da ameaça divina. o tentador começou por semear a dúvida (v. 1). Agora, ele
negou que havia qualquer perigo no comer do fruto. Fazendo assim, o tentador difamou o caráter
de Deus e, agora disse que Deus era mentiroso. E possível que a serpente tivesse comido o fruto
na presença de Eva e, então, teria muita força a sua palavra do v.4 diante de Eva. Foi como se
Satanás tivesse dito a Eva: ―Você não precisa hesitar. Deus só está tentando assustar você.
Averigue você mesmo que esse fruto é totalmente inofensivo, porque eu comi e não aconteceu
nada.‖ — Assim, o inimigo de nossas almas procura persuadir os homens de que eles podem
90

desafiar Deus ficando impunes (veja Dt 29.19).

Gn 3.5 — ―Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão
os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal.‖

Eva, ao invés de fugir da conversa, continuou a dar ouvidos à fala de Satanás. Este não
somente sugeriu que ela não sofreria punição qualquer, com insinuou que ela se beneficiaria ao
comer do fruto, por três razões: Primeiro, por comer do fruto, a capacidade dela de discernimento
e o de percepção seriam sensivelmente aumentados. Este é o sentido de ―se vos abrirão os olhos‖.
Os olhos físicos de Eva e Adão já estavam abertos, portanto, esta referência deve ter sido aos
olhos do entendimento; Segundo, o seu poder seria aumentado, e sua posição melhorada. Eles
seriam como ―Deus‖ ou anjos; Terceiro, a sabedoria seria aumentada em muito, ―sendo
conhecedores do bem e do mal como Deus‖. Isto era algo altamente desejável!
É interessante que Satanás não dirigiu seus ataques aos apetites físicos de Eva, mas à
parte mais nobre do seu ser, isto é, aos apetites da alma humana — querer ser mais sábio,
inteligente, poderoso, ser uma criatura celestial, ser um ser independente, auto-suficiente, agir
independentemente de Deus.
De lá para cá, Satanás tem tentado fazer o mesmo com todos os homens, tentando-os a
tornarem-se independentes de Deus, o que é uma falácia, mas muitos têm caído nessa esparrela.

Gn 3.6 — ―Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos
olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu, e
deu também ao marido, e ele comeu.‖

Antes de examinar os detalhes deste trágico verso, analisemos cuidadosamente duas


perguntas:
Primeira: Por que a soberania da divina ameaça em Gn 2.17 não deteve Eva? Davi
declarou: ―Guardo no coração as tuas palavras, para não pecar contra ti‖ (S1119.11). E claro de
Gn 3.3 que a palavra de Deus estava na mente de Eva ao menos, quando ela foi acossada por
Satanás. Como, então, se explica que ela não se preservou de pecar? Certamente, a resposta é
que ela não fez uso da Palavra, mas namorou com a tentação, parlamentou como inimigo de
Deus, e acabou crendo na sua mentira. Aqui está a mais solene advertência para nós: se
desejamos que Deus nos liberte do tentador, devemos evitar toda ocasião do mal e, como José do
Egito, fugir da tentação. Então, poderemos livremente, orar: ―Não nos deixes cair em tentação,
mas livra-nos do mal.‖
―Eva viu que a árvore era boa para se comer (porque provavelmente Satanás a tinha
comido na frente dela) e que ela era ―agradável aos olhos‖.
Observemos a ordem das duas cláusulas: esperaríamos encontrar, pela lógica, a frase
―agradável aos olhos‖ primeiro que ―boa para se comer‖. Por que estariam elas mencionadas
inversamente?
Isto capacita-nos a entender melhor o significado da frase ―vendo a mulher que a árvore
era boa para se come‖. O elemento tempo não pode ser ignorado aqui. Cremos, porque está
implícito, que a serpente comeu do fruto na presença de Eva. Como ela poderia perceber que a
árvore era ―boa para se comer‖, se alguém não a tivesse provado? Como Eva poderia saber que o
fruto era ―desejável para dar entendimento‖ a menos que alguém tivesse previamente
testemunhado através de uma demonstração visual do fato?
É evidente que as palavras ―vendo a mulher que a árvore era boa para se comer‖
significam que ela havia visto a serpente comê-la sem morrer ou sofrer qualquer punição. Então,
ela seguiu o exemplo da serpente. Este fato interferiu no raciocínio de Eva. Ao invés de crer na
Palavra de Deus, Eva andou pelo que viu — como seus filhos e filhas fazem ainda hoje — e as
aparências enganam.
Eva viu que a árvore ―era agradável aos olhos‖. Não havia nada na aparência exterior do
fruto que indicasse que ele era impróprio para ser comido. Ao contrário, ele parecia atraente. Em
91

Gn 2.9 lemos: ―Do solo fez o Senhor Deus brotar toda sorte de árvores agradável à vista e boa
para o alimento...‖ — Como o texto mostra, a árvore do conhecimento do bem e do mal não era
exceção. Toda a criação foi bela e agradável aos sentidos. Mas Eva, por entregar-se à tentação da
serpente, notou que aquela árvore era particularmente bela. Eva teve o desejo secreto e
cobiçou-a.
Se houvesse havido qualquer incerteza na mente de Eva, ela poderia ter consultado seu
marido. Segundo a Escritura, este é o dever e o privilégio de uma esposa. Mas ela quis ter
―entendimento‖ como Deus. Ela fez o juízo pelo que a serpente disse, e não pelo que Deus havia
dito ao seu marido. Ela preferiu a falsa esperança que o inimigo lhe havia dado, mas ela foi
enganada.
Primeiro, ela deu crédito ao ―é certo que não morrereis‖ (v.4); depois foi atraída pela
perspectiva de tornar-se igual a ―Deus‖ ou anjo. E, então, sob essa crença, comeu do fruto.
A palavra hebraica fdfm:xen:w para ―desejável‖ (v.6), tem a mesma raiz (Dom:xat) em Ex
20.17, e é traduzida aqui por ―cobiça‖. A mesma palavra é chamada ―concupiscência‖ em Rm 7.8,
e ―cobiça‖ em Tg 1.15. De fato, esta última passagem, de algum modo, traça o caminho em
detalhes da desobediência final de Eva, mesmo embora ela não possuísse natureza pecaminosa,
como nós hoje a possuímos.
O estatuto do Éden, tanto quanto o dos Dez Mandamentos, envolvia ambos, os desejos
interiores e os atos exteriores. Aquele que deseja o mal proibido, de fato já o escolheu, como
aquele que odeia antes de violar o sexto mandamento, embora nunca chegue a uma violência
física. Eva não poderia nem desejar o fruto, porque Deus a havia proibido de comê-lo. Ao invés de
desejá-lo, ela deveria fugir dele. Cobiçar o que Deus proíbe já é pecaminoso, é preferir a criatura
ao invés do Criador. Esta é a grande advertência para nós todos. Se estimamos coisas apenas
levados pelos sentidos, ou pelo que outros dizem delas, ao invés de aceitarmos o que Deus diz a
respeito, certamente erraremos em nosso juízo. Nada é bom para nós exceto aquilo que vem das
mãos de Deus.
Eva, então, ―tomou-lhe do fruto e comeu‖— sem consultar Adão. Tão forte foi o desejo do
seu coração, que ela não quis ouvir a opinião de ninguém. Assim, ela completou a transgressão.
A serpente não colocou o fruto na boca de Eva. O diabo pode tentar, mas não pode forçar
ninguém a pecar. Por sua própria determinação, obedecendo a desejos interiores, ela comeu do
fruto. Ela, e nem nós, podemos culpar quem quer que seja pelos nossos próprios atos
pecaminosos.
A essa altura, Adão juntou-se a Eva, porque é dito que Eva deu o fruto ao seu marido, ―e
ele comeu‖. Este é o progresso do pecado: alguém entrega-se à tentação e, então, torna-se o
tentador de outras pessoas. Ao invés de recusar o fruto, Adão comeu. O texto da Escritura diz
―que Adão não foi enganado‖ (1 Tm 2.14), o que o torna um maior culpado. Ele apenas ―atendeu
a voz de sua mulher‖ (Gn 3.17), e isto foi o bastante para ele apostatar de Deus. Foi uma revolta
contra o Criador, uma insurreição à Sua supremacia, uma rebelião contra a Sua autoridade.
Deliberadamente Adão resistiu à vontade revelada de Deus, desertou do Seu caminho. Em
conseqüência, ele perdeu sua primitiva excelência e toda a sua alegria. Assim, Adão lançou-se a
si mesmo, e a toda sua posteridade, na ruína espiritual. Esta foi a origem do pecado na raça
humana. Gn 3 dá-nos uma narrativa inspirada de como o pecado invadiu o território dos
homens, e também nos dá a única resposta para os males e as misérias que permeiam este nosso
mundo.
Resumo: A queda do ser humano foi ocasionada pela tentação da serpente, que semeou
na mente de nossos primeiros pais a desconfiança e da incredulidade. Ainda que, sem dúvida, o
propósito da serpente tenha sido o de fazer Adão cair, ele se dirigiu a Eva provavelmente pelas
razões que se seguem: a) Ela não era a cabeça do pacto e, portanto, não teria o mesmo sentido de
responsabilidade; b) Ela não havia recebido o mandato de Deus diretamente, mas de forma
indireta, através de Adão e, por conseguinte, seria mais suscetível ao argumento da dúvida; c)
Com segurança ela seria o agente mais eficaz para chegar ao coração de Adão.
Assim, portanto, deu-se a história da queda do homem, o inicio do pecado no mundo.
92

PARTE 3

A CONDIÇÃO DO

HOMEM DEPOIS DA

QUEDA

(DOUTRINA DO PECADO)
93

CAPÍTULO VIII

A TRANSMISSÃO DO PECADO

O pecado original (que é a culpa e a conseqüente corrupção) tem sido a experiência de


todos os homens. Tanto a Biblia quanto a experiência humana têm mostrado a universalidade do
pecado. Segundo a Escritura, a origem disto tudo está na queda de Adão. Neste capitulo vamos
ver qual é a conexão que há entre o pecado de Adão com o da humanidade em geral.
E pensamento geral entre os Reformados a teoria da imputação. As palavras usadas nas
línguas originais que são traduzidas como ―imputação‖, são bo$:xay (Sl 32.2 do verbo hebraico
b$x)) e logi/shtai (Rm 4.8 do verbo logizomai).105 A imputação é o método de Deus para explicar a
conexão do pecado de Adão com os nossos pecados, mas nem todos os cristãos têm concordado
nesta matéria.
Diferentes conceitos têm surgido no decorrer da história da igreja a respeito de como a
culpa de Adão passou até nós.

CONEXÃO DO PECADO DE ADÃO COM O DA


POSTERIDADE
A. OS QUE NEGAM ESTA CONEXÃO
Houve alguns movimentos na história da igreja que tentaram negar a conexão entre o
pecado do primeiro pai e os pecados dos seus descendentes. A negação é total no primeiro grupo
e parcial no segundo e terceiro.

1) Os Pelagianos
Pelágio, monge inglês do séc. IV, adversário teológico de Agostinho, partiu do
ponto-de-vista da habilidade natural do homem. Seu axioma fundamental é: ―Deus mandou o
homem fazer o que é bom; disto, deduz-se que o homem deve ter a capacidade de fazê-lo.‖ Isto
quer dizer, na teologia de Pelágio, que todos os homens possuem o livre arbítrio, ou seja, a
vontade livre no sentido absoluto da palavra, de tal forma que é possível para eles irem tanto para
o mal quanto para o bem, como resultado da sua constituição natural. Na verdade, dentro do
conceito pelagiano, o homem é um ser moralmente neutro. Ele não tem tendência alguma. A
decisão do homem não depende do seu caráter moral, visto que a vontade do homem está
inteiramente indeterminada tanto de dentro como de fora. Seja o que for que o homem faça, o
bem ou o mal, dependerá unicamente de sua vontade livre, isto é, da natureza moral neutra dela.
Os atos bons ou maus são ações soltas do homem, não estão vinculadas à natureza moral do
homem. O pecado consiste de atos independentes ou soltos da sua vontade. A vontade não tem
conexão com o coração do homem. E nesse sentido que ele entende vontade livre. E a
independência da vontade. Não há uma natureza pecaminosa no homem que o leva a pecar. O
pecado é sempre uma escolha deliberada do homem, e ele peca porque ele resolve imitar Adão
que pecou. Segue-se, portanto, que Adão não foi criado num estado de verdadeira santidade, mas

105 Ver também 2 Co 5.19; Gl 3.6; Tg 2.23.


94

em um equilíbrio moral. Sua condição era de neutralidade moral. Não era bom nem mau,
portanto, não possuía caráter moral. Escolheu livremente a carreira do mal, mas isto não fez que
seus descendentes nascessem pecaminosos.
Para o pelagianismo, não há nenhuma conexão entre o pecado de Adão e os pecados dos
descendentes. Não há o pecado original. As crianças nascem num estado de neutralidade,
começando exatamente onde Adão começou, exceto no sentido em que estão numa situação de
desvantagem, pois já nascem com maus exemplos ao seu redor. Os homens hoje pecam porque
resolvem imitar Adão e, como conseqüência, o hábito de pecar vai se formando.
O conceito de livre arbítrio de Pelágio , em algum sentido, foi tirado de um livro apócrifo
das Escrituras, o livro de Eclesiástico, que tem dado margem a alguns eruditos posteriores,
inclusive, Erasmo de Roterdã, a formularem sua teologia libertária.
Pelágio defendeu um libertarismo muito extremo. Ele creu que

―todo infante vem ao mundo na mesma condição que Adão estava antes da
queda. Seu princípio principal era que a vontade do homem era absolutamente
livre. Daí, segue-se que todos têm o poder, dentro deles mesmos, para crer no
evangelho tanto como para guardar perfeitamente a lei de Deus.‖ 106

Pelágio ―vê a liberdade humana como um dom de Deus. Portanto, a prova desta liberdade
tem que ser buscada na Escritura Sagrada. E a conhecida passagem de Eccli XV, 17107 que
proporcionou a Pelágio a mais exata definição da liberdade da vontade.‖ 108 Comentando sobre 1
Tm 2.4 – ―…que deseja que todos os homens sejam salvos‖, Pelágio diz: ―Disto é provado que
Deus não força ninguém a crer, nem que Ele tira a liberdade da vontade.‖ 109 Agostinho cita
Pelágio em sua obra On the Grace of Christ, capítulo XXIV: ―O homem que se apressa para o
Senhor e deseja ser dirigido por Ele, que faz sua própria vontade, depende do Senhor, que além
disso, apega-se tão proximamente ao Senhor tornando-se (como diz o apóstolo), ‗um espírito com
Ele‘, faz tudo isto por nada mais do que pela liberdade da vontade.‖ 110 ―Livre Arbítrio‖ era o
principal tema de Pelágio, e ele determinou a totalidade de seu sistema teológico nas áreas de
antropologia e soteriologia.111

106 David N. Steele, The Five Points of Calvinism, Philadelphia: Presbyterian and Reformad

Publishing Company, 1967), p. 20.


107 Eclesiástico 15.14-18 (que diz: ―Ele mesmo fez o ser humano no princípio e, então, deixou-o livre

para fazer suas próprias decisões. Ele lhe deu mais os seus mandamentos, e os seus preceitos; se tu
quiseres observar estes mandamentos, e guardar sempre com fidelidade o que é do agrado de Deus, eles te
conservarão. Ele pôs diante de ti a água e o fogo: lança a tua mão ao que quiseres. Diante do homem estão
a vida e a morte, o bem e o mal: o que lhe agradar, isso lhe será dado.‖) dá a base para muitos escritores
formularem sua concepção de livre-arbítrio. Juan P. Valero diz: ―Pelágio é um dos primeiros escritores
eclesiásticos, sem se exceptuarem Tertuliano e Orígenes, que se utilizou desta passagem como fundamento
da liberdade do homem "Las Bases Antropologicas de Pelagio, (Madrid, Publicaciones de La Universidad
Pontificia comilías, 1980), p. 315.
108 Ibid.
109 Alexander Souter. The Earliest Latin Commentaries on the Epistles of St. Paul, (Oxford: At the

Clarendon Press, 1927), p. 224.


110 Whitney J. Oates. (Editor) Basic Writings of Saint Augustine, vol. 1, (New York, Random House

Publishers, 1948), p. 599. Neste capítulo On the Grace of Christ, Agostinho cita diversas vezes o pensamento
de Pelágio sobre as capacidades da vontade livre do homem.
111 No século IV uma lista de erros pelagianos, que foi parte do credo Pelagiano, havia sido

apresentada pelo diácono Paulinus de Milão, em sua acusação a Celéstio, diante de Aurelius, bispo de
Cartago: 1) ―Adam mostalem factum, qui sive peccaret sive non peccaret, moriturus esset.‖ (De gestis
Pelagil, 11); 2) ―Quoniam peccatum Adae ipsum solum laeserit et non genus humanum.‖ (Ibid); 3) ―Quoniam
lex sic mittit ad regnum quemadmodum evangelium.‖(Ibid); 4) ―Quoniam ante adventum christi fuerunt
homines sine peccato.‖(Ibid); 5) ―Quoniam infantes nuper nati in illo statu sint, in quo Adam fuit ante
praevaricationem.‖ (Ibid); 6) ―Quoniam neque per mortem vel praevaricationem Adae omne genus hominum
moriatur, neque per resurrectionem Christi omne genus hominum resurgat.‖ (Ibid). (Chisholm. The
Pseudo-Augustinian Hypomnesticon Against the Pelagians and Celestians, p. 6-7).
95

Os modernos pelagianos foram ressuscitados especialmente no tempo de Jean J.


Rousseau, que dizia que as crianças são uma espécie de tabula rasa, ou um papel branco, que vai
se sujando ou manchando pela influência externa.
Vejamos este ensinamento colocado numa forma mais sistemática:
— Pelágio enfatizou a plena liberdade da vontade, a vontade como independente das
outras faculdades da alma humana. A vontade possuía plena liberdade para querer e para fazer.
O princípio de Pelágio era: ―Se eu devo, eu posso‖.
— O pecado consistia, portanto, somente na escolha deliberada do mal. Ele pressupõe o
conhecimento daquilo que o mal é, mas o homem tem poder de escolhê-lo ou de rejeitá-lo.
— Não há pecado original, ou corrupção herdada. Todos os homens são nascidos na
mesma condição em que Adão foi criado.
— O pecado de Adão é apenas um mau exemplo que foi seguido por seus descendentes;
Pelágio negou que houvesse qualquer conexão de relação causal entre o pecado de Adão e o da
raça, ou que a morte tenha sido a pena do peado. Adão morreu por causa da constituição da sua
natureza, e isto aconteceria mesmo que ele não houvesse pecado.
— Adão não foi o representante da raça humana, nem o seu cabeça.
— Como o descendente de Adão vem ao mundo sem a contaminação do pecado, ele tem
pleno poder para fazer tudo o que Deus quer, inclusive viver sem pecar. Ele tem a possibilidade
de não pecar. Alguns pelagianos ensinaram que alguns homens não precisavam orar:
―Perdoa-nos as nossas dívidas‖.
— Uma conseqüência do ensino de Pelágio foi que ensinou-se que o homem poderia ser
salvo sem o evangelho. Com a vontade plenamente livre, ele poderia obedecer perfeitamente a lei
de Deus e ser salvo, e ter vida eterna. A única diferença é que, debaixo da luz do Evangelho, esta
perfeita obediência é tornada mais fácil.
— Pelágio nega a necessidade da graça como nós a entendemos, como a atuação
sobrenatural do Espírito Santo. Ele crê na graça, mas com uma outra conotação. Graça,
portanto, para Pelágio, e entendida como cada coisa que deriva da bondade de Deus. Nossas
faculdades naturais como a razão, o livre-arbítrio, revelação da verdade, etc., é que são a graça
divina.

2) Os Semi-Pelagianos
O Semi-Pelagianismo é a doutrina dos católicos-romanos desde o tempo em que a
igreja se posicionou entre Agostinho e Pelágio.
Após a controvérsia Agostinho-Pelagiana, a igreja cristã decidiu tomar um posição
mediana. Ela evitou os pontos extremos de Pelágio e de Agostinho. Esta posição é historicamente
conhecida como Semi-Pelagianismo que tomou elementos de ambos. Segundo George Smeaton,
João Cassiano (A.D. 360-435), um contemporâneo de Agostinho,

foi o fundador dessa posição mediana, que veio a ser chamada


SEMI-PELAGIANISMO, porque ela ocupou um terreno intermediário entre
Pelagianismo e Agostinianismo, e tomou elementos de ambos. Ele reconheceu que
o pecado de Adão estendeu-se a sua posteridade, e que a natureza humana era
corrompida pelo pecado original. Mas, por outro lado, ele sustentou um sistema de
graça universal para todos os homens igualmente, fazendo com que a decisão final
no caso de cada indivíduo fosse dependente do exercício do livre arbítrio. 112

Cassiano, como Agostinho, viu a universalidade da graça, mas

112 The Doctríne of lhe Holy Spírít, (Edinburgh: T & T Clark, 1889), p. 338. N.P. Williams in The Grace

of God, (London: Hodder and Stoughton, 1966) pensa que ―seria mais justo descrever o sistema que
Cassiano advogou como ―Semi-Agostinianismo‖‖, porque Williams pensa que Cassiano crê em muitas coisas
a respeito do pecado original, como Agostinho, e Cassiano discordou somente sobre a "Irresistibílidade da
graça, que torna a vo1ição humana um mero modo dá auto-expressão da vontade divina.‖ (p. 54)
96

ele casa isto com uma certa admissão do poder cooperador da vontade livre do
homem. Isto se aplica mesmo à graça primeira, a graça da conversão... Para
Agostinho a primeira graça é estritamente preveniente, para Cassiano ela é, como
as outras graças, cooperante.113

Ele diz em suas Collationes que a graça cooperante vem ―ajudar as fracas aspirações e
veleidades que são espontâneas ou movimentos não-causados da vontade humana.‖ 114 A
conclusão óbvia deste pensamento é que Cassiano não cria numa real depravação da alma
humana como o fez seu contemporâneo Agostinho. Sua concepção ―do estado presente da
natureza humana caída é perceptivelmente mais suave do que aquela sustentada por Santo
Agostinho.‖115
Agostinho, que havia sido vitorioso em sua controvérsia com Pelágio, não teria ficado
satisfeito com o caminho que a igreja tomou posteriormente. Um voluntarismo libertário triunfou
na teologia do Semi-Pelagianismo. A graça de Deus vinha conforme os méritos dos homens, isto
é, de acordo com o bom uso ou com a melhora correta dos poderes naturais da vontade livre,
mesmo embora o Semi-Pelagianismo tenha sido condenado pelo Sínodo de Orange (A.D. 529)116,
presidido pelo bispo de Arles, um teólogo agostiniano. O sumário da doutrina de Orange sobre a
capacidade do homem está asseverada na afirmação concludente como apêndice aos Cânones:

Isto nós devemos ambos pregar e crer - que através do pecado do livre arbítrio
do primeiro homem foi tão deformada e atenuada, que daí por diante nenhum
homem pode mesmo amar a Deus como ele deve, ou crer em Deus, ou apresentar
qualquer boa obra em nome de Deus, amenos que a graça da misericórdia divina
tenha se antecipado nele.117

Muitos teólogos, contudo, não têm dado atenção nem a sã doutrina nem à condenação
pronunciada por Orange. Eles minimizaram a posição de Orange sobre a queda e as
conseqüências que foram óbvias: eles tiveram uma atitude benevolente em relação ao homem
não-regenerado, o que tornou fácil crer em qualquer espécie de liberdade da determinação,
ambos, da influência externa e, especialmente, da interna.
O Semi-Pelagianismo, com sua teologia sinergista, cruzou todos os períodos da igreja
cristã. Ele ganhou muitos seguidores, visto que esta é a posição da igreja de Roma até hoje,
mesmo embora ela não o declare oficialmente.
O voluntarismo libertário teve seu grande campeão na pessoa de Duns Scotus, perto do

113 Williams, p. 57.


114 Collationes XIII, II (citado por Williams, p. 58).
115 Williams, p. 58.
116 Alguns Canones de Orange que condenaram o Semi-Pelagianismo mostram a teologia em vigor

naquela época na Igreja Crista: ―Se qualquer um afirma que a totalidade do homem, alma e corpo, não tem
sido corrompida pela transgressão de Adão, mas que o corpo somente esta sujeito a corrupção, enquanto a
liberdade da alma permanece intacta, que tal pessoa, seduzida pelos erros de Pelágio, contradiz a Escritura
que diz: ―A alma que pecar, essa morrera.‖; ―4) Se qualquer homem afirma que Deus espera pela nossa
vontade de tal forma que nós podemos ser eximidos de pecar, e que não confessa que é devido a infusão e
operação do Santo Espírito sobre nós que nós desejamos ser limpos, ele resiste ao Espírito Santo...‖; ―6) Se
qualquer homem afirma que a misericórdia é comunicada a nós quando, sem a graça de Deus, cremos,
decidimos, desejamos, nos esforçamos, observamos e trabalhamos, oramos, procuramos e batemos, e que
não confessa que é pela inspiração e infusão do Espírito de Deus que nós cremos, desejamos.... - que
meramente afirma que a ajuda da graça é acrescentada à humildade e obediência do homem...‖; ―7) Se
qualquer homem afirma que pode, pela força da natureza, pensar qualquer coisa boa pertencente a salvação
da vida eterna.. .ou escolher ou consentir diante da pregação evangélica salvadora, sem a iluminação e
inspiração do Espírito Santo, que dá a todos o doce sabor em consentir e crer na verdade, ele esta enganado
por espírito herético....‖ (See Smeaton, pp. 340-42, e Williams, pp. 63-65).
117 Williams, p. 66.
97

final da Idade Média. Ele ―representa um estágio de transição no movimento de uma teoria do
apetite da volição humana para a teoria da causa eficiente.‖ 118 Duns Scotus escreveu:

―Qual é a fonte desta escolha determinada? Ela pode vir somente de um poder
distinto da razão que é capaz de escolher. Porque a razão não é um fator
determinante, visto que ela tem a ver com os opostos com respeito ao qual ela não
pode determinar a si mesma, muito menos determinar alguma coisa além de si
mesma… Propriamente falando, o poder executivo não está num poder
contraditório ao efeito que ele carrega, visto que ele é racional por participação.
Mas o sentido pleno de um poder pelos opostos é encontrado formalmente na
vontade.‖119

E fácil perceber nesta citação o voluntarismo de Scotus. Toda determinação vem da


vontade sem qualquer ligação com os poderes intelectuais. A vontade tem a primazia sobre todas
as outras faculdades do homem e tem conotação libertária. Aqui o voluntarismo libertário de
Scotus triunfou sobre o intelectualismo em vigor em seus dias.
Com Duns Scotus o intelectualismo de Tomás de Aquino, que ensinou que a vontade é
um apetite racional, é ―descartado e substituído (durante o século XIV e até o tempo presente) na
maioria dos escritos dos filósofos e teólogos católicos.‖ 120 Uma nova ênfase foi posta nas
capacidades da vontade humana, mesmo embora não tenha sido uma volta completa aos ensinos
de Pelágio. Bourke diz que a teoria do ―livre-arbítrio‖ é basicamente Scotista. 121 Nada pode
causar a ação da vontade, exceto ela mesma. Como ele próprio diz: ―Nada além da própria
vontade é a causa total da volição na vontade.‖ 122 A senha de Duns Scotus é, portanto,
liberdade.123 Dessa forma, Berard Vogt concluiu corretamente um estudo das idéias de Duns
Scotus com estas palavras:

Assim, então, é a teoria da liberdade como esboçada por Duns Scotus. Ela é
dominada por sua alta consideração pela vontade como a rainha e a soberana das
faculdades do homem. De fato, sua característica distintiva e a sua defesa da
soberania e autonomia absoluta da vontade.124

Duns Scotus introduziu em sua teologia a

noção interessante de prima indifferentía para explicar a condição inicial da


vontade quando ela está livre. O primeiro ato do entendimento não é livre, mas
uma vez que um objeto intelectual seja apresentado à vontade, a vontade é
indiferente (i.e., não determinado de qualquer modo) em direção a este objeto. A
vontade pode dirigir o intelecto para considerar este objeto ou outro, e a vontade
pode aceitá-lo ou rejeitá-lo.125

Assim, o voluntarismo libertário do Semi-Pelagianismo ganhou a batalha contra o

118 J. Vernon Bourke. Will in Western Thought, (New York: Sheed and Ward, 1964), p. 84.
119 Duns Scotus, Duns Scotus on the Will and Morality, selected and translated with na introduction
by Allan B. Wolter, (Washington, D. C.: The Catholic University of America press, 1986), p. 161.
120 Bourke, p. 88.
121 Ibid.
122 Duns Scotus, ´quod nihil aliud a voluntate est causa totalis volitions in voluntate.‖ (Op. Ox. II,

25, q. 1, n.766), como está citado por Bourke, p. 98.


123 Josef Pieper. Scholasticism-Personalities and Problems of Medieval Philosophy, (New York:

Pantheon Books, 1960), p. 146.


124 Citado por Bourke, p. 88.
125 Ibid., p. 85.
98

intelectualismo daquele período em diante, mesmo embora o intelectualismo tenha sido revivido
no período do neotomismo e no escolasticismo protestante. Mas a vontade nunca perdeu o seu
lugar de domínio porque isto foi fortemente favorecido pela tendência natural do homem. 126 E
natural para os seres humanos enfatizarem suas próprias capacidades espirituais. E natural
para eles desejarem ser participantes em sua própria salvação. Sinergismo, portanto, é o modo
natural dos seres humanos expressarem sua própria teologia.
Os Semi-Pelagianos, portanto, enfatizaram que o homem herdou de Adão uma
incapacidade natural, mas que não é responsável por ela, de maneira que o homem não pode ser
culpado por ela. Portanto, não será condenado por causa dessa incapacidade natural. Alguns
chegam ao ponto de concluir que Deus, de alguma forma, está obrigado a proporcionar cura para
essa incapacidade.
Dentro do Semi-Pelagianismo do catolicismo, admitiu-se que a justiça original era um
dom sobrenatural, e que efeitos do pecado de Adão sobre a sua posteridade, foi a perda dessa
justiça. A alma, portanto, é deixada no estado em que foi originalmente criada, com a justiça
natural. Os homens hoje nascem do modo como Adão foi originalmente feito: com a justiça
natural. O pecado original, então, não está ligado à perda da justiça original. Não há nenhuma
corrupção hereditária inerente, nenhum caráter bom ou mau. De acordo com o
semi-pelagianismo, a perda da justiça original é apenas pena e não culpa.

127
3) Os Arminianos Consistentes
Os arminianos consistentes são aqueles que ensinam quase a mesma coisa que o
semi-pelagianismo ensina dentro do catolicismo.
O próprio fundador do movimento que leva o seu nome, teve muita dificuldade de admitir
a idéia de que o nosso pecado tem conexão com o de Adão, manifestando enorme indecisão
quando tratou da matéria de imputação.

É passível de discussão se Deus poderia ficar irado por causa do pecado


original que foi nascido conosco, visto que pareceu ser inflingido sobre nós pelo
próprio Deus, como uma punição pelo pecado atual que havia sido cometido por
Adão e por nós nele.128

Nesse mesmo lugar Armínio fez a distinção entre o "pecado atual" e "a causa dos outros
pecados". Fazendo isto, segundo Meeuwsen, 129 Armínio quebrou a idéia da unidade adâmica.
Após analisar e citar os documentos dos Remonstrantes, Shedd assevera que

estes extratos são suficientes para provar que os teólogos Arminianos não
criam que a unidade entre Adão e sua posteridade, que eles asseveravam em sua
Confissão e Declaração, era de tal natureza que tornava o primeiro ato pecaminoso
de Adão, um ato comum da raça, e através disso justificam a imputação do pecado
original como verdadeira e propriamente pecado. Embora empregassem uma
fraseologia Agostiniana respeitando a conexão Adâmica, eles punham uma

126 Por tendências naturais eu quero dizer aquelas capacidades que o homem tem sem a

necessidade de um aprendizado especial. Faz parte do homem pensar o melhor de si mesmo, a menos que
ele seja o objeto da graça de Deus. O homem, sem a graça de Deus sobre si, nunca pensará
monergisticamente. Esta é uma tendência do pensamento do homem desde o começo dos estudos
teológicos. Somente uma compreensão correta da graça de Deus dá ao homem o senso de um monergismo
soteriológico.
127 Eu uso a expressão ―Arminianos Consistentes‖ porque há aqueles que são inconsistentes na sua

teologia, afirmando o livre-arbítrio, mas ao mesmo tempo a fé como um Dom de Deus, o que quebra a
harmonia deles. Este é apenas um exemplo.
128 Arminius, The Writings…, vol. 1, pp. 374-74.
129 Meeuwsen.
99

interpretação diferente daquela que é encontrada nos símbolos de ambas as


tradições, Luterana e Reformada. A objeção deles à doutrina de que o pecado
original é a culpa, procede da suposição de que o ato de apostasia de Adão foi
puramente individual, e que a posteridade não estava no progenitor em nenhum
sentido real como a fraseologia de suas próprias afirmações doutrinárias
implicariam, se tomadas em sua aceitação estrita e literal.130

Por esta razão, George Curtiss diz que

como relação ao pecado original, Armínio ensina que o homem, descendendo


de Adão, foi corrompido pelo pecado de Adão, mas não é culpado. Adão foi tanto
culpado como corrupto. Ninguém jamais estará na condição de perdição por causa
da transgressão de Adão, mas todos estão na escravidão da corrupção, por causa
do cabeça federal da raça.131

Eu não estou absolutamente certo de que a opinião de Curtiss encaixa exatamente na


própria teologia de Armínio, porque ele não foi claro na sua exposição, e ele não deu nenhuma
explicação dos termos que ele empregou. Todavia, esta observação de Curtiss certamente está
bem de acordo com a teologia dos seguidores de Armínio.
Os teólogos Remonstrantes negaram, em sua antropologia, qualquer conexão federal real
entre Adão e sua posteridade de tal modo, que não pode haver qualquer imputação do primeiro
ato de Adão à raça. O pecado de Adão não foi o pecado da raça, segundo a teologia dos
Remonstrantes, porque não havia nenhuma base Bíblica ou teológica para Deus imputar lhes o
pecado do nosso primeiro pai.
Episcopius, um dos formuladores da Confessio Remonstrantium, Arminiana, revelou suas
opiniões a respeito do pecado original na Apologia. Ele disse:

Os Remonstrantes não consideram o pecado original como é propriamente


chamado, que torna a posteridade de Adão merecedora do ódio de Deus; nem o
consideram como um mal que, pelo método de punição propriamente chamado
(per modo proprie dictae poenae) passa de Adão para sua posteridade; . . Mas que o
pecado original (peccatum originis) não é um mal em qualquer outro sentido além
disto — que ele não é mal no sentido de implicar em culpa de abandono de punição
(malum culpae, aut malum poenae), — está claro.132

Um pouco mais tarde, Episcopius continua:

―Mas não há nenhuma base para a asserção de que o pecado de Adão foi
imputado á sua posteridade, no sentido de que Deus realmente julgou a
posteridade de Adão como culpada e acusável do mesmo crime (culpa) e pecado
que Adão havia cometido. Nem a Escritura, nem a verdade, nem a sabedoria, nem
a benevolência divina, nem a natureza do pecado, nem a idéia de justiça e
eqüidade, permitem que seja dito que o pecado de Adão foi, assim, imputado á sua
posteridade. A Escritura testifica que Deus ameaçou punir a Adão somente, e
impô-la sobre Adão somente; a benevolência divina, Sua veracidade e sabedoria,
não permitem que o pecado de uma pessoa seja imputado, estrita e literalmente, a

130 Shedd, pp. 185-86.


131 George L. Curtiss. Arminianism in History, (New York: Hunt and Eaton, 1894), p. 12. O termo
―federal‖ é relacionado com pacto. A palavra latina para pacto é foedus. Assim, ‗federal‖ é derivativo de
foederatus confederado, uma parte no pacto. Uma conexão federal é o mesmo que uma conexão de pacto.
Ver Richard A. Muller. Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, (Grand Rapids: Baker, 1985), pp.
119-22.
132 Citado por Shedd, pp. 181-82.
100

uma outra pessoa.‖133

Os Remonstrantes aceitaram a transmissão do pecado através da propagação. A


posteridade de Adão herda a sua condição maligna. Ela herda os efeitos da natureza caída, mas
não a imputação do pecado. A posteridade de Adão não é culpada por causa do pecado de Adão,
mas recebe a conseqüência de seu pecado, sendo a posteridade do pai da raça. Isto parece soar
igual à imputação do pecado, mas a teoria da imputação de Armínio parece ser

imputação somente no sentido em que Deus quis que os descendentes de


Adão fossem sujeitos ao mesmo mal ao qual Adão sujeitou-se através de uma
participação deliberada no pecado. E pecado somente na medida em que o mal é
permitido. Deus permite uma tendência má a ser imputada. Isto é a mesma coisa
que foi imposta sobre o primeiro homem como punição, mas que é transmitida à
sua posteridade na forma de um mal propagado, não como verdadeira punição em
qualquer sentido da palavra.134

Shedd assevera que, segundo o Arminianismo, ―não há qualquer base a asserção de que o
pecado de Adão tenha sido imputado à sua posteridade no sentido em que Deus realmente julgou
a posteridade de Adão como culpada dele, e acusada com o mesmo pecado e crime que Adão
havia cometido.‖135
Todos os Arminianos consistentes negam a imputação do pecado de Adão por três razões:
(1) Porque eles pensam que a doutrina da imputação é uma doutrina que rompe com os
princípios fundamentais da justiça eterna; (2) Porque eles dizem que a culpa pode ser atribuída
somente àqueles que pecam pessoal e voluntariamente; (3) Porque do conceito que eles possuem
de graça preveniente.

B. OS QUE AFIRMAM ESTA CONEXÃO


Todos os sinergistas, de alguma forma, negam que haja conexão entre o pecado de Adão e
o da posteridade, mas todos os de tendência Luterana e Reformada afirmam essa conexão
inequivocamente, mas a diferença entre os Reformados está no processo que Deus usou para
estabelecer essa conexão. Há, pelo menos, três teorias nos círculos Reformados, que tem
vigorado até agora:

1) Todos os que Sustentam a Teoria Realista


O método primitivo para se explicar a conexão entre o pecado de Adão com a culpa e a
corrupção de sua posteridade foi a teoria realista.
Segundo W.G. T. Shedd, ―o Realismo foi a filosofia adotada pela Igreja, quando ela
construiu as doutrinas da Trindade e do Deus-Homem. O traducianismo faz a mesma distinção
em antropologia. O homem foi originalmente uma única natureza humana que, por propagação,
tornou-se milhões de pessoas‖. 136
O Realismo supõe que a humanidade, a natureza humana como principio geral ou uma
forma de vida, existe antecedentemente (cronológica ou logicamente) aos homens individuais. A
―humanidade (ou gênero humano) existe antes das gerações da humanidade. A natureza é
anterior aos indivíduos produzidos dela.‖ A natureza existe também independente e fora dos
indivíduos. A humanidade existe antes dos indivíduos e independentemente deles, como a
eletricidade existe mesmo antes dela ser coletada e usada.
Conforme os primitivos realistas, o indivíduo é somente um modus exístendi

133 Episcopius in his Apology Pro Confessione Remonstrantium, cap. VII, (Ibid., pp. 183-84).
134 Meeuwsen, p. 23.
135 Shedd, pp. 183-84.
136 W. G. T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. II, p. 77.
101

subsequente. O modo primeiro e antecedente (no caso do homem) é a humanidade genérica da


qual este modo subsequente é apenas um outro aspecto ou manifestação. Conforme a doutrina
realista

―A natureza humana é uma substância geral ou especifica criada em e com os


primeiros indivíduos da espécie humana, que não é, todavia, individualizada, mas
que por geração ordinária, é subdividida em partes, e estas partes são formadas
em indivíduos separados e distintos da espécie. A substância única e especifica,
através da propagação, é metamorfoseada em milhões de substâncias individuais,
ou pessoas. Um homem individual é uma parte fracional da natureza humana
separada da massa comum, e constituída uma pessoa particular, tendo todas as
propriedades essenciais da natureza humana.‖ 137

Segundo Hodge, um adversário do realismo traducianista,

―o que Deus criou, portanto, não foi um homem individual, mas a espécie, a
humanidade genérica - uma essência inteligente, racional e voluntária. Os indivíduos
São as manifestações dessa substância numérica e especificamente uma e a mesma,
em conexão com suas organizações corpóreas. As almas deles não são essências
individuais, mas uma essência comum revelada e agindo em muitos organismos
separados.‖138

A natureza humana é numericamente uma e a mesma. Nós e Adão somos um e o mesmo.


Somos uma parte dividida da natureza que Adão possuía. Somos uma fração da natureza
humana. Todos indivíduos compõem a mesma natureza humana que é fraccionada em milhões
de indivíduos. Portanto, quando Adão pecou, quem pecou foi a natureza humana. Logo, se somos
parte dessa mesma natureza humana que numericamente é uma e a mesma, todos pecamos em
Adão. O ato de Adão foi nosso ato, feito voluntariamente. Por isso somos culpados, porque
estávamos lá no Éden, porque éramos um com Adão, que não era um indivíduo, mas a raça.
objeções: Todos somos da mesma natureza, a humana, mas não numericamente um, isto
é, compostos da mesma substância fraccionada. Somos da mesma natureza, mas não da mesma
essência numérica.
A idéia de que agimos milhares de anos antes de sermos nascidos, ou que somos
pessoalmente responsáveis por aquele ato sem estarmos pessoal e voluntariamente presentes lá,
é algo muito estranho.
Se éramos um com Adão, por que não nos tornamos responsáveis também pelas suas
transgressões subsequentes? Por quê nos tornamos responsáveis pelo pecado de Adão, e não
pelo de Eva, pois foi ela quem pecou primeiro?

2) Todos os que sustentam o Pacto das Obras


Estes crêem na teoria da imputação imediata. No pacto das obras Adão ocupou uma
relação dupla com seus descendentes, a saber, como o cabeça natural de toda a humanidade, e
como o cabeça representativo de toda a raça. Por causa da relação pactual, a culpa de Adão foi
imputada139 aos homens.
Na linguagem escriturística e teológica, imputar pecado significa imputar a culpa do
pecado. E, por culpa, não se quer dizer o crime em si, nem a sua poluição moral, mas obrigação

137 Shedd, Dogmatic Theology, vol. II, p. 72.


138 Charles Hodge, Systematic theology, vol. II, p. 54.
139 Imputar significa atribuir algo a uma pessoa, sobre base adequada, como razão meritória ou

judicial de recompensa ou punição.


102

judicial para satisfazer a justiça. Por conseguinte, o mal conseqüente da imputação não é uma
imposição arbitrária; não é meramente uma desgraça ou calamidade; nem um castigo no sentido
próprio da palavra, mas uma punição. Quando a alguém é imputado o pecado, esse alguém paga
a penalidade do pecado, a dívida com a justiça sobre base legal.
Para que se entenda a idéia de imputação de pecado de Adão sobre nós, é necessário que
se entendamos primeiro a imputação de nossos pecados a Cristo. Tanto a imputação do pecado
de Adão a nós como de nossos pecados a Cristo, e o da justiça de Cristo a nós, são da mesma
natureza. Um caso ilustra o outro. Quando dizemos que os nossos pecados foram imputados a
Cristo, ou que Ele levou sobre Si os nossos pecados, não quer dizer que Ele realmente cometeu os
nossos pecados ou que foi moralmente crimino por causa deles. Ele 5implesmente assumiu o
nosso lugar tomando a nossa maldição sobre Si.
De igual modo, quando dizemos que a justiça de Cristo é imputada aos crentes, não
queremos dizer que eles obram aquela justiça, ou que eles foram agentes dos atos de Cristo na
obediência à lei; nem que o mérito da justiça de Cristo foi mérito deles; nem que isto constitua o
caráter moral deles; mas 5implesmente significa que a justiça de Cristo, tendo sido elaborada de
acordo com os planos divinos, para o beneficio do Seu povo, em nome deles, por Ele, como
representante deles, foi atribuída por Deus aos pecadores.
Vejamos a base do princípio representativo nas Escrituras:

a) A Relação Natural de Adão com a Raça


Adão foi o pai de toda a raça humana. Como pai da raça, era seu dever obedecer todas as
prescrições dadas por Deus, para que fosse merecedor de um estado definitivo e, assim,
conquistasse para si mesmo e para seus descendentes, uma condição de vida eterna, que ainda
não possuía. Se a possuísse, não a perderia. Se pecasse, haveria de perder não só o direito de
comer da árvore da vida (e foi o que aconteceu - Gn 3.22) como seria culpado por seus erros e
receberia a corrupção que o pecado traz. Nesse caso, O pecado seria somente dele, de ninguém
mais. Os seus descendentes não poderiam levar a culpa do seu pecado, apenas a corrupção
deles, pois de uma árvore má não pode haver bom fruto. Mesmo sendo corruptos, os seus
descendentes não poderiam ser culpados de sua corrupção, pois eles eram apenas filhos de
alguém que veio antes deles, filhos do primeiro pai. A relação era apenas de descendência
natural, nada mais.
Mas a relação que Adão teve com sua posteridade foi mais do que natural. Ele tornou-se
o cabeça representativo por causa da relação de pacto. Adão foi mais do que um pai da raça
humana, ele foi o agente legal deles, falando e agindo em lugar de todos eles.

b) A Relação Pactual de Adão com a Raça


Adão não agiu simplesmente como uma pessoa particular, ou como um indivíduo isolado.
Quando ele pecou, ele o fez em nome e como representante de toda a sua posteridade. Os
resultados da sua ação tiveram resultado sobre todos os filhos dos homens porque Adão não agiu
simplesmente como uma pessoa particular, mas como uma pessoa pública. Aquilo que ele fez
envolveu judicialmente outras pessoas.
Qual é a base para essas afirmações? Deus entrou numa relação pactual com Adão, e isto
o tornou o cabeça representativo da raça humana. O termo pacto não aparecem no começo de
Gênesis, embora a referência a pacto com Adão apareça posteriormente, em Os 6.7. Os elementos
gerais de um pacto estão presentes em Gn 2.16-17: Primeiro, há duas partes contratantes;
Segundo, há condições definidas que são aceitas; Terceiro, há uma penalidade prescrita em caso
de desobediência; Quarto, há uma promessa implícita em caso de obediência.
Adão foi colocado não simplesmente debaixo da lei de Deus, mas ele estava sob uma
condição pactual. Estas duas coisas devem ser absolutamente distintas: como uma pessoa
individual, na relação natural, ele poderia obedecer a lei por si mesmo, sem qualquer
conseqüência para os outros. Ele poderia estar debaixo da lei e, se obedecesse, apenas ficaria
sem a punição da lei, mas o pacto daria a ele não somente o livramento da penalidade, em caso de
103

obediência, mas o direito de desfrutar da vida eterna para si e para os seus descendentes, como
em caso de desobediência a culpabilidade para si e para toda a raça. Seria absolutamente óbvio
que Adão obtivesse a promessa de vida, se obedecesse, pois a ameaça de morte (―no dia em que
comeres, certamente morrerás‖) implica necessariamente no reverso. E como se Deus lhe
houvesse dito: ―Se não comeres, não morrerás e, certamente, poderás comer da árvore da vida,
como recompensa por tua obediência‖ (ver Gn 3.22). A promessa de vida incluía muito mais do
que simplesmente não morrer. Adão haveria de ter vida eterna, aquilo que Cristo veio dar ao Seu
povo, uma comunhão imperdível com Deus, uma qualidade de vida superior à que Adão possuía,
mesmo quando não havia pecado, uma qualidade de vida que Adão teria, se houvesse obedecido
e comido da árvore da vida.
Os 6.7 diz que houve um pacto que Adão transgrediu e, fazendo isso, imergiu a si mesmo
e toda a raça na desgraça e miséria, sujeitando todos os homens ao estado de culpados e
merecedores do castigo divino.

―O fato de Adão ter permanecido como o cabeça da raça no relacionamento de


pacto, é demonstrado conclusivamente pelos males penais que vieram sobre seus
filhos, em conseqüência de sua queda. Da maldição terrível que cai sobre todos os
seus descendentes, somos compelidos a inferir a relação pactual que existia entre
ele e eles; porque o Juiz de toda a terra, sendo justo, nunca punirá onde não há
crime. ―Em Adão todos morrem‖ porque nele todos pecaram.‖140

A culpa do pecado de Adão foi imputada a toda a sua posteridade. O princípio da


imputação permeia toda a Escritura. Se alguém age em favor ou em nome de outros, então estes
estão legalmente representados, e são também contados como responsáveis nos atos de quem os
representou, e sofrem as conseqüências da conduta dele, seja ela boa ou má.
Os teólogos Reformados, em geral, aceitam a teologia federal 141 mas há aqueles que
relutam aceitar o fato de que Deus estabeleceu um pacto com Adão142 no Éden. A teologia federal
é perfeitamente passível de ser sustentada, pois há diversos elementos na Escritura que nos
autorizam a elaborar uma teologia pactual que dá base para a representatividade de Adão.

c) Distinção de sentido nas Palavras JUSTO e INJUSTO


Algumas vezes essas duas palavras expressam o caráter moral das pessoas. Um homem
justo é um homem reto, honrado, bom. Outras vezes, estas palavras expressam não
simplesmente o caráter moral, mas relação de justiça.
Nesse sentido, um homem justo é aquele com quem as demandas da justiça são
satisfeitas. Ele pode ser pessoalmente um injusto e legalmente justo. Se isto não fosse assim,
nenhum pecador poderia ser salvo. Não há um crente na face da terra que não tenha sido
pessoalmente injusto, merecedor da ira de Deus. Sendo ele, portanto, injusto, Deus, através da
obra expiatória de Cristo, declara-o legalmente justo, não moralmente, à vista de Sua justiça.
Quando, portanto, Deus declara o injusto justo, Ele não o declara ser o que, na realidade,
ele não é, mas simplesmente declara que o débito dele, com relação à justiça, foi pago por Outro.
Portanto, quando é dito que o pecado de Adão é imputado à sua posteridade, não quer
dizer que a humanidade toda estava presente pessoalmente quando Adão pecou, ou que

140 A. W. Pink, Gleanings from the Scriptures, (chicago: Moody Press, 1977), p. 43.
141 O termo ―federal‖ vem de foedus, uma palavra latina que quer dizer ―pacto‖. A teologia federal é
a teologia do pacto.
142 O texto clássico usado como base para o estabelecimento do pacto de Deus com Adão está em Os

6.7, que diz: ―Mas eles transgrediram o pacto como Adão; eles se portaram aleivosamente contra mim.‖ -
Qual é a objeção deles? Eles não discutem o termo pacto, mas a expressão ―como‖ que eles insistem em
traduzir ―em‖ (que é uma tradução possível), para justificar o fato de que eles transgrediram o pacto num
lugar chamado Adão. Adão, portanto, não seria uma pessoa nesse caso, mas uma cidade, onde um pacto foi
estabelecido.
104

voluntariamente todos foram culpados de seu ato. Mas esta imputação significa que, em virtude
da união federativa de Adão com os seus descendentes, o pecado de Adão é a base judicial da
condenação da raça, de igual modo como a justiça de Cristo é a base judicial da justificação do
Seu povo.
A doutrina da imputação tem sempre sido uma grande dificuldade para o entendimento
das pessoas. A mente humana tem sido torturada na resolução deste problema.
A solução escriturística desse difícil problema tem sido este: Deus colocou Adão como
cabeça federal-representativa da raça. Deus o colocou sob prova não somente para si próprio,
mas também para toda a sua posteridade. Tivesse Adão mantido a sua integridade, ele e todos os
seus descendentes teriam permanecido sem pecado e teriam tido vida eterna, uma comunhão
imperdível com Deus, felizes para sempre! Como ele caiu do estado em que foi criado, ele levou
consigo toda a sua posteridade, de tal modo que a penalidade dele para a ser deles, também.
Todos os descendentes de Adão, passam, portanto, a ser, por natureza, filhos da ira.
Os males que a posteridade de Adão sofreu não foram imposições arbitrárias, nem
conseqüências naturais da apostasia de Adão, mas imposições judiciais.

d) A Base Bíblica da Imputação do Pecado de Adão


A base da imputação do pecado de Adão, ou razão pela qual a penalidade do seu pecado
vem sobre a sua posteridade, é a união entre Adão e nós. O pecado não poderia ser imputado de
um homem para outro a menos que houvesse conexão racial entre eles, para justificar essa
imputação.
As Escrituras nunca falam da imputação do pecado dos anjos aos homens, ou a Cristo,
ou da Sua justiça aos anjos, pela simples razão de que não há qualquer conexão racial entre eles.
Portanto, pela ausência de qualquer conexão racial, os benefícios de Cristo não podem ser
imputados aos anjos e, pela mesma razão, os pecados dos anjos não podem ser imputados aos
homens ou vice-versa. Não havendo qualquer conotação racial entre os seres, não pode haver
conseqüências judiciais de pecado ou de justiça de um para o outro.
A união federal entre Adão e sua posteridade é a base para a imputação de seu pecado a
ela. Adão foi o cabeça representativo da raça e, por isso, seu ato foi considerado o ato da raça,
assim como Cristo, sendo o representante dos pecadores, teve o Seu ato considerado como ato
daqueles por quem morreu. Por isso, o pecado de um é atribuído a outros, e também a justiça de
Um é atribuída a outros.
Não é possível entendermos a teoria da imputação de pecado e de justiça, esse processo
assombrosamente maravilhoso de Deus, a menos que estudemos detalhadamente o texto de Rm
5.12-21.

Análise do texto de Rom. 5.12-21:


O primeiro verso a ser analisado é o v. 14, porque ele nos dá a base para a teoria da
imputação imediata do pecado, em virtude da posição que Adão ocupou em relação a Cristo
Jesus.

Rm 5.14 – ―Entretanto, reinou a morte desde Adão a Moisés, mesmo sobre


aqueles que não pecaram à semelhança de Adão, o qual prefigurava aquele que
havia de vir.‖

O verso 14 diz que Adão era um tu/poj de Cristo. Essa palavra grega indica a idéia de ser
padrão, de aponta para alguém que serve de modelo para outros. Adão prefigurava aquele que
105

haveria de vir. Adão é chamado o primeiro Adão, e Cristo é chamado o segundo Adão. 143 Adão
prefigura Cristo. Do modo como vemos os homens em Jesus Cristo, deveríamos vê-los em Adão.
Adão, quando tentado, foi derrotado. Cristo, quando tentado, resistiu e venceu. O
primeiro foi amaldiçoado por Deus, e o último foi agradável a Deus. O primeiro foi a fonte do
pecado e da corrupção para toda a sua posteridade, mas o segundo foi a fonte de santidade para
todos os que pertenciam ao Seu povo. Através de Adão, a condenação veio, mas a redenção veio
através de Jesus Cristo.
Em que sentido Adão foi o tu/poj do Redentor? A palavra grega significa ―figura‖ ou ―tipo‖, e
no significado escriturístico do termo, um tipo consiste de algo mais do que uma similaridade
causal entre duas pessoas, ou um paralelo incidental. Há algo mais que Deus queria nos
mostrar. E claro que desde a eternidade Deus preordenou que o primeiro homem deveria
prefigurar o Filho encarnado de Deus. Mas em que sentido? Certamente não na sua conduta. O
contexto de Romanos 5 torna claro que Adão se tornou o tipo de Jesus em uma posição oficial
que ele assumiu, isto é, como cabeça federal, como o representante legal de outros. Está claro de
Rm 5.12-19 que um age em favor (ou no lugar) de muitos, afetando o destino deles. O que um fez
é considerado a base judicial 40 para o que aconteceu a muitos. Como a desobediência e a culpa
de Adão trouxeram a condenação para todos que foram representados por ele, assim, a
obediência de Um, Cristo, garantiu a justificação de todos aqueles que foram representados por
Ele.
Assim, a despeito de contraste entre o tipo e o Anti-Tipo, eles possuíam algo em comum:
eles foram certamente representantes de dois povos. O Primeiro Adão foi representante de cada
membro da raça, e o Segundo Adão foi o representante de cada membro do Seu povo. No primeiro
todos morrem, no segundo todos vivem; no primeiro todos são condenados, no segundo todos são
justificados, a justificação que traz vida.
Rm 5.12-19 mostra que todos os membros da raça experimentam o fato de que eles são
culpados por alguma coisa que eles não fizeram pessoalmente. Em Adão nós ofendemos a Deus
em sua ofensa, e cometemos a transgressão em sua transgressão.

Rm 5.12 – ―Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no


mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens
porque todos pecaram.‖

A luz do que aconteceu em Gênesis 3, é estranho que Paulo tenha dito que o ―pecado
entrou no mundo por um só homem‖, quando é dito na Bíblia que Eva foi o primeiro ser humano
a pecar. Por que Paulo não disse: ―Portanto, assim como por uma só mulher entrou o pecado no
mundo‖? A resposta é totalmente óbvia: porque o pacto foi feito com Adão. Ele era o
representante da raça humana, não Eva. Foi Adão que recebeu a ordem de Deus, não Eva. Por
esta razão aprendemos a respeito do ―pecado de Adão‖, não a respeito do ―pecado de Eva‖. Paulo
não tratou do pecado de Eva, porque ele estava tratando da matéria da representação neste texto.
Uma outra palavra importante neste verso 12 é a(marti/a (pecado). Aqui, ―pecado‖ não
significa o ato de desobediência pessoal de Adão ou a depravação com a qual os homens são
nascidos. Aqui ele significa culpa. Paulo está tratando de matéria judicial, não simplesmente
dum ato pessoal de Adão. Ele está tratando da ira de Deus que vem sobre todos os homens
porque todos eles são culpados. O texto diz que ―a morte passou a todos os homens porque todos
pecaram‖. Paulo não está tratando dos pecados pessoais deles, mas da culpa que todos têm em
Adão. Murray diz que quando Paulo diz que ―um pecou‖ e ―todos pecaram‖, ele se refere ao

143 Ver 1 Co 15.45-49. Adão foi chamado o ―primeiro homem‖ não simplesmente porque ele foi o

primeiro a ser criado, mas porque ele foi o primeiro a agir como representante legal da raça humana. Neste
sentido, segundo a teologia Reformada, ele é o representante no pacto das obras. Cristo é chamado o
―segundo homem‖, mesmo embora ele tenha vivido muitos milênios mais tarde, porque Ele foi o segundo
homem a agir como um representante legal. Ele é também chamado ―o último Adão‖ porque não haveria de
haver nenhum outro pacto. Neste sentido, segundo a teologia reformada, Ele é o representante do Pacto da
Graça, fazendo o que o primeiro homem Adão não fez, no chamado Pacto das Obras.
106

mesmo pecado visto em seu aspecto duplo: como o pecado de Adão, e com o pecado de toda sua
posteridade.144 E um assunto judicial.
―Assim também a morte passou a todos os homens‖. A morte é uma conseqüência penal
para pessoas culpadas. A meta principal de Paulo era mostrar a conexão entre Adão e sua
posteridade. Todos são considerados culpados por causa da transgressão de um só homem. Por
esta razão Paulo diz em 1 Co 15.22 que ―em Adão todos morrem‖. Eles morrem em virtude de sua
relação pactual, a união legal entre Adão e a raça, a quem ele representa. Morremos porque
estamos unidos a Adão no mesmo sentido em que vivemos porque estamos unidos a Cristo, pelo
mesmo processo de representação. Todos os homens vêm ao mundo sem pecados pessoais, mas
porque eles são representados em Adão, eles são nascidos culpados, debaixo da ira de Deus.
Cada ser humano, seja homem, mulher ou criança, é considerado culpado diante de
Deus. A base de nossa condenação está extra nos145, mesmo embora não devamos nos esquecer
de que a Escritura diz que o pecado de Adão é nosso pecado. 1 Co 15.22 diz que ―em Adão todos
morrem‖. Murray assinala

que a morte é o salário do pecado (Rm 6.23) e que a morte não pode ser
concebida como existindo ou exercendo sua função à parte do pecado. Este é o
princípio Paulino: Quando ele diz que ―em Adão todos morrem‖ é impossível, sob
as premissas de Paulo, excluir a antecedência do pecado e o único modo no qual a
antecedência neste caso poderia obter, e que todos são concebidos dele são
considerados como tendo pecado nele.146

A corrupção interior e a alienação de Deus que nós experimentamos, são meramente a


conseqüência e não a causa de nossa condenação. A causa é o fato de nossa culpa em Adão.
Antes de qualquer ato pessoal, todos nós somos amaldiçoados pela lei de Deus. Visto que a morte
veio como resultado do ―pecado‖, porque o primeiro é a conseqüência penal do segundo, esta
sentença pode somente ser imposta sobre pessoas culpadas. Se a morte ―passou‖ a todos os
homens, é porque todos eles são culpados, todos deles participaram legalmente (judicialmente)
do pecado de Adão. A base de nossa condenação está extra nos no sentido de que nós não
pecamos voluntariamente nem pessoalmente em Adão.
Paulo afirma que ―a morte passou a todos os homens porque todos pecaram‖. As palavras
gregas e)f %( são costumeiramente traduzidas como ―porque‖, e os comentadores Arminianos, a
fim de negar a imputação imediata, usualmente tratam desta matéria dizendo que todos morrem
por causa de seus pecados pessoais, não porque eles estão representados em Adão. Godet não
toca na matéria da imputação, porque ele sustenta uma espécie de posição Arminiana. Ao invés
de tratar da imputação, ele diz que

a solidariedade dos indivíduos com o cabeça da primeira humanidade não se


estende além do domínio da vida natural. Aquilo que pertence à vida mais alta do
homem, sua existência espiritual e eterna, não é uma matéria de espécies, mas de
indivíduos.147

Com isto, ele nega a doutrina da imputação. A única explicação para Godet, a respeito da
relação entre o indivíduo e a espécie é dizer que este ―é o mistério mais impenetrável na vida da

144 Murray, first article, p. 164.


145 Ambos, a base de nossa condenação (o pecado de Adão) e a base de nossa salvação (a obra de
Cristo) estão fora de nós (extra nos). O processo é o mesmo. É obvio que Jesus Cristo também morreu por
nossos pecados atuais, e aqueles que não crêem em Cristo já estão condenados também por seus pecados
pessoais, mas a culpa de Adão imputada aos homens é bastante para condená-los.
146 John Murray. ―The Imputation of Sin‖, third article, The Westminster Theological journal, 19,

(May 1957), p. 168.


147 Frederic Louis Godet, Commentary on Romans, (Grand Rapids: Kregel Publications, 1977), p.

209.
107

natureza.‖148 Alguns outros comentadores, incluindo Calvino, tendem a interpretar este verso
dizendo que todos morrem por causa de sua corrupção natural. Eles enfatizam a corrupção mais
do que a culpa.149 Outros comentadores adotam uma idéia realista-traducianista, como já vimos
anteriormente.150
A razão pela qual todos morrem é que todos pecaram. Novamente, Paulo não está levando
em conta os pecados individuais deles, mas o pecado deles em Adão. A fim de provar isto, não
precisamos traduzir e)f %( como ―em quem‖, do modo como alguns escritores antigos fizeram. 151
A idéia de imputação está clara neste texto.
O que Paulo tem em mente é a idéia de um homem. Corretamente Godet assevera: ―Deve
ser permitido que a idéia de di e(no\oj a)nqrw/pou, ―por um só homem‖, com que o verso começa,
controla assim a mente do apóstolo, de tal forma que ele não vê necessidade de repeti-la
expressamente‖. 152 A idéia de um homem controla o pensamento de Paulo através de seu
argumento todo. Ele quer enfatizar a idéia de representação. Mesmo embora Paulo creia que os
homens sejam culpados por causa de seus pecados pessoais, ele não está dizendo neste texto que
―todos os homens‖ tenham pecado pessoalmente, mas representativamente. A maldição da lei cai
sobre eles, não (somente) porque eles sejam pessoalmente pecaminosos, mas porque
eles são (também) federalmente culpados, quando o cabeça de pacto deles
pecou.
Se aceitamos a crença de que a ―morte‖ é o resultado de nossos pecados pessoais (o que se
pode dizer a respeito da morte das criancinhas no ventre de suas mães?), nós destruímos a idéia
de que Adão era o ―tu/poj‖ dAquele que haveria de vir mais tarde. Se todos morrem porque eles
pecaram pessoalmente, deveria eu crer que todos vivem porque ele são justos pessoalmente?
Absolutamente, não! E fácil observar em Cristo o mesmo princípio de representação. Se todos nós
fomos salvos é porque todos estávamos representados em Cristo; do mesmo modo todos os
homens morrem porque eles estão representados em Adão.
O principio da representação está claramente expresso neste texto. Isto forma a base para
a imputação do pecado. O método de imputação controla, em algum sentido, a antropologia
cristã e a soteriologia. Vejamos: O pecado de Adão é imputado a nós; nossos pecados são
imputados a Cristo; e a justiça de Cristo é imputada a nós. O principio é o mesmo nos três
exemplos.
Se continuamos na análise deste texto pode ver o mesmo principio ilustrado:

Rm 5.16 — ―O dom, entretanto, não é como no caso em que somente um


pecou; porque o julgamento derivou de uma só ofensa, para a condenação; mas a
graça transcorre de muitas ofensas, para a justificação.‖

Apenas uma ofensa cometida por um homem traz condenação, uma sentença judicial, que
significa ―morte‖ ou ―condenação‖. O contraste é que Jesus Cristo morreu não simplesmente por
aquela única ofensa, mas também morreu por muitas ofensas, nossos pecados pessoais, que
tiveram o seu nascedouro naquela única ofensa. O que Paulo está dizendo aqui é que não há
necessidade alguma de pecados pessoais para que sejamos condenados, mesmo embora Deus
também condene os homens por causa de seus pecados pessoais. O pecado de Adão, a única

148 Ibid.
149 Calvino diz: ―Todos nós, portanto, temos pecado, porque todos estamos revestidos de uma
corrupção natural, e assim nos tornamos pecaminosos…‖ (Commentary upon the Epistle of Saint Paul to the
Romans, Edinburg: printer for the Calvin Translation Society, 1844), p. 135. Ver também, Robert Haldane,
Commentary on Romans, (Grand Rapids: Kregel Publications, 1988 edition), p. 216.
150 Ver W. G. T. Shedd, Critical and Doctrinal Commentary upon the Epistle of St. Paul to the
Romans, (New York: Charles Scribner‘s Sons, 1879), pp. 127-28.
151 A Vulgata traduz ―in quo‖ (em quem) e assim também fizeram Palágio e Agostinho. Outros

teólogos Reformados, como Beza e Owen, também traduziram a expressão grega acima como sendo
equivalente a ―em quem‖.
152 Godet, p. 208.
108

ofensa, é o bastante. Mas a nossa salvação transcorre de ―muitas ofensas‖.

Rm 5.17 — ―Se pela ofensa de um, e por meio de um só, reinou a morte, muito
mais os que recebem a 8hundáncia da graça e o dom da justiça, reinarão em vida
por meio de um só, a saber, Jesus Cristo.‖

Ambos, a morte e a vida, vem através de um só homem. A ―morte‖ é a sentença judicial


sobre todos os homens, por causa do pecado de Adão. O texto diz que a ―morte reinou‖ por causa
de apenas uma ofensa. De um lado, todos os homens morrem porque eles receberam a
imputação da culpa. Do outro lado, se todos vivem, é por causa do ato de um só homem, Jesus,
que traz vida. Isto é também imputação, mas de justiça, porque para nós ela é o ―dom da justiça‖.
O modus operandi de Deus é o mesmo em ambas, a condenação e a justificação.

―O uso da linguagem de imputação, não é por imputação mediata que os


crentes entram em posse da justiça de Cristo na justificação. Seria contraditória
da doutrina da justificação de Paulo, supor que a justiça e obediência de Cristo se
tornassem nossas para a justificação por causa da santidade que é comunicada a
nós da parte de Cristo ou que a justiça de Cristo é mediada a nós através da
santidade gerada em nós pela regeneração. A única base sobre a qual a imputação
da justiça de Cristo se torna nossa é a união com Cristo. Em outras palavras: a
pessoa justificada é constituída justa pela obediência de Cristo, por causa da
solidariedade estabelecida entre Cristo e a pessoa justificada. A solidariedade
constitui o laço pelo qual a justiça de Cristo se torna a do crente.‖ 153

E justo dizer que o mesmo em relação a Adão e sua posteridade. A solidariedade entre ele
e toda a raça é a base para a imputação do pecado. Ambos os atos, o de Adão e o de Cristo, são
imputados, isto é, eles são transferidos de uma pessoa para as outras. O mesmo principio está
evidente nos versos 18 e 19.
Nesta passagem de Paulo, portanto, podemos ver o princípio da representação e a
imputação conseqüente, em ambos os aspectos enfatizados nela: condenação e salvação. Nele
podemos ver a velha humanidade em Adão, e a nova humanidade em Cristo. Nele estão presentes
as duas principais personagens da história humana: Adão e Cristo, símbolos da desobediência e
da obediência, representantes de dois pactos, o das obras e o da graça.

O Princípio da Representação na Escritura

O princípio representativo pervade toda a Escritura. A imputação do pecado de Adão não


um fato isolado. Ele é somente uma ilustração de como Deus trata os outros assuntos. Vejamos
alguns exemplos do princípio da representação que tornam possível a imputação:
— Por causa de Esaú, no caso do direito da primogenitura, toda a sua descendência ficou
fora das promessas do pacto (Gn 25.27-34). Jacó recebeu os benefícios de filho mais velho, e sua
descendência foi abençoada, enquanto que a de Esaú ficou fora dos privilégios pactuais (Gn 27).
— Os filhos de Moab e Amon foram excluídos da congregação do Senhor para sempre,
porque seus ancestrais se opuseram aos israelitas quando eles saíram do Egito (Dt 23.3-4).
— Por causa do pecado de Acã, toda a família, inclusive as criancinhas, foi morta (Js
7.24-26).
— Por causa dos pecados de Coré, Datã e Abirão, pereceram muitas pessoas, sobretudo
mulheres e crianças. Deus imputou a culpa dos lideres nos liderados (Nm 16.22-33).
— Por causa da maldade dos pais, as gerações dos filhos, especialmente os pequeninos de
peito, sofrem as conseqüências (Dt 32.18-25).
— Por causa do pecado de Davi com Batseba e Urias, Deus disse: ―Agora, pois, não se

153 Murray, third article, p. 169.


109

apartará a espada jamais da tua casa, porquanto me desprezaste, e tomaste a mulher de Urias o
heteu, para ser tua mulher‖ (2 Sm 12.10).
— Por causa da incredulidade dos judeus nos tempos de Jesus, ficou validada a
imprecação dos judeus que disseram: ―Seu sangue caia sobre nós e nossos filhos‖ - e isto tem
sido uma terrível verdade até hoje.
— Por causa do pecado de Faraó, o Senhor imputou o pecado dele sobre a vida de todos os
primogênitos na noite que precedeu a saída dos israelitas do Egito (Ex 13.15).
— Por causa do pecado de Amaleque todo o povo, inclusive as mulheres e crianças,
sofrem (1 Sm 15.2,3).
— Veja-se o mesmo caso em Ez 9.3-6; 23.46-48.
— Observe como Deus procede nestes versos paralelos dos Dez Mandamentos (Ex 20.5-6;
34.6-7; Nm 18.14; Dt 5.9-10).
Este princípio da representação é, também, aplicado inversamente. Deus imputa suas
bênçãos a outros, por causa da obediência de um. Quando Deus entrou em pacto com Abraão,
não foi para ele somente, mas para a sua posteridade. Seus descendentes haveriam de ser
abençoados por causa do crente Abraão. Todo o plano da Redenção descansa sobre esse
principio representativo: Cristo é o representante do Seu povo e, age por eles, no lugar deles. Por
causa disso, os pecados do seu povo são imputados a Ele, e Sua justiça é imputada a eles.
Tanto a maldição como a bênção são imputados. A imputação é o método de Deus.
Embora este assunto seja difícil de aceitar (sobretudo no caso da imputação de pecado), não há
que se duvidar de que essa é uma verdade afirmada inquestionavelmente na Escritura.
Quando esta pergunta — ―Por que as pessoas sofrem as conseqüências se elas não são
culpadas pessoalmente?‖ — aparecer, a resposta sempre deverá ser esta: A Bíblia diz que as
conseqüências não são por causa de faltas pessoais, mas é uma conseqüência judicial, por causa
do princípio da representação. As penas impostas são penas de lei. O problema não é a culpa
voluntária, pessoal, mas a culpa é atribuída por causa da representação. Observe a imputação
da justiça de Cristo, por exemplo. As pessoas por quem Ele morreu, estavam pessoalmente na
cruz? Não! Por que, então, ninguém reclama desse mesmo processo de Deus. Por que apenas isso
nos favorece? Não há injustiça no método de Deus porque o princípio da imputação é o mesmo
em ambos os casos: pecado e bênção. Se temos que reclamar, que reclamemos também do modo
como Deus nos salvou em Cristo Jesus! Parece-me que ninguém está disposto a fazer tal
reclamação.

3) Os que Sustentam a Teoria da Imputação Mediata


Em meados do séc. XVII La Place (Placaeus), um teólogo francês da escola de Saumur,
introduziu profundas modificações em varias doutrinas Reformadas, como por exemplo:
decretos, eleição, expiação, e sobre a doutrina da imputação do pecado de Adão.
La Place ensinou que a nossa natureza corrupta derivou-se de Adão, e que essa natureza
corrupta, e não o pecado de Adão, é a base da condenação que vem para toda a raça.
A crença de La Place era que todos nós somos inerentemente depravados e, portanto,
somos envolvidos na culpa do pecado de Adão. Não há nenhum tipo de imputação direta ou
imediata do pecado de Adão à sua posteridade, mas somente uma imputação mediata ou
indireta, com base no fato de que somos moralmente corruptos.
La Place inverteu a ordem das coisas: a base da imputação não foi o pecado de Adão, mas
corrupção herdada dele. Os descendentes de Adão herdam dele sua corrupção inata, mediante
um processo de geração natural, e unicamente sobre a base dessa depravação inerente que
partilham com ele, é que os torna culpáveis de apostasia. Não nascem em corrupção porque
sejam culpados em Adão, mas são considerados culpados porque já estão corrompidos. Sua
condição não se baseia num estado legal, mas seu estado legal se baseia em sua condição moral.
Obs.: E possível que La Place tenha tentado justificar o seu pensamento em virtude de
encontrar apoio em alguns teólogos bem antigos, que não deram muita ênfase à imputação e,
sim, à corrupção. Mesmo os Reformadores, parece-nos, deram mais ênfase à corrupção (em
virtude de sua luta contra a corrupção do clero romano) do que á imputação de culpa. E curioso
110

notar que a doutrina da imputação do pecado de Adão é mais clara no Catecismo Maior e Breve
do que na própria Confissão de Fé de Westminster.
Objeções:
(a) A corrupção é uma espécie de punição de Deus. Portanto, para que haja punição é
necessário primeiro, que haja culpa. A culpa precede a punição. A depravação (ou morte
espiritual) é a punição de Deus. Então, a imputação do primeiro pecado de Adão precede a
depravação, e não é a conseqüência dela.
(b) Se essa teoria fosse consistente, deveria ensinar a imputação mediata dos pecados de
todas as gerações anteriores àquelas que lhes seguiram, porque a corrupção transmite-se por
meio de geração ordinária.
(c) Se a corrupção inerente que está presente nos descendentes pode ser considerada
como o fundamento legal para a explicação de alguma outra cousa, já não há necessidade de
qualquer imputação mediata.
111

CAPITULO IX

AS CONSEQÜÊNCIAS DO PECADO NA VIDA DA RAÇA


HUMANA

Ninguém poderá encontrar a chave do mistério da miséria humana se não recorrer aos
ensinos das Sagradas Escrituras. Nenhuma ciência humana haverá de dar respostas às mais
cruciais perguntas feitas sobre a condição em que vive o ser humano desde que dele se tem
notícia da história. Se quisermos ter respostas, haveremos de encontrá-las somente na revelação
divina como registrada na Biblia.
O que aconteceu do Éden é chave para entendermos a condição atual do homem. Neste
capítulo estudaremos sobre as terríveis conseqüências do pecado para Adão e para a sua
posteridade. Adão é considerado na Escritura o protótipo de toda a humanidade, e seu pecado
está intimamente relacionado com a sua descendência, pois ele agiu, não como um homem
particular, mas como o representante da raça, por causa da sua relação pactual. Se Adão não
houvesse sido o cabeça representativo da raça, os nossos pecados atuais não teriam qualquer
relação com Adão, apenas uma simples imitação, como pensam os pelagianos. Mas a Escritura
trata deste assunto muito seriamente, e não podemos fechar os olhos ao que ela nos diz.
As conseqüências do pecado para ele e para a sua posteridade:

1. CONSEQÜÊNCIAS PARA ADÃO


A Confissão de Fé de Westminster diz da conseqüência do pecado dos primeiros pais para
eles próprios:

―Por este pecado eles decaíram da sua retidão original e da comunhão com
Deus, e assim se tornaram mortos em pecado e inteiramente corrompidos em
todas as suas faculdades e partes do corpo e da alma‖ (V, ii).

Consideraremos aqui apenas as conseqüências imediatas do pecado na vida de nossos


primeiros pais. A ofensa de Adão não deve ser medida pelo ato externo de comer do fruto
proibido, mas pela afronta terrível que foi feita à Majestade de Deus.
Nesse único pecado de nossos primeiros pais houve uma ramificação de crimes: Houve
ingratidão contra Aquele que os havia abençoado e capacitado para exercer a grande obra de
cuidar de toda a criação; houve incredulidade na verdadeira palavra de Deus que havia sido
claramente dirigida a Adão, e uma certa crença na palavra de Satanás; houve o repúdio das
obrigações impostas por Deus; houve insatisfação pelo modo como Deus os havia feito; houve o
orgulho em querer ser igual ou maior do que Deus; houve um desafio à solene ameaça de Deus;
e por fim, a desobediência que foi a reta final do pecado de nossos primeiros pais.
Segundo o que a Escritura indica, Adão pereceu por causa do seu pecado. Não
compartilho da idéia popular de alguns teólogos de que o Senhor salvou a Adão após a queda.
Não há qualquer base escriturística para se afirmar tal cousa. Muito ao contrário. As Escrituras,
112

todas as vezes que se refere a Adão, tem uma palavra negativa de sua atitude. 154 Não há
nenhuma palavra elogiosa a ele, ou qualquer menção de seu arrependimento, muito menos o
registro de uma confissão sua. A contrário, quando acusado, tentou desculpar-se, colocando a
culpa na sua esposa. Nada na Escritura dá qualquer crédito a Adão, ou que ele tenha recebido a
misericórdia de Deus.
Vejamos agora, a análise do texto de Gênesis que é chave para a compreensão dos
resultados imediatos do pecado na vida de nossos primeiros pais.

Análise de Gn 3.7-24155
Quando Deus colocou Adão do Éden, ele parecia ser cheio de veneração para com seu
Criador, e parecia amá-lo pelo que Ele lhe havia dado. Mas parece-nos, esse estado de
bem-aventurança não durou muito tempo.156 Sua vontade que havia sido sujeita ao Criador,
agora se rebela inexplicavelmente. Sua constituição moral ficou altamente prejudicada, com
tendência para a perversão. A vida de comunhão com Deus havia sido perdida. E isto que fica
evidente dos versos que vamos analisar:
1) O primeira conseqüência da transgressão dos nossos primeiros pais foi: tiveram a
consciência culpada, e um senso de vergonha se apoderou deles.

Gn 3.7 — ―Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam


nus...‖

Não percebemos mudança qualquer quando Eva comeu do fruto, mas quando Adão o
comeu, diz a Escritura que os ―os olhos de ambos foram abertos‖. Isto nos dá uma base bem forte
para mostrar que o pacto havia sido feito com Adão. Ele era o cabeça, e dele Deus cobra o pecado.
Adão era o representante legal de sua esposa, tanto quanto dos futuros filhos que viriam deles. E
por isso que até hoje conhecemos esse pecado como ―o pecado de Adão‖, não como ―pecado de
Eva‖.
O que significa ter os olhos abertos? Certamente aqui não se refere aos olhos físicos,
porque estes já estavam previamente abertos. Mas o texto se refere aos olhos do entendimento, ou
os olhos da consciência, que vêem, percebem, acusam e castigam.
O resultado de comerem o fruto proibido não foi a aquisição da sabedoria sobrenatural,
como Satanás havia dito (v.5), mas foi a descoberta triste de que haviam sido reduzidos a uma
situação de miséria.
Agora perceberam que estavam ―nus‖, que tem um sentido bem diferente de Gn 2.25. Os
olhos deles ―foram abertos‖ e seria de se esperar que o texto dissesse: ―e viram eles que estavam
nus‖, mas ao invés disso o texto diz: ―e perceberam que estavam nus‖. Este verbo demonstra algo
mais do que simplesmente nudez física. O verbo ―perceber‖ aqui dá o sentido de ―sentir‖. Como a
abertura dos olhos se refere ―aos olhos do entendimento‖ (ou ―da consciência‖), concluímos que
eles discerniram o sentido de estarem ―nus‖. Eles perderam a sua inocência. Há a nudez da alma
que é muito pior do a de um corpo sem roupa, porque ela incapacita o homem de perceber a
presença de Deus. A nudez de Adão e Eva foi a perda da justiça original da imagem de Deus. Tal
é a condição em que todos os humanos são nascidos depois deles. E por isso que as Escrituras
falam sobre as ―vestiduras brancas‖ (Ap 3.18), ―vestidos de salvação‖ ou ―mantos de justiça‖ (Is
61.10), indicando uma justiça original que Cristo nos traz de volta.

154Olhe o testemunho desta verdade no VT — Jó diz que Adão encobriu as suas transgressões (Jó
31.33); O Salmista Asafe (SI 82,7) diz que aqueles que julgam injustamente, morrem como Adão. Obs.: a
palavra hebraica para homem é Adão; observe o testemunho da mesma verdade no NT — Aqui Adão é
contrastado em detalhes consideráveis com cristo (Rm 5.12-21; 1 Co 15.22, 4547; 1 Tm 2.14. Se Adão
tivesse sido salvo, a antítese falharia no seu ponto principal. como que aqueles que estavam em Adão foram
condenados se o próprio Adão foi salvo? Falharia Deus em Sua justiça?
155 Análise feita com base nas felizes observações de A. W. Pink, Gleanings, pp. 59-68.
156 Não há nenhum indicação na Escritura sobre o tempo em que Adão ficou no estado de inocência,

isto é, sem pecado.


113

―Ele perceberam que estavam nus‖ — Perceberam que a sua situação física estava
espelhando a sua condição espiritual. Eles foram tornados dolorosamente conscientes do pecado
e de seus terríveis conseqüências.

2) A segunda conseqüência da transgressão deles foi esta: eles ocultaram o seu real
caráter.

Eles estavam mais preocupados em salvar as aparências do que realmente procurar o


perdão de Deus.

Gn 3.7 — ―e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira, e


fizeram cintas para si.‖

Cosendo cintos para si, eles tentaram acalmar a própria consciência. Da mesma forma os
filhos de Adão fazem hoje. Eles têm mais medo em serem detectados nos seus erros do que
cometê-los, e mais preocupados estão ainda em parecerem bem diante dos homens do que
obterem a aprovação de Deus. O objetivo principal dos homens caídos é aquietar a própria
consciência culpada e parecerem bem diante dos vizinhos. Alguns até assumem o papel de
religiosos, fazendo os outros pensarem que andam decentemente, vestidos.

3) A terceira conseqüência da transgressão deles foi esta: tiveram medo de Deus.

Gn 3.8 — ―Quando ouviram a voz do Senhor Deus, que andava no jardim pela
viração do dia, esconderam-se da presença do Senhor, o homem e sua mulher, por
entre as árvores do jardim.‖

Até este ponto eles haviam estado preocupados somente consigo mesmos e com sua
vergonha, mas agora tinham Outro com quem se preocupar: o Juiz de toda a terra. Ao ouvirem a
voz de Deus, ao invés de darem boas-vindas a ela, ficaram terrificados e ―esconderam-se da
presença do Senhor‖.157 Nesta tentativa percebemos a tolice deles. Quem pode esconder-se da
onipresença e da onisciência de Deus?
Quando eles pecaram, eles cessaram de amar a Deus e de confiar nele. Deus passou a ser
objeto da sua aversão e desprazer. Um senso de degradação encheu-os e tiveram uma terrível
inimizade contra Deus. Assim, esconderam-se dele por causa do seu pecado, aterrorizados.
Temeram ouvir Deus pronunciar uma sentença formal de condenação sobre si mesmos, porque
sabiam bem o que mereciam.
Adão e Eva não somente trouxeram danos irreparáveis sobre si mesmos, mas
tornaram-se fugitivos do Todo Glorioso Criador. Este é puro e aqueles pecadores. Portanto, os
pecadores evitaram o que era puro. Não é assim que acontece com os homens hoje? Gostam eles
de ficar juntos dos que são genuinamente cristãos? Gostam eles da santidade?
Todos os homens têm que comparecer perante o Santo e prestar-lhe contas. Não poderia
deixar de ser assim com o primeiro homem. Só não prestarão contas pessoalmente a Deus
aqueles que tiveram as suas contas prestadas por Jesus Cristo. A menos que o sangue de Jesus
Cristo tenha expiado os nossos pecados, compareceremos perante o Juiz de toda a terra. ―Como
escaparemos nós se negligenciarmos tão grande salvação?‖ (Hb 2.3). Não presuma que você é um
cristão. Examine as suas bases. Peça a Deus para que Ele sonde o seu coração e lhe mostre a sua
real condição.

Gn 3.9 — ―E chamou o Senhor Deus ao homem e lhe perguntou: onde estás?‖

Esta pergunta já era parte do juízo divino, para que Adão visse realmente o que havia

157 Ler Jr 23.24.


114

feito. Foi uma pergunta para Adão perceber a distância de Deus que o pecado causou. O pecado
separa o homem de Deus. A ofensa de Adão provocou a perda da comunhão com Deus. Agora, a
pergunta de Paulo, vale claramente: ―Que sociedade pode haver entre a justiça e a iniquidade? ou
que comunhão da luz com as trevas?‖ (2 Co 6.14).
Observe novamente que o Senhor ignorou Eva e dirigiu-se ao cabeça responsável. Deus
havia advertido a Adão a respeito do fruto proibido: ―No dia em que comeres, certamente
morrerás‖. Esta morte não significa aniquilação, mas alienação, separação. A morte espiritual é a
separação do homem do Deus Santo (Is 59.2), que culmina com a morte eterna (2 Ts 1.9).

Gn 3.10 — ―Ele respondeu: Ouvi a tua voz no jardim e, porque estava nu, tive
medo e me escondi.‖

Observe quão incapaz é o pecador para encontrar-se diante da inquisição divina. Adão
não poderia oferecer nenhuma resistência adequada. Ouça a sua admissão: ―Tive medo‖. Sua
consciência o condenava. Agora era a dura presença de Deus que o incomodava. Deus que é o
refúgio para a alma do crente, torna-se o terror para a alma pecaminosa. Adão comparece diante
de Deus destituído de qualquer justiça, justiça essa que nós obtivemos de e em Cristo. Observe a
colocação de Adão: ―Por que eu estava nu, tive medo e me escondi‖. O coração de Adão estava
cheio de horror e terror. Os cintos de folhas de figueira não haviam adiantado nada. Isto acontece
quando o Espírito Santo descobre a alma humana. A despeito das roupas religiosas que
possamos vestir, o Espírito nos convence da nossa nudez espiritual. Então, a alma se enche de
temor e vergonha, e ela percebe que vai se haver com Aquele diante do qual ―todas as coisas estão
patentes e descobertas‖ (Hb 4.13).

Gn 3.11 — ―Perguntou-lhe Deus: Quem te fez saber que estavas nu? Comeste
da árvore de que te ordenei que não comesses?‖

A esta pergunta Adão não teve resposta. Ao invés de humilhar-se perante o seu Benfeitor,
Adão fracassou em responder. Apenas deu uma desculpa esfarrapada. Se as palavras de Adão no
v. 10 foram devidamente ponderadas, uma omissão grande e fatal deve ser observada: ele não
disse nada a respeito do seu pecado, mas mencionou apenas os efeitos dolorosos que ele
produziu. Mas Deus neste v. 11 dirige-se para a causa daqueles efeitos. Esta pergunta direta de
Deus abriu o caminho e tornou muito mais fácil para Adão reconhecer contritamente a sua
transgressão, embora sem o precioso senso de arrependimento.
Deus não fez estas perguntas porque queria ser informado, mas antes, para providenciar
a Adão uma ocasião de rever o que havia feito. Em sua recusa percebemos a quarta conseqüência
do seu pecado.

4) A quarta conseqüência da transgressão de nossos primeiros pais foi esta: o


endurecimento do coração pelo pecado.

Não houve tristeza profunda por sua flagrante desobediência. Portanto, não houve
arrependimento.

Gn 3.12 — ―Então disse o homem: a mulher que deste por esposa, ela me deu
da árvore, e eu comi.‖

Este verso 12 é a resposta à segunda pergunta do verso anterior. Ele não assumiu as
próprias responsabilidades como chefe da família, nem como cabeça da mulher. Simplesmente
transferiu a culpa do pecado para ela. Nem se tocou de que ele era o principal responsável, e que
era dele que Deus cobrava. Esta é a conseqüência mais comum quando os homens pecam. Eles
sempre arranjam uma justificativa para os seus pecados. Esta foi a outra conseqüência.

5) A quinta conseqüência da transgressão de nossos primeiros pais foi que eles se


115

auto-justificaram.

Ele tentaram encontrar um culpado pelos seus próprios pecados. Ao invés de confessar a
sua impiedade, Adão tentou lançar a culpa em outro. A entrada do pecado na vida do homem
produz um coração enganoso e desonesto. Ao invés de culpar-se a Si mesmo, lançou a culpa na
mulher. E assim acontece também com todos os seus descendentes. Eles esforçam-se para tirar
a responsabilidade de sobre os próprios ombros, atribuindo culpabilidade a outro ser ou a
alguma outra coisa, como por exemplo, ao diabo. Isto é muito comum acontecer para se fugir da
própria responsabilidade.

6) A sexta conseqüência da transgressão de nossos primeiros pais foi o insolente desafio


ao próprio Deus.

As palavras do v. 12 mostram quão insolente foi Adão com Deus. Ele não disse
simplesmente: ―A mulher deu-me do fruto e eu comi‖, mas disse ―a mulher que TU me deste...‖ —
Assim, abertamente, ele culpa ao Senhor pela transgressão dele. Em outras palavras, Adão disse:
―Se Tú não me tivesses dado essa mulher, eu não teria caído. Por que fizeste isso comigo?‖—
Observe o orgulho e a dureza de coração que caracterizam o demônio, agora fazem parte do reino
dos homens. E assim ainda hoje com os filhos dos homens. A diferença é que hoje eles são
tentados pela própria cobiça do coração pecaminoso (Tg 1.13). A natureza depravada da criatura
caída é sempre propensa a pensar que a melhor cousa é procurar abrigo na desculpa: ―Se Deus
tivesse feito de outra forma, eu não teria feito aquilo‖. Assim, em nossos esforços de
auto-justificação, desafiamos ao próprio Deus corrigindo-o naquilo que ele faz.
Pv 19.3 diz: ―A estultícia do homem perverte o seu caminho, mas é contra o Senhor que
seu coração se ira‖. Esta é uma das formas mais vis na qual a depravação do homem se
manifesta: após comportar-se como um tolo e de descobrir que o caminho da transgressão é
difícil, o homem murmura contra Deus ao invés de, mansamente, submeter-se à Sua vara. Após
pervertermos os nossos caminhos, não culpemos Deus pelos frutos amargos do nosso proceder.
Visto que somos os autores de nossa miséria, é razoável que fiquemos tristes conosco mesmos.
Mas o orgulho do coração é tal que, evidenciando a nossa inimizade contra Deus, ficamos irados
contra Ele, sendo que nós mesmos somos responsáveis por nossos pecados. E verdade o que a
Escritura diz: ―Não se colhe uvas de espinheiros e nem figos dos abrolhos!‖ - Não acusemos Deus
pelos frutos de nossa própria perversidade! Se fizermos assim, estaremos repetindo o mesmo
pecado de nossos primeiros pais.
A resposta do v. 12 mostra realmente o que aconteceu, mas esta atitude tornou ainda pior
o ato de Adão. Ele era o cabeça e protetor da mulher e, portanto, deveria cuidar dela melhor,
evitando que ela caísse em pecado. Quando ela foi enganada pela serpente, e ele o soube, ele não
deveria seguir o exemplo dela recusando a oferta.
Arão, embora tenha reconhecido o seu pecado, culpou o povo por ser pecaminoso,
tentando eximir-se de culpa (Ex 32.22-24); Assim também fez Saul (1 Sm 15.17-21); Pilatos deu
ordem para a crucificação de Jesus, e atribuiu o crime aos judeus (Mt 27.24).

7) A sétima conseqüência do pecado de nossos primeiros pais foi a quebra da afeição.

A quebra da afeição entre o homem e o seu próximo - neste caso sua esposa, a quem ele
deveria respeitar, proteger e amar.

Gn 3.13 — ―Disse o Senhor Deus à mulher: Que é isso que fizeste? Respondeu
a mulher: A serpente me enganou, e eu comi.‖

O Senhor perguntou, não propriamente como um juiz, não apontando


condenatoriamente, mas, parece-nos, para dar uma oportunidade a Eva para defender-se ou
confessar o seu pecado. Mas Eva portou-se exatamente como seu marido. Seguiu exatamente o
116

mesmo curso de Adão. Ela não se humilhou diante do seu Criador, não deu qualquer sinal de
arrependimento, nenhum sentimento de tristeza ou confissão. Ele tratou de arranjar alguém
responsável pelo seu ato. Culpou a serpente. Foi uma desculpa fraca, porque Deus a capacitou
com entendimento para perceber a mentira, e com retidão de natureza para rejeitá-la
prontamente.
Os filhos de Adão fazem o mesmo hoje. E inútil dizer: ―Eu não tinha intenção de pecar,
mas o demônio tentou-me‖. O demônio não pode forçar ninguém a pecar, nem prevalecer sobre o
homem seu consentimento.

Gn 3.14-14 — ―Então o Senhor Deus disse à serpente: Visto que fizeste isto,
maldita és entre todos os animais domésticos, e o és entre todos os animais
selváticos: rastejarás sobre o teu ventre, e comerás pó todos os dias da tua vida.
Porei inimizade ente ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente.
Este te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás calcanhar.‖

Antes de pronunciar sentença sobre Adão e Eva, Deus dirigiu-se à serpente, que foi a
causa instrumental da queda deles. Observe que nenhuma pergunta foi feita à serpente. Antes, o
Senhor a tratou como uma inimiga declarada. Sua sentença deve ser tomada literalmente com
relação à serpente, mas alegoricamente com relação à Satanás. Estas palavras de Deus implicam
numa punição visível, que é executada sobre a serpente, como instrumento da tentação, mas a
maldição foi dirigida contra o tentador invisível, Satanás.

8) A oitava conseqüência da transgressão de nossos primeiros pais foi tristeza, sofrimento


e morte.

Gn 3.16-19 — ―E à mulher disse: Multiplicarei sobremodo os sofrimentos da


tua gravidez; em meio a dores darás à luz filhos; o teu desejo será para o teu
marido, e ele te governará. E a Adão disse: Visto que atendeste à voz de tua
mulher, e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses: maldita é a terra
por tua causa. Em fadigas obterás dela o sustento durante os dias da tua vida. Ela
produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do campo. No suor do
rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque tu
és pó e ao pó tornarás.‖

Nestes versos há as sentenças que foram pronunciadas contra Adão, Eva e a terra: Eva foi
condenada a um estado de tristeza, sofrimento e servidão; Adão foi condenado a uma vida de
tristeza e cansaço; e a terra sofre a maldição que até hoje pesa sobre ela (Rm 8.20-23).

9) A nona conseqüência do pecado de nossos primeiro pais foi que o homem desceu ao
nível dos animais.

Gn 3.20-21 — ―E deu o homem o nome de Eva à sua mulher, por ser a mãe de
todos os seres humanos. Fez o Senhor Deus vestimentas de peles para Adão e sua
mulher, e os vestiu.‖

Adão e Eva foram vestidos como os animais se vestem...


Alguns intérpretes das Escrituras entendem o v.2 1 como sendo uma provisão de Deus
que indica o sacrifício de um animal para vestir o homem, apontando para o sacrifício do
Cordeiro. Se isto é assim, podemos inferir que Deus tratou os nossos pais com misericórdia, o
que elimina a condenação deles. As roupas de peles tipificam as vestimentas de justiça, as
mesmas que Jesus Cristo cobre os Seus, sendo vestes de salvação. Mas parece não haver
nenhuma provisão de salvação no Éden. Creio que seria forçar o texto. Se Deus quisesse falar de
salvação a Adão, ele teria feito claramente, como quando anunciou o proto-evangelho em 3.15.
117

Obs.: Moisés, o narrador destas cousas, recebeu de Deus alguns detalhes importantes
como estes do v.20: Eva ainda não havia dado à luz filhos, senão somente depois de serem
expulsos do Éden (isso ilustra o v.16). Adão deu prova do seu domínio sobre a criação (1.28),
conferindo nome à Eva.

10) A décima conseqüência da transgressão de nossos primeiros pais: eles foram


lançados para fora da presença de Deus.

Antes de lançá-los para fora do jardim, Deus usou uma linguagem irônica e sarcástica a
respeito do resultado do pecado de comer o fruto de Adão: A promessa de Satanás no v.5 era que
eles seriam "como Deus".

Gn 3.22 — ―Então disse o Senhor Deus: Eis que o homem se tornou como um
de nós, conhecedor do bem e do mal...‖

Agora, ao invés, de serem como Deus, conhecedores do bem e do mal, foram colocados ao
nível das bestas-feras, tiveram que vestir-se à moda dos animais e comer as coisas que os
animais comiam, que originalmente não era próprio para eles: ―comer das ervas do campo‖.
Então, vem a maldição final:

Gn 3.23-24 — ―O Senhor Deus, por isso, o lançou fora do jardim do Éden, a


fim de lavrar a terra de que fora tomado. E, expulso o homem, colocou querubins
ao oriente do jardim do Éden, e o refulgir de uma espada que se revolvia, para
guardar o caminho da árvore da vida.‖

Estar fora do jardim do Éden era o mesmo que estar longe da presença benévola,
reveladora e agradável de Deus. Ser expulso do jardim significa a expressão da ira de Deus pelo
descontentamento com o pecado de Adão. Este tornou-se estranho ao favor de Deus e à Sua
comunhão. Ele foi banido do lugar de prazer e gozo. Tornou-se errante e fugitivo. Assim como
lançou para fora da Sua habitação os anjos que pecaram (Jd 6), Deus também lançou o homem
para fora do lugar da Sua habitação, como prova do Seu desagrado com o pecado.

2. CONSEQÚÊNCIAS PARA A RAÇA HUMANA


As conseqüências do triste evento do Éden não trouxeram conseqüências simplesmente
para os nossos primeiros pais, mas para toda a raça humana. A condição com que nascem todos
os homens, isto é, em condição pecaminosa, é chamada na teologia peccatum oríginale. É uma
mancha que atinge a todos sem exceção.
A Confissão de Fé de Westminster mostra que o pecado dos nossos primeiros pais trouxe
conseqüência para toda a raça, porque o pecado deles é imputado, pela relação pactual, a toda a
posteridade dele.

Sendo eles o tronco de toda a humanidade, o delitos de seus pecados foi


imputado a seus filhos; e a mesma morte em pecado, bem como a sua natureza
corrompida, foram transmitidas a toda a sua posteridade, que deles procede por
geração ordinária (V, iii).

A CFW também mostra que todos os nossos pecados atuais têm nascedouro no pecado
original:

Desta corrupção total pela qual ficamos totalmente indispostos, adversos a


todo o bem e inteiramente inclinados a todo o mal, é que procedem todas as
transgressões atuais. (V, iv).
118

Portanto, o pecado original, é o grande mal que afeta toda a raça, e não há cura para ele,
a não ser na obra redentora de Jesus Cristo.
119

CAPITULO X
O PECADO ORIGINAL

O que é o pecado original? O pecado original tem sido visto como o pecado herdado, mas
herança não explica tudo daquilo que chamamos peccatum oríginale. A culpa, por exemplo, não é
uma matéria de herança. Berkhof diz que este pecado se chama ―pecado original‖ por algumas
razões: 1) Por que se deriva do tronco original da raça humana; 2) Porque está presente na vida
de cada indivíduo desde o momento do seu nascimento e, portanto, não pode ser considerado
como resultado de imitação; 3) Por que é a raiz interna de todos atuais que mancham a vida do
homem‖.158 Berkhof ainda adverte que desse nome ―pecado original‖, jamais deve ser pensado
que ele pertença à natureza constitucional do homem, pois tornaria Deus o autor do homem
pecador.159
O pecado original pode ser dividido basicamente em dois elementos: Culpa Original e
Corrupção Original.

1. CULPA ORIGINAL
A palavra ―culpa‖ tem que ser corretamente entendida. Aqui, neste estudo, não
estudaremos nada a respeito do ―sentimento de culpa‖, que é um elemento emocional do pecado,
nem da imputação dela160, mas estudaremos o aspecto judicial ou forense da palavra, ou ainda,
a relação que o pecado tem com a lei.
A culpa é o estado no qual se merece a condenação, ou na qual se sente merecer o castigo
pela violação da lei ou de qualquer exigência moral.
Podemos falar de culpa de dois modos:

Reatus Culpae
E a culpa de réu. Esta culpa Turretin chama de Culpa Potencial. 161 E a culpa moral
intrínseca do pecador, inerente a ele, que não pode ser separada dele. Ela faz parte da essência
do pecado. Essa culpa nunca se encontra em alguém que não é pessoalmente pecador. Essa
culpa é permanente de tal forma que não é tirada nem com o perdão. Ela pertence à essência do
pecado e é parte inseparável do pecado. Pertence unicamente àqueles que são pessoalmente
pecadores, e lhes acompanha permanentemente. Os méritos de Jesus Cristo não tiram essa
culpa do pecador porque lhe é inerente. Mesmo tendo suas penas pagas, essa culpa ainda
permanece com o pecador. O fato de Jesus Cristo ter morrido pelo pecador, não o torna inocente,
apenas livre da penalidade da lei, justificado, portanto. Essa culpa não pode ser transferida para
outro.
Jesus Cristo nunca teve essa culpa, porque nunca foi pessoalmente pecador. Ela é
própria somente de nós. Mesmo quando entrarmos no céu, haveremos de ir com essa culpa,
embora sem os sentimentos dela. E essa idéia de culpados, que nos acompanha para sempre,
que nos fará adorar Jesus como nosso Redentor, eternamente.

158Berkhof, p. 291 (edição castelhana).


159Berkhof, p. 291 (edição castelhana).
160 O assunto da culpa já foi estudada em capítulos anteriores, quando se estudou sobre a

―Imputação Imediata‖ (paginas ?)


161 Francis Turretin, Institutes of Elenctic Theology, vol. 1, (New Jersey: Presbyterian & Reformed,

1992 edition), p. 595.


120

Reatus Poenae
E a pena de réu. Esta culpa Turretin chama de Culpa Real162, que denota o castigo ou
pena que vem sobre o transgressor da lei. Ele tem a ver com o edito penal do Legislador que lixa
o castigo da culpa. Esta pena, ou castigo, não é inerente ao pecador. Ela pode ser paga pelo
próprio pecador ou removida pela misericórdia de Deus, através da remissão pelo Substituto dos
pecadores. Nessa culpa o pecador tem a obrigação de render satisfação à Justiça por causa da
violação da lei. Nesse sentido, a culpa não é a essência do pecado, mas antes, uma relação com a
sanção penal da lei.
E nesse sentido que Jesus levou as nossas culpas, isto é, pagando a penalidade do réu.
Nesse sentido, nunca mais seremos culpados, isto é, merecedores do castigo, porque não mais
temos dividas com a lei. Seremos santos e inculpáveis, porque essa culpa pode ser removida pela
satisfação da Justiça.

2. CORRUPÇÃO ORIGINAL
Por corrupção podemos entender a poluição ou contaminação inerente à qual todo o
pecador está sujeito. Esta é a mais inegável das verdades a respeito do ser humano caído: é o
estado pecaminoso que se torna a base do hábito pecaminoso, do qual surgem os atos
pecaminosos.
A corrupção pode também ser vista como uma conseqüência imediata da culpa com a
qual o indivíduo entra no mundo. Todo homem é culpável em Adão, como já vimos, e, portanto,
nascido com uma corrupção original.
A corrupção original do homem inclui duas coisas: a) A ausência da justiça original e b) A
presença de um mal verdadeiro.

a) Ausência de Justiça Original


E a perda da imagem moral de Deus, com a qual o homem foi originalmente criado. A
justiça original do homem consistia de três coisas mencionadas na Escritura (Ef 4.24; Cl 3.10),
que foram completamente perdidas na queda:

Justiça

Ela diz respeito à conformidade com a lei divina. Antes da queda havia total harmonia
entre a natureza moral do homem e todas as exigências da lei de Deus, que sempre foi ―santa,
justa e boa‖ (Rm 7.12). Havia concordância perfeita entre a constituição natural de nossos
primeiros pais e a regra de vida estabelecida por Deus para as Suas criaturas. Na parte mais
interior do ser humano havia uma santa inclinação. A Escritura diz que Deus ―fez o homem reto‖
(Ec 7.29), referindo-se à sua natureza moral, mas esta retidão moral foi perdida pela queda.
Todavia, ela vem a ser restaurada na regeneração do Espírito, mas todos os descendentes de
Adão já nascem sem ela.

Santidade

Esta diz respeito à pureza imaculada do ser que Deus criou. Como a justiça estava em
relação à lei divina, a santidade era a relação direta com o Criador. Nossos primeiros pais
possuíam comunhão plena com Deus. A santidade não era advinda somente da comunhão com
Deus, mas era a natureza moral deles. Não era uma simples separação do mal, mas uma
santidade positiva, uma possessão de tudo o que é bom. No verdadeiro sentido, nossos pais eram

162 Turretin, p. 595.


121

"puros de coração', pois eles viam a Deus (Mt 5.8). Assim eram nossos primeiros pais. Mas esse
princípio de santidade foi perdido, e é restaurado somente na redenção do povo de Deus.
Contudo, não se pode esquecer que todos os descendentes de Adão já nascem sem qualquer
noção dessa santidade.

Conhecimento Verdadeiro

Deve entender-se como o conhecimento do próprio Deus. Por ser reto e santo, Adão podia
―ver‖ Deus no sentido espiritual da palavra. Havia intimidade entre ele e seu Criador. Adão foi
criado espiritualmente maduro. Ele foi capacitado a aprender a apreciar aquilo que Deus é. Ele
possuía um conhecimento intuitivo e verdadeiro das perfeições divinas, pois Deus Se revelou a
Adão no Éden. Este conhecimento foi perdido pela queda, mas é restaurado na regeneração (2 Co
4.6). Todavia, todos a posteridade de Adão nasce sem qualquer conhecimento verdadeiro de
Deus.

b) Presença de um Mal Verdadeiro


O pecado original não é meramente negativo, a simples ausência do bem, mas é positivo,
isto é, manifesta-se numa disposição para o mal verdadeiro.
Esta disposição para a manifestação de um mal verdadeiro pode ser chamada de
Depravação Total, que resulta numa Incapacidade Total.

DEPRAVAÇÃO TOTAL
A Santa Escritura é o espelho que reflete exatamente o que Deus pensa a respeito dos
seres humanos. Não muito importante o que as pessoas pensam de si mesmas, porque elas,
freqüentemente, possuem uma auto-estima muito grande, pensam de si mesmas muito
positivamente. Segundo as Escrituras, normalmente as pessoas ―pensam de si mesmas além do
que convém‖,163 mais do que a verdade lhas permite. Elas não possuem luz para ver sua própria
condição diante de Deus. Seu padrão de santidade é muito baixo, mas a Escritura é capaz de
torná-los háveis para diagnosticarem a condição do coração. Por esta razão, temos que prestar
atenção às informações corretas da Escritura a respeito dos seres humanos, como uma revelação
que elas são a respeito da real condição humana.

a) Descrição Bíblica da Corrupção do Pecado


A representação Bíblica do pecado é tremendamente fiel e corresponde exatamente com a
realidade experiencial do homem. Através de toda a Escritura, a idéia da condição do homem
pecaminoso é pintada como nojenta, porque o pecado é algo repugnante para Deus.
Nenhuma representação do pecado é mais comum nas Escrituras do que aquela que é
sacada dos efeitos corrompidos dele. Através de toda a Escritura ele se apresenta de uma forma
revoltante, porca e nojenta. E apresentado como chagas, feridas em estado de putrefação (veja-se
Is 1.4-9). O pecado é visto por Deus como algo repugnante, assim como tudo aquilo que entra em
contato com ele.
Is 64.6 diz que ―todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças não passam
de trapo de imundícia...‖ — É assim que a Palavra de Deus nos descreve: porcos e imundos. A
poluição que há em nós é tão profunda e tão penetrada em nós que é comparada ao carmezin (Is
1.18), ou ao negrume do etíope (Jr 13.23), que não pode ser mudado de cor, uma imundícia que
não pode ser retirada (Jr 2.22). Essa poluição é tão marcante que está gravada com diamante
pontiagudo, na tábua do nosso coração (Jr 17.1). Ninguém pode tirá-la. Essa impureza é
irremovível, e aumenta com a propriedade do fermento e espalha-se como a propriedade de um

163 Rm 12.3.
122

câncer. A única maneira de resolver a situação é através de uma operação sobrenatural. O


pecado está tão profundamente enraizado na alma humana que o homem não pode ter a sua
condição alterada, ou reformada. O pecado é igual ao negrume do etíope que não pode ter a cor
da sua pele mudada (Jr 13.23).

b) Descrição Bíblica do Homem Corrupto


A descrição que a Escritura dá do homem debaixo da queda é estonteante e causa
surpresa inclusive nos cristãos que não estão muito familiarizados com ela.
A Bíblia diz: ―Viu o Senhor que a maldade do homem havia se multiplicado na terra, e que
era continuamente mau todo o desígnio do seu coração‖ (Gn 6.5). Estas palavras são graves e
extremamente solenes, especialmente se comparadas com a congratulação de Deus consigo
mesmo, quando da criação do homem: ―Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom‖
(Gn 1.31). Qual é a causa dessa desordem total no interior do homem? E o pecado de Adão, o
pecado da raça. Os desígnios do coração do homem estão totalmente corruptos, e Deus tem olhos
de ira sobre a maldade humana.

A DEPRAVAÇÃO DO CORAÇÃO HUMANO


O coração é o órgão central da personalidade humana164, de onde emanam todas as
coisas. Se boas ou ruins, elas dependem da natureza do coração. Mas como o coração dos
homens é mau, e desesperadamente corrupto, que o próprio homem não conhece, pois é sempre
enganado por ele (Jr 17.9).
O Velho Testamento tem um ensino bastante abundante sobre a condição do coração
humano, após a Queda.
Há muitíssimos textos na Escritura que descrevem a depravação do homem. Eis apenas
alguns, por ora:

Gn 6.5 — ―Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na


terra, e que era continuamente mau todo o desígnio do seu coração.‖

Observe que o texto diz que ―todo desígnio é mau‖165 Não há pensamentos e decisões de
santidade no homem não redimido, ainda sob os efeitos da queda. Os pensamentos e os atos
maus têm nascedouro no coração que está infectado de pecado. As disposições que o coração
humano possuem são disposições miseráveis, todas fermentadas pelo pecado. As afeições dos
homens são desordenadas porque provém de um coração envenenado pelo pecado. O
desequilíbrio no homem é generalizado. ―Não há parte sã na sua carne‖. E por essa razão que
―eles fazem o mal continuamente‖, todos os dias de sua vida, até que sejam renovados pela obra
graciosa do Espírito Santo.

Gn 8.21 — ―E o Senhor aspirou o suave cheiro, e disse consigo mesmo: não


tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque é mau o desígnio intimo

164 Ler Pv 27.19.


165 Pink diz que ―a palavra hebraica para ―desígnio do coração‖ significa a matriz, a estrutura na
qual todos os nossos pensamentos são lançados. Observe que ―todo desígnio‖ é mau, nenhuma boa idéia
acompanha. Toda a maldade é sem alívio. Tudo está contaminado, não somente os atos exteriores, mas os
primeiros movimentos da alma em direção a um objeto. No coração nós temos a fonte de todas as
impiedades que procedem do homem. A lama corrupta dentro de nós está em constante fermentação. O
coração do homem é de tal forma que, entregue a si mesmo, sempre estará produzindo afeições e emoções
desordenadas. Os homens são ―somente mal‖ sem exceção, totalmente assim; não há nada simplesmente
virtuoso entre os homens. Além disso, eles são ―o mal continuamente‘, sem intervalo, todos os dias de suas
vidas, portanto, todas as suas obras são más e infrutuosas.‖ (p. 121).
123

do homem desde a sua mocidade: nem tornarei a ferir todo o vivente, como fiz.‖

Esta é a descrição do homem antes do dilúvio. Mas a situação não mudou após o dilúvio.
O coração do homem é sempre o mesmo. Mesmo as águas do dilúvio não foram suficientemente
capazes de lavar a malignidade e o engano do coração do homem. Do começo da sua vida até o
fim, o coração do homem é a manifestação de coisas más. Desde o começo da vida, o coração do
homem já é manchado pelo pecado. Se alguém quer uma prova dessa verdade, ele a pode ver na
criação de nossos filhos. Desde o começo de suas vidas eles revelam uma tendência para as
coisas más. Todas as coisas más têm o seu nascedouro na coração de nossos filhos, desde a sua
concepção.

Jó 15.15-16 — Eis que Deus não confia nem nos seus santos; nem os céus são
puros aos seus olhos, quanto menos o homem, que é abominável e corrupto, que
bebe iniquidade como água?‖

Que terrível descrição da condição humana! Diante de Deus a nossa natureza


pecaminosa é detestável. Mesmo os crentes e a natureza criada ainda sofrem os efeitos da queda
(veja Rm 8.19-21). Que se dirá dos homens que ainda não são renovados pelo Espírito Santo?
Eles são corruptos e abomináveis! Por essa razão sorvem o pecado como o fazem com a água.
Apenas o sangue de Jesus pode limpá-los de sua imundície.

Ec 8.11 — ―Visto como não se executa logo a sentença sobre a má obra, o


coração dos filhos dos homens está inteiramente disposto a praticar o mar‖.

Tal é a perversidade do coração corrupto dos homens que eles abusam da paciência e da
tolerância de Deus. Visto que o julgamento de Deus sobre os homens nem sempre é imediato ao
pecado deles, estes se dispõe a cometer toda sorte de maldade e coisas vergonhosas. Assim
aconteceu nos tempos de Noé. Quanto mais Noé pregava, mais zombadores e violentos eles
foram. Assim também acontece nos dias de hoje. Quanto mais Deus retarda a manifestação da
Sua ira, mais os homens se afundam nos seus pecados, tendo o coração cada vez mais disposto
para praticarem o mal. Ao invés de voltarem-se para Deus, eles continuamente se apartavam de
Deus, portando-se cada vez mais corruptamente em seu estilo de vida. A atitude deles não é
diferente hoje. Os homens são sempre os mesmos. Enquanto o coração deles não é mudado pelo
Deus Todo-Poderoso, sempre ele será pervertido e praticará coisas más.

Ec 9.3 — ―Este é o mal que há em tudo quanto se faz debaixo do sol; a todos
sucede o mesmo; também o coração dos homens está cheio de maldade, nele há
desvarios enquanto vivem; depois, rumo aos mortos.‖

Ninguém escapa desta terrível condição. Este é o grande mal debaixo do sol, diz o
Pregador. Por natureza, todos os homens são injustos e cheios de impiedade. O escritor bíblico
aponta que a prática do mal conduz ―ao desvario do coração‖. Nossa sociedade moderna, que não
é essencialmente diferente da sociedade do tempo de Salomão, é um exemplo claro desse
desvario do coração. Há muitos modos modernos de se expressar a pecaminosidade do homem
(de fato, os pecados são sempre os mesmos, apenas as formas é que variam). Pink diz que ―os
homens são tão enfatuados a ponto de procurarem os seus prazeres nas coisas que Deus odeia.
Eles abandonam todas as restrições da razão e da consciência, enquanto suas paixões violentas
os pressionam em direção ao pecado.‖166 Eles não estão satisfeitos com ―os velhos métodos‖ de

166 Pink, p.122.


124

pecar. Em sua loucura de coração, eles procuram modos diferentes para expressarem a sua
pecaminosidade, iguais pessoas dementes sem controle sobre si mesmas. Eles são extravagantes
na procura de novas maneiras de pecar. Seus corações estão cheios de desvarios enquanto
vivem. Isto quer dizer que eles pecam desenfreadamente a vida inteira.
Estas manifestações de pecaminosidade só terminarão quando Deus manifestar o seu
julgamento final, ou quando Ele resolver tirar homens ―do império das trevas para colocá-los
debaixo do reino do filho do Seu amor‖ (Cl 1.13).
Estes são apenas alguns versos a respeito da corrupção do coração, dentro as centenas
que existem nas Santas Escrituras do Antigo Testamento.
O Novo Testamento não tem uma imagem melhor do coração humano do que a imagem
apresentada pelo VT. O quadro da condição humana não é alterado quando examinamos
detidamente os vários autores neo-testamentários. Em um sentido, os textos do NT pintam a
condição do homem em cores mais escuras ainda.

1. Veja o que Pedro diz da depravação do coração humano

2 Pe 2.14 — diz que os homens têm ―os olhos cheios de adultério e insaciáveis
no pecado, engodam almas inconstantes, têm o coração exercitado na avareza,
filhos malditos‖.

Eles não podem parar de pecar por causa do coração pecaminoso deles. Eles são escravos
da corrupção. Esta é a conclusão que o próprio Pedro chega a respeito deles: Pedro diz que eles
engodam as almas ―prometendo-lhes liberdade, quando eles mesmos são escravos da corrupção,
pois aquele que é vencido fica escravo do vencedor.‖ (2 Pe 2.19). Eles são vencidos pela sua
própria natureza pecaminosa. Eles procuram satisfação para os seus desejos, mas nunca se
cansam de pecar. São insaciáveis. Vivem sempre com sede de pecado, e têm prazer na
iniquidade. E por isso que Pedro diz que eles são ―filhos malditos‖ (1 Pe 2.14). Assim são todos os
homens, embora nem todos manifestem sua depravação da mesma forma e com a mesma
intensidade.

2. Veja o que Paulo diz da depravação do coração humano

3. Veja o que Jesus diz da depravação do coração humano


Esta tarefa de mostrar a condição do homem é perfeitamente apoiada pelo Inspirador do
Antigo Testamento. O próprio Jesus Cristo lança luz sobre esta matéria tão importante.
Jesus também ensinou que o coração é o centro moral do homem, e que somente Ele
conhece a profundidade da corrupção do coração. Foi por isso que somente Jesus, o conhecedor
dos corações, pode descrever, de forma maravilhosamente correta, aquilo que provoca a
contaminação do homem. Diz Ele:

Mc 7.20-23 — ―Não compreendeis que tudo o que de fora entra no homem não
o pode contaminar, porque não lhe entra no coração, mas no ventre, e sai para
lugar escuso? E assim considerou Ele puros todos os alimentos. E dizia: O que sai
do homem, isso é o que o contamina. Porque de dentro, do coração dos homens, é
que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os
adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a
soberba, a loucura: Ora, todos esses males vem de dentro e contaminam o
homem‖.

O coração é a matriz de todos os nossos pensamentos, atitudes e afeições. Nada escapa da


contaminação do coração. Se a fonte é suja, sujos serão todos os regatos que saem dela. O pecado
da raça humana, o pecado original, tem causado um efeito devastador nas partes mais interiores
do ser humano, de tal forma que tudo o que sai do ser mais interior, o coração, é totalmente
125

poluído. Somente Deus pode penetrar as profundezas do coração humano e detectar que espécie
de poluição há lã dentro. O homem é incapaz para isso, porque seu próprio coração o engana. Foi
exatamente isto o que Jeremias disse em Jr 17.9. Mas o Senhor não pode ser enganado. Ele é o
único que o sonda, e sabe exatamente todas as coisas que estão ali dentro, mesmo os
pensamentos mais secretos. E que imundice há ali dentro! Que corrupção! Ele sabe que o
coração do homem é profundo o bastante para produzir pensamentos e ações corruptos. Nada
além do mal vem do coração do homem continuamente.
Por isso Jesus disse que Ele veio ―buscar e salvar o que se havia perdido‖ (Lc 19.10). Na
concepção de Jesus ―perdido‖ significa estar ―em trevas‘, no ―estado de morte‖.
Jesus é a pessoa mais certa e ideal para nos ensinar a respeito da natureza pecaminosa,
não somente porque Ele é Deus, onisciente, tendo a capacidade para conhecer o coração do
homem, mas também porque Ele viveu com os homens e pessoalmente experimentou a
impiedade deles. Por esta razão ainda João diz que Jesus

―não se confiava a eles, porque os conhecia a todos. E não precisava que


ninguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo sabia o
que era a natureza humana.‖ (Jo 2.24-25).

Jesus sabia muito bem o que se passava no interior dos homens. Ele sofreu as
conseqüências da loucura dos corações deles em todos os períodos de Sua vida, especialmente
durante o Seu ministério público e em sua paixão final.
Jesus mostrou a desesperada necessidade que todos os humanos têm de regeneração,
que é a renovação da natureza, não simplesmente uma reforma ou uma correção de alguns
defeitos. A terrível enfermidade do homem vem de dentro dele, de seu ser mais interior, o coração.
Ao menos, foi isto o que ele disse em Mc 7.21-23:

―Porque de dentro, do coração dos homens, é que procedem os maus desígnios,


a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o
dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura: ora, todos estes males
vêm de dentro e contaminam o homem.‖

Que catálogo de pecados! Pink faz uma observação interessante sobre isso:

Observe que Cristo usou ―coração‖ no singular, referindo-se ao coração


comum e uniforme de todos os membros da raça. Aqui o Senhor faz saber quão
repugnante é o centro do ser humano, e que crimes terríveis resultam de sua
malignidade. Eles nascem daquela fonte que está envenenada pelo pecado.‖ 167

Não há nenhum modo de contestar esta asserção de Jesus. Ele é a autoridade suprema
nas coisas do coração, nos assuntos que estão relacionados ao mais interior do homem, porque
Ele o conhecedor e o sondador dos corações! O homem não sabe o que se passa no seu mais
interior, mas Jesus sabe tudo. Não podemos contradizê-lo. Seus sofrimentos e morte foram, em
algum sentido, a manifestação da loucura do coração do homem.
For esta razão Deus não confia no homem, mesmo nos seus santos, porque a Escritura
diz:

Jó 15.14-16 — ―Que é o homem para que seja puro? e o que nasce de mulher,
para ser justo? Eis que Deus não confia nem nos seus santos; nem os céus são
puros aos Seus olhos, quanto menos o homem, que é abominável e corrupto, que
bebe a iniquidade como a água?‖

167 Pink, p. 123.


126

Que descrição da natureza humana! Nossa natureza pecaminosa é detestável e odiosa aos
olhos de Deus. Somente o sangue de Jesus Cristo é capaz de limpar tão grande pecaminosidade!

OS VÁRIOS NOMES PARA DEPRAVAÇÃO NA


ESCRITURA
1. Corrupção do Coração
O coração é o centro da personalidade humana de onde todas as coisas procedem. Do
mesmo lugar pode proceder bênção ou maldição. Tudo depende do relacionamento que o ser
humano tem com Deus. Pv 4.23 diz: ―Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração,
porque dele procedem as fontes da vida.‖ Contudo, com referência ao incrédulo, segundo Jesus
Cristo, toda sorte de pecados procede do coração. 168 Tudo depende de Quem está no controle
dele.
Nossos pensamentos pecaminosos procedem do coração. Aquilo que fazemos tem o seu
nascedouro nas imaginações do coração. Todas as faculdades do homem estão corruptas porque
seu coração é corrupto. Jeremias é absolutamente claro quando diz que o coração do homem é
―desesperadamente corrupto‖ (17.9). De uma fonte amarga não pode vir água doce. Assim, se o
coração é desesperadamente corrupto, também corruptas serão todas as correntes que procedem
dele.

2. Cegueira do Coração
A Queda trouxe cegueira ao ser interior do homem. Como a cegueira física é uma das
calamidades naturais mais terríveis para o homem, assim também a cegueira espiritual. Ela não
é simplesmente a ignorância das verdades, mas a incapacidade para conhecer as cousas divinas.
As coisas espirituais estão escondidas do coração do homem. Ele é incapaz de reconhecer o que
está por detrás das palavras que ele lê. Trevas estão sobre o coração do homem o tempo todo (Mt
6.22-23). Porque o seu coração está em trevas, a Escritura diz que o homem natural ―de dia
encontra as trevas; e ao meio-dia anda como de noite, ás apalpadelas‖ (Jó 5.14). Asafe, o
salmista, também diz que os ímpios ―nada sabem, nem entendem, vagueiam em trevas...‖ (Sl
82.5). Eles são cegos, privados da luz de Deus. Por esta razão, ―o caminho dos perversos é como
a escuridão: nem sabem eles onde tropeçam‖ (Pv 4.19). Inversamente, ―a vereda dos justos é
como a luz da aurora que vai brilhando mais e mais até ser dia perfeito‖ (Pv 4.18). A depravação
moral resulta necessariamente numa escuridão moral. Neste sentido, o que Paulo disse a
respeito dos judeus, pode ser dito de todas as pessoas:

2Co 3.13-15 — ―Mas os sentidos deles se embotaram. Pois até ao dia de hoje,
quando fazem a leitura da antiga aliança, o mesmo véu permanece, não lhes sendo
revelado que em Cristo é removido. Mas até hoje, quando é lido Moisés, o ~ está
posto sobre o coração deles‖.

Por esta razão, as tendências do coração do homem são reversas. Após a Queda, ―os
homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más‖ (Jo 3.19). Eles
preferiram o que é oposto à luz e á verdade. Eles escolheram, de acordo com seus corações, seus
próprios caminhos.
É importante estabelecer a diferença entre dois tipos de cegueira no homem:
Primeiro, há a cegueira daqueles que vivem debaixo da pregação do evangelho. 169 Eles
sabem muitas coisas a respeito de Deus como Espírito, como o Criador dos céus e da terra, e

168 Mc 7.19-23; Mt 12.34-35.


169 Dt 29.2-4; 5.29; Is 29.9-10, 18; 42.7, 16, 20; 43.8; 59.9-10; Mt 15.14-20.
127

estão familiarizados com a idéia de que Deus é amor, misericórdia, e assim por diante. Contudo,
eles não estão envolvidos com Deus, nem comprometidos com Ele. Eles não O adoram
espiritualmente nem verdadeiramente, como Ele requer. Seus corações estão longe dEle porque,
mesmo conhecendo muitas coisas sobre religião, eles estão cegos e ainda andam em trevas,
sendo enganados por Satanás. É possível ver muitos milhões deles em nosso mundo ocidental,
onde a ―civilização cristã‖ foi implantada.
Segundo, há a cegueira daqueles não vivem debaixo da pregação do evangelho. 170 Este
tipo de cegueira pode ser visto mais claramente. Essas pessoas são ignorantes das verdades
espirituais, e não possuem idéia qualquer de quem Deus realmente é. Eles têm suas próprias
religiões pagãs com as suas formas mais primitivas de adoração da criatura, ao invés da
adoração ao Criador.
Ambas espécies de cegueira são evidência de que os homens estão debaixo do mesmo
domínio do pecado, mesmo embora alguns manifestem mais iniquidade do que outros, devido a
ausência da pregação do evangelho. A cegueira do coração deles é a mesma em ambos os casos,
mesmo embora uns tenham mais informação a respeito da Sua Palavra do que outros. Ambas as
cegueiras impedem o amor a Jesus Cristo.

3. Dureza de Coração
Este é um outro nome para a cegueira do coração. A natureza do coração do homem
natural é dita ser igual ―pedra‖. Ezequiel 11.19 e 36.26 mostram que esta figura é muito
apropriada para caracterizar todos os homens naturais. A tendência do coração dos homens é
inclinada somente para as coisas deste mundo presente, para coisas más, porque o coração
humano é insensível ás coisas espirituais.171
Zacarias disse que

―eles, porém, não quiseram atender, e rebeldes me deram as costas, e


ensurdeceram os seus ouvidos, para que não ouvissem. Sim, fizeram os seus
corações duros como diamante, para que não ouvissem a lei, nem as palavras que
o Senhor dos Exércitos enviara pelo seu Espírito mediante os profetas que nos
precederam; daí veio a grande ira do Senhor dos Exércitos‖ (7.11-12).

Nada é mais duro que o ―diamante‖. Esta comparação é muito forte, mas absolutamente
adequada, porque ela mostra a obstinação do coração em fazer o mal.172 Esta obstinação é
manifesta pela ausência da sensibilidade espiritual. Os homens não estão nem mesmo temerosos
da ira de Deus, porque eles não têm nem idéia do que ela realmente significa. Eles não possuem
senso de culpa de terem ofendido ao Senhor. Por esta razão, eles vivem na prática dos pecados
sem qualquer temor. Pecar é um prazer para eles.
Esta dureza de coração causa no homem uma falta total de interesse em matéria
espiritual. Deus diz a Ezequiel: ―Mas a casa de Israel não te dará ouvidos, porque não me quer
dar ouvidos a mim; pois toda a casa de Israel é de fronte obstinada e dura de coração‖ (Ez 3.7).
Eles odeiam a Palavra de Deus e são inconstantes e infiéis em seu coração. 173

4. Consciência Corrompida
Muitos defensores do Arminianismo tentam apelar para a voz da consciência para indicar
que alguma coisa boa ainda permanece no homem. E verdade que o homem, em geral, ainda é

170 Ef 2.12; 4.17, 18; 5.8.


171 Jr 3.17; 7.24; 9.14; 11.8; 13.10; 16.12; 18.12; 23.17; Mt 19.8; Mc 3.5; Ef 4.18.
172 Is 46.12; 48.4-8.
173 Sl 78.8. Observe os textos que falam a respeito de ―povo obstinado‖ (Ex 32.9; 33.3,5; 34.9); ―dura

cerviz‖ (Dt 9.6, 13; 31.27); ou ―coração incircunciso‖ (Jr 9.26; Ez 44.7, 9; At 7.51). Todas estas expressões são
equivalentes à idéia de cegueira, porque os resultados são os mesmos em todos os casos. Incircunsisão de
coração significa impureza e sujeira, das quais o coração estás cheio, e tudo isto está relacionado à cegueira
e insensibilidade.
128

capaz de distinguir o que é certo e o que é errado, mas somente nas ―coisas terreais‖, em matérias
do relacionamento entre seres humanos, não com referência às ―coisas celestiais‖. 174
Mesmo a consciência humana não escapa aos terríveis efeitos do pecado. Paulo, falando a
respeito da consciência dos crentes, diz que ela pode ser ―fraca‖ (1 Co 8.12). A respeito daqueles
que desprezam a Palavra, Paulo diz que eles têm a consciência ―cauterizada‖ (1 Tm 4.2), e
consciência ―corrupta‖ (Tt 1.15). O escritor aos Hebreus também fala da ―consciência má‖
(10.22). Todos os homens naturais possuem consciência ―má‖ e ―corrupta‖, mesmo embora eles
manifestem bom julgamento nas ―coisas terreais‖, mas eles são incapazes de tratar devidamente
com as ―coisas celestiais‖. A consciência do homem natural não tem luz para agir de acordo com
os padrões de Deus. Ao invés de guiar os sentidos do homem, a sua consciência o confunde e ela
não é capaz de dar-lhe uma direção correta. A consciência corrompida tem conduzido os seres
humanos a inventar e a propagar as mais ímpias representações de divindades.
A consciência corrupta não é capaz de dar ao pecador uma atitude positiva para com
Deus. Mesmo embora ela tenha alguma resistência à prática de alguns pecados crassos (e a razão
disto é a opinião pública ou outro interesse qualquer), ela não faz oposição em relação aos
terríveis pecados secretos que manifestam a corrupção interior do coração.
A consciência corrupta é parcial. Freqüentemente, ela toma em consideração grandes
pecados, mas faz oposição aos terríveis pecados comuns que perturbam os homens. Ela ignora
grandes pecados e se preocupa somente com os menores. 175
A consciência corrupta não é capaz de conduzir os homens ao arrependimento ou de
convencer o homem do pecado de Adão e de sua necessidade de Jesus Cristo. As acusações de
uma consciência corrupta não são bastante para produzir bons frutos ou um genuíno
arrependimento, mas são capazes de causar aversão e ódio a Deus.
A consciência do homem natural não é confiável porque o ser interior do pecador é
corrupto. O padrão de conduta da consciência corrupta nunca será o da Palavra de Deus.

5. Escravidão do Pecado
Todos os que estão debaixo do Pacto das Obras também estão debaixo da escravidão do
pecado. Jesus disse: "Em verdade, em verdade vos digo, que aquele que comete pecado é escravo
do pecado" (Jo 8.34). Ora, se alguém é escravo do pecado, o pecado é o seu senhor. Mas a
Escritura diz que esta escravidão é voluntária. O homem não é forçado de fora a pecar. Ele peca
porque ele quer. Pelo menos, é isso o que Paulo ensina:

―Não sabeis que daquele a quem vos ofereceis como servos para obediência,
desse mesmo a quem obedeceis sois servos, seja do pecado para a morte, ou da
obediência para a justiça?‖ (Rm 6.16)

Ninguém força o homem a pecar. O homem não peca contra a sua vontade. Apenas o
homem obedece às inclinações de sua própria natureza. O domínio do pecado vem de dentro do
próprio homem. Este domínio é natural e congênito, e controla o ser total do homem, porque ele
pervade todas as partes do ser humano, desde a queda.
O pecado é chamado um ―reino‖ na Escritura, 176 e reina sobre todos os homens, porque a
posteridade de Adão está sob seu domínio. O pecado está no centro da personalidade humana e
polue e envenena tudo que procede do coração. Este controle poderoso sobre todas as faculdades
da alma humana é vencido somente quando a obra regeneradora do Espírito Santo pára os
efeitos da morte no homem. Antes dessa maravilhosa obra, o homem permanece escravo do
pecado. Rm 6.1-23 é a descrição da escravidão do pecado do homem.

174 Estas expressões ―coisas terreais‖ e ―coisas celestiais‖ são típicas de Calvino em suas Institutas.
175 Por exemplo: Saul, em 1 Sm 14.33, 34 condenou o povo porque ele havia transgredido um
preceito da Lei, mas ele não teve nenhum problema em matar 85 profetas de Senhor. Aqueles que procuram
matar Jesus Cristo justificaram-se a si mesmos diante da Lei (Jo 19.7). sobre eles está a sentença de Deus
(Is 5.20).
176 Rm 5.21.
129

6. Escravidão da Corrupção
Tudo na criação, não somente as criaturas racionais, está debaixo da escravidão da
corrupção. Rm 8.20-21 diz que

―a criação está sujeita á vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele
que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da
corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus.‖

Pedro afirma categoricamente que os homens ―são escravos da corrupção, pois aquele que
é vencido fica escravo do vencedor‖ (2 Pe 2.19). Ninguém está livre desta condição maldita, nem
mesmo os elementos da natureza. A maldição do pecado é a escravidão da corrupção. Esta
verdade a respeito do homem o humilha. Por esta razão, algumas teologias tentam minimizar os
efeitos da depravação do homem.

7. Escravidão de Satanás
Esta verdade bíblica é um das coisas mais terríveis que o Senhor Jesus disse aos homens.
Ele lhes disse que eles eram filhos do diabo e, consequentemente, escravos dele. Esta conclusão
é fácil de ser tirada de Jo 8.44: ―Vos sois filhos do diabo que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhes
os desejos.‖177 Todos os que não eram crentes em Jesus eram obedientes aos ditames do diabo.
Eles não estavam conscientes de sua condição, mas Jesus fê-los saber quem eles eram.
A Escritura diz que todos os homens naturais são filhos do diabo. 178 Aqueles que não são
filhos de Deus são, automaticamente, filhos do diabo, porque só há dois tipos de filhos neste
mundo. Não há alternativa. Todo mundo é filho de alguém. Espiritualmente os homens sempre
são filhos de alguém, Deus ou o diabo. E os filhos devem obedecer a seu pai. Por esta razão, Jesus
disse que os homens obedecem os desejos de seu pai, que é o diabo.
Mas a Escritura vai mais longe. Ela diz que o homem natural está
sob th=j e)cousi/aj tou= Satana= (potestade de Satanás)179 e, por esta razão, eles
são ―cativos de Satanás (diabo/lou) para fazer a sua vontade‖.180
O coração do homem caído, não-regenerado, é o trono de Satanás. Este tem um reino (Mt
12.26), e todos os homens naturais são servos ou escravos dele. Paulo é muito claro quando
dirige-se aos ex-escravos de Satanás, dizendo:

―nos quais (delitos e pecados) andastes outrora, segundo o curso deste


mundo, segundo o príncipe da potestade do ar; do espírito que agora atua nos filhos
da desobediência, entre os quais todos nós andamos outrora, segundo as
inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos...‖ (Ef
2.2-3)

O reino de Satanás é um reino de usurpação, porque ele não tem direito algum sobre as
vidas dos homens, mas é um reino, e todos os homens naturais estão sob o seu domínio. Por esta
razão, João disse que, em contraste com os crentes, ―o mundo inteiro jaz no maligno‖ (1 Jo 5.19).
Desde a queda do mundo houve duas espécies de pessoas: os que pertencem a Deus, e os
outros que estão sob o domínio de Satanás. Deus disse à Serpente: ―Eu porei inimizade entre ti
(Satanás) e a mulher, e entre a tua descendência e o seu descendente (Cristo). Este te ferirá a

177 Este verso pode ser aplicado a todos os homens naturais porque todos eles encaixam nas

condições daqueles judeus que não criam em Jesus.


178 1 Jo 1.10. Este verso mostra que todos os homens que não praticaram a justiça são filhos do

diabo.
179 At 26.18.
180 2 Tm 2.26.
130

cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar‖ (Gn 3.15). Estas duas posteridades foram mencionadas por
Jesus Cristo nas parábolas do reino, como sendo ―os filhos do reino‖ e os ―filhos do maligno‖ (Mt
13.38).
Satanás, o deus deste século, pega os homens que vivem escravos do pecado, e tira
vantagem da sua natureza pecaminosa, fazendo-os seus escravos. Paulo diz que o diabo ―cegou
os entendimentos dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de
Cristo, o qual é a imagem de Deus‖ (2 Co 4.4).
É espantoso que os Arminianos digam que estes homens, tendo ―consciência corrupta‖,
―cegueira de coração‖, sendo ―escravos do pecado‖, ―escravos da corrupção‖ e ―escravos do
diabo‖, ainda tenham liberdade de vontade para ver e para escolher as coisas espiritualmente
boas!

CARACTERÍSTICAS DA DEPRAVAÇÃO
Há, todavia, algumas outras verdades a respeito da depravação total do homem que
precisam ser estudadas à luz da Escritura:

1. É comum a todos desde o Ventre Materno


É um erro de origem Pelagiana o fato de ser pensar que os pequeninos, os infantes, sejam
inocentes ou que sejam uma espécie de tabula rasa quando nascem, destituídos de qualquer
mancha pecaminosa em suas almas. Este ponto-de-vista tem sido, embora de Pelágio, tem sido
sustentado por cristãos de todas as tradições, sem pensarem nas conseqüências sérias trazidas
por essa teologia. Não é o meio ou a educação que tornam a criança pecaminosa, mas a
pecaminosidade dela apenas se manifesta quando ela começa a dar os primeiros sinais de
comunicação. Nenhuma delas escapa a uma maldade interior, mesmo que se manifeste das mais
variadas maneiras. Todas as crianças já nascem no mundo culpadas e, portanto, com as terríveis
marcas da corrupção em todo o seu ser.
Todos os filhos de Adão estão igualmente afetados pela sentença de Deus que é a
corrupção. Esta já é um castigo divino por causa do fato de todos serem culpados em Adão.
Toda criança já é nascida culpada neste mundo e, como conseqüência, corrupta. Todas
as crianças são nascidas debaixo de condenação e com suas naturezas depravadas, e com uma
completa incapacidade de alma para mudarem a situação com a qual nasceram.
Há alguns textos da Escritura que nos ajudam a entender esta matéria tão difícil e tão
dolorida, especialmente quando pensamos que os nossos pequeninos têm estas coisas, mas não
podemos fugir da verdade de Deus.

Sl 58.3 — ―Desviam-se os ímpios desde a sua concepção; nascem e já se


desencaminham, proferindo mentiras.‖

Desde o momento em que são concebidas, as crianças são moral e espiritualmente


separadas de Deus — pecadoras sujeitas à condenação. Elas já nascem alienadas de Deus, de
Seus princípios, de Seus poderes e de Suas bênçãos. A natureza delas é inclinada à impiedade
somente, e se Deus deixá-las entregues a si mesmas, elas nunca sairão desse estado. Logo que
elas começam a entender as coisas, a inclinação delas é para a desobediência às leis que lhe são
colocadas em casa. Perceba que ninguém precisa ensinar aos filhos a desobediência. Não há
necessidade de ser ter um professor para o mal. Isso é natural neles. E só deixá-los entregues a si
mesmos, porque a malignidade está atada ao coração da criança, evidenciando a sua corrupção.
Tem que haver a disciplina para que os nossos filhos venham a aprender a obedecer. Do
contrário, eles sempre dirão ―não‖ às leis que lhes impomos.
É bom lembrar que os nossos filhos já são desviados ou separados de Deus desde que
eles são concebidos no ventre da mãe deles. Essa separação de Deus não vem com o tempo, com
o contato com os adultos ou com a sociedade corrompida. Não! E uma séria enfermidade
congênita a corrupção do coração.
131

Sl 51.5 — ―Eu nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu minha mãe.‖

O verso anterior trata da concepção de uma criança. Neste fala da parte seguinte do
processo: o nascimento dela. Mas a idéia fundamental do texto é a mesma. Tanto a concepção
como o nascimento de Davi foram em pecado. Davi não era o único que possuía esta triste
situação.
Esta é uma confissão que bem caberia na boca de todos os humanos. A nossa corrupção
vem do começo da nossa existência, pois a recebemos, de alguma forma, de nossos pais. Pelo fato
de sermos filhos de Adão, todos nascemos depravados. Davi era filho de um casamento digno e
honrado, todavia, recebeu de seus pais a herança maldita da corrupção, com todas as suas más
disposições. Observe, como já vimos, que a culpa é imputada, mas a corrupção não. Ela é
recebida pelo fato de sermos culpados em Adão, mas a recebemos via nossos pais, por geração
natural.
Para entendermos esta verdade, vejamos a antítese dela: Por quê foi necessário para
Cristo ser encarnado sobrenaturalmente pelo milagre do nascimento virginal? Essa era a única
maneira de haver dentro de Maria um ―ente santo‖ (Lc 1.35), pois se fosse por geração ordinária,
Cristo herdaria a natureza pecaminosa. O que Deus fez? Deus não imputou a culpa de Adão a
Cristo, fé-lo ser concebido sobrenaturalmente, e o livrou da corrupção. Ele não nasceu na
iniquidade porque não teve a imputação e a geração ordinária, não foi contado como
descendência de Adão. Ficou livre da culpa e, consequentemente, da corrupção.
Mas não é assim com os filhos de Adão. Estes já são concebidos e nascidos em corrupção,
poluição moral e espiritual, coisas essas que se externalizam à medida que eles
entram em comunicação com o mundo externo, onde vivem.
Isaías 48.8 diz que somos chamados transgressores ―desde o ventre materno‖. Por essa
razão é que, quando nascemos, ―já nos desencaminhamos proferindo mentiras‖ (Sl 58.3). Você já
viu, porventura, um pai decente ensinando mentiras aos seus filhos? Nunca! Todavia, os filhos
desse pai mentem, sem nunca terem aprendido a mentir. Essa é uma terrível capacidade
herdada, com a qual vimos ao mundo.

Pv 22.15 — ―A estultícia está ligada ao coração da criança, mas a vara da


disciplina a afastará dela.‖

Estultícia é igual tolice. Essa tolice não é meramente uma ignorância intelectual, mas um
princípio positivo para o mal, porque no Livro de Provérbios, o "tolo" não é um idiota, mas um
pecador. A corrupção está profundamente enraizada no coração da criança. O texto diz que a
estultícia está ligada ao coração da criança. Isso significa que o pecado está amarrado, preso,
atado, anexado ao coração. Não existe uma criança sequer livre dessa estultícia.
É por essa razão que ninguém precisa ensiná-la a pecar. Basta que os pais tirem o freio
dela e, então, a corrupção se manifestará em maior ou menor grau. Nessa hora é que um pai vê a
dor que um filho lhe traz e a mãe vem a ser envergonhada por causa daquilo que ele faz (Pv
29.15).
Nosso coração, que é a sede de nosso ser moral, é corrompido desde o ventre materno, e
as nossa iniqüidades estão ligadas a ele. Portanto, somos transgressores desde o ventre materno
por disposição interna antes de sermos por atos externos. Os atos são apenas manifestações de
disposições interiores.

Ef 2.1-3 — ―Ele vos deu vida, estando vós mortos em vossos delitos e pecados,
nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da
potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência; entre os
quais também todos nós andamos outrora, segundo as inclinações da nossa
carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza,
filhos da ira, como também os demais‖.
132

Talvez esta expressão seja mais forte ainda do que Sl 58.3, porque ensina que não
somente somos nascidos no mundo com uma constituição corrupta, mas que somos vistos como
criminosos à vista de Deus. A depravação de nossa natureza não é um mero infortúnio: se assim
fosse, despertaria misericórdia e não ira. Os ―filhos da ira‖ são aqueles que merecem a ira,
herdeiros da ira. Eles não são somente criaturas corruptas e manchadas, mas objetos da
indignação judicial de Deus. Por que? Porque o pecado de Adão foi imputado a elas, e elas são
culpadas e merecedoras da manifestação judicial da ira do Deus justo.
Igualmente forte é a expressão ―por natureza‖. Muitos têm negado a corrupção inata,
insistindo no fato dela ser adquirida pelo contato com o mundo mau, e que seus hábitos também
são adquiridos. Alguns crêem que os seres humanos são depravados por um processo de
desenvolvimento, não por causa de uma natureza pecaminosa inata. Mas a Escritura é
absolutamente inamovível na sua idéia de que a gênesis da depravação é a própria natureza com
a qual os homens são gerados e nascidos. A Escritura não negocia esta verdade. Desde o ventre
materno os homens já são objetos da ira divina, por causa da natureza congênita deles. E essa
natureza corrompida deles é um mal penal, em virtude do fato de sermos culpados em Adão.
Justamente o fato de os infantes morrerem na sua infância, mostra que a sujeição á
morte tem algo a ver com a natureza inata deles. A morte, queiramos admitir ou não, é o
resultado da corrupção que afeta todo o nosso ser, desde que nascemos. Se em Adão as crianças
não houvessem pecado, elas não estariam sujeitas à morte. Se a culpa de Adão não houvesse sido
comunicada a elas, não haveria mortalidade infantil181.
Portanto, desde o ventre materno, os homens têm sido afetados pela corrupção maldita
que os acompanha até o fim de suas vidas, mesmo naqueles que Jesus Cristo salva, através do
lavar regenerador e renovador do Espírito Santo. Quando o Espírito nos regenera, ele não elimina
de um vez para sempre os resultados da corrupção. Ele planta, sim, vida na alma, onde havia
somente morte. Então, essa vida, dom divino, vai se impondo, à medida que crescemos no
conhecimento de Cristo Jesus. E experiência de todos nós, mesmo os crentes mais maduros, o
convívio com o pecado que em nós habita. Triste, mas uma verdade bastante palpável, até que o
Senhor nos leve para o Seu reino e glória.

2. Afeta a Totalidade do Ser Humano


Esta é uma outra terrível verdade sobre a corrupção do ser humano. A chamada
―depravação total‖ tem sido muito mal compreendida, mesmo nos círculos Calvinistas. E
necessário, portanto, que algumas coisas sejam ditas sobre a expressão ―depravação total‖, antes
que argumentemos sobre ela na Escritura.

181 O fato de uma criança morrer na infância, não significa que ela esteja irremediavelmente

perdida, eternamente. É evidente que todas as crianças que são nascidas neste mundo sejam
espiritualmente mortas, alienadas da vida de Deus, mas se elas estão para herdar a vida eterna, é
necessário que elas sejam renovadas no coração pelo Santo Espírito, que opera independentemente da fé
delas, para que sejam salvas, porque ninguém verá o reino de Deus sem ser nascido de novo. A obra do
Espírito Santo no coração de uma criança é absolutamente necessária para que ela venha a herdar e
desfrutar da vida eterna. Obviamente, o Espírito Santo aplica nela a redenção que há em Cristo Jesus, que
por ela morreu. Portanto, se os infantes estão para ser salvos, é por causa da Eleição do Pai, da Redenção do
Filho e da Regeneração do Espírito. Sem isso, jamais alguém será salvo!
Há os que insistem dogmaticamente no fato de que Jesus Cristo fez expiação pelo pecado original,
de tal modo que a culpa de nossos primeiros pais não mais está sobre os seus descendentes. Mas este
pensamento é contra a evidência de todos os fatos. Apenas um argumento contrário a ele: obviamente, esse
ponto de vista Arminiano não pode prevalecer porque, se assim fosse, isto é, se a culpa do pecado original
tivesse sido removida por Jesus Cristo, os efeitos dela não mais poderiam continuar, já que a corrupção da
natureza humana é conseqüência da culpa humana. Se Cristo removeu a culpa dos homens do pecado
original, então a raça toda deveria voltar ao estado em que originalmente foi criada.
133

A DOUTRINA DA DEPRAVAÇÃO TOTAL


Sobre o termo depravação
Por depravação não se quer dizer que o ser humano não possa fazer nada que não seja
reconhecidamente entre os homens considerado como bom; não quer dizer que o pecador não
tenha qualquer conhecimento inato daquilo que é bom e do que não é bom; não quer dizer
que ele não saiba distinguir o que convém e o que não convém; não quer
dizer que o homem não seja capaz de admirar as virtudes e ações virtuosas
em outras pessoas; ou que ele não tenha afeições desinteressadas com
relação a outras pessoas; nem quer dizer que o homem não-regenerado,
em virtude de sua pecaminosidade inerente, tenha que suportar ou dar
apoio a toda espécie de pecado, ou que não tenha nenhum código ético.
A depravação está intimamente ligada à tendência para o mal, uma pré-indisposição
contra as coisas das quais Deus se agrada. Existe uma indisposição natural para com Deus e
para com as coisas deles.

Sobre o adjetivo "total"


O adjetivo "total" tem a ver com a extensão da corrupção. Ele significa que o ser humano
por completo foi afetado pela queda. Nada do seu ser escapou dos efeitos do pecado. O pecado
atingiu todas as faculdades da personalidade humana, inclusive o seu corpo. O pecado é um
câncer com metástase, isto é, uma doença mortal que infectou todo o ser. Para usar outra
linguagem médica, podemos dizer que o pecado é uma espécie de septicemia, uma infecção
generalizada no sangue que, por sua vez, conduz o sangue a todas as partes do organismo, e
infecta tudo. O homem esta no seu ser total infectado pelo veneno do pecado. O profeta Isaías
mostra esta realidade de forma muito clara:

"Por que haveis de ainda ser feridos, visto que continuais em rebeldia? Toda a
cabeça está doente e todo o coração enfermo. Desde a planta do pé até à cabeça
não há nele cousa sã, senão feridas, contusões e chagas inflamadas, umas e
outras não espremidas, nem atadas, nem amolecidas com óleo." (1.5-6)

Paulo mostra a imundície generalizada do homem de outra maneira, quando insta-os a


serem purificados dela, dizendo: "Tendo, pois, amados tais promessas, purifiquemo-nos de toda
a impureza, tanto da carne, como do espírito, aperfeiçoando a nossa santidade no temor de Deus"
(2 Co 7.1). Corpo (carne) e alma (ou espírito) indicam o homem total, que está corrupto. Esta
poluição moral estende-se aos pensamentos e imaginações, assim como às palavras e às ações.
Quando dizemos que essa depravação total afeta a totalidade do ser humano, estamos
dizendo que cada elemento constituinte da natureza humana, isto é, o corpo e as faculdades da
alma, sofrem a poluição do pecado; estamos dizendo que não há nenhuma
parte sã no homem, que não há nenhum bem espiritual nele.
Esta depravação afeta:
1. O CORPO
A queda do homem trouxe conseqüências sérias para o nosso organismo físico. A vida
física do homem é cheia de fraquezas e enfermidades. Estas são a grande angústia do ser
humano, desde a queda. Estas são a maior luta da humanidade e seu maior fardo, porque
resultam em tremendos desconfortos e, freqüentemente, em dores agonizantes. Essas coisas não
aconteciam no Éden, nem teriam acontecido se não fosse a queda. Quando da redenção final,
édito que o homem não mais terá incômodos, dores não haverá, nem lágrimas, morte, etc.182 As

182 Ap 21.4 diz: E Deus ―lhes enxugará dos olhos toda a lágrima, e a morte já não existirá, já não

haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras cousas passaram‖; Ap 22.2 diz: ―No meio da sua
134

doenças serão curadas no Paraíso restaurado. Tudo será como foi antes, apenas com uma grande
diferença: não mais estaremos expostos ao mal.
Mas não podemos negar o fato de que todas as dores, tristezas e outras formas de miséria
vieram ao mundo como resultados da ira divina sobre o homem por causa do pecado.
Antes do pecado, o homem trabalhava, mas sem os incômodos do suor, da canseira e do
enfado. O trabalho significava alegria pura e satisfação interior manifesta. Quando veio a queda,
a maldição de Deus foi pronunciada, e Deus tornou tudo contra o homem. A própria terra foi
contra o homem, a natureza teve algumas de suas coisas invertidas, para a tristeza e dificuldade
do homem. Veja o que a Escritura diz:

Gn 3.16-19 - "E à mulher disse: Multiplicarei sobremodo os sofrimentos da


tua gravidez; em meio de dores darás à luz filhos; o teu desejo será para o teu
marido, e ele te governará. E a Adão disse: Visto que atendeste à voz de tua
mulher, e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses: maldita é a terra
por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida. Ela
produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do campo. No suor do
teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque
tu és pó, e ao pó tornarás."

Cardos e abrolhos (incidentalmente foram usados para trazer sofrimento ao nosso


Redentor, que são explicados somente por causa do pecado) crescem para impedir o esforço dos
homens. O trabalho, então, torna-se um peso, um fardo para o corpo que facilmente se cansa e se
exaure.
A dor do mundo é explicada somente à luz da vinda do pecado ao mundo dos homens. A
decomposição e o desgaste do corpo humano também só são explicados à luz do pecado. Não é
assim que os cientistas das humanidades entendem, mas é assim que a Palavra de Deus nos
ensina, e não há como contestar. Fica mais evidente a depravação do corpo humano quando
estudamos que Jesus Cristo também morreu para a redenção da natureza física do homem. A
doutrinação da ressurreição é uma prova cabal de que a natureza corrompida do corpo será
redimida.
Jesus Cristo morreu para levar sobre si as nossas enfermidades (Is 53.), para que um dia
tudo isso possa ser erradicado de nós, e Deus tire essa maldição de sobre todos nós, os que Ele
remiu. Mas antes de remir-nos, Jesus Cristo teve que encarnar-se e, quando o fez, assumiu a
nossa natureza humana caída, sujeitas a todas as amarguras, dores e tristezas pelas quais
passamos, resultados de nossa poluição. Somente assim, pode livrar-nos delas, sendo um igual a
nós.
2. ALMA
Todas as faculdades da alma (ou espírito) humana foram afetadas pela queda. Nenhuma
delas ficou isenta da depravação:

a) Mente
A mente é a faculdade da alma pela qual todas as coisas são percebidas, conhecidas e
apreendidas. E a mente que raciocina, pesa, verifica, discrimina e influencia a vontade para as
determinações, quando os conceitos lhe são apresentados. Ela é, em algum sentido, o guia da
alma, aceitando ou rejeitando as idéias apresentadas.

2 Co 3.13-14 - "E não somos como Moisés que punha véu sobre a face, para
que os filhos de Israel não atentassem na terminação do que se desvanecia. Mas os
sentidos deles se embotaram. Pois até ao dia de hoje, quando fazem a leitura da
antiga aliança, o mesmo véu permanece, não lhes sendo revelado, que em Cristo é
removido."

praça, de uma e outra margem do rio, está a árvore da vida, que produz doze frutos, dando o seu fruto de
mês em mês, e as folhas da árvore serão para a cura dos povos.‖
135

Há um sentido em que a mente está cega, pois os sentidos do homem foram embotados.
Os homens sem Cristo podem ler a Bíblia e esta não lhes faz sentido, eles têm algo dentro deles
que não lhes deixa ver o sentido real das Escrituras. Paulo diz que há como que uma espécie de
véu, um impedimento de verem claramente as coisas espirituais. Isto não é verdade
simplesmente a respeito dos judeus incrédulos, mas de todos os homens que lêem a Escritura.
Eles têm uma cegueira interior que lhes impede a faculdade de ver coisas de Deus.
Eles somente virão a enxergar a verdade de Deus sobre Cristo, quando a cegueira lhes for
removida. Enquanto não houver uma obra sobrenatural, eles continuarão "embotados nas suas
mentes".

Ef 4.17-18 — ―Isto, portanto, digo, e no Senhor testifico, que não mais andeis
como também andam os gentios, na vaidade de seus próprios pensamentos,
obscurecidos de entendimento, alheios à vida de Deus, por causa da ignorância em
que vivem, pela dureza de seus corações...‖

O entendimento dos homens está obscurecido. A queda fechou as janelas da alma


humana. E o pior é que os homens não sabem disso, porque são "vaidosos nos pensamentos". De
fato, eles negam a sua própria cegueira, o obscurecimento de sua mente. Os homens nunca se
enxergarão cegos a menos que eles se vejam no espelho da Santa Escritura, que lhes mostra
como eles são. Mas a tristeza maior é que eles não tem olhos para ver o que a Escritura diz deles.
Eles não enxergam. A cegueira é interna. Há luz fora deles, mas eles não podem ver. A Palavra de
Deus é necessária para que eles se vejam, mas ela é insuficiente porque eles estão "obscurecidos
de entendimento". Então é necessário que a graça divina atinja o interior deles, tirando-lhes a
obscuridade de mente, para que possam ver. A luz da graça divina tem que brilhar dentro deles,
para que possam descobrir a sua própria corrupção.

Tt 1.15 - "Todas as cousas são puras para os puros; todavia, para os impuros
e descrentes, nada é puro. Porque, tanto a mente como a consciência deles estão
corrompidas."

Paulo, neste verso, quis mostrar a real situação dos impuros e descrentes, dos sem Deus
no mundo, embora professassem conhecer a Deus. E possível professar algum conhecimento de
Deus, sem contudo, ter qualquer fé genuína em Deus, como veremos na análise do próximo texto
(Rm 1.21-22). As pessoas a quem Paulo se refere eram pessoas sem qualquer possibilidade de ver
coisas puras, porque tudo na mente deles era sujo. Eles viam todos os atos com o filtro da sujeira
do seu interior. Por isso tudo era imundo aos olhos deles. Eles não tinham capacidade de ver
coisas santas e puras por causa da obscuridade da mente deles, por causa da sua corrupção.

Rm 1.22-23 - "Porquanto, tendo o conhecimento de Deus, não o glorificaram


como Deus, nem lhe deram graças, antes se tornaram nulos em seus próprios
raciocínios, obscurecendo-lhes o coração insensato."

É possível que, por causa da queda, e porque tentaram suprimir a verdade de Deus, como
está relatado no v. 18, eles todos, tornaram-se nulos em seus raciocínios e obscurecidos em seus
corações, todas as suas atividades espirituais. A supressão, ou a inversão da verdade de Deus,
torna os homens nulificados em suas funções racionais, em sua relação vertical. Parece que este
problema tem afetado a mente de todos os homens. Voluntariamente eles têm rejeitado e
substituído a verdade de Deus pela injustiça, e têm negligenciado a revelação da natureza,
ficando, assim, prejudicados em seu raciocínio espiritual.
Há outros textos indicando a afetação do pecado na mente humana, causando sérios
prejuízos ao modo de pensar do homem a respeito de si próprio e de Deus.183

183 Rm 3.11, 17; Pv 4.12; 1 Co 1.21; 1 Tm 1.7


136

Pink diz que

"há na natureza duas coisas que impedem que os homens vejam: a noite (a
menos que haja luz artificial) e a perda da visão. Uma é externa e a outra interna.
Assim é na área espiritual: há uma escuridão objetiva e outra subjetiva, ambas
sobre o homem e no homem. A primeira consiste na perda dos meios pelos quais o
homem pode ser iluminado no conhecimento de Deus e das coisas celestiais. O
que o sol é para as cousas naturais sobre a terra, a Palavra é para as coisas
espirituais".184

A escuridão espiritual está sobre todos aqueles a quem o Evangelho não foi pregado ou
naqueles que o rejeitam. E missão e obra do Espírito Santo tirar esta cegueira objetiva. Isto Ele o
faz através da pregação do Evangelho a uma nação ou cidade. Ele capacita homens a pregarem a
Palavra.
Mas o outro problema sério é a cegueira subjetiva nas mentes dos irregenerados. O
problema dos homens não é apenas de ignorância do evangelho, mas é a terrível doença que os
impede de ver a oferta do Evangelho que lhes é feita. Essas pessoas são "privadas da verdade" (1
Tm 6.5). Elas não são simplesmente rebeldes, mas doentes e corruptas. Têm aversão à verdade
de Deus (2 Tm 4.3,4). Elas são as detentoras da verdade!; segundo o seu próprio entendimento,
mas a Escritura diz que a sabedoria deles é "terrena, animal e demoníaca" (Tg 3.15).
A escuridão do entendimento é a causa da rebelião nas afeições e na vontade. Os homens
procuram desordenadamente os prazeres da carne porque suas mentes não conhecem a Deus.
Suas mentes são estranhas a Deus e não gostam de ter comunhão com Ele. Amizade e
companheirismo são baseados no conhecimento. Para se ter comunhão com Deus, é necessário
ter-se conhecimento dele. Deus, quando cumpre o pacto da graça, logo dá-se a conhecer aos
homens. Jr 31.33 diz: "Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles
dias, diz o Senhor: Na mente lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei;
eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo." - Se Deus não fizer estas coisas nas mentes dos
homens, eles serão sempre "vaidosos nos seus próprios pensamentos, obscurecidos de
entendimento, alheios à vida de Deus por causa da ignorância em que vivem, pela dureza dos seus
corações"(Ef 4.17-18). A escuridão da mente não é somente a raiz de todos os pecados, mas a
causa da maioria das ações corruptas das vidas dos homens. Por isso Paulo contrasta a
"sabedoria" com a "graça divina" em nós (2 Co 1.12). Pela mesma razão é dito que os homens "são
filhos néscios, e não entendidos; são sábios para o mal, e não sabem fazer o bem" (Jr 4.22).
Essa cegueira de mente é a causa da maior parte das impiedades no mundo. Isaías disse
que a "sabedoria e a ciência, isso te fez desviar..." (47.19). A razão corrupta e o julgamento falso
são a motivação de nosso pecar. O orgulho tem o seu lugar principal na mente (ver Cl 2.18).
Esta cegueira de mente é vigorosa, influente e dinâmica, porque a Escritura diz que
somos libertos do ―império das trevas‖ (Cl 1.13). O homem vive em total escuridão, uma escuridão
de escravidão, de onde o homem não pode sair de forma alguma, a menos que poder maior o tire
de lá. "Império" (e)cousi/aj) significa "autoridade", "dominação". A mente fica debaixo da servidão
das trevas, cheia de inimizade contra Deus, lutando contra tudo o que vem da verdade de Deus,
andando sempre em direção contrária à vontade de Deus, fazendo sempre o que é próprio do
"império das trevas". Esta é a inclinação natural da mente do homem natural, sem Deus neste
mundo. A mente dele só tem pendor para as coisas do mundo (Rm 8.5), e é de tal forma
escravizada que preconcebe o homem contra toda e qualquer verdade espiritual que vem da parte
de Deus (Ler 2 Co 10.4-5).
Os pecados da mente continuam a vida inteira, mesmo depois que o corpo já está quase
amortecido. Os raciocínios impuros são vigorosos tanto na mocidade quanto na velhice. Tanto a
primavera como o inverno da vida não escapam dos efeitos nefastos do pecado na mente
humana.
As pessoas perdem a capacidade de discernir as coisas espirituais, mesmo sendo
intelectualmente muito bem dotadas. A capacidade intelectual não conta no homem

184 A. W. Pink, Gleanings…p. 138.


137

irregenerado. As suas capacidades estão relacionadas somente com as coisas do mundo natural,
não com o espiritual. Uma pessoa cega não percebe se os raios solares estão incidindo sobre ela.
Assim o homem natural, ele não consegue ver o que está perto dele. Jesus estava presente diante
da cidade de Jerusalém. Havia feito ali tantas coisas preciosas, mas Jerusalém não tinha olhos
para ver a sua própria situação, nem o remédio para o seu problema: "Ah! se conheceras por ti
mesma ainda hoje o que é devido à paz! Mas isto está agora oculto aos teus olhos" (Lc 19.42). As
pessoas cegas podem estar perto da luz que não vêem nada. Jesus pediu água à mulher
samaritana. Após o espanto dela pelo fato de um Homem, e ainda judeu, ter-lhe feito aquele
pedido, Jesus retrucou: "Se conheceras o dom de Deus e Quem é o que te pede: dá-me de beber,
tu lhe pedirias, e ele te daria água viva" (Jo 4.10). Ela estava junto da Luz, e não conseguia vê-la.
Esta cegueira é interna, e incapacita o homem a perceber as coisas espirituais.
Essa incapacidade da mente no homem natural para detectar a verdade espiritual é tão
grande que o homem não consegue descobrir as coisas de Deus, mesmo quando elas estão claras
aos nossos olhos. A tristeza do fato é que os pregadores anunciam que a mensagem é verdade de
Deus, mas os homens naturais não somente não tem olhos para ver, mas eles desprezam tudo
quanto é dito em nome de Deus. Paulo repete, em um dos seus discursos em Atos, uma antiga
verdade do VT: "Vede, ó desprezadores, maravilhai-vos e desvanecei, porque eu realizo, em
vossos dias, obra tal que não crereis se alguém vo-la contar" (At 13.41). Os versos anteriores a
este mostram que Paulo havia claramente anunciado a remissão em Cristo Jesus e justificação
pela fé, anunciando, inclusive, o juízo de Deus sobre os incrédulos, mas eles não tinham ouvidos
para ouvir, nem olhos para ver, nem coração para crer naquelas coisas. Eles estavam
completamente cegados às verdades de Deus. A mente deles estava inteiramente obscurecida.
Paulo mostra, em uma de suas cartas a razão da situação dos homens naturais, e o que acontece
depois que a Graça opera naqueles que vem a crer:

2 Co 4.3-6 -"Mas se o nosso evangelho ainda está encoberto, é para os que se


perdem que está encoberto, nos quais o deus deste século cegou os entendimentos
dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de
Cristo, o qual é a imagem de Deus. Porque não nos pregamos a nós mesmos, mas
a Cristo Jesus nosso Senhor, e a nós mesmos como vossos servos por amor de
Jesus. Porque Deus que disse: De trevas resplandecerá luz ele mesmo
resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de
Deus na face de Cristo"

O entendimento dos homens precisa ser aberto para que a luz entre. Essa é uma obra
divina no pecador. Mesmo para o entendimento da Escritura, é necessária uma obra graciosa do
Pai das luzes (Lc 24.45). Jamais os homens terão qualquer entendimento da verdade, a menos
que Alguém lhos abra. Porque se Deus não fizer essa obra, eles continuarão como aquelas
mulheres "carregadas de pecados, conduzidas de várias paixões, que aprendem sempre, mas
jamais podem chegar ao conhecimento da verdade" (2 Tm 3.7). Esta é a situação de todo ser
humano, que é corrompido nas suas faculdades intelectivas.
Portanto, podemos dizer que, por causa do pecado de Adão, os homens já não podem
raciocinar corretamente, em termos espirituais. Todos os homens foram afetados noeticamente.
Mesmo o cristão, que é regenerado pelo Espírito, ainda tem dificuldades de compreender em
plenitude a verdade de Deus, por que os efeitos do pecado sobre o entendimento ainda restam em
sua alma. Somente quando Deus renovar completamente o ser humano, é que ele perderá
totalmente os efeitos noéticos do pecado. A mente humana, até que Deus renove o homem por
inteiro, sempre pensará de modo reverso ao de Deus. Se o bom Deus não abrir os olhos do
entendimento, jamais os homens enxergarão, jamais se renovarão no espirito do seu
entendimento (Ef 4.23), coisa que acontece somente naqueles que foram "criados segundo
Deus"(Ef 4.24).

b) Emoções
Numa definição muito ampla, as emoções ou afeições são a faculdade sensitiva da nossa
personalidade. Como o entendimento é capaz de discernir e julgar as coisas, assim as afeições
138

fascinam e dispõem a alma a favor ou contra qualquer atitude ou pessoa. As disposições afetivas
são controladas por essa faculdade de nossa personalidade. E somos seres extremamente
conduzidos por nossas emoções. As coisas tornam-se agradáveis ou desagradáveis através dessa
faculdade que tem um grande controle sobre os nossos sentidos físicos.
Na verdade, os juízos do intelecto e as sensações das afeições é que determinam, em
alguma medida, as decisões da vontade do homem.
No princípio, Deus criou o homem à Sua própria imagem e semelhança, de tal modo que
a alma humana possuía o entendimento correto, as afeições ordenadas, e a vontade fazendo o
que devia. Todo o complexo do ser humano era voltado direta e corretamente para Deus. Mas
quando houve a queda, tanto o seu entendimento como a vontade e as afeições ficaram afetados
seriamente, divorciados de Deus.
Originalmente, as afeições humanas eram direcionadas e ordenadas devidamente. Com a
queda, nossos pais começaram a desejar somente aquilo que era contra a vontade de Deus. A
alegria deles não mais era o Senhor, mas a própria criatura. De lá para cá, a posteridade de Adão
tem seguido o mesmo caminho, tendo afeições mais elevadas para com a criatura ao invés de
tê-las com o Criador. Houve rebelião e reversão das santas afeições da alma. Então, o prazer dos
filhos de Adão concentrou-se não mais na lei do Senhor, mas nos apetites desordenados das
próprias afeições.
Essa reversão das afeições mostra que o homem está sem paz, inquieto, sem repouso,
sem morte, sem razão de existência. Isto porque ele está apartado de Deus, por causa da
perversidade do coração (Hb 3.12). O homem não é feliz no que é e no que faz. Ele não mais
conheceu o que é a alegria do Senhor. Somente depois de tê-la, e de perdê-la temporariamente,
por causa de seus pecados, é que Davi reconheceu: "Volta, minha alma ao teu sossego, pois o
Senhor tem sido generoso para contigo" (Sl 116.7). Deus não era somente o prazer daqueles a
quem havia feito à Sua própria imagem, mas também era o fim principal dos motivos e ações dos
homens. Mas estes "se esqueceram do manancial de águas vivas" (Jr 2.13), a fonte perpétua de
seu conforto e gozo. Agora, após o incidente edênico, o prazer dos homens não mais é Deus. As
afeições deles estão desordenadas, e os seus gostos reversos, porque andam agora "segundo as
suas ímpias paixões".
As afeições que deveriam estar em harmonia com a criação original, estão agora todas
fora da sua forma original. O homem não mais é guiado por uma razão correta, mas por suas
afeições desordenadas. Isso fica muito evidente na maneira contemporânea de agir: os homens
agem hoje pelos sentimentos. Isto é claro até nas formas de culto e das suas avaliações
teológicas. A frase mais comum hoje é: "Eu sinto bem fazendo isto". O homem hoje é controlado
pelos sentimentos, em detrimento de outras partes da faculdade humana, que devem viver, em
equilíbrio e interrelacionadas. As emoções e os sentimentos estão no trono do ser humano. Não
seria mal se as nossas afeições fossem santas afeições, em equilíbrio com a verdade de Deus, mas
esse é o grande problema. Tudo está desordenado. Deus colocou um anelo de paz e alegria no
coração do homem, mas que estas coisas pudessem ser encontradas somente nele, mas os
homens não O querem e, como conseqüência, essas belas afeições ordenadas não estão
presentes no ser humano. Este perdeu todas as santas capacidades afetivas para com o seu
Criador, tendo prazer somente nas coisas terrenas. Nunca o seu prazer estará na lei do Senhor,
nem meditará nela, até que suas afeições sejam reordenadas pela divina obra redentora.
O homem caído tem afeições pela riqueza, pelo prazer sensual, pelo poder, pela honra,
mas nunca no evangelho, porque este não lhe oferece estas coisas. Veja que inversão de afeições!
O evangelho indica o caminho da santidade, da mortificação da carne, das alegrias em
objetos diferentes. Por isso o evangelho não é bem-vindo ao pecador! Ser
dependente de Deus para ser feliz e realizado é uma pancada nos
sentimentos orgulhosos do pecador.
Tanto a razão como as afeições do pecador estão corruptas. Isto é fácil de ser percebido,
mesmos nos nossos pequeninos filhos. Eles respondem imediatamente diante de uma diversão
violenta, que evidencia a força e a esperteza das pessoas, mas respondem muito lentamente à
diversão que a faz refletir, pensar e agir corretamente. Em geral, elas não gostam das diversões
que as levam a aperfeiçoar os seus sentimentos e intelecto. Elas facilmente caem para o lado das
139

sensações que as governam. Com dificuldade, como pais, conseguimos que nossos filhos tenham
suas afeições dirigidas para aquilo que é correto e sadio para eles.
As afeições humanas sofrem um impacto enorme quando confrontadas com as regras que
tentam conduzi-las para Deus. Este não é mais o objeto das afeições dos homens. Os desejos de
Deus não mais são os desejos deles. Ao invés de amarem a Deus, o amor deles está no mundo.
Por isso João adverte mesmo os cristãos do seu tempo, que não possuíam ainda os mesmos
"chamariscos" que os crentes de hoje possuem. Ele lhes disse: "Não ameis o mundo nem as
cousas que no mundo há. Se alguém ama o mundo, o amor do Pai não está nele" ( 1 Jo 2.15). Em
outras palavras, João disse: "não ponham as suas afeições naquilo que é contra Deus, porque se
vocês fizerem isso, vocês vão mostrar que o amor de Deus não está em vocês. Amem as coisas
certas. Direcionem as suas afeições para o objeto correto". O grande problema das afeições
desordenadas está na fonte de onde as afeições procedem, que está totalmente corrompida. E o
coração de onde se origina tudo o que há de mal em nós. E um mal incurável pelo próprio homem!
Por natureza de criação o homem teria desejos, sentimentos que deveriam incliná-lo para
as coisas que promovem o bem, evitaria as cousas perigosas. Mas como todas as cousas do
interior humano foram afetadas pela queda, ele já não pode ter mais santas afeições. Tudo que
vem do seu ser mais interior, já vem corrompido. E por isso que os nossos desejos, em si mesmos,
já são pecaminosos. As intenções e as afeições já vem do coração manchadas pelo pecado. Não há
necessidade que os pecados sejam cometidos para que sejam considerados pecado. Jesus disse
das afeições do coração, quando tratou da "cobiça". O adultério é anterior ao ter relações físicas.
Jesus disse que "no coração" já podemos adulterar com as pessoas. Quando temos afeições, ou
"concupiscência", estamos pecando no mais interior do nosso ser. Este "sentimento" com relação
ao pecado, que e chamada "concupiscência" (Rm 7.7-8), está ligado à cobiça. A cobiça sexual não
é simplesmente um pensamento, mas um sentimento de antegozo de possuir alguém. Essa é
uma afeição desordenada. Em 1 Ts 4.5 ela aparece de uma forma bem mais intensificada:

"que cada um saiba possuir o próprio corpo, em santificação e honra, não com
desejo de lascívia, como os gentios que não conhecem a Deus."

Essa "lascívia" é uma forma bem intensificada de afeição desordenada. Esse desejo
indevido é um movimento da alma humana que, a princípio, parece insuspeito, e precede o
julgamento da mente. Ele é profundamente pecaminoso, porque é chamado de "paixão lasciva"
em Cl 3.5. Esses movimentos da alma são, em si mesmos, pecaminosos. Eles não precisam ser
consumados para serem considerados maus, porque eles são nascidos em nosso coração
corrupto. Eles são pecaminosos porque ferem o princípio de "não cobiçarás", dos 10
mandamentos. O impulso original que gera esses movimentos da alma é pecaminoso á vista de
Deus. Se o impulso original é inocente, como poderia a sua realização ser essencialmente
pecaminosa? O curioso é que o Concílio de Trento negou que esse movimento da alma tenha sido
tendente para o mal. Ele afirmou que esse impulso se torna pecaminoso quando recebe a
aprovação (ou o consentimento) da razão. Mas os Reformados contendem que os primeiros
movimentos da alma, e que o impulso deles já é pecaminoso. Se a mente aprova, o pecado
torna-se maior ainda. Se o raciocínio aprova o impulso que não é pecaminoso, o ato cometido não
é pecaminoso, porque o seu impulso é santo; mas se a árvore é má, como poderão ser bons os
frutos. Se impuros são as nossas afeições, como o serão os atos!
O mundo pode negar, como tem feito tantas vezes nas propagandas da mídia, que os
desejos por coisas proibidas, em si mesmos, não sejam pecado. Mas a Escritura afirma que eles
o são. Paulo diz que a cobiça é pecaminosa, porque a lei o diz (Rm 7.7). Jesus dá uma lista
enorme dos pecados que vem da imaginação, das afeições desordenadas do coração (Mt 15.19).
Como podem essas coisas serem nascidas no coração corrupto, sem que sejam pecaminosas?
Não se pode entender qualquer inclinação para coisas más, ser considerada santa. Em Cristo
Jesus, não havia qualquer coisa que O inclinasse a responder às vis solicitações de Satanás. NEle
não houve nenhum movimento original, nenhum apetite impuro, senão o de desejar coisas
santas. As afeições de Jesus eram absolutamente ordenadas, como ordenadas serão as afeições
daqueles a quem Jesus santificar plenamente, depois que Ele os levar para a glória, mas até que
isto aconteça, os homens todos ainda terão os incômodos das afeições desordenadas.
140

As paixões dos homens são as correntes imundas que procedem da fonte poluída dos
corações dos homens. Elas são os primeiros movimentos pecaminosos da alma que acabam por
conduzir aos atos pecaminosos abertos. Eles são os primeiros movimentos ilegais de nossos
anseios pecaminosos que precedem os pensamentos estudados e deliberados da mente.
Veja o texto de Rm 7.8 - "Mas o pecado (que é a fonte inerentemente corrompida),
tomando ocasião pelo mandamento, despertou em mim (esse "despertou" sugere a idéia de uma
disposição poluída ou uma propensão para o mal, distinta dos atos que ela produziu. O pecado
inerente é um princípio poderoso, que constantemente exerce uma influência má, estimula
afeições impuras), toda sorte de concupiscência (desejo lascivo, luxuria, sensualidade); porque
sem lei está morto o pecado."
A depravação do próprio coração é que induz o homem a ouvir os cochichos de Satanás.
Se assim não fosse, nenhuma solicitação para fazer qualquer coisa errada vingaria, ou teria
qualquer força n~ vida dos homens. A disposição interior das afeições é que facilitam aos apelos
externos serem realizados. A eficácia de uma tentação está diretamente vinculada à
predisposição do coração concupiscente, na propensão da natureza caída. Quando a nossa
corrupção nativa é convidada a fazer algo externo que promete lucro e prazer, e as paixões são
atraídas por esse algo, então a tentação começa e o coração vai atrás. Visto que os caídos são
influenciados por sua concupiscência, esta domina a ambos, a mente e a vontade, de quem elas
são, em algum sentido, servas. E por isso que Paulo fala: "vejo nos meus membros outra! lei" (Rm
7.23). E uma lei imperiosa, forte, que tem domínio sobre o homem total.

Tg 1.13-15 - "Ninguém ao ser tentado, diga: sou tentado por Deus; porque
Deus não pode ser tentado pelo mal, e Ele mesmo a ninguém tenta. Ao contrário,
cada um é tentado por sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz. Então a
cobiça, depois de haver concebido, dá á luz o pecado; e o pecado uma vez
consumado, gera a morte."

Estes versos delineiam a origem de todo nosso pecado. Estas palavras mostram que o
pecado invade o nosso ser interior gradativamente; elas descrevem os diversos estágios antes de
o homem pecar exteriormente; elas revelam uma causa geradora de todo o pecado. Os nossos
pecados descansam no pecado que habita em nós, isto é, na nossa concupiscência. A
concupiscência é o ventre e a raiz de todas as nossas manifestações de maldade.
O texto diz que "cada um é tentado por sua própria cobiça" Não podemos colocar o ônus
de nossos pecados no diabo, ou em Deus. De fato, a culpa de nossos pecados está dentro de nós.
Não podemos desprezar nunca o que há dentro dos corações dos homens, suas afeições sujas,
suas inclinações corruptas, sendo devidamente conduzidas por Satanás, que nos conhecem
muito bem, pelo simples fato de lidar com a natureza pecaminosa por milênios. Ele sabe o
trabalhar conosco, mas a culpa do pecado é nossa. A "cobiça" é nossa, de ninguém mais. A
palavra "cobiça" no texto significa "um anelo por", um "desejo de obter algo". Ela é tão forte que
leva a alma aos objetos proibidos. Ela é tão forte que o texto diz que "a cobiça o atrai e seduz". A
cobiça alicia, induz, porque não há forças no homem que o levem a combatê-la. Nada no homem
obsta o caminho que a cobiça traça. Então, o homem cai. E porque o homem falha em resistir, é
que o pecado se torna mais atraente, e a sedução é mais fácil. Isto quer dizer que a cobiça impele
com força. Ela empurra o homem para a consecução do pecado. A força impetuosa desse desejo
exige a realização dele. As paixões, a concupiscência interna (que é a cobiça), levam a vontade do
homem ao controle e, o pior de tudo, é que ele sempre haverá de sentir culpa pelo que faz.
"Então a cobiça, depois de haver concebido..." - O ato pecaminoso está embrionário, lá
bem dentro do coração. Então, as outras faculdades da alma começam a trabalhar para fazer
nascer aquilo que foi concebido. Então, a mente trabalha e a vontade passa a funcionar,
querendo o término daquilo que foi começado. "E o pecado, uma vez consumado, gera a morte"-
Esta é o salário e a colheita daquilo que foi plantado. Este é o progresso dentro de nós.
Da queda para cá, os homens todos já vem governados pelas afeições indevidas. As
faculdades da alma não mais andam em equilíbrio. As emoções controlam o homem moderno de
tal forma que um sentimentismo ("feelism") determina todas as coisas presentemente. As
"paixões" desordenadas, descontroladas pelo ser interior, são os órgãos comandantes do ser
141

humano modernamente.

C. Vontade
Segundo a maioria dos teólogos de linha Arminiana, a vontade é o princípio governante do
homem. Ela é quem comanda o ser total do homem. O homem é aquilo que ele faz. Mas isto é um
engano. A vontade não tem controle sobre o homem. Ao contrário, ela é a serva das outras
faculdades da personalidade humana. Ela executa as convicções da mente ou as imperiosas
ordens de nossa concupiscência. A vontade é sempre influenciada por algo no homem, sendo
sempre serva das disposições interiores, do coração. A vontade é aquilo que a mente pensa,
aquilo que as afeições desejam, e é a pura expressão do que o homem é interiormente.
Antes da queda a vontade do homem está em acordo com a vontade de Deus, porque ele
era santo e livre para obedecer Deus. Mas Deus criou mudavelmente de tal forma que ele pudesse
escolher cair de sua condição primitiva. 185 Durante algum período de tempo não sabemos
exatamente quanto), o homem foi um bom mordomo das coisas que Deus lhe havia dado, e
obedeceu-O. Mas o homem pecou contra a vontade de Deus, e sua vontade não mais ficou livre
dos prejuízos da queda. Pink, expressando o seu intelectualismo, diz:

"Originalmente, a excelência da vontade do homem consistia em seguir a


orientação da razão correta e a submissão à influência da autoridade própria. Mas
no Éden, a vontade do homem rejeitou a primeira e rebelou-se contra a segunda e,
em conseqüência da queda, sua vontade não mais tem estado debaixo do controle
do entendimento que prefere as trevas á luz, e das afeições que suspiram pelo mal
antes que pelo bem.. .A vontade do homem natural está tendenciosa por sua
corrupção, pois suas inclinações gravitam na direção oposta ao seu dever.‖ 186

Segundo a teologia Arminiana, como dissemos acima, a vontade é o princípio dominante


e reinante no homem. Ela é o princípio governador no homem. Esta é uma confusão séria, e tem
causado muitos problemas no entendimento dos conceitos de liberdade e responsabilidade.
Trataremos destes problemas mais tarde, mas é muito importante observar este ponto: a vontade
do homem é uma faculdade distinta das outras faculdades da alma humana, não independente
delas.
A vontade do homem é, em algum sentido, determinada pela razão e pelas afeições. Ela é
uma espécie de serva das outras faculdades porque ela executa as convicções da mente dos
homens ou as ordens imperiosas dos desejos concupiscentes, ou ainda, aos "motivos mais fortes"
das afeições.

A Vontade e os Motivos
Em geral os Arminianos dizem que a escolha da vontade não é livre perfeitamente, se ela
é influenciada por motivos. Alguns deles crêem que "embora o homem possa escolher, isto não
determina a questão da vontade livre, considerando-se que é certo que ele escolha sem coerção
ou necessidade".187 Eles temem estar debaixo do domínio dos motivos e sendo controlados por
eles, como em magnetismo onde as agulhas são controladas pelo magneto.
Geralmente, eles optam pela independência da vontade, a fim de tornarem-se livres do
temor de serem controlados por alguma coisa de venha de fora. A liberdade para eles é a
independência inclusive dos motivos. Os motivos exercem coerção e isto parece lhes introduzir
determinismo, o que é inteiramente inaceitável para eles.
E quase impossível falar a respeito do papel dos motivos na liberdade
185 CFW, XI, 2.
186 Pink, Gleanings, p. 152.
187 Joseph Harvey. Na Examination of the Pelagian and Arminian Theory of Moral Agency, (New York:

Ezra Collier, 1837), p.29.


142

do homem, sem mencionar o nome de Jonathan Edwards. Ele disse que


por motivo, "Eu quero dizer o todo daquilo que move, excita, ou convida a
mente à volição, seja isto para uma coisa simplesmente, ou muitas coisas
conjuntamente."188

"Tudo o que é propriamente chamado um motivo, excitação ou indução a um


agente desejoso e percebedor, tem alguma espécie de grau de tendência ou
vantagem para mover ou excitar a vontade, que é prévio ao efeito, ou para o agir da
vontade excitada. Esta tendência prévia do motivo é o que eu chamo de a força do
motivo. Aquele motivo que tem um grau menor de vantagem prévia, ou tendência
para mover a vontade, ou que aparece menos convidativo, como permanece na
visão da mente, é o que eu chamo de motivo mais fraco."189

Está mais do que evidente que os homens, quando fazem qualquer decisão, estão sempre
influenciados por um motivo específico que lhes é aceitável. Nenhum homem é neutro no sentido
em que não haja nenhum motivo por detrás de suas decisões. Se um homem não é influenciado
por motivos, como os Arminianos consistentes ensinam, o quê leva o homem a tomar as suas
decisões? Se não há quaisquer motivos internos ou externos, podemos dizer que o homem é
moralmente neutro? Obviamente, não. Mas algumas vezes, este é o raciocínio que podemos
encontrar na teologia Arminiana.
Se a liberdade de escolha consiste nesta independência dos motivos, Jesus não era livre
porque tudo que o Ele fez, foi motivado pelo desejo de agradar Seu Pai. Os discípulos de Jesus e
todos aqueles que amam sinceramente a Deus, não são, também, livres nas suas decisões,
porque sua mais importante motivação é fazer a vontade de Deus. Sempre um homem tem
motivos para tomar as suas decisões.
"Por motivos", Pink diz, "queremos dizer aquelas razões ou estímulos que são
apresentados à mente tendendo a conduzir à escolha e ação". 190 Está claro desta definição que
os motivos influenciam o homem nas suas decisões, mas Jonathan Edwards vai um pouco mais
além, e diz que os motivos determinam a ação de uma pessoa. Isto, certamente, causa uma
reação de impacto nos círculos Arminianos e mesmo em alguns círculos Reformados, onde esta
matéria não é devidamente entendida. Edwards diz que "o maior grau de tendência prévia para
excitar e induzir a escolha, é o que eu chamo de o motivo mais forte. E, neste sentido, eu suponho
que a vontade é sempre determinada pelo motivo mais forte." 191
E importante conhecer a idéia do "motivo mais forte" de Edwards. A força determinante
não está propriamente no "motivo mais forte". Ele não tem nenhum valor intrínseco. O motivo,
por mais forte que seja, não determina, por si mesmo, a ação de uma pessoa. O que tem que ser
considerado é aquilo que Edwards chama de "o estado da mente em si mesma".192 A
prova de que o "motivo mais forte" não é determinante em si mesmo, é
quando o mesmo motivo é apresentado a duas pessoas diferentes, e a
reação não é a mesma.
Por exemplo, dois homens ouvem a mesma mensagem a respeito da necessidade de
santificação. O motivo mais forte apresentado é ser igual a Jesus. Um ouvinte é regenerado e o
outro não. Obviamente, o primeiro terá o motivo desejos fortes em ser igual a Jesus, e para ele,
aquele motivo pode ser determinante. Para o outro ouvinte, o mesmo motivo não faz qualquer

188 Jonathan Edwards. ―Freedom of the Will‖, in The Works of Jonathan Edwards, vol. 1,

(Edinburgh: The Banner of Truth Trust, 1979), p. 6.


189 Ibid., p. 6.
190 Gleanings, p. 238. Obviamente, Pink mais uma vez reflete o seu intelectualismo, dizendo que a

mente é que determina as escolhas.


191 Edwards, p. 6.
192 Edwards, p. 49 (nota de rodapé).
143

diferença, porque ele não tem qualquer desejo de ser igual a Jesus. A diferença na reação não é o
motivo, mas o que Edwards chamada de "o estado da mente", ou a natureza do coração. O
primeiro homem tem um ouvido regenerado, enquanto que o segundo não o tem. Isto é que faz a
diferença real.
A mensagem do pregador a respeito de santificação pode causar uma reação positiva no
ouvinte, dependendo da atração que o motivo exerce por causa da condição do coração ou, para
colocar nas palavras de Edwards, "o objeto como está na visão da mente".
Tomemos um exemplo da Escritura: A esposa de Potifar apareceu diante de José e fez-lhe
um convite irresistível, dizendo: "Deita-te comigo". Mas, sabiamente, José respondeu: "Como
cometeria eu tamanha maldade, pecando contra Deus" (Gn 39.6-9). O motivo de José, que era
interno, foi decisivo naquela circunstância. Mas a motivação externa, o convite de uma mulher,
apresentado a José poderia afetar um outro homem, dependendo da condição de sua mente, ou
da natureza e tendências do coração.
Suponha que o mesmo convite fosse feito a um homem sem qualquer afeição para com
Deus, que não tivesse o mesmo "estado de mente" que José, um homem sem os padrões de Deus.
O motivo externo, o convite da mulher de Potifar, seria altamente decisivo, e talvez, determinasse,
de algum modo, o ato do homem.
Os motivos externos não podem determinar os atos de uma pessoa, mas eles podem
influenciar as decisões de qualquer um quando sua mente está predisposta para aquilo a que
está sendo atraído. Pink diz: "Os motivos externos podem não ter qualquer influência sobre a
escolha e conduta dos homens, exceto quando eles fazem um apelo aos desejos já existentes na
mente."193
Portanto, o estado de mente (algumas vezes ―mente‖ na idéia de Edwards 194 pode ser
entendido como sendo a vontade, porque ele fala a respeito das decisões da mente), e não os
motivos propriamente, é o determinador da escolha. Um homem nunca será forçado de fora a
tomar qualquer atitude. É uma característica essencial do seu ser agir sem compulsão externa,
mas é também sua característica essencial agir de acordo com as suas disposições interiores. A
vontade do homem, isto é, a sua capacidade de tomar decisões, é condicionada por suas
predileções e desejos que, por sua vez, são revelação da condição do coração.
Um motivo é apresentado a uma pessoa especifica. Sua mente, mesmo após a queda, é
ainda capaz de avaliar os motivos que, por sua vez, causam emoções positivas ou negativas nela.
A decisão de uma pessoa é uma combinação de fatores internas da razão, afeições, e a vontade
que age de acordo com as atitudes das outras faculdades e das condições do ser mais interior do
homem, o coração. Um motivo nunca é determinante, não importa quão forte ele possa ser, a
menos que o coração do homem tenha as predisposições para apresentar um ato especifico.
Pink nos dá um exemplo comum, mas iluminador: "A oferta de um suborno seria um
estímulo suficiente para mover um juiz a decidir um caso contrário à evidência e à lei; para um
outro tal oferta, longe de ser um motivo para agir erradamente, seria um motivo altamente
repelente."195 O que faz a diferença nesse caso? É o motivo externo? Não! A condição da alma
humana é que é determinante. Os humanos, cristãos ou não, nunca serão forçados por qualquer
motivo externo no tomar decisões. Antes, eles sempre decidirão de acordo com as condições das

193 Gleanings, p. 238.


194 quando a escolha acontece. Por exemplo, suponha o bendito Deus em Seu caráter verdadeiro,
como revelado nas Escrituras, o principal e um bem imutável, e que Sua vontade rejeite o que é bom. Agora,
como a mente é incapaz de rejeitar o bom, ou de escolher o mal, como tal, é claro que a causa própria e
imediata da diferença entre a realidade e a aparência, está no estado de mente. Aqui descansa a essência da
uma escolha errada — a vontade preferindo um objeto que é aparentemente, mas não a realidade preferível.
Disto, segue-se irrefragavelmente, que o estado de mente é a fonte verdadeira e própria de uma escolha
errada ou certa. Isto é o que influencia a aparência de um objeto... Portanto, o verdadeiro estado da mente
é o real estado do objeto da escolha, unidos, são os pais genuínos da aparência objetiva na mente,
moralmente considerados, ou de acordo com as qualidades do bem e do mal; e este resultado — APARÊNCIA
OBJETIVA — é o que Edwards chama de ―o motivo mais forte‖. (Edwards, Works, vol. 1, p. 49, nota de
rodapé).
195 Gleanings, p. 314-15.
144

disposições interiores deles.


Portanto, a vontade humana esta sempre recebendo a influência das outras faculdades e
do coração. E sem base crer na liberdade ou independência da vontade, como os arminianos
consistentes ensinam. A vontade do homem nunca será livre da condição
interior do homem. E verdade que Deus nunca é influenciado por nada de
fora, porque Ele é onipotente, mas este não é o caso do homem. Este é
finito, influenciado e estimulado por motivos externos, mas a
determinação do motivo sempre estará dependente da inclinação do seu
coração.
A vontade não controla o homem, como os arminianos erroneamente ensinam. A vontade
do homem não é auto-motivada, não é espontânea no sentido de que as decisões são originadas
somente nela, sem qualquer dependência das outras faculdades e da condição interior do
homem, o coração. A Escritura diz que o homem é um escravo do pecado. 196 A vontade do
homem não pode non peccare. As decisões do homem serão sempre afetadas pelo que ele é
internamente.
Neste sentido, a vontade nunca foi livre, mesmo antes da queda. Ela nunca foi um
mecanismo independente das outras engrenagens da alma humana. Aqueles que negam a
corrupção da vontade do homem, não crêem na depravação total. Temos que crer que a vontade
é a faculdade executiva de tudo o que está dentro do homem. Ela meramente apresenta os
ditames do ser mais interior do homem. Ela é uma escrava da condição do homem.
Se alguém crê que a razão humana pode entender perfeitamente a vontade de Deus; se
alguém crê que as afeições estão perfeitamente dirigidas para Deus, então ele pode crer que a
vontade é capaz de apresentar "coisas celestiais". Mas esta não é a condição do homem. O
coração é desesperadamente corrupto e tem aversão ás coisas espirituais.
Pink corretamente diz: "A queda tem cegado a mente do homem, endurecido o seu
coração, desordenado suas afeições, corrompido a sua consciência, e incapacitado a sua
vontade"197, de tal modo que "desde a planta do pé até à cabeça não há nele cousa Sã, senão
feridas, contusões, e chagas inflamadas, umas e outras não espremidas, nem atadas, nem
amolecidas com óleo" (Is 1.6).
A vontade simplesmente obedece a própria natureza pecaminosa do homem. Portanto, a
vontade está sempre pronta a fazer coisas más. Ela está amarrada à condição depravada do
coração do homem. A dependência da vontade das outras faculdades e do coração não é somente
um ensino lógico, mas é fácil de encontrar provas disto na Escritura. Este ponto será
tratado na próxima parte deste trabalho. Porque todas as faculdades da
alma humana São corruptas, por virtude da corrupção do coração, o
homem está totalmente paralisado, incapaz de dar qualquer passo em
direção ãs coisas espiritualmente boas, isto é, agradáveis a Deus. Esta
doutrina é chamada incapacidade moral ou incapacidade total do homem.

INCAPACIDADE TOTAL
A doutrina da incapacidade total é o resultado da depravação total. Já explicamos a
depravação do coração do homem e de todas as suas faculdades.
Agora a questão a ser feita é esta: Como pode a vontade humana decidir apresentar atos
espiritualmente bons, ou ter a capacidade de escolha contrária, se ela é determinada pela

196 Rm 6.16-18, 20.


197 Gleanings, p. 152.
145

condição do coração? Tem o homem poder moral para apresentar atos contrários ã sua natureza?
Aqueles que tentam estudar sobre a capacidade moral do homem, sem levar em conta a
depravação total do homem, cometem um sério engano.
Após 1618, quando os Remonstrantes tiveram sua proposta rejeitada pelo Sínodo de
Dort, a causa que eles defenderam começou a expandir e a se espalhar através de todo o mundo
cristão protestante. Hoje, a grande maioria dos cristãos não católicos, sustenta a posição de que
a vontade do homem é capaz de apresentar atos moralmente bons. E natural para os homens
pensarem o melhor sobre si mesmos, e se esquecerem do que a Escritura diz que eles são, e sua
conseqüente incapacidade espiritual. Os Arminianos tentaram diminuir a natureza do estrago
causado pela queda, sustentando uma capacidade moral que, na verdade, foi perdida no Éden.
Em geral os Arminianos, que São uma versão similar, mas modificada, do
Semi-Pelagianismo, dentro dos círculos Protestantes, espalhados por todas as denominações,
afirmam com o metodista Wakefield que "as volições São perfeitamente livres de toda coação, seja
de fora ou de dentro."198 Wakefield está absolutamente certo quando assevera que nada de fora
força o homem a tomar qualquer atitude, mas ele está totalmente enganado em relação ao de
dentro. Há alguma coisa na natureza humana que impede o homem de agir moralmente bem, ou
contrário à sua própria natureza. Mas Wakefield insiste que as volições dos homens podem ser
diferentes daquilo que o homem é. Criticando aqueles a quem ele considera partidários do
―necessitarianismo‖ (Lutero, Calvino e Jonathan Edwards), ele diz:

Mas se a doutrina da necessidade moral fosse verdadeira, que as volições e


ações dos homens não pudessem ser diferentes daquilo que eles são, todos os
homens seriam perfeitamente inocentes; porque certamente ninguém em sua
mente sã suporá que os homens possam ser culpados e, entretanto, serem
punidos justamente, se as ações deles e suas volições São necessárias e
inevitáveis.199

Vejamos dois enganos importantes nesta citação: 1) Ele assevera de um modo negativo
que o homem é capaz de apresentar atos que São contrários a sua natureza; 2) Ele deduz que o
homem é considerado responsável somente quando ele apresente uma ação independente de sua
própria natureza, sem ser forçado de dentro. Portanto, ele crê que a vontade é independente da
condição do coração humano e das outras faculdades. Uma pessoa só pode ser considerada
culpada se ela pratica atos com sua vontade independente. De outra forma, ela é inocente.
Como Wakefield, assim pensa a grande maioria dos Arminianos. Eles se esquecem de que
a vontade está debaixo da influência da razão e das emoções, e debaixo do controle da ser mais
interior do homem, que é seu coração ou natureza. E uma questão de necessidade de
imutabilidade,200 isto é, os atos do homem não podem ser diferente daquilo que ele é, porque ele
está condicionado por sua natureza pecaminosa.
A descrição da natureza corrupta do homem não é precisa no Arminianismo. Eles crêem,
com a Escritura, que o homem está espiritualmente morto, mas o problema é saber o que eles
entendem por "morte", porque eles asseveram que o homem é moralmente capaz de dar o
primeiro passo com relação a Deus (como fazem os Semi-Pelagianos) ou responder positivamente
à chamada do evangelho, tomando uma decisão a respeito de sua própria salvação, sem ter a
necessidade de serem primeiro regenerados pelo Espírito Santo.
Se o homem fosse capaz, através de sua própria capacidade moral, de exercer um
julgamento moral correto, por que desde a Queda temos a grande maioria dos homens não
agindo de acordo com essa "capacidade"? Se o homem tem esta capacidade moral, por que
muitos deles não vêm a Cristo? Pensam eles que este assunto é apenas uma matéria de

198 Samuel Wakefield. A Complete System of Christian Theology, (Cincinnati: Walden and Stowe,

1868), p. 317.
199 Wakifield, p. 320.
200 Martinho Lutero havia feito a distinção entre Necessidade e Compulsão em sua disputa com

Erasmo: ―Por necessidade eu não quero dizer compulsão; mas (como eles a denominam) a necessidade de
imutabilidade”. The Bondage of the Will, (Grand Rapids: William Eerdmans Publishing Co., 1931), p. 72.
146

"preferência"? Ou há alguma coisa mais em sua natureza que os conduz sempre a preferir o que
é contrário às coisas santas e justas? De fato,

o homem não tem a vontade livre porque ele está preso por dentro - porque
seus julgamentos movem seus desejos e seus desejos movem suas volições,
exatamente como o vapor move o pistão e o pistão as rodas. Enquanto, contudo, o
homem faz o que lhe agrada, ele agrada-se e pode agradar-se somente de um
modo. Ele faz o que lhe agrada, mas ele não pode agradar-se contra sua natureza
toda - contra a unidade, tendência, contra a pressão de sua natureza. Sua
natureza o prende; se é uma natureza caída, ele descerá. Esta natureza não pode
agir reversamente. Ele não poderá renovar sua própria vontade, mudar seu
próprio coração, nem regenerar sua má natureza. Enquanto, portanto, ele é livre,
no que respeita a forças externas, sua vontade não é livre, mas amarrado pelas
correntes de sua natureza.201

A incapacidade da vontade humana de apresentar atos espiritualmente bons e aceitáveis


a Deus, isto é, a doutrina da incapacidade moral, não elimina nem contradiz a doutrina da
responsabilidade humana. Este aspecto é muito importante para ser esquecido. Muita confusão
tem sido gerada porque os Arminianos freqüentemente acusam os teólogos Calvinistas de negar
a doutra da responsabilidade humana, porque eles ensinam a doutrina da incapacidade moral,
crendo que ambas as doutrinas sejam mutuamente excluintes. Esta é uma perversão da verdade.
Ben Warburton diz que o homem ―como criatura moral, permanecendo sob o governo
moral de Deus, é responsável por suas ações morais e, no que diz respeito às ações desta
natureza, ele está na posse de uma capacidade moral.‖202 Por "capacidade moral", Warburton não
se refere à qualidade da ação, mas à capacidade de apresentar atos morais, que é um atributo
dos seres humanos e de outros seres racionais. Os atos dos homens sempre serão morais.
Animais irracionais e os homens comem e bebem, mas somente os homens apresentam atos
morais quando bebem e comem, porque a Escritura diz: "Portanto, quer comais, quer bebais ou
façais outra cousa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus" (1 Co 10.31). O homem sempre
está debaixo da responsabilidade de fazer coisas para a glória de Deus. Não existem atos
amorais. Portanto, o homem é um ser moral diante do Legislador e, como tal, ele é responsável
por tudo o que faz, mas os Calvinistas sustentam que ele é incapaz de apresentar atos contrários
à condição de sua natureza.
A fim de que o homem possa apresentar atos divinamente aceitáveis, é necessário que
uma força externa que venha operar internamente, no coração do homem, para implantar ali o
principio da nova vida. Esta força vem somente de Deus. Jesus disse: "Em verdade, em verdade
vos digo, se alguém não nascer da água e do Espirito, não pode ver o reino de Deus" (Jo 3.5). Pink
comenta:

E um grande engano supor que os homens caídos possuem faculdades


adequadas para tal percepção moral, e que falta somente a luz moral necessária. O
oposto é que é verdadeiro neste caso. A luz moral brilha ao redor dele, mas seus
poderes de visão se foram. Ele anda em trevas enquanto os esplendores do Sol da
Justiça do meio-dia brilham ao redor dele."203

O exemplo que vamos apresentar a respeito da incapacidade moral do homem, vem da


Escritura. Deus, que é o Deus da verdade, que não pode mentir, categoricamente afirma a
impotência humana para fazer o que é moralmente santo e justo.
O que é incapacidade moral? Incapacidade moral é a falta de poderes adequados de
percepção moral. O senso moral do homem tornou-se avariado de tal modo que ele perdeu a

201 Bem Warburton. Calvinism, (Grand Rapids: Eerdmans, 1955), pp. 130-31.
202 Ibid., p. 143.
203 Pink, p. 236.
147

capacidade de distinguir corretamente entre o que é bom e o mal, o verdadeiro e o falso, Deus e as
outras deidades. A incapacidade moral causa no homem uma indisposição para com os padrões
de Deus para si próprio, mesmo embora ele seja capaz de admirar as qualidades boas em outros
homens.204
A capacidade moral, por outro lado, "não é nada mais nada menos do que uma santa
natureza com santas disposições; é a percepção da beleza de Deus e a resposta do coração à
excelência e glória de Deus."205 Esta capacidade o homem perdeu com o pecado.
Em que sentido é o homem natural moralmente incapaz? A resposta a esta pergunta é
muito longa. O homem pode manifestar sua incapacidade de várias maneiras. A Escritura é
muito clara e rica em textos sobre este assunto, e os Arminianos têm enormes dificuldades para
explicá-los. Esta matéria é uma espécie de golpe mortal para a teologia Arminiana. Por esta
razão, eles a odeiam, e acusam o Calvinismo de negar a responsabilidade humana.
Primeiro, vamos analisar aquilo que é relacionado com assuntos éticos:

1. O Homem é Incapaz de Sensibilidade Moral


Um dos resultados mais terríveis da queda é que o homem não é consciente do que
aconteceu dentro do seu coração. Mesmo se alguém diz em detalhes o que aconteceu, o pecador
não tem sensibilidade para perceber os efeitos do pecado. Suas capacidades sensitivas estão
paralisadas neste sentido. Pink observa que

há uma diferença entre ser totalmente ignorante de nossa condição e ser


insensível a ela. Os irregenerados podem adquirir um conhecimento teórico da
depravação total do homem, todavia, eles estão totalmente sem qualquer
sentimento dessa depravação neles próprios.206

Ele não tem senso de pecado, nem sente o peso dele. Esta insensibilidade moral é comum
a todos os homens naturais. Se não fosse assim, isto é, se todos os homens tivessem uma
consciência e sentissem dor por causa do fato deles estarem perdidos, e sujeitos à condenação,
todos eles estariam em desespero, procurando por uma solução para seus problemas em Cristo.
Mas eles não possuem esta sensibilidade moral. Não estão cônscios de sua depravação e estão
satisfeitos com a condição nas quais vivem, e eles não possuem nenhum interesse em ter uma
natureza diferente, diferentemente daqueles que São cristãos. Eles São capazes de admirar
algumas virtudes dos cristãos, mas curiosamente eles não as querem para si mesmos. Eles não
querem ser cristãos. Por essa razão, eu creio que eles gostam da condição em que
vivem, porque ela se encaixa na disposições dos corações deles.
Se alguém diz que Jesus Cristo morreu sobre a cruz pelos pecados deles, isto não causa
nenhum impacto ou senso de culpa neles porque, de acordo com seus corações, o que aconteceu
na cruz não tem nada a ver com eles. Eles não possuem qualquer espécie de sentimentos
relacionados aos padrões de Deus. Eles não se preocupam em obedecer às leis de Deus porque
eles servem de lei para si mesmos. Eles criam seu próprio estilo de vida.
A insensibilidade deles está ligada à dureza de seus próprios corações. Paulo diz que eles
vivem com seus corações endurecidos e que eles "se tornaram insensíveis" 207 a respeito de
apresentarem qualquer espécie de pecado. A Escritura diz que eles possuem um "coração de

204 Um exemplo é Herodes, um homem sem capacidade moral que, contudo, admirava João Batista,

por suas boas qualidades, personalidade e pregação (Mc 6.20).


205 Pink, p. 236.
206 Pink, p. 168.
207 Ef 4.19. O verbo grego para ―tornaram-se insensíveis‖ é a\phlghko/tej, apontando que os homens a

quem Paulo se refere, ―haviam cessado de preocupar-se‖, isto é, eles não possuíam qualquer sensibilidade
por coisas espirituais. A conseqüência é que eles acabaram se entregando à sensualidade cometeram toda
sorte de impureza. ―Quando as pessoas continuam em pecado e apartam-se da vida de Deus, eles se tornam
apáticos e insensíveis a respeito de coisas morais e espirituais‖ (Charles Hodge. A Commentary on the
Epistle to the Ephesians, (Nem York: Robert Carter and Brothers, 1856)), p. 254.
148

pedra" e não um "coração de carne", 208 isto é, um coração sensível, um coração capaz de
perceber as coisas espiritualmente boas. Por esta razão, um "coração de pedra" não anda nos
estatutos de Deus, e não observa os seus mandamentos. 209 Eles perderam toda a sensibilidade
pelas coisas do Espírito e não foram capazes de perceber que a condenação de Deus estava sobre
eles.
Deles pode ser dito o que foi dito a respeito dos judeus:

De sorte que neles se cumpre a profecia de Isaías: Ouvireis com os ouvidos, e


de nenhum modo entendereis; vereis com os olhos e de nenhum modo
percebereis. Porque o coração deste povo está endurecido, de mau grado ouviram
com os seus ouvidos, e fecharam os seus olhos; para não suceder que vejam com
os olhos, ouçam com os ouvidos, entendam com o coração, se convertam e sejam
por mim curados.210

Não é errado dizer a respeito deles que ―Deus lhes deu espírito de entorpecimento, olhos
para não ver e ouvidos para não ouvir, até o dia de hoje.‖ 211 Eles ficaram entorpecidos, incapazes
de perceber o que estava acontecendo em seus próprios corações. Esta verdade a respeito dos
judeus pode ser dita de todos os homens naturais. Eles São os mesmos em toda parte e em todos
os tempos.
Eles são capazes de perceber a manifestação do pecado nas vidas de outras pessoas e
neles próprios, mas não sabem a causa dessa manifestação. Não sabem o que o "pecado original"
significa. Esta doutrina é tolice para eles. O que é espantoso é que os Arminianos não gostam
desta espécie de doutrina porque ela rompe o sistema teológico deles, mesmo embora eles digam
que aceitam a doutrina do pecado original, mas sem as suas conseqüências malignas.
Os homens não São ignorantes do que está acontecendo no mundo em matéria de
violência, sexualidade desenfreada, e muitas outras manifestações de pecaminosidade, mas eles
são insensíveis para perceber que isso é contra eles próprios. O "espírito de torpor" está patente
aos olhos daqueles que conhecem e crêem no que Deus diz em Sua Palavra. Somente os homens
naturais não percebem isto.
Os Arminianos defendem a idéia de que os homens naturais não São moralmente
insensíveis. Assim, Pink, de uma maneira muito forte, diz a respeito deles:
"Aqueles que negam a insensibilidade moral dos pecadores estão proclamando a sua própria
insensibilidade, porque eles repudiam não somente o que a Escritura sustenta, mas o que a
observação universal confirma.‖212 O pior é que essas pessoas São consideradas "evangélicas" ou
"ortodoxas". Elas estão negligenciando a revelação divina dos próprios homens. Eles gostam de
ouvir as "boas novas" de salvação, mas não têm ouvidos para as notícias terríveis a respeito dos
resultados da depravação humana.
Todavia, a negação deles não cancela o fato de que os homens são moralmente
insensíveis. E esta insensibilidade é manifesta pelo fato de que os ímpios não têm paz (Is 48.22),
e que não estão preocupados com isso. Eles nunca conheceram o que paz significa. Por esta
razão, eles também São insensíveis às coisas santas.
Eles não estão cônscios de que são escravos de Satanás, nem do que espera por eles. Eles
estão "mortos nos seus delitos e pecados" (Ef 2.1). São todos eles ignorantes em relação aos
preceitos de Deus? Não. Eles sabem que os cristãos estão certos na ética deles, e que a ética deles
é bem melhor do que a do mundo. Eles até admiram a conduta dos cristãos, têm respeito pelos
genuínos cristãos (porque Deus honra os Seus servos obedientes), mas eles preferem o caminho

Ez 36.26.
208

Ez 36.26.
209
210 Mt 13.14-15.
211 Rm 11.8. As palavras gregas usadas aqui são pneu+ma katanu/cewj, ―espírito de torpor‖, isto é, os

homens estão anestesiados, insensíveis ao que está acontecendo a eles prórpios.


212 Pink, p. 169.
149

que eles estão seguindo. Esta conduta é chamada insensibilidade moral.

2. O Homem é Incapaz de Obediência Moral


Há muitas leis que qualquer ser humana, regenerado ou não, é capaz de cumprir,
simplesmente pelo fato de que ele possui capacidade física e intelectual. A queda trouxe dano
sobre o corpo e a mente, mas todos os homens ainda podem fazer muitas coisas com eles. O
corpo e a alma foram seriamente afetados pela queda, mas há capacidades naturais que não
desapareceram com ela. Elas foram meramente danificadas, mas não desapareceram. Elas são
capacidades sem as quais o homem não podem ser o que São, nem podem viver sem elas no
mundo. Eles possuem capacidade de obedecer as leis da vida natural, leis de companheirismo,
leis do relacionamento horizontal.
Contudo, quando tratamos das leis verticais, das leis vinculadas ao relacionamento com
Deus, o quadro muda de figura. Nesse sentido, nossos poderes intelectivo-espiritual foram
profunda e mortalmente feridos. Paulo diz que os homens estão "obscurecidos de entendimento,
alheios à vida de Deus por causa da ignorância em que vivem, pela dureza dos seus corações" (Ef
4.18).
Com seus entendimentos obscurecidos, eles não podem entender o significado real da lei
de Deus. O entendimento das coisas do Espírito Santo está além da capacidade e, portanto, eles
não podem obedecê-los. Eles não podem produzir obediência moral, a menos que o Espirito
Santo abra-lhes o próprio entendimento, a fim de que possam ser iluminados. É isto o que Paulo
diz em Ef 1.17-18:

"...para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda
o espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele, iluminados os
olhos dos vosso coração, para saberdes qual é a esperança do seu chamamento,
qual a riqueza da glória da sua herança nos santos..."

Segundo Pink,

Os poderes morais da alma humana estão paralisados pela queda. Escuridão


sobre o entendimento, ignorância na mente, corrupção das afeições, devem de
necessidade afetar radicalmente os motivos e a escolha. Insistir que a mente ou a
vontade tem um poder de agir contrariamente ao motivo, é um absurdo manifesto,
porque no caso não seria uma ato moral, de forma alguma. A verdadeira essência
da moralidade é uma capacidade de ser influenciada pelas considerações sejam
corretas ou errôneas.213

O homem reteve todas as coisas necessárias a fim de continua sendo um ser humano,
isto é, sua racionalidade, responsabilidade e uma constituição moral. Mas ele perdeu
completamente o grande principio da santidade e da retidão moral. Ele perdeu sua justiça
original, que o capacitaria a obedecer moralmente.

3. O Homem é Incapaz de Amar a Deus


Perdendo a capacidade de obedecer moralmente, o homem perdeu uma outra capacidade
importantíssima: Ele tornou-se incapaz de amar a Deus sobre todas as coisas, que o primeiro e
maior mandamento. Esta é a mais importante lei moral que está afirmada na Escritura (Mt
22.34-40). Mesmo embora ele seja capaz de mostrar afeição e amor por outros seres humanos,
ele é incapaz de amar a Deus. O amor pelo Senhor, Criador e Redentor, é contrário à sua
natureza pecaminosa.
A falta de amor por Deus é uma inimizade contra Ele. Não existe qualquer intervalo entre
amor e ódio. Amamos ou odiamos. E a Escritura diz que a propensão por coisas da carne é
inimizade contra Deus.

213 Pink, p. 235.


150

Porque o pendor da carne dá para a morte, mas o do Espírito, para a vida e


paz. Por isso o pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito ã lei
de Deus, nem mesmo pode estar (Rm 8.6-7).

Essas pessoas, com o pendor da carne, não possuem a habilidade para amar a Deus e à
Sua Palavra, a menos que a Graça intervenha.

Diversas vezes Jesus disse que as pessoas O odiavam,214 mas certa vez Ele disse, com
profunda tristeza de alma: "Eles odiaram-me sem motivo" (Jo 15.25). Jesus não havia feito nada
errado para receber esse ódio. A causa do ódio estava dentro do coração deles. Onde o ódio está,
há a impossibilidade de haver amor. Ambas as coisas não podem coexistir. Este ódio foi
manifesto na rejeição dele: "Mas os seus concidadãos O odiavam, e enviaram após ele uma
embaixada, dizendo: Não queremos que este reino sobre nós" (Lc 19.14). Jesus contou esta
parábola para ilustrar o ódio deles pelo grande Rei. Era um ódio voluntário, deliberado, que se
evidenciava numa rejeição propositada. Eles perderam a capacidade de amor Aquele que tanto
amou pecadores! Isto é incapacidade moral!

4. O Homem é Incapaz de Amar Aqueles que são de Deus


Se isto parece um exagero, é necessário verificar esta verdade na Escritura e na própria
experiência humana. O homem natural tem a capacidade de amor outras pessoas simplesmente
porque elas são seres humanos. E uma espécie de senso de solidariedade humana ainda
presente nas vidas dos homens, porque sem ela, seria impossível para as pessoas viverem juntas.
Mas, se você quer ver a veracidade deste ponto, coloque um cristão genuíno no meio de homens
naturais. Estes são capazes de amar um ser humano, como já foi dito, mas incapazes de amar
aquele ser humano porque ele é um cristão. Ele pode até possuir admiração pelas qualidades do
cristão, mas ele o odeia. Onde está a prova disso?
Jesus disse-nos o que iria acontecer. Eis suas palavras em Jo 15.20-21:

Lembrai-vos da palavra que eu vos disse: Não é o servo maior do que seu
senhor. Se me perseguiram a mim, também perseguirão a vós outros; se
guardaram a minha palavra, também guardarão a vossa. Tudo isto, porém, vos
farão por causa do meu nome, porquanto não conhecem aquele que me enviou. 215

Por que os fariseus, que odiaram Cristo, perseguiram Pedro e João, colocando-os na
prisão? Por que eles perseguiram Estevão até a morte? O ódio que eles tiveram para com aqueles
que eram filhos de Deus foi, em última instancia, um ódio contra Deus. Por essa razão Jesus
disse ao perseguidor dos cristãos: "Saulo, Saulo, por que me persegues?"
(At 9.4). Se um homem natural não tem qualquer amor pelos cristãos, é
porque eles odeiam ao Salvador deles. É impossível para o homem natural
amar aqueles que pertencem Aquele a quem odeiam. Pelo simples e
glorioso fato de que somos chamados filhos de Deus, o mundo "não nos
conhece", e o mundo não nos conhece "porque não conheceu a Ele
mesmo".216
Quando o homem natural, que não tem o amor pelo Senhor, está envolvido com os

214 Jo 15.18, 24.


215 Veja também Mt 5.11-12; 10.22; 24.9; Mc 13.13; Lc 21.12, 17; Jo 15.18, 19; 17.14; 1 Jo 3.13.
216 1 Jo 3.1 – É justíssimo interpretar este verbo ―conhecer‖ hebraisticamente, significando uma

relação de intimidade, de preocupação especial, uma relação de amor.


151

cristãos, ele também os odeia por causa das predileções que estes últimos têm. Os desejos dos
cristãos não se encaixam nos desejos do homem natural. Eles podem viver juntos debaixo do
mesmo teto, mas eles vivem em dois mundos diferentes. É possível para o cristão ter amor pelo
homem natural, mas o contrário nunca acontece, porque esta espécie de amor implica numa
preciosa capacidade moral. E isto o homem natural não tem mais. Se é difícil entender este
ensino de Jesus Cristo, averigüe-o na experiência. Ela provará a veracidade das palavras de
Jesus Cristo.

5. O Homem ê Incapaz de Perceber e Fazer as Coisas Santas


O homem natural é tão corrupto que ele é incapaz de ter percepções santas. Ele está
totalmente paralisado de tal forma que ele não é capaz de perceber e apresentar atos
espiritualmente bons. Veja o que Moisés disse dos filhos de Israel:

"Chamou Moisés a todo o Israel, e disse-lhes: Tendes visto tudo quanto o


Senhor fez na terra do Egito, perante vós, a Faraó, e a todos os seus servos, e a
toda a sua terra; as grandes provas que os vossos olhos viram, os sinais e grandes
maravilhas: porém o Senhor não vos deu coração para entender, nem olhos para
ver, nem ouvidos para ouvir, até o dia de hoje" (Dt 29.2-4).

Essas pessoas possuíam todas as suas faculdades sensoriais, as faculdades da


percepção, mas eles não tinham tido, até aquela época (e até hoje), o poder para perceber as
coisas espirituais que Deus havia realizado no meio deles.
Eles possuíam tudo que é requerido dos homens para serem seres responsáveis. A Queda
não retirou deles qualquer coisa que era essencial para a humanidade deles. Os seres humanos
eram ainda agentes morais, eles tinham auto-determinação, uma
consciência moral, a mesma razão com a capacidade de cognição
intelectual, e assim por diante, mas eles perderam a capacidade de usá-los
devidamente.
No mesmo livro de Deuteronômio Moisés disse:

Ouvindo, pois, o Senhor as vossas palavras, quando me faláveis a mim, o


Senhor me disse: Eu ouvi as palavras deste povo, que te disseram; em tudo
falaram eles bem. Quem dera que eles tivessem tal coração que me temessem, e
guardassem em todo o tempo todos os meus mandamentos, para que bem lhes
fosse a eles e a seus filhos para sempre!" (5.28-29).

Eles possuíam tudo que deveriam possuir para serem seres humanos, mas esses sentidos
não foram úteis para assuntos espirituais. Eles perderam o poder espiritual de usá-los. Eles se
tornaram totalmente corruptos que perderam a capacidade de ver, ouvir e de entender assuntos
espirituais.
Como um resultado da queda, o homem não é capaz de entender a linguagem espiritual,
que lhe é inteiramente estranha. Como um homem natural, Nicodemos não foi capaz de entender
a conversa de Jesus a respeito do novo nascimento (Jo 3.3-5). O mesmo aconteceu á mulher
samaritana (Jo 4). O entendimento do ser humano está cegado, e não tem capacidade de
entender o que Deus diz.
Jesus estava falando a lideres religiosos de Seu tempo a respeito do Pai Celestial, e eles
jactaram-se de ser filhos de Abraão e, portanto, filhos de Deus. Mas Jesus retorquiu com
palavras bastante fortes que eles eram filhos do diabo. Então,

"Replicou-lhes Jesus: Se Deus fosse de fato vosso pai, certamente me


haveríeis de amar; porque eu vim de Deus e aqui estou; pois não vim de moto
próprio, mas ele me enviou. Qual é a razão por que não compreendeis a minha
152

linguagem? E porque sois incapazes de ouvir a minha palavra" (Jo 8.42-43).

E óbvio que Jesus não está falando a respeito da incapacidade auditiva física, porque eles
estavam ouvindo perfeitamente o que Jesus lhes estava dizendo, mas a respeito da incapacidade
auditiva espiritual. Eles não mais possuíam o poder para entender coisas espirituais. A
incapacidade moral era evidente em sua incapacidade espiritual!
Mas há alguma coisa além desta incapacidade moral no homem natural. Mesmo debaixo
da influência divina, a vontade do homem é incapaz de agir corretamente em cooperação com a
graça de Deus, até que o coração do homem seja renovado pelo Espírito Santo. Mesmo após a
regeneração, a vontade do homem é dependente da graça de Deus para energizá-la, guiá-la, para
fazer todas as coisas, porque Jesus Cristo disse categoricamente: "Sem mim nada podeis fazer"
(Jo 15.5).
Paulo reconhece que a capacidade de entender as coisas espiritualmente santas vem do
Espírito Santo. Ele diz:

1 Co 2.12-13 – ―Ora, nós (os cristãos) não temos recebido o espírito do mundo,
e, sim, o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que por Deus nos foi
dado gratuitamente. Disto também falamos, não em palavras ensinadas pela
sabedoria humana, mas ensinadas pelo Espírito, conferindo cousas espirituais
com espirituais‖.

Qual era o propósito de Deus ao enviar o Seu Espírito aos cristãos? Foi para que eles
pudessem ser livres do cativeiro da ignorância, esta incapacidade espiritual que impede os
homens de entenderem as verdades espirituais. Somente através do Espírito Santo podem eles
entender as bênçãos de Deus.
1 Co 2.14 está em oposição aos versos 12-13. "Ora, o homem natural não aceita as cousas
do Espírito de Deus, porque lhe São loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem
espiritualmente." A razão pela qual o homem natural não pode entender as coisas do Espírito é
dada pela Escritura: "porque São loucura para ele". O homem natural as rejeita porque lhe
parecem absurdas. Elas São contrárias á sua natureza corrupta.
Por que as coisas espirituais São loucura para ele? Novamente a Escritura responde:
"porque ele não pode entendê-las." - Por que as coisas do Espírito estão além do entendimento do
homem natural? Ele não possui inteligência? Ele não possui poder intelectual para entendê-las?
Por que, então, os homens naturais São incapazes de entendê-las? Novamente a Escritura
responde: "porque elas se discernem espiritualmente". Somente o homem espiritual é capaz de
entender as coisas espiritualmente boas (v. 15). Até que o que homem seja ensinado por Deus, 217
isto é, até que seu coração seja iluminado por Deus, ele nunca verá qualquer beleza em Cristo ou
em Seus santos preceitos.
O homem natural tem olhos para ver, mas não vê; tem ouvidos para ouvir, mas não ouve;
tem um coração para entender, mas ele não entende. 218 Ele e- semelhante aos ídolos
mencionados no Salmo 115.5-7. Por que ele não é capaz de ver, ouvir e entender? Não tem ele o
poder, a capacidade para coisas como essas. Essas São capacidades puramente espirituais, e
somente os homens espirituais as têm.
A pior coisa é que o homem não tem a capacidade de reverter a sua própria situação.
Nenhum poder humano é capaz de efetuar qualquer alteração nas percepções morais do homem
natural. Jeremias diz: "Pode acaso o etíope mudar a sua pele, ou o leopardo as suas manchas?
Então poderíeis fazer o bem, estando acostumados a fazer o mal?" (Jr 13.23).
A luz moral brilha ao redor do homem natural, mas seus poderes de visão se foram dele.
Agora ele anda nas trevas em meio a luz do Sol da Justiça que brilha sobre ele. O verdadeiro
sentido do evangelho é escondido dele, porque Paulo diz:

217 Jo 6.45; 1 Co 2.13; Ef 1.18.


218 Mc 4.11-12.
153

"Mas, se o nosso evangelho ainda está encoberto, é para os que se perdem é


que está encoberto, nos quais o deus deste século cegou os entendimentos dos
incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o
qual é a imagem de Deus." (2 Co 4.3-4).

Esta é uma incapacidade natural. É espantoso que alguns cristãos ainda digam que o
homem seja capaz de responder ao chamando de Deus no evangelho sem primeiro ser renovado
pelo Espírito Santo!

6. O Homem é Incapaz de Vir a Cristo


Em pregação ouvimos freqüentemente que os pecadores não São somente convidados a
vir a Cristo, mas que eles têm a capacidade de vir. Conforme a antropologia Arminiana, a vontade
humana é capaz de dizer "sim" á chamada do evangelho. Como vimos antes, segundo a teologia
libertária, a vontade do homem não é tão afetada pelo pecado que chegue a ser surda às verdades
espirituais ou que seja totalmente corrupta. A pregação da maioria dos
pregadores arminianos assevera que a palavra final em matéria de
salvação pertence ao uso correto que o homem faz da sua vontade.
Mas Jesus, o Salvador, tem uma opinião totalmente diferente da condição do homem.
Segundo Ele, o homem é totalmente incapaz de vir a Ele. Veja o Seu ensino a respeito deste
terrível assunto: "Ninguém pode vir a Mim se o Pai que me enviou não o trouxer; e eu o
ressuscitarei no último dia" (Jo 6.44).
O homem é um escravo de sua própria natureza, e ele tem que ser liberto dela por uma
obra sobrenatural. Até que esta obra aconteça em sua vida, ele continuará a ser um escravo do
pecado.219 Ele não pode vir a Jesus. Jesus deixou isto absolutamente claro, mas este ensino
causou problemas na mente de vários de seus discípulos. Provavelmente, como uma reação
natural de sua má formação teológica, eles desgostaram do ensino de Jesus a respeito da
incapacidade natural do homem.
Após a repetição da idéia da incapacidade do homem de vir a Ele (em Jo 6.64-65), "muitos
dos seus discípulos o abandonaram e já não andavam com ele" (6.66). Isto é o que os Arminianos
fazem. Quando a verdade a respeito a incapacidade do homem é ensinada, eles procuram uma
congregação diferente onde podem partilhar sua própria teologia libertária. Eles abandonam o
lugar onde a verdade sobre o homem é ensinada. Esta é uma reação natural à verdade de Deus.
Por que o homem natural é incapaz de vir a Cristo? Porque ele não tine inclinação por
Jesus e por Suas verdades. O ensino de Cristo lhe causa repugnância, porque "a alma do
perverso deseja o mal".220 Se isto é assim, como ele pode ter desejos de Cristo? Como ele pode vir
a Jesus sem possuir uma natureza disposta para isso?
De qualquer forma, é importante observar que há uma combinação perfeita das obras de
Deus na economia da salvação. A obra de salvação está totalmente presa ao desempenho da
Trindade Santa. O Filho disse: "Ninguém vem ao Pai senão por Mim" (Jo 14.6), e também disse
"Ninguém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o trouxer" (Jo 6.44). E o Espírito Santo
aplica estas coisas a nós pessoalmente. Oh, que obra graciosa e gloriosa é apresentada em favor
de homens caídos e impotentes!
Este é o único modo de vencer a impotência humana - a obra do gracioso Triúno Deus!
Fora de sua obra, o homem será sempre corrupto, manifestando sua depravação e incapacidade
espiritual.
Por esta razão, na fé Reformada a concepção de salvação está ligada intimamente à
doutrina do pecado do homem. Como foi dito antes, é impossível entender a assim chamada "tão
grande salvação" a menos que se entenda a doutrina da "tão grande perdição". O entendimento

219 Jo 8.32, 34, 36.


220 Pv 21.10.
154

correto da soteriologia é dependente do entendimento correto da hamartiologia. Se alguém mal


entende a última, certamente mal entenderá a primeira.
155

PARTE IV

A CONDIÇÃO
DO HOMEM NO
PLANO REDENTOR
DE DEUS

(A DOUTRINA DO PACTO)
156

CAPITULO XVI

O HOMEM NO PACTO DA GRAÇA

A Doutrina do pacto da graça é uma das mais preciosas que podemos extrair das Santas
Escrituras, pois de uma certa maneira, todas as outras doutrinas da soteriologia estão
intimamente relacionadas com a do Pacto da Graça.
Esta doutrina é tão importante que permeia toda a Escritura, começando no Gênesis e
tendo seus últimos ecos no livro do Apocalipse.

A Necessidade do Estabelecimento do Pacto da Graça


Depois que o homem violou o pacto das obras, ele ficou e ―sem Deus e sem esperança no
mundo‖ (Ef 2.12). O homem perdeu as suas capacidades originais, como sejam: conhecimento
verdadeiro de Deus, retidão e justiça. Essas coisas já não mais fazem parte da sua vida. Ele
tornou-se cativo de suas próprias paixões e prazeres, perdendo todas as cousas espiritualmente
boas, com as quais havia sido dotado originalmente por Deus. Embora Deus não tenha retirado
as exige na as do pacto das obras, mesmo depois da queda, o homem tornou-se incapaz de
obedecê-las e, se não houvesse uma providência do Alto, o ser humano pecador ficaria
irremediavelmente perdido.
Contudo, Deus, na Sua bondade infinita e segundo as riquezas insondáveis da Sua
sabedoria, começou a revelar na história dos homens os seus planos eternos de redenção do
pecador, que na teologia Reformada costumamos chamar de Pacto da Graça.
O estabelecimento desse pacto era uma necessidade absoluta por causa da condição de
impotência e miséria do pecador. Todas as providências históricas para a redenção do pecador
foram tomadas no tempo devido, revelando uma preocupação eterna de salvação preparada por
Deus, salvação essa que Ele tornou conhecida à medida que Ele a revelava gradativamente em
gestos amorosos para com o pecador. Se Deus não houvesse externalizado a sua bondade cheia
de amor, graça e misericórdia, não haveria qualquer esperança para o violador do pacto das
obras. Na manifestação desses atributos da sua bondade, ele revelou ao mesmo tempo a sua
santidade, justiça e soberania. Mostrou santidade porque Ele não suporta o pecado; mostrou
justiça porque não pode deixar de punir o pecado em virtude de sua santidade; mostrou
soberania porque fez do modo que fez e atingiu aqueles a quem determinou atingir com sua
bondade.

O PACTO DA GRAÇA CONCEBIDO NA ETERNIDADE

Este pacto gracioso preparado por Deus na eternidade recebe outros nomes da teologia
reformada. Ele é conhecido como ―'Pacto da Redenção‖, como ―Conselho da Paz‖, ou como ―Pacto
Eterno‖.

1. Este Pacto foi feito na Eternidade


Este pacto não foi elaborado após a queda do homem, como que para resolver um
problema às carreiras, de última hora, ou como se Deus tivesse sido pego de surpresa pelo
pecado de nossos primeiros pais. Deus, que conhece e determina todas as coisas, elaborou esse
plano de redenção antes da fundação do mundo, em conselho eterno. Por essa razão, a Escritura
157

o chama de "pacto eterno" (Hb 13.20).


A eternidade desse pacto se evidencia nas providências salvadoras tomadas por Deus
antes da criação do mundo (Ef 1.4, 7-11; 3.8-11; 2 Tm 1.9; 1 Pe 1.19-20; Ap 13.8; 17.8).

2. Este Pacto foi feito entre o Pai e o Filho


Quando falamos desse pacto entre o Pai e o Filho, estamos falando da vontade do Pai e da
disposição do Filho em realizar todas as cousas propostas por Deus para a salvação do pecador.
Não deve ser esquecido que a Trindade toda participa deste pacto, pois Is 48.16-17 dá a entender
que o Espirito Santo também é enviado do Pai para realizar a Sua vontade neste mundo,
juntamente com o Filho. Contudo, é mais comum dos textos a idéia de um pacto onde o Filho e o
Pai são as partes contratantes mais expoentes. O próprio Jesus Cristo falou que o Pai entrou em
pacto com ele, embora as nossas traduções não deixem a idéia clara. Veja o texto de Lc 22.29
"Assim como meu Pai me confiou um reino, eu vo-lo confio." No grego, contudo, a idéia é
diferente. A palavra traduzida como "confiou e o verbo que significa "entrar num pacto". O verbo
grego é diati/qemai de onde vem a palavra "pacto" – diaqh/kh. Deus pactuou com Cristo para lhe dar
um reino, e nós somos parte desse reino, portanto, parte da herança que Deus deu a Cristo.
Deus, ante a incapacidade do homem de expiar os seus próprios pecados, fez um pacto
com Cristo de salvar alguns membros da raça caída em Adão. O próprio Deus, na pessoa de Seu
Filho, compromete-se a realizar e tornar eficaz esse pacto. O Filho seria o Mediador, a vítima
expiatória, o resgate e o Salvador dos beneficiários históricos do pacto.
O Pai e o Filho tomam a decisão comum de salvar criaturas caídas. O Pai seria o
representante da Trindade e o Filho o representante dos caídos, mas eleitos.
A Escritura mostra de maneira inequívoca que o Filho veio ao mundo para realizar uma
tarefa que o Pai lhe havia entregue, uma obra em favor dos homens, realizando a vontade de Seu
Pai.
Vejamos a análise de alguns textos:

Is 48.16-17 - "Chegai-vos a mim, ouvi isto: Não falei em segredo desde o


princípio; desde o tempo em que isto vem acontecendo tenho estado lá. Agora o
Senhor Deus me enviou a mim e o seu Espírito. Assim diz o Senhor, o teu Redentor,
o Santo de Israel: Eu sou o Senhor, o teu Deus, que te ensina o que é útil, e te guia
pelo caminho em que deves andar."

Estas palavras são como que colocadas nos lábios de Cristo, como fizeram outros
escritores do VT. O Verbo é eterno. Num tempo quando ainda não havia tempo, a Trindade
entabulou um acordo. Desse acordo surgiu a decisão de enviar o Filho para a Redenção do
pecador e o Espírito para aplicá-la. Por isso que é dito que «o Senhor Deus me enviou a mim e o
seu Espírito." O Filho e o Espírito são enviados ao mundo para cumprir um propósito redentor da
Divindade. O texto diz que essas pessoas são enviadas, o que indica um acordo prévio entre elas.

Jo 5.30 – ―Eu nada posso fazer de mim mesmo; na forma porque ouço, julgo. O
meu juízo é justo porque não procuro a minha própria vontade, e, sim, a daquele
que me enviou.‖

É claro deste verso que Jesus veio ao mundo a mandado de Seu Pai, e para realizar a
vontade de Seu Pai. Voluntariamente Ele submeteu-se à vontade dAquele a quem Ele sempre foi
submisso como Filho. Mas essa submissão indica que Eles tiveram um acordo antes de haver
história. Cristo foi enviado pelo Pai como produto de um pacto, como veremos adiante.

JO 6.38-40 – ―Porque eu desci do céu não para fazer a minha própria vontade;
e, sim, a vontade daquele que me enviou. E a vontade daquele que me enviou é
esta: Que nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo contrário, eu o
ressuscitarei no último dia. De fato, a vontade de meu Pai é que todo homem que
158

vir o Filho e nele crer, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia.‖

Estes três versos recebem a mesma tônica dos dois anteriores, onde Cristo revela
claramente a sua decisão de obedecer ao seu Pai, que o havia enviado ao mundo. A idéia de
obedecer aqui deixa clara a idéia de um acordo anterior. Note que, antes dele vir ao mundo, ele
havia recebido do Pai um número definido de pessoas pelas quais ele veio morrer. E o mandato do
Pai era para que Ele não perdesse nenhum deles. Cristo veio para cumprir essa vontade de seu
Pai, que foi produto de um acordo prévio entre ambos, no seio da Divindade. Estas mesmas idéias
podem ser encontradas em Jo 8.29; 17. 3,4,6,8,18,21; Hb 10.7-10.
Jo 10.17-18 - «Por isso o Pai me ama, porque eu dou a minha vida para a reassumir.
Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a
entregar e também para reavê-la. Este mandato eu recebi de meu Pai"
Jo 12.49 – ―Porque eu não tenho falado por mim mesmo, mas o Pai que me enviou, esse
tem prescrito o que dizer e o que anunciar.‖

3. Este Pacto teve Cristo como Fiador e Cabeça

a) Cristo Como Fiador do Pacto

Hb 7.22 – ―Por isso mesmo Jesus se tem tornado fiador de superior aliança.‖

O Fiador é aquele que se torna responsável pelas obrigações legais de outro. Na teologia
Reformada houve uma distinção sobre se o papel de Cristo como fiador era condicional ou
incondicional. Então, segundo a jurisprudência romana, duas palavras latinas foram usadas
para estabelecer essa distinção:
Fideiussior - (garantidor) Esta palavra revela o caráter condicional. Nela o fiador se
compromete a pagar por outro, sempre que este não cumpra satisfatoriamente por sua própria
conta. O peso da culpa permanece na parte culpada até ao tempo do pagamento. 221 Alguns
reformados objetam ao uso do conceito de fideiussior por causa do dilema dos conceitos de
eternidade e tempo. Se no conselho da paz "Cristo se converteu no fideiussior, os crentes do VT
não gozaram do perdão dos pecados‖. 222 Em geral os Reformados reconhecem aqui o problema
relacionado "à natureza eterna do pacto da redenção e o caráter temporal da satisfação de Cristo,
mas também argumentam que o fideiussio (garantia) é eternamente efetiva em sua incepção
tanto quanto se entende que os méritos da obra de Cristo e, de fato, a obra de satisfação em si
mesma, descansam sobre o decreto. Naturalmente, o pecador ou o devedor, permanece
responsável por seu pecado ou débito até que o fideiussio tenha sido aplicado a ele no tempo".223
Expromissor - (garantidor) Esta palavra revela o caráter incondicional. Aqui o Fiador
se compromete a pagar incondicionalmente por outro, livrando dessa forma a parte culpada de
sua responsabilidade uma vez por todas. 224 Este termo latino é usado na linguagem dos teólogos
federalistas também como sinônimo de sponsio que dizia respeito a uma promessa solene
entre o Pai e o Filho, onde este último promete ao primeiro, no pacto da redenção, feito na
eternidade, pagar o débito dos pecadores. 225
No pacto da graça elaborado na eternidade o Filho se comprometeu a pagar pelos pecados
de Seu povo, aqueles que o Pai lhe haveria de entregar. Ele tinha que sofrer o castigo necessário
para satisfazer as exigências da lei em lugar deles. Cristo é o Fiador incondicional, visto que os

221 Berkhof, p. 319.


222 Berkhof, p. 320.
223 Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, (Baker: 1986), p. 114, 115.
224 Berkhof, p. 319.
225 Muller, p. 286-87.
159

homens não possuem condição alguma de cumprir qualquer pacto com Deus.

b) Cristo como Cabeça do Pacto

2 Co 5.21- Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para
que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus.

Ao tomar o lugar dos pecadores, Cristo constituiu-se no representante deles (Jo


17.2,6,8,9,19,20). Tomando sobre Si as responsabilidades legais do Seu povo, foi tratado como
pecador em nosso lugar.
Aquilo que Cristo fez como Fiador e Cabeça do Seu povo, eles não mais estão obrigados a
fazer. A obra já está pronta, a recompensa está ganha para os do Seu povo, e os crente, mediante
a Graça, são tornados participantes dos frutos da obra redentora de Jesus Cristo.

4. Este Pacto foi de Obras Para Cristo


O pacto foi chamado de graça para os pecadores em favor de quem Jesus morreu, mas foi
de obras para Cristo, porque ele prometeu fazer exatamente aquilo que Adão não faria no que
chamamos ―pacto das obras‖. A vida eterna viria ao pecador somente através da obediência. Adão
não obedeceu. Por essa razão, ele não possuiu vida eterna e privou seus descendentes dela.
Portanto, Cristo, o segundo Adão, veio ao mundo para cumprir um pacto feito anteriormente com
seu Pai, de obedecendo plenamente, conseguir vida eterna para todos aqueles em favor de quem
obedeceu ativa e passivamente.

5. Este Pacto possuía Requisitos e Promessas

a) Requisitos
A Escritura apresenta o Pai, na economia da salvação, fazendo exigências ao Filho, para
que a redenção dos filhos de Deus pudesse ser concretizada.
(a) Deus o Pai exigiu que Seu Filho se humilhasse, nascendo de uma mulher, tomando a
natureza humana e suas fraquezas, mas sem pecado.
Gl 4.4.5 - "Vindo, porém, a plenitude dos tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de
mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a
adoção de filhos."
Hb 2.14.17 - "Visto, pois, que os filhos têm participação comum de carne e sangue, destes
também ele, igualmente, participou, para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder
da morte, a saber, o diabo.. Por isso mesmo convinha que, em todas as cousas, se tornasse
semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas cousas referentes a
Deus, e para fazer propiciação pelos pecados do povo."
Hb 4.15 - "Porque não temos sumo-sacerdote que não possa compadecer-se de nossas
fraquezas, antes foi ele tentado em todas as cousas, à nossa semelhança, mas sem pecado."
Era absolutamente essencial que Jesus se tornasse um dos membros da raça humana,
para que pudesse provar a morte, por causa dos pecados daqueles por quem iria morrer.
(b) Não somente o Filho teria que tomar a natureza humana, mas também teria que sofrer
a pena do castigo, castigo esse por causa e em favor daqueles que o Pai lhe havia entregue,
garantindo-lhes, assim, a vida eterna (Is 53.4,5,6,10,11,12).
(c) O Filho encarnado, deveria cumprir toda a lei, isto porque o homem pecador seria
incapaz de fazê-lo (Mt 5.17,18; Gl 4.4,5; Lc 24.44).
(d) O Filho encarnado deveria ser obediente até o fim (Jo 8,28, 29; Mt 26.39; 51 40.8; Fp
2.6-8). Se Jesus não houvesse obedecido a lei, cumprindo-a, todos os homens, sem exceção, não
teriam vida eterna. Ao contrário, eles seriam mortos por ela.

b) Promessas
As promessas são equivalentes aos requisitos. Deus, o Pai, prometeu ao Filho tudo o que
160

Ele necessitava para executar o Pacto da Redenção.


(a) O Pai deveria dar ao Filho um corpo para começar a executar a sua obra redentiva (Lc
1.35; Hb 10.5).
(b) O Pai daria ao Filho todo o amparo necessário para a realização da obra da redenção
(Is 49.8; 61.1) e o tornaria vitorioso sobre a morte (5116.8-10, cf At 2.25-28) e sobre o diabo (Hb
2.14).
(c) O Pai daria ao Filho, como recompensa por Sua obra perfeita, o Espírito Santo que iria
dar proteção ao corpo de Cristo, Sua Igreja (Jo 14.26; 15.26; 16.13-14; At 2.33).
(d) O Pai daria ao Filho uma semente numerosa, como recompensa por Sua obra
cumprida. Essa semente é de uma multidão numerosa que ninguém pode contar. Virão pessoas
de todas as terras, povos, línguas e nações (Si 22.27; 72.17; Ap 7.9-10; Mt 8.11).
(e) O Pai daria ao Filho toda a autoridade e poder nos céus e na terra para o governo do
mundo e de Sua igreja (Mt 28.18; Ef 1.20-22; Fp 2.9-11; Hb 2.9; JO 17.5).

6. Este Pacto foi feito em favor do Pecador Eleito


Este pacto tem como objetivo a salvação dos caídos que foram entregues ao Filho. Não
havendo redenção, a escravidão haveria de continuar, e a sentença de morte seria posta em vigor.
A cruz de Jesus é a vitória sobre o pecado, a redenção completa.
Por causa da cruz, os condenados saem livres (1 Co 6.20). Todos os substituídos por
Jesus deixam de ser pessoalmente malditos de Deus (Gl 3.13), porque Cristo levou pessoalmente
a maldição deles sobre Si.
O sangue de Jesus foi derramado para limpar os pecados dos filhos de Deus, as ovelhas
de Deus, aqueles que o Pai tinha entregue a Cristo (Hb 2.12-14, 15-18; Jo 17.2,3,6,8,9,10; Jo
10.11.14,15,16,27,28).

O PACTO DA GRAÇA REALIZADO NA HISTÓRIA


O Pacto da redenção foi estabelecido na eternidade, mas tão logo houve queda, Deus já
começou a anunciar redenção que, tempos depois, foi sabida ser nascida numa relação pactual
entre Deus e o homem, um anúncio histórico do que havia sido celebrado na eternidade entre o
Pai e o Filho.
Por várias vezes Deus anuncia seu pacto no decorrer da história. Deus sempre tomou a
iniciativa do pacto e convidou o homem a entrar nesse pacto com Ele.

1. A Base para a Intervenção Graciosa de Deus


Está no anúncio da redenção prometido logo após a queda do Éden, em Gn 3.15. Se Deus
fosse apenas agir com justiça, Ele haveria de deixar o homem no estado de miséria e perdição,
mas Ele dignou-se anunciar a redenção tão logo houve queda.
O anúncio da redenção deu-se no que chamamos de proto-evangelho, conforme
registro de Gn 3.15. Ali o Redentor é anunciado de maneira inequívoca. O primeiro Adão não fez
o que deveria fazer e lançou o homem na miséria. O segundo Adão agora é prometido, e Ele é
anunciado para revelar o plano que Deus possuía de glorificar-Se a Si mesmo na redenção dos
pecadores. Estas palavras de Gênesis são o evangelho como revelado no Paraíso.
A base para o estabelecimento do pacto é o anúncio soberano de Deus que resolve intervir
no assunto da miséria humana. E Ele resolve fazer isso de uma maneira graciosa e
misericordiosa.
Esta promessa de Gn 3.15 é uma promessa incondicional envolvendo a vitória da
Semente da mulher sobre a semente 4.a serpente. E uma promessa que enfoca a constante lute
entre as duas sementes, mas que afirma categoricamente a vitória da Vida sobre a morte. Deus,
portanto, em graça anuncia a salvação incondicional daqueles que estão sob a proteção da
semente da mulher.
A promessa graciosa, portanto,. está presente em Gn 3.15, mas a apresentação pactual
da graça vem posteriormente, mas o fundamento do pacto da graça está na soberania de Deus
161

que anuncia a redenção logo imediatamente após a queda.

2. A Intervenção Divina é Soberana e Incondicional


Deus diz: "Eu porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu
descendente. Este te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar"(Gn 3.15).
Este não é um simples anúncio de inimizade entre a serpente e a mulher, mas produto da
imposição divina sobre as criaturas caídas. A palavra hebraica para ―inimizade‖ (hfby") –
‗ebhah) só é aplicável a seres racionais, não a animais. É a inimizade entre seres morais que são
livres agentes. Deus não instiga ou simplesmente promova a inimizade, mas decreta a existência
dela, fazendo com que os laços entre as duas sementes sejam quebrados.
Após a imposição da penalidade sobre a serpente e a mulher, Deus anuncia a vitória da
semente da mulher sobre a semente da serpente. E uma promessa divina que é imposta
soberanamente, onde Deus resgata e traz o homem novamente em misericórdia e graça.
Esta promessa graciosa de Deus é incondicional. Deus simplesmente impõe todas as
condições para o cumprimento dessa promessa. Toda a história da redenção está amarrada a
esta promessa e todos os eventos redentivos mostram como Deus interveio sobrenatural e
soberanamente na vida dos homens.
Aliás, Deus quase que sempre interviu incondicionalmente em matéria pactual. Foi assim
que Ele fez com Noé, Abraão, Jacó, Davi, etc.

AS PARTES CONTRATANTES
No aspecto eterno do pacto da graça o pacto é entre o Pai e o Filho, e na revelação histórica
dele, Deus entra em acordo com o pecador eleito em Cristo Jesus.
Definição: ―O pacto da graça é um acordo entre Deus e o pecador eleito; de sua parte,
Deus declara sua livre boa-vontade a respeito da salvação eterna, e todas as cousas relativas a
ela, que livremente são dadas aos que estão no pacto através de Cristo, o Mediador; por sua vez,
o homem mostra sua boa-vontade através de uma fé sincera.‖226

AS PROMESSAS DO PACTO
AS CARACTERÍSTICAS DO PACTO
É um Pacto Gracioso
Com Origem Trinitária
Tem Conseqüências Eternas
Destinado a um Povo Especial
É o mesmo em Ambas as Dispensações

O PAPEL DE CRISTO NA REALIZAÇÃO HISTÓRICA DO PACTO

ASPECTOS DO PACTO
Relação Legal
Relação de Comunhão de Vida

AS VÁRIAS DISPENSAÇÕES DO PACTO DA GRAÇA

226 Herman Witsius, The Economy of the Covenants between God and Man, vol. 1, 164.
162

1. PACTO DE DEUS COM NOÉ


Textos para estudo - Gn 6.17-22; 8.20-22; 9.1-7; 9.8-17
Partes Contratantes - Deus fez este pacto com um homem "justo" (Gn 6.9), Noé, e com os
seus descendentes (Gn 9.9) envolvendo todos os seres vivos sobre a terra, isto é, todos os seres
debaixo da jurisdição do homem (Gn 9.10, 12, 15, 16, 17).
Tipo - Um Pacto Incondicional, contendo uma promessa incondicional dizendo que a
terra e os elementos vivos nunca mais haveriam de ser destruídos por catástrofe da natureza (Gn
9.9-10). Este pacto contém um compromisso divino claro de executar suas promessas, sem que
houvesse qualquer envolvimento de obrigação da parte da criatura humana. O cumprimento
dessas promessas independe da atitude dos homens para com Deus, mas somente do bom
prazer de Deus de realizar os seus propósito de preservação da sua criação. Visto que este pacto
abarca todas as criaturas vivas, tanto homens como animais, e estes últimos não possuem
qualquer condição de obediência ou obrigação para com Deus, pois não são agentes racionais,
Deus decidiu sozinho cumprir todas as obrigações que impôs sobre Si próprio, preservando a
terra, nunca mais a destruindo com água.
A incondicionalidade deste pacto está evidente do fato de não haver nenhum
mandamento para que o homem obedeça para que as promessas de Deus sejam cumpridas. Não
nenhuma sugestão de que as bênçãos prometidas sejam canceladas pela infidelidade do homem.
Não há como o homem possa quebrar esse pacto, pois ele é incondicional em suas promessas.
A incondicionalidade desse pacto está no fato dele ser um pacto eminentemente
monergistico. O selo mostrado no céu, o arco, é uma atestação de que Deus estabelece todas as
regras e Ele mesmo as cumpre. Somente Deus tem o controle sobre os elementos da natureza.
Não há nada que o homem possa fazer para evitar uma catástrofe. Somente Deus pode
estabelecer todas as promessas porque só Ele tem as condições de cumpri-las.
Um Pacto Eterno - O pacto é eterno no sentido popular do termo, que tem duração sem
fim. Ela continua através de todas as gerações subsequentes. O texto de Gn 9.9 diz que o pacto
seria com Noé e com a sua descendência após ele, "para gerações perpétuas" (9.12). e Gn 9.16
acrescenta: "O arco estará nas nuvens; vê-lo-ei e me lembrarei da aliança eterna entre Deus e
todos os seres viventes de toda carne que há sobre a terra." A perpetuidade ou eternidade deste
pacto existe em razão do fato de Deus ter estabelecido o pacto, de seu aspecto monergistico e
unilateral. Porque tudo está nas mãos de Deus o pacto é eterno. A eternidade dele tem a ver
também com a incondicionalidade dele.
Um Pacto Amoroso - Este pacto revela a preocupação amorosa de Deus com a
preservação da Sua criação. Enquanto o mundo enfrenta o justo juízo de Deus, aqueles em quem
Deus pôs coração recebem o carinho especial de Deus, a promessa de um novo começo, um
estabelecimento novo de todas as coisas. Em Gn 3.15 Deus havia dito que da semente da mulher
haveria de nascer Aquele que esmagaria a cabeça da serpente. Foi através da preservação da raça
no pacto com Noé que aquela promessa foi possível. A destruição da descendência da serpente,
isto é, a humanidade apóstata, foi concomitante com a salvação de uma família e da preservação
dos representantes de cada espécie de animal, para o beneficio da própria nova humanidade que
haveria de surgir da família de Noé. Deus castigou a sua criação, mas não a destruiu por
completo. Deixou semente para um novo começo. A continuação da sua criação está no fato de
que a terra emerge novamente das águas do dilúvio, enquanto que a arca leva consigo a salvo a
raça humana representativa e a representação da vida animal. Não foi uma aniquilação da raça,
mas uma continuação, um novo começo. Observe-se também que a semente do pecado não foi
extirpada. A arca também carregou consigo filhos de Noé que vieram a se rebelar com Deus
posteriormente, na sua descendência. Cada pacto estabelecido por Deus é o estabelecimento de
um novo começo de Deus, para a limpeza da raça. Até que Deus complete a salvação do pecador,
o elemento de pecado sempre estará presente no meio da raça preservada por Deus.
A característica de um novo começo deste pacto fica evidenciada nos seguintes fatos:
a) Ordenanças com respeito á Propagação da Vida.
Visto que a raça humana havia sido reduzida à família de Noé, então podemos ouvir uma
repetição de algumas ordenanças originais da criação (veja-se Gn 9.1,7 cf Gn 1.28).
163

b) Ordenanças com respeito à Sustentação da Vida.


Ler Gn 1.29-30 e veja similaridade com Gn 9.3-4. Todas as coisas relacionadas à
sustentação da vida estão também relacionadas aos animais, porque o homem depende deles
para a manutenção de sua própria vida.
c) Ordenanças com respeito à Proteção da Vida.
(a) Com relação aos Animais
Ler Gn 9.2-5. Gerhaardus Vos disse que

"originalmente houve a supremacia do homem (Gn 1.28-28), mas, como


instituído na criação, isto foi da natureza de uma submissão voluntária. Isto pode
ser visto de uma perspectiva escatológica dada dela pelos profetas, sobre os
princípios de um retorno do paraíso ao fim (Is 11.6-8). No estado de pecado o
resultado é obtido pelo temor e receio instilado aos animais. E Deus promete
vingar o homem onde os animais carnívoros destroem a vida dele: "o seu sangue
das tuas mãos o requererei . Não é possível dizer com certeza como essa lei opera;
tem sido sugerido que toda espécie de animais carnívoros está destinada à
extinção definitiva. Intercalada entre estas referências a animais hostís, está a
permissão da comida animal. A permissão é assim qualificada: "Carne, porém,
com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis" (Gn 9.4). Isto sendo
combinado com a promessa de vingança dos animais revela o ponto de vista. Visto
que os animais não existem para devorar o homem, o homem também não existe
para comer os animais como as bestas selvagens devoram suas presas vivas. O
homem deve mostrar reverência devida pela vida como algo sagrado, da qual
somente Deus pode dispor, e para o uso daquilo que o homem é dependente sob a
permissão de Deus. A lei levítica repete esta proibição, mas acrescenta como uma
outra base o fato de que o sangue vem para o altar, que, naturalmente, para o VI'
torna a proibição do comer do sangue absoluta. Através da falha em distinguir
entre o motivo simples e o complexo, esta prática de absoluta abstenção foi
continuada na igreja por muitos séculos. O assim-chamado decreto dos apóstolos
(At 15.20) tornou a restrição obrigatória para os cristãos gentios, todavia, não
porque a coisa era errada em si mesma, mas pela razão de que nenhuma ofensa
devia vir sobre os irmãos judeus-cristãos."227

(b) Com relação aos Humanos


Ler Gn 9.5b-6. O ponto principal é que Deus providencia meios para a proteção da vida do
homem no mundo pecaminoso, em nome da propagação da raça e em nome da semente da
mulher e da vitória da semente da mulher sobre a semente da serpente, e para o fim de contribuir
para a boa ordem e regularidade no mundo para o cumprimento de propósitos redentivos.
Esta passagem tem sido entendida pela maioria dos teólogos Reformados como
relacionada à instituição do governo civil e como sendo básica também para o caso da pena
capital (ver também Rm 13.1-5 e 12.19; Dt 32,35). Compare-se também com a besta da terra em
Ap 13 que descreve o governo apóstata em suas ações de perseguição e de blasfêmia.
(ver o comentário de Vos p.65 sobre este assunto)

Sua Relação com os outros Pactos


"O pacto com Noé enfatiza a interrelação próxima com os pactos da criação e da
redenção."228 É o pacto que estabelece a ligação entre o que aconteceu na queda e os propósitos
redentivos de Deus. Após a queda todas as coisas foram malditas, se degeneraram a ponto de
Deus destruir o homem e a mundo com água, o que realmente aconteceu.

227 Gehaardus Vos, Biblical Theology, p. 64 ff.


228 O. Palmer Robertson, The Christ of the Covenants, (Presbyterian & Reformed, 1980), p. 110.
164

Neste pacto Deus resolve preservar o homem e as espécies (Gn 6.18-20) para estabelecer
um novo começo. Por esta razão, Noé e sua família são exortados a fazer o mesmo que foi
ordenado aos nossos primeiros pais e às espécies: "Abençoou Deus a Noé e a seus filhos, e lhes
disse: Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra" (Gn 9.1,7).
Aquilo que foi prometido a Adão no Éden, isto é, a capacidade de dominar sobre os
animais (Gn 1.28), tem o paralelo no Pacto com Noé. Robertson diz que

"o juízo de Deus sobre o pecado trouxe uma desarmonia no papel de


dominador do homem sobre a criação. Como uma conseqüência, e temor e o terror
do homem desapareceu dos animais, dos pássaros e dos peixes da criação (Gn
9.2). O domínio do homem será exercido em um contexto anatural de terror e
medo".229

Mas ainda assim o homem continuaria a ter o domínio sobre os animais, não somente
porque isto é parte da imagem de Deus nele, mas como produto também de uma relação pactual.
Se, por um lado, o pacto com Noé estabelece a ligação com o pacto da criação, por outro,
ele também nos conecta aos pactos redentivos subsequentes, quando nos aponta para a
libertação que Deus nos dá da morte e da destruição. A redenção para a qual este pacto aponta é
muito mais ampla do que simplesmente a salvação da alma do pecador. Ele aponta para a
redenção do cosmos, o que inclue o homem.
O pacto com Noé é uma antecipação da redenção futura e final do povo de Deus. O profeta
Oséias, quando fala da redenção final do povo, usa praticamente as mesmas idéias contidas
basicamente no pacto de Deus com Noé (cf Os 2.18 com Gn 6.20; 8.17; 9.9,10).
O pacto com Noé, portanto, é o elo de ligação entre a criação caída e o indício da criação
redimida.

As Promessas do Pacto com Noé


a) A promessa de não mais amaldiçoar a terra por causa do homem (Gn 8.21; 9.11).
Após o dilúvio Noé prestou culto a Deus com oferta de sacrifícios e Deus, como parte de
sua promessa pactual, decide não mais amaldiçoar a natureza por causa do homem (Gn
8.20-21). Ele já havia amaldiçoado a terra duas vezes: a primeira no Éden, após a queda, e agora
com a destruição da natureza pelo dilúvio.
b) A promessa da preservação da regularidade das estações (Gn 8.22).
Há um paralelo desta promessa em Jr 33.20-25. Gerhardus Vos sugere que seja possível
que haja "mais do que uma introdução comparativa à idéia de berith; uma referência real ao
episódio do tempo de Noé é pretendida aqui."230 Outro paralelo está em Is 54.9-10. Vos observa
ainda que

"o pacto com Noé permanece em sua infalibilidade como um tipo de uma
perpetuidade ainda maior da promessa do juramento de redenção feito por Deus.
A promessa a Noé tem seu limite na crise escatológica que trará o céu e a terra a
um fim, mas embora naquela catástrofe final as montanhas fujam e os montes
sejam removidos, todavia ainda assim a amabilidade de Deus nunca se apartaria
de Israel, nem o pacto da sua paz seria removido."231

A cessação das estações só acontecerá com a catástrofe final narrada em 2 Pe 3.10, onde
todos os elementos serão destruídos, mas enquanto esta terra durar, isto é, enquanto ela estiver
nas condições em que está agora, as estações continuarão, como produto da fidelidade de Deus
para com Sua promessa.

229 Robertson, p. 110.


230 Vos, Biblical Tehology, p. 66.
231 Vos, p. 66.
165

c) A promessa de Salvação de Noé e de sua Família (2 Pe 2.5).


Essa salvação da família de Noé é típica da salvação da destruição do povo de Deus 1 Pe
3.20-21). No meio da escuridão e corrupção dos homens, Deus resolveu mostrar sua graça a um
homem e sua família. A Escritura diz que Noé "achou graça diante do Senhor" (Gn 6.8). O fato de
Noé ser um homem "justo e íntegro entre os seus contemporâneos‖ (v.9) é produto da graça de
Deus sobre ele. Se ele não houvesse sido agraciado por Deus, por certo, estaria nos mesmos
níveis de corrupção que seus contemporâneos. Se ele "andava com Deus" (v.9), diferentemente
dos outros homens do seu tempo, é porque ele "encontrou graça da parte de Deus". Não há outra
explicação para tal comportamento. Deus interviu graciosamente com Noé e sua família. Quando
todos os homens encontraram o juízo de Deus por causa de seus pecados (v.5-7), Noé encontrou
o favor do Senhor. Não há base para se dizer que o pacto de Deus com Noé foi por causa da justiça
de Noé, mas produto unicamente da bondade de Deus.
As Características do Pacto com Noé
(ver Palmer Robertson p.1 10-ss)

2. PACTO DE DEUS COM ABRAÃO


Textos para estudo - Gn 15.9-21; 17

Partes Contratantes
Deus fez este pacto com um homem "justo", porque a Escritura diz que "Abrão creu em
Deus e isto lhe foi imputado como justiça" (Gn 15.6), e também com a sua descendência (v.18).
Todavia, a menção direta de um pacto é feita em Gn 17.1-8. Foi um pacto concebido,
nascido, determinado, estabelecido, confirmado e dispensado pelo próprio Deus, como todos os
outros pactos. A Abraão coube a tarefa de ser obediente em todas as cousas.
Um Pacto Incondicional
Este pacto mostra uma unilateridade incrível, pois Deus simplesmente chama Abraão e
lhe dá um ordem para sair da terra e ir para uma outra terra, e cumprir todas as suas promessas
nele. Deus não sugere que se Abrão obedecesse, Deus cumpriria tudo o que havia prometido,
sem qualquer condição preenchida da parte de Abraão (Gn 17.1-8).
Um Pacto Amoroso
Um Pacto Eterno

A Eternidade do Pacto Afirmada


O capítulo 17 de Gênesis fala da eternidade desse pacto. Deus não nenhuma dúvida com
respeito à duração desse pacto. Ele repete várias vezes a mesma expressão no capítulo 17 –
―Aliança Perpétua":
- quando fala do pacto em si mesmo, ele diz: "Estabelecerei a minha aliança entre mim e
ti e a tua descendência no decurso das suas gerações, aliança perpétua..." (Gn 17.7);
- quando fala da posse da terra, Deus diz: "Dar-te-ei e à tua descendência a terra das tuas
peregrinações, toda a terra de Canaã, em possessão perpétua..." (Gn 17.8);
- quando fala da circuncisão, que é o selo do pacto, Deus diz: "Com efeito, será
circuncidado o nascido em tua casa, e o comprado por teu dinheiro; a minha aliança estará na
vossa carne e será aliança perpétua" (Gn 17.13);
- quando fala da descendência prometida a Abraão, Deus diz: "De fato, Sara, tua mulher, te dará
um filho, e lhe chamarás Isaque; estabelecerei com ele a minha aliança, aliança perpétua
para a sua descendência" (Gn 17.19).
A idéia de "eternidade" ou "perpetuidade" deste pacto não significa apenas um longo
tempo. A idéia da eternidade deste pacto significa que ele nunca mais será desfeito. A eternidade
166

do pacto está vinculado às promessas de caráter perene, como veremos adiante.

A Eternidade do Pacto Demonstrada


A eternidade desse pacto é vista no fato dele ter sido iniciado formalmente com Abraão, é
renovado seu filho Isaque, com seu neto Jacó, relembrado no período mosaico (Ex 2.24-25;
3.16-17). Ele não mudou com o estabelecimento do pacto sinaítico; No tempo dos Juizes o tema
do pacto está presente (Jz 2.1, 20); ele é repetido no tempo de Davi, que nos seus cânticos tem
sempre em mente (1 Cr 16.14-18 sgts; 2 Sm 23.5; 2 Cr 13.11); Salomão celebra a fidelidade do
pacto abraâmico (1 Rs 8.23-25 sgts); o Rei Joacaz, em virtude do pacto, recebe a misericórdia de
Deus (2 Rs 13.22,23); por boca de Isaías, Deus recorda seu pacto e promessas (Is 51.1 sgts); as
intercessões de Jeremias e Daniel estão baseadas no pacto com Abraão (Jr 14.20-21 e Dn 9.4
sgts), e através de todo o Antigo Testamento.
Os ecos desse pacto atravessam o NT: Maria vê no nascimento do Filho um selo da
fidelidade de Deus e Suas promessas, e se regozija exultante no cumprimento do pacto feita com
Abraão (Lc 1.50-55); Zacarias, depois do nascimento de João Batista, vê a realização do pacto,
sempre presente e eficaz (Lc 1.72-75) Na continuação do cântico percebemos que Zacarias se
refere a Jesus como Aquele que seria o redentor dos pecados" (v.77). Estas exclamações são
justas porque Cristo havia sido esperado e anunciado como aquele que deveria realizar o pacto
com o povo, sendo Mediador dele (Is 49.8-9); Jesus seria "o Anjo do pacto", o esperado pela fé (Ml
3.1). Após cumpridas as promessas, é proclamado Mediador do Pacto (Hb 8.6 e 9.15),
tornando-se fiador dele (Hb 7.22). Por causa do pacto Jesus é ressuscitado (At 13.32-33). A
teologia do pacto está vivamente presente no pensamento dos discípulos e dos apóstolos. O pacto
é o tema central dos primeiros discursos de Pedro depois do Pentecostes. O que os discípulos
invocam nesses discursos são as promessas do pacto e o seu cumprimento At 2.14-41; At
3.12-25) Do começo ao fim, esses sermões são exposições do pacto feito com os antepassados;
Estevão também se serviu do tema do pacto como tema do seu precioso discurso (At 7.2-8); Paulo
fez a sua defesa perante o rei Agripa usando as promessas do pacto (At 26.6-7); ele afirma ainda
a perenidade do pacto e a atualidade de suas promessas (01 3.17-18). Segundo Paulo, os cristãos
são filhos nascidos segundo a promessa (01 4.21, 23); são os filhos de Abrão (Gl 3.7); os que
crêem hoje são benditos com o crente Abraão (01 3.8-9; 16-22); o crente é justificado pela fé, e
com Abraão passa a tomar parte do mesmo pacto e recebe as mesmas promessas (Rm 4.); a
adoção, a glória, as alianças, a legislação, o culto, e as promessas pertencem aos concidadãos de
Paulo, por causa do pacto (Rm 9.3-5); eles continuam sendo amados por Deus por causa do pacto
com os patriarcas (Rm 11.28-29); o autor da epístola aos Hebreus canda a imutabilidade do
pacto que foi jurado por Deus (Hb 6.13-18). Quando no final dos tempos, a nova Jerusalém
descer do céu, a presença de Deus e o tabernáculo de Deus serão estabelecidos entre os homens,
cumprindo assim a promessa do pacto: "Eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo". E o
último éco do pacto ressoa em Ap 21.3.

As Promessas desse Pacto


Gn 12.1-3 é um texto muito importante para entendermos o pacto com Abraão, embora o
termo hebraico para pacto - berith - só venha aparecer no capitulo 15. Contudo, as referências ao
pacto em Gn 15 e 17 lembram exatamente as promessas feitas em Gn 12. Por essa razão, o
entendimento de Gn 12 é muito importante para o estudo do pacto com Abraão.

Promessas Gerais
Deus fez três promessas básicas nesse pacto, registradas em Gn 12.1-3: a terra
prometida, o filho através de quem viria a semente da mulher; e a promessa dele ser uma bênção
para todas as nações.
1. A Terra Prometida - Deus mandou Abraão sair de sua terra e para ir para uma terra que
Ele haveria de lhe dar (Gn 12.1). Essa ordem foi dada após a morte de seu pai (Gn 11.31; cf At
7.1-5). Quando ele alcança a terra de Siquém, nos carvalhais de Moré, o Senhor lhe aparece outra
vez e lhe diz: "Darei à tua descendência esta terra"(12.7). Devemos nos lembrar que os canaanitas
habitavam aquela terra (12.6), e tinham que ser retirados dali para que a descendência física de
167

Abraão ali habitasse (Gn 15.18-21).


Abraão propriamente dito não se apossou daquela terra, pois por causa da fome ali
reinante, desceu para o Egito para ali se abastecer (Gn 12.10). E curioso que o texto de At 7
afirma que Abraão mesmo não tomou posse de nenhum pé da terra que o Senhor havia
prometido (At 7.5).
Observe-se que mais tarde, quando voltou do Egito, depois da contenda com Ló, o Senhor
lhe relembra a promessa daquele grande pedaço de terra (Gn 13.14-15).
Observe-se que a promessa da terra é parte do pacto (Gn 15.18).
2.0 Filho Prometido - Deus havia prometido fazer dele uma grande nação (Gn 12.2), e sem
ter filho algum Deus lhe promete uma descendência extremamente numerosa (Gn 13.16; 15.1-5).
As preocupações humanas da esterilidade fizeram com que Sara humilhasse a escrava
Hagar (Gn 16.1-6). Abraão queria ver a sua descendência. Nasce Ismael (16.16-16), mas Deus
mostrou a Abraão que a sua descendência viria de Sara, mesmo Abraão tendo 100 anos e Sara 90
(Gn 17.1, 17), e que Isaque seria o filho da promessa (cf 17.2, 4, 7-8, 19-21).
3. A Bênção Prometida para todas as Famílias da Terra - Esta promessa encontra-se em
Gn 12.2b-3 -
Esta promessa fala-nos alguma coisa da universalidade das bênçãos de Deus. Todas
as famílias da terra haveriam de ser abençoadas em Abraão. Deus havia escolhido uma família
que haveria de ser o canal de bênçãos para todas as famílias da terra. Gerhaardus Vos diz que "a
eleição de Abraão, assim como o desenvolvimento posterior da coisas de Israel, foi significando
um meio particularista para um fim universalístico".232
O eco desta promessa é repetido várias vezes a Abraão (Gn 15.18; 17.8; 18.17-19;
22.15-18) relembrada a Isaque (26.2-5) e a Jacó (28.10-15). O eco forte desta promessa atravessa
o VT e chega ao NT (At 3.25-26; Gl 3.8-9).
É importante observar que estas três promessas: terra, descendência e bênção sobre toda
a terra, estão intimamente ligadas, e têm seu foco principal em Cristo, e são o instrumento para
que a promessa mãe de Gn 3.15 seja plenamente cumprida.

Promessas Específicas
Até esse ponto de Gn 12 não há ainda o que formalmente chamamos "pacto". Somente
mais tarde, com o surgimento de algumas incertezas da parte de Abraão, é que Deus confirmou
as promessas com um juramento. A palavra "pacto" aparece pela primeira vez com Abraão em
15.18.
As três promessas, que chamo de promessas específicas do pacto da graça, estão
claramente colocadas por Deus ao povo de Israel, mas que têm o seu gérmen nas promessas
feitas a Abraão, muitos anos antes.

Lv 26.12: ―Andarei entre vós, e serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo.‖

a) Promessa de Deus estar presente no meio do povo

Lv 26.12 – ―Eu andarei no meio de vós‖

É uma promessa de restauração


Não podemos nos esquecer de que, quando Deus criou Adão, Ele andava com o homem no
jardim, fazendo-lhe companhia (Gn 3.8) Havia perfeita comunhão entre o Criador e a criatura.
Eles andavam juntos porque Deus estava presente no jardim. Quando o pacto das obras foi
quebrado no jardim do Éden, o homem ficou privado da companhia divina. Adão foi expulso da

232 Ver Vos pp. 89-92.


168

presença de Deus, perdendo todos os privilégios da sua companhia.


O pacto da graça, formalizado historicamente com Abraão, traz de volta essa promessa de
o povo ter novamente a presença de Deus no meio dele. Deus traz de volta a sua presença perdida
no Éden por causa do pecado. O pacto da graça feito com Abraão é uma iniciativa unicamente
divina, que inclui a retirada da barreira que separava Deus do homem.

É uma promessa de comunhão


―Eu andarei no meio de vós‖ - E altamente consoladora essa promessa, porque devolve ao
homem parcialmente a sua condição original de gozo da presença de Deus. A comunhão com
Deus sempre foi o anelo do seu povo. Davi expressa essa sede e a necessidade dela dizendo:
"Quem mais tenho eu no céu Não há outro em quem eu me compraz na terra. Ainda que a minha
carne e o meu coração desfalecem, Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança para
sempre" (Sl 73.25-26). E esse o tipo de anelo que todos temos na alma: a sede da comunhão
plenamente restaurada com Deus.
Deus promete ao seu povo essa bênção maravilhosa e a cumpre plenamente no período do
NT. Por essa razão, João nos diz que «a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus
Cristo" (1 Jo 1.3b). A comunhão perdida no Éden é restaurada através da vida e obra de Jesus
Cristo em favor do povo de Deus.

b) Promessa de Yehovah ser o Deus da Descendência de Abraão

Lv 26.12 - "Eu serei o vosso Deus..."

Essa promessa ao povo de Israel no deserto é um eco da promessa de Deus feita a Abraão,
séculos antes:

Em Gn 17.7-8 - "Estabelecerei a minha aliança entre mim e ti e a tua


descendência no decurso das suas gerações, aliança perpétua, para ser o teu
Deus, e da tua descendência. Dar-te-ei e à tua descendência, a terra das tuas
peregrinações, toda a terra de Canaã, em possessão perpétua, e serei o seu Deus."

Deus faz uma promessa de natureza espiritual bastante especifica: Deus promete ser
para sempre o Deus de Abraão e da descendência dele.

c) Promessa de a Descendência de Abraão ser Povo de Yehovah

Lv 26.12 - "...E vós sereis o meu povo."

Deus não somente prometeu que seria o Deus da descendência de Abraão, mas que
também a sua descendência seria povo dEle. Em outras palavras, Deus está dizendo: ―Vocês são
meus‖. O povo no meio do qual Yehovah anda, e de quem é o único Deus, é também propriedade
do Senhor. Moisés disse ao povo no meio do deserto:
Dt 14.1a - "Filhos, vós sois do Senhor vosso Deus". Isto significa que eles não mais
pertenciam a si mesmos, e que não poderiam fazer nada de acordo com as suas próprias idéias,
mas sempre presos agora às ordenanças do Senhor. Eles não mais eram donos de si mesmos,
entregues às suas próprias paixões, como os outros eram, mas eles deveriam seguir os preceitos
dAquele a quem pertenciam.
Deus lhes deu as proibições para fazer as cousas que os outros povos faziam. Agora os
israelitas eram de Deus, e teriam que cumprir somente as cousas próprias dAquele que os havia
chamado. O povo do pacto, que tinha a comunhão com Yehovah, não poderia quebrar os
mandamentos já previamente estabelecidos.
Dt 14.2 diz: "Porque sois povo santo ao Senhor vosso Deus, e o Senhor vos
169

escolheu de todos os povos que há sobre a face da terra, para Lhe serdes o Seu povo
próprio."
O Povo de Yehovah é um povo Santo
Isto significa que Deus havia separado eletivamente de todos os povos um povo. Esse povo
é santo no sentido de ser para o serviço exclusivo de Deus.

O Povo de Yehovah é um povo Peculiar


Um povo peculiar significa que Israel era posse do Senhor como nenhum outro povo era.
Esse povo foi comprado com a vida de nosso Redentor, para que pudesse ser essa propriedade
particular do Senhor.
Esta é uma promessa maravilhosa, da qual Pedro trata de maneira extraordinária, após
entender a universalidade da obra redentora de Cristo Jesus (1 Pe 2.8-9). A idéia de Pedro será
estendida posteriormente.

O Sacramento do Pacto com Abraão

Gn 17.9-14; 22-27
O Senhor Deus chama a circuncisão de "sinal do pacto" (Gn 17.11). Portanto, o
sacramento da circuncisão pressupõe a existência de um pacto. Não é pela administração do
sacramento que alguém entra no pacto, mas a administração pressupõe que alguém está no
pacto. Quando Deus ordenou a circuncisão, o pacto já estava estabelecido. Portanto, a
administração da circuncisão é posterior ao estabelecimento do pacto.
Isso significa que Abraão tinha que "guardar o pacto" (Gn 17.9-10), e uma das exigências
de Deus era que a descendência de Abraão fosse circuncidada. A circuncisão era uma ordem
para aqueles que estavam debaixo do pacto (Gn 17.12-13). Todos os crentes e toda descendência
do sexo masculino obrigatoriamente tinham que ser circuncidados. A obrigatoriedade desse sinal
era tal que, se houvesse alguém na casa que não fosse circuncidado, deveria ser eliminado do
meio do povo, porque a omissão da circuncisão era considerada por Deus como "quebra do pacto"
(Gn 17.14).
A circuncisão deveria ser administrada aos crentes, isto é, aos adultos que chegassem ao
conhecimento de Deus, que é o caso de Abraão (Rm 4.10-11; Gn 17.24) e aos infantes do sexo
masculino, ao oitavo dia (Gn 17.12).

3. O PACTO SINAÍTICO
Este pacto é uma continuação do pacto feito com Abraão, embora com conotações
bastante diferentes. Ele é uma espécie de adendo ao pacto anterior, embora todas as promessas
dele sejam as mesmas. O pacto sinaítico foi o pacto abraâmico adaptado à existência da nação do
Israel nacional que agora surgia. O pacto sinaítico permanece até o final do Velho Testamento,
quando o novo pacto é introduzido pelo derramamento do sangue de Jesus Cristo. E esse pacto
que o escritor aos hebreus chama de ―Velha Aliança‖, em contraste com a "Nova Aliança"
estabelecida em Cristo (ver Hb 8). O velho pacto nunca deve ser entendido como o pacto
abraâmico, mas o pacto estabelecido no Sinai.

Partes Contratantes
Um pacto feito entre Deus e Israel como descendentes de Abraão, que foram libertos do
cativeiro do poder do Egito.
No Sinai Deus estabeleceu o seu pacto com os descendentes de Abraão, agora em número
muito maior.
170

O Estabelecimento do Pacto Sinaítico


O estabelecimento do pacto com o povo de Israel foi nas encostas do monte Horebe, na
região do Sinai, três meses decorridos desde a saída do Egito (Ex 19.1-2). Moisés sobe ao monte
e o Senhor lhe lembra como tirou o povo do Egito e o conduziu até ali com mão poderosa.
Ex 19.5-6 – ―Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz, e guardardes a minha
aliança, então sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos: porque toda a terra
é minha; vós me sereis reino de sacerdotes e nação…‖

Tipo - Um Pacto Condicional


Diferentemente da conotação incondicional do pacto estabelecido com Abraão, o pacto
sinaítico foi de natureza condicional. Era um tipo de pacto como os que aconteciam entre o
Suzerano e o vassalo, nos reinos antigos. Ele continha promessas condicionais de Deus de ser o
Deus de Israel: Israel tinha que ser totalmente consagrado ao Senhor, dedicando-se totalmente a
Ele, sem qualquer tipo de tendência para outros deuses; Israel tinha que viver debaixo das
prescrições divinas para que servisse aos propósitos divinos na história.
Diferentemente do pacto com Abraão (que foi incondicional), Deus exigiu da nação
israelita uma plena obediência às suas prescrições para que todas as promessas do pacto fossem
recebidas pelo povo. E verdade que no estabelecimento do pacto com Abraão, Isaque e Jacó, Deus
também exigiu uma obediência pactual pessoal da parte deles, como a observância da
circuncisão, por exemplo. Mas da nação israelita Deus exigiu a obediência, para que se
apropriassem das promessas do pacto:

Ex 19.5-6 – ―Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz, e


guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade peculiar
dentre todos os povos: porque toda a terra é minha; vós me sereis reino de
sacerdotes e nação santa...‖

Os israelitas só seriam considerados uma nação santa e povo peculiar se guardassem a


aliança. Moisés então lhes dá todas as palavras do pacto, que o Senhor lhe havia ordenado, para
que fossem seguidas (v.7). Em seguida, o povo respondeu afirmativamente que responderia aos
apelos de Deus. O v.8 registra: "Então, o povo respondeu à uma: "Tudo o que o Senhor falou,
faremos" (cf Ex 24.3, 7-8).
Mas o povo freqüentemente quebrava o pacto condicional. Veja como Deus trata desse
pacto condicional, que exige obediência:

O Pacto é confirmado quando há a obediência ao Senhor


Lv 26.3,9 – ―Se andardes nos meus estatutos, guardardes os meus mandamentos, e os
cumprirdes (seguem-se as bênçãos da obediência - v.4-8; 1O-13)...Para vós outros olharei, e vos
farei fecundos e vos multiplicarei, e confirmarei a minha aliança convosco.‖

O Pacto é quebrado quando há a desobediência ao Senhor


Lv 26.14-15 – ―Mas se não me ouvirdes, e não cumprirdes todos estes mandamentos; se
rejeitares os meus estatutos, e a vossa alma se aborrecer dos meus juízos ao ponto de não
cumprir todos os meus mandamentos, e violardes a minha aliança, então eu vos farei isto:
(seguem-se todas as maldições do pacto v. 16-24).
O Senhor mostra-se vingador para com os violadores do pacto (v.25), isto é, contra
aqueles que ―andam contrariamente ao Senhor‖ (v.27,40).

O Pacto é Renovado quando há a volta sincera para o Senhor


Contudo, há a renovação do pacto quando existe o arrependimento sincero do povo
171

(v.40-41), porque Deus se lembra da aliança feita com os patriarcas (Abraão, Isaque e Jacó), que
é uma aliança eterna (v.42). Deus renova essa aliança, por amor ao povo e por
ser fiel às suas promessas antigas (v.45).
Se um israelita guardasse os preceitos do pacto isso significa que ele aceitava todas as
estipulações do pacto, que estava no pacto, mas sobretudo que ele haveria de desfrutar as
bênçãos que o pacto prescrevia. Inversamente, se um israelita quebrasse o pacto, ele estaria
sujeito às maldições do pacto.
O que precisa ser enfatizado agora é que o pacto Mosaico, com respeito à condição de
obediência, que não é de categoria totalmente diferente da do Abraâmico. É muito
freqüentemente aceito, entre teólogos em geral, que as condições prescritas na conexão com o
pacto Mosaico sejam totalmente diferente com respeito à graça, em comparação com o
abraâmico. Assumem eles que as exigências também são totalmente diferentes. Se formos
analisar friamente, em ambos há uma espécie de exigência e ordem de guardar o pacto. Contudo,
é mais evidente no pacto abraâmico uma disposição maior de Deus e cumprir todas as exigências
do pacto, porque o pacto com Abraão foi de caráter perpétuo, e Deus sempre se lembra das
promessas feitas a Abraão, Isaque e Jacó, para renovar as promessas do pacto aos filhos de
Israel.

A Singularidade do Pacto Sinaítico


Ex 24.3-8
(Robertson, 172 sgts)

O Sacramento do Pacto Sinaítico


Neste pacto há o aparecimento do segundo sacramento do pacto da graça, que é a Páscoa
(Ex 12).
Semelhantemente ao primeiro sacramento, o da circuncisão, o sacramento da páscoa, foi
instituído diretamente por Deus.
Semelhantemente ao primeiro sacramento do pacto da graça, este sacramento foi
ordenado para ser guardado perpetuamente através das gerações (Gn 17.13 cf Ex 12.14), que
deveria lembrar a libertação graciosa do cativeiro do Egito, através do sangue do cordeiro
colocado sobre os umbrais das portas das casas das famílias hebréias (Ex 12.13). Este sangue do
cordeiro pascal tipificava o Cordeiro Pascal, Jesus Cristo.
Semelhantemente à quebra dos mandamentos relacionados ao primeiro sacramento, se
os mandamentos do segundo sacramento não fossem obedecidos, as pessoas seriam mortas (Gn
17.14 cf Ex 12.15,19).
Os estrangeiros, como regra, não poderiam participar da páscoa. Somente deveriam
participar da páscoa os machos que fossem circuncidados, mesmo os estrangeiros que
estivessem hospedados nas casas dos hebreus (Ex 12.43-48).

Aspectos do Pacto Sinaítico

O Pacto Sinaítico é uma continuação do Pacto Abraâmico


É interessante notar que, no dia em que Deus estabeleceu o pacto com Abraão (Gn 15.18),
Deus lhe havia predito (e, obviamente, decretado) que os seus descendentes haveriam de ficar
cativos no Egito. Então, o Senhor lhe disse: "Sabe, com certeza, que a tua posteridade será
peregrina em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos"
(Gn 15.13).
Os anos se passaram, e a profecia divina cumpriu-se literalmente. Os filhos de Jacó
cresceram no Egito e se multiplicaram enormemente, como Deus também havia predito (Gn
15.5). Apareceu um Faraó que odiou a descendência de Jacó, e passou a persegui-la. Isso pelo
espaço de 400 anos> como Deus havia dito. Quando Deus viu o povo sendo massacrado no Egito,
debaixo do duro tacão dos exatores, ouviu-lhes os gemidos e "lembrou-se da sua aliança com
Abraão, com Isaque e com Jacó. E viu Deus os filhos de Israel, e atentou para a condição
172

deles"(Ex 2.25-26).
Assim, a libertação do povo de Israel do Egito tem a ver com as bênçãos prometidas a
Abraão.
Ler S1105.8-12, 42-45; 106.1-5, 43-48

Não podemos isolar o pacto sinaítico do pacto abraâmico, porque haveríamos de fazer
uma injustiça com a Escritura.

O Pacto Sinaítico é um Pacto da Graça


Ele é um pacto gracioso e espiritual antes que uma formulação legal, onde se ganha a
redenção por meio da obediência à lei. Embora haja aspectos legais e cerimoniais que são
estabelecidos pelo próprio Deus para uma nação, todavia, essas prescrições legais e cerimoniais
são indicativas de uma realidade superior futura. Não há nenhuma diferença essencial entre o
pacto da graça debaixo da administração abraâmica e a mosaica.
A promessa principal encontrada no pacto abraâmico é exatamente a mesma encontrada
no Sinaítico: ―Tomar-vos-ei por meu povo, e serei vosso Deus; e sabereis que eu sou o Senhor
vosso Deus, que vos tiro de debaixo das cargas do Egito‖ (Ex 6.7). Observe a identidade do pacto
da graça com Abraão com o Sinaítico, no texto seguinte: Dt 29.12-13 - "...para que entres na
aliança do Senhor teu Deus, e no seu juramento que hoje o Senhor teu Deus faz contigo; para que
hoje te estabeleça por seu povo, e ele te seja por Deus, como te tem prometido, como jurou a teus
pais, Abraão, Isaque e Jacó."
A promessa principal feita a Abraão nunca foi anulada pelo estabelecimento do pacto
Sinaítico. Ao contrário, ela foi confirmada, como demonstra Paulo: Gl 3.17-18 – ―E digo isto: uma
aliança anteriormente confirmada, a lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois, não a pode
ab-rogar, de forma que venha a desfazer a promessa. Porque se a herança provem de lei, já não
decorre da promessa; mas foi pela promessa que Deus a concedeu gratuitamente a Abraão". A
promessa feita a Abraão é reafirmada em cada uma das dispensações do pacto da graça. Além
disso, temos que observar que a ênfase que é dada no pacto sinaítico é a de que ele é espiritual,
embora não exclua as bênçãos materiais, que são indicativas de cousas superiores. As bênçãos
materiais são, em si mesmas, sinais do Deus gracioso que se une pactualmente a Israel. Todavia,
o cumprimento da lei mosaica é, em si mesmo, puramente espiritual, porque ela se resume no
amor a Deus sobre todas as cousas e ao próximo como a si mesmo (Dt 6.4-8; Lv 19.18 cf. Mt
22.37-39).
A gratuidade do pacto sinaítico fica evidente do fato de Deus institui-lo, iniciá-lo,
estabelecê-lo, confirmá-lo e cumpri-lo soberanamente. John Murray chama isto de "uma
administração monergistica da graça‖. 233
É um pacto gracioso porque ele é administrado e selado com sangue (Ex 24.6-8) que é
típico do sangue de Cristo, que é chamado de sangue do pacto (Mt 26.26).

O Pacto Sinaítico é um Pacto Nacional


Ele foi estabelecido com a nação de Israel quando ela estava no Sinai, após ter sido
libertada do Egito, onde permanecera por cerca de quatrocentos anos. Esse pacto foi renovado
algumas vezes com a nação durante os tempos de peregrinação no deserto:
1) O Pacto foi renovado após o grave pecado da adoração do bezerro de ouro.
A idolatria com Arão mostra que o povo não havia respondido positivamente ao pacto feito
com o povo. Do povo Deus disse a Moisés: Ex 32.7-8 - "porque o teu povo, que fizeste sair do
Egito, se corrompeu, e depressa se desviou do caminho que lhes havia eu ordenado; fizeram para
si um bezerro fundido, e o adoram, e lhe sacrificam, e dizem: São estes, ó Israel, os teus deuses,
que te tiraram da terra do Egito.‖ Percebendo a ira iminente de Deus, Moisés intercede pelo povo,
lembrando ao Senhor o pacto feito no passado: Ex 32.13 - "Lembra-te de Abraão, de Isaque e de
Israel, teus servos, aos quais por ti mesmo tens jurado, e lhes disseste:
Multiplicarei a vossa descendência como as estrelas do céu, e toda esta terra de que tenho

233 The Covenant of Grace, p. 21.


173

falado, dá-la-ei à vossa descendência, para que a possuam por herança eternamente." Deus,
então, em misericórdia, renova o pacto ali com Moisés, após dar as Tábuas a Lei novamente (Ex
32.14; 34.10).
2) O Pacto foi renovado com a geração seguinte, que havia nascido no deserto, nas
planícies de Moab.
Dt 29.1 - "São estas as palavras da aliança que o Senhor ordenou a Moisés fizesse com os
filhos de Israel na terra de Moabe, além da aliança que fizera com ele em Horebe."
Nessa renovação do pacto condicional foi reafirmada novamente a necessidade de
obediência da parte do povo, para que participasse do pacto e dos benefícios das promessas dele
(Dt 29.9-29).
3) O Pacto foi relembrado por Deus a Josué, na posse da terra, quando Deus ordenou que
os dois sacramentos do pacto da graça fossem administrados.
Josué circuncida a segunda geração dos filhos de Israel que não haviam sido
circuncidados no deserto Js 5.1-8).
Josué celebra a páscoa com a segunda geração pela primeira vez desde que entraram na
terra (Js 5.10-12). É curioso observar que a administração da circuncisão foi pré-requisito para a
administração da páscoa (Ex 12.43-49).
4) O Pacto foi lembrado outra vez antes da morte de Josué (Js 23.6-16), na região de
Siquém.
Antes um pouco de morrer, Josué reúne o povo e lhes relembra o Pacto de Deus com
Abraão, Isaque e Jacó, e o pacto com Moisés (Js 24.2-7). Então apela para a renovação que ele
próprio faz do pacto (v. 14-15), provocando a resposta do povo em disposição de obediência (v.
17-24). E o texto continua, no v.25 - "Assim, naquele dia fez Josué aliança com o povo, e lha pôs
por estatuto e direito em Siquém," estabelecendo, em seguida um documento formal de
obediência aos estatutos do Senhor (v.26-27).
5) O Pacto é violado durante o período dos Juizes
Deus nunca havia invalidado a sua aliança com o seu povo (Jz 2.1), mas continuava a
pedir a fidelidade do povo (Jz 2.2). Após a morte de Josué e de todos os de sua geração (que foram
fiéis ao pacto Jz 2.8-10), levantou-se uma outra geração que não guardou a aliança, tornando-se
idólatra (Jz 2.10-13). Deus levantou-lhes juizes, mas eles não os obedeceram (v. 16). A despeito
dessa desobediência, o Senhor era gracioso com eles, compadecendo-se deles (v. 18), mas tão
logo o Senhor os livrava dos inimigos, eles voltavam-se para a idolatria novamente. Nesse
período, por causa da sua promessa de castigo pela violação do pacto, Deus entregou-os nas
mãos de povos que acabaram habitando na terra que Deus prometera dar somente a eles
(v.19-23). O período dos juizes, portanto, foi um tempo de desordem e de falta de real autoridade.
O próprio livro termina, dizendo: "Naqueles dias não havia rei em Israel; cada um fazia o que
achava mais reto"(Jz 21.25).

4. O PACTO DE DEUS COM OS LEVITAS


Partes Contratantes - Finéias e os seus descendentes de linhagem levítica (Lv 25.12).

Tipo - Um Pacto Incondicional


A promessa do sacerdócio é uma promessa divina incondicional de manter a família de
Finéias na linhagem sacerdotal. É uma promessa implícita com juramento de que, em Israel,
nunca haveria de faltar um sacerdócio fiel.

Estabelecimento do Pacto
Este pacto tem sido um dos mais negligenciados dentro da teologia Reformada. A própria
Escritura fala relativamente pouco dele, embora haja algumas referências diretas e outras
indiretas a ele. É até surpreendente que a Carta aos Hebreus, que trata do sacerdócio, não o
mencione, nem o compare ao sacerdócio de Cristo ou de Melquisedeque.
A maior referência deste pacto está registrada em Nm 25.1-31, que analiso rapidamente:
174

O povo no deserto começou a prostituir-se com outros deuses, desobedecendo as prescrições de


Deus do Pacto Sinaítico (Nm 25.1-2). Deus chama Moisés e ordena-lhe que os idólatras sejam
mortos (v. 3-6). Finéias, neto de Arão, de linhagem sacerdotal (v.7) cumpre o mandado divino de
eliminar os idólatras, dando exemplo de obediência à ordem dada por Deus a Moisés (v.8).
Finéias era um sacerdote muito temente a Deus.234 Com essa atitude a praga cessou (v.8-9).
Deus se agradou da atitude zelosa de Finéias (v. 11) e estabeleceu uma aliança com os levitas:

Lv 25.12-13 – ―Portanto, dize: Eis que lhe dou a minha aliança de paz. E ele e a
sua descendência depois dele, terá a aliança do sacerdócio perpétuo; porquanto
teve zelo pelo seu Deus, e fez expiação pelos filhos de Israel."

Um Pacto Perpétuo
No estabelecimento do pacto Deus deixou bem claro que seria ―uma aliança de sacerdócio
perpétuo‖ (Lv 25.13). O Salmista relembra essa perpetuidade do pacto quando se refere aos feitos
graciosos de Deus no passado, no tempo de Finéias:

Si 106.28-31 – ―Também se juntaram a Baal-Peor, e comeram os sacrifícios


dos ídolos mortos. Assim, com tais ações, o provocaram à ira; e grassou peste
entre eles. Então se levantou Finéias e executou o juízo; e cessou a peste. Isso lhe
foi imputado por justiça, de geração em geração, para sempre.‖

A perpetuidade desse pacto está patente também quando Jeremias o relaciona com o
Pacto Davídico.

Jr 33.17-18 – ―Porque assim diz o Senhor: Nunca faltará a Davi homem ;que
se assente no trono da casa de Israel; nem aos sacerdotes levitas faltará homem
diante de mim, para que ofereça holocausto, queime oferta de manjares e faça
sacrifício todos os dias" - (ver também v.20-22)

Embora não haja qualquer menção desse pacto com os levitas no livro de Hebreus (o que
se esperaria que houvesse), todavia, todos os aspectos mencionados no sacerdócio de Cristo, em
Hebreus, indicam que Cristo é o sacerdote eterno, cumprindo-se assim, o que Deus havia dito
sobre a eternidade do pacto com os levitas, de que nunca faltaria alguém que fosse sacerdote no
meio do seu povo.

A Violação Pacto
Com o passar do anos houve a infidelidade da classe sacerdotal em relação ao pacto. O
profeta Malaquias registra a situação lamentável dos sacerdotes no seu tempo. Ml 2.1-3 fala do
desagrado de Deus contra os sacerdotes, e mostra também a fidelidade de Deus para a
continuação do pacto feito com Finéias:

Ml 2.4-7 - "Então sabereis que eu vos enviei este mandamento, para que a
minha aliança continue com Levi, diz o Senhor dos Exércitos. Minha aliança com
ele foi de vida e de paz; ambas lhe dei eu para que temesse; com efeito ele me
temeu, e tremeu por causa do meu nome. A minha instrução esteve na sua boca,
e a injustiça não se achou nos seus lábios: andou comigo em paz e em retidão, e da
iniquidade apartou a muitos. Porque os lábios do sacerdote devem guardar o
conhecimento, e da sua boca devem os homens procurar a instrução, porque ele é
mensageiro do Senhor dos exércitos.‖

Contudo, a despeito da fidelidade de Deus, na manutenção do pacto, os sacerdotes


continuaram a violar o pacto, recebendo o castigo de Deus por isso (Ml 2.8-9).

234 Ver Josué 22.29-34.


175

5. PACTO DE DEUS COM DAVI


Partes Contratantes - Deus estabeleceu este pacto com o fiel rei Davi após a sua devoção
a Deus como rei de Israel e como o vassalo ungido (2 Sm 7.5-16; 51 89.1-3)
Estabelecimento do Pacto
Davi já havia trazido a Arca da Aliança de volta para o tabernáculo em Jerusalém (l Cr
15.25-29). Então, segue-se o estabelecimento do pacto.

2 Sm 7.12-16 – ―Quando teus dias te cumprirem, e descansares com teus


pais, então farei levantar depois de ti o teu descendente, que procederá de ti, e
estabelecerei o teu reino. Este edificará uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei
para sempre o trono do seu reino. Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; se
vier a transgredir, castigá-lo-ei com varas de homens, e com açoites de filhos de
homens. Mas a minha misericórdia se não apartará dele, como a retirei de Saul, a
quem tirei de diante de ti. Porém a tua casa e o teu reino serão firmados para
sempre diante de ti; teu trono será estabelecido para sempre." (cf l Cr 17.11-14)

O Salmo 89, na sua totalidade, lembra de maneira inequívoca o pacto de Deus feito com
Davi.
O cumprimento do pacto com Davi foi cumprido com o levantamento do reino de Salomão
(l Rs 8.20, 23-26), a quem Davi ordena obediência às palavras do Senhor (2 Rs 2.1-4). Deus
reconfirma com Salomão o pacto feito com Davi (l Rs 9.5)
Tipo - Um Pacto Incondicional - Esse pacto é ratificado ou confirmado por Davi.
Simplesmente Deus estabelece soberanamente o pacto. John Murray diz que o pacto ―é uma
dispensação soberana, divino em sua origem, estabelecimento, confirmação e cumprimento". 235
Após fazer uma análise dos dados da Escritura sobre esse pacto, Murray conclui:

―Um estudo destas passagens mostrará que o aspecto mais marcante é a


segurança, a determinação e a imutabilidade da promessa divina.. .A certeza do
cumprimento surge da promessa e do juramento de Deus... Nenhum exemplo de
pacto do VI' dá um apoio mais claro à tese de que um pacto é promessa soberana,
uma promessa solenizada pela santidade de um juramento, imutável em sua
segurança e divinamente confirmado no que respeita à certeza de seu
cumprimento."236

Nesse pacto, Deus faz uma promessa incondicional de estabelecer e manter a dinastia
davídica no trono de Israel. Em Israel nunca haveria de faltar um rei que ocupasse o lugar de
Davi.
Semelhantemente ao pacto abraâmico, Deus fez exigências que deveriam ser obedecidas
pelos descendentes de Davi (l Rs 9.4-9). A responsabilidade pactual não está ausente. Davi viveu
em fidelidade pactual, como o próprio Deus declara. Não aconteceu o mesmo com Salomão e com
o restante da descendência de Davi.
Esse pacto divinamente estabelecido é incondicional. Contudo, para que houvesse
apropriação pessoal das promessas dele, as pessoas tinham que obedecer as suas prescrições,
que eram as mesmas relacionadas aos pactos anteriores. Muitos dos descendentes de Davi não
obedeceram as prescrições divinas, e perderam o reino, mas nunca faltou alguém que se
assentasse no lugar de Davi. Não obstante os pecados de Davi e dos seus filhos, o pacto
permaneceria (l Rs 11.1-3,9-13; 2 Cr 21.7). Deus enviou os castigos aos descendentes infiéis de
Davi, como Deus justo que é. Contudo, os pecados dos homens não haveriam de anular o pacto

235 The Covenant of Grace, 22.


236 The Covenant of Grace, 23.
176

de Deus, que é absolutamente incondicional.

Sl 89.30-36 – ―Se os seus filhos desprezarem a minha lei, e não andarem nos
meus juízos, se violarem os meus preceitos, e não guardarem os meus
mandamentos, então punirei com vara as suas transgressões, e com açoites a sua
iniquidade. Mas jamais retirarei dele a minha bondade, nem desmentirei a minha
fidelidade. Não violarei a minha aliança, nem modificarei o que os meus lábios
proferiram. Uma vez jurei por minha santidade (e serei eu falso a Davi?): a sua
posteridade durará para sempre, e o seu trono como o sol perante mim.

O Salmo 132 também é um eco do pacto feito com Davi, onde Deus promete
incondicionalmente se interpôs com juramento para abençoar a sua casa e erigir o seu trono.

Aspectos do Pacto Davídico

1. É uma Continuação do Pacto da Graça


Este pacto é uma continuação do pacto da graça, que começou a ser anunciado com
Abraão, continuou com Moisés no Sinai, e continua através de todo o VT, chegando ao tempo de
Davi. Há algumas indicações de que o pacto é o mesmo:
A despeito da desobediência de muitos reis, sucessores de Davi, Deus não destruiu o povo
por causa da sua promessa feita a Abraão, Isaque e Jacó (2 Rs 13.22-23);
As tábuas da Aliança às quais Salomão se refere, são as mesmas que Deus deu a Moisés
(l Rs 8.21). As prescrições de Deus para todas as dispensações velho-testamentárias do pacto são
as mesmas.
A promessa de ser o Deus do povo é a mesma ( ).
Contudo, com Davi o pacto tem um aspecto novo, que é a promessa da Realeza do
Redentor do pacto. Davi faz menção dessa aliança num salmo que esta- registrado em l Cr
16.14-22.

2. E um Pacto Eterno
Um pacto pode ser incondicional e não ser eterno. Mas com Davi Deus prometeu algo que
durará para sempre. Antes de morrer> Davi falou palavras que evidenciam a eternidade do pacto
que Deus havia feito consigo: 2 Sm 23.5 - "Pois estabeleceu comigo uma aliança eterna, em tudo
bem definida e segura.‖
Sl 89.28-29 - "Conservar-lhe-ei para sempre a minha graça e firme com a minha aliança.
Farei durar para sempre a sua descendência, e o seu trono como os dias do céu.‖
O texto de Lc 1.32-33, já mencionado acima, mostra claramente a eternidade do pacto
davídico.
A inviolabilidade e a eternidade do pacto davídico é enfatizada pela indicação de que ele é
tão certo quanto é certo o pacto que Deus fez com Noé do dia com a noite.

Jr 33.20-26 – ―Assim diz o Senhor: Se puderdes invalidar a minha aliança com


o dia e a minha aliança com a noite, de tal modo que não haja nem dia nem noite
a seu tempo, poder-se-á também invalidar a minha aliança com Davi, meu servo,
para que não tenha filho que reine no seu trono.. .v.25 - Assim diz o Senhor: Se a
minha aliança com o dia e com a noite não permanecer, e eu não mantiver as leis
fixas dos céus e da terra, também rejeitarei a descendência de Jacó, e de Davi,
meu servo, de modo que não tome de sua descendência quem domine sobre a
descendência de Abraão, Isaque e Jacó; porque lhes restaurarei a sorte e deles me
apiedarei."
177

3. É um Pacto cumprido em Cristo


O pacto davídico que soberanamente Deus estabeleceu, é cumprido graciosamente
através de e em Cristo Jesus, a descendência real de Davi. Na verdade, esta promessa pactual do
descendente de Davi ocupar o seu trono, inclue um contexto bem mais amplo onde a
promessa-mãe feita em Gn 3.15 é cumprida de um modo cabal.
O profeta Isaías, talvez sem entender claramente o conteúdo de sua profecia, olha para
diante, e vê o pacto davídico sendo cumprido em Cristo.

Is 55.3 – ―Inclinai os vossos ouvidos, e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma


viverá; porque convosco farei uma aliança perpétua que consiste nas fiéis
misericórdias prometidas a Davi."

Quem o interpreta de maneira correta é o apóstolo Paulo, em seu discurso em Antioquia:

At 13.32-34 - "Nós vos anunciamos o evangelho da promessa feita a nossos


pais, como Deus a cumpriu plenamente a nós, seus filhos, ressuscitando a Jesus,
como também está escrito: ... "E cumprirei a vosso favor as santas e fiéis
promessas feitas a Davi.”

Também o profeta Jeremias olha para trás, para o pacto de Deus feito com Davi e, então,
faz uma projeção do cumprimento futuro dele em Cristo Jesus. Entretanto, a promessa feita a
Davi é apontada para o Messias:

Jr 33.15-17 - "Naqueles dias e naquele tempo farei brotar a Davi um Renovo de


justiça; ele executará juízo e justiça na terra. Naqueles dias Judá será salvo e
Jerusalém habitará seguramente; ela será chamada: Senhor, Justiça Nossa.
Porque assim diz o Senhor: Nunca faltará a Davi homem que se assente no trono da
casa de Israel' (cf v.20-26).

O evangelista Lucas também faz referencia ao trono de Davi, e aplica-o diretamente ao


nascimento do Rei dos reis, Jesus Cristo.

Lc 1.32-33 - "Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o


Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai; e ele reinará para sempre sobre a casa de
Jacó, e o seu reinado não terá fim."

Pedro, o apóstolo, teve a mesma interpretação do pacto davídico, quando, em seu


primeiro sermão, refere-se ao Descendente de Davi:

At 2.29-36 - "Irmãos, seja-me permitido dizer-vos claramente, a respeito do


patriarca Davi, que ele morreu e foi sepultado e o seu túmulo permanece entre nós
até hoje. Sendo, pois, profeta, e sabendo que Deus lhe havia jurado que um dos
seus descendentes se assentaria no seu trono; prevendo isto, referiu-se à
ressurreição de Cristo… A este Jesus Deus ressuscitou.. Exaltado, pois, à destra
de Deus... Porque Davi não subiu aos céus, mas ele mesmo declara: Disse o
Senhor ao meu Senhor: 'Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus
inimigos por estrado dos teus pés.' Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa
de Israel de que a este Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo.‖

Pedro coloca em termos inquestionáveis que a promessa pactual feita a Davi cumpriu-se
literalmente em Cristo. Ele é o último descendente e o que haveria de reinar eternamente sobre o
trono de Davi.
178

6. O NOVO PACTO
Texto para estudo - Jr 31-31-33; 32.38-40; Hb 8.

PARTES CONTRATANTES
Um pacto feito entre Deus e o Israel rebelde, a quem Ele chama de "casa de Israel e casa
de Judá" (Hb 8.8).237

O ESTABELECIMENTO DO NOVO PACTO


Jr 31.31 - "Eis aí vêm dias, diz o Senhor, e firmarei nova aliança com a casa de Israel e
com a casa de Judá"
Ez 16.60-63 -
Ez 37.26 - "Farei com ele aliança de paz; será uma aliança perpétua. Estabelecê-los-ei e
os multiplicarei, e porei o meu santuário no meio deles para sempre."

TIPO - UM PACTO INCONDICIONAL

É uma promessa incondicional feita a um Israel rebelde que consiste no perdão de seus
pecados e na re-estabelecimento da comunhão de Israel com Deus numa nova base, onde Deus
haveria de inscrever nos corações deles a Sua lei - um pacto de pura graça,
mediante a vinda do Renovo.
A incondicionalidade do pacto está patente no modo como Deus o estabelece. Ele diz: ―Eu
firmarei um pacto.. ."(Hb 8.10). Nessa maneira de falar, Deus expressa a Sua soberania de
autoridade, de poder, de veracidade e, ao mesmo tempo de Sua graça. Ele é a causa única e o
autor único do novo pacto.

O TEMPO DO CUMPRIMENTO DO NOVO PACTO


Jr 31.31; Hb 8.8 – ―Eis aí vem dias...
Jr 31.33 – ―...depois daqueles dias...."
Há algumas idéias na tentativa de explicar o significado das palavras "depois daqueles
dias".
1) Uns pensam que a expressão «depois daqueles dias" se refira ao tempo imediato ao
Cativeiro da Babilônia, referindo-se especificamente à volta dos cativos para a terra, porque uma
das promessas tinha a ver com a volta do povo à terra de Israel e a reconstrução da cidade (Jr
31.38-40).
Contudo, essa idéia não pode ser aceita porque os Israelitas voltaram do cativeiro,
construíram os muros e a cidade, mas o pacto não foi feito naqueles dias. Após a volta do
cativeiro, eles não foram os donos e os governadores da terra. Outros povos dominaram sobre
eles, até o estabelecimento do novo pacto, séculos mais tarde.
2. Outros pensam que a expressão «aqueles dias" se refere à completação dos dias da
revelação velho-testamentária, ou da dispensação da Velha Aliança, que haveria de vigorar até o
advento do Messias. O escritor aos Hebreus chamaria "aqueles dias" de «o tempo oportuno da
reforma" (Hb 9.~10), o tempo quando as cousas novas haveriam de aparecer.
Certamente, Jeremias está tratando de dias específicos, limitados e futuros, mas ainda
indeterminados. Jeremias não sabia precisamente de que tempos estava falando. Todavia, para
nós, hoje, não é dificil precisar que dias seriam aqueles, pois temos a história da redenção diante
de nós de uma maneira patente.

237Essa divisão da posteridade de Abraão deu-se somente nos dias do rei Roboão. Antes dessa
divisão, essa posteridade era chamada simplesmente de ―casa de Israel‖. É por essa razão que, na maioria
dos casos aparece unicamente a expressão ―casa de Israel‖ (Hb 8.10).
179

O estabelecimento do novo pacto foi marcado por alguns eventos importantes que o
precederam:
a) A entrada de João Batista em cena. Ele veio no espírito e no poder de Elias, cujo
ministério é tido como o começo do evangelho (Mc 1.1-3). Ele veio preparar o povo para a vinda do
Senhor. Pregou o arrependimento e o reino de Deus, anunciando um novo relacionamento com o
Senhor. Todavia, o precursor do Senhor ainda estava debaixo da velha aliança, isto é, do pacto
sinaítico, dado em Horeb (Ml 4.4-6). O novo pacto, que é a renovação do pacto prometido a
Abraão, de forma mais eficaz, é anunciado com a vinda de João Batista (Lc 1.69-79).
b) A vinda do Filho de Deus Encarnado. Quando o Verbo
encarnou-se e exercer o seu ministério entre nós, o pacto sinaítico ainda
estava em vigor, porque Ele mesmo foi "nascido de mulher" sendo sujeito à
lei, tendo que observar todos os preceitos que o primeiro Adão não
observou e todos os preceitos do pacto sinaítico que não foram observados
por aqueles que Ele representou. Ele é o elemento de transição entre a
velha aliança e a nova aliança. Ele cumpre todos os requisitos da primeira
aliança, tornando-a caduca, para estabelecer a segunda.
c) A morte do Filho de Deus. Sua morte foi o cumprimento solene do novo pacto (Hb
9.14-16). Essa santa e eterna aliança cumpre e substitui todos os símbolos e sombras usados na
velha aliança. Os símbolos caem, tornando-se obsoletos com a vinda daquilo que era a realidade.
Os tipos desaparecem quando o antítipo vem. A morte de Cristo era a culminação de todas as
esperanças do passado, que significa o tempo da redenção que todos os fiéis anelavam, embora
sem a plenitude de entendimento do que seria a verdadeira redenção.
d) A ressurreição do Filho de Deus. A ressurreição de Cristo é a culminação da vitória
sobre os principados e potestades. Agora aos filhos de Deus estava garantida a vitória final. Tudo
o que precisava ser feito em termos de obediência estava cumprido. A maldição sobre o seu povo
havia caído sobre Ele, e se tornara completamente vitorioso! Eles não mais seriam malditos. Se a
ressurreição de Cristo não acontecesse, diz Paulo, "ainda permaneceríamos em nossos pecados"
(1 Co 15.17), estando todos nós ainda sob a maldição da aliança de Horeb, por causa da nossa
culpa.
e) O Dia do Pentecostes. Somente 7 semanas depois da ressurreição de Cristo é que a
promessa maior da nova aliança foi solenemente realizada. No Pentecoste, o Espírito prometido
pelo profeta Ezequiel, vem para habitar nos filhos do povo de Deus. Após esse tempo é que o povo
e seus membros individuais recebem o Espírito de Deus que, diferentemente da velha aliança,
que morava no templo físico de Jerusalém, vem morar no templo espiritual, casa espiritual de
Deus (Ef 2.20-22). Depois dessa manifestação do Pentecostes é que os crentes haveriam de
guardar as leis de Deus e observá-las interiormente. A lei de Deus seria gravada nos corações
deles, como é a promessa do novo pacto.
Portanto, a expressão "depois daqueles dias" tem a ver com esses acontecimentos
supra-narrados. Somente após todos essas cousas acontecerem é que haveria o estabelecimento
formal do pacto.

RELAÇÃO DO NOVO PACTO COM OS PACTOS ANTERIORES

O novo pacto, através de Jesus Cristo, é o cumprimento cabal de muitas promessas feitas
ao Seu povo, relacionadas aos pactos anteriores. A maioria das bênçãos prometidas no novo
pacto não foram absolutamente desconhecidas dos filhos de Israel, pois elas já estavam em
gérmen nos outros pactos.

Relação com o Pacto Abraâmico


- É a promessa da posse da terra que Deus deu a Abraão, ligada com a promessa de ser
o Deus deles e deles serem seu povo.
Estas promessas são solidamente reais neste pacto. Dentro do contexto do Novo Pacto,
180

Jeremias fala da volta à terra da qual haviam sido expulsos. Jr 32.37 - "Eis que eu os congregarei
de todas as terras, para onde os lancei na minha ira, no meu furor e na minha grande indignação;
tornarei a trazê-los a este lugar, e farei que nele habitem seguramente." Os versos 38-40 falam
claramente do novo pacto e, nos versos seguintes, Jeremias volta a falar sobre o mesmo assunto:
Jr 32.41-42 - "Alegrar-me-ei por causa deles, e lhes farei bem; plantá-los-ei firmemente nesta
terra, de todo o meu coração e de toda minha alma. Porque assim diz o Senhor: assim como fiz vir
sobre este povo todo este grande mal, assim lhes trarei todo o bem que lhes estou prometendo" (cf
v.43-44).
O profeta Ezequiel, tratando das bênçãos espirituais do novo pacto (Ez 37.1-12), promete
também a bênção de natureza física relacionada à devolução da terra:

Ez 37.21-27 - "Dize-lhes, pois: Assim diz o Senhor Deus: Eis que eu tomarei os
filhos de Israel de entre as nações, para onde eles foram, e os congregarei de todas
as partes, e os levarei para a sua própria terra.. .(v. 23b) Assim eles serão o meu
povo e eu serei o seu Deus... (v.26-27) Farei com eles aliança de paz; será aliança
perpétua. Estabelecê-los-ei, e os multiplicarei, e porei o meu santuário no meio
deles para sempre. O meu tabernáculo estará com eles; eu serei o seu Deus e eles
serão o meu povo.‖

Assim como Deus disse que daria a terra a Abraão, assim ele promete eficazmente
cumprir com os seus descendentes dando-lhes essa bênção de caráter físico.

Relação com o Pacto Sinaítico


- A Obediência às leis requerida no pacto sinaítico é tornada real neste pacto. Esta
obediência não se materializou no pacto sinaítico, mas é promessa de Deus que ela será uma
realidade neste novo pacto pela eficácia da obra do Espírito nos corações dos do seu povo (Jr
31.33).

Relação com o Pacto Levítico

Relação com o Pacto Davídico


O novo pacto vincula-se também ao pacto davídico, quando Jesus Cristo é apontado
como aquele que haveria de reinar sobre Israel. Essa promessa é inequivocamente confirmada
pelo profeta Ezequiel, quando trata especificamente do novo pacto que, por sua Vez, também é
ligado ao pacto Abraâmico.

Ez 37.23b-25 ―… Assim eles serão o meu povo, e eu serei o seu Deus. O meu
servo Davi reinará sobre eles; todos eles terão um só pastor, andarão nos meus
juízos, guardarão os meus estatutos e os observarão. Habitarão na terra que dei a
meu servo Jacó> na qual vossos pais habitaram; habitarão nela, eles e seus filhos
e os filhos de seus filhos, para sempre; e Davi meu servo, será seu príncipe
eternamente." (cf Ez 34.23-25).

Estas passagens de Ezequiel se referem, sem sombra de dúvida a Jesus Cristo, o


Mediador da Nova Aliança, que é uma aliança de paz.

CONTRASTES ENTRE O VELHO PACTO E O NOVO PACTO


A velha aliança da qual o escritor aos Hebreus fala muito, contrastando com a nova
aliança, não tem nada a ver com o pacto feito com Abraão, mas com o pacto sinaítico, feito com
Moisés.
Falando do estabelecimento da nova aliança, através de Jeremias> Deus deixa bem clara
que esta seria de natureza diferente da primeira, estabelecida com Moisés, no Sinai.

Jr 31.32 – ―Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os
181

tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; porquanto eles anularam a minha
aliança, não obstante eu os haver desposado, diz o Senhor."

O Antigo Pacto é o tipo e o Novo Pacto é o Antítipo.


O novo pacto é superior ao antigo pacto, porque este último é imperfeito e deu lugar a um
superior, perfeito (Hb 8.7). O segundo pacto, o novo pacto, faz com que o primeiro pacto (o
sinaítico) seja cancelado ou antiquado, vindo a desaparecer (Hb 8.13). De fato, tudo aquilo que
era sombra desapareceu quando o que é celestial apareceu (Hb 8.5).

SEMELHANÇAS

Os dois pactos possuíam algumas promessas comuns


Hb 8.10
Esta promessa é comum porque tanto o antigo pacto como o novo pacto estão vinculados
ao pacto da graça que foi estabelecido formalmente com Abraão.

Os dois pactos eram caracterizados pelo sacrifício de um Cordeiro


Em ambos um cordeiro tinha que ser sacrificado. Na instituição da páscoa Deus ordenou
a Moisés que cada família oferecesse um cordeiro. Na instituição do segundo pacto, o Cordeiro de
Deus é sacrificado. Por essa razão, Cristo é chamado de "o Cordeiro Pascal" ( ).

Os dois pactos são sancionados com sangue


Estava absolutamente claro deste o estabelecimento do pacto com Moisés que Deus
haveria de estabelecer todas as cousas com sangue. Sem derramamento de sangue não poderia
haver nenhum tipo de redenção

Hb 9.18-22, 28 - "Porque nem a primeira aliança foi sancionada sem sangue;


porque, havendo Moisés proclamado todos os mandamentos segundo a lei, a todo
o povo, tomou o sangue dos bezerros e dos bodes, com água, e aspergiu não só o
próprio livro, como também todo o povo, dizendo: Este é o sangue da aliança, a
qual Deus prescreveu para vós outros. Igualmente também aspergiu com sangue o
tabernáculo e todos os utensílio do serviço sagrado. Com efeito, quase todas as
cousas, segundo a lei, se purificam com sangue; sem derramamento de sangue
não há remissão... .v. 28 - Assim também Cristo, tendo-se oferecido uma vez para
sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos
que o aguardam para a salvação."

Os dois pactos possuem o mesmo livro da lei


A Escritura é o livro dos dois pactos

DIFERENÇAS

1. O Antigo Pacto era Condicional e o Novo era Incondicional

2. O Novo Pacto ê superior ao Antigo Pacto


A Superioridade do Novo Pacto sobre o Antigo Pacto diz respeito a várias cousas,
conforme nos registra a Carta aos Hebreus:

a) Superioridade quanto ao Sacerdócio


Os sacerdotes do antigo pacto eram muitos e tinham que oferecer sacrifícios por si
mesmos, enquanto que havia somente um Sumo-Sacerdote perfeito, que é Cristo (Hb 7.28).
O sacerdócio do antigo pacto era passageiro, pois os sacerdotes eram impedidos de
continuar pela morte (Hb 7.23); o sacerdócio do Novo Pacto é eterno e imutável (Hb 7.24).
O sacerdócio do antigo pacto era constituído de sacerdotes incapazes espiritualmente,
182

que não podiam fazer nada em favor daqueles por quem intercediam, mas o Sacerdócio do Novo
Pacto era poderoso para salvar os pecadores (Hb 7.25).
O sacerdócio do antigo pacto era composto de pecadores que tinham que oferecer
sacrifícios por si mesmos, enquanto que o sacerdote do Novo Pacto era sem mácula, separado dos
pecadores (Hb 7.26-27).
O sacerdócio levítico era imperfeito (Hb 7.11); o sacerdócio segundo a ordem de
Melquisedeque, que é Cristo, é perfeito (Hb 7.28).
Os sacerdócio levítico era constituído sem juramento (Hb 7.20), enquanto que o Sacerdote
do novo pacto foi constituído por Deus com juramento (Hb 7.21). Por essa razão, ele permaneceu
para sempre.

b) Superioridade quanto aos Sacrifícios


Os sacerdotes do pacto sinaítico ofereciam um cordeiro macho, sem defeito (ou sangue de
bodes e touros) que era ineficaz. O Sacerdote do Novo pacto oferecia um Cordeiro perfeito, sem
mácula, separado dos pecadores, de superioridade inquestionável.
Os sacerdotes do pacto sinaítico ofereciam sacrifícios que eram repetidos todos os dias,
devido à imperfeição deles. Os sacrifícios do antigo pacto eram apenas simbólicos e indicativos do
sacrifício perfeito, que foi oferecido uma vez para sempre (Hb 7.27; 9.24-26).
Os sacrifícios da primeira aliança (a sinaítica) possuía os rituais do culto sagrado (Hb
9.1-6) que eram ineficazes para aperfeiçoar aqueles que prestavam culto (Hb 9.9), enquanto que
o único sacrifício da nova aliança tornava santificados os adoradores (Hb 2.11; 9.11-14; 10.14).
Os sacerdotes da antiga aliança ofereciam sacrifícios que eram fora deles mesmos,
alguma coisa que eles possuíam, enquanto que o Sacerdote da nova aliança oferece-se a Si
mesmo pelos pecados do povo.

c) Superioridade quanto ao Lugar dos Sacrifícios


Os sacerdotes do velho pacto assentavam-se no tabernáculo terreno, construído por
homens, enquanto que o Sumo-Sacerdote do novo pacto adentrou um santo dos santos
diferente, superior. "Ele assentou à destra do trono da Majestade nos céus, como ministro do
santuário e do verdadeiro tabernáculo que o Senhor erigiu, não o homem" (Hb 8.1-2).
Hb 9.24 - "Porque Cristo não entrou em santuário feito por mãos, figura do verdadeiro,
porém no mesmo céu, para comparecer, agora, por nós, diante de Deus."

c) Superioridade quanto à Administração da Lei:


A velha aliança era caracterizada pela doação da lei objetivamente aos filhos de Israel; a
nova aliança tem a mesma lei, mas ela é tornada interior, gravada no coração.

d) Superioridade quanto às Promessas


O escritor aos Hebreus deixa bem claro que as promessas do novo pacto são bem
superiores às do pacto sinaítico:

Hb 8.6 - "Agora, com efeito, obteve Jesus ministério tanto mais excelente,
quando é ele também mediador de superior aliança instituída com base em
superiores promessas."

As promessas do pacto sinaítico apenas apontava para cousas futuras que eram
superiores em conteúdo.
183

e) Superioridade quanto ao conceito de Redenção


— A redenção conseguida no pacto sinaítico era apenas terrena, do jugo do domínio do
Egito; a redenção conseguida pelo novo pacto é redenção do pecado.
— A redenção conseguida no pacto sinaítico era temporal, enquanto que a redenção
obtida no novo pacto é eterna

Hb 9.11-12 – ―Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote dos bens já
realizados, mediante o maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, quer
dizer, não desta criação, não por meio de sangue de bodes e de bezerros, mas pelo
seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido
eterna redenção."

— A redenção do sangue da velha aliança purificava as cousas físicas da carne, ou cousas


terrenas, enquanto que a redenção do novo pacto purificava interiormente, a consciência.

Hb 9.13-14 ―Portanto, se o sangue de bodes e de touros, e a cinza de uma


novilha, aspergida sobre os contaminados, os santifica, quanto à purificação da
carne, muito mais o sangue de Cristo que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se
ofereceu sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência de obras mortas para
servirmos ao Deus vivo!

PROMESSAS DO NOVO PACTO

1. A Promessa da doação de um novo coração


Essa promessa não entra explicitamente no novo pacto, mas é fácil perceber pelo contexto
de Jeremias e Ezequiel que ela é parte integrante desse pacto gracioso.

Ez 36.25-27a - "Então aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados;


de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei.
Dar-vos-ei coração novo, e porei dentro em vós espírito novo; tirarei de vós o coração
de pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro de vós o meu Espírito..." (cf Ez
11.19)

Esta não é a primeira promessa do novo pacto, mas é a mais importante, porque sem ela,
as outras promessas de aplicação pessoal da redenção não podem ser cumpridas.
Do novo pacto faz parte a promessa da renovação do coração, que é a mesma coisa que a
implantação da vida, ou regeneração. E uma promessa de dar um coração «de carne", isto é,
sensível em contraposição ao coração endurecido, «de pedra".
O coração de pedra, isto é, endurecido, é o lugar de toda a corrupção. Os filhos do povo de
Deus recebem um coração sensível, agora pronto para receber a lei de Deus dentro dele. Então, a
alienação de Deus é retirada, e os filhos do povo de Deus passam a ter santas disposições para
com a lei de Deus.

2. A Promessa da Interiorização da lei de Deus


Essa promessa é a conseqüência natural da primeira. Somente um coração renovado pelo
Espírito pode ter dentro de si as leis de Deus inscritas. A lei de Deus tem que ser interiorizada no
coração, porque ali é a sede de todos nos nossos pecados e precisa ser limpa pela Palavra de
Deus.

Jr 31.33 - "Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois
daqueles dias, diz o Senhor. Na mente lhes imprimirei as minhas leis, também no
coração lhas inscreverei...”
184

O profeta usa dois termos, na forma de um paralelismo hebraico, para descrever a


interioridade do ser humano: mente e coração. É justamente nessas partes que Deus trabalha no
novo pacto. Deus começa de dentro, não de fora. No velho pacto Deus costumava operar com a lei
apenas objetivamente. Agora, no novo pacto, Ele trabalha dentro do pecador, renovando-lhe o
entendimento e o coração, de dentro para fora, eficazmente (ver Rm 12.2; Ef 1.17-18 e 4.23). É
curioso observar que Deus interioriza as Suas leis, pois Ele diz: "imprimirei (dentro deles) as
minhas leis
Esta promessa claramente é parte do novo pacto que Deus haveria de firmar com a casa
de Israel. Ela faz contraste com o antigo pacto, que é o pacto sinaítico, onde Deus deu as suas leis
em tábuas de pedra, mas elas foram dadas sem que necessariamente fossem obedecidas. Elas
foram dadas objetivamente, externamente, sem que fossem internalizadas nos corações dos
filhos de Israel. No novo pacto a promessa é a interiorização das leis do Senhor. Os filhos de
Deus, debaixo da administração desse novo pacto são capacitados pelo Espírito de Deus a
obedecer os preceitos do Senhor, como parte dessa deliciosa e confortante promessa. A lei não
estaria somente no papel, externamente, mas Deus a tornaria viva em nós, pelo Seu Espírito.
Contudo, essa promessa só é possível com a realização da primeira. Sem um novo coração
não haveria a possibilidade das leis de Deus serem obedecidas.
Jeremias diz: "Nas mentes lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas
inscreverei". Como poderia Deus fazer uma cousa dessas sem antes dar um novo coração aos
filhos do seu povo? Ezequiel, então, mostra como é possível ter essas leis inscritas e,
consequentemente, obedecidas:

Ez 11.19-20 - "Dar-lhes-ei um só coração, espírito novo porei dentro neles;


tirarei da sua carne o coração de pedra, e lhes darei coração de carne, para que
andem nos meus estatutos, e guardem os meus juízos, e os executem; eles serão o
meu povo, e eu serei o seu Deus."(cf Ez 36.26-27).

O profeta enfatiza claramente o propósito do doar de um novo coração: capacitar os filhos


do seu povo a andar nos caminhos do Senhor, guardando as Suas leis.
Paulo usa uma preciosa ilustração para mostrar como são agora os filhos de Deus e os
ministros no novo pacto. Em 2 Co 3.6, Paulo diz que Deus "nos habilitou para sermos ministros
de uma nova aliança, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata, mas o espírito vivifica."
Com isso Paulo estava dizendo que os ministros da velha aliança (a Sinaítica), eram ministros da
letra, que tinham a lei gravada em tábuas de pedra, mas não a capacidade de cumprirem a lei
para terem vida. E por isso que ele chamou o ministério da velha aliança de "ministério de morte"
(v.7) e "ministério de condenação"(v.9), porque a lei mata quando ela não é interiorizada, porque
os homens não conseguem guardá-la. Diferentemente, os ministros da nova aliança são
"ministros do espírito (v.8) e "ministros da justiça"(v.9). Por que esse contraste? A resposta é
óbvia: no começo do capitulo Paulo diz aos filhos de Deus que estão debaixo da nova aliança:

2 Co 3.2-3 - "Vós sois a nossa carta, escrita em nossos corações, conhecida e


lida por todos os homens, estando já manifestos como carta de Cristo, escrita não
com tinta, mas pelo Espírito do Deus vivente, não em tábuas e pedra, mas em
tábuas de carne, isto é, nos corações..."

O contraste é absoluto! O primeiro foi um ministério entregue a Moisés; o segundo um


ministério de Cristo e do Espírito. Os ministros da antiga aliança tinham as leis gravadas fora
deles, nas pedras que Deus deu a Moisés, mas os herdeiros do novo pacto são capacitados para
ter essas mesmas leis dentro do coração pela obra graciosa do Espírito! Esse o cumprimento
cabal, embora não total e final, da promessa que Deus fez através de Jeremias e Ezequiel, de que
ele "inscreveria as suas leis nas nossas mentes e nos nossos corações"!
Esta bendita promessa é confirmada e ratificada pelo escritor aos Hebreus, quando trata
da comparação do antigo pacto com o novo pacto (Hb 8.10).
185

3. A Promessa de um Conhecimento Pessoal do Senhor

Jr 31.34 - "Não ensinará jamais cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu
irmão, dizendo: Conhece ao Senhor, porque todos me conhecerão, desde o menor
até ao maior deles, diz o Senhor.‖

Essa promessa é exatamente decorrente da segunda, porque não pode haver nenhum
conhecimento de Deus, a menos que Deus tome a iniciativa de interiorizar as Suas leis nas
mentes e nos corações dos homens.
O conhecimento de Deus foi algo que Deus sempre quis que o seu povo tivesse de Si.
Desde o começo das suas alianças Deus prometeu que o povo o conheceria. Ele deu-se a
conhecer através das suas leis escritas, no pacto sinaítico, mas eles não conheceram o Senhor.
Ele queria que as suas leis estivessem dentro dos corações dos homens. Por essa razão, Ele deu
certas prescrições estabelecidas muito claramente (Dt 6.5-9). Mas o conhecimento de Deus no
coração dependia do estudo, de colocar na mente pelo constante contato com as leis. O homem
não deu conta de internalizar as leis de Deus, pois a internalização dependia do esforço pessoal.
A impotência do homem para essas coisas sempre foi algo tristemente notável. Que fez> então,
Deus? Deus prometeu que Ele mesmo haveria de tornar essas leis interiorizadas, fazendo com
que Ele fosse realmente conhecido> dando-lhes um coração novo. Observe a Sua promessa: Jr
24.7 - "Dar-lhes-ei coração novo para que me conheçam, que eu sou o Senhor; eles serão o meu
povo, e eu serei o seu Deus; porque se voltarão para mim de todo o seu coração.>' Com a doação
de um novo coração, então, o homem pode chegar a um verdadeiro conhecimento de seu Deus.
Essa promessa é gloriosamente linda, porque ela é cumprida em Cristo Jesus e tornada
eficaz pelo Espírito Santo (Jo 17.3). O real conhecimento de Deus é o alvo de todos os filhos do
povo de Deus! Conhecer Deus é ter a comunhão imperdível com Ele! É bom ser observado que as
pessoas destituídas desse conhecimento salvador de Deus estão fora do novo pacto.
Essa promessa do conhecimento do Senhor tem algumas características:

a) É uma promessa de caráter pessoal


É importante reconhecer que esse conhecimento do Senhor é uma promessa de caráter
pessoal. Não somente os filhos do pacto haveriam de conhecer as leis do Senhor no coração,
como também conheceriam ao Senhor pessoalmente. O texto diz que “cada um" conhecerá ao
Senhor.

b) É uma promessa de caráter universal


O texto diz que ―todos me conhecerão". Por universal entenda-se pessoas de todas as
partes do mundo, desde os pequenos até os maiores. Não deve entender-se esta expressão como
indicativo de universalismo salvador. Na palavra ―todos‖ estão incluídos os parentes, vizinhos, e
todos os outros que vierem a fazer parte do pacto, onde estiverem.

c) É uma promessa de caráter nivelador


―porque todos me conhecerão, desde o menor até o maior".
A expressão 'desde o menor até o maior' é um provérbio conhecido naquela época (cf. Jr
6.13; 8.10; 42.1; 44.12 e Jn 3.5). Contudo, esta expressão não significa literalmente crianças e
adultos (embora a idéia esteja incluída), mas especificamente gentes de todas as classes. Não
haverá diferença de classes nesse tipo de conhecimento. Tanto os pequenos quanto os grandes
virão a conhecer ao Senhor. Todas as classes de pessoas, quer sejam importantes ou sem
importância; bajulados pelos homens ou não, sejam os ricos ou os párias da sociedade. Por sua
promessa pactual, Deus se dará a conhecer a todas as classes de pessoas. As pessoas serão
abençoadas pelo conhecimento de Deus, não por causa das suas categorias, mas a despeito
186

delas. Como as outras, esta também é uma promessa da graça!

d) É uma promessa de caráter eficaz


―porque todos me conhecerão...”
A promessa gloriosa é que todos os do seu povo conhecerão ao Senhor. Não é um
conhecimento de informação que uma lei escrita dá, quando estudada. Não é o conhecimento
pelo acúmulo de informação, mas um conhecimento experimental! Todos os do seu povo, desde o
menor ao maior, desde o mais imaturo ao mais maduro, haverão de ter, na completação de todas
as cousas, um conhecimento adequado de Deus, isto é, um conhecimento que reflita a realidade.
Esse conhecimento não virá necessariamente pelo ensino dos mestres da igreja (que não devem
nunca ser descartados), mas pela obra do Senhor dentro do coração deles, aplicando-lhes a lei
anteriormente escrita na pedra, colocando-a nos seus corações. A eficácia do conhecimento do
Senhor não vem pelo ensino dos homens, mas pela obra interior de Deus no coração dos homens,
que é parte da promessa desse novo pacto.
Esse conhecimento é eficaz porque é conhecimento salvador de Deus. Ele não vem pelo
ensino, mas pelo próprio Senhor. E um conhecimento experimental de Deus, onde não somente
somos confrontados com as verdades de Deus, mas com a própria pessoa de Deus.
Depois que o Espírito de Deus habilita o seu povo com a internalização das leis, então,
eles podem vir a conhecer quem realmente o Senhor ~! O conhecimento do Senhor é uma
combinação do estudo da sua revelação com a capacidade preveniente que o Senhor dá pelo doar
do novo coração e com a interiorização da sua palavra. Não há modo de se conhecer ao Senhor,
sem que estas coisas estejam juntas.

e) É uma promessa de cumprimento pleno no futuro


O cumprimento pleno desta promessa só se dará na ordem eterna das cousas, pois nessa
época não mais necessitaremos de mestres deste mundo. E também uma promessa de
cumprimento pleno no futuro, pois o tempo verbal é futuro. Por isso, o texto diz que «não
ensinará jamais cada um o seu próximo, porque todos me conhecerão..." Quando toda a redenção
do novo pacto se completar, todos haverão de ter conhecido plenamente o Senhor. E por causa
disso que o profeta diz que naquela época o conhecimento de Deus na terra será pleno porque,
então, a terra «estará cheia do conhecimento do Senhor" (Is 11.9),' exatamente no tempo em que
o Senhor reinará em plenitude sobre o Seu povo. Este será o tempo dos ―novos céus e da nova
terra‖.

4. A Promessa de Ser o Deus do Povo e deles serem Povo de Deus


Jr 31.33 – ―Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel:...eu serei
o seu Deus e eles serão o meu povo”.

Essa promessa está anunciada por quase todos os escritores que tratam do pacto,
incluindo especialmente Jeremias e Ezequiel (cf. Ez 11.20; Ez 37.26-27; Hb 8.10).
Esta é a promessa do pacto da graça que atravessa toda a Escritura. Ela foi
primeiramente feita a Abraão e, então, passa praticamente por todos os pactos, e culmina no
novo pacto.
É verdade que Yahvéh é Deus do mundo inteiro, porque Deus criou a todos e a todos
sustenta, mas Ele é Deus de maneira especial e relacional somente dos que estão incluídos no
pacto da graça. Como conseqüência de Yehovah ser o Deus deles, eles passam a ser um povo
peculiar de Deus, como nenhum povo veio a ser.

"Eu serei o seu Deus"


— Quando Deus, em pacto, prometeu que seria o Deus do seu povo, Ele estava
187

prometendo misericórdia, graça, perdão, santidade, perseverança, segurança e vitória espiritual


neste mundo. Estas são coisas que somente Deus pode oferecer para seu povo. Ninguém mais
além de Deus poderia fazer estas coisas em favor dos Seus remidos. Por isso é que eles
respondem: "Tu és o meu Deus" (Os 2.23).

―A eficácia, a segurança e a glória deste pacto dependem originalmente da


natureza de Deus, imediatamente e realmente da mediação de Cristo. E o pacto
que Deus faz conosco nEle como a certeza que vem dEle. E por causa das
propriedades da natureza divina que este pacto é ‗ordenado e seguro em todas as
cousas‘. A sabedoria infinita o proporcionou, e o poder infinito é que o tornou
eficaz.‖238

"Eles serão o meu povo"


Quando Deus, em pacto, prometeu que o povo seria Seu povo, Ele estava afirmando duas
coisas:
a) que Deus os possuiria de uma maneira especial, como nenhum outro povo seria
possessão dEle. Cristo Jesus foi enviado ao mundo, ―o qual deu-se a si mesmo por nós, a fim de
remir-nos de toda iniquidade, e purificar para si mesmo um povo exclusivamente seu, zeloso de
boas obras‖ (Tt 2.14).
b) que o povo deveria sujeição total a Deus. Nessa promessa está implícita a idéia de que
o povo deve obediência, porque outra promessa no pacto é que Deus lhe daria capacidade de
obedecer em razão da interiorização da lei pela obra do Espírito. Indiretamente, a promessa do
povo ser povo de Deus requer essa obediência inquestionavelmente. O fato desse povo ser povo de
Deus é um ato da graça de Deus que leva o povo a responder positivamente em obediência Àquele
que o tornou Seu povo (Os 2.23).

5. A Promessa do Perdão dos Pecados

Jr 31.34 – ―…Pois perdoarei as suas iniqüidades, e dos seus pecados jamais


me lembrarei.‖

Os profetas que tratam desse novo pacto possuem as mesmas promessas da graça. Essas
promessas são deliciosamente lindas, porque elas tocam em nós de um modo especial e sensível!
Todos os que são perdoados conhecem da beleza desta promessa!
Quando Deus fez esta promessa, Ele encontrou o seu povo em pecado, transgredindo as
Suas leis. Na verdade, eles haviam quebrado a aliança anterior que Deus havia feito com eles no
deserto. Várias vezes Deus se refere a ela como «a aliança que vós quebrastes"( ).
Jeremias fala com bastante propriedade deste assunto. Ele é absolutamente claro a
respeito dessa promessa do novo pacto.

Jr 33.8 – ―Purificá-los-ei de toda a sua iniquidade com que pecaram contra


mim; e perdoarei todas as suas iniqüidades com que pecaram e transgrediram
contra mim.‖

Ezequiel também fala, na aliança da paz, desse mesmo perdão, mas antes mostra o
estabelecimento do pacto eterno:

Ez 16.60 - "Mas eu me lembrarei da minha aliança, feita contigo nos dias da


tua mocidade; e estabelecerei contigo uma aliança eterna."

Israel havia pecado contra o Senhor desde a sua mocidade, pois eles haviam transgredido

238 Jown Owen, The Works of John Owen, vol. XXII, (The Banner of truth Trust, edição 1991), 156.
188

o pacto sinaítico, que é aliança que Deus havia feito nos dias da mocidade do povo, ainda no
deserto. Eles transgrediram a aliança feita no passado. Deus, então, olhando para o pacto
passado, diz de um pacto eterno que haveria de estabelecer com o povo. Seria uma aliança
estabelecida em dias ainda distantes, mas na história da sua revelação, quando a plenitude dos
tempos chegasse.
Depois, então, fala sobre os acontecimentos futuros de arrependimento do seu povo,
como produto dessa nova pacto, dizendo:

Ez 16.61-63 – ―Então te lembrarás dos teus caminhos, e te envergonharás


quando receberes as tuas irmãs, assim as mais velhas como as mais novas, e tas
darei por filhas, mas não pela tua aliança. Estabelecerei a minha aliança contigo, e
saberás que eu sou o Senhor; para que te lembres, e te envergonhes, e nunca mais
fale a tua boca soberbamente, por causa do teu opróbrio, quando eu te houver
perdoado tudo quanto fizeste, diz o Senhor Deus.‖

O perdão de Deus é algo que vem tendo como base o novo pacto do qual Jesus é o fiador.
Se uma pessoa não tem o perdão de Deus, certamente ela não faz parte do pacto.
Por causa da impotência do seu povo em obedecer todas as prescrições da Lei, Deus
enviou o seu Filho para morrer pelos pecados do povo, a fim de que o seu povo recebesse o seu
perdão. Embora Deus sempre tenha perdoado o seu povo, a base desse perdão está em Jesus
Cristo, que pagou pelas penas. Por causa do pagamento de Jesus, Deus não impõe nenhuma
pena sobre nós, cancelando a nossa divida. Isso é perdão!
Ezequiel ainda pinta em cores vividas o perdão que aconteceria quando o novo pacto fosse
estabelecido plenamente. Intimamente associada com a obra interior do espírito, dando um novo
coração, está a promessa do perdão dos pecados:

Ez 36.31 - «Então vos lembrareis dos vossos maus caminhos, e dos vossos
feitos, que não foram bons; tereis nojo de vós mesmos por causa das vossas
iniqüidades e das vossas abominações."

Esta é a primeira cousa que acontece depois que Deus bota um novo coração em nós:
temos a convicção de nossa imundície. O segundo passo é o perdão de Deus do qual tomamos
posse, que evidencia-se na limpeza de nosso coração:

Ez 37.33 – ―Assim diz o Senhor Deus: no dia em que eu vos purificar de todas
as vossas iniqüidades, então farei que sejam habitadas as cidades e sejam
edificados os lugares desertos."

6. A Promessa deles terem o Temor de Deus no Coração


Jr 32.39-40 - "Dar-lhes-ei um só coração e um só caminho, para que me temam todos os
dias, para seu bem e bem de seus filhos. Farei com eles aliança eterna... e porei o meu temor no
coração deles..."
Por causa do novo coração que Deus coloca nos filhos do Seu povo, eles também recebem
a capacidade de temer ao Senhor. E exatamente isto que Deus requer de todos aqueles com quem
entra em pacto. Deus requer deles a reverência devida à Sua majestade, o respeito à Sua
santidade, honra à Sua autoridade, e a glória devida ao Seu nome.
A beleza da graça divina é que Ele nunca exige dos filhos do Seu povo aquilo que Ele
mesmo não providencie. Os homens, por si próprios, nunca haveriam de ter o tipo de temor que
Deus requer deles. Então, ao mesmo tempo Ele exige esse temor, Ele próprio toma providências
para que isso seja possível. Deus prometeu primeiro um coração novo e, em seguida, ele
prometeu aquilo que sempre requereu de Seus filhos: «eu porei o meu temor no coração deles".
Os nossos mestres podem ensinar sobre o temor de Deus, mas eles não são capazes de fazer com
que temamos a Deus. Matthew Henry disse que ―os mestres podem colocar boas cousas em
nossas mentes, mas somente Deus pode fazer descê-las aos nossos corações, sendo Aquele que
189

pode operar em nós ambos, o querer e o realizar.‖ 239


Pensando nessa maravilhosa graça é que Davi suplicou ao Senhor para que o seu coração
temesse somente o nome do Senhor (Sl 86.11). Davi queria ter o coração voltado somente para o
Senhor, mas essa promessa não havia ainda sido explicitada pelo Senhor, pois os tempos de
Jeremias foram bem posteriores. Contudo, como um homem ―segundo o coração de Deus‖ que
era, Davi entendeu que esse temor somente ao nome do Senhor seria uma obra exclusiva do
Senhor. Nunca ele partiria do coração humano, sem que a Graça operasse. Por essa razão, ele
orou: ―Dispõe-me o coração para temer somente o teu nome‖.
Essas santas disposições que Deus coloca em nossos corações, são maravilhas da Sua
graça!

7. A Promessa de Bênçãos Contínuas

Jr 32.40-42 – ―Farei com eles aliança eterna, segundo a qual não deixarei de
lhes fazer o bem, Alegrar-me-ei por causa deles, e lhes farei bem . Porque assim diz
o Senhor: assim como fiz vir sobre este povo todo este grande mal, assim lhes trarei
todo o bem que lhes estou prometendo.‖

Por causa da fidelidade às suas promessas pactuais, Deus nunca dá Suas bênçãos pelas
metades. Ele sempre vai até o fim na concessão de Suas graças. A quem Deus ama, Ele ama até
o fim.
Deus promete-lhes fazer o bem continuamente porque Deus regozija-se neles> porque
eles lhe são caros. Deus se alegra em fazer lhes o bem. Por essa razão, Deus entrou em pacto com
eles de lhes fazer o bem. Deus se afeiçoou ao Seu povo, não por causa do que eles faziam, mas
para que eles viessem a fazer alguma cousa boa posteriormente. Por causa da Sua afeição a eles,
Deus reluta repreendê-los, mas tem enorme prazer em recebê-los de volta. Estas coisas são
expressas pelo profeta Isaías. Temporariamente Deus pode relutantemente disciplinar o seu povo
deixando-o à mercê de problemas, mas é somente por um momento do seu desprazer com nossos
pecados, mas as Suas bondades não param nunca de vir sobre nós. Através de Isaías Deus
expressou essa verdade, da seguinte forma:

Is 54.7-8 - "Por breve momento te deixei, mas com grandes misericórdias


torno a acolher-te; num ímpeto de indignação escondi de ti a minha face por um
momento; mas com misericórdia eterna me compadeço de ti, diz o Senhor, o teu
Redentor."

Todos os filhos de Deus têm sido objeto dessa bondade continuada de Deus, bondade que
não tem fim. Deus nunca deixou de fazer o bem ao seu povo em virtude do pacto. Rendamos
graças a Deus porque Ele tem sido fiel também a essa promessa.

8. A Promessa da Perseverança deles no Senhor

Jr 32.40 – ―Farei com eles aliança eterna... e porei o meu temor no coração
deles para que nunca se apartem de mim.”

Deus coloca o Seu temor no coração dos filhos do Seu povo para uma finalidade
específica: "Para que nunca se apartem de mim". Deus não somente começa a boa neles, mas faz
com que eles andem em novidade de vida até o final. Nunca os filhos do povo de Deus haverão de
abandonar ao Senhor. Eles haverão de perseverar até o fim. Nesse sentido o pacto é também de
duração perpétua.
A promessa de que eles nunca haveriam de se apartar do Senhor também é obra da
bondade graciosa de Deus. Nunca os filhos de Deus abandonam o Senhor porque o Senhor

239 Na Exp[osition of the New Testament, vol. V (London: James Nisbet and Co., 1856), 616.
190

nunca os abandona. O profeta Isaías deixa este ensino bem claro:

Is 54.10 – ―Porque os montes se retirarão, e os outeiros serão removidos; mas


a minha misericórdia não se apartará de ti, e a aliança da minha paz não será
removida, diz o Senhor, que se compadece de ti.‖

Em outras palavras, o profeta está dizendo que todas as cousas pode mudar, mesmo a
fisionomia da terra, mas não o propósito de Deus de permanecer com o seu povo. Deus haverá
sempre de estar unido ao Seu povo. Faz parte do pacto de Deus conosco nunca se apartar de nós.
O reflexo dessa bondade irretirável é a nossa permanência nEle. Por essa razão, nunca os Seus se
apartam de Si. Esta resposta do homem de perseverar no Senhor também é uma promessa de
Deus no novo pacto.
Não temos motivo qualquer para desconfiar da fidelidade de Deus em não se apartar do
Seu povo, mas temos todas as razões possíveis para duvidar da nossa permanência nEle. Somos
fracos e inconstantes, mas é uma promessa dEle que Ele próprio realiza em nós, a de que
haveremos de sempre permanecer firmes nEle, nunca nos apartando dEle. A nossa perseverança
nEle está embasada na perseverança dEle em permanecer em nós, causando a resposta positiva
para com Ele. Isso é graça abundante. Por isso o pacto é chamado ―novo‖, em contraste
com o antigo" que era ineficaz porque a lei de Deus não podia ser
interiorizada. Somente com a interiorização da lei é que podemos ficar
firmes no Senhor, obedecendo-Lhe os preceitos. Não há forma de não
apartar-se do Senhor sem que a Sua Palavra esteja em nosso coração!

9. A Promessa de terem para sempre o Tabernáculo do Senhor

Ez 37.26-27 – ―Farei com eles aliança de paz; será aliança perpétua.


Estabelecê-los-ei, e os multiplicarei, e porei o meu santuário no meio deles para
sempre. O meu tabernáculo estará com eles; eu serei o seu Deus e eles serão o meu
povo.‖

Esta promessa do novo pacto nunca deve ser entendida literalmente, como se referindo à
reconstrução do templo de Jerusalém, ensinada pelos dispensacionalistas. A própria Escritura
interpreta-se a si mesma. Esta promessa está relacionada à nova terra, quando a presença de
Deus estará para sempre conosco, e nós seremos o tabernáculo dele. Contudo, ele já começou a
erigir o seu tabernáculo, que é a Igreja, e nele já está habitando. A sua forma final, entretanto, se
dará no estabelecimento de todas as cousas novas, como declara Jesus Cristo a João em Ap 21.3
- "Então ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus
habitará com eles. Eles serão povos de Deus e Deus mesmo estará com eles." Perceba que a
promessa de ser o Deus do povo está contida tanto em Ezequiel como no Apocalipse, dentro do
contexto geral do pacto da graça e no contexto específico do novo pacto.
10. A Promessa de prover o grande Pastor para o seu povo

Ez 34.23,25 - "Suscitarei para elas um só pastor, e ele as apascentará; o meu


servo Davi é que as apascentará; ele lhes servirá de pastor... Farei com elas aliança
de paz, e acabarei com as bestas-feras da terra; seguras habitarão no deserto, e
dormirão nos bosques."

Ez 37.24 - "O meu servo Davi reinará sobre eles; todos eles terão um só pastor,
andarão nos meus juízos, guardarão os meus estatutos e os observarão.

Hb 13.20 - "Ora, o Deus da paz, que tornou a trazer dentre os mortos a Jesus
nosso Senhor, o grande Pastor das ovelhas, pelo sangue da eterna aliança."
191

Há algumas verdades que podem ser arrancadas destes dois versos:

a) Cristo é o Pastor Prometido


Obviamente, a referência a Davi diz respeito a Jesus Cristo, mesmo porque Davi vivera
séculos atrás. Ele é prometido no VI, sendo objeto de fé e de esperança da igreja em todas as
épocas.

b) Cristo é o Grande Pastor


Ele é o grande pastor em vários sentidos:
(a) Ele é grande em sua Pessoa, porque Ele é o eterno Filho de Deus. Ele teve poder sobre
a própria morte, vencendo-a;
(b) Ele é grande no seu Poder Ele é capaz de pastorear muitas ovelhas de uma só vez. Ele
preserva uma multidão inumerável de ovelhas espalhadas ao redor do mundo inteiro, livrando-as
dos lobos vorazes e das bestas-feras da terra;
(c) Ele é grande na sua Tarefa. Ele tem que alimentar, instruir e proteger todas as suas
ovelhas;
(d) Ele é grande na Sua Glória. Ele é um pastor exaltado que está acima de todas as
cousas criadas.

c) Cristo é o Único Pastor


Jo 10.16 -

d) Cristo é o Pastor das Ovelhas


Ele foi prometido no VT para ser o pastor do seu próprio rebanho. Is 40.11 - "Como pastor
apascentará o seu rebanho; entre os seus braços recolherá os cordeirinhos, e os levará no seio; as
que amamentam, ele guiará mansamente." No NT, Ele próprio confirmou esta verdade do VT. Ele
é pastor das "suas próprias ovelhas" (Jo 10).

e) Cristo tornou-se Pastor Pelo Sangue do Pacto


Cristo, como o grande pastor das ovelhas, foi trazido ao estado de morte pela sentença
judicial de Deus, porque ele tornou-se o representante dos pecadores pelos quais morreu, que
haviam violado a santa lei. A lei exigia que alguém pague a penalidade dos pecados. Jesus Cristo
assumiu voluntariamente a tarefa de morrer pelas Suas ovelhas. Aí é que Ele tornou-se pastor
delas. É por isso que o sangue de Jesus é chamado de o "sangue da eterna aliança".
A Escritura afirma de maneira categórica que Cristo, o bom pastor, "dá a sua vida pelas
ovelhas" (Jo 10.11, 14-15). É um pastor que ao mesmo tempo se sacrifica por Suas ovelhas e
recebe seu pastorado em virtude do sacrifício feito. O escritor aos Hebreus diz que Jesus Cristo ―é
o grande pastor das ovelhas pelo sangue da eterna aliança‖ (13.20).

f) Cristo é o Pastor que venceu a morte


O texto de Hb 13.20 diz que o ―grande Pastor das ovelhas‖ foi trazido da morte. Ao mesmo
tempo em que é dito que Jesus Cristo foi ressuscitado por Deus, é dito pelo próprio Jesus que Ele
mesmo, por seu próprio poder, haveria de ressuscitar dentre os mortos (Jo 10.17-18).

ASPECTOS DO NOVO PACTO


1. É uma Continuação do Pacto da Graça
Jr 32.38-40 -
As promessas feitas a Abraão são relembradas no Novo Pacto, porque este é uma
continuação daquele. Na verdade, este pacto é o aspecto final daquele.
192

2. É um Pacto Eterno
Jr 31.35-36
Ez 16.60 -
Ez 37.26 -
Hb 13.20 - Este pacto eterno pode ser concebido de duas maneiras: como o pacto entre o
Pai e o Filho a respeito da redenção da igreja.

3. É um Pacto que tem Jesus como o Fiador


Hb 7.22 –

4. É um Pacto que tem Jesus como Mediador


Hb 9.15 -

A CONTINUIDADE DO PACTO DA GRAÇA NO N.T.


(ver Klooster p. 88-97)

UNIDADE DO PACTO DA GRAÇA NOS DOIS


TESTAMENTOS
1. A Expressão Resumida do Pacto é a Mesma nos dois Testamentos
A expressão "eu serei o teu Deus» resume e caracteriza o pacto feito com Abraão (Gn 17.7),
com Moisés nas planícies de Moabe (Dt 29.9-13); com Davi (2 Sm 7.14), sendo repetida
especialmente no Novo Pacto (Jr 31.33 e Hb 8.10).
Em cada uma das várias dispensações do Pacto da Graça, Deus renova o Seu desejo de
ser o Deus do seu povo, e que as pessoas sejam como povo dEle. Em cada uma dessas
dispensações Deus mostra o seu desejo de restaurar o pecador à Sua comunhão, para que
creiam, sejam salvos e herdem a vida eterna. Do fato de Deus ser chamado "o Deus de Abraão,
Isaque e Jacó", Cristo deduz que estes patriarcas estejam de posse da vida eterna (Mt 22.32), pois
Deus não é Deus de mortos, mas de vivos.

2. O Evangelho do Pacto é o mesmo nos dois Testamentos


O anuncio da redenção do pecador tem a mesma conotação em ambas as dispensações. O
evangelho que anuncia o perdão de Deus e a sua disposição de salvar pecadores é o mesmo em
ambas as dispensações. Costuma-se pensar em círculos evangélicos que o evangelho é exclusivo
do período do Novo Testamento, e que a lei vigora somente no período do Velho Testamento. Não
há nada mais injusto do que essa afirmação. Ela é uma distorção da verdade e reflete uma
teologia que não harmoniza ambos os testamentos, mas os coloca em franca oposição. No seu
conjunto, as Escrituras Sagradas ensinam que há somente um Evangelho pelo qual o homem é
salvo. Se surgisse um outro qualquer, ele deveria ser anátema (Gl 1.8-9). O único evangelho é o
do pacto da graça, que tem sua origem no VI e sua magnitude no NT.
Paulo afirmou de maneira inequívoca que o evangelho foi anunciado no Velho
Testamento, a Abraão.

Gl 3.8-9 - "Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os


gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: 'Em ti serão abençoados todos os
povos'. De modo que os da fé são abençoados com o crente Abraão."
193

Qual era o conteúdo desse evangelho. Exatamente a promessa do pacto abraâmico. Todas
as famílias da terra seriam abençoadas com o crente Abrão. Isto significa que a boa-nova de
salvação haveria de atingir todas as terras, e não ficar somente nos limites de Israel.
Jesus Cristo, de uma maneira indireta, falando da revelação da sua vontade, disse a
respeito de Abraão: "Vosso pai Abraão alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se" (Jo
8.56). Pela fé Abraão contemplou o seu descendente e alegrou-se nele. Deus deu de uma forma
concreta promessas ao povo do VT que são as mesmas promessas de redenção que temos no
período do NT.

3. O Modo da Recepção da Salvação é a mesma nos dois Testamentos


Todas as promessas feitas por Deus têm que ser recebidas pela fé. Foi assim nos dois
testamentos. Abraão creu em Deus, e se apossou daquilo que podia ser apossado na época.
Rm 4.2-5 – ―Porque se Abraão foi justificado por obras, tem de que se gloriar, porém não
diante de Deus. Pois, que diz a Escritura? „Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para
justiça‟. Ora, ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e, sim, como dívida. Mas ao
que não trabalha, porém crê naquele que justifica ao ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça.‖
Abraão apossou-se das bênçãos salvadoras do mesmo modo que hoje nós nos apossamos
- pela fé.
Gl 3.8 – ―Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios,
preanunciou o evangelho a Abraão… para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios, em
Jesus Cristo, a fim de que recebêssemos pela fé o Espírito prometido.‖
Como recebemos Cristo pela fé e também o seu Espírito, assim acontecia nos tempos do
VT. A fé sempre foi o meio que Deus estabeleceu para que nos apossássemos de Suas bênçãos
salvadoras. Como o pacto é o mesmo em ambos os testamentos, o modo de recepção da salvação
não poderia ser diferente.
Abraão é considerado o ―Pai dos Crentes‖ (Rm 4.16). A lei, que veio 430 anos depois da
promessa feita a Abraão não pode cancelar as promessas que lhe foram feitas, pois elas são parte
integrante e imutável do pacto da graça (Hb 6.13-18).
Como no tempo de Abraão, o homem ainda continua a ser justificado pela fé. Os cristãos
de hoje são chamados "filhos e herdeiros de Abraão", porque a mesma promessa feita a Abraão é
para nós outros hoje (Gl 3.29).

4. O Mediador do Pacto é o mesmo em ambos os Testamentos

5. As promessas do Pacto são as mesmas em ambos os Testamentos

a) A Promessa á Descendência de Abraão ser Povo de Deus no VT e NT


Em Lv 26.12 Deus promete que o povo de Israel seria o seu povo. Será que essa promessa
é válida para nós hoje, os que vivemos após a revelação neo-testamentária? A resposta é positiva.
Quem a coloca em termos absolutamente claros é Pedro, aquele mesmo discípulo que possuía
anteriormente uma visão bastante judaizante de "povo de Deus".

1 Pe 2.9-10 - "Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real> nação santa, povo
de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que
vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz, vós, sim, que antes não éreis
povo, mas agora sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas
agora alcançastes misericórdia."

Pedro não está escrevendo simplesmente a judeus da Ásia Menor, mas aos eleitos de
Deus que haviam sido dispersos por causa da sua fé em Cristo Jesus. A "dispersão" (v.1) não foi
de judeus, mas de cristãos.
194

Raça Eleita
Esta referência, como todas as outras analisadas abaixo, tem uma conotação primária
referindo-se ao povo do VI'. O sabor dessas expressões é sempre judaico. Mas Pedro reinterpreta
essa expressão. Aqui ele se refere à igreja de Jesus Cristo de todos os tempos, que é o povo eleito
de Deus por quem Cristo deu a Sua vida. Essa raça eleita, que é o povo de Deus, compreende
gente de toda a parte, "dos quatro ventos da terra" (Mt 24.31), a quem os anjos virão buscar, para
levá-la para o seu destino eterno com Deus.

Sacerdócio Real
Novamente, o pano-de-fundo do pensamento petrino é a teologia do VI'. Contudo, Pedro
fala de um sacerdócio diferente, que não é restrito à tribo de Levi, mas composto de todos aqueles
que vieram a ter acesso a Deus pela mediação única, perfeita e definitiva de Jesus Cristo. Todos
os que Cristo remiu vêm a ser sacerdotes do Altíssimo, para reinarem com Ele, como nação
santa, no meio deste mundo. E essa a idéia que João passa quando escreve em Ap 1.5-6 – ―…
Aquele que nos ama, e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados, e nos constituiu reino,
sacerdotes, para o seu Deus e Pai…‖. Deus, por meio de Cristo, nos constituiu seus sacerdotes,
isto é, nos separou para o seu serviço, tornando-nos consagrados para Ele.

Nação Santa
O povo de Deus no VT se restringia basicamente à nação de Israel. A base dessa afirmação
de Pedro tem raízes na sua origem hebréia. E perfeitamente compreensível que Pedro tivesse em
mente alguns textos do VI' em mente, quando falou essas cousas (Ex 19.6; Dt 14.2). Contudo, o
pensamento de Pedro não se restringe simplesmente ao povo do VI', mas aplica-o ao povo do NT.
A "nação santa" da qual Pedro fala não é mais a nação israelita. Ele tem em mente algo bem mais
amplo. Ele está pensando em todos, incluindo judeus e gentios, que eram separados do mundo,
sendo consagrados inteiramente a Deus. Por essa razão, Pedro fala em 1 Pe 1.2 que eram eleitos
de Deus e santificados pela obra do Espírito. Agora não eram mais judeus ou gentios. Essa
qualificação era secundária. O que importava é que eram, agora, devotados a Deus, separados
para o Seu serviço. Eram totalmente de Deus. Como nação santa, haveriam de testificar aos do
mundo quem Cristo era e o que Ele lhes havia feito.

Povo de Propriedade exclusiva de Deus


Esta é uma outra expressão com sabor judaico, mas com conotação diferente do
exclusivismo anteriormente assumido por Pedro. Esta expressão está carregada do tempero
judaico, pois o pano de fundo da mentalidade de Pedro era velho-testamentário. Mas agora, com
a nova visão que Cristo lhe havia dado, Pedro conseguia enxergar essa matéria com uma outra
cosmovisão. "Povo de Deus" passou a ser uma expressão com significado bastante ampliado.
Assim como nos tempos do VI' Israel era o povo exclusivo de Deus, assim o povo crente de todas
as épocas veio a ser esse "povo de propriedade exclusiva de Deus". Esse "povo" havia sido
batizado pelo sangue de Jesus Cristo (1 Pe 1.2). Cristo fazia a enorme diferença. Não um Cristo
somente de Judeus, mas o Cristo de toda a descendência de Abraão, isto é, daqueles todos que
criam nEle.
O fato de os crentes de todas as épocas, sejam judeus ou gentios, estarem incluídos nesse
"povo de propriedade exclusiva de Deus" está patente em 1 Pe 2.10: "Vós que antes não éreis
povo, mas agora sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora
alcançastes misericórdia."

Antes não éreis povo


Esta expressão é sacada de Oséias 1.9. Observe que essa linguagem tem o sabor de Gn
17.7.0 povo de Israel no passado foi deixado de lado, por causa de seu adultério espiritual. Deus
não mais o considerou seu povo por causa da pecaminosidade dele. Por causa de seus pecados,
eles foram cortados dos privilégios do pacto, porque o que Deus queria era a fidelidade a Ele, e o
fato de serem descendentes físicos de Abraão não tinha importância. Deus havia dito a Abraão
que a descendência dele seria suscitada de todas as famílias da terra, não unicamente da nação
195

física de Israel.

Agora sois povo de Deus


Esse "agora" está relacionado aos crentes do período do NT, que Deus prometeu a Abraão
levantar de todas as famílias da terra. Essa expressão é um eco da promessa de Deus a Abraão
(Gn 13.16; 15.5;
17.5-7). Esse é o povo da fé, da qual Abraão é o pai. O Senhor lembra a Pedro as suas
promessas pactuais feitas anteriormente a Abraão e à sua semente. Agora Deus levanta um povo
crente a quem ele chama de "povo de Deus", que antes não era porque era incrédulo. O que conta
é a fé, porque sem fé é impossível agradar a Deus.
O Israel que volta a ser "povo de Deus" não mais é o povo da nação localizada na
Palestina, mas o povo que recebe a verdade de Deus e crê nele de todo o coração, esteja ele onde
estiver. Todas as famílias da terra tem representantes nesse povo de Deus. Do particular para o
universal. O povo de Deus compreende os crentes de todas as nações, conforme o Senhor
prometeu a Abraão.
É exatamente esse o sentido que Paulo atribui ao texto de Os 2.23, quando o interpreta
em Rm 9.22-26. Ele inclui os gentios crentes como parte integrante do povo de Deus, e usa o
evento de Oséias para ilustrar essa verdade.
No povo de Deus estão incluídos, tanto no VT como no NT, todos aqueles que receberam a
revelação divina e creram nela. A luz da revelação neo-testamentária, o verdadeiro povo de Deus,
tanto do VI' como no NT, é o povo fiel, que creu nas promessas de Deus, e que são chamados de
"filhos de Abraão", ou "descendência de Abraão.

b) A Promessa de Yehovah de ser o Deus da Descendência de Abraão no VT e no NT


Esta promessa, contida em Lv 26.12, não é uma promessa exclusiva ao Israel antigo, ao
povo localizado ao sul do Líbano, mas é uma promessa vinculada ao elemento "pístico". Todos
aqueles que Deus chama para Si, vêm a ter Yehovah como seu Deus, crendo nele de todo o
coração.
Nos tempos do VI' Deus era Deus somente de Israel, mas isto passou a não ser uma
verdade prática, pois muitos da nação não criam nele. Eram infiéis.

Os 2.2-4 diz: "Repreendei vossa mãe, repreendei-a, porque ela não é minha
mulher, e eu não sou seu marido, para que ela afaste as suas prostituições de sua
presença, e os seus adultérios de entre os seus seios; para que eu não a deixe
despida... e não me compadeça de seus filhos, porque são filhos de prostituições."

Por essa razão, Deus deu uma grande lição ao profeta Oséias, dizendo que Israel não mais
seria o seu povo. Por isso Deus chamou um dos filhos de Oséias como "Não-meu-povo", dizendo
que não mais seria povo dEle, nem Yehovah seria o Deus deles (Os 1.9). Deus retirou a sua
misericórdia deles, porque a prostituição espiritual, ou seja, a idolatria, separa Deus do povo.
Contudo, Deus não deixou que essa situação permanece assim para sempre. Deus
compadeceu-se da "Desfavorecida" e do "Não-meu-povo", prometendo-lhes que haveriam de ser
novamente "seu povo, e que Deus seria novamente o Deus deles (Os 2.23). A graça de Deus
manifesta-se de um modo brilhante. Toda a parte final do de Oséias 2 é uma amostra do amor
gracioso de Deus para com o seu povo. Ao povo que havia sido negada a misericórdia, agora Deus
mostra a misericórdia, outra vez. Por essa razão, eles passam a ser povo de Deus outra vez,
porque Deus resolve ser novamente o Deus deles.
Pedro toma essas idéias sacadas de Oséias, e as aplica ao povo cristão, composto de
judeus e gentios, remido por Cristo Jesus.

1 Pe 1.10b – ―Vós que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora


alcançastes misericórdia‖

Esse povo não é exatamente a mesma coisa que 'nação política judaica". É um povo
196

especial, escolhido de todas as nações, conforme Deus havia prometido a Abraão. Deus
apiedou-se do seu povo e lhe deu misericórdia. Note-se que esse povo que recebe misericórdia é o
povo a quem Deus prometeu a Abraão. Não se pode perder de vista esse fato. Deus está apenas
lembrando a Pedro as suas promessas feitas anteriormente ao Pai da Fé.

c) A Promessa da Posse da Terra no VT e NT


Hb 11.8-16.0 v.13 diz que ―todos estes morreram na fé‖, referindo-se a Abraão, Sara,
Isaque e Jacó. Eles haviam recebido a promessa da terra para a sua inumerável semente, mas
morreram sem terem visto a concretização dessas promessas. Há que se lembrar que a promessa
foi feita a Abraão e para Abraão, mas ele não viu o que Deus lhe havia prometido. O texto diz que
Abraão «viu as promessas de longe, saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e
peregrinos nesta terra." (v. 13).
Contudo, Deus não falhou na sua promessa para Abraão. A Canaã terreal era apenas
típica da pátria superior, a celestial, ou a nova terra. Abraão ainda vai tomar posse, com toda a
sua descendência numerosa, a descendência crente, dessa terra prometida. Na verdade, há um
sentido em que Abraão já está de posse da promessa, pois creu em Deus (Hb 6.15). Todavia, no
final de todas as cousas, ele tomará posse plena da terra que Deus lhe deu. A terra prometida, em
última instância, não tinha nada a ver com aquela da qual os hebreus tomaram posse com
Josué. Os pais da fé, foram estrangeiros e peregrinos nesta terra (Gn 23.2-4), mesmo estando no
lugar que sabemos ser a terra prometida. No discurso que o levou à morte Estevão, falando de
Abraão, disse:

At 7.4-5 – ―Então saiu da terra dos caldeus e foi habitar em Harã. E dali, com
a morte de seu pai, Deus o trouxe para esta terra em que agora habitais. Nela não
lhe deu herança, nem sequer o espaço de um pé; mas prometeu-lhe dar a posse
dela, e de depois dele à sua descendência, não tendo ele filho‖

Há algumas coisas neste texto que precisam ser lembradas. Houve a promessa da terra;
Abraão chegou a habitar nela, não obteve sequer um pedacinho dela, embora Deus prometesse a
posse dela. Na verdade, chegando a habitar na terra porque Deus o havia trazido, Deus não lhe
deu a terra, porque a terra que Abraão vai tomar posse, depois que todas as cousas redentivas se
completarem, é a nova Canaã da qual a primeira é apenas sombra. Essa é a terra que a
descendência de Abraão, isto é, os que são os seus filhos na fé, haverão de tomar de tomar posse
definitivamente.
A finalidade deles era uma outra terra, de natureza diferente e superior. Foi na fé de
alcançar essa verdadeira e definitiva terra é que morreram. Há um sentido que já estão hoje de
posse da promessa, mas há um outro sentido que ainda vão tomar posse literalmente da nova
terra que Deus prometeu dar a todos os da descendência de Abraão, a quem Jesus Cristo veio
socorrer.
Portanto, no VT há a promessa da terra, que veio a ser conquistada pelos hebreus com
Josué. No NT continua a mesma promessa, mas só que com natureza diferente. Hb 11.16 diz que
essa é uma "pátria superior". Está totalmente claro que a promessa da terra, em última
instância, não era da natureza presente desta terra. O desejo do coração do pai da fé era uma
terra superior, de natureza celestial. Por celestial deve ser entendido o que faz contraste com o
que é terreno nos termos em que a terra se encontra agora. A cidade que Deus preparou para os
seus é a nova terra, com a qual todos os crentes sonham e aspiram. A Canaã terreal é sim bolo e
tipo da Canaã celestial. A primeira é sombra da segunda, como muitas cousas do VI' são em
relação às do NT.
6. Os Sacramentos do Pacto da Graça são os mesmos em ambos os
Testamentos
(ver Neilands, p.58-63)
197

CAPITULO XIII

OS PECADOS ATUAIS

A ORIGEM DOS PECADOS ATUAIS


É crença generalizada entre os Reformados que herdamos a corrupção do pecado através
dos nossos pais, por geração ordinária, o que não é o caso da culpa, pois ela vem por imputação
direta do pecado de Adão. Por geração ordinária, então, toda a raça humana é infectada pelo
pecado original, que é a origem e a fonte de todos os nossos pecados atuais. É do pecado que vêm
os pecados que cometemos consciente ou inconscientemente. A fonte dos pecados está em nossa
natureza corrupta.
Com razão, Paulo fala delas como sendo as "obras da carne", isto é, as obras nascidas em
nossa natureza pecaminosa, em contraste com o fruto do Espírito, que é nascido em nossa nova
natureza, renovada pelo próprio Espírito Santo (Gl 5.17-22).

Veja o Ensino de Jesus


Jesus ensina com extrema propriedade a respeito do nascedouro dos nossos pecados
atuais. A lista de pecados que Ele apresenta é apenas uma demonstração clara de que eles são
nascidos numa natureza pecaminosa que infectou a parte mais interior do ser humano, que é o
coração.

Mc 7.15-23 - "Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa


contaminar; mas, o que sai do homem é o que o contamina. Se alguém tem
ouvidos para ouvir, ouça. Quando entrou em casa, deixando a multidão, os seus
discípulos o interrogaram acerca desta parábola. Então lhes disse: Assim também
vós não entendeis? Não compreendeis que tudo o que de fora entra no homem não
o pode contaminar, porque não lhe entra no coração, mas no ventre, e sai para
lugar escuso? E assim considerou ele puros todos os alimentos. E dizia: O que sai
do homem, isso é o que o contamina. Porque de dentro, do coração dos homens, é
que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os
adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a
soberba, a loucura: Ora, todos estes males vêm de dentro e contaminam o
homem."

Jesus começou ensinando que nada que vem de fora do homem pode causar-lhe
contaminação, porque, para contaminar o homem tem contaminar o seu ser mais interior, que é
o coração. Somente o mais interior pode infectar todo o ser humano.
Quando a fonte esta poluída, tudo o que vem dela também sai poluído. O ser mais interior
do homem esta contaminado e como todas as cousas vêm do coração, todas elas estão também
infectadas. Não há como fugir deste raciocínio que o próprio Senhor nos ensinou. Os pecados que
cometemos são nascidos numa natureza mais interior que é maculada indelevelmente de forma
198

de contamina tudo o que sai dela. Todos os nossos pecados atuais, segundo Jesus Cristo, vêm de
dentro, do coração dos homens.
O pecado original enraizado no coração corrupto é a fonte de onde procedem todas as
correntes poluídas. Se a fonte é amarga, amargas serão todas as correntes que se originam nela.
Os frutos são de acordo com a natureza da árvore. E este o ensino de Jesus Cristo sobre
os nossos pecados atuais (Mt 7.16-20; 15.18-20; 12.33-35).

Veja o ensino de Paulo


Rm 7.5

Veja o ensino de Tiago


Os pecados atuais são gerados em nossa natureza corrupta, como demonstra Tiago:
1.14-15 - "Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz.
Então a cobiça, depois de haver concebido, da á luz o pecado; e o pecado uma vez consumado,
gera a morte."

OS VÁRIOS NOMES DOS PECADOS ATUAIS


Os pecados atuais, isto é, os pecados que cometemos, tendo como nascedouro a nossa
velha natureza, têm vários nomes da Escritura.
— Eles são equivalentes às "obras da carne" de Gálatas 5.
— Eles são equivalentes às "inclinações da nossa carne" e a vontade da carne e dos
pensamentos" de Ef 2.3.
— Eles também são chamadas de "os feitos do corpo" (Rm 8.13), porque a nossa natureza
velha é chamada de "corpo do pecado" (Rm 6.6). Os "feitos do corpo" são nascidos no "corpo do
pecado", porque os pecados são originados no pecado que habita em nós.

OS PECADOS ATUAIS E SUA RELAÇÃO COM A LEI


DE DEUS
Todos eles têm a ver com a "transgressão da lei" (1 Jo 3.4). Uma ação é boa ou má
dependendo da sua concordância ou discordância da lei de Deus. Sempre uma ação deve estar
em conformidade ou desconformidade com ela. A lei divina é o paradigma de comportamento do
ser humano. Ela é o único norte que o homem tem para guiar-se. Portanto, não há forma de se
escapar da lei moral de Deus. Por essa razão, nunca uma ação humana é moralmente neutra.
Não existem ações neutras. Todas elas estão, de algum modo, vinculadas à lei que Deus
estabeleceu. Deus criou o mundo moral de forma que nada escapa às leis morais estabelecidas
por Ele. Portanto, todas as ações dos homens devem ser consideradas à luz do relacionamento
delas com a lei estabelecida. Portanto, não há neutralidade alguma nas ações dos homens.

A MULTIPLICIDADE DOS PECADOS ATUAIS


São inúmeras as formas em que os pecados atuais se manifestam. "As obras da carne"
mencionadas por Paulo em Gl 5.19-21 podem ser divididas da seguinte maneira:
Pecados sexuais - Prostituição, impureza e lascívia
Pecados da religião - idolatria e feitiçarias
Pecados de relacionamento - inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões,
facções e invejas.
Pecados da incontinência - bebedices e glutonarias
199

OS OBJETOS DOS PECADOS ATUAIS


Pecados diretos contra Deus
Em última instância, todos os pecados mesmo os cometidos contra os homens, são
pecados contra Deus, porque todos eles estão vinculados com a transgressão da Sua lei. Certa
feita, José foi convidado pela mulher de Potifar a deitar-se com ela. Ao receber essa proposta,
José reagiu de maneira corretíssima porque entendeu que os nossos pecados ofendem a Deus,
antes que aos homens (Gn 39.7-9). Davi também possuía consciência absoluta dessa verdade.
Quando pecou contra Betsabá e contra Urias, ele reconheceu que, antes de pecar contra eles, ele
havia pecado contra Deus. Por essa razão, ao escrever o Salmo 51, disse: "Pequei contra ti, contra
ti somente, e fiz o que é mal perante os Teus olhos..."
Todavia, há certos pecados que são cometidos de uma maneira direta contra o Ele. São
pecados atrevidos, que mostram a irreverência e o destemor de Deus.
Muitos homens há que perderam todo o senso de temor a Deus e mostram seus pecados
atrevidamente. Em Jó 15.25, Elifaz descreve que o ímpio "estendeu a sua mão contra Deus e
desafiou o Todo-Poderoso". A Escritura é farta de exemplos desses pecados diretos contra Deus.
Referindo-se à atitude atrevida e maldosa dos ímpios que prosperam, o Salmista disse
que eles «motejam e falam maliciosamente; da opressão falam com altivez. Contra os céus
desandam a boca, e a sua língua percorre a terra" (Sl 73.8-9)
A maldade e ingratidão de Israel fé-lo portar-se de maneira absolutamente petulante
contra Deus, pois Isaías menciona a hediondez desse pecado, dizendo que

Is 3.8 - "Jerusalém esta arruinada, e Judá caída; porquanto a sua língua e as


suas obras são contra o Senhor; para desafiarem a sua gloriosa presença."

Os pecados cometidos diretamente contra o Senhor estão enquadrados na primeira tábua


da lei:
1) O pecado de criar outros deuses - Este é o pecado contra o primeiro mandamento (Ex
20.2). Desde a queda os pecadores procurar criar deuses, segundo a sua própria imagem e
semelhança, para poderem adorar. Uma das primeiras providências dos pecadores rebelados
contra o verdadeiro Deus foi arranjar outros diante de quem pudessem dobrar-se. Por essa razão,
esse é o primeiro mandamento divino: "Não terás outros deuses diante de mim". Ninguém deveria
curvar-se diante de outro ser que não o Yavéh. Somente Ele é o Senhor. Este pecado contra o
primeiro mandamento é uma violência direta contra o Senhor. A violência desse pecado é maior
porque os homens fazem isso na presença do Senhor. Diante do verdadeiro Deus os homens, e
até os do seu povo, erigiram imagens de escultura a quem adoraram.
2) O pecado da idolatria - Este é o pecado contra o segundo mandamento (Ex 20.4-5).
Moisés repete este ensino de maneira mais detalhada em Dt 4.12, 14-19). O ensino deste texto
ensina que o próprio Deus não pode ser adorado com uma representação. Deus proíbe
terminantemente a construção de representações da divindade. Deus pergunta: ―Com quem
comparareis a Deus? ou que cousa semelhante confrontareis com ele?" (Is 40.18). Então, Isaías
passa a descrever a respeito da idolatria, que o Senhor abomina (v. 19-20). A ereção de imagens
para adoração é uma ofensa direta ao Senhor dos céus. Este é um pecado muito comum em
culturas não cristãs, e uma tendência, mesmo que disfarçada em meios cristãos. 240 A idolatria é,
de certa forma, uma conseqüência dos homens suprimirem a verdade de Deus pela injustiça (Rm

240 Diante da acusação dos protestantes, os da tradição Católica tentam fazer uma distinção entre

latre/ia (latréia, que é o culto que se presta a Deus) e doule/ia (douléia, que é reverência ou culto que se presta
aos santos), para justificar as suas atitudes cúlticas. Contudo, não é uma distinção justa, pois ambos
termos etmologicamente podem ser usados indistintamente, tanto aplicando-se ao Criador como às
criaturas (cf. At 20.19; Rm 12.11; At 7.42; Rm 1.25). a Escritura não conhece nada desta distinção.
Portanto, não podemos aceitar a justificativa dessa tradição do cristianismo.
200

1.18). Por essa razão, eles "mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem
de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis" (Rm 1.23).
Por causa dos pecados da idolatria, Deus pronuncia maldição: "Maldito o homem que
fizer imagem de escultura, ou de fundição, abominável ao Senhor, e a puser em lugar oculto. E
todo o povo responderá: Amém" (Dt 27.15). A maldição em algum sentido se manifesta pelo fato
desses adoradores viverem sempre em confusão teológica e espiritual: "Sejam confundidos todos
os que servem imagens de escultura, os que se gloriam em ídolos; prostrem-se diante deles todos
os deuses" (Sl 97.7).
3) O pecado de tomar o nome do Senhor em vão - Este é o pecado contra o terceiro
mandamento (Ex 20.7). As ênfases deste pecado estão ligadas com a) o juramento falso usando o
nome de Deus (Lv 19.2; Zc 5.4); b) com a blasfêmia contra o nome do Senhor (Lv 24.16). A
punição por esse pecado era a morte, tão grande era a gravidade dele. A gravidade desse pecado
direto contra Deus está ligada ao fato de o Nome de Deus representar o que e quem Ele é. O nome
é revelador da natureza de Deus; c> com a uso indevido do nome de Deus. Por essa razão, o nome
de Deus não poderia ser usado sem um critério absolutamente rígido.
4) O pecado de desprezo ao dia de descanso - Este é o pecado contra o quarto
mandamento (Ex 20.8-11).
Há outras formas desse pecado, como o do ateísmo, por exemplo. Todos eles são diretos
contra o Senhor. Eles estão ligados, via de regra, aos pecados da religião, mencionados acima.

Pecados contra o próximo


Todos os pecados ofendem primeiramente a Deus, mas segundariamente aos homens.
Estes pecados têm a ver com a violação da segunda tábua da lei:
1) O pecado de desonra aos pais - Este é o pecado contra o quinto mandamento (Ex 20.12)
2) O pecado do assassínio - Este é o pecado contra o Sexto Mandamento (Ex 20.13). O
homicídio pode ser manifesto de várias maneiras: matricida (l Tm 1.9), parricidas (l Tm 1.9),
fratricidas (Gn 4.8). Após a queda de nossos primeiros pais, foi a primeira manifestação dos
pecados atuais. Caim, matou o seu próprio irmão, Abel. Esse pecado de tirar a vida do próximo
parece ter sido um pecado abundantemente praticado> desde o princípio da história humana.
Justamente por causa do abuso desse pecado, antes mesmo do período Mosaico, Deus
estabeleceu uma lei que quem mata, deve pagar com a vida. Gn 9.6 - "Se alguém derramar o
sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua
imagem." A ira de Deus contra esse pecado é tão grande que Ele preceitua, e nunca desfaz esse
preceito: "Quem matar a alguém, será morto" (Lv 24.17). Somente aquele que dá a vida, e as
autoridades constituídas tem o direito de tirá-la. Ninguém mais o pode individualmente.
3) O Pecado do adultério - Este é o pecado contra o sétimo mandamento (Ex 20.14). Os
pecados sexuais tem inúmeras manifestações.
4) O Pecado do roubo - Este é o pecado contra o oitavo mandamento (Ex 20.15).
5) O Pecado do falso testemunho - Este é o pecado contra o nono mandamento (Ex 20.16).
6) O Pecado da cobiça - Este é o pecado contra o décimo mandamento (Ex 20.17).
Todos estes pecados da segunda tábua estão ligados aos pecados de relacionamento
mencionados acima.

Pecados contra si próprio


Estes pecados podem ter várias manifestações: Os pecados vinculados á imoralidade
sexual, especialmente à prostituição e fornicação. Escrevendo aos Coríntios, Paulo diz de uma
maneira inequívoca: 1 Co 6.18 - "Fugi da impureza! Qualquer outro pecado que uma pessoa
cometer, é fora do corpo; mas aquele que pratica a imoralidade peca contra o próprio corpo."
Os pecados vinculados à incontinência, como os mencionados acima: bebedice e
glutonaria. A bebedice é um pecado contra o próprio homem, porque faz com que ele perca o
controle sobre si próprio (Ef 5.18), perdendo o exercício devido sobre a mente. A bebedice leva o
homem e sua família à ruína, à pobreza financeira e à desonra. Faz com que ele perca o seu
tempo e o seu físico e psiquê ficam prejudicados.
O pecado vinculado ao sexto mandamento, que é a violência contra si próprio, deve
201

encaixar-se neste ponto. Os estóicos, achavam que o suicídio era uma forma heroísmo, enquanto
que alguns psicólogos modernos acham que o suicídio é uma manifestação de coragem. Contudo,
o suicídio é pecaminoso porque mostra a falta de coragem para enfrentar as lutas desta vida
presente. Os que atentam contra a próprio vida é porque não são suficientemente fortes para
bater de frente contra as tempestades, ou porque não possuem coragem para assumir as
próprias fraquezas ou pecados cometidos. Assim como nenhum homem pode tirar a vida do
outro, também não pode tirar a sua própria vida. Deus é o doador dela e é também quem a tira.

OS MODOS DOS PECADOS ATUAIS


Pecados Internos
Estes são os pecados do coração, ou dos pensamentos, como querem alguns. Na verdade,
todos os pecados têm o seu nascedouro no coração, que é o órgão central da personalidade
humana. O assento deles está no ser mais interior do homem, mas alguns deles ficam somente
no coração, sem que sejam externalizados. Esses pecados atuais São escondidos dos homens e,
muitas vezes, disfarçados de bondade. Os pensamentos dos homens São produto do seu coração
corrompido, assim como as suas imaginações (Pv 6.18). Todos os movimentos do pecado têm a
sua primeira tramitação no interior do homem. Esses pecados são conhecidos somente por Deus
e pelo pecador.
Geralmente, esses pecados são os mais graves, porque São escondidos e, geralmente, as
pessoas têm vergonha de confessá-los publicamente devido à hediondez deles. A estes o Senhor
odeia (Pv 6.18)! Os pensamentos e as imaginações mais impuras ficam secretas. A grande
maioria desses pecados não são convertidos em palavras e ações. Uma pessoa não é conhecida
necessariamente pelo que faz (porque ela pode apresentar atos de bondade para ser vista pelos
outros), nem pelo que diz (porque pode falar hipocritamente), mas certamente seria conhecido
pelo que pensa ou imagina no seu coração. O escritor de Provérbios diz que «porque, como
imagina em sua alma, assim ele é" (Pv 23.7). O homem é aquilo que o seu coração indica ser,
porque o coração humano sempre haverá expressar inequivocamente o que o homem é em sua
natureza. "Como na água o rosto corresponde ao rosto, assim o coração do homem ao homem"
(Pv 27.19). Portanto, somente pelo raciocínio ou imaginação do coração é que o homem é
verdadeiramente conhecido.

Pecados Externos
Estes são cometidos à luz do sol, sem qualquer constrangimento, temor ou vergonha. Eles
São conhecidos dos homens e São, igualmente, condenáveis e condenados pelos próprios
homens, antes que o julgamento de Deus venha sobre eles. Paulo diz a Timóteo que «os pecados
de alguns homens são notórios e levam a juízo, ao passo que os de outros, só mais tarde se
manifestam" (l Tm 5.24).
Estes pecados externos São os pecados da língua e os das ações.

Os pecados da língua são mais freqüentemente cometidos contra os homens, mas


também contra Deus. Contra os homens há maledicências, linguagem obscena, maldições,
mentiras; contra Deus há as blasfêmias, zombarias. Os pecados da língua estão resumidos no
dito de Jesus, que os condena veementemente:

Mt 12.36 - "Digo-vos que de toda palavra frívola que proferirem os homens,


dela darão conta no dia do juízo; porque pelas tuas palavras serás justificado, e
pelas tuas palavras serás condenado."

Os pecados das ações podem ser feitos escondidos de muitos homens, mas São
externalizados, saindo do domínio do conhecimento unicamente do pecador. Estes podem ser
202

descobertos facilmente. Podem ser feitos diretamente contra Deus e contra os homens. Contra
Deus em forma de adoração errônea e inaceitável; contra os homens ele encontra múltiplas
formas.
Os pecados interiores são os mais numerosos. Contudo, os que São considerados de
grande magnitude São os atos, aqueles que os homens podem ver. A razão dessa magnitude é
porque eles estão combinados com os pensamentos e, freqüentemente, com as palavras deles.
Contudo, da mesma forma que os pensamentos e as palavras, ―Deus há de trazer à juízo
todas as obras até que as que estão escondidas, quer sejam boas, quer sejam más‖ (Ec 12.14).
Então, Jesus conclui: «Apartai-vos de mim todos vós que praticais a iniquidade" (Mt 7.23).
Uma outra divisão muito comumente encontrada para esses modos de pecados é:
pecados por pensamentos, palavras e ações.

AS PARTES DOS PECADOS ATUAIS


Pecados de Omissão
O pecado de omissão diz respeito àquilo que deveria ser feito e que não o foi. E a
não apresentação daquilo que está ordenado por Deus. Embora muitos
não prestem atenção a esse pecado, é tão grave quanto os pecados de
comissão, porque procede da indisposição em fazer a vontade preceptiva
de Deus. Tiago menciona claramente esse tipo de pecado quando diz: Tg 4.
17 – ―Portanto, aquele que sabe que deve fazer o bem e não o faz, nisso está
pecando‖.
Os pecados de omissão São freqüentes, embora ignorados, pois a atenção dos homens
está mais ligada aos pecados de comissão que, em geral, São considerados mais graves. Mas
Jesus mostra que a omissão daquilo que é bom é tão grave como o fazer daquilo que é mau.
Nos seus vários ―ais‖, um deles é dirigido aos que pecavam por omissão:

Mt 23.23 – ―Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! porque dais o dízimo da


hortelã, do endro e do cominho, e tendes negligenciado os preceitos mais
importantes da lei, a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas
coisas, sem omitir aquelas.‖

A gravidade do pecado de omissão está patente no fato de Jesus mencioná-los como


motivo de condenação dos homens:

Mt 25.42-43 – ―Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me
destes de beber; sendo forasteiro, não me hospedastes; estando nu, não me
vestistes; achando-me enfermo e preso, não fostes verme.‖

Eles São muitíssimo mais comum do que pensamos em nossa vida. Tenhamos cuidado
para que não sejamos pegos deixando de fazer o que deveríamos fazer!

Pecados de Comissão
O pecado de comissão tem a ver com o fazer aquilo que a lei proíbe, ou com a feitura
daquilo que é bom, mas com motivo sujo ou impuro. Em algum sentido já tratamos deles em
partes anteriores deste capítulo.
203

OS GRAUS DOS PECADOS ATUAIS


Não existe diferença de grau nos pecados atuais se nós os entendermos do ponto de vista
da sua natureza. Todo pecado é uma ―transgressão da lei" de Deus. Nesse sentido, todos eles São
iguais.
Contudo, há pecados muito mais sérios que outros pelo estrago que causam na família ou
na comunidade maior pela hediondez deles. O estrago tem a ver com os homens e a hediondez
com Deus. Os pecados diretos contra Deus São os mais ofensivos do que os cometidos contra os
homens. Os pecados da primeira tábua São mais ofensivos do que o da segunda.
Jesus deixou claro que há pecados onde alguns homens São mais culpáveis que outros.
Quando Pilatos falou a Jesus da sua autoridade de prender e de soltar, Jesus disse que Pilatos
tinha culpa do seu pecado, mas disse que quem O havia entregue a Pilatos tinha um pecado
maior (Jo 19.11). Há pecados mais graves que outros porque alguns São cometidos
deliberadamente, atrevidamente, insolentemente contra o Senhor.
Os graus de pecados atuais estão em proporção às diferentes espécies de punições
estabelecidas por Deus. Jesus Cristo disse com respeito aos pecados de algumas cidades
judaicas, após ter feito milagres do meio delas:

Mt 11.21-24 - "Ai de ti, Corazim! ai de ti, Betsaida! porque se em Tiro e em


Sidom se tivessem operado os milagres que em vós se fizeram, há muito que elas
se teriam arrependido com pano de saco e cinza. E contudo vos digo: No dia do
juízo haverá menos rigor para Tiro e Sidom, do que para vós outros. Tu,
Cafarnaum, elevar-te-ás, porventura, até o céu? Descerás até o inferno; porque se
em Sodoma se tivessem operado os milagres que em ti se fizeram, teria ela
permanecido até ao dia de hoje. Digo-vos, porém que menos rigor haverá no dia do
juízo para com a terra de Sodoma, do que para contigo".

O rigor maior e o menor estão vinculados à gravidade de pecados cometidos á luz das
oportunidades recebidas.

Pecados de Ignorância
Há um sentido em que todos os pecados São cometidos na ignorância, se por ignorância
entendemos que o indivíduo está em trevas espirituais. Embora culpados, aqueles que
crucificaram Jesus Cristo, o fizeram na ignorância. Não é de estranhar, pois, que Paulo tenha
dito:

1 Co 2.8 – ―… sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século


conheceu; porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da
glória.‖

Por esta razão, depois de pecarem, essas pessoas não possuem qualquer reconhecimento
de pecado, nem remorso ou qualquer outro tipo de tristeza. E porque desconhecem os preceitos
estatuídos por Deus na sua lei. Paulo fez tudo o que fez sem sentir qualquer remorso, e fez
pensando estar fazendo o que devia fazer. Ele não se desculpa na ignorância, mas mostra que a
ignorância é a causa de muitos pecados. Ei-lo, argumentando:

L Tm 1.13 – ―a mim que noutro tempo era blasfemo e perseguidor e insolente.


Mas obtive misericórdia, pois o fiz na ignorância, na incredulidade.”

Paulo ainda não possuía a luz. Andava em trevas e praticava todas as blasfêmias e
insolência, em nome de Deus, pensando estar agradando a Deus, a quem, a seu modo, ele servia.
204

Pecados deliberados
Embora a maioria dos pecados seja cometida na ignorância, há muitos deles que são
cometidos deliberadamente. Em geral, os homens conhecem as leis gerais de Deus, mas São
atrevidos e pecam conscientemente, sabendo que estão afrontando a Sua lei. Estes pecados são
de maior gravidade. A gravidade e a seriedade desses pecados é mostrada pelo escritor da Carta
aos Hebreus:

Hb 10.26 - "Porque, se vivemos deliberadamente em pecado, depois de termos


recebido o pleno conhecimento da verdade, já não resta sacrifício pelos pecados."

Provavelmente, o autor sacro esteja se referindo ao conhecimento da doutrina, criticando


aqueles que conscientemente pecam contra Deus conhecendo a verdade de Deus.
Nestes últimos dias têm havido pessoas que pecam contra Deus de um modo deliberado
esquecendo-se da verdade de que o universo veio à existência pela palavra de Deus. Por essa
razão, eles zombam de Deus, andando em paixões ímpias.

2 Pe 3.3-5 – ―Tendo em conta, antes de tudo, que, nos últimos dias, virão
escarnecedores com os seus escárnios, andando segundo as suas próprias
paixões, e dizendo: Onde está a promessa da sua vinda? porque desde que os pais
dormiram, todas as cousas permanecem como desde o princípio da criação Porque
deliberadamente esquecem que, de longo tempo, houve céus bem como terra, a
qual surgiu da água e através da água pela palavra de Deus.‖

Os homens se esquecem destas verdades propositadamente. Eles já foram informados


que o Senhor é o Criador e que Ele há de voltar para julgar o mundo, mas abusadamente ignoram
a verdade de Deus. Isto é grave abominação ao Senhor.

A gravidade de ambos os pecados:


A gravidade de um pecado tem a ver, em alguma medida, com o fato dele ser feito
deliberada ou ignorantemente. Veja o que Jesus diz sobre eles:

Lc 12.47-48 – ―Aquele servo, porém, que conheceu a vontade do seu senhor e


não se aprontou, nem fez segundo a sua vontade, será punido com muitos açoites.
Aquele, porém, que não soube a vontade do seu senhor, e fez cousas dignas de
reprovação, levará poucos açoites. Mas àquele a quem muito foi dado, muito lhe
será exigido; e àquele a quem muito se confia, muito mais lhe pedirão.‖

Tanto o pecado cometido conhecendo a lei como desconhecendo-a São passíveis de


punição, mas a severidade da punição é que varia. A ignorância não desculpa ninguém.

DISTINÇÕES DOS PECADOS ATUAIS


Pecados Remissíveis e Irremissíveis
Todos os pecados do povo de Deus são remissíveis. Deus perdoa todas as suas
iniqüidades, e sara todas as suas enfermidades, com base naquilo que o Salvador deles fez na
cruz.
Contudo, há os pecados daqueles que foram deixados em seus delitos e pecados. Estes
pecados não foram remidos. Eles receberão o salário do pecado deles, que é a morte
(condenação), e não a vida eterna. Esses pecadores sofrerão pessoalmente a punição de Deus por
causa dos seus pecados, mas não serão remidos deles.
Há ainda, na Escritura, a menção de um outro pecado atual, nascido na natureza
205

pecaminosa do homem, que é chamado em teologia de pecado imperdoável, constituindo-se na


blasfêmia contra o Espírito Santo. Essa blasfêmia não pode ser perdoada nem neste mundo, nem
no porvir (Mt 12.31-32).
206

CAPITULO XV
A PUNIÇÃO DO PECADO

A palavra "pena" (penalidade) deriva do latim poena, aparecendo já na Idade Média, como
um conceito teológico para denotar a punição por causa do pecado original.

A ORIGEM DA PUNIÇÃO
Berkhof diz que os castigos tem "a sua origem na retidão, isto é, na justiça punitiva de
Deus, por meio da qual Ele se sustém como o Santo e necessariamente exige santidade e retidão
de todas as Suas criaturas racionais."241 O pecado é a violação das leis divinamente estabelecidas
e, por causa da santidade divina, merece ser punido. Portanto, a punição denota um castigo
imposto por Deus aos infratores da sua lei.
O pecado não pode ficar sem punição justamente por causa da santidade e da justiça de
Deus. Porque a Sua lei foi infringida, Ele, de necessidade, tem que punir o pecado.

OS PROPÓSITOS DA PUNIÇÃO DIVINA242


a) Vindicar a Retidão ou a Justiça Divina

b) A Reforma do Pecador

c) Fazer com que os homens desistam de pecar

TIPOS DE PUNIÇÃO DIVINA


Teologicamente, costuma-se falar de dois tipos de castigos que o pecado traz:

(a) Castigos Naturais


Destes castigos os homens não podem livrar-se nem pelo arrependimento nem pelo
perdão de Deus. Esse tipo de castigo é o resultado natural do pecado. Há várias maneiras de se
ilustrar os castigos naturais: Um homem promíscuo sexualmente, fatalmente haverá de
transmitir as suas doenças venéreas aos seus filhos, mesmo que ele tenha se arrependido
profundamente de sua vida promíscua; Um homem preguiçoso haverá de levar à penúria sua
família, mesmo que chore ou que Deus perdoe a sua negligência de trabalho (Pv 6.6-11; 13.4;
19.15; 21.25; Ec 10.18); Um homem beberrão trará ruína sobre si e sobre sua família (Pv 23.21,
29-35). A inevitabilidade desse tipo de castigo natural é algo incontestável!
A Escritura tem alguns exemplos do fato do homem ceifar aquilo que ele planta: Jó 4.8;
S19.15; 94.23; Pv 5.22

241 Berkhof, Teologia Sistemática, p. 307 (edição castelhana).


242 Idéias tiradas de Berkhof, pp. 307-309.
207

(b) Castigos Positivos


Estes castigos não pressupõem simplesmente as leis naturais da vida, mas revelam uma
atitude positiva do Santo Legislador. São imposições judiciais de Deus sobre o pecador nesta
vida. Eles São a expresSão do caráter moral de Deus, que se ira contra aqueles que violam as
Suas leis claramente estabelecidas (Lv 26.21; Nm 15.30-31; 1 Cr 10.13; S175.8; Is 1.24, 28, etc.
Estes castigos São uma imposição direta de Deus sobre os homens, sejam eles Seus servos ou
não.

A PUNIÇÃO DE MORTE
A morte é uma penalidade imposta por Deus por causa do pecado, embora esta idéia
tenha sido contestada na história da Igreja cristã. Os pelagianos pensaram que a morte não tinha
nada a ver com o pecado. Os homens morreriam de qualquer forma. A razão da morte dos
homens estaria na sua finitude. Portanto, a morte era parte da natureza criada, não penalidade
pelo pecado.
Entretanto, a Escritura afirma expressamente que a morte tem necessariamente a ver
com o pecado. Ela é punição do Santo Legislador sobre os infratores da Sua Lei. A morte é o
julgamento de Deus sobre o pecador (Ez 18.4; Rm 6.23).

O Conceito de Morte
Antes de tudo, é necessário entender a idéia de morte. Morte não é extinção, não é
aniquilamento, nem cessação de existência, mas separação.
O homem foi criado imortal. Quando ele pecou, ele não deixou de ser imortal, se por
imortalidade entendemos a existência continuada, mas ele morreu, isto é, ele ficou separado de si
mesmo pela morte física e separado de Deus pela morte espiritual.

O poder sobre a morte


Quem tem o poder da morte? Deus ou o Diabo? Esta é uma pergunta que tem que ser
respondida com muita cautela. A resposta depende do entendimento que temos sobre o que
significa ―poder‖.
Embora a morte seja o resultado de um pronunciamento judicial de Deus (como veremos
abaixo), há certas passagens que parecem indicar que a morte tem algo a ver com a hegemonia de
Satanás com a morte (Hb 2.14-15). Se nós distinguimos entre a morte como um evento e morte
como um estado, o conflito aparente é resolvido. 243 A Escritura uniformemente coloca a morte
como um evento nas mãos de Deus. Deus tem o poder da morte em Suas mãos (Ap 1.18; Lc 12.5),
porque é Ele quem concede a vida. Quem tem o poder de dar a vida, também tem o poder de
tirá-la. Quem paga o salário da morte é Deus, não o diabo. Contudo, temos que entender que
Satanás reina no estado de morte, estando, todavia, sob o domínio de Deus. Satanás não tem
poder de impingir morte sobre ninguém, mas as pessoas que morrem estão sob o domínio dele,
até que esse domínio seja retirado dele, e ele também enfrente o juízo de Deus no final.

A Causa Judicial da Morte


A Escritura diz que "a morte é o salário do pecado" (Rm 6.23).
A morte é o resultado judicial do pecado, não o resultado natural do pecado do homem.
Também não podemos crer que o homem morreria de qualquer maneira. A morte não é parte da
natureza humana, nem o homem não foi criado para existir em um estado de morte.
Os Pelagianos afirmaram que o homem morreria de qualquer forma> mesmo que não
houvesse pecado. A morte faz parte da criação. Para o pelagiano a morte é o seguimento natural

243 The Encyclopedia of Christianity, vol. III, 333.


208

na vida do ser humano. Para os pelagianos "as referências bíblicas sobre a morte como
conseqüência do pecado São entendidas como referências à morte espiritual, separação de Deus,
antes do que à morte física."244 Alguns discípulos de Barth diriam que o problema da morte está
vinculado ao fato do homem ser finito. O pecado apenas complica o problema da finitude do
homem. Embora Pelágio pensasse que o homem morreria de qualquer forma, mesmo que não
houvesse pecado, e que Barth tenha pensado que a morte seja um problema da finitude do
homem, é geralmente aceito entre os cristãos que a morte é anatural,
sendo uma imposição penal de Deus sobre os pecadores. Os Calvinistas,
contudo, afirmam categoricamente que a morte é uma imposição judicial
de Deus sobre o homem pecador.
Desde os primeiros concílio regionais da igreja Cristã tem-se defendido que a morte é
castigo, sendo um elemento anatural na existência humana. Num dos Concílios de Cartago,
lutando contra um pelagianismo presente na vida da igreja, foi dito: ―Se alguém disser que Adão
foi criado mortal de tal forma que ele teria morrido no corpo se tivesse pecado ou não, seja
anátema.‖245 Portanto, não podemos aceitar a morte como natural, mas como uma imposição
judicial de Deus por causa do pecado. Lutero foi veemente na sua idéia da causa da morte:

"A morte dos seres humanos é, portanto, diferente da morte dos animais. Este
morrem por causa da lei da natureza. Nem é a morte do homem um evento que
ocorre acidentalmente ou que tenha meramente um aspecto de temporalidade. Ao
contrário, a morte do homem, se assim posso falar, foi ameaçada por Deus e é
causada por um Deus encolerizado e estranho. Se Adão não houvesse comido da
árvore proibida, ele teria permanecido imortal. Mas porque ele pecou pela
desobediência, ele sucumbe à morte como os animais que estão sujeitos a ele.
Originalmente, a morte não foi parte de sua natureza. Ele morre porque provoca a
ira de Deus. A morte é, em seu caso, a conseqüência merecida inevitável de seu
pecado e desobediência."246

A morte do homem, portanto, tem conexão com a justiça divina. Não somente é uma
tragédia, mas uma penalidade, uma imposição judicial da qual nenhum pecador foge.

PUNIÇÃO NA EXISTÊNCIA PRESENTE


1. MORTE ESPIRITUAL

A Natureza dessa morte


Quando Adão foi criado, ele vivia em perfeita harmonia com Deus, possuindo uma vida
natural perfeita. Havia comunhão da criatura com o Criador. Todavia, quando Adão
desobedeceu, a morte veio sobre ele. Essa morte espiritual é a ausência da vida, ou seja, a
ausência da comunhão com Deus. Por causa do fato de todos estarem incluídos no pacto das
obras, todos eles recebem a imputação da culpa de Adão, vindo a este mundo na condição de
mortos espirituais. Exceto Cristo, todos os seres humanos São concebidos em estado de morte.
Todos vêm ao mundo separados de Deus, sem a vida dEle. Todos nascem com inclinação
contrária aos preceitos de Deus. Paulo fala claramente que aqueles "que se inclinam para a carne
cogitam das coisas da carne; mas os que se inclinam para o Espírito, das cousas do Espírito.

244 Millard J. Erickson, Christian Theology, (Baker, 1990), p. 612.


245 Citado por Custance, The Seed of the Woman, p. 87.
246 Martin Luther, Luther‟s Works – Selected Psalms II, edited by Jeroslav Pelikan, (St Louis:

Concordia Publishing House, 1965), vol. 13, pp. 94-95, 96.


209

Porque o pendor da carne dá para a morte, mas o do Espírito, para a vida e paz" (Rm 8.5-6).
Aquele que está morto espiritualmente está sem a vida de Deus.

O tempo dessa morte


Além de Cristo Jesus, Adão foi o único ser humano que veio ao mundo sem esta morte.
Ele veio a morrer depois que ele pecou contra o Senhor Deus. Deus lhe disse: No dia em que
comeres, certamente morrerás" (Gn 2.17). Esta morte da qual Deus falou é a morte espiritual, e
não a física. Esta última veio posteriormente, alguns séculos mais tarde. Contudo, no momento
em que Adão pecou, ele perdeu a comunhão com Deus.
Mas quando tratamos da progênie de Adão, a situação é diferente. Lógica e
temporalmente, esta é a primeira morte que acontece nos descendentes de Adão, por causa do
pecado. O ser humano já é concebido com ela. Por natureza, o homem é um natimorto, isto é, ele
vem ao mundo sem qualquer comunhão com Deus, porque ele é contado entre os que estão em
Adão. Quando o ser humano é concebido, ele já é separado de Deus, porque, por natureza ele já
e "filho da ira" (Ef 2.2), separado do favor e do amor do Senhor.

O Modo que essa morte chegou até nós


Dentro da história da igreja alguns vieram a crer que Adão foi um exemplo para todos os
homens, de forma que todos os que o imitaram, vieram a morrer como ele. Assim pensaram os
pelagianos; outros vieram a crer que Adão transmitiu a nós, por geração ordinária, isto é, de pai
para filho, uma natureza enfraquecida, mas não pecaminosa em si mesma. Cada um,
individualmente, vem a morrer por causa dos pecados feitos voluntária e pessoalmente. Assim
pensaram os arminianos247; uma outra linha de pensamento foi a dos realistas que ensinaram
que a morte espiritual é transmitida pelo fato de todos terem estado seminalmente em Adão.
Quando Adão morreu, todos morreram, porque todos estavam voluntariamente presentes no
Éden quando Adão foi criado e caiu248; Os Reformados ensinam que esta morte espiritual vem
pelo fato de todos os homens, exceto Jesus Cristo, estarem incluídos no pacto das obras,
estando, portanto, representados pelo primeiro Adão. O texto de Rm 5.12-21, que trata da
imputação de pecado, explica como a morte de Adão passou a ser também a nossa morte.

A Inescapabilidade dessa morte


Não há ninguém que esteja em Adão que não receba esse tipo de morte. Não há como
evitá-la. Quando Deus disse a Adão "No dia em que dela comeres certamente morrerás" (Gn
2.17), a morte realmente aconteceu. Não houve morte física imediata, mas morte espiritual. Os
nossos primeiros pais perderam a sua comunhão com Deus, e até fugiram de Sua presença. O
texto diz: "Naquele dia certamente morrerás". Não há como evitar a literalidade deste verso. 249
Adão e sua companheira, de fato, morreram naquele dia.
A ênfase de Gn 2.17 é na inescapabilidade dessa morte, não no fato dela ser imediata.
Quando Adão pecou, o veneno do pecado o infectou e ele morreu. Com a sua morte, toda a sua
progênie nasce na mesma condição de morte.
Essa é a única morte que o crente experimenta inescapavelmente, pois o fato de sermos
eleitos de Deus não nos isenta dela. Como veremos adiante, poderemos ser livres da morte física
como pagamento de penalidade; poderemos ser livres da morte eterna, mas não de morrer
espiritualmente. Vimos ao mundo com esta condição, e ninguém escapa de sofrer essa morte,
embora possa vir a escapar de ser morto espiritualmente para sempre, por
graça divina.

247Ver Orton Wiley, Christian Theology, 125.


248Ver W. G. T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. II, 30 sgts.
249 Há um exemplo paralelo que trata da morte física de Simei, mas a idéia ―daquele dia‖ é similar à

de Gênesis 2.17 (ver 1 Rs 2.36-46).


210

A Duração dessa morte


Não podemos evitar ser mortos espiritualmente, mas podemos ser livres desse estado de
morte, quando recebemos a vida nova implantada em nós através da obra regeneradora do
Espírito Santo. Portanto, essa morte dura até que a pessoa seja tirada dela pela ação renovadora
do Espírito Santo. Paulo disse: "E estando nós mortos em nossos delitos e pecados, (Ele) nos deu
vida juntamente com Cristo — pela graça sois salvos" (Ef 2.5). Nós somos libertos desse estado de
morte quando o Espírito nos conecta com a vida. Quando essa obra espiritual acontece,
imediatamente saímos do estado de morte, porque a Escritura diz que aquele "que está em Cristo
é nova criatura", que passou da morte para a vida.

2. OS SOFRIMENTOS DESTA VIDA


Os sofrimentos desta vida são conseqüência de os homens serem concebidos no estado de
morte espiritual. Eles sofrem as conseqüências externas e internas da morte espiritual. Os
sofrimentos desta vida afetam a totalidade da personalidade do homem, seu corpo e todas as
faculdades de sua alma. O pecado trouxe uma afetação para o ser humano por inteiro. Tudo
virou desordem depois da queda.

Sofrimentos no ser material


Os hospitais, as prisões, os manicômios, os asilos e as casas de recuperação São apenas
algumas amostras do sofrimento da raça humana que, em última análise, se reporta ao pecado
humano.
Corpo - Desde que vimos ao mundo, todos somos nascidos em pecado e, portanto, em
miséria física, sujeito às enfermidades desde o ventre materno. Alguns já herdam males de seus
pais, males que haverão de acompanhá-los por toda a existência terrena. A debilidade física que
dia a dia afeta mais duramente o nosso organismo é uma das humilhações mais duras que o ser
humano experimenta.
Há alguns casos onde as doenças físicas vêm por causa do pecado, como o próprio Senhor
Jesus afirmou (Jo 5.14), embora nem sempre seja esse o caso (Jo 9.2).

Sofrimentos no ser Imaterial


Mente - Depois da queda, a mente humana ficou afetada e já não consegue raciocinar
corretamente, ficando sujeita a distúrbios dos mais variados. A grande maioria das nossas
doenças somáticas tem nascedouro em nossas problemas mentais. Infelizmente não há a
aceitação dessa triste verdade: grande parte dos humanos sofre de qualquer distúrbio mental,
tudo provocado pelos incômodos desta vida que, numa conclusão bem refletida, reconhece-se
que é por causa da maldade humana, o pecado.
Vontade - A capacidade decisória do homem é afetada pelos distúrbios mentais, onde a
mente já não sabe julgar direito. Portanto, suas decisões são loucas e insensatas.
Emoções - Por causa da afetação da mente, as afeições do homem estão desordenadas, e
os desequilíbrios emocionais tornaram-se cada vez mais constantes. As clinicas de distúrbios
emocionais não caberiam se todos reconhecessem seu sofrimento afetivo-emocional. Cada vez
mais o nosso mundo pecaminoso tende a tornar mais infeliz a vida dos homens.
A corrupção se dirigiu a todas as parte do ser humano. E isto é um sofrimento terrível do
qual todos desejam escapar.
Estes sofrimentos são causados pelo fato do homem estar mergulhado no pecado, fato
que tem a ver com a morte do homem, assunto a ser tratado posteriormente. É a separação do
homem de Deus e de si mesmo que causam esses sofrimentos e distúrbios na totalidade da vida
humana.

Sofrimentos do ser Social


Por causa dos pecados toda a sociedade sofre. Os relacionamentos ficam quebrados e as
pessoas tornam-se inimigas umas das outras com a maior facilidade.
Segundo a Escritura, há outras duas punições por causa do pecado, em forma de morte:
a morte física e a morte eterna.
211

3. MORTE FÍSICA
Esta morte é a mais conhecida, experimentada e lamentada por todos os homens, porque
todos podem vê-la como uma experiência constante e palpável. Ela é a que mais afeta
emocionalmente as pessoas e é dela que todos têm medo, porque pensam que ela é o pior que
lhes pode acontecer. Em geral, as pessoas não conseguem ver a morte física como parte da
punição divina, pois não levam a sério as advertências da Escritura. A morte física é
freqüentemente a mais temida porque ela separa as pessoas umas das outras, o que causa muita
dor, mas não é este o verdadeiro significado dela. A conseqüência maior é para a pessoa que
morre, pois ela é a separação que acontece na própria pessoa, como veremos logo abaixo.

A Natureza da Morte Física


Lógica e temporalmente, esta é a morte que se segue à morte espiritual. A morte física é a
separação temporária entre o corpo e a alma. E nessa morte que nós somos separados de nós
mesmos, isto é, o nosso eu material é separado do nosso eu imaterial.
A morte física é uma violência grande e justa da parte de Deus sobre o homem pecador.

"A morte não é um processo natural, mas algo totalmente anatural - uma
violenta separação das duas partes do seu ser que Deus nunca quis que fossem
separadas; uma ruptura, um despedaçar, uma mutilação de sua
personalidade."250

No estudo sobre a constituição original do homem, vimos que o corpo é visto como sendo
o próprio homem, não um acessório temporal que é descartável. Quando o corpo se separa da
alma, costumamos dizer que o corpo morreu, mas essa não é a verdade. E verdade que o corpo se
tornou inerte, sem anima, sem vida, mas ele nunca cessa de existir, mesmo que no pó de onde
veio. A imortalidade é algo próprio do homem como um todo. Não somente a sua alma, mas
também o seu corpo é imortal. Portanto, é muito melhor dizer que o homem morreu, porque no
momento do desenlace, o homem (corpo) é separado de si mesmo (alma). Ambas as partes
constituintes da natureza humana vão para lugares diferentes até o tempo da ressurreição.
Tanto o corpo quanto a alma não cessam de existir, apenas ficam separados como uma forma de
castigo de Deus sobre eles. Esse é o estado de morte que o homem fica até que o dia do juízo
chegue.

O Processo da Morte Física


O texto de Gn 2.17 diz: "No dia em que comeres certamente morrerás". Não houve uma
morte imediata do corpo, mas a semente da morte foi plantada no homem. Após o comer do fruto
proibido, Deus retardou a punição da morte física de Adão, que veio a
acontecer alguns séculos mais tarde, pois Adão viveu mais de novecentos
anos. Esse retardamento da punição da morte física é um ato da bondade
de Deus com a sua primeira criatura, e com todas as outras que já nascem
espiritualmente mortas.
Stephen Charnock, o grande pregador presbiteriano-puritano de Londres, comentando
sobre o texto de Gênesis, disse: "Assim, deve ser entendido, não como uma morte real do corpo,
mas como o merecimento da morte, e a necessidade da morte."251 O homem tinha que sofrer a
punição dos seus pecados, também no corpo.
Após a queda, não somente houve a morte espiritual, mas o veneno de morte foi injetado
no corpo humano. A partir do seu ato pecaminoso, Adão começou a morrer. Após o pecado, a

250 James Orr, God‟s Image in Man, (Eerdmans reprint, 1948), p. 251-252.
251 Citado por W. G. T. Shedd, Dogmatic Theology, vol. 3, p. 336.
212

morte começou a fazer parte da existência física do homem. Esta idéia é refletida na esperança de
Paulo, assim como na esperança de todos os filhos de Deus, que experimentam os efeitos dessa
morte. Em 2 Co 5.1-5 Paulo fala da ânsia de ser revestido de uma nova habitação, isto é, de ser
revestido de um novo tabernáculo, um corpo novo, uma nova qualidade de vida física, que se
dará na ressurreição. Este corpo que é mortal, isto é, que experimenta os efeitos da morte, vai ser
renovado, ser revestido da vida na ressurreição. Não anelamos pela morte, mas pelo revestimento
que caracterizar-se-á em forma de vida plena. A nossa natureza plena, corpo e alma, será
restaurada na completação de nossa salvação. Esta é a esperança de Paulo, e nossa. Mas até que
isso aconteça, estaremos ainda sob o efeito da morte em nós.
Enquanto a morte espiritual foi um evento, a morte física é um processo. O homem não
morre de uma vez, mas ele morre lentamente, até que o corpo seja separado da alma, no suspiro
final.
Desde que nascemos, já sentimos os efeitos do pecado em nosso corpo: as doenças logo
aparecem e, depois de alguns anos, o processo de queda já se torna evidente. Nós morremos aos
poucos. Custance disse:

"Assim a Adão e aos seus descendentes imediatos deve ser permitido


sobreviverem o tempo suficiente para o estabelecimento da raça humana. Mas,
uma vez estabelecida, daí por diante a longevidade poderia ser reduzida em nome
da segurança da raça que, por sua vez uma vez mais se destrói a si mesma por sua
potencialidade para invenções ímpias que o fator da vida longa tornou muito
provável."252

O ser humano não tem morte física instantânea pelo fato de ser pecador, mas porque a
raça precisa ser preservada, e porque assim Deus determinou em virtude de Sua longanimidade
para com os homens. Por causa da Sua natureza, Deus não destrói o homem de uma só vez.
Custance disse: "A penalidade de comer do fruto não foi o encurtamento de uma vida que possuía
um término determinado de qualquer modo, mas a introdução de uma experiência totalmente
nova - a morte física." 253 A morte física também começou quando o pecado entrou na vida
humana. A consumação da morte física foi apenas uma questão de tempo.

A Inescapabilidade da Morte Física


A Escritura diz que Jesus Cristo morreu voluntariamente (Jo 10.18). Jesus escolheu não
somente o tempo de Sua morte, mas a morte em si. Ele ofereceu-Se à morte. A morte para Ele foi
algo ativo. Não foi algo que Ele sofreu, impossível de ser evitado. Ele não precisava morrer, se não
quisesse. Ele não era pecador e, portanto, ele não devia morrer de necessidade. Contudo, Ele
voluntariamente entregou-se à morte, mas os homens pecadores não possuem essa escolha.
A Escritura diz de maneira clara em Hb 9.27 diz que "aos homens está destinado
morrerem uma só vez, e depois disso o juízo". Esse é um decreto divino que está sobre pecadores.
Está ordenado que todos os pecadores venham infalivelmente à morte, porque ela é o "salário do
pecado". Todos os homens morrem fisicamente. Deste fato ninguém escapa, exceto aqueles
cristãos que viverem na parousia de Jesus Cristo, porque eles não estarão debaixo da
necessidade de morrer. Sobre isto falaremos mais tarde.
A morte é algo passivo para nós homens, não algo ativo com foi para Cristo. Não
escolhemos morrer. Simplesmente morremos infalivelmente. E algo que sofremos, uma execução
de uma sentença com base na violação da lei estabelecida pelo santo Legislador. A morte é
inevitável para o pecador. Os pecadores todos estão sujeitos à morte. Cristo humilhou-Se a Si
mesmo (Fp 2.8), mas os seres humanos pecadores são humilhados pela morte. Ele
escolheu a morte, e a morte tem colhido todos os homens. Por quê? Porque
está ordenado aos homens morrerem (Hb 9.27). Não há alternativa para os

252 Arthur C. Custance, The Seed of the Woman, (Ontario: Doorway Publications, 1980), p. 86.
253 Custance, The Seed of the Woman, p. 161.
213

seres humanos caídos. Todos eles morrem, pessoal ou vicariamente 254,


porque todos os pecados deles têm que ser punidos, por causa da
necessidade da justiça divina ser exercida.
Uns morrem mais cedo, prematuramente (em nossa ótica); outros mais tarde, no tempo
conhecido como próprio, mas para todos é apenas uma questão de tempo. Ninguém escapa dela.

A Morte Física do Cristão


É justo dizer que a morte do cristão é um pagamento de penalidade também? Quando o
cristão morre ele está sofrendo o castigo pelos seus pecados?
Para se responder a esta pergunta, é necessário que tenhamos uma exata idéia da morte
substitutiva de Jesus Cristo.
O cristão, quando morre, já não mais está pagando a penalidade de seus pecados, mas
morre como uma conseqüência inevitável do estado de pecado em que este mundo se encontra.
Ele morre porque ele tem que desfrutar todos os benefícios da salvação que não podem ser
desfrutados plenamente nesta vida, por causa dos efeitos do pecado, ainda permanentes neste
universo de Deus. Temos ainda as doenças, as tristezas, as angústias, etc., que São
conseqüências do pecado em nossa raça, mas Deus nos livrará desse tipo de morte, desse
estigma que nos afeta a todos os seres humanos, sem exceção. Até que a redenção se complete no
final, ainda sofreremos os resultados do pecado no mundo. Mas não podemos dizer que a morte
física dos redimidos por Cristo seja o salário de seus pecados (cf Rm 6.23), porque Jesus Cristo já
pagou a morte por eles. A morte deles é apenas o fim das dores e das tristezas da vida presente.
A morte para eles é a porta da comunhão perene com Deus, a porta da vida plena, é o acesso
direto à presença do Salvador deles, na plenitude da comunhão imperdível, que é a vida eterna.
Enquanto o corpo dos redimidos espera receber anima (o que se dará na ressurreição final), a
alma dos redimidos já goza da redenção, mas não em plenitude, até que a salvação se complete
na redenção do corpo.
A morte do cristão, portanto, não deve ser considerada como uma obra judicial de Deus,
pois Deus é justo e não faria com que Seus filhos pagassem novamente aquilo que já foi pago pelo
Seu Filho, o Redentor deles. Os crentes ainda morrem, mas a morte deles não é mais um
julgamento de Deus. Jesus disse que aqueles que estão em Cristo ―já passaram da morte para a
vida‖ (Jo 5.24). Consolando as irmãs, Marta e Maria, que haviam perdido o irmão Lázaro, Jesus
disse: "Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá; e todo o que
vive e crê em mim, não morrerá, eternamente. Crês isto?" (Jo 11.25-26). Lázaro apenas "dormiu",
segundo Jesus. A sua morte foi apenas um descanso das fadigas desta vida, mas Lázaro "vivia
mesmo no estado de morte, não uma morte judicial, mas com o sabor de alívio do estado em que
vivia, até que a redenção dele fosse completada.
Houve casos de pessoas de Deus que não experimentaram a morte, como a entendemos
hoje, como o de Enoque, Elias, e todos aqueles que estiverem presentes na geração da segunda
vinda do Senhor Jesus Cristo (1 Ts 4.13 sgts). Não há necessidade da morte deles, porque Jesus
Cristo já pagou a penalidade no seu lugar.
Aqueles que não tiveram seus pecados pagos pelo Redentor é que morrerão como uma
penalidade por seus pecados, "porque está destinado aos homens morrerem uma só vez, e depois
disto o juízo" (Hb 9.27). A morte física deles já é parte do juízo, embora não do juízo final de Deus.
Há algumas razões para se afirmar que a morte do cristão não é parte da punição divina:
a) Se os sofrimentos físicos e a morte física São castigo pelos pecados, estamos negando
que Cristo fez uma obra de salvação completa.
Ao contrário, Sua obra foi de tal forma que Ele não deixou nada para os seus

254 Nem todos os cristãos têm que morrer necessariamente. Paulo diz aos Tessalonicenses (1 Ts

4.13-18) que os crentes que estiverem vivendo na vinda (parousia) de Cristo não morrerão, mas todos serão
transformados, o que não significa morte. A morte para eles não é necessária, porque Jesus Cristo já pagou
as dívidas deles, e este pagamento inclui a morte física. E esta verdade é um consolo para eles. Morte como
necessidade, não mais! Todavia, há aqueles que têm que enfrentar a morte como penalidade. É destes que
este capítulo trata mais detidamente.
214

representados pagarem. Nenhuma penalidade cai sobre eles porque por eles todos Ele
entregou-Se a Si mesmo. Através do Seu sacrifício, Deus foi plenamente reconciliado com o Seu
povo e o povo vem sendo reconciliado com Deus. Se Deus tivesse que punir o seu povo por causa
de seus pecados, a obra redentora de Jesus Cristo não seria completa. Na verdade não seria
redenção! Mas Deus removeu toda a penalidade do pecador e lançou-a sobre o representante
deles, Jesus Cristo.
b) Se os sofrimentos físicos e a morte física são punição de Deus pelos pecados, estamos
negando que a punição divina é muito mais séria do que os sofrimentos ou a morte física. A
justiça de Deus exige muito mais do que os sofrimentos desta vida ou a morte física. Se essas
duas cousas são punição divina para o cristão, ele está cooperando no pagamento que Cristo fez,
que é incompleto. Se a morte física é pagamento, a justiça de Deus é pouco exigente. Por que
Cristo haveria de nos livrar somente de parte da punição e não dela toda? Se estas cousas são
penalidade, Cristo deixou algumas contas para serem pagas, o que diminui o valor da obra de
Cristo.
e) Se os sofrimentos físicos e a morte do cristão São punição pelos pecados, essa punição
varia muito na vida dos homens, independentemente dos seus pecados. Os sofrimentos
temporais e a morte têm tido uma variação muito grande na existência dos cristãos. Uns pecam
mais e sofrem menos e têm até morte calma e sem sofrimento, enquanto que outros crentes
sofrem muito e ainda têm morte terrivelmente dolorosa. Se estas cousas são pagamento de
penalidade, alguma cousa anda errado com os efeitos da morte de Cristo, uns estão pagando
menos que outros.
d) Se os sofrimentos e a morte física são punição de Deus, podemos concluir que o homem
tem condição de render satisfação a Deus por seus pecados. O pecador não-remido pode sofrer a
penalidade de seus pecados, mas não pode ser remido do sofrimento. Se cremos que a morte do
cristão é penalidade, ele está participando do pagamento para ser remido, o que implica na
cooperação humana da sua própria redenção. Se objeta que participamos de nossa redenção, por
quê se entende que a morte é pagamento? Contudo, se o homem é capaz de render satisfação
pelos seus pecados, pagando com a morte física, ele poderia, se sofresse um pouco mais, de
render satisfação completa por seus pecados, desfrutando da vida eterna, o que gera um absurdo
teológico inominável!
e) Se a morte fosse um pagamento de penalidade, Enoque e Elias não a teriam sofrido.
Isso implica que eles foram melhores ou que Deus fez vista grossa aos pecados deles, o que
também é absurdo. Se considerarmos a razão da morte dos mártires da igreja tanto do VT como
do NT, haveremos de perceber que não foi o pecado a causa dela, mas o comprometimento deles
com o reino de Deus.
f) Se os sofrimentos físicos e a morte física fossem penalidade, temos que chegar a uma de
duas conclusões: que o sofrimento físico de Cristo e sua morte física foram em vão e ineficazes (o
que é uma inverdade), ou que Ele removeu a punição temporal (o que é uma verdade). Quando
Cristo sofreu essas cousas, Ele as retirou de nós como punição. "Pelas Suas pisaduras fomos
sarados" (Is 53.5). Não sofremos mais punição. Apenas temos os sofrimentos e a morte física
porque ainda vivemos num ambiente onde estas coisas persistem, até que a redenção seja
completada e o ambiente seja mudado, o que se dará na nova terra.
g) Se os sofrimentos físicos e a morte física fossem penalidade, teríamos que crer que
Deus pune os membros do corpo de Cristo, porque Ele ainda está irado com eles. Tal pensamento
é uma injustiça ao amor redentor de Deus e à justiça de Deus demonstrada em Cristo Jesus. Nós
somos santuário do Espírito Santo, e Deus não haveria de despejar a Sua ira contra os membros
do corpo do Seu Filho (1 Co 6.15-20).
h) Se os sofrimentos físicos e a morte física fossem penalidade dos pecados, teríamos
também que considerar as angústias e ansiedades da alma como castigo de Deus por causa do
pecado, também, porque em todos os sofrimentos do corpo a alma sofre igualmente, porque
existe uma interpenetração de influências. Se isto é verdade, o que Jesus fez pelos pecadores não
resultou em muitas cousas positivas, pois temos muito sofrimento nesta vida. Os benefícios da
obra de Cristo só serão percebidos depois da morte, o que mostra que ainda somos os mais
infelizes dos homens! Mas tal pensamento é tolice. Mesmo que sob os efeitos do mundo em
queda, ainda somos os mais felizes dos homens, por causa de Jesus Cristo!
215

A morte dos filhos de Deus é, na verdade, a entrada deles no reino dos céus de maneira
plena! Nunca ela deve ser vista neles como pagamento de penalidade!

Diferença entre o Cristão e o Ímpio na morte Física


O cristão é um ganhador e o ímpio é um perdedor. Ambos morrem. Nenhum deles escapa
da morte. O Senhor é o mensageiro da morte para ambos. Ela vem para o regenerado e para o
irregenerado. Todavia, a mor te para o cristão é a porta através da qual ele tem acesso ao reino do
céu; a morte para o ímpio é a porta através da qual ele já toma posse parcialmente da
condenação. Na morte o cristão entra na companhia dos remidos glorificados, enquanto que os
ímpios já começam a sofrer a companhia dos pecadores, os que colhem a maldição. Na morte o
cristão entra na plenitude de alegria, e o ímpio na plenitude da tristeza. A morte faz uma grande
diferença entre eles. Os caminhos deles nesta vida são diferentes, e o destino deles é
absolutamente diferente. O ímpio anda em seus próprios caminhos (Pv 14.14), caminhando para
a condenação, tendo a sua vida escondida no Maligno. O cristão anda nos caminhos do Senhor
(511.1; 51119.1), o caminho da negação e da renúncia do pecado e do "eu", tendo a sua vida
oculta em Cristo Jesus. Por essa razão, o fim deles é diferente. E a diferença entre luz e trevas,
como o céu é diferente do inferno.
A morte vem para ambos, mas sela o fim diferente deles. Ela é portal de separação para os
ímpios e portal de vida para os cristãos. A morte em si mesma é o pior pedaço para o cristão,
enquanto que para o ímpio ela é apenas o começo. O pior ainda está por vir. O primeiro é
confortado na morte, enquanto que o último é atormentado nela. Por causa do seu sofrimento o
cristão pode ter o seu inferno na terra, e o seu céu está por vir. Opostamente, o ímpio pode ter o
seu "céu" aqui na terra (S173), enquanto que o seu inferno está determinado depois da morte. O
"inferno" do cristão limita-se apenas aos sofrimentos desta vida, enquanto que o do ímpio os
sofrimentos desta não são para comparar com os que vêm depois da morte.

PUNIÇÃO NA EXISTÊNCIA FUTURA


Os castigos até agora analisados têm a ver com esta presente existência, mas a morte
eterna é o único e o mais terrível de todos eles, pois trata-se da plenitude da punição divina sobre
os pecadores, que vem acontecer na existência futura dos ímpios impenitentes.
Contudo, antes que a morte eterna se manifeste, aquele que morreu fisicamente sem
Cristo, já se encontra debaixo de punição, de maneira provisória, esperando a sentença final de
Deus sobre ele. Enquanto a ressurreição dos ímpios não acontece, o corpo deles está sob a terra,
e a alma deles já se encontra sob castigo de Deus, mas não desfrutando ainda a plenitude dele.
Esta verdade é ilustrada na parábola do rico e de Lázaro. O texto sagrado diz que o rico, "no
inferno, estando em tormentos, levantou os olhos e viu ao longe a Abraão e Lázaro no seu seio (Lc
16.23). O tormento final, todavia, dar-se-á depois da ressurreição dos ímpios, quando forem
lançados no lugar próprio e definitivo dos condenados.

4. MORTE ETERNA
Esta morte eterna tem alguns nomes na Escritura: "Lago de Fogo" (Ap 19.20) e "segunda
morte" (Ap 2.11; 20.6, 14-15; 21.8); "condenação do inferno" (Mt 23.33); "lugar de tormento" (Lc
16.28); "inferno de fogo" (Mt 5.22); "fogo eterno" (Mt 25.41).

O Lugar desse Castigo


Não sabemos exatamente onde é o lugar desse castigo, onde os condenados haverão de
existir para sempre em sofrimento. Contudo, usualmente, o lugar desse castigo é chamado na
Escritura de "inferno". Há três palavras gregas na Escritura que são traduzidas em nossas
versões da Bíblia como inferno:

O uso da palavra grega Hades


1) A palavra grega a(/dhj (hades), também é usada pelos pagãos para descrever inferno.
216

Na literatura grega, a palavra hades era descritiva de um mundo inferior, o reino dos
mortos, fossem eles bons ou maus. O Hades era descritivo de uma esfera divida em duas
categorias: a do elysium (para onde iam os bons, e a do tartaro (para onde iam os maus). Embora
alguns cristãos tenham assimilado a noção grega de hades, não há uma autorização da Escritura
para esse entendimento. A origem dessa divisão em compartimentos veio também de escritos da
literatura judaica não canônica, onde os justos estão em lugar separado dos ímpios, nos quais
cada um deles experimenta um antegosto do seu destino eterno. 255
Usualmente a palavra hebraica sheol, que aparece muitas vezes do VT, é traduzida pela
LXX como Hades. "O VT oferece apenas umas poucas informações a respeito do eterno destino do
indivíduo, e maior parte da sua preocupação é com o futuro dos justos antes do que dos
ímpios."256 Portanto, não é absolutamente claro nem único o uso que o VT faz da palavra sheol.
No Novo Testamento a palavra Hades se encontra Mt 16.18 como indicativa do lugar onde
Satanás reina, pois Jesus disse que as "portas do inferno (a)/dhj) não prevalecem contra ela
(igreja)" (Mt 16.18).
Ela também aparece em Lc 16.23, onde fala que o rico estava no "inferno" (a)/dhj), o lugar
próprio para onde vão aqueles que não temem a Deus. Ela é usada para denotar provavelmente o
lugar temporário para onde vão os mortos ímpios que, posteriormente São levados para o seu
destino final, que é o lago de fogo, a segunda morte.
Ap 20.13-14 também menciona o termo hades, que é traduzido na versão Revista e
Atualizada de Almeida como "além» no v. 13. No v. 14 hades é traduzido já como "inferno". Este
texto de Apocalipse sugere fortemente que hades se refere ao lugar intermediário onde estão os
espíritos desincorporados, antes de entrarem no estado absolutamente final, que e o ―lago de
fogo‖.257

O Uso do Termo Grego Gehenna


A segunda palavra grega que trata do castigo final é gee/nna (gehenna), que é usada
somente na Escritura.258 Seu uso no NT não é descritivo dos tormentos presentes do estado
intermediário, mas refere-se aos tormentos do estado final. E Jesus Cristo quem faz um uso
abundante dessa palavra, todas as vezes em conexão com os tormentos eternos. O uso dela é
derivado do ensino sobre o "vale dos filhos de Hinnom", que era um lugar maldito onde os
israelitas queimavam seus filhos no fogo, em honra ao deus Moloque, e que Josias transformou
num vale de horror por causa da abominação ali cometida (2 Rs 23.10).
Jesus usa a palavra gehenna em Mt 5.22 (ge/ennan tou= puro/j) traduzida como "inferno de
fogo"; a mesma palavra aparece também em Mt 5.29-30, sempre traduzida como "inferno".259 Em
Mt 18.8-9 Jesus torna a expressão grega th\n ge/enan tou= puro/j ("inferno de fogo" - v.9) equivalente á
outra expressão grega pu=r to\ ai)w/nion ("fogo eterno"- v.8), e contrasta estas duas expressões à idéia
de "entrares na vida" (v.8-9).
A idéia de sofrimento eterno dos ímpios está ainda mais clara no ensino de Jesus em Mc
9.43-48. A expressão grega usada por Jesus, que é traduzida como ―inferno‖ é gehenna
(v.43,45,47). Você deve ser recordar do Vale dos filhos de Hinnon, e da idéia de fogo. Jesus diz
com muita clareza que o fogo do Gehenna é inextinguível (v.43, 48). Novamente estar no gehenna
é contrastado com "entrares na vida" (v.43, 45) e "entrares no reino de Deus"(v.47)
Em Mt 23 Jesus adverte os fariseus por causa da sua hipocrisia e iniquidade. Então,
faz-lhes uma ameaça, usando para palavra gehenna para mostrar a inexcapabilidade desse
tormento: "Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da condenação do inferno
(gehenna)?"(v.33).
Não há como escapar ao fato de que estas passagens ensinam claramente a realidade de

255 Observação de Fred Karl Kuehner, ―Heaven or Hell?‖, em Fundamentals of the Faith, editado por

Carl F. Henry, (Grand Rapids: Zondervan, 1969), 238. Verificar no livro de Enoch xxii. 1-14.
256 Fred Karl Kuehner, ―Heaven or Hell?‖, em Fundamentals of the Faith, editado por Carl F. Henry,

(Grand Rapids: Zondervan, 1969), 238.


257 Ibid. 238.
258 Gehenna aparece 12 vezes no NT.
259 Das 12 vezes que esta expressão aparece no NT, 11 delas estão contidas no ensino de Cristo.
217

um lugar onde os impenitentes haverão de passar eternamente. E bom recordar que embora os
tormentos do inferno sejam absolutamente reais, devemos entender que alguns nomes usados
(como "fogo" ou "verme") usados metaforicamente, não com sentido absolutamente literal.

O Uso do Termo Grego Tártaro


A terceira palavra grega que trata do castigo final é ta/rtarw (tártaro – 2 Pe 2.4) que, na
linguagem pagã também era conhecida como o lugar para onde vão os ímpios, uma subdivisão do
hades pagão, o lugar próprio dos maus.
É importante que se creia que o inferno é um lugar real, não apenas um estado, ou um
ensino produto de uma ficção da igreja no decorrer dos séculos, especialmente no período da
Idade Média. Deus criou um lugar especialmente para o diabo e seus anjos, mas para lá envia
todos os ímpios impenitentes (Mt 25.41), embora não saibamos a localização dele. O inferno é
mais do que um estado. E um lugar, como o céu! Tem que ser um lugar, pois para lá vão pessoas
completas, isto é, pessoas físicas, que ocupam espaço. Não será um simples mundo espiritual,
mas um mundo físico, criado especificamente por Deus para ser o lugar de habitação dos ímpios,
juntamente com o diabo e seus anjos.

A plenitude desse castigo


No inferno o homem total sofrerá a manifestação plena da ira de Deus. O corpo e alma
humanos sofrerão a pena dos pecados. Jesus disse que Deus deve ser temido, pois Ele é o único
que pode fazer "perecer no inferno tanto a alma quanto o corpo" (Mt 10.28). Isto quer dizer que a
segunda morte é a morte do homem total. É a separação final do homem completo de Deus.
É costume dizer que inferno é a ausência de Deus. Ao contrário. Deus estará presente no
inferno, mas será uma presença que infunde terror e ira (Ap 14.11). É significativo que é dito que
o Cordeiro estará presente, com uma presença de juízo, no lago de fogo, onde existe o sofrimento
eterno. É verdade que o texto da Escritura diz que os ímpios "sofrerão penalidade de eterna
destruição, (sendo) banidos da face do Senhor e da glória do seu poder" (l Ts 1.9), mas eles serão
banidos de uma presença santificante e abençoadora. Deus estará presente diante deles, porque
eles poderão olhar para Deus (Lc 16.23-24), mas terão sofrimento terrível pela presença
aterradora de Deus. Ali não haverá qualquer coisa doce ou consoladora, para aliaviar-lhes. Eles
estarão privados da doce companhia de Deus. A companhia deles será de demônios e de outros
espíritos condenados, e todos juntos sofrerão a penalidade que lhes está reservada, produto da
ira divina sobre eles, por causa de seus pecados. Aos ímpios, Jesus Cristo, o Cordeiro de Deus
cheio de ira, dirá: "Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e
seus anjos" (Mt 25.41).

O Tempo desse castigo


A semelhança da morte física, esta morte eterna também é
retardada, reservando somente para o tempo do fim, depois que Deus
colocar um final na ordem presente das cousas.
Contudo, há um sentido em que os ímpios já assumem o castigo eterno logo após a morte
física, indo para a condenação, à semelhança dos anjos maus. O texto é claro quando diz que os
anjos maus ficarão em "algemas eternas para o juízo do grande dia" (Jd 1.6-7). Os homens
também experimentarão o mesmo tormento, já de caráter eterno, esperando apenas a
completação dele que se dará no grande dia final.
Esta verdade é ilustrada na parábola do rico e de Lázaro. O texto da Escritura diz que

"aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos para o seio de Abraão;
morreu também o rico, e foi sepultado. No inferno, estando em tormentos, levantou
os olhos e viu ao longe a Abraão e a Lázaro no seu seio" (Lc 16.22-23).

Com clareza o texto afirma que o rico foi sepultado (v.22) e, imediatamente, afirma que ele
estava no inferno, em tormentos. Isso demonstra que, ao mesmo tempo em que os justos vão
218

imediatamente para o gozo de Deus (que é o caso de Lázaro - v.22), o rico foi imediatamente para
os tormentos sem fim, apenas esperando o juízo do grande dia.
Contudo, é preciso lembrar que os ímpios sofrem esse castigo
parcialmente, apenas no espírito, pois o corpo deles ainda não participa
dele, pois está no pó. Após a ressurreição final, que é a ressurreição para a
vergonha e horror eterno (Dn 12.2), os ímpios impenitentes serão lançados
nesse lago, onde estão juntamente o diabo e seus anjos.
A Escritura diz que após a morte e ressurreição dos ímpios eles entrarão no juízo final,
"porque está ordenado aos homens morrerem uma só vez e, depois disto, o juízo" (Hb 9.27).

A Duração desse castigo


As tristes perdas dos ímpios serão para sempre. Eles não serão somente miseráveis, mas
miseráveis eternamente. Tanto os homens quanto os seres espirituais caídos haverão de
experimentar eternamente esse sofrimento, que é a morte eterna, que não pode ser destruída (Ap
14.10-11; 20.10; Mt 25.41, 46; Mc 9.43-48; 2 Ts 1.9; Hb 6.2; Jd 1.6-7; Ap 14.11).
Judas fala daqueles que são impenitentes como experimentando o amargor do sofrimento
como uma experiência infindável, sendo "duplamente mortos":

"Estes homens são como rochas submersas, em vossas festas de fraternidade,


banqueteando-se juntos sem qualquer recato, pastores que a si mesmos se
apascentam; nuvens sem água impelidas pelo vento; árvore em plena estação dos
frutos, destes desprovidas, duplamente mortas, desarraigadas; ondas bravias do
mar, que espumam as suas próprias sujidades; estrelas errantes, para as quais
tem sido guardada a negridão das trevas, para sempre" (Jd 12-13).

A razão dessa punição eterna pelo pecado é porque o pecado é cometido contra um Deus
eterno e infinito (l Tm 1.17), que requer uma satisfação infinita e, portanto, eterna. Porque o
ímpio pecou contra um Deus infinito, a sua punição, portanto, é reconhecida como infinita.
Nunca o homem terminará de pagar a sua dívida com Deus, porque é dívida de alguém que
continua pecador. O débito do pecador não pode nunca ser saldado porque somente a obediência
a Deus poderia satisfazer a justiça divina. Todavia, ainda lã, no inferno, na condenação, o homem
haverá de estar contra Deus, insurgindo-se contra a sua lei. No estado futuro, os ímpios haverão
de pecar. Quando mais pecado, mais ódio contra Deus. João, no Apocalipse, dá uma idéia do que
acontecerá no destino eterno de ambos, dos justos e dos injustos: "Continue o injusto fazendo
injustiça, continue o imundo ainda sendo imundo; o justo continue na prática da justiça, e o
santo continue a santificar-se" (Ap 22.11). Os ímpios pagarão pelos seus pecados, mas nunca
terminarão de pagar porque para sempre se rebelarão contra o Senhor.
A palavra grega gee/nna que sempre é traduzida como inferno nas nossas versões, nunca se
refere ao tormento do estado intermediário, mas sempre à punição eterna.

O Sentido da palavra “eterno"

A palavra grega ai)w/nion, que é traduzida como "eterno" aparece diversas vezes no NT com
respeito à vida e à morte. Qual é o sentido dessa palavra grega? No caso de combinação com a
palavra "vida", o termo ai)w/nion tem a conotação de "vida imperdível". O sentido, todavia, é mais do
que de quantidade. Ela é a vida plena da bondade de Deus, plena da comunhão com Deus.
Contudo, não se pode esquecer que ela contém a idéia de duração sem fim. Observe-se que em 1
Co 15.53, as palavras imperecível (ou incorruptível) e imortal são sinônimas.
No caso de combinação com a idéia de "morte", há a mesma conotação qualitativa e
quantitativa. Estes dois aspectos não podem ser esquecidos.
219

As Teorias dos Adversários das Penas Eternas

A teoria da Não-Punição
Os defensores dessa teoria não crêem numa punição futura, porque eles não crêem em
qualquer espécie de existência futura. Tudo termina por aqui. Esses são os materialistas puros.
Eles crêem que a alma, se há alguma, é apenas uma função do cérebro, ou uma parte de todo o
complexo do organismo humano. Quando o homem morre, tudo se acaba. Nem a recompensa
futura existe, na conta deles. Na verdade, esses não são cristãos. Então, eles não causam um
problema maior, exceto se estivermos em lugares de grande concentração de materialistas.

A Teoria do Aniquilacionismo
Há outros que pensam que o pecado deve ser punido, mas eles são incapazes de admitir a
idéia de uma punição sem fim. Admitem uma recompensa de bem-aventurança eterna. Eles são
chamados de aniquilacionistas. Eles crêem numa ressurreição geral final, numa vida futura de
gozo, que é o céu. Segundo eles, somente os cristãos recebem uma existência eterna. Contudo, os
ímpios serão destruídos após a ressurreição final. A punição deles está em não poderem mais
existir.
Há alguns aniquilacionistas que sustentam que o homem foi feito um ser mortal. De
qualquer forma ele morreria. O pecado veio somente complicar a sua finitude. A vida eterna é um
dom que Deus da aos que crêem e vivem piedosamente neste mundo. A punição dos ímpios,
contudo, é o fato de Deus se recusar dar-lhes a vida eterna. A punição, então, é a privação da vida
eterna, mas não há um castigo positivo. Apenas a privação do que é bom.
Há ainda outros aniquilacionistas que admitem uma certa punição, não aceitando,
todavia, a punição sem fim. Esses são cristãos que aceitam todas as outras verdades do
cristianismo, exceto esta. Eles dizem que a doutrina da punição eterna não está em consonância
com o caráter de Deus.
Para eles, o adjetivo "eterno" em relação à punição não deve ser tomado literalmente, mas
somente como indicação de um longo período de tempo. O outro argumento usado por eles é que
as palavras "destruição" e "morte" implicam numa cessação de existência.

A Teoria da Segunda Chance


Esta teoria é uma outra forma de aniquilacionismo. Após a morte, no estado
intermediário, aqueles que rejeitaram a verdade recebem a outra oportunidade de fazer as
escolhas certas. Porque Deus é um ser muito amoroso, aqueles que morrem sem se arrepender,
terão uma outra chance na existência futura. Os que se recusam a isso na segunda chance, serão
aniquilados, sendo lançados na gehenna, o fogo que consome, ou poderão ter uma forma mais
baixa de existência eterna. No fundo, segundo essa teoria, Deus vai fazendo tentativas para tirar
o máximo de pessoas da destruição. A teoria do purgatório, no catolicismo romano, é um exemplo
bastante claro dessa idéia, mesmo embora, no purgatório as pessoas não se arrependem, mas
completam o sofrimento de Cristo, tendo a chance de purgar os seus próprios pecados.

A Teoria da Redenção Universal


Estes crêem que no final todos haverão de ser redimidos. Esta é uma das teorias mais
antigas, vindo desde Orígenes, alguns anabatistas e muitos teólogos do séc. XIX e, em geral, pela
teologia moderna, que evita qualquer noção de punição eterna.
Em geral, essas três últimas teorias usam argumentos como os que se seguem:
1) O adjetivo eterno na Escritura, quando usado em conexão com punição, não deveria
nunca ser tomado literalmente, mas somente como uma indicação de um tempo muito longo;
2) Tais palavras como "morte" e "destruição" implicam numa cessação de existência;
3) A linguagem universalística é freqüentemente usada nas Escrituras.
4) A condenação eterna é contrária ao próprio ser de Deus, especialmente o seu amor.
220

Objeções a essas teorias

1) Embora o termo grego ai)w/nioj (que é traduzido em nossas versões como "eterno") não
signifique literalmente "um tempo interminável", contudo, quando usado em contraste com "vida
eterna", não pode significar outra coisa que não "duração sem fim". Este argumento está
absolutamente claro em Mt 25.46 "E estes irão para o castigo eterno, porém os justos para a vida
eterna". A menos que neguemos a duração sem fim da bem-aventurança, teremos que aceitar a
eternidade, ou a duração sem fim da punição.
O texto de Ap 14.11 mostra uma outra conotação de eternidade de uma outra forma,
combinada com outras expressões: A expressão "Tormento pelos séculos dos séculos "é a
tradução da expressão grega ei)j ai)w=nas ai)w/nwn - Esta expressão grega fala da duração da punição
da besta e de todos os seus adoradores, os ímpios, que é seguida de duas outras expressões que
reforçam a idéia de eternidade.

Ap 14.11 - "A fumaça do seu tormento sobe pelos séculos dos séculos, e não
tem descanso algum, nem de dia nem de noite, os adoradores da besta e da sua
imagem, e quem quer que receba a marca do seu nome."

Um outro texto de Apocalipse repete as mesmas palavras e as mesmas idéias, enfatizando


a continuidade indefinida do tormento:

Ap 20.10 - "O diabo, o sedutor deles, foi lançado para dentro do lago de fogo e
enxofre, onde também se encontram não só a besta como o falso profeta e serão
atormentados de dia e de noite pelos séculos dos séculos."

Há uma outra expressão da Escritura, que não ~ que evidencia que a punição tem um
caráter sem fim.
A expressão bíblica usada é Fogo Inextinguível - O texto de Mc 9.43, diz: "E se a tua mão te
faz tropeçar, corta-a; pois é melhor entrares maneta na vida do que, tendo as duas mãos, ires
para o inferno (gee/nan), para o fogo inextinguível."260 Observe que gehenna é sempre conectado
com penas eternas, nunca com o sofrimento do período intermediário. Confira este texto com Mt
3.12.
2) As palavras ―destruição‖ e "morte", usadas pelos três teorias acima para negar as penas
eternas não é um argumento sustentável. A palavra "destruição" (2 Ts 1.9) não pode nunca
significar aniquilação porque é alguma coisa que acontece eternamente. Além disso, e uma
expressão que pode indicar a qualidade da existência sem Deus e sua graça. A palavra ―morte‖
(Ap 2.11; 20.14 e 21.8) também é indicativa de qualidade de existência sem Deus. Por essa razão,
não pode significar aniquilamento.
A Condição em que se suporta esse castigo
Além de ser um sofrimento de caráter perene, a Escritura dá-nos a entender que ele será
suportado de forma consciente. O texto de Lc 16.19-31, que narra a parábola do rico e de Lázaro,
ilustra de modo inequívoco a consciência em que vivia nos tormentos do inferno (v.23-24). A
conversa do ímpio em tormento com Deus (v.25-31) reforça a idéia de o ímpio estar na plenitude
de suas faculdades mentais, a despeito da ausência do corpo.

Os sofrimentos desse castigo


Mt 7.23; Lc 13.27-28;
Lc 16.19-31 - Este texto da parábola de Jesus parece indicar que parte do tormento do
ímpio é ver o gozo dos remidos de Deus (ver também Lc 13.27-28). A condenação tem a ver com
uma espécie de privatio boni, a ausência do bem, ou seja, a ausência dos benefícios da presença

260 Os textos de Mc 9.44, 46 e 48 não se encontram nos melhores Manuscritos mais antigos. Por
essa razão, não usaremos como textos-prova do nosso argumento, a fim de não sermos contestados pelos
adversários das penas eternas.
221

bondosa e benévola de Deus. A idéia não é a de ausência de Deus, mas de ausência da presença
confortadora dEle.
Os sofrimentos dos ímpios, contudo, não se limitam à simples ausência da bondade de
Deus, mas inclui um castigo positivo de Deus, onde o pecador sente dores pela manifestação da
ira divina (Mt 8.12; 22.13). Deus estará presente no inferno não somente por causa do atributo
da onipresença, mas porque compete a Ele trazer punição sobre as criaturas impenitentes. Ele
estará no inferno com a presença de juízo, de ira, de manifestação do seu desagrado com o
pecador impenitente. O lugar de condenação é um lugar de trevas. Mesmo que essas trevas não
sejam consideradas literalmente, a idéia de trevas é dolorida, porque significa a ausência daquilo
que o homem mais aprecia - a luz. Luz é significativo de vida, enquanto que trevas é de
separação. O lugar de condenação, segundo o texto acima, não é somente de ausência do bem,
mas a presença da dor. A expressão "choro e ranger de dentes" denota o sofrimento que o ímpio
vai experimentar.

Os Objetos desse castigo


Em resumo, podemos dizer que além do diabo, seus anjos, a besta e o falso profeta (Ap
20.10), todos os pecadores impenitentes, os que não foram remidos por Jesus Cristo, serão os
objetos desse castigo.
João, o profeta, dá algumas sugestões específicas dos participantes deles

Ap 21.8 - "Quanto, porém, aos covardes, aos incrédulos, aos abomináveis, aos
assassinos, aos impuros, aos feiticeiros, aos idólatras e a todos os mentirosos, a
parte que lhes cabe será no lago que arde com fogo e enxofre, a saber, a segunda
morte."

Covardes (deiloi=j)
Incrédulos (a)pi/stoij)
Abomináveis (e)bdelugme/noij)
Assassinos (foneu=sin)
Impuros (po/rnoij)
Feiticeiros (farmakoi=j)
Idólatras (ei)dwlola/traij)
Mentirosos (yeude/sin)
Essa é uma classificação bastante ampla, embora não exaustiva. Mas ela ilustra bem
claramente quão sérios são alguns pecados muito modernos. Paulo menciona uma outra lista
que elimina do reino dos céus algumas classes de pessoas. Essas, certamente, haverão de herdar
a punição das trevas:

1 Co 6.9-10 - "Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus?
Não vos enganeis; nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados,
nem sodomitas; nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes,
nem roubadores herdarão o reino de Deus.

Injustos (a)/dikoi)
Impuros (po/rnoi)
Idólatras (ei)dwlola/trai)
Adúlteros (moixoi/)
Efeminados (malakoi/)
Sodomitas (a)rsenoi=tai)
Ladrões (kle/ptai)
Avarentos (pleone/ktai)
Bêbados (me/qusoi)
Maldizentes (loi/doroi)
Roubadores (a)/rpagej)
222

Na verdade, muitos crentes já haviam pertencido a algumas dessas categorias, como o


próprio Paulo diz no verso 12, mas foram justificados pelo nome de Cristo e do Espírito. Contudo,
aqueles que não foram remidos por Cristo experimentarão o peso da ira divina, por causa dos
seus pecados. A lista de Paulo é apenas ilustrativa da multiplicidade de formas em que a maldade
humana se manifesta e é punida por Deus.

A Inescapabilidade desse castigo


A inescapabilidade desse castigo pode ser vista em dois sentidos:
1) Depois que alguém entra nessa morte, não mais há meio de sair dela. A parábola do
rico e do Lázaro mostram que é impossível reverter a situação. Deus, representado na parábola
por Abrão, disse ao rico em tormentos: "E além de tudo, está posto um grande abismo entre nós e
vós, de sorte que os que querem passar daqui para vós outros não podem, nem os de lá passar
para nós" (Lc 16.26). A idéia que Judas dá é de uma prisão de segurança absolutamente máxima.
Tanto os anjos maus como os ímpios estão presos em "algemas eternas" (Jd 1.6-7), de forma que
ninguém pode escapar desse lugar e da condição desse castigo.
2) Todos aqueles que não tiveram os seus pecados pagos, certa e inescapavelmente
enfrentarão a "segunda morte" ou "o lago de fogo".
Todos aqueles que não foram libertos da morte espiritual pela obra renovadora do
Espírito Santo, certamente haverão de experimentar essa morte eterna. A única maneira de se
evitar esta morte é ser nascido de novo. Quem é tornado nova criatura é livre da morte eter na,
mas dessa morte não há forma de se escapar quando se entra nela.

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