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Universidade Estadual de Campinas – 27 de setembro a 3 de outubro de 2004

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Professora de neuroanatomia, aposentada depois de 32 anos de Unicamp, conta em livro a sua experiência de bem envelhecer

Uma visão científica da felicidade Ilustração: Phélix Foto: Antoninho Perri


LUIZ SUGIMOTO
sugimoto@reitoria.unicamp.br

N
osso cérebro possui células
que secretam endorfinas,
substâncias semelhantes à
morfina, que circulam pelo organis-
mo e fazem os órgãos funcionarem
melhor. As endorfinas são liberadas
sempre que somos agradados. Já a
pessoa azeda ou amarga é uma for-
te candidata a ter problemas diges-
tivos, por exemplo, pois ela não sen-
te “aquele prazer sentido” que esti-
mula a secreção de endorfinas. Ficar
contente, portanto, faz muito bem à
saúde. “Os desarranjos que levam
uma célula cancerígena a proliferar
menos ou mais, têm a ver com infe- A professora Vilma Clóris de
licidade”, afirma a professora Vilma Carvalho: “O processo de
Clóris de Carvalho, aposentada em envelhecimento é inexorável,
1996, que mora desde então em Re- mas não precisa ser devastador”
cife e esteve em Campinas há duas
semanas para lançar seu livro Enve-
lhecendo junto ao mar. ‘O ser humano
A linguagem da autora é simples
como aparenta, da introdução ao
é constantemente
epílogo que trata de sua visão com refeito’
ligeiro enfoque científica da felicida-
de, mas o leitor não deve esperar um
livro de auto-ajuda. Médica pela U- VILMA CLÓRIS DE CARVALHO (*)
niversidade Federal de Pernambu-
co, Vilma Clóris de Carvalho orga- Tenho formação profissional
nizou o setor de Neuroanatomia do que me induz a encarar o corpo,
Instituto de Biolo- sobretudo, como um conjunto
Parte do livro gia (IB). Boa parte
do livro é dedicada
de ossos articulados, músculos
que os movimentam e uma
é dedicada à à experiência pes- variedade de órgãos que
experiência soal da professora,
que sentiu necessi-
executam as diferentes funções
do organismo. Contudo, a vida
pessoal dade de reorgani- de estudo, as contínuas leituras
zar sua vida, no me levam a reconhecer a
tempo que passou a dispor ao fim de intensa atividade química que
32 anos de uma vivência acadêmica se processa no interior do nosso
intensa. Em outras partes, ela tam- corpo. O ser humano, como
bém repassa ensinamentos: “Os mé- tudo no cosmo, é
dicos da antiguidade admitiam uma constantemente refeito. Nós nos
estreita relação entre pensamentos renovamos. Nosso corpo
e emoções e a saúde orgânica. Essa suporta, além dos processos de
idéia perdeu força no Ocidente, no oxidação, o ataque dos mais
século XVII, com a valorização exa- diversos germens. Além disso,
cerbada do raciocínio, que separou nossos ossos não se limitam a
a mente do corpo. No entanto, nos acumular cálcio, mas o fazem
nossos tempos, a tendência é recu- circular. Pele, revestimento do
perá-la”, escreve. estômago, fígado, todos estão
Vilma de Carvalho explica que, até sempre se refazendo. No
alguns anos atrás, não seria possível entanto, quando olhamos esses
examinar diretamente as atividades órgãos, assim como os demais,
psíquicas que dão origem aos nos- eles nos parecem estar sempre
sos pensamentos, memórias, senti- iguais em cada momento,
mentos e percepções. A natureza quando, na verdade, estão
dessas atividades era observada a- numa permanente dinâmica.
penas através de seus efeitos. As no- Funções às quais não
vas técnicas de diagnóstico como a prestamos nenhuma atenção
neuroimagem e, sobretudo, o uso de vermelha, mas não gosta de fanatis- or, Vivendo sem Calendário, lançado sentou, Vilma Clóris descobriu o prosseguem sem parar
aparelhos que realizam varredura mo e comerá um bife alegremente se em 2001, quando voltou a Recife e prazer de escrever sem compromis- (respiração, digestão, criação
funcional do cérebro, tornaram vi- for convidada para jantar. Adora passou a refletir sobre o tempo, que so. Suas memórias remontam a Pau- de novas células, regeneração
sível o mundo interno da mente, in- vinho. Morando na Praia de Piedade, passou a ser todo seu, sem aulas, lo Freire, com quem trabalhou du- de outras tantas danificadas,
dicando a localização, em determi- sente que o dia não começou bem se palestras, pesquisas e reuniões de rante os seis anos de graduação em purificação de toxinas,
nadas regiões do cérebro, de estados deixa de fazer a caminhada de seis departamento a cumprir. Pergun- medicina, no Sesi, quando procurou manutenção do equilíbrio
de espírito que incluem depressão, quilômetros, sempre antes das seis tou-se em que estágio do processo ensinar noções básicas de saúde pa- hormonal e muitas outras) para
obsessão e tantos outros. “Já é pos- horas e à beira d’água, evitando assim de envelhecimento se encontrava. ra operárias e operários de tecela- garantir nossa sobrevivência.
sível marcar em seu cérebro o lugar a areia frouxa que aumenta o cansa- Leu sobre o tema e pesquisou a o- gens. Aprendeu com o educador so- Vão surgindo, com o tempo, as
onde se instala o medo, o lugar onde ço. “Às vezes entro no mar, mas evi- rigem dos calendários, desde o egíp- bre a importância da clareza na escrita variações próprias da idade.
se instala a paz”, ilustra a professora. to por causa dos tubarões”, ressalva. cio de 6.000 anos atrás, que era divi- e na fala, além da interação com o in- Aparecem rugas, a pele perde
Quando a conversa entra em sua dido em três estações, conforme as terlocutor para fugir do monólogo. “É seu tônus e frescor; a proporção
A velhice – Estima-se que a heran- seara, o cérebro, a professora dese- águas do rio Nilo: da enchente, da um exercício maravilhoso definir em entre massa muscular e
ça genética seja responsável por me- nha no papel uma célula nervosa semeadura e da colheita. Depois vie- palavras algo que se sente. Às vezes gordura, que é respectivamente
nos de 50% de todos os efeitos do com seu corpo e núcleo, e os prolon- ram os calendários babilônicos, o emperro, mas insisto até rasgar o pa- de 3:1, vai se igualando; os
envelhecimento.Certas pessoas vi- gamentos que recebem e transmi- grego, o romano, o juliano e o grego- pel. A paciência é uma coisa muito sentidos como visão e audição
vem menos ou apresentam pior qua- tem informações para outros neu- riano, que perdura até nossos dias. importante, que aprendi com o mar, diminuem; sobe a pressão
lidade de vida por serem mais pro- rônios, conectando-os. Ensina que já A professora admite que seria im- com o vai-e-vem da maré, que apenas sanguínea e o teor de muitos
pensas a doenças como as cardio- se derrubou a crença de que o de- possível viver sem o fracionamento parece que se repete”, compara. elementos bioquímicos se
vasculares, diabetes, mal de Alzhei- créscimo psíquico, advindo com os do tempo, já que anos, meses, dias, De volta a Recife, a professora tam- afasta dos seus níveis ideais.
mer e certos tipos de câncer. No en- anos, se deve apenas à perda natu- horas, minutos e segundos norteiam bém procurou fortalecer laços fami- Fazem-se necessários novos
tanto, segundo a autora, a literatu- ral de neurônios. “Alimentação, con- nossa vida. Mas, mesmo achando liares e reatar antigas amizades. Jun- ajustes e tentativas de recuperar
ra mostra que a importância dessa dições psicológicas e sobretudo e- assustador imaginar que, antes da tou o grupo do colégio e também da ou pelo menos retardar as
herança vem diminuindo. “Menos xercícios físicos são fatores que, me- criação dos calendários, o tempo era faculdade para almoços periódicos e perdas.
da metade do velho que você vai ser lhorando a oxigenação do cérebro, inteiro e vivido como tal, insiste que viagens, a mais recente ao Maranhão. Transcrevo um segmento do
dependerá dessa genética. Isso por- favorecem a liberação do fator de ele é dividido por nós. “Corto o ano Ficou abalada com a morte já regis- livro de Helion Povoa, A Chave
que sobre a hereditariedade elevam- crescimento neuronal (NGF), a neu- em pedacinhos e vivo um de cada trada de 23 colegas de uma turma de da Longevidade: “Do
se três colunas nas quais podemos rotrofina, que estimula o crescimen- vez. Isso faz com que saibamos se 100, incidência de óbito que conside- nascimento até a morte, tudo o
interferir, seja para acelerar ou para to dos prolongamentos da célula somos mais ou menos velhos, inde- ra alta, mas resigna-se. Juntando que o nosso corpo nos permite
desacelerar o processo de envelheci- nervosa. Deste modo, a célula man- pendente da idade que nos atribu- trechos que escreveu em páginas fazer ou faz sem que
mento: a alimentação, a atividade físi- tém suas conexões e cria outras. É em”, afirma. Ela cita Samm Coombs, diferentes do livro, Vilma de Carva- percebamos, acontece a partir
ca e o psiquismo, ou seja, a maneira de importante que se pense no exercí- segundo o qual, depois da meia ida- lho diria assim: “Há pouco me olhei da combinação de moléculas de
ver a vida, de enfrentar as perdas, de cio mental para manter os neurônios de finda aos 50 anos, temos o velho no espelho e percebi que meu rosto hidrogênio, oxigênio, carbono,
conviver com o estresse”, explica. ativados, é o mesmo que exercitar o ‘jovem’, o velho ‘frágil’ e o velho ‘se- é conivente com minhas experiênci- nitrogênio, cálcio, zinco, cobre e
Vilma de Carvalho cuida da ali- músculo. Quanto mais circuitos a- nil’ – etapas sem tempo estabeleci- as. O processo de envelhecimento é muitos outros minerais que
mentação e dedicou um capítulo do tivados, mais eles se interconectam, do, visto que dependem da manei- inexorável, mas não precisa ser de- agem e reagem, continuamente.
livro aos radicais livres e antioxi- nos oferecendo uma visão comple- ra de ser e do estilo de vida de cada vastador. Ao mesmo tempo em que Somos, portanto, química em
dantes. Enquanto era sedentária em ta das coisas e a capacidade de com- idoso. “Tenho 71 anos e me conside- observo os idosos à minha volta, cui- essência”.
Campinas, nunca se lembrou de com- parar, deduzir e concluir”, ensina. ro uma velha ‘jovem’, pois descobri do do meu presente procurando a-
prar goiaba, que agora come diaria- que estou muito esperta”, brinca. quecer os laços com familiares e an- (*) Trecho do livro Envelhecendo
mente, juntamente com legumes, fru- Calendários – Vilma Clóris de tigos amigos e colegas, além de cri- junto ao mar
tas, verduras e pescado. Evita carne Carvalho escreveu um livro anteri- Aconchego – Logo que se apo- ar novos laços. Quero aconchego”.

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