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América Latina: 

100 anos de opressão e utopia revolucionária

Introdução

Nesta virada de século e de milênio, faz-se interessante discutir muitos pontos que
marcaram a história da Humanidade como uma forma de refletir sobre caminhos a
serem adotados no futuro. No caso da América Latina, essa discussão é ainda mais
importante. Afinal, o continente passa por uma série de mudanças complexas que, no
entanto, ainda convivem com marcas de um passado opressor que faz questão de
manter-se vivo. Por exemplo: ao mesmo tempo em que Brasil, Argentina, Paraguai e
Uruguai, num ato histórico, fecham uma coalizão em torno de seu bloco comercial, o
Mercosul, contra a extrema ingerência da futura Alca (Aliança de Comércio da
América), bancada pelos EUA, em suas economias, ainda dependem de mercados como
o norte-americano para escoar sua produção, intermediada pelas multinacionais e a
baixos preços, gerando lucro para a matriz e pobreza no mercado interno. Além disso,
ao mesmo tempo em que esses países anunciam investimentos na integração econômica
dentro do continente, em seus próprios territórios vêem aumentar a miséria da maior
parte de sua população, a desintegração entre as regiões produtivas e uma série de
protestos contra a desigualdade social. Quando as diferenças não são entre países,
tornam-se evidentes no território interno: na Argentina, por exemplo, separada entre
Buenos Aires e região, vista por muitos como o país, e a região interior, miserável e
desgraçada. Nesse quadro de diferenças sociais, há de se somar também as crises
políticas, onde a ditadura populista venezuelana e o instável governo peruano dão
mostras de que a democracia na região ainda está longe de se tornar realidade.

As contradições são visíveis na sociedade latino-americana, e elas podem ser usadas


como explicação para muitos dos problemas e desafios que o continente enfrenta neste
novo tempo que se abre. O que ocorreu de errado? Quais os pontos que precisam ser
melhorados no futuro? São perguntas que não se calam facilmente. E é neste aspecto
que este pequeno ensaio se encaixa. Antes de fornecer respostas definitivas, ele
pretende, à luz da discussão histórica e da narrativa, propor tópicos e interpretações que
sirvam como um primeiro esboço para a discussão da realidade continental. Assim, está
dividido em três partes: a primeira, mais geral, aborda rapidamente a essência da
história da região, com destaque para a exploração comercial, a dominação política e a
atualidade. A base dessa parte é o livro As veias abertas da América Latina, do escritor
uruguaio Eduardo Galeano. A segunda, mais histórica, mostra os movimentos sociais
que tentaram propor vias históricas opostas às mostradas na primeira parte. Para
encerrar o trabalho, que será completado em ensaios posteriores, uma rápida
apresentação de homens que, bem ou mal, fizeram a história da América Latina atuando
no campo político. No final, é oferecida uma bibliografia de referência para o
interessado no tema ter a oportunidade de pesquisar por sua conta.

Este texto, conforme já dito, não se pretende completo. Pelo contrário: há pontos que
mereceriam maior aprofundamento – o que não se faz pelo pouco espaço disponível e
pela proposta de apenas propor tópicos para iniciar a discussão. Espera-se, portanto, que
os leitores de Klepsidra participem, enviando suas mensagens e comentários a respeito
do texto para que a história da América Latina saia da obscuridade e seja de
conhecimento público. Inicia-se aqui, pois, essa viagem histórica. 
 

Uma rápida abordagem dos conceitos

Não são poucos os estudos existentes sobre a história da América Latina. No entanto,
em sua maioria são especializados em determinados temas: política, cultura, economia,
relatos de vida de povos etc, bem como escritos com a única preocupação de se "contar
a história", sem analisá-la em seus detalhes e relacionando-a com outros fatos e
conjunturas. Poucos são os historiadores que se propuseram a escrever sobre a trajetória
de nosso continente sem o medo de propor análises para os problemas enfrentados pelo
território: pobreza crônica da população, economia agrária, subdesenvolvimento,
instabilidade social etc. Coube então a um jornalista uruguaio, sem as "roupagens
acadêmicas", como se autodefine, escrever uma história de seu continente baseada na
seleção e interpretação de fatos que considera como essenciais para o entendimento da
realidade latino-americana. 

Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina,


propôs um inventário dos 500 anos da história do continente
retratando as suas principais bases: a economia agrícola e
mineradora dominada pelo mercado internacional, com o objetivo de
gerar lucros para a potência dominadora; a pobreza social como Eduardo Galeano
resultado de um sistema econômico externo e excludente, que é o autor de "As
privilegia uma minoria financeiramente capaz de integrar-se aos veias abertas da
padrões de consumo; a opressão de governos centralizadores contra América Latina"
as minorias, produzindo genocídios e o caos social; a exploração do
trabalho e as péssimas condições de sobrevivência para a grande
maioria de sua população.
Num relato informal, cujo objetivo é "mostrar uma opinião", para entender a história e a
atual situação da América Latina Galeano narra os fatos fora de uma sequência
cronológica, fazendo com que passado e presente conversem entre si na mesma obra,
determinando o ponto de vista do autor: o continente foi e é peça importante no
enriquecimento de poucas nações, e o preço que paga por isso é o seu
subdesenvolvimento crônico, suas eternas crises sociais e seu status de colônia. "A
riqueza das potências é a pobreza da América Latina", diz Galeano em certa passagem
do livro.

O autor dividiu o livro em três partes. Na primeira, mostra como os espanhóis e


portugueses chegaram àquelas terras virgens no século XV e se aproveitaram das
riquezas que o continente possuía. Os primeiros, fixados desde o planalto mexicano até
os Andes, tiveram sorte e encontraram ouro e prata nas primeiras andanças. Os
lusitanos, ocupando a faixa litorânea do Oceano Atlântico, tiveram de construir um
império colonial à base da cana-de-açúcar enquanto não encontravam os metais.
Embora em áreas diferentes, a tônica da exploração foi a mesma: trabalho forçado,
agressão física, enriquecimento, opressão colonial. Os espanhóis encontraram dois
exércitos de mão-de-obra disponíveis: os índios astecas no México e os incas no
Peru. Estas civilizações, para Galeano, retratam o caráter do domínio colonial:
socialmente e militarmente evoluídas, foram destruídas nas minas e com o trabalho
forçado nas mitas e encomiendas. Já os portugueses, depois de tentar a exploração dos
índios nos engenhos de açúcar e não obter sucesso transformou-se no maior traficante
de negros mundial. Vindos da África, os negros deixavam à força seus reinos para, em
terras brasileiras, ser escravos e motor da produção açucareira.

Após narrar a glória desses centros produtivos de riqueza colonial (que, como faz
questão de ressaltar, não ficava na Espanha e Portugal: destinava-se a pagar as dívidas
que estes países tinham com a potência que lhes roubaria o domínio econômico da
América: a Inglaterra), Galeano traz a exploração para o presente e fala da decadência
dessas regiões. São claros exemplos da tese de que a região rica do passado é marcada
pela pobreza no presente as minas de Potosí, na Bolívia (região dava todo o ouro e prata
que os espanhóis necessitavam e onde se formou uma elite local que enriquecia à base
da escravidão indígena. No século XVII, quando os metais escassearam, o sonho de
riqueza acabou e a pobreza se enraizou. Hoje, Potosí é o distrito mais pobre da Bolívia,
habitado somente por descendentes de índios, e de seu passado glorioso guarda apenas a
lembrança); o Nordeste brasileiro, que viveu seu auge com a produção de açúcar nos
século XVI e XVII, mas não escapou da decadência quando seu produto passou a sofrer
concorrência das Antilhas Holandesas, no século XVIII; e a região de Ouro Preto,
quando a efêmera exploração aurífera acabou na entrada do século XIX. Os três casos
refletem a formação colonial da América Latina: o continente nasceu para fornecer as
riquezas que a Europa necessitava. Na medida em que as terras já não atendiam a essa
demanda, foram abandonadas, ficando como marca do passado as gerações seguintes da
população historicamente explorada, pobre e sem perspectivas. Citando a teoria
marxista da divisão do trabalho entre operário e patrão, Galeano afirma que "enquanto a
Europa era o cavaleiro que levava as glórias, a América era o cavalo que fazia todo o
serviço".

Dos metais, seguiu-se a exploração agrícola e pecuária a partir principalmente dos


séculos XVIII e XIX, por meio da qual cada país, numa engrenagem perfeita com o
sistema econômico internacional, se identificou e ainda se identifica com um
determinado produto na escala comercial. A América Central se especializou no
fornecimento de frutas tropicais; o Equador, bananas; Brasil e Colômbia, café; Cuba e
Caribe, açúcar; Venezuela, cacau; Argentina e Uruguai, carne e lã; a Bolívia tornou-se
país fornecedor de estanho e o Peru de peixe. Embora com produções diferentes, o
sistema permanece com mecanismos idênticos em todos os casos: por se tratar de
mercadorias primárias, com baixos preços, os países pouco lucram como a venda
agrícola. Por isso, têm de produzir cada vez mais e com métodos baratos para fazer mais
divisas e atender à necessidades dos países compradores para não perder mercados.
Com isso, aumenta-se a exploração do trabalho e a formação dos latifúndios, impedindo
o acesso das classes populares à terra. Este processo de dominação personificou-se
principalmente na América Central. Neste território, a indústria nacional não existe ou é
primária: os grandes conglomerados pertencem a países estrangeiros, atuando
exatamente na industrialização de alimentos. Os países vendiam, no século XIX, sua
produção agrícola aos ingleses, substituídos um século depois pelos EUA, potência que
domina a área e dita os rumos da política local de acordo com seus interesses. A antiga
empresa norte-americana United Fruit Company era o "verdadeiro" poder na América
Central, comandando a área a despeito das vontades e anseios de sua população, e
inclusive promovendo golpes militares e instalando governantes de confiança para
garantir seus direitos (como na Guatemala, em 1954: numa intervenção militar, os EUA
derrubaram Jacobo Arbenz, socialista eleito democraticamente). As lutas de guerrilha
que caracterizam até hoje a região são decorrentes dessa dominação: grupos
paramilitares lutam contra governos corruptos que defendem os interesses norte-
americanos para chegar ao poder. Mais uma vez, a vítima é sempre a população, que se
não morre explorada nos latifúndios, tem sua vida encurtada nas batalhas da guerra
civil.

Sociedades nascidas para fora, isto é, para fornecer produtos e condições


econômicas de desenvolvimento às potências mundiais, as nações latino-americanas
nunca se esqueceram de sua trágica condição. E nem os movimentos de independências
nacionais das duas primeiras décadas do século XIX libertaram os novos países da
dominação colonial, pois a estrutura permaneceu idêntica: a economia agrário-
exportadora dominada por elites locais ligadas aos mercados compradores –
principalmente a Inglaterra. A fragmentação que o território latino-americano sofreu
após o movimento libertador de Simón Bolívar representa a impossibilidade de formar
uma unidade nacional: cada elite identificou-se com um pedaço do território e nela
formou seu país, de acordo com seu papel no comércio internacional. Como diz
Galeano, "cada novo país identificou-se com seu porto exportador, acima de qualquer
idealismo". O imperialismo britânico substituiu o domínio ibérico no século XIX,
fomentando seu próprio desenvolvimento às custas da produção dos novos países e
exterminando toda e qualquer tentativa de desenvolvimento autônomo. A Guerra do
Paraguai, de 1865 a 1870, é o exemplo mais claro desse argumento: capitaneados pelos
interesses comerciais britânicos, Brasil e Argentina promoveram um conflito bélico
contra a nação guarani, à época a mais industrializada e comercialmente independente
do continente. O resultado foi o maior genocídio da história latino-americana (1,3
milhão de mortos numa população de 1,8 milhão) e o enfraquecimento do Paraguai, que
até hoje não deixou de ser um protetorado sob a ingerência do imperialismo brasileiro e
argentino.

No século XX, com a decadência inglesa, surge no cenário os EUA como nova potência
gestora da América Latina. Não é à toa que, já em 1823, os norte-americanos
promulgaram a famosa Doutrina Monroe: "A América para os americanos". O que
significava dizer: os EUA estenderiam seus interesses sobre seu continente irmão e
continuariam a exploração iniciada quatro séculos antes, por meio do controle
econômico e político. O início da longa e duradoura intervenção norte-americana no
continente data de 1898, quando os EUA derrotaram a Espanha na batalha de
independência de Cuba, e se apossaram dos direitos políticos e econômicos sobre a ilha
– os quais mantiveram até 1959, quando Fidel Castro e seus guerrilheiros derrubaram o
governo de Fulgencio Batista e tomaram o poder. No entanto, mesmo longe de Cuba, é
sabido que os interesses norte-americanos criaram ramificações em outros países do
continente, com destaque para a já citada América Central e o México.

Mesmo os países com certo desenvolvimento industrial – Brasil, Argentina e México –


não escapam dessa dominação econômica imposta pelas potências internacionais. Basta
uma análise mais detalhada nos índices econômicos dessas nações para se comprovar o
argumento. Grande parte das receitas comerciais dessas nações ainda vêm da exportação
de matérias agrícolas, pecuárias (destacadamente o caso argentino) ou minerais. O
campo, a agricultura e as indústrias primárias ainda são marcos dos tempos coloniais.
Na verdade, as indústrias desses países têm força local, ou seja, encontram mercado
apenas em países subdesenvolvidos que não produzem tais mercadorias. Perante as
potências, não passam de apêndice das multinacionais com o objetivo de fornecer lucros
à matriz, e não em desenvolver um forte mercado interno. A industrialização latino-
americana não nasceu dos anseios de desenvolvimento sócio-produtivo, mas da
impossibilidade de importar produtos manufaturados durante a recessão econômica
mundial dos anos 30. Formou-se uma indústria baseada na "substituição de
importações", reforçada durante os anos 50 e 60 com o advento das multinacionais e
políticas internas de crescimento. No entanto, a industrialização latino-americana nunca
deixou de estar ligada aos interesses estrangeiros, ao fornecer produtos que tais
mercados necessitavam e importar tecnologias que, em vez de incrementar o
desenvolvimento, só aumentavam a dependência. A demanda interna e o crescimento do
mercado consumidor não foi atendida. Assim, entende-se que o movimento industrial
do continente foi mais uma etapa do colonialismo perante as potências mundiais:
fornece-se produtos baratos, baseados no baixo valor da mão-de-obra e na exploração
do assalariado, para se encaixar no mercado internacional e obter técnicas que a
indústria local é incapaz de produzir. Mudam os tempos e os métodos, mantém-se a
exploração, o subdesenvolvimento e a inviabilidade de um crescimento autônomo e
principalmente voltado às classes mais injustiçadas do sistema.

A iniciativa de um mercado de cooperação econômica que visa reduzir essa dominação,


como o Mercosul, tem efetividade apenas em nível local, ou seja, perante os demais
países do continente, que não dispõem das mesmas tecnologias e condições para
produzir as mercadorias que o bloco comercializa. O Mercosul não tem forças para
competir ou fazer afrontas à futura Alca, por exemplo, ou à União Européia: estes
blocos, além de poderosos economicamente, produzem mercadorias mais baratas e de
melhor qualidade que o bloco latino-americano, o que lhes abrem as portas para
conquistar os mercados onde o Mercosul atua hoje. A tentativa norte-americana de
enfraquecer o bloco reflete que as condições mudam, mas a essência é a mesma: a
potência mundial dita as regras e exige o cumprimento das colônias. Embora diga que
ainda é muito cedo para se pensar na Alca, o Mercosul vive sob o temor da formação
desse novo bloco, que lhe faria concorrência direta ao englobar todos os mercados
americanos restantes e limitar sua área de atuação. Tratar-se-ia de um pacto colonial
moderno: as colônias seguem a orientação superior, mesmo com contestação, por saber
que, se não o fizerem, as consequências e retaliações serão muito piores.

Mas não é apenas isso. O Mercosul é enfraquecido em função das diferenças sociais e
econômicas entre seus membros que, reforçadas ao longo dos séculos, fazem com que o
bloco tenha atritos internos. É inegável que o Brasil é o grande motor econômico do
acordo, ao possuir economia e produção diversificados e que gozam de certa
estabilidade financeira. Quem lhe poderia fazer concorrência, a Argentina, vive uma
crise econômica de grave intensidade que estagnou seu sistema produtivo; o Uruguai
oscila seu apoio aos dois países, pois necessita muito dos produtos que eles produzem,
já que sua economia é basicamente pecuária; na mesma situação se encontra o Paraguai,
país mais pobre e dependente do bloco. Nenhuma decisão pode ser tomada sem a
participação das quatro nações, e os desníveis de desenvolvimento de cada uma delas,
bem como tradicionais rixas políticas, atrapalham a tomada de políticas conjuntas.
Tome-se como exemplo o recente acordo automotivo entre Brasil e Argentina para a
construção conjunta de carros. Os argentinos vetaram as primeiras versões do acordo,
acusando o Brasil de querer manipular o Mercosul para favorecer a sua produção de
peças para carros em detrimento dos outros membros. O que estava implícito na
reclamação argentina era a crise da economia local e o inflacionamento da produção: as
peças locais saiam mais caras que as brasileiras, o que encareceria o produto final. No
final, um acordo definitivo foi assinado, dividindo a produção das peças e os custos de
montagem dos carros. Para compensar a crise argentina, quem perdeu foi o Brasil, que
arcará com os preços mais caros do parceiro e, consequentemente, encarecerá a
mercadoria. Esta, na concorrência com outros mercados, sairá em desvantagem.

A América Latina nasceu para poucos desfrutarem da riqueza da terra e do trabalho de


muitos. O sangue das "veias abertas" do continente é um manjar que alimenta o
crescimento das potências e das elites locais, mas também faz-se veneno que mata a
população de sua terra. No entanto, como veremos no próximo tópico, esse continente,
mesmo protagonizando uma história trágica e permeada da exploração, elites de
interesses limitados e governos repressores, nunca deixou de ter esperanças de mudar.
Afinal, a América Latina também protagonizou acontecimentos que tentaram desviar o
rumo da história e soam até hoje como esperanças de transformação. São casos como a
Revolução Cubana, ocorrida há 40 anos, e a atual guerrilha zapatista no México que
ainda permitem o sonho em uma terra melhor. Como disse Marx, a respeito do processo
histórico, são os homens que fazem a história, na sua luta diária pela sobrevivência e
pelo bem-estar. Assim, somente a luta do povo latino-americano, após séculos de
exploração e pobreza, poderá libertar o continente das amarras que o oprimem,
desenvolvê-lo em suas potencialidades e, principalmente, dar-lhe uma cara latino-
americana, ou seja, voltada às necessidades de seu povo. E, para incitar essa reflexão,
apresentam-se agora alguns dos movimentos que tentaram mudar a ordem das coisas no
continente. 
 

Os processos revolucionários

Guerras, mortes, ditaduras militares, exploração social, economia dependente. Estas


palavras e expressões são muito bem usadas para se expressar o andamento da história
latino-americana neste século. Existem pensadores que, de forma cética, consideram
que a trajetória do continente nos últimos 100 anos foi marcada exclusivamente pela
submissão das massas a regimes políticos autoritários e a um sistema produtivo baseado
na exportação. Não haveria, na opinião desses intelectuais, nenhum fato que indicasse
uma tentativa de transformação das estruturas sociais ou mudança do rumo histórico
seguido. Essa opinião, muito difundida entre aqueles que vêem a América como o
"quintal" dos Estado Unidos e descrevem sua população como alienada e explorada,
sem capacidade de lutar por uma vida melhor, é falsa. As correntes historiográficas mais
modernas, guiadas por uma linha interpretativa menos generalizadora e mais
investigativa dos detalhes dos fatos históricos, consideram que, em determinados
momentos, a massa popular em alguns países se rebelou e procurou modificar a
estrutura social em que se encaixava. Mesmo quando não ocorreu o autêntico levante
popular, alguns líderes buscaram seguir o ideal de transformação para construir uma
nova nação, e a partir daí uma nova história.

Os historiadores definiram, na história contemporânea da América Latina, quatro


eventos que podem ser analisados como tentativas de quebra do domínio imperialista
das grandes potências mundiais, buscando uma política mais nacionalista. Alguns de
forma limitada, outros de maneira mais direta, todos possuíram algumas características
em comum: criticaram o domínio internacional em seus territórios e procuraram
introduzir mudanças sociais para beneficiar a população. Até hoje são referências na
luta de movimentos sociais no continente como uma esperança de que a história latino-
americana, por meio da mobilização, pode tomar outros rumos. Elas são descritas aqui
em seus pontos principais, e não em uma análise mais detalhada, pela falta de espaço.  
Revolução Mexicana – O acontecimento mexicano é descrito como a primeira grande
mobilização social da América Latina no século XX. O processo começou como uma
autêntica revolução, isto é, com o objetivo de promover uma transformação estrutural
na sociedade, para depois normalizar-se e garantir algumas mudanças que não
representam um processo completo de modificação. Tanto é verdade que até hoje
existem movimentos sociais que buscam retomar o ideal da Revolução Mexicana para
completá-la e transformar a estrutura social e produtiva da sociedade do país. A
guerrilha no Estado de Chiapas, ao mesmo tempo que protesta contra o imperialismo
norte-americano e contra a pobreza da região, luta por uma reforma agrária justa e pela
memória de Emiliano Zapata, líder da revolução do começo do século que ecoa no
México até hoje.
A revolução teve início em 1910. Liderados por Zapata, os camponeses do estado de
Morelos levantaram-se contra os latifundiários da região e toda a exploração que estes
representavam. Logo o exército do país foi chamado para conter a revolta, que não
demorou a espalhar-se para todo o território mexicano. Em combates sangrentos, com
diversas mortes em ambos os lados, o exército de camponeses comandado por Zapata e
seu aliado Pancho Villa foi conquistando as principais terras, minando o poder agrícola
mexicano e a própria força política do ditador Porfirio Díaz. No final de 1910, Díaz foi
derrubado para a subida de Francisco Madero ao poder. Este, apesar de ter a confiança
de Zapata, representava os interesses da nascente burguesia mexicana: pouco lhe
importava tocar na estrutura agrária do país e criar impasses com os latifundiários. A
reforma agrária que estava na promessa revolucionária não se realizou, e Zapata voltou
ao combate. Reuniu os camponeses, tomou para si mesmo o governo do México em
1914 e iniciou um gradual processo de divisão agrária e reorganização da produção
agrícola em pequenas propriedades. Inclusive convocou uma Assembléia Constituinte
em 1917, na qual foi aprovada a Lei da Reforma Agrária. No entanto, a burocracia do
governo atrapalhava a execução da lei, e a repartição de terras não era executada da
forma mais adequada. A ascensão de governos burgueses, que buscavam a
industrialização do Estado, e a morte de Zapata numa emboscada em 1919, e a de
Pancho Villa quatro anos depois, congelaram o processo e a revolta camponesa.

A reforma agrária foi retomada no período 1934-1940, no governo de Lázaro Cárdenas.


Presidente com traços populistas, Cárdenas aplicou de forma séria a lei de 1917,
distribuindo 18 milhões de hectares a 772 mil camponeses, num ato predominantemente
de oposição aos latifundiários. Bondade do governante? Uma análise mais profunda das
transformações que a sociedade passava pode explicar os motivos de tal distribuição.
No mandato de Cárdenas, a indústria já despontava como a base da economia mexicana,
com o consequente declínio do latifúndio agrário-exportador. Além disso, a distribuição
acalmava os ímpetos revolucionários dos camponeses e lhes dava um pedaço de terra
para desenvolver uma pequena agricultura substancial, sem incomodar o grande
latifúndio. Afinal, o presidente não mexeu em toda a estrutura de concentração de
terras: em 1940, o censo registrou pouco mais de 300 propriedades de mais de 40 mil
hectares – os latifúndios ainda ocupavam uma extensão de mais de 30 milhões de
hectares. As terras expropriadas foram, em sua maioria, as improdutivas ou pertencentes
a grandes empresas.

A Revolução Mexicana, assim, promoveu uma alteração substancial na sociedade


mexicana, ao estimular a reforma agrária e a distribuição de terras para os camponeses.
Embora a estrutura social não tenha sofrido modificações radicais, com o poder
econômico se concentrando nas mãos da nova burguesia industrial, e muitos dos novos
proprietários, sem incentivo ou capacidade para desenvolver a agricultura em sua terra,
não tenha largado seu estado de pobreza, tratou-se de um processo com importância ao
ser o primeiro grande movimento de massas da América Latina contemporânea,
provocando reflexos no continente até hoje, evocada por movimentos nacionalistas que
buscam justiça social e reforma agrária.

Revolução Boliviana – Processo inspirado na Revolução Mexicana e que alcançou


grande amplitude, com as classes populares inclusive tomando o poder e os meios de
produção econômica. No entanto, a incapacidade para manter esse controle, a falta de
força política e as pressões de setores mais fortes, incluindo o imperialismo norte-
americano, acabaram por minar as bases da revolução e seu potencial renovador que
pretendia transformar a exploradora e miserável estrutura social boliviana numa
sociedade mais justa e igualitária.

O levante ocorreu no dia 9 de abril de 1952. Incitados pelo MNR (Movimento Nacional
Revolucionário), partido de centro-esquerda formado por pequenos burgueses que fora
alijado do poder um ano antes por um golpe militar, os mineiros do país iniciaram uma
greve por melhores condições de vida e salários. Ao mesmo tempo, explodia a revolta
nas grandes fazendas, com os índios e camponeses tomando as terras, e na capital La
Paz, onde a população mais pobre se organizou, com a ajuda do MNR, em milícias
armadas que invadiram quartéis e, numa incrível guerrilha urbana, venceram o Exército
mandado às ruas para combatê-las. O povo boliviano, oprimido ao longo de séculos,
tomara o poder em todo o país, e o MNR parecia ser seu representante legítimo para
ocupá-lo. Aqui, entretanto, começam as falhas do processo revolucionário do país. O
partido, mais preocupado em retomar o governo perdido um ano antes e formado por
elementos de classe média, não soube atender às reivindicações básicas da população.
Pelo contrário: aos poucos minou as conquistas dos trabalhadores e abriu espaço para a
intensificação da penetração do capitalismo norte-americano na economia do país.

Dois marcos da Revolução Boliviana, e que a fazem carregar esse título, são as provas
mais evidentes de como o MNR apenas se apoiou na revolta popular para tomar o
poder, e não para promover mudanças estruturais na sociedade. O primeiro deles foi a
lei de Reforma Agrária, promulgada em agosto de 1953 e destinada a organizar a
desordem instalada com a tomada de fazendas pelos camponeses, um ano antes, durante
o processo revolucionário. A Lei evitou criar polêmicas com os latifundiários,
determinando que os camponeses deveriam devolver parte das terras ocupadas aos
proprietários ainda vivos. Ficava com uma pequena faixa de terreno, geralmente
improdutiva, antieconômica e pela qual ainda tinha de pagar indenização pela posse.
Assim, o campesinato, que em 1952 ocupara a maior parte das terras do país, fizera uma
divisão razoavelmente igualitária e eliminara estruturas feudais de exploração de mão-
de-obra, como o servilismo, sofria um processo de regressão. Sem incentivo fiscal e
grande espaço nos mercados consumidores, o pequeno proprietário, em sua maioria,
vinha a perder sua terra para o latifundiário, voltando a ser seu empregado e morando
em suas dependências por caridade e em troca de trabalho pesado na lavoura. O sistema
de exploração campestre voltara a ser o mesmo: grande propriedade, monocultura,
trabalho servil. A diferença é que fora introduzido no campo formas capitalistas de
exploração comercial: a produção em larga escala para venda em menor tempo e mais
barata. Mas a grande conquista camponesa – as terras -, foram perdidas em sua maior
parte graças à lei de Reforma Agrária, feita às pressas pelo governo do MNR e que
revelava a incapacidade do partido de se desvencilhar dos grupos economicamente mais
fortes do país para promover uma mudança radical na sociedade.

O segundo marco da revolução engana por sua demagogia. Em outubro de 1952, o


governo nacionalizou as minas de estanho, supostamente rompendo com um domínio
secular da principal fonte de divisas do país por parte da família Patiño, dona das minas
e refinarias. O ato poderia simbolizar um desejo de autonomia nacionalista na
exploração do minério, se não escondesse certas conjunturas que serviram para reduzir
ainda mais o papel e a importância da revolução. Quando nacionalizadas, as minas de
estanho já tinham rendimento limitado, tão exploradas que foram pelos Patiño. Assim, a
Bolívia não teria muito minério para exportar e fazer divisas no mercado internacional.
Além disso, o estanho bruto tem valor reduzido no mercado, tendo de ser tratado em
fundições – e o país não possuía nenhuma à época. O país se acostumara a receber
pouco pelo estanho retirado das minas pelas empresas dos Patiño e levado para ser
fundido no exterior. Com a nacionalização, o processo não se inverteu. A Bolívia
continuou a receber pouco pelas toneladas de minério, por exportá-lo bruto, e via em
seguida as grandes potências pagar caro pelo produto refinado. A nacionalização das
minas não trouxe autonomia econômica à Bolívia, nem melhorou a vida dos mineiros,
mas trouxe um problema: teve de herdar minas decadentes e de baixa produtividade,
livrando os antigos proprietários de maiores prejuízos. Como se não bastasse, estes
receberam indenizações pela expropriação, num total de 22 milhões de dólares.
Vendendo muito e recebendo pouco, o governo do MNR ainda tentou reativar a
exploração do estanho, fundando uma empresa estatal – a COMIBOL – para descobrir
novas jazidas. A iniciativa, no entanto, só trouxe mais prejuízos e quase nenhum
estanho. A solução foi recorrer a empréstimos junto aos EUA, em troca do
fornecimento, a baixos preços, de minérios e outros produtos, como o petróleo e o gás
natural.

O processo de nacionalização das minas se transformou rapidamente numa continuação


do retrocesso observado na reforma agrária: as conquistas dos mineiros são
gradualmente perdidas pelo líderes políticos que, pertencentes à classe média e ao poder
econômico, não podem negar suas origens. Os presidentes do MNR que governaram a
Bolívia de 1952 a 1964 tentaram mudar a sociedade boliviana e sua estrutura por meio
de decretos, e nunca de forma efetiva. A população não recebeu os benefícios da
revolução: pelo contrário, foi dominada ainda mais pela miséria e teve sua força política
reprimida quando as milícias urbanas armadas foram suspensas para a reconstituição do
Exército, no final dos anos 50.

No entanto, a revolução boliviana, apesar de frustrada em seus planos, serviu como


exemplo para movimentos sociais posteriores de como a mobilização popular pode
provocar abalos na ordem estabelecida, em busca de melhorias em sua vida. Foi
denominada assim por ser um caso em que o povo foi às ruas e batalhou por sua conta,
por seus objetivos, acima de ideologias partidárias. Talvez a ausência de um autêntico
líder que canalizasse suas aspirações reformistas, evitando o MNR e seu oportunismo
pequeno-burguês, tenha sido o principal motivo da derrota das massas no processo
revolucionário. Mesmo sem alterar as estruturas sociais e produtivas do país, a
revolução deixou heranças, como a modernização das relações no campo (apesar da
exploração prosseguir), a politização da sociedade boliviana e a fundação da COB
(Central Obrera Boliviana), sindicato urbano de trabalhadores que teve papel
fundamental no combate às ditaduras nos anos 70 e 80. 
 

Revolução Cubana – O processo liderado por Fidel Castro é descrito até hoje como a
mais radical mudança política no cenário latino-americano. Afinal, Cuba tornou-se, a
partir de 1959, o primeiro país socialista do mundo ocidental e o único em que tal
regime sobreviveu, quebrando a hegemonia norte-americana no continente e o "anti-
comunismo" que esse domínio pregava e combatia – o golpe militar de 1954 contra o
presidente Jacobo Arbenz, de tendências socialistas, na Guatemala, expressa bem isso.
Hoje, mesmo com a queda do mundo soviético, o país insiste em se denominar
socialista e resiste a uma total abertura econômica, guiada pelos organismos
internacionais como FMI e Bird. 

A Cuba moderna, segundo o sociólogo Emir Sader, incomoda os outros países por ser
fruto de uma revolução que, negando os EUA, deu certo e mudou a estrutura social,
apesar dos problemas econômicos e políticos que enfrenta na atualidade.

Sader considera que uma revolução implica numa total transformação do sistema sócio-
produtivo da nação, instalando um novo sistema e dando à sociedade novas condições
de sobrevivência. Para ele, a guerrilha de Fidel Castro, ao tomar o poder, tinha em
mente a necessidade de modificar a estrutura cubana para conseguir o apoio da
população e autonomia internacional. É fundamental entender como era tal estrutura
antes de Fidel assumir o comando político de Cuba. Incentivada pela colonização
espanhola, a ilha se tornou grande produtora de açúcar, cuja venda na Europa enriquecia
os senhores locais e atiçava seus desejos de independência para se libertar dos impostos
coloniais. O processo de libertação do domínio espanhol se consumou em 1898, mas o
novo país, localizado a poucos quilômetros dos Estados Unidos, não escapou da
ingerência econômica e política desta nação. Desde o início do século, os norte-
americanos se instalaram em Cuba, controlando o comércio de açúcar e todos os demais
setores da economia agrária. Os latifúndios dominavam a maior parte do território,
reinando a exploração dos camponeses e a opressão política nos centros urbanos. Os
EUA faziam e desfaziam presidentes à sua vontade, até que o sargento Fulgencio
Batista, a partir dos anos 40, dominou a cena política cubana e acalmou, à base da
repressão, as diversas manifestações que eclodiam no país contra a recessiva política
econômica e os privilégios norte-americanos. Um dos levantes que conteve foi em 1953,
no assalto ao quartel Moncada liderado por um jovem advogado chamado Fidel Castro.
Extraditado de Cuba com outros colaboradores, Fidel foi viver no México para, três
anos depois, retornar e promover, a partir das sierras e com o apoio camponês, a
guerrilha contra a ditadura de Batista. Mesmo com parcos recursos e poucas armas, o
exército guerrilheiro cresceu e derrotou a maior parte das forças de Batista, assumindo
gradualmente o controle dos principais distritos do país. Quando chegou à capital,
Havana, em 1º de janeiro de 1959, Batista já fugira para a República Dominicana, e
Fidel foi proclamado presidente e primeiro-ministro.

Após assumir o poder, os revolucionários tiveram, de cara, de enfrentar o governo


norte-americano, que ordenou a saída de todas as empresas nacionais do território
cubano e decretou o embargo econômico contra o país após a fracassada invasão da
Baía dos Porcos, em 1961. A medida norte-americana foi seguida pela maior parte dos
países do continente, que romperam as relações comerciais com Cuba e inclusive
votaram por sua exclusão da Organização dos Estados Americanos (OEA). De uma hora
para outra, Cuba teria de buscar novos parceiros para sobreviver e, principalmente,
cumprir seus objetivos de transformação social. Para tanto, optou, em contrapartida ao
capitalismo, pelo socialismo e por acordos com os países do bloco liderado pela União
Soviética. Vendendo açúcar e níquel a essas nações, Cuba recebia em troca maquinaria
pesada e petróleo para desenvolver indústrias de bens de consumo e gerar, com a
diversificação das exportações, divisas que permitiam a manutenção de serviços
públicos gratuitos à população. A saúde e a educação, entre outros, deixaram de ser
privilégio daqueles que poderiam pagar, pois se tornaram serviços estatizados. Além
disso, o governo passou a mandar anualmente os universitários ao campo, para ensinar
os camponeses a ler e escrever. O resultado desse processo contínuo é visível até hoje.
Cuba é o país com maior índice de alfabetização no continente, com 85%. O tratamento
de saúde é mantido pelo Estado, e os equipamentos são elogiados ao redor do mundo
pela qualidade e tecnologia.

A própria estrutura produtiva – o campo – foi transformada. O primeiro ato do governo


revolucionário foi promulgar uma Lei de Reforma Agrária, que determinava a
nacionalização de terras improdutivas pertencentes a empresas norte-americanas e
latifundiários. Além disso, o governo tomou para si terras que foram abandonadas pelos
donos, que fugiram com a vitória guerrilheira. Aos camponeses foram oferecidas duas
alternativas: a organização em cooperativas ou a posse individual da terra. O Estado
importou maquinaria agrícola, treinou técnicos para ensinar os novos proprietários
como gerir a terra e usar os novos mecanismos de produção, incentivou a produção com
apoio financeiro e subsídios. As safras de açúcar cresceram e novas culturas foram
desenvolvidas, como o tabaco e frutas cítricas. O índice de desempregados e
empregados sazonais (durante as safras) diminuiu, com a posse efetiva da terra. Nas
cidades, o crescimento industrial e novos serviços, como o turismo, também ofereceu
oportunidades à população.

Com o fim da União Soviética, em 1991, e consequentemente de seu principal mercado


de açúcar, Cuba enfrentou uma séria crise interna, com diminuição da produção
industrial e redução do abastecimento de energia. Mesmo assim, o país sobrevive, ao
reatar suas relações com os países latino-americanos e europeus e visualizar, ainda que
distante, um princípio de abertura por parte dos EUA. A crise cubana levantou sérias
dúvidas quanto à validade do regime de Fidel e as conquistas do país durante seu
governo. 
 

 É claro que, no sentido mais liberal, o governo de Fidel não é democrático, ao negar o
direito às eleições e perpetuar-se no poder. No entanto, sob seu comando Cuba
conseguiu a tão procurada "revolução": de um país agrário-exportador e constituído de
uma população predominantemente rural e explorada, tornou-se uma nação com
economia diversificada e que oferece a seus habitantes condições de vida mais dignas
do que muitos países latino-americanos. O exemplo cubano soou no continente durante
os anos 70 como um modelo de libertação do imperialismo norte-americano, e até hoje
atrai muitos movimentos sociais e guerrilheiros à sua causa. Por mais contestado que
seja, o exemplo de Cuba mostra que a transformação radical da sociedade é possível se
houver interesse e mobilização popular.

Revolução Peruana – O caso peruano foi atípico em todos os sentidos, e gera
diferentes interpretações até hoje na historiografia do país. Em outubro de 1968, uma
junta militar liderada pelo general Juan Velasco Alvarado derrubou o presidente
Belaúnde Terry e instalou-se no poder. Seu lema, expresso no "Estatuto do Governo
Revolucionário", se resumia a três pontos: tornar a estrutura do Estado mais dinâmica
para modernizar o país; dar níveis de vida superiores à população desassistida; e
desenvolver no povo e na economia uma mentalidade nacionalista e independente
perante as potências estrangeiras. Quem lê tais tópicos pode estranhar como um grupo
de militares, tradicionalmente conservadores, limitados à força bélica e de pouca
instrução, poderia se preocupar com assuntos tão complexos. A explicação é simples.
Desde os anos 40, influenciados pela força demonstrada pelo exército norte-americano
na Segunda Guerra, os militares peruanos começaram a interferir na política nacional,
chegando ao poder em 1945 com um golpe liderado pelo general Manuel Odría. Este
promoveu um gradual processo de abertura até 1952, quando foram realizadas eleições
livres. No entanto, os militares continuaram a representar uma "eminência parda" na
presidência, interferindo nas decisões presidenciais e no andamento do processo
político.

Em 1960, o Exército fundou o "Centro de Altos Estudos Militares" (CAEM), destinado


a formar militares com consciência crítica sobre os problemas sociais do país. O CAEM
representava a extrema politização das forças armadas peruanas e seu desejo mais do
que explícito de chegar ao poder na primeira oportunidade. Dois anos depois, essa
chance apareceu. Víctor Haya de la Torre, candidato da Apra (partido popular, de
caráter populista), venceu as eleições presidenciais, mas não chegou a tomar posse, pois
os militares o derrubaram, acusando-o de liderar um levante comunista. Esse governo
militar caracterizou-se por iniciar uma "reforma social controlada": tentou uma reforma
agrária em terras improdutivas, sem ferir os interesses dos latifundiários, ao mesmo
tempo que reprimia e prendia líderes sindicais que clamavam por mais espaço político.
Em 1963, pressionados pela opinião pública e pelos EUA, os militares promoveram
novas eleições, com a vitória de Belaúnde Terry. Este, apesar de defender em campanha
um discurso demagógico, prometendo inclusive a nacionalização do petróleo. Não
cumpriu o prometido, como concedeu novos direitos de exploração dos campos
petrolíferos peruanos a empresas norte-americanas a baixos preços e impostos. Foi esse
ato, aliado ao aumento da pobreza da maior parte da população e da crescente violência
rural pela reforma agrária, que estimularam o golpe de Velasco Alvarado, também
formado no CAEM.

O primeiro ato de Velasco já foi cercado de polêmica. Na primeira semana de governo,


ele nacionalizou a empresa norte-americana "International Petroleum Company", que
detinha as principais concessões de exploração do óleo no país. Em seguida, numa clara
provocação aos EUA, anunciou que não pagaria indenização à empresa enquanto ela
não pagasse uma dívida de 690 milhões de dólares de impostos não pagos. O ato
cercava-se de um discurso nacionalista e de independência perante os negócios
internacionais, mas foi desmistificado pelo próprio presidente. Para tranqüilizar os
investidores estrangeiros, Velasco foi à televisão dizer que somente nacionalizaria
outras firmas internacionais se estas não cumprissem as leis do país e não pagassem os
impostos devidamente. Com isso, garantia-se as inversões estrangeiras no Peru e a
manutenção dos mercados para onde exportava sua produção. A estrutura econômica
estava assegurada. A nacionalização da International Company representou mais um ato
demagógico, destinado a mostrar à população a força do novo regime e sua preocupação
com princípios nacionalistas, do que uma efetiva demonstração de independência
perante as potências e vontade de construir uma nova sociedade. Essa demagogia é
comprovada pela importância do óleo na economia do país: na época, o petróleo
representava apenas 10% das exportações peruanas. A indústria pesqueira e agrícola,
dominada por consórcios norte-americanos, ficou intocada. Apesar de bramar contra o
capital estrangeiro e nacionalizar setores menos importantes, o regime não diminuiu a
dependência peruana perante as potências.

Mas o governo do Peru entrou para a história da América Latina por ser a primeira
ditadura militar no continente a promover uma considerável reforma agrária. No final de
1968, Velasco Alvarado decretou a divisão das terras dos latifúndios improdutivos em
cooperativas administradas pelos camponeses. Ficou famosa, na expropriação da
primeira fazenda, a frase pronunciada por Alvarado: "Camponês, o patrão não comerá
mais de tua pobreza". Tal expressão fora dita, duzentos anos antes, por Tupac Amaru,
índio que se rebelara contra a exploração espanhola e acabou morto ao ser derrotado. A
iniciativa foi boa, mas, seguindo o exemplo das nacionalizações das empresas, mais
demagógica do que efetiva. Apesar de grande quantidade de terras ser dividida, numa
reforma agrária radical, o governo não forneceu meios técnicos ou qualquer tipo de
ajuda para que os camponeses, que há pouco tempo eram servos de poderosos senhores
de terras, se tornassem administradores. A produtividade das cooperativas não rendeu o
esperado, e com o enfraquecimento do regime, nos anos 70, muitos ex-proprietários
entraram na justiça para reaver as terras, alegando desapropriação indevida. Aos poucos
a estrutura latifundiária normalizou, ou seja, os camponeses, ameaçados pela falência
das cooperativas e pressionados pela justiça, voltaram a ser servos nas grandes
propriedades. Alguns, no entanto, conseguiram manter um pedaço de terra, promovendo
um regime de pequena propriedade.

Pressionada pelos interesses econômicos internacionais e mergulhada em suas próprias


contradições – atacar o capital estrangeiro enquanto não detinha sua penetração na
economia, promover uma reforma agrária sem dar a devida estrutura aos camponeses e
pregar um discurso nacionalista ao mesmo tempo em que calava a imprensa e suspendia
eleições e partidos políticos -, a ditadura peruana perdeu força ao longo dos anos 70.
Velasco Alvarado foi derrubado por setores militares mais conservadores em 1975,
assumindo o poder o também general Francisco Bermúdez. Este preparou o terreno para
a normalização democrática do país, promovendo eleições em 1980.

O regime peruano entrou na história como uma "revolução" por ser o primeiro governo
militar que, livrando-se da aura conservadora, tomou consciência dos problemas
sociais de seu país e promoveu algumas reformas estruturais de peso na sociedade. 
 
Mesmo não modificando a estrutura básica, a ditadura peruana mostrou que os
militares também poderiam ser entendidos na realidade social e ter idéias para
modificá-la. O regime de Velasco Alvarado reforçou o papel militar na política
peruana, e o grande medo de Alberto Fujimori, quando ainda era o presidente, de ser
derrubado do poder pelo Exército reflete a politização das Forças Armadas peruanas:
se a corrupção e desmoralização do poder público houvesse se tornado mais crônicas,
os militares poderiam intervir como uma forma de "limpar" a política nacional e
promover as melhorias buscadas pelo povo. Ou seja, seguir a lição iniciada por Juan
Velasco Alvarado. Mas a renúncia e fuga de Fujimori, seguidas pela aparente
normalização democrática, tranquilizaram as Forças Armadas, pelo menos até o
momento. 
 

O outro lado ainda vive

Mesmo que os tempos de tormenta dos regimes militares sejam um passado distante, os
países da América do Sul não podem dizer que são paraísos democráticos. Por mais que
exista um processo eleitoral regular e o voto seja um direito universal, as atitudes de
certos governantes, bem como sua trajetória política, colocam em xeque a fachada
democrática destas terras e fazem pensar se não seriam "ditaduras encobertas".

Três casos exemplificam os argumentos acima. No Peru, Alberto Fujimori se perpetuou


no poder durante 10 anos à base de emendas constitucionais que garantiram sua
reeleição em eleições marcadas pela fraude. Além disso, não hesitou em usar o Exército
– o mesmo que na atualidade lhe fez oposição – para fechar o Congresso em 1992 e
decretar-se o único responsável pelo governo do país. Na Bolívia, até o próximo ano o
poder está nas mãos do general Hugo Bánzer, eleito em 1997. Para quem não lembra,
ele governou o país de 1971 a 1978, numa das ditaduras militares mais denunciadas
como abusivas e arbitrárias pela Organização dos Direitos Humanos. Para voltar ao
governo, Bánzer teve de promover uma nova imagem pessoal: o militar de respeito que
combate o tráfico de drogas. Apoiado pelas forças armadas e obcecado pelo poder,
Bánzer tem forças suficientes para dar continuidade à trágica história boliviana: quando
um presidente não aprova seu sucessor, dá um golpe de Estado e mantém no poder.
Conhecendo a personalidade do velho general, essa hipótese não é improvável.

O terceiro caso também envolve um militar: Hugo Chávez, na Venezuela, governa com
poderes absolutos. Depois de se eleger presidente com mais de 80% dos votos, Chávez
formou maioria no Congresso e pôde aprovar projetos que centralizam todo o poder em
suas mãos. Recentemente conseguiu a aprovação de uma lei permitindo que ele governe
por decreto, sem submeter seus planos ao parlamento. Por mais que seu poder emane do
povo que o elegeu, Chávez o centralizou de tal forma que constituiu uma pequena
ditadura absolutista, sem espaços para contestação. 
 

Os grandes líderes

Também é possível narrar e entender a história do continente por meio de alguns dos
líderes que marcaram sua história ao longo deste século. Eles entraram, pela frente ou
pelos fundos, para a história do continente. Inscreveram seus nomes na trajetória de seus
países até hoje e influenciaram diretamente a vida das populações com as quais
conviveram. Seria impossível, dessa forma, não falar de alguns dos mais importantes
líderes que a América Latina conheceu. Os homens aqui citados são apenas exemplos,
pois muitos outros poderiam figurar ao lado deles ou substitui-los nestas apresentações.
Privilegiou-se o critério técnico: a importância do escolhido em seu país e, por sua vez,
a proposta em abordar aspectos específicos de algumas dessas mais importantes nações.
Pois tratar de seus personagens é uma maneira de se fazer isso e constituir uma idéia
mais completa sobre o continente como um todo. Foram definidas três categorias, com
dois exemplos em cada. 
 
Os Libertadores

Simón Bolívar (1783 – 1830)

Apesar de fazer parte do século XIX, é impossível falar de América Latina sem se falar
de Simón Bolívar. Conhecido como El Gran Libertador, Bolívar foi o primeiro líder a
defender e buscar uma unidade latino-americana. Filho de comerciantes que residiam na
atual Venezuela, Bolívar teve uma vida cercada de luxos e conforto. Ainda jovem, foi
enviado à Europa para estudar, tomou contato com os ideais libertários da Revolução
Francesa e, em 1807, voltou à Venezuela, disposto a organizar batalhões militares para
promover a independência da colônia. Após combates de dois anos, favorecidos pela
fraqueza do exército espanhol, cuja maioria fora enviada para lutar contra a invasão
napoleônica na Espanha, Bolívar libertou a Venezuela em 1809. Seu sonho, agora, era
expandir a liberdade para todo o continente. Para tanto, formou novos exércitos e aliou-
se a militares que já promoviam movimentos de libertação em outras comarcas, como o
uruguaio José Artigas e o argentino José de San Martín. Recrutando populares como
soldados e dividindo as áreas de atuação, os três generais gradualmente proclamaram a
independência dos territórios, até a expulsão definitiva dos espanhóis.

No entanto, os esforços de Bolívar terminaram nessas lutas de libertação. Consciente de


que somente uma América unida poderia fazer frente às grandes potências européias e
aos EUA, o general tentou unificar todos os territórios libertados. Mas os interesses das
elites criollas de cada comarca falaram mais alto, e a fragmentação da América se
tornou inevitável. Cada oligarquia não quis perder a área onde desenvolvia sua riqueza
para um processo de unificação, pois isso representaria a perda de seu poder político e
econômico. O exemplo mais claro da morte do ideal de Bolívar ocorreu na antiga Grã-
Colômbia, libertada e governada pelo general venezuelano. Os oligarcas da região não
aceitaram a decisão de Bolívar de manter a região unificada num único país,
promovendo uma guerra para tirá-lo do poder em 1827. Após a vitória, exilaram o
militar e dividiram o território em três novos países: Venezuela, Colômbia e Equador.

Bolívar morreu em 1830, acometido pela tuberculose. Reconhecera que cada elite
latino-americana se identificou com sua luta apenas para se libertar da tutela política
espanhola, mas não para formar um novo país. Desiludido, profetizou o que a história
do continente, marcada por ditadores, mortes e submissão econômica, comprovou: "A
América cairá infalivelmente nas mãos de um bando desenfreado de tiranos mesquinhos
de todas as raças e cores, que não merecem consideração". 
  
 

Augusto César Sandino (1893-1934)

Ex-cortador de cana e mecânico, foi trabalhando nas minas de ouro e prata que
Sandino conheceu a realidade da população mais pobre da Nicarágua, bem como
percebeu que a economia e a política de seus país eram dominadas pelos EUA, por
meio de empresas e governos tampões. A dura vida nas minas e a repressão do exército
contra as revoltas dos mineiros foram gerando a consciência revolucionária e opositora
aos norte-americanos no jovem Sandino, até que, em 1926, ele iniciou um movimento
guerrilheiro na região mineradora, ao norte do país. Depois de uma série de derrotas,
os guerrilheiros conseguiram se recuperar e vencer as forças militares enviadas pelo
governo, avançando em direção ao centro. Ao mesmo tempo, os camponeses dos
latifúndios de café da região sul, e os trabalhadores da capital, Manágua, se levantaram
em apoio a Sandino. Os lemas revolucionários eram expulsar os norte-americanos da
Nicarágua e melhorar as condições de vida da população.

Diante da intensa movimentação e da ameaça de perder seu domínio, os EUA


intensificaram a repressão contra a Nicarágua, exigindo que o governo eliminasse os
focos guerrilheiros ao mesmo tempo que enviava tropas para combatê-los. De tão dura
e violenta, a ação norte-americana provocou protestos na própria opinião pública do
país, levando os EUA a promover uma retirada estratégica do país. No entanto,
deixaram como herança a Guarda Nacional, um corpo militar que garantia o
poder yankee em território nicaragüense comandada à época por Anastacio Somoza. 

Este, apoiado pelos norte-americanos e com ganas de chegar ao poder, iniciou novo
levante contra as tropas de Sandino e seus aliados. Foi numa dessas pequenas batalhas
que Somoza seqüestrou o líder guerrilheiro, em 1934, e o assassinou. Em seguida,
intensificou a repressão contra as populações que apoiavam Sandino e, dois anos depois,
assumiu o poder por meio de um golpe de estado.

No entanto, Somoza e sua família, que ficaram no poder durante 43 anos, não foram
capazes de matar a herança revolucionária sandinista. Nos anos 60, surgiu a Frente
Sandinista de Libertação Nacional (FSNL) que, canalizando a revolta popular e das
classes médias contra a opressora ditadura, derrubou o regime em 1979 e assumiu o
governo com o intuito de promover as reformas estruturais defendidas por Sandino em
sua luta. Sua tentativa, em onze anos de mandato, foi infeliz, pois antes de desenvolver
a economia e transformar a sociedade, os líderes sandinistas tiveram de lutar pela
manutenção de seu regime contra as tropas financiadas pelos EUA, denominadas
"contra-revolucionários". Desgastado pela guerrilha, em 1990 o candidato sandinista,
Daniel Noriega, perdeu as eleições presidenciais para Violeta Chamorro, apoiada pelos
vizinhos norte-americanos. 
 

Os Populistas

OBS: Esta categoria é provavelmente a mais polêmica, pois muitos outros políticos,
como Getúlio Vargas, no Brasil, e Paz Estenssoro, na Bolívia, poderia entrar nela. Mas
privilegiou-se o critério de mostrar preferencialmente a história dos países que nos
cercam no continente, para desenvolver uma visão mais global. Num próximo ensaio, o
tema do Populismo será abordado de maneira mais abrangente, envolvendo todas as
suas variantes. No momento, fiquemos com duas de suas mais importantes variantes. 
  
 

Juan Domingo Perón (1895-1974)


Nascido em Villa de Lobos, no interior da Argentina, Perón teve uma infância pobre.
Quando jovem, mudou-se para Buenos Aires para estudar medicina, mas logo foi
atraído pela carreira militar e ingressou na Academia Militar Nacional. Promovido
constantemente na hierarquia, na década de 30 tornou-se general e começou a se
envolver com a política do país. Participou, em 1943, de um golpe de estado que
derrubou o regime militar liderado pelo general Ramón Castillo. Perón foi nomeado
para o Ministério da Guerra e para o Departamento Nacional do Trabalho, no qual
iniciou sua ascensão política. Com o objetivo de ganhar o apoio dos trabalhadores,
Perón, durante seu mandato, colocou em prática uma série de leis que visavam
melhorar o estado de vida do proletariado urbano, como a instituição do 13º salário,
previdência social e benefícios em caso de demissão. Ao mesmo tempo, eliminava e
despolitizava os sindicatos independentes, agrupando os trabalhadores em torno do
Departamento Nacional. 

Com esses atos, Perón canalizava o apoio dos operários para sua pessoa e criava uma
enorme base popular em torno de sua personalidade cativante. Não demorou muito, e
suas medidas o desgastaram perante os industriais e a classe média, que não aceitavam o
espaço e direitos dados à classe trabalhadora. Em 8 de outubro de 1945, Perón foi
demitido de seus cargos pelos militares e preso. No entanto, nove dias depois, uma
multidão dirigiu-se à frente da Casa Rosada, sede do governo, e pediu sua libertação,
num movimento de massas jamais visto no país. Solto, Perón apareceu na sacada e
discursou para o povo eufórico. Encerrava-se nesse ato simbólico o regime militar, ao
mesmo tempo que o general lançava sua candidatura à presidência.

Eleito em 1946 pelo Partido Laboralista (mais tarde convertido para Peronista, e depois
Justicialista, que existe até hoje), Perón levou adiante seus planos de industrialização da
economia e concessões aos trabalhadores. Nacionalizou empresas estrangeiras, com
altos custos para os cofres do governo, e exerceu forte censura contra a imprensa. Com
altos índices de popularidade, Perón e sua esposa, Evita, representavam uma Argentina
moderna e independente, que crescia e não enfrentava crises. No entanto, estas
começaram a surgir após a reeleição de Perón, em 1952. As nacionalizações de
empresas, manutenção dos sindicatos e concessões aos trabalhadores consumiram as
reservas financeiras nacionais, gerando redução na produtividade e aumento da inflação.
Além disso, o presidente passou a enfrentar a oposição de setores que iam contra sua
política, como os industriais, militares conservadores e a Igreja. A economia da
Argentina estagnou, e pequenos levantes contra Perón tornaram-se comuns em Buenos
Aires. Pressionado pela Marinha e Aeronáutica, ele renunciou em 1955 e exilou-se no
Paraguai e Espanha. No entanto, permaneceu como referência política para os anos
seguintes, quando o país enfrentou um recrudescimento político, em função de regimes
militares opressores.

Com a crise dos governos militares no início dos anos 70 em função de vários fatores,
como grave crise econômica, instabilidade social e revolta popular, as diversas forças
políticas argentinas uniram-se em torno do nome de Perón para volta ao poder e
tranqüilizar a situação, inclusive aquelas que se opuseram a ele nos anos 50. Esse fato
demonstra o poder do Peronismo de congregar tendências políticas diferentes em torno
de seu discurso trabalhista, defendendo justiça para os operários e independência
perante o capital estrangeiro. O velho general voltou em 1973, e logo em seguida foi
eleito presidente. No entanto, com a saúde debilitada, Perón morreu um ano depois, sem
melhorar a situação de seu país, que veria, a partir de 1976 até 1983, o período mais
negro de sua história, com a instalação de uma nova ditadura militar no poder que não
teve pudores em matar e desaparecer com todos aqueles que lhe faziam oposição.

Perón foi um líder tipicamente populista, encarnando a ambigüidade dessa filosofia


política em seus atos. Defendia em seus discursos uma postura nacionalista, defendendo
a soberania nacional, nacionalizando firmas estrangeiras e pregando o sacrifício do povo
pelo país. No entanto, ao mesmo tempo oferecia concessões ao capital internacional
para promover a industrialização e não mexia na questão da terra, para não promover
atritos com os poderosos latifundiários e estancieros exportadores de carne.
Concentrava seu poder no apoio dos trabalhadores às suas medidas laborais, mas
eliminava sindicatos autônomos e restringia o direito às leis trabalhistas apenas aqueles
que se filiassem ao Departamento de Trabalho do governo. Com isso, Perón atrelou os
sindicatos e a política trabalhista ao Estado, limitando a ação independente dos
trabalhadores e suas reivindicações. Mesmo com essas contradições e a vontade das
elites argentinas, o mito de Perón não morreu perante a população. Afinal, ele foi o
primeiro líder do país a transformar as massas trabalhadoras em objeto de discurso e
melhoria social, dando-lhes direitos e uma existência mais digna.

Até hoje o Peronismo, sob a forma do Partido Justicialista, está vivo. Sua ideologia é a
defesa dos direitos do trabalhadores e a industrialização da economia. No entanto, após
ficar quase dez anos no poder com Carlos Menem, foi derrotado nas últimas eleições
para a presidência da República para Fernando de La Rúa, candidato da União Cívica
Radical. 
  
 

Lázaro Cárdenas (1895-1970)

Cárdenas chegou ao poder em 1934, com o objetivo de recuperar o México do desastre


econômico e social instalado com a crise mundial de 1929. Sua política voltava-se, a
exemplo de Perón, para os trabalhadores. A diferença é que, enquanto o argentino
destinou suas atenções para a massa de trabalhadores urbanos, Cárdenas centrou sua
atuação no campo, onde estava a maior parte da massa trabalhadora do país. Em seu
primeiro ato, determinou o cumprimento da lei da Reforma Agrária promulgada em
1917. Nacionalizando terras pertencentes a empresas estrangeiras e expropriando
fazendas improdutivas, o governo distribuiu, em seis anos, um total de 18 milhões de
hectares a 770 mil camponeses. Embora muitos dos novos proprietários, sem a devida
orientação e apoio para manter a terra e incentivar a produção, a tenha perdido para
outros latifúndios, a reforma foi uma das maiores já feitas na América Latina e
cumpriu seu objetivo político: atrair o apoio camponês para o governo e canalizá-lo em
sindicatos controlados e geridos pelo Estado e, em seguida, pelo partido dominante. 

Assim, Cárdenas lançou as bases para o aparecimento do PRI, em 1946, como uma
agremiação política que detinha o controle e apoio dos sindicatos rurais (e mais tarde
dos urbanos), vencendo com facilidade as eleições. Conforme dizem alguns autores, o
PRI tornou-se um "partido corporatizado".

Mas Cárdenas não parou por aí. Disposto a transformar os trabalhadores em uma massa
ativa, que colaborasse com o Estado em seu processo de modernização, o presidente
modernizou as leis operárias e determinou seu cumprimento, apesar das críticas da
burguesia industrial. Além disso, definindo os operários como parte fundamental da
sociedade mexicana, decretou constitucional o direito às greves. Para completar seu
processo de modernização do México, Cárdenas, em 1938, dois anos antes do final de
seu mandato, nacionalizou os poços de petróleo, então pertencentes a empresas norte-
americanas, sob pagamento de indenizações. Em seguida, fundou a Pemex, empresa
estatal destinada à exploração e comercialização do óleo. Este foi o principal
investimento estatal na indústria do país. Nos outros setores, como bens de consumo e
maquinaria leve, o capital estrangeiro dominou.

O governo de Cárdenas procurou inserir o México numa nova ordem social e


econômica, ao mesmo tempo que buscou a normalização dos anseios da população
(especialmente a rural) para promover o desenvolvimento e a consolidação do poder nas
mãos da burguesia. Tanto é verdade que, apesar das críticas sofridas por conceder
muitos direitos aos trabalhadores, foi durante seu governo que a indústria mexicana
conheceu seu primeiro grande impulso rumo ao crescimento. Embora, como um bom
líder populista, criticasse o capital estrangeiro e a exploração que ele acarretava,
Cárdenas incentivou sua participação em setores importantes da economia. Além disso,
como Perón, atrelou os trabalhadores ao Estado, centralizando o poder e as classes
sociais nesta instituição maior. Mas sua grande realização foi no campo. Concedendo
terras aos camponeses, numa ampla reforma agrária, Cárdenas atendeu os anseios de
propriedade que ecoavam desde a Revolução Mexicana, em 1910-20, ao mesmo tempo
que não mexeu nos latifúndios que formavam a base da agricultura do país. Em
levantamento feito no final de seu governo, em 1940, 300 propriedades controlavam 30
milhões de hectares de terras, o que mostra que a reforma não foi completa, e parte do
campesinato mexicano seguiu em seu estado de pobreza. Mesmo sem alterar as
estruturas básicas da sociedade, concentrando o poder no PRI e definindo a dominação
burguesa, Cárdenas passou à história como o primeiro líder do país a pensar e estimular
a participação dos trabalhadores na economia nacional. 
 

Os Ditadores 
  
 

Alfredo Stroessner (1912-)

Um dos militares mais destacados do Paraguai nos anos 40 e início dos 50, quando se
tornou chefe supremo das Forças Armadas, Alfredo Stroessner sempre teve veneração
pelo poder e pela exaltação de sua pessoa. Para obtê-lo, não mediu esforços e, em
1954, comandou um golpe militar que, apoiado pelo latifundiários, classe dominante
do país, veio a colocá-lo no governo e instalar a primeira ditadura militar de uma série
que dominaria o continente nos anos 60 e 70. Além de reforçar o caráter agrícola da
economia paraguaia, favorecendo a classe que o levou ao poder, Stroessner
transformou o país no paraíso mundial do contrabando, centralizado em Ciudad del
Este, na fronteira com o Brasil. 

Aliás, o ditador paraguaio sempre teve nos governos militares brasileiros uma fonte de
apoio a seu governo: a maior prova dessas boas reações é a construção conjunta da
usina de Itaipu, inaugurada em 1974 e que abastece os dois países. No plano interno, o
ditador, sempre com o reforço do Exército e do Partido Colorado, que controla até hoje
a cena política paraguaia, procurou calar as oposições esquerdistas, seja por meio do
exílio, das prisões e da morte. Os sindicatos se tornaram ilegais e as manifestações de
rua, proibidas sob ameaça de prisão.

No entanto, o regime de Stroessner começou a se enfraquecer no final dos anos 70,


junto com todas as ditaduras latino-americanas, quando os EUA, que até então eram o
principal sustentáculo desses governos, passaram a criticar suas políticas repressivas e
os abusos contra os direitos humanos. Aos poucos, as oposições se reacenderam no
Paraguai, associadas a protestos populares contra a pobreza, o desemprego e por
eleições livres. O governo teve de ceder, e em 1984 a anistia foi concedida aos exilados
políticos. Diante da instabilidade da situação, a ala mais moderada dos militares retirou
seu apoio a Stroessner, e houve um racha no Partido Colorado nas facções "moderada",
que defendia a continuidade do ditador no comando, e "tradicionalista", defensora de
uma pequena abertura para garantir o poder pela via eleitoral. Personalista, Stroessner
não aceitou deixar o governo, e para mostrar que ainda tinha força colocou na reserva o
general Andrés Rodríguez, o segundo homem forte no país. Esse ato, ocorrido em
janeiro de 1989, pôs um ponto final à ditadura. A facção tradicionalista, aliada de
Rodríguez, obteve o apoio das tropas de cavalaria do Exército e invadiu o Palácio
Presidencial no mês seguinte, obrigando Stroessner a renunciar e se exilar no grande
aliado de sempre: o Brasil. Hoje, morando em Brasília, Stroessner vive, apesar dos
problemas de saúde, tranqüilamente e na impunidade. Há oito anos foi condenado à
prisão pela justiça paraguaia por participação em assassinatos, mas, como é tradicional
na América Latina, nada ocorreu a ele. 
  
 

Jorge Rafael Videla (1925-)

Militar de formação tradicional e anti-comunista, Videla foi um destacado aluno do


Escola Nacional das Forças Armadas. Sua lealdade aos comandantes e coragem na
repressão às manifestações de estudantes durante a ditadura militar nos anos 60 lhe
renderam a nomeação para as chefias do Exército argentino, em 1973, e das Forças
Armadas, em 1975. Um ano depois, diante da grave crise econômica do país e da
instabilidade política ainda provocada pela morte de Perón, Videla liderou um golpe
militar que derrubou a presidente Isabelita Perón. No poder, o general tratou de
eliminar a todo custo o terrorismo e as oposições a seu regime, por meio do exílio e
principalmente dos desaparecimentos e mortes. 

Seu governo, de 1976 a 1981, é visto pela Organização de Defesa dos Direitos Humanos
como o que mais incentivou a perseguição contra pessoas, fossem contra o regime ou
não.  Um relatório de 1980 da Comissão Inter-Americana dos Direitos Humanos afirma
que, nos quatro primeiros anos do mandato de Videla, mais de 6.000 argentinos haviam
desaparecido somente no país. Mais tarde descobriu-se que o general mantinha uma
rede de conexões de espionagem com a Junta Militar boliviana, pela qual ambos os
governos denunciavam as atividades de líderes oposicionistas que atuavam nos dois
países. Foram essas perseguições e assassinatos em massa que criaram o movimento das
mães da Plaza de Mayo, que se reúnem todas as quintas-feiras para protestar, até hoje,
pelo sumiço de seus filhos.
Mas Videla não mostrou eficiência apenas no combate a supostos oposicionistas e nas
táticas para semear o medo na população. No campo econômico, ele intensificou a crise
já existente, desorganizando a produção industrial com a falta de investimentos estatais
e a perda de capitais internacionais, que não obtinham garantia de retorno em um clima
político tão instável. Para combater a inflação, arrochou os salários, gerando
insatisfação nos trabalhadores urbanos, cujas manifestações foram reprimidas pelo
Exército. A total ausência de liberdade de expressão e segurança foram sendo
divulgados ao redor do mundo e atraindo o protesto de vários países, ao mesmo tempo
em que a crise interna tonava incontrolável a revolta popular. A saída dos militares foi
sacar Videla do poder e colocar um presidente tampão, Leopoldo Galtieri, que, além de
invadir as ilhas Malvinas em 1982, convocou eleições livres um ano depois.

Videla, a princípio, pagou por seus crimes. O presidente eleito, Raul Alfonsín, o levou a
julgamento, no qual foi condenado à prisão. No entanto, militares descontentes com a
medida pressionaram o governo, exigindo a anistia para o general. Foi-lhe concedida a
prisão domiciliar, em 1985. Os protestos militares continuaram, e a ameaça de um novo
golpe caso Videla não fosse libertado também. Quatro anos mais tarde, o novo
presidente Carlos Menen, concedeu anistia total ao ex-ditador, evitando problemas com
a cúpula militar para realizar um governo tranqüilo. No entanto, a morte não larga a
vida de Videla. Em 1998, um juiz federal ordenou novamente sua prisão por
participação no seqüestro e desaparecimento de crianças durante seu governo.

Mortes, medo e desaparecimentos como eixo de governo. Se relembrasse seu passado,


Videla poderia mostrar ao mundo que ele já previra a utilização desse tripé caso fosse o
governante da Argentina. Afinal, em 1975, na XI Conferência dos Exércitos
Americanos, em Montevidéu, ele disse profeticamente: "Se for preciso, na Argentina
deverão morrer todas as pessoas necessárias para logra a segurança do país". 
 

Uma conclusão

Como se vê, a história da América Latina é diversa. Mas segue uma linha clara: a da
opressão iniciada quando Colombo e suas naus pisaram nas terras do Caribe – opressão
que dizimou as populações indígenas e instituiu o caráter econômico e exportador das
sociedades latino-americanas, o qual elas ainda não perderam. Até hoje, as
desigualdades sociais que se multiplicam nesses países, aliadas a movimentos de
guerrilha civil, crises econômicas cíclicas e dependência dos mercados internacionais,
caracterizam a formação social destas terras e é o grande desafio a ser enfrentado no
século XXI: a proposta de romper com o desenvolvimento regulado ou a submissão
extrema para se construir um crescimento autônomo e integrado entre todas as nações
continentais – o mesmo sonho de Simón Bolívar, quando, há quase dois séculos atrás,
iniciou os movimentos de libertação que resultaram nos atuais países que compõem a
América Latina.
A utopia revolucionária não morreu nas revoluções citadas ao longo deste texto: ela
prossegue na luta dos zapatistas no México, apesar da violenta opressão do governo
mexicano, e no retorno dos sandinistas ao poder na Nicarágua, conquistando as
principais prefeituras do país nas recentes eleições. A história mostra que não há
caminhos inalteráveis. Pelo contrário, a resistência contra as dificuldades e o desejo
dos homens em mudar sua trajetória faz com que, pouco a pouco, o quadro social
mude. O inferno econômico argentino, o aumento da pobreza no Brasil e a complicada
conjuntura política peruana, entre outros fatos, apenas comprovam que o continente
tem que refletir sobre o que está errado nesta trajetória. 
Discutir alguns desses tópicos foi o propósito deste texto: afinal, como dizia o
historiador francês Lucién Goldmann, é olhando o passado que podemos melhorar o
presente e o futuro.  No caso, o opressor passado latino-americano, marcado pelo
imperialismo europeu e norte-americano e pela desigualdade social, pode servir como
base para uma transformação generalizada no continente. A revolução virá da revolta
das classes historicamente oprimidas. A América não se libertará de sua agonia por
meio de heróis personalistas e demagógicos, mas sim com a mobilização das maiorias,
incentivada pela discussão da realidade continental, poderá provocar tais mudanças há
muito tentadas. O objetivo desta revista é fomentar tal discussão e refletir sobre esta
terra que, como disse Eduardo Galeano, não nasceu amaldiçoada, e sim convertida à
maldição. cabe a nós, latino-americanos, inverter o quadro.

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