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Introdução
Nesta virada de século e de milênio, faz-se interessante discutir muitos pontos que
marcaram a história da Humanidade como uma forma de refletir sobre caminhos a
serem adotados no futuro. No caso da América Latina, essa discussão é ainda mais
importante. Afinal, o continente passa por uma série de mudanças complexas que, no
entanto, ainda convivem com marcas de um passado opressor que faz questão de
manter-se vivo. Por exemplo: ao mesmo tempo em que Brasil, Argentina, Paraguai e
Uruguai, num ato histórico, fecham uma coalizão em torno de seu bloco comercial, o
Mercosul, contra a extrema ingerência da futura Alca (Aliança de Comércio da
América), bancada pelos EUA, em suas economias, ainda dependem de mercados como
o norte-americano para escoar sua produção, intermediada pelas multinacionais e a
baixos preços, gerando lucro para a matriz e pobreza no mercado interno. Além disso,
ao mesmo tempo em que esses países anunciam investimentos na integração econômica
dentro do continente, em seus próprios territórios vêem aumentar a miséria da maior
parte de sua população, a desintegração entre as regiões produtivas e uma série de
protestos contra a desigualdade social. Quando as diferenças não são entre países,
tornam-se evidentes no território interno: na Argentina, por exemplo, separada entre
Buenos Aires e região, vista por muitos como o país, e a região interior, miserável e
desgraçada. Nesse quadro de diferenças sociais, há de se somar também as crises
políticas, onde a ditadura populista venezuelana e o instável governo peruano dão
mostras de que a democracia na região ainda está longe de se tornar realidade.
Este texto, conforme já dito, não se pretende completo. Pelo contrário: há pontos que
mereceriam maior aprofundamento – o que não se faz pelo pouco espaço disponível e
pela proposta de apenas propor tópicos para iniciar a discussão. Espera-se, portanto, que
os leitores de Klepsidra participem, enviando suas mensagens e comentários a respeito
do texto para que a história da América Latina saia da obscuridade e seja de
conhecimento público. Inicia-se aqui, pois, essa viagem histórica.
Não são poucos os estudos existentes sobre a história da América Latina. No entanto,
em sua maioria são especializados em determinados temas: política, cultura, economia,
relatos de vida de povos etc, bem como escritos com a única preocupação de se "contar
a história", sem analisá-la em seus detalhes e relacionando-a com outros fatos e
conjunturas. Poucos são os historiadores que se propuseram a escrever sobre a trajetória
de nosso continente sem o medo de propor análises para os problemas enfrentados pelo
território: pobreza crônica da população, economia agrária, subdesenvolvimento,
instabilidade social etc. Coube então a um jornalista uruguaio, sem as "roupagens
acadêmicas", como se autodefine, escrever uma história de seu continente baseada na
seleção e interpretação de fatos que considera como essenciais para o entendimento da
realidade latino-americana.
Após narrar a glória desses centros produtivos de riqueza colonial (que, como faz
questão de ressaltar, não ficava na Espanha e Portugal: destinava-se a pagar as dívidas
que estes países tinham com a potência que lhes roubaria o domínio econômico da
América: a Inglaterra), Galeano traz a exploração para o presente e fala da decadência
dessas regiões. São claros exemplos da tese de que a região rica do passado é marcada
pela pobreza no presente as minas de Potosí, na Bolívia (região dava todo o ouro e prata
que os espanhóis necessitavam e onde se formou uma elite local que enriquecia à base
da escravidão indígena. No século XVII, quando os metais escassearam, o sonho de
riqueza acabou e a pobreza se enraizou. Hoje, Potosí é o distrito mais pobre da Bolívia,
habitado somente por descendentes de índios, e de seu passado glorioso guarda apenas a
lembrança); o Nordeste brasileiro, que viveu seu auge com a produção de açúcar nos
século XVI e XVII, mas não escapou da decadência quando seu produto passou a sofrer
concorrência das Antilhas Holandesas, no século XVIII; e a região de Ouro Preto,
quando a efêmera exploração aurífera acabou na entrada do século XIX. Os três casos
refletem a formação colonial da América Latina: o continente nasceu para fornecer as
riquezas que a Europa necessitava. Na medida em que as terras já não atendiam a essa
demanda, foram abandonadas, ficando como marca do passado as gerações seguintes da
população historicamente explorada, pobre e sem perspectivas. Citando a teoria
marxista da divisão do trabalho entre operário e patrão, Galeano afirma que "enquanto a
Europa era o cavaleiro que levava as glórias, a América era o cavalo que fazia todo o
serviço".
No século XX, com a decadência inglesa, surge no cenário os EUA como nova potência
gestora da América Latina. Não é à toa que, já em 1823, os norte-americanos
promulgaram a famosa Doutrina Monroe: "A América para os americanos". O que
significava dizer: os EUA estenderiam seus interesses sobre seu continente irmão e
continuariam a exploração iniciada quatro séculos antes, por meio do controle
econômico e político. O início da longa e duradoura intervenção norte-americana no
continente data de 1898, quando os EUA derrotaram a Espanha na batalha de
independência de Cuba, e se apossaram dos direitos políticos e econômicos sobre a ilha
– os quais mantiveram até 1959, quando Fidel Castro e seus guerrilheiros derrubaram o
governo de Fulgencio Batista e tomaram o poder. No entanto, mesmo longe de Cuba, é
sabido que os interesses norte-americanos criaram ramificações em outros países do
continente, com destaque para a já citada América Central e o México.
Mas não é apenas isso. O Mercosul é enfraquecido em função das diferenças sociais e
econômicas entre seus membros que, reforçadas ao longo dos séculos, fazem com que o
bloco tenha atritos internos. É inegável que o Brasil é o grande motor econômico do
acordo, ao possuir economia e produção diversificados e que gozam de certa
estabilidade financeira. Quem lhe poderia fazer concorrência, a Argentina, vive uma
crise econômica de grave intensidade que estagnou seu sistema produtivo; o Uruguai
oscila seu apoio aos dois países, pois necessita muito dos produtos que eles produzem,
já que sua economia é basicamente pecuária; na mesma situação se encontra o Paraguai,
país mais pobre e dependente do bloco. Nenhuma decisão pode ser tomada sem a
participação das quatro nações, e os desníveis de desenvolvimento de cada uma delas,
bem como tradicionais rixas políticas, atrapalham a tomada de políticas conjuntas.
Tome-se como exemplo o recente acordo automotivo entre Brasil e Argentina para a
construção conjunta de carros. Os argentinos vetaram as primeiras versões do acordo,
acusando o Brasil de querer manipular o Mercosul para favorecer a sua produção de
peças para carros em detrimento dos outros membros. O que estava implícito na
reclamação argentina era a crise da economia local e o inflacionamento da produção: as
peças locais saiam mais caras que as brasileiras, o que encareceria o produto final. No
final, um acordo definitivo foi assinado, dividindo a produção das peças e os custos de
montagem dos carros. Para compensar a crise argentina, quem perdeu foi o Brasil, que
arcará com os preços mais caros do parceiro e, consequentemente, encarecerá a
mercadoria. Esta, na concorrência com outros mercados, sairá em desvantagem.
Os processos revolucionários
O levante ocorreu no dia 9 de abril de 1952. Incitados pelo MNR (Movimento Nacional
Revolucionário), partido de centro-esquerda formado por pequenos burgueses que fora
alijado do poder um ano antes por um golpe militar, os mineiros do país iniciaram uma
greve por melhores condições de vida e salários. Ao mesmo tempo, explodia a revolta
nas grandes fazendas, com os índios e camponeses tomando as terras, e na capital La
Paz, onde a população mais pobre se organizou, com a ajuda do MNR, em milícias
armadas que invadiram quartéis e, numa incrível guerrilha urbana, venceram o Exército
mandado às ruas para combatê-las. O povo boliviano, oprimido ao longo de séculos,
tomara o poder em todo o país, e o MNR parecia ser seu representante legítimo para
ocupá-lo. Aqui, entretanto, começam as falhas do processo revolucionário do país. O
partido, mais preocupado em retomar o governo perdido um ano antes e formado por
elementos de classe média, não soube atender às reivindicações básicas da população.
Pelo contrário: aos poucos minou as conquistas dos trabalhadores e abriu espaço para a
intensificação da penetração do capitalismo norte-americano na economia do país.
Dois marcos da Revolução Boliviana, e que a fazem carregar esse título, são as provas
mais evidentes de como o MNR apenas se apoiou na revolta popular para tomar o
poder, e não para promover mudanças estruturais na sociedade. O primeiro deles foi a
lei de Reforma Agrária, promulgada em agosto de 1953 e destinada a organizar a
desordem instalada com a tomada de fazendas pelos camponeses, um ano antes, durante
o processo revolucionário. A Lei evitou criar polêmicas com os latifundiários,
determinando que os camponeses deveriam devolver parte das terras ocupadas aos
proprietários ainda vivos. Ficava com uma pequena faixa de terreno, geralmente
improdutiva, antieconômica e pela qual ainda tinha de pagar indenização pela posse.
Assim, o campesinato, que em 1952 ocupara a maior parte das terras do país, fizera uma
divisão razoavelmente igualitária e eliminara estruturas feudais de exploração de mão-
de-obra, como o servilismo, sofria um processo de regressão. Sem incentivo fiscal e
grande espaço nos mercados consumidores, o pequeno proprietário, em sua maioria,
vinha a perder sua terra para o latifundiário, voltando a ser seu empregado e morando
em suas dependências por caridade e em troca de trabalho pesado na lavoura. O sistema
de exploração campestre voltara a ser o mesmo: grande propriedade, monocultura,
trabalho servil. A diferença é que fora introduzido no campo formas capitalistas de
exploração comercial: a produção em larga escala para venda em menor tempo e mais
barata. Mas a grande conquista camponesa – as terras -, foram perdidas em sua maior
parte graças à lei de Reforma Agrária, feita às pressas pelo governo do MNR e que
revelava a incapacidade do partido de se desvencilhar dos grupos economicamente mais
fortes do país para promover uma mudança radical na sociedade.
Revolução Cubana – O processo liderado por Fidel Castro é descrito até hoje como a
mais radical mudança política no cenário latino-americano. Afinal, Cuba tornou-se, a
partir de 1959, o primeiro país socialista do mundo ocidental e o único em que tal
regime sobreviveu, quebrando a hegemonia norte-americana no continente e o "anti-
comunismo" que esse domínio pregava e combatia – o golpe militar de 1954 contra o
presidente Jacobo Arbenz, de tendências socialistas, na Guatemala, expressa bem isso.
Hoje, mesmo com a queda do mundo soviético, o país insiste em se denominar
socialista e resiste a uma total abertura econômica, guiada pelos organismos
internacionais como FMI e Bird.
A Cuba moderna, segundo o sociólogo Emir Sader, incomoda os outros países por ser
fruto de uma revolução que, negando os EUA, deu certo e mudou a estrutura social,
apesar dos problemas econômicos e políticos que enfrenta na atualidade.
Sader considera que uma revolução implica numa total transformação do sistema sócio-
produtivo da nação, instalando um novo sistema e dando à sociedade novas condições
de sobrevivência. Para ele, a guerrilha de Fidel Castro, ao tomar o poder, tinha em
mente a necessidade de modificar a estrutura cubana para conseguir o apoio da
população e autonomia internacional. É fundamental entender como era tal estrutura
antes de Fidel assumir o comando político de Cuba. Incentivada pela colonização
espanhola, a ilha se tornou grande produtora de açúcar, cuja venda na Europa enriquecia
os senhores locais e atiçava seus desejos de independência para se libertar dos impostos
coloniais. O processo de libertação do domínio espanhol se consumou em 1898, mas o
novo país, localizado a poucos quilômetros dos Estados Unidos, não escapou da
ingerência econômica e política desta nação. Desde o início do século, os norte-
americanos se instalaram em Cuba, controlando o comércio de açúcar e todos os demais
setores da economia agrária. Os latifúndios dominavam a maior parte do território,
reinando a exploração dos camponeses e a opressão política nos centros urbanos. Os
EUA faziam e desfaziam presidentes à sua vontade, até que o sargento Fulgencio
Batista, a partir dos anos 40, dominou a cena política cubana e acalmou, à base da
repressão, as diversas manifestações que eclodiam no país contra a recessiva política
econômica e os privilégios norte-americanos. Um dos levantes que conteve foi em 1953,
no assalto ao quartel Moncada liderado por um jovem advogado chamado Fidel Castro.
Extraditado de Cuba com outros colaboradores, Fidel foi viver no México para, três
anos depois, retornar e promover, a partir das sierras e com o apoio camponês, a
guerrilha contra a ditadura de Batista. Mesmo com parcos recursos e poucas armas, o
exército guerrilheiro cresceu e derrotou a maior parte das forças de Batista, assumindo
gradualmente o controle dos principais distritos do país. Quando chegou à capital,
Havana, em 1º de janeiro de 1959, Batista já fugira para a República Dominicana, e
Fidel foi proclamado presidente e primeiro-ministro.
É claro que, no sentido mais liberal, o governo de Fidel não é democrático, ao negar o
direito às eleições e perpetuar-se no poder. No entanto, sob seu comando Cuba
conseguiu a tão procurada "revolução": de um país agrário-exportador e constituído de
uma população predominantemente rural e explorada, tornou-se uma nação com
economia diversificada e que oferece a seus habitantes condições de vida mais dignas
do que muitos países latino-americanos. O exemplo cubano soou no continente durante
os anos 70 como um modelo de libertação do imperialismo norte-americano, e até hoje
atrai muitos movimentos sociais e guerrilheiros à sua causa. Por mais contestado que
seja, o exemplo de Cuba mostra que a transformação radical da sociedade é possível se
houver interesse e mobilização popular.
Revolução Peruana – O caso peruano foi atípico em todos os sentidos, e gera
diferentes interpretações até hoje na historiografia do país. Em outubro de 1968, uma
junta militar liderada pelo general Juan Velasco Alvarado derrubou o presidente
Belaúnde Terry e instalou-se no poder. Seu lema, expresso no "Estatuto do Governo
Revolucionário", se resumia a três pontos: tornar a estrutura do Estado mais dinâmica
para modernizar o país; dar níveis de vida superiores à população desassistida; e
desenvolver no povo e na economia uma mentalidade nacionalista e independente
perante as potências estrangeiras. Quem lê tais tópicos pode estranhar como um grupo
de militares, tradicionalmente conservadores, limitados à força bélica e de pouca
instrução, poderia se preocupar com assuntos tão complexos. A explicação é simples.
Desde os anos 40, influenciados pela força demonstrada pelo exército norte-americano
na Segunda Guerra, os militares peruanos começaram a interferir na política nacional,
chegando ao poder em 1945 com um golpe liderado pelo general Manuel Odría. Este
promoveu um gradual processo de abertura até 1952, quando foram realizadas eleições
livres. No entanto, os militares continuaram a representar uma "eminência parda" na
presidência, interferindo nas decisões presidenciais e no andamento do processo
político.
Mas o governo do Peru entrou para a história da América Latina por ser a primeira
ditadura militar no continente a promover uma considerável reforma agrária. No final de
1968, Velasco Alvarado decretou a divisão das terras dos latifúndios improdutivos em
cooperativas administradas pelos camponeses. Ficou famosa, na expropriação da
primeira fazenda, a frase pronunciada por Alvarado: "Camponês, o patrão não comerá
mais de tua pobreza". Tal expressão fora dita, duzentos anos antes, por Tupac Amaru,
índio que se rebelara contra a exploração espanhola e acabou morto ao ser derrotado. A
iniciativa foi boa, mas, seguindo o exemplo das nacionalizações das empresas, mais
demagógica do que efetiva. Apesar de grande quantidade de terras ser dividida, numa
reforma agrária radical, o governo não forneceu meios técnicos ou qualquer tipo de
ajuda para que os camponeses, que há pouco tempo eram servos de poderosos senhores
de terras, se tornassem administradores. A produtividade das cooperativas não rendeu o
esperado, e com o enfraquecimento do regime, nos anos 70, muitos ex-proprietários
entraram na justiça para reaver as terras, alegando desapropriação indevida. Aos poucos
a estrutura latifundiária normalizou, ou seja, os camponeses, ameaçados pela falência
das cooperativas e pressionados pela justiça, voltaram a ser servos nas grandes
propriedades. Alguns, no entanto, conseguiram manter um pedaço de terra, promovendo
um regime de pequena propriedade.
O regime peruano entrou na história como uma "revolução" por ser o primeiro governo
militar que, livrando-se da aura conservadora, tomou consciência dos problemas
sociais de seu país e promoveu algumas reformas estruturais de peso na sociedade.
Mesmo não modificando a estrutura básica, a ditadura peruana mostrou que os
militares também poderiam ser entendidos na realidade social e ter idéias para
modificá-la. O regime de Velasco Alvarado reforçou o papel militar na política
peruana, e o grande medo de Alberto Fujimori, quando ainda era o presidente, de ser
derrubado do poder pelo Exército reflete a politização das Forças Armadas peruanas:
se a corrupção e desmoralização do poder público houvesse se tornado mais crônicas,
os militares poderiam intervir como uma forma de "limpar" a política nacional e
promover as melhorias buscadas pelo povo. Ou seja, seguir a lição iniciada por Juan
Velasco Alvarado. Mas a renúncia e fuga de Fujimori, seguidas pela aparente
normalização democrática, tranquilizaram as Forças Armadas, pelo menos até o
momento.
Mesmo que os tempos de tormenta dos regimes militares sejam um passado distante, os
países da América do Sul não podem dizer que são paraísos democráticos. Por mais que
exista um processo eleitoral regular e o voto seja um direito universal, as atitudes de
certos governantes, bem como sua trajetória política, colocam em xeque a fachada
democrática destas terras e fazem pensar se não seriam "ditaduras encobertas".
O terceiro caso também envolve um militar: Hugo Chávez, na Venezuela, governa com
poderes absolutos. Depois de se eleger presidente com mais de 80% dos votos, Chávez
formou maioria no Congresso e pôde aprovar projetos que centralizam todo o poder em
suas mãos. Recentemente conseguiu a aprovação de uma lei permitindo que ele governe
por decreto, sem submeter seus planos ao parlamento. Por mais que seu poder emane do
povo que o elegeu, Chávez o centralizou de tal forma que constituiu uma pequena
ditadura absolutista, sem espaços para contestação.
Os grandes líderes
Também é possível narrar e entender a história do continente por meio de alguns dos
líderes que marcaram sua história ao longo deste século. Eles entraram, pela frente ou
pelos fundos, para a história do continente. Inscreveram seus nomes na trajetória de seus
países até hoje e influenciaram diretamente a vida das populações com as quais
conviveram. Seria impossível, dessa forma, não falar de alguns dos mais importantes
líderes que a América Latina conheceu. Os homens aqui citados são apenas exemplos,
pois muitos outros poderiam figurar ao lado deles ou substitui-los nestas apresentações.
Privilegiou-se o critério técnico: a importância do escolhido em seu país e, por sua vez,
a proposta em abordar aspectos específicos de algumas dessas mais importantes nações.
Pois tratar de seus personagens é uma maneira de se fazer isso e constituir uma idéia
mais completa sobre o continente como um todo. Foram definidas três categorias, com
dois exemplos em cada.
Os Libertadores
Apesar de fazer parte do século XIX, é impossível falar de América Latina sem se falar
de Simón Bolívar. Conhecido como El Gran Libertador, Bolívar foi o primeiro líder a
defender e buscar uma unidade latino-americana. Filho de comerciantes que residiam na
atual Venezuela, Bolívar teve uma vida cercada de luxos e conforto. Ainda jovem, foi
enviado à Europa para estudar, tomou contato com os ideais libertários da Revolução
Francesa e, em 1807, voltou à Venezuela, disposto a organizar batalhões militares para
promover a independência da colônia. Após combates de dois anos, favorecidos pela
fraqueza do exército espanhol, cuja maioria fora enviada para lutar contra a invasão
napoleônica na Espanha, Bolívar libertou a Venezuela em 1809. Seu sonho, agora, era
expandir a liberdade para todo o continente. Para tanto, formou novos exércitos e aliou-
se a militares que já promoviam movimentos de libertação em outras comarcas, como o
uruguaio José Artigas e o argentino José de San Martín. Recrutando populares como
soldados e dividindo as áreas de atuação, os três generais gradualmente proclamaram a
independência dos territórios, até a expulsão definitiva dos espanhóis.
Bolívar morreu em 1830, acometido pela tuberculose. Reconhecera que cada elite
latino-americana se identificou com sua luta apenas para se libertar da tutela política
espanhola, mas não para formar um novo país. Desiludido, profetizou o que a história
do continente, marcada por ditadores, mortes e submissão econômica, comprovou: "A
América cairá infalivelmente nas mãos de um bando desenfreado de tiranos mesquinhos
de todas as raças e cores, que não merecem consideração".
Ex-cortador de cana e mecânico, foi trabalhando nas minas de ouro e prata que
Sandino conheceu a realidade da população mais pobre da Nicarágua, bem como
percebeu que a economia e a política de seus país eram dominadas pelos EUA, por
meio de empresas e governos tampões. A dura vida nas minas e a repressão do exército
contra as revoltas dos mineiros foram gerando a consciência revolucionária e opositora
aos norte-americanos no jovem Sandino, até que, em 1926, ele iniciou um movimento
guerrilheiro na região mineradora, ao norte do país. Depois de uma série de derrotas,
os guerrilheiros conseguiram se recuperar e vencer as forças militares enviadas pelo
governo, avançando em direção ao centro. Ao mesmo tempo, os camponeses dos
latifúndios de café da região sul, e os trabalhadores da capital, Manágua, se levantaram
em apoio a Sandino. Os lemas revolucionários eram expulsar os norte-americanos da
Nicarágua e melhorar as condições de vida da população.
Este, apoiado pelos norte-americanos e com ganas de chegar ao poder, iniciou novo
levante contra as tropas de Sandino e seus aliados. Foi numa dessas pequenas batalhas
que Somoza seqüestrou o líder guerrilheiro, em 1934, e o assassinou. Em seguida,
intensificou a repressão contra as populações que apoiavam Sandino e, dois anos depois,
assumiu o poder por meio de um golpe de estado.
No entanto, Somoza e sua família, que ficaram no poder durante 43 anos, não foram
capazes de matar a herança revolucionária sandinista. Nos anos 60, surgiu a Frente
Sandinista de Libertação Nacional (FSNL) que, canalizando a revolta popular e das
classes médias contra a opressora ditadura, derrubou o regime em 1979 e assumiu o
governo com o intuito de promover as reformas estruturais defendidas por Sandino em
sua luta. Sua tentativa, em onze anos de mandato, foi infeliz, pois antes de desenvolver
a economia e transformar a sociedade, os líderes sandinistas tiveram de lutar pela
manutenção de seu regime contra as tropas financiadas pelos EUA, denominadas
"contra-revolucionários". Desgastado pela guerrilha, em 1990 o candidato sandinista,
Daniel Noriega, perdeu as eleições presidenciais para Violeta Chamorro, apoiada pelos
vizinhos norte-americanos.
Os Populistas
OBS: Esta categoria é provavelmente a mais polêmica, pois muitos outros políticos,
como Getúlio Vargas, no Brasil, e Paz Estenssoro, na Bolívia, poderia entrar nela. Mas
privilegiou-se o critério de mostrar preferencialmente a história dos países que nos
cercam no continente, para desenvolver uma visão mais global. Num próximo ensaio, o
tema do Populismo será abordado de maneira mais abrangente, envolvendo todas as
suas variantes. No momento, fiquemos com duas de suas mais importantes variantes.
Com esses atos, Perón canalizava o apoio dos operários para sua pessoa e criava uma
enorme base popular em torno de sua personalidade cativante. Não demorou muito, e
suas medidas o desgastaram perante os industriais e a classe média, que não aceitavam o
espaço e direitos dados à classe trabalhadora. Em 8 de outubro de 1945, Perón foi
demitido de seus cargos pelos militares e preso. No entanto, nove dias depois, uma
multidão dirigiu-se à frente da Casa Rosada, sede do governo, e pediu sua libertação,
num movimento de massas jamais visto no país. Solto, Perón apareceu na sacada e
discursou para o povo eufórico. Encerrava-se nesse ato simbólico o regime militar, ao
mesmo tempo que o general lançava sua candidatura à presidência.
Eleito em 1946 pelo Partido Laboralista (mais tarde convertido para Peronista, e depois
Justicialista, que existe até hoje), Perón levou adiante seus planos de industrialização da
economia e concessões aos trabalhadores. Nacionalizou empresas estrangeiras, com
altos custos para os cofres do governo, e exerceu forte censura contra a imprensa. Com
altos índices de popularidade, Perón e sua esposa, Evita, representavam uma Argentina
moderna e independente, que crescia e não enfrentava crises. No entanto, estas
começaram a surgir após a reeleição de Perón, em 1952. As nacionalizações de
empresas, manutenção dos sindicatos e concessões aos trabalhadores consumiram as
reservas financeiras nacionais, gerando redução na produtividade e aumento da inflação.
Além disso, o presidente passou a enfrentar a oposição de setores que iam contra sua
política, como os industriais, militares conservadores e a Igreja. A economia da
Argentina estagnou, e pequenos levantes contra Perón tornaram-se comuns em Buenos
Aires. Pressionado pela Marinha e Aeronáutica, ele renunciou em 1955 e exilou-se no
Paraguai e Espanha. No entanto, permaneceu como referência política para os anos
seguintes, quando o país enfrentou um recrudescimento político, em função de regimes
militares opressores.
Com a crise dos governos militares no início dos anos 70 em função de vários fatores,
como grave crise econômica, instabilidade social e revolta popular, as diversas forças
políticas argentinas uniram-se em torno do nome de Perón para volta ao poder e
tranqüilizar a situação, inclusive aquelas que se opuseram a ele nos anos 50. Esse fato
demonstra o poder do Peronismo de congregar tendências políticas diferentes em torno
de seu discurso trabalhista, defendendo justiça para os operários e independência
perante o capital estrangeiro. O velho general voltou em 1973, e logo em seguida foi
eleito presidente. No entanto, com a saúde debilitada, Perón morreu um ano depois, sem
melhorar a situação de seu país, que veria, a partir de 1976 até 1983, o período mais
negro de sua história, com a instalação de uma nova ditadura militar no poder que não
teve pudores em matar e desaparecer com todos aqueles que lhe faziam oposição.
Até hoje o Peronismo, sob a forma do Partido Justicialista, está vivo. Sua ideologia é a
defesa dos direitos do trabalhadores e a industrialização da economia. No entanto, após
ficar quase dez anos no poder com Carlos Menem, foi derrotado nas últimas eleições
para a presidência da República para Fernando de La Rúa, candidato da União Cívica
Radical.
Lázaro Cárdenas (1895-1970)
Assim, Cárdenas lançou as bases para o aparecimento do PRI, em 1946, como uma
agremiação política que detinha o controle e apoio dos sindicatos rurais (e mais tarde
dos urbanos), vencendo com facilidade as eleições. Conforme dizem alguns autores, o
PRI tornou-se um "partido corporatizado".
Mas Cárdenas não parou por aí. Disposto a transformar os trabalhadores em uma massa
ativa, que colaborasse com o Estado em seu processo de modernização, o presidente
modernizou as leis operárias e determinou seu cumprimento, apesar das críticas da
burguesia industrial. Além disso, definindo os operários como parte fundamental da
sociedade mexicana, decretou constitucional o direito às greves. Para completar seu
processo de modernização do México, Cárdenas, em 1938, dois anos antes do final de
seu mandato, nacionalizou os poços de petróleo, então pertencentes a empresas norte-
americanas, sob pagamento de indenizações. Em seguida, fundou a Pemex, empresa
estatal destinada à exploração e comercialização do óleo. Este foi o principal
investimento estatal na indústria do país. Nos outros setores, como bens de consumo e
maquinaria leve, o capital estrangeiro dominou.
Os Ditadores
Um dos militares mais destacados do Paraguai nos anos 40 e início dos 50, quando se
tornou chefe supremo das Forças Armadas, Alfredo Stroessner sempre teve veneração
pelo poder e pela exaltação de sua pessoa. Para obtê-lo, não mediu esforços e, em
1954, comandou um golpe militar que, apoiado pelo latifundiários, classe dominante
do país, veio a colocá-lo no governo e instalar a primeira ditadura militar de uma série
que dominaria o continente nos anos 60 e 70. Além de reforçar o caráter agrícola da
economia paraguaia, favorecendo a classe que o levou ao poder, Stroessner
transformou o país no paraíso mundial do contrabando, centralizado em Ciudad del
Este, na fronteira com o Brasil.
Aliás, o ditador paraguaio sempre teve nos governos militares brasileiros uma fonte de
apoio a seu governo: a maior prova dessas boas reações é a construção conjunta da
usina de Itaipu, inaugurada em 1974 e que abastece os dois países. No plano interno, o
ditador, sempre com o reforço do Exército e do Partido Colorado, que controla até hoje
a cena política paraguaia, procurou calar as oposições esquerdistas, seja por meio do
exílio, das prisões e da morte. Os sindicatos se tornaram ilegais e as manifestações de
rua, proibidas sob ameaça de prisão.
Seu governo, de 1976 a 1981, é visto pela Organização de Defesa dos Direitos Humanos
como o que mais incentivou a perseguição contra pessoas, fossem contra o regime ou
não. Um relatório de 1980 da Comissão Inter-Americana dos Direitos Humanos afirma
que, nos quatro primeiros anos do mandato de Videla, mais de 6.000 argentinos haviam
desaparecido somente no país. Mais tarde descobriu-se que o general mantinha uma
rede de conexões de espionagem com a Junta Militar boliviana, pela qual ambos os
governos denunciavam as atividades de líderes oposicionistas que atuavam nos dois
países. Foram essas perseguições e assassinatos em massa que criaram o movimento das
mães da Plaza de Mayo, que se reúnem todas as quintas-feiras para protestar, até hoje,
pelo sumiço de seus filhos.
Mas Videla não mostrou eficiência apenas no combate a supostos oposicionistas e nas
táticas para semear o medo na população. No campo econômico, ele intensificou a crise
já existente, desorganizando a produção industrial com a falta de investimentos estatais
e a perda de capitais internacionais, que não obtinham garantia de retorno em um clima
político tão instável. Para combater a inflação, arrochou os salários, gerando
insatisfação nos trabalhadores urbanos, cujas manifestações foram reprimidas pelo
Exército. A total ausência de liberdade de expressão e segurança foram sendo
divulgados ao redor do mundo e atraindo o protesto de vários países, ao mesmo tempo
em que a crise interna tonava incontrolável a revolta popular. A saída dos militares foi
sacar Videla do poder e colocar um presidente tampão, Leopoldo Galtieri, que, além de
invadir as ilhas Malvinas em 1982, convocou eleições livres um ano depois.
Videla, a princípio, pagou por seus crimes. O presidente eleito, Raul Alfonsín, o levou a
julgamento, no qual foi condenado à prisão. No entanto, militares descontentes com a
medida pressionaram o governo, exigindo a anistia para o general. Foi-lhe concedida a
prisão domiciliar, em 1985. Os protestos militares continuaram, e a ameaça de um novo
golpe caso Videla não fosse libertado também. Quatro anos mais tarde, o novo
presidente Carlos Menen, concedeu anistia total ao ex-ditador, evitando problemas com
a cúpula militar para realizar um governo tranqüilo. No entanto, a morte não larga a
vida de Videla. Em 1998, um juiz federal ordenou novamente sua prisão por
participação no seqüestro e desaparecimento de crianças durante seu governo.
Uma conclusão
Como se vê, a história da América Latina é diversa. Mas segue uma linha clara: a da
opressão iniciada quando Colombo e suas naus pisaram nas terras do Caribe – opressão
que dizimou as populações indígenas e instituiu o caráter econômico e exportador das
sociedades latino-americanas, o qual elas ainda não perderam. Até hoje, as
desigualdades sociais que se multiplicam nesses países, aliadas a movimentos de
guerrilha civil, crises econômicas cíclicas e dependência dos mercados internacionais,
caracterizam a formação social destas terras e é o grande desafio a ser enfrentado no
século XXI: a proposta de romper com o desenvolvimento regulado ou a submissão
extrema para se construir um crescimento autônomo e integrado entre todas as nações
continentais – o mesmo sonho de Simón Bolívar, quando, há quase dois séculos atrás,
iniciou os movimentos de libertação que resultaram nos atuais países que compõem a
América Latina.
A utopia revolucionária não morreu nas revoluções citadas ao longo deste texto: ela
prossegue na luta dos zapatistas no México, apesar da violenta opressão do governo
mexicano, e no retorno dos sandinistas ao poder na Nicarágua, conquistando as
principais prefeituras do país nas recentes eleições. A história mostra que não há
caminhos inalteráveis. Pelo contrário, a resistência contra as dificuldades e o desejo
dos homens em mudar sua trajetória faz com que, pouco a pouco, o quadro social
mude. O inferno econômico argentino, o aumento da pobreza no Brasil e a complicada
conjuntura política peruana, entre outros fatos, apenas comprovam que o continente
tem que refletir sobre o que está errado nesta trajetória.
Discutir alguns desses tópicos foi o propósito deste texto: afinal, como dizia o
historiador francês Lucién Goldmann, é olhando o passado que podemos melhorar o
presente e o futuro. No caso, o opressor passado latino-americano, marcado pelo
imperialismo europeu e norte-americano e pela desigualdade social, pode servir como
base para uma transformação generalizada no continente. A revolução virá da revolta
das classes historicamente oprimidas. A América não se libertará de sua agonia por
meio de heróis personalistas e demagógicos, mas sim com a mobilização das maiorias,
incentivada pela discussão da realidade continental, poderá provocar tais mudanças há
muito tentadas. O objetivo desta revista é fomentar tal discussão e refletir sobre esta
terra que, como disse Eduardo Galeano, não nasceu amaldiçoada, e sim convertida à
maldição. cabe a nós, latino-americanos, inverter o quadro.