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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIBA

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS

DIREITO & LITERATURA: ASPECTOS JURÍDICOS E SOCIAIS NA OBRA


DE LEANDRO GOMES DE BARROS

ELON DA SILVA BARBOSA DAMACENO

JOÃO PESSOA
2019
ELON DA SILVA BARBOSA DAMACENO

DIREITO & LITERATURA: ASPECTOS JURÍDICOS E SOCIAIS NA OBRA


DE LEANDRO GOMES DE BARROS

Dissertação apresentada à Coordenação do Curso


de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas -
PPGCJ - UFPB, como critério para obtenção do
título de Mestrado acadêmico em Ciências
Jurídicas

Área de Concentração: Direitos Humanos

Linha de Pesquisa: Transjuridicidade,


Epistemologia e Abordagens
Pluri/Inter/Transdisciplinares dos Direitos
Humanos.

Orientadora: Profª. Drª. Lorena de Melo Freitas

JOÃO PESSOA
2019
Catalogação na publicação
Seção de Catalogação e Classificação

D154d Damaceno, Elon da Silva Barbosa.


DIREITO & LITERATURA: ASPECTOS JURÍDICOS E SOCIAIS NA
OBRA DE LEANDRO GOMES DE BARROS / Elon da Silva Barbosa
Damaceno. - João Pessoa, 2019.
181 f. : il.

Orientação: Lorena de Melo Freitas.


Dissertação (Mestrado) - UFPB/CCJ.

1. Direito na Literatura. 2. Arte participante. 3.


Literatura de cordel. I. Freitas, Lorena de Melo. II.
Título.

UFPB/CCJ
AGRADECIMENTOS

O desenvolvimento desta dissertação não teria sido possível sem o apoio de pessoas
que de algum modo se fizeram presentes durante a trajetória.

Agradeço

À minha orientadora Professora Drª Lorena Freitas pela paciência com a qual conduziu
o trabalho, bem como pela confiança depositada nesta ideia.

Ao Professor Dr. Enoque Feitosa pela força, reflexões e aulas realizadas nas reuniões
do grupo de pesquisa Realismo e Marxismo que em muito esclareceram os
direcionamentos da pesquisa.

Ao Professor Dr. Gaspar pelas sugestões e pelos livros compartilhados, trazendo uma
luz na finalização deste texto.

Ao grupo de pesquisa Realismo e Marxismo, do CCJ – UFPB, pela oportunidade de


observar e aprender com cada um de seus participantes.

À Ione Severo, por ter concedido livros e cordéis sobre o autor-objeto do trabalho,
fazendo-me adentrar mais no universo literário do poeta.

À Nara Limeira e Guga Limeira pela força e por terem me presenteado com uma
Antologia reunindo poemas de Leandro Gomes de Barros.

À minha família pelo incentivo e motivação que transmitiram para que este fim se
concretizasse
Por que existem o mal e o sofrimento humano?

Se eu conversasse com Deus


Iria lhe perguntar:
Por que é que sofremos tanto
Quando viemos pra cá?
Que dívida é essa
Que o homem tem que morrer pra pagar?

Perguntaria também
Como é que ele é feito
Que não dorme, que não come
E assim vive satisfeito.
Por que foi que ele não fez
A gente do mesmo jeito?

Por que existem uns felizes


E outros que sofrem tanto?
Nascemos do mesmo jeito,
Vivemos no mesmo canto.
Quem foi temperar o choro
E acabou salgando o pranto?

– Leandro Gomes de Barros


RESUMO

Tendo como pressuposto que a literatura pode servir de alicerce ao mundo jurídico
para fins de interpretação de sua realidade, esta pesquisa visa estudar como o Direito é
tratado na obra do poeta popular Leandro Gomes de Barros, que deu início ao
movimento editorial do cordel brasileiro, com folhetos e romances que pensavam as
questões sociais e políticas de seu tempo. Este trabalho tem como objetivos específicos
estudar sobre a necessidade cada vez mais latente de o jurídico aproximar-se mais da
realidade social, transcendendo o isolamento resultante da cultura do Bacharelismo; e
considerar a importância de o fenômeno ser abordado a partir de seus pontos de
intersecção com a arte, neste caso, a literatura popular, conduzindo o Direito a levantar
aquilo que seus livros dogmáticos carecem, a sensibilidade. Embora ainda não exista
no Brasil uma Teoria específica que trace a união entre Direito & Literatura, o estudo
trabalha com a hipótese de que é possível analisar os folhetos de cordel produzidos
pelo poeta sob o ponto de vista jurídico, configurando o caráter inovador deste texto. É
com essa motivação que o trabalho reflete sobre a necessidade de se estudar o Direito
partindo de uma visão não dogmática; questiona a conexão entre o campo da
Literatura de cordel e o do Direito, principalmente quando se trata da presença deste
naquele; ao passo que também analisa o papel do gênero literário enquanto arte
participante na comunicação e reflexão sobre as necessidades do povo.

Palavras-chave: Direito na Literatura; Arte participante; Literatura de cordel


ABSTRACT

Based on the assumption that literature can serve as a foundation for the legal world
for the purpose of interpreting its reality, this research aims to study how Law is
treated in the work of the popular poet Leandro Gomes de Barros, who initiated the
editorial movement of the Brazilian cordel, with leaflets and romances that thought the
social and political issues of his time. This work has as specific objectives to study
about the increasingly latent need of the juridical approach more closely to the social
reality, transcending the isolation resulting from the culture of Bachalerism degree;
and consider the importance of the phenomenon being approached from its points of
intersection with art, in this case, popular literature, leading the Right to raise what
their dogmatic books lack, sensibility. Although there is not yet a specific theory in
Brazil to trace the union between Law & Literature, the study works with the
hypothesis that it’s possible to analyze the cordel leaflets produced by the poet from a
legal point of view, shaping the innovative character of this text. It’s with this
motivation that the work reflects on the necessity to study the Law starting from a non-
dogmatic vision; questions the connection between the field of literature and law,
especially when it comes to the presence of this in that; while also analyzing the role
of the literary genre as an art participant in communication and reflection on the needs
of the people.

Keywords: Law in Literature; Participating art; Cordel Literature


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – “AVISO – Tendo falecido o poeta Leandro Gomes de Barros passou a me


pertencer a propriedade material de toda a sua obra literária. Só a mim, pois, cabe o
direito de reprodução dos folhetos do dito poeta, achando-me habilitado a agir dentro
da lei contra quem cometer o crime de reprodução dos ditos folhetos” (Imagem
encontrada no acervo disponível no site da Fundação Casa Rui Barbosa)...................26
Figura 2 – “Attenção – Com vistas aos Drs. Chefes de Policia dos Estados do Pará e
Ceará – Já se achava este folheto em composição quando chegou ao meu
conhecimento que em Belém do Pará, um indivíduo de nome Francisco Lopes e no
Ceará um outro de nome Luiz da Costa Pinheiro, tem criminosamente feito imprimir e
vender este e outros folhetos do poeta Leandro Gomes de Barros, sem a menor
autorização de minha parte que sou legítimo dono de toda a obra literária desse poeta
[...] PEDRO BAPTISTA” (Imagem encontrada no acervo disponível no site da
Fundação Casa Rui Barbosa).........................................................................................26
Figura 3 – Leandro Gomes de Barros............................................................................29

Figura 4 – “AVISO IMPORTANTE – Aos meus caros leitores do Brasil – Ceará,


Maranhão, Pará e Amazonas – aviso que desta data em diante todos os meus folhetos
completos trarão o meu retrato. Faço este aviso afim de prevenir aos incautos que teem
sido enganados na sua boa fé por vendedores de folhetos menos sérios que teem
alterado e publicado os meus livros, cometendo assim um crime vergonhoso” -
Contracapa do Folheto “História de João da Cruz” (Imagem encontrada no acervo
disponível no site da Fundação Casa Rui Barbosa).......................................................29
Figura 5 – “Leandro Gomes de Barros, avisa que está morando em Areias, Recife, e
que remeterá pelo correio todos os folhetos de suas produções que lhe sejam pedidos”
– Contracapa do Folheto “A Cura da Quebradeira”. (Imagem encontrada no acervo
disponível no site da Fundação Casa Rui Barbosa).......................................................30
GRÁFICOS E TABELAS

Gráfico 1 - Evolução dos Concluintes de Direito – Brasil – 1993-2003. Fonte:


MEC/INEP. Sinopses Estatística da Educação Superior. Vários anos. Nota: Média
geométrica da década....................................................................................................58

Gráfico 2 – Número de matrículas e cursos de graduação, por categoria administrativa.


Brasil 1980-2016. Fonte: INEP.....................................................................................60

Tabela 1 – Fonte: INEP – Quantidades de cursos, de alunos ingressantes, matriculados


e concluintes de cursos jurídicos no Brasil no período de 1991 a 2012 (cursos
presenciais e a distância)...............................................................................................59
ÍNDICE ONOMÁSTICO

Abreu, Márcia, p. 39, 52, 90, 91, 92, 93, 94

Adorno, Sérgio, p. 53, 54


Almeida, Horácio De, p. 31
Alves, Miriam Coutinho de Farias, p. 89
Andrade, Carlos Drummond de, p. 30
Andrade, Carlos Drummond De, p. 30, 106
Ásfora, Permínio, p. 32
Athayde, João Martins de, p. 24, 27
Barros, Leandro Gomes, p. 16, 17, 18, 21, 22, 33, 34, 35, 90, 94, 95, 106, 107, 108,
109, 113, 122, 123, 124, 125, 126, 127
Barroso, Luís Roberto, p. 74
Batista, Paulo Nunes, p. 23
Batista, Pedro, p. 23, 25
Batista, Sebastião Nunes, p. 24
Benjamin, Walter, p. 101.
Bilac, Olavo, p. 3
Bomfim, Manoel, p. 39, 50
Bonaparte, Napoleão, p. 39
Botelho, André, p. 50
Britto, José Gabriel Lemos, p. 89
Buoro, Anamelia Bueno, p. 99
Caluête, Francisco Romano (Romano da Mãe D’água), p. 24
Cândido, Antônio, p. 100, 101
Cardozo, Benjamin, p. 78
Carpeaux, Otto Maria, p. 75
Carvalho Filho, p. 73
Carvalho, Aloísio de, p. 89
Carvalho, José Murilo De, p. 41, 47, 53
Cascudo, Luis Da Câmara, p. 22, 27, 28, 90
Catingueira, Inácio da, p. 24
Chueiri, Vera Karam de, p. 85
Costa, Agostinho Nunes da, p. 22
Costa, Nicandro Nunes da (1829-1918), p. 22
Cury, Vera De Arruda Rozo, p. 46
Dallari, Dalmo De Abreu, p. 110
Diderot, p. 77
Diniz, Maria Helena, p. 64, 67
Dom Pedro I, p. 39
Eagleton, Terry, p. 81, 82, 83
Eloy, Esaú, p. 25, 27
Farias, Adelaide Xavier de, p. 21
Farias, Padre Vicente Xavier de, p. 21
Fernandes, Florestan, p. 45
Ferraz Júnior, Tércio Sampaio, p. 63, 64, 69, 76
Fonseca, p. 54
Franca Filho, Marcílio, p. 69
Freyre, Gilberto, p. 35, 38, 45, 46, 49, 51
Galvão, p. 99
Godoy, Arnaldo Sampaio de Morais, p. 89
González, José Calvo, p. 87
Grinberg, p. 55
Guabiraba, Antônio, p. 23
Guabiraba, João, p. 23
Guabiraba, José, p. 23
Hegel, G.W.F., p. 120
Herodías, p. 25
Holanda, Sergio Buarque de, p. 35, 38, 39, 40, 41, 45, 47, 48, 53, 57, 61
Houaiss, p. 95
Hunt, Lynn, p. 77
Ibiapina, p. 106, 107, 110, 111, 112, 113, 114
Japiassu, Hilton Ferreira, p. 70
Julieta, p. 25
Junqueira, Eliane Botelho, p. 89
Kelsen, Hans, p. 61, 63, 64, 66, 68, 69, 72, 74
Kozima, José Wanderley, p. 38, 49, 50
La Torre, Angel, p. 67
Lima, José Gomes de Barros, p. 21
Lima, Raquel Aleixo de Barros, p. 25
Lobo, Paulo Luiz Neto (Coord), p. 57
Locke, John, p. 69
Luciano, Aderaldo, p. 91
Lyra Filho, Roberto, p. 61
Marques Neto, Agostinho Ramalho, p. 70
Medeiros, Irani, p. 24
Mirabete, p. 121
Moreira, Elana Gomes Santos, p. 99
Nobre, Marcos, p. 69
Nóbrega, Liberato da, p. 22
Nogueira, Bernardo (1832-1895), p. 22, 24
Olivo, Luiz Carlos Cancellier de, p. 89
Ost, François, p. 83
Peixoto, p. 95
Penna, Affonso, p. 96
Pereira, Eitel Santiago de Brito, p. 89
Pires, Eginardo, p. 70
Platão, p. 76
Prado Jr, Caio, p. 42
Princesa Isabel, p. 55
Quintela, Vilma Mota, p. 27
Reale, Miguel, p. 70, 72
Sabugi, Ugulino de (1830-1895), considerado o primeiro cantador, p. 22, 24
Saldanha, Jânia Maria Lopes, p. 89
Salles, p. 55, 71
Santos, Mário Ferreira Dos, p. 75
Savian Filho, Juvenal, p. 73
Schwartz, Germano, p. 80
Silva, Paulo Eduardo Alves da, p. 71
Silvino, Antônio, p. 32, 114, 115, 116, 118, 119
Slater, Candace, p. 91, 93
Sobrinho, José Alves, p. 93
Sousa, Venustiniana Eulália de, p. 25, 27
Streck, Lênio, p. 89
Suassuna, Ariano, p. 19, 32, 102, 103, 104, 105
Terra, Ruth, p. 32, 33
Trindade, André Karam, p. 89
Trindade, André Karam; Gubert, Roberta Magalhães, p. 86.
Venâncio Filho, Alberto, p. 53, 54
Vianna, Arievaldo, p. 21, 22, 23, 25, 31
Villey, Michel. p. 62
Warat, Luis Alberto, p. 66, 84, 85, 88
Weisberg, Robert, p. 81, 83
White, James Boyd, p. 79, 80, 82
Wigmore, John, p. 77
Wilde, Oscar, p. 102
Wolkmer, Antônio Carlos, p. 49, 52
Zumthor, Paul, p. 92
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................15

1. TEMPO E ESPAÇO: LEANDRO GOMES DE BARROS......................................20

2. O DIREITO ALÉM DO DOGMA............................................................................34

2.1 A cultura do Bacharelismo e o ensino do Direito no Brasil....................................35

2.2 A Ciência do Direito numa perspectiva não dogmática...........................................61

3. CONEXÕES ENTRE DIREITO & LITERATURA.................................................74

3.1 Movimento Direito & Literatura..............................................................................75

3.2 Papel social dos folhetos de cordel..........................................................................90

4. NOS VERSOS DE LEANDRO: DO SOCIAL AO JURÍDICO,

DO JURÍDICO AO SENSO COMUM.......................................................................106

4.1 Tribunal do Juri – “Defeza feita pelo Doutor Ibiapina”........................................107

4.2 Pena e Ressocialização – “Antônio Silvino”.........................................................114

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................124

REFERÊNCIAS..........................................................................................................128

ANEXOS.....................................................................................................................137
15

INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende estudar a presença do Direito na obra do poeta


popular Leandro Gomes de Barros, analisando a forma como os institutos jurídicos são
operados no Nordeste do fim do século XIX e início do século XX diante das
dificuldades enfrentadas pela população não familiarizada com as letras, explorada
pelo governo e excluída por não ter acesso à justiça. A partir disso, se busca
compreender o papel social exercido pelos folhetos de cordel, que dentro desse
contexto, configura-se como uma arte participante, quando informa, se engaja, satiriza,
conscientiza e denuncia os problemas existentes nas condições de vida do povo
nordestino.

O processo criativo está presente desde os primórdios da humanidade,


acompanhando o ser humano em diversas atividades, desde quando a arte não tinha
como preocupação o fator estético, mas tão somente a necessidade de comunicar,
transformando o espaço comum. A literatura, manifestando-se de acordo com os fatos
de sua época, pensa sobre as necessidades sociais, alertando, influenciando e
denunciando os conflitos, podendo sensibilizar a sociedade e, por tanto, assumindo a
sua função de comunicar.

Ocorre que as obras literárias, ainda que tratem do imaginário, de situações


ficcionais, transmitem aquilo que o estudo normal do Direito não consegue exprimir,
servindo de alicerce para a reflexão e interpretação por parte dos operadores do Direito
pela capacidade de guardar memórias.

A sociedade contemporânea tem passado por grandes transformações. O


Iluminismo entrou em crise, abrindo espaço para uma nova forma de perceber o
mundo. Essa mudança atingiu o campo das artes, da filosofia e, podemos ainda dizer,
da ciência jurídica, que se permitiu abrir para uma flexibilização, se comunicando com
outras áreas do conhecimento.
16

Embora seja inafastável que o Direito mantenha seu caráter positivo, guiado
pela segurança jurídica, para não perder a sua essência, é desejável que se abrace com
outras extensões, já que o fenômeno pode ser notado ou captado em outras vertentes
da criação humana, como a Literatura, estando inteiramente interligado às
transformações ocorridas no seu espaço, adaptando-se às necessidades de seu tempo.

No âmbito do fenômeno literário, pode-se verificar três formas através das


quais o fenômeno jurídico se associa: Direito ‘da’ literatura, que tem como objeto de
estudo os direitos do autor, da utilização de determinada obra e a liberdade de
expressão; Direito ‘como’ literatura, que envereda pelo estudo nas normas jurídicas e
seu conteúdo valorativo a partir de técnicas literárias, como a retórica e a linguística,
expressando uma unidade interpretativa; e Direito ‘na’ literatura, que se propõe a
mergulhar nas obras literárias para coletar elementos que digam respeito à seara
jurídica.

Pouco se tem estudado a presença do Direito na Literatura Popular, que


também apresenta discursos políticos e a própria forma de pensar as questões sociais.
Os cordéis, até a idade contemporânea tratam de comunicar em suas rimas os anseios
do povo em face dos acontecimentos de sua comunidade, bem como de fatos de
natureza internacional. Aliás, antes da literatura em cordel, os repentistas e cantadores
já comunicavam oralmente as memórias, casos e problemas do lugar social.

Diante do debate sobre transdisciplinaridade do Direito, que tem se


desenvolvido nos últimos tempos no Brasil, nos importa questionar: A Literatura em
Cordel de Leandro Gomes de Barros tem a capacidade comunicativa e de denúncia
social ao levar o direito para o senso comum?

Esta dissertação trabalha com a hipótese de que a análise de folhetos


produzidos pelo poeta pombalense é relevante para o estudo do seguimento Direito &
Literatura, tendo em vista o conteúdo de crítica social presente em sua obra, e por
representar as necessidades de um grupo social – a população nordestina – no final do
século XIX e século XX ao trazer debate, entre outros, sobre aspectos jurídicos e
sociais de sua época.
17

O objetivo deste trabalho se encontra em analisar os elementos referentes


ao mundo do Direito presentes na obra do poeta, pesquisando textos que tratem sobre
o Direito na Literatura. Em seguida, observando a importância da literatura em cordel
para a vida social, principalmente no que tange ao desenvolvimento de práticas de
conscientização em torno das necessidades sociais e de direitos.

O primeiro capítulo visa apresentar o objeto da pesquisa, contando sobre a


vida e a obra de Leandro Gomes de Barros, nascido na Fazenda Melancia, que na
época pertencia ao território de Pombal-PB (hoje se localiza no município de Paulista-
PB), em 19 de novembro de 1865 e falecido em Recife, em 4 de março de 1918, aos
53 anos. O poeta considerado o pai do Cordel Brasileiro, tendo publicado em torno de
600 obras; entre estas, folhetos, romances e histórias, discutindo comportamentos
humanos, satirizando e tecendo críticas às instituições e à lei, motivo pelo qual
consideramos o folheto de cordel como um instrumento político de contestação da
ordem vigente.

O segundo capítulo traz como foco uma abordagem do Direito numa


perspectiva que vai além das normas positivadas, iniciando com o tema da cultura do
bacharelismo no Brasil, já que foi a implantação dos primeiros cursos jurídicos no
Brasil a responsável pela formação intelectual e cultural do país no século XIX e início
do século XX, abrindo espaço para uma nova configuração social, que de rural passava
a ser urbana, tendo como referências principais as obras “Sobrados e Mocambos”, de
Gilberto Freyre e “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda. A posição desse
tópico na dissertação também se dá por corresponder a uma espécie de
contextualização do tempo histórico em que Leandro Gomes de Barros viveu e
produziu seus cordéis.

Este capítulo segue com uma reflexão em torno de uma visão não
dogmática da Ciência Jurídica, considerando que o Direito não está limitado apenas ao
que está expresso na lei. Tendo em vista que a sociedade é dinâmica e muda conforme
as necessidades sociais que se apresentam durante os tempos, entendemos que o
fenômeno jurídico acompanha as transformações e por esse motivo necessita estar
próximo da sociedade. A análise dessa parte compreende o positivismo jurídico de
18

Hans Kelsen não como uma teoria que veio afastar o Direito da Moral, mas
simplesmente objetivando estabelecer um caráter científico próprio da Ciência
Jurídica.

O terceiro capítulo se direciona a tecer considerações sobre o movimento


Direito e Literatura (Law and Literature), surgido nos Estados Unidos e tendo grande
difusão na Europa, e as formas através das quais se estuda o tema: Direito ‘da’
Literatura; Direito ‘como’ Literatura e Direito ‘na’ Literatura, sendo esta o foco do que
esta dissertação se propõe.

Neste ponto, envereda pela colocação da Literatura de cordel como forma


de despertar consciência política e de sensibilizar os leitores e ouvintes para questões
de cunho social. Busca-se aqui entender a importância do cordel brasileiro como arte
participante de acordo com a perspectiva de Ariano Suassuna em sua obra “Iniciação à
Estética”. Em seguida, concluindo que a obra de Leandro Gomes de Barros pode
tranquilamente se enquadrar nas características de uma arte engajada e politizada.

O quarto capítulo, por sua vez, corresponde à análise da presença de


aspectos jurídicos nos folhetos do poeta, de que modo o discurso aborda a realidade do
funcionamento das instituições e aspectos do Direito Penal. Aqui se buscou colher
esses aspectos dentro de obras significativas para este estudo e que sintetizam um
ponto de vista recorrente em muitos de seus cordéis. As obras escolhidas foram
“Defeza feita pelo Doutor Ibiapina”, que conta a história de Chico, réu que foi
sentenciado à forca e foi livrado após o advogado intervir e argumentar não só em
defesa do réu, mas de um devido processo legal; “Antônio Silvino no Jury” e
“Exclamações de Antônio Silvino na cadeia”, discutindo sobre pena e ressocialização.

Esta pesquisa possui natureza bibliográfico-documental, pois parte do


debate teórico sobre Direito na Literatura e sobre o próprio autor-objeto, Leandro
Gomes de Barros, para explorar a hipótese de pesquisa a partir dos elementos
empíricos, sendo estes os folhetos de cordel, possibilitando-nos aproximar o campo
jurídico da realidade social. A aproximação entre as duas searas será investigada com
19

este recurso, partindo de dados qualitativos, que complementam a construção da


abordagem teórica a partir de aspectos históricos, artísticos e jurídicos.

O cordel, popularizado no Nordeste com a impressão dos relatos orais feitos


pelos repentistas e cantadores, até os dias atuais serve de instrumento de informação.
Ainda em meados do século XVIII e XIX, quando o processo de globalização nem
sonhava com o surgimento da Internet, a cultura popular estava mais concentrada na
dimensão de seu ambiente, adaptada a região. Sua capacidade de comunicar estava
ligada à linguagem de fácil compreensão, influenciando, principalmente, as camadas
mais pobres da sociedade, e gerando consciência política no povo.

Sua obra, mesmo tendo sido escrita entre o fim do século XIX e início do
século XX, continua atual por tratar de assuntos referentes à natureza humana,
carregando um discurso político de denúncia de problemas sociais, como a corrupção e
os descasos do governo com a comunidade, além de fazer críticas ferrenhas aos
impostos, que exploram economicamente a população sem corresponder às suas
necessidades.

Mesmo com a relativa autonomia científica do campo interdisciplinar,


Direito & Literatura, a carência de uma proposta metodológica assentada de análise
neste campo de pesquisa, nos impediu de eleger um marco teórico. Assim, a
dissertação recorre apenas a referências que ilustram pesquisas na área.

Este estudo leva em consideração a atualidade das obras, que, ainda


pertencendo à outra época, guarda ligação com o nosso tempo. Sua relevância está na
captação e análise de aspectos do campo do Direito, dispostos nos cordéis do referido
poeta, percebendo intersecções entre fenômeno jurídico e o fenômeno literário, quando
focado na literatura popular nordestina e, por esse motivo, configurando-se como um
trabalho inovador dentro do mundo acadêmico de Direito.
20

1. TEMPO E ESPAÇO: LEANDRO GOMES DE BARROS

O capítulo inicial desta pesquisa tem como norte fazer uma apresentação do
autor-objeto de estudo, o poeta popular Leandro Gomes de Barros, responsável por dar
impulso ao movimento editorial do cordel brasileiro, já que foi o primeiro a viver
unicamente da venda de seus folhetos, provocando também a luta em torno dos
Direitos Autorais no campo da poesia popular, já que o mesmo tivera muitas de suas
obras publicadas em nome de outros poetas que ocultaram a verdadeira autoria.

Embora não seja o Direito Autoral da poesia popular o tema fundamental


desta dissertação, expusemos essa questão por ser um fato marcante na trajetória do
poeta. A pesquisa, no entanto, direciona-se a estudar a presença do jurídico na obra
que muito discute comportamentos humanos, critica instituições, sendo instrumento de
contestação da ordem vigente na época, e ainda assim com capacidade de gerar
reflexão sobre o tempo de agora. Para isso, aqui se busca também compreender o
contexto social e temporal no qual a obra foi produzida.

Leandro Gomes de Barros é considerado o rei da poesia popular, por ter sido
o primeiro a viver exclusivamente da produção e venda de folhetos de cordel, e assim,
popularizado essa forma de literatura no nordeste brasileiro. É natural do Sítio
Melancia, que, na época, pertencia ao município de Pombal – Paraíba e hoje pertence
ao município de Paulista. Nasceu no dia 19 de novembro de 1865, filho de José Gomes
de Barros Lima e Adelaide Xavier de Farias. De acordo com Arievaldo Vianna (2014,
p. 28), Leandro conviveu com os pais durante o início de sua infância no sítio que era
propriedade de seus avós maternos.

Segundo Vianna (2014, p. 28), o pai de Leandro foi seminarista juntamente


com o Padre Vicente Xavier de Farias (1823 – 1907), tio por parte de mãe do poeta.
Com o falecimento de seu pai, o Padre viria a se tornar o responsável por sua
educação. Leandro ficou sob a guarda dos avós, tendo se mudado logo cedo para a
Vila do Teixeira.
21

Foi na serra de Teixeira-PB que Leandro teve a oportunidade de conhecer e


conviver com vários cantadores e poetas repentistas e, consequentemente, tendo o seu
talento sido estimulado pela métrica que vinha daquela poesia oral. A terra, origem da
poesia popular, foi também berço de Agostinho Nunes da Costa, pai de Ugulino de
Sabugi (1830-1895), considerado o primeiro cantador e Nicandro Nunes da Costa
(1829-1918).

Teixeira também foi terra de Bernardo Nogueira (1832-1895), outro grande


cantador tido por Câmara Cascudo (1939, p. 309) como “Violeiro afamado, repentista
invencível, mestre-de-armas sertanejo, jogando bem espada e cacete, era mais
inteligente que letrado”, condição que naquele tempo era comum para a grande parte
da população do Nordeste, que não tinha acesso às letras. A arte em seu estado de
pureza, no entanto, servia para que o gênio dos poetas se manifestasse sobre as
condições que os circundavam.

Em Teixeira, Leandro Gomes de Barros viveu até os seus 15 anos, tendo


estado em contato direto com a poesia popular vertida do imaginário e da inteligência
de cantadores que, mesmo não sendo letrados, eram espertos e refletiam de modo
certeiro sobre os fatos do cotidiano.

A cultura dos sertões representada pelos cantadores violeiros, teria tido suas
raízes no trovadorismo dos tempos medievais, que ao chegarem da Península Ibérica
às Américas, encontraria um terreno fértil para se espalhar nos versos de poetas que
deram a essa arte formato e características peculiares ao refletirem o seu tempo e o seu
espaço social.

Vianna (2014, p. 30-32) revela que dez anos antes de Leandro chegar à Vila
do Teixeira, o lugar já era cenário de lutas sanguinárias, envolvendo a família dos
perigosos Guabirabas e o jovem Liberato da Nóbrega, suplente a delegado que teria
enfrentado tal família, que era protegida pelos Dantas, família com grande influência
política na vila e que era do Partido Liberal, ao qual Liberato fazia oposição, sendo do
Partido Conservador.
22

Tudo teria ocorrido porque os quatro irmãos Guabirabas teriam invadido a


feira armados, em busca de Liberato, espalhando terror, provocando humilhações à
população e depredando tudo. Por não terem ido ao encontro de Liberato, decidiram ir
embora. Cirino voltou outro dia à feira e Liberato, que já havia assumido o cargo de
delegado, temendo causar mais terror à população, foi prender o cangaceiro no seu
retorno à Jatobá, resultando na sua morte, fato que levou Antônio, João e José
Guabiraba a buscarem vingança. Liberato não foi encontrado dessa vez; no entanto,
perdeu o cargo, abraçou o cangaço e foi preso.

A história da família Guabiraba guarda relação com as origens do cangaço


no sertão e foi contada por Paulo Nunes Batista no artigo “Raízes do Cangaço:
Ligeiras considerações sobre as possíveis origens do cangaço”1, texto que teve como
base, o livro Cangaceiros do Nordeste, escrito por Pedro Batista, seu tio e genro de
Leandro Gomes de Barros.

Certamente, durante a infância, ao chegar a Teixeira, o poeta muito ouviu as


sagas sobre o cangaço e a violência dos fatos referentes a essa família contadas nas
cantorias dos repentistas. Tanto é que mais tarde veio transformar esses fatos em
versos:

Deixo agora os cangaceiros


Da nossa atualidade
Para vos contar a história
De outros da antiguidade:
Quatro cabras destemidos
Assombro da humanidade

Os Guabirabas, um grupo
De três irmãos e um cunhado,
Tudo assassino por índole,
Cada qual o mais malvado!
Aquele sertão inculto
Tinha essas feras criado (VIANNA, Arievaldo, 2014, p. 30)

1
BATISTA, Paulo Nunes. Raízes do Cangaço: Ligeiras considerações sobre as possíveis origens do cangaço.
Disponível em: <http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=35638&cat=Artigos&vinda=S> Acesso
em: 27 de setembro de 2018
23

Leandro conviveu com violeiros a exemplo de Inácio da Catingueira,


Francisco Romano Caluête (Romano da Mãe d’água), e dos já citados Bernardo
Nogueira e Ugulino Nunes da Costa, e tendo seu dom para a poesia se estimulado
através de sua vivência. As origens da Literatura em cordel guardam ligação com a
métrica das cantorias nordestinas, especialmente em Teixeira de acordo com Sebastião
Nunes Batista em Antologia da Literatura de Cordel (1977, p. 23).

Ao se desentender com o seu tio, com quem não tinha boa relação, o poeta
parte para o Pernambuco, morando em Vitória de Santo Antão até 1907. E começou a
escrever seus folhetos, ainda por volta de 1889, aos 24 anos, de acordo com a biografia
publicada pela Fundação Casa de Rui Barbosa2.

Entre 1893/1900, aproximadamente, viria a dar início ao movimento


editorial do cordel (MEDEIROS, 2002, p. 13), imprimindo seus próprios folhetos nas
tipografias de Recife e fazendo a própria distribuição, trabalho que o levava a viajar
pelos sertões, se inspirar para compor novas histórias e conhecer outros grandes poetas
de sua época, como João Martins de Athayde, que sobre Leandro escreveu em “A
Peleja de João Athayde com Leandro Gomes de Barros”3:

Voltando João Athayde


De Vitória a Jaboatão
Quando chegou em Tapera
Que saltou na estação
Encontrou Leandro Gomes
Entrou em conversação

A – Bom dia, senhor Leandro


Grande poeta modelo
Fiquei bastante contente
Porque desejava vê-lo
Não só pela sua fama
Como para conhecê-lo

L – Eu também da mesma forma


Gosto da sociedade
Embora que suas frases
Não tenham sinceridade
Caiu a sopa no mel

2
BIOGRAFIA à moda da Casa. Disponível em:
<http://www.casaruibarbosa.gov.br/SubsiteCordel/leandro_biografia.html>. Acesso em: 26 de setembro de 2018.
3
ATHAYDE, João Martins. A Peleja de João Athayde com Leandro Gomes de Barros. Disponível em:
<http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=cordelfcrb&pagfis=15426>. Acesso em: 26 de setembro
de 2018.
24

Pra quem já tinha vontade

A – Seu Leandro não se altere


Veja que lhe tratei bem
Primeiro sem ter segundo
No mundo não há ninguém
Quando o mal persegue o homem
Não se sabe de onde vem

Depois de 1907 mudou-se para Recife, onde se fixou, morando de aluguel


em vários lugares e vindo também a fazer impressão de maior parte de seu trabalho no
prelo que veio a adquirir, facilitando a venda de seus folhetos pelo Nordeste e, com
isso, sustentando sua família.

Casou-se com Venustiniana Eulália de Sousa antes mesmo de ter começado


a escrever e com ela teve quatro filhos: Raquel Aleixo de Barros Lima, que foi casada
com o poeta Pedro Batista e administrou a obra do pai após seu falecimento; Herodías;
Julieta e Esaú Eloy, que se tornou militar e participou da Coluna Prestes e da
Revolução de 1924. Leandro faleceu em 4 de março de 1918, aos 53 anos, vítima da
gripe espanhola.

Com a morte do pai, Raquel Aleixo de Barros cuidou de preservar a sua obra
juntamente com o marido, o poeta Pedro Batista. No entanto, três anos depois veio a
falecer no parto de sua primeira filha e sua coleção particular de folhetos passou para
Sebastião Nunes Batista, sobrinho de Pedro, que deixou o legado sob a
responsabilidade da Casa Rui Barbosa – Rio de Janeiro (VIANNA, 2014, p. 55-56).

Após a morte de Raquel, Pedro Batista continuou com a edição e publicação


dos folhetos de Leandro Gomes em Guarabira - Paraíba, onde passou a morar. Em
1919, quando publicou uma edição de “O Cachorro dos Mortos”, sabendo que as obras
do sogro estavam sendo pirateadas, dispôs como avisos:
25

Figura 1 – “AVISO – Tendo falecido o poeta Leandro Gomes de Barros passou a me pertencer a propriedade
material de toda a sua obra literária. Só a mim, pois, cabe o direito de reprodução dos folhetos do dito poeta,
achando-me habilitado a agir dentro da lei contra quem cometer o crime de reprodução dos ditos folhetos”
(Imagem encontrada no acervo disponível no site da Fundação Casa Rui Barbosa)

Figura 2 – “Attenção – Com vistas aos Drs. Chefes de Policia dos Estados do Pará e Ceará – Já se achava este
folheto em composição quando chegou ao meu conhecimento que em Belém do Pará, um indivíduo de nome
Francisco Lopes e no Ceará um outro de nome Luiz da Costa Pinheiro, tem criminosamente feito imprimir e
vender este e outros folhetos do poeta Leandro Gomes de Barros, sem a menor autorização de minha parte que
sou legítimo dono de toda a obra literária desse poeta [...] PEDRO BAPTISTA” (Imagem encontrada no acervo
disponível no site da Fundação Casa Rui Barbosa)
26

No entanto, Dona Venustiniana, juntamente com seu filho Esaú, assinou a


venda dos direitos autorais da obra para o poeta João Martins de Athayde, que adquiriu
a propriedade intelectual dos folhetos, passando a editá-los e vendê-los. No entanto, o
poeta, que sempre foi admirador da poesia de Leandro, passou a publicar muitos dos
folhetos, ocultando a verdadeira autoria. Sobre essa questão, Vilma Mota Quintela
(2010, p. 41-50) observa

No que diz respeito à história da edição popular no Brasil, é preciso sublinhar a


empresa de João Martins Athayde (...). A partir de 1921, quando adquiriu o espólio
literário de Leandro Gomes de Barros, o mais importante e mais fecundo autor da
literatura de cordel nordestina, morto em 1918, Athayde dá início a um projeto
editorial no sentido da padronização de suas edições, tendo em vista a consolidação
da sua marca editorial.

[...]

Essa investida no sentido da padronização dos folhetos vem, sem dúvida, fortalecer
a sua marca editorial, constituindo também um modo de apropriação das obras de
autoria diversa, por ele negociadas para publicação. Especialmente no caso das obras
de Leandro, as quais, com a compra dos direitos de propriedade, Athayde passa a
representar legalmente, a apropriação se dá de forma radical. Algumas vezes, como
mostram, sobretudo as edições posteriores a 1930, as atualizações vão um pouco
além da revisão ortográfica e das pequenas mudanças observadas no título de
algumas obras, chegando, em muitos casos, a comprometer o reconhecimento da
autoria.

De acordo com Câmara Cascudo (1939, p. 264), Leandro Gomes de Barros,


“fecundo e sempre novo, original e espirituoso, é o responsável por 80% da glória dos
cantadores atuais”. Publicou cerca de mil folhetos, tendo feito impressão de mais de
dez mil edições. Em sua vida, viajou pelo nordeste divulgando e vendendo o seu
trabalho, tornando-se ‘o primeiro sem segundo’, o mais lido, até hoje, dos escritores
populares. João Martins de Athayde, sobre o feito de Leandro versou em “A Pranteada
morte de Leandro Gomes de Barros”:

Poeta como Leandro,


Inda o Brasil não criou,
Por ser um dos escritores
Que mais livros registrou,
Canções, não se sabe quantas,
Foram seiscentas e tantas
27

As obras que publicou.

No dia de sua morte


O céu mostrou-se azulado,
No visual horizonte
Um círculo subdourado
Amostrava no poente
Que o poeta eminente
Já havia se transportado

Ainda segundo descrição de Câmara Cascudo (1939, p. 264), Leandro


Gomes era “baixo, grosso, de olhos claros, o bigodão espesso, cabeça redonda, meio
corcovado, risonho, contador de anedotas, tendo a fala cantada e lenta do nortista,
parecia mais fazendeiro do que poeta, pleno de alegria, de graça e de oportunidade”. E
ainda finaliza:

Quando a desgraça quer vir não manda avisar ninguém, não quer saber se um vai
mal e nem se outro vai bem, e não procura saber que idade fulano tem. Não especula
se é branco, se é preto, rico, ou se é pobre, se é de origem de escravo ou se é de
linhagem nobre. É como o sol quando nasce. O que acha na terra, cobre! Um dia,
quando se fizer a colheita do folclore poético, reaparecerá o humilde Leandro
Gomes de Barros, vivendo ele de fazer versos, espalhando uma onda sonora de
entusiasmo e de alacridade na face triste do sertão.

Poucos são os registros fotográficos do poeta. Apenas uma foto de busto e


outra de corpo inteiro. Conforme figuras 3 e 4, o mesmo colocava em seus folhetos
como forma de autenticar a autoria dos versos. Em seus folhetos, Leandro também
dispunha o local onde residia e produzia a sua obra, como se pode ver ao fim do
folheto “A Cura da Quebradeira”, facilitando as buscas de quem pretendia encomendar
(figura 5).
28

Figura 3 – Leandro Gomes de Barros

Figura 4 – “AVISO IMPORTANTE – Aos meus caros leitores do Brasil – Ceará, Maranhão, Pará e Amazonas –
aviso que desta data em diante todos os meus folhetos completos trarão o meu retrato. Faço este aviso afim de
prevenir aos incautos que teem sido enganados na sua boa fé por vendedores de folhetos menos sérios que teem
alterado e publicado os meus livros, cometendo assim um crime vergonhoso” - Contracapa do Folheto “História
de João da Cruz” (Imagem encontrada no acervo disponível no site da Fundação Casa Rui Barbosa)
29

Figura 5 – “Leandro Gomes de Barros, avisa que está morando em Areias, Recife, e que remeterá pelo correio
todos os folhetos de suas produções que lhe sejam pedidos” – Contracapa do Folheto “A Cura da Quebradeira”.
(Imagem encontrada no acervo disponível no site da Fundação Casa Rui Barbosa)

Carlos Drummond de Andrade, ao escrever sobre Leandro, publicou no


Jornal do Brasil na edição de 9 de setembro de 1976, em crônica de título “Leandro, O
Poeta”

Em 1913, certamente mal informados, 39 escritores, num total de 173, elegeram por
maioria relativa Olavo Bilac príncipe dos poetas brasileiros. Atribuo o resultado a
má informação porque o título, a ser concedido, só poderia caber a Leandro Gomes
de Barros, nome desconhecido no Rio de Janeiro, local da eleição promovida pela
revista FON-FON, mas vastamente popular no Nordeste do País, onde suas obras
alcançaram divulgação jamais sonhada pelo autor de “Ouvir Estrelas”. [...] E aqui
desfaço a perplexidade que algum leitor não familiarizado com o assunto estará
sentindo ao ver defrontados os nomes de Olavo Bilac e Leandro Gomes de Barros.
Um é poeta erudito, produto da cultura urbana e burguesa média; o outro, planta
sertaneja vicejando à margem do cangaço, da seca e da pobreza. Aquele tinha livros
admirados nas rodas sociais, e os salões o recebiam com flores. Este, espalhava seus
versos em folhetos de cordel, de papel ordinário, com xilogravuras toscas, vendidas
nas feiras a um público de alpercatas ou de pé no chão.
30

Colocando-o como “príncipe dos poetas brasileiros” e não dos poetas do


asfalto, afirma o julgamento do povo de que Leandro foi “rei da poesia do sertão e do
Brasil em estado puro”. Questionou eleição realizada pela Revista FON-FON, do Rio
de Janeiro que elegeu Olavo Bilac como príncipe dos poetas, quando no Sul se
desconhecia os versos que no Nordeste eram muito populares. Diante das agruras da
vida do povo sertanejo, dos problemas relacionados à seca, à pobreza e a exploração
do povo pobre, Leandro, através de seus versos, alimentou sonhos e divertiu o povo
com o tom irônico de suas estórias, que tratavam de fatos do dia-a-dia, bem como
inspiradas em contos medievais.

Horácio de Almeida (1976, p. 18), intelectual paraibano também discorreu


sobre Leandro na obra Literatura Popular em Verso (Tomo II), escrevendo que

Leandro Gomes de Barros não foi apenas o primeiro, foi o maior de todos os poetas
populares do Brasil. Desbravador de uma seara nova, a da publicação de folhetos,
nenhum outro lhe arrebatou a palma na quantidade e qualidade da obra divulgada.
[...] Como poeta satírico não teve igual. Metade de sua obra descamba para o
picaresco. Ele próprio se tinha na conta de humorista

Nas colocações de Arievaldo Vianna (2014, p. 20), em seu livro Leandro


Gomes de Barros: O mestre da Literatura de Cordel – Vida e Obra

Leandro não se limitou a reaproveitar os temas correntes, oriundos do romanceiro


medieval e dos ABCs manuscritos compostos em quadra, que já circulavam aos
montes pelo Nordeste narrando a gesta do boi e do cangaceiro. Ele foi mais longe.
Criou um tipo de poesia cem por cento brasileira, versejou em diversas modalidades
(sextilha, setilha e martelo), utilizando a redondilha menor (versos de cinco sílabas),
a redondilha maior (sete sílabas) e o decassílabo. Em sua vasta produção, orçada em
torno de mil poemas publicados em mais de seiscentos folhetos, destacou-se,
sobretudo, pela qualidade de sua poesia e por sua sátira mordaz e instigante.

A qualidade das rimas do poeta se revelou em obras sobre os mais variados


temas, desde contos tradicionais da era medieval, a exemplo da “Batalha de Oliveiros
com Ferrabrás”, “A vida de Pedro Cem” e da “História da Donzela Teodora”;
31

passando por críticas sociais e políticas, como “O Imposto”, “A esperança do pobre”,


“Os apuros de um governo decaído”, “O Fiscal e a Lagarta”, “Os Dez-réis do
governo”, “A seca do Ceará”, “O Dinheiro”; críticas à religião, como “O Diabo
confessando um nova-seita”, “Como João Leso vendeu o Bispo”; explorando
elementos da cultura e do imaginário popular, como em “A história Boi Misterioso”,
“O filho da Caipora”; informando e opinando sobre fatos universais, como em “As
Aflições da Guerra da Europa” e “A Alemanha Vencida”; além de aproveitar temas do
cangaço, como “Antônio Silvino O Rei dos Cangaceiros”, “Confissão de Antônio
Silvino a outros cangaceiros” e “Antônio Silvino no Júri – Debate de seu Advogado”.

Ariano Suassuna foi um dos escritores que bebeu da rica fonte do rei da
poesia popular ao ter se inspirado em duas de suas obras-primas – “O Dinheiro – O
Testamento do cachorro”, de 1909 e “O Cavalo que defecava dinheiro” na composição
da peça teatral O Auto da Compadecida, de 1955.

Quem também escreveu sobre Leandro Gomes de Barros foi o pesquisador


Permínio Ásfora, ao lembrar que em 1918, o poeta foi preso por ter publicado um
folheto considerado uma ofensa às autoridades pelo chefe de Polícia. O folheto era “O
Punhal e a Palmatória”, que contava um fato ocorrido naquele ano no Recife sobre um
senhor de engenho que havia mandado aplicar uma surra de palmatória em um
morador, que, por vingança, lhe deu uma punhalada. O texto de Ásfora foi publicado
com o título “Crise do Romanceiro Popular”, no Diário da Noite de Recife, de 13 de
dezembro de 1949

Trechos de sua vida são lembrados até hoje. Contam que já morava aqui no Recife
(Leandro) quando um senhor de engenho, indignado com um morador, resolveu
aplicar neste uma sova de palmatória. [...] Um dia o senhor de engenho é
surpreendido por violenta punhalada vibrada pela mesma mão que levara seus bolos.
O poeta Leandro aproveita o caso policial, transformando-o em folheto que era um
libelo contra o senhor de engenho. Descreve em “O Punhal e a Palmatória”, com
calor e simpatia, a inesperada vindita. O Chefe de Polícia, enfurecido com a
literatura de Leandro (e a serviço do latifundiário), manda metê-lo na cadeia. Apesar
de folgazão, Leandro era homem de muita vergonha e de muito sentimento. E como
naquele já distante ano de 1918 a cadeia constituía uma humilhação, à humilhação
da cadeia sucumbiu o grande trovador popular (ÁSFORA apud TERRA 1981, p. 09)
32

E a estrofe causadora de sua prisão seria a primeira e foi colocada em


seguida:

Nós temos cinco governos


O primeiro o federal
O segundo o do estado
O terceiro o municipal
O quarto a palmatória
E o quinto o velho punhal. (BARROS apud TERRA 1981, p. 09)

Ruth Terra (1983), porém, indo mais além, buscou no acervo dos Fundos
Villa-Lobos, vindo a encontrar o que seria “O Punhal e a Palmatória”. No entanto,
percebeu que a primeira estrofe não condizia com os versos que Ásfora havia
colocado. De acordo com os versos encontrados pela pesquisadora, a primeira estrofe
tecia uma clara crítica à nova forma de governo que se estabelecia no Brasil naquele
ano

Desde que entrou a República


Que o nosso país vai mal
Pois o lençol da miséria
Cobriu o mundo em geral
Deixando a mão entregue
À palmatória e ao punhal

A crítica severa de Leandro Gomes de Barros sobre o governo era recorrente


em seus escritos, refletindo as condições econômicas, políticas e sociais de seu tempo
e denunciando a manutenção das desigualdades sociais; a exploração do povo
trabalhador, que se via obrigado a pagar impostos exorbitantes; a miséria e o
esquecimento das autoridades, principalmente em relação à população do Nordeste.
Em outro folheto, “As Misérias da Epocha”, o poeta discorre:

Se eu soubesse que este mundo


Estava tão corrompido
Eu tinha feito uma greve
Porém não tinha nascido
Minha mãi não me dizia
A queda da monarchia
Eu nasci fui enganado
Para viver neste mundo
Magro, trapilho, corcundo
Além de tudo sellado

[...]
33

Havemos de andar agora


Do importo amedrontados,
Com mil e cem de estampilhas
Nos chapéus e nos calçados
O que havemos de fazer?
Já não se pode sofrer
O fio da cruel fome
Os homens todos alerta
O Estado nos aperta
O município nos come
[...]

Tudo há de se sellar
Isto é ordem executada
Para cazar-se uma noiva
Há de exigir-se selada
Sella-se o noivo também
E é quem mais sello tem
Não sellam o pai por favor
O mais tudo cai nas unhas
De juiz e colletor. (BARROS, As Misérias da Epocha, p. 1, 2 e 4)

Leandro Gomes de Barros, ao contrário da maioria dos escritores da época,


não havia estudado Direito, assim como nenhum outro curso superior. No entanto, a
sua educação, conduzida pelo Padre Vicente Xavier de Farias, o aproximou das letras
e da compreensão da realidade social e política de sua época, e, portanto,
compreendendo as condições que estabeleciam em torno da cultura do bacharelismo.
Sua literatura se comunicava com o povo, sendo espelho de suas necessidades e
entendimento de mundo e, por esta razão, é que se observa a possibilidade de
encontrar o jurídico na sua obra.

Na cultura da época, dominada pela figura do bacharel, que era integrante da


elite intelectual e política do país, o poeta Leandro Gomes de Barros se contrastava por
transmitir informação e reflexão sobre o Brasil e o mundo por meio de uma linguagem
popular, mais próxima da realidade social e em consonância com os anseios comuns.
Sem a retórica típica da elite que se formava nos cursos jurídicos e que era isolado das
reais necessidades do povo brasileiro. Com a capacidade de estabelecer essa
comunicação, Leandro era um dos poetas mais lidos do Brasil.
34

2. O DIREITO ALÉM DO DOGMA

A abordagem em torno da cultura do Bacharelismo, que norteou o


surgimento das primeiras escolas de Direito no Brasil inicia as discussões deste
capítulo, tendo como referências principais as obras “Sobrados e Mocambos”, de
Gilberto Freyre e “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda.

Busca-se tecer um histórico do comportamento do ensino jurídico no Brasil,


observando o que conduziu a prevalecer uma formação positivista, considerando ainda
que o positivismo jurídico não veio afastar o Direito da Moral como muitos mal
interpretam, mas tão somente direcionar a pesquisa em Direito a ter um método
próprio, tendo a norma como seu objeto.

Além disso, o debate em torno desse tema tem a função de contextualizar o


período em que também se realizou a produção de Leandro Gomes de Barros, que não
era formado em Direito, mas trazia em seus folhetos questões relacionadas ao mundo
jurídico partindo das experiências do cotidiano, das percepções resultantes da vivência
do povo.

Considera-se a relevância de relacionar o Direito com outros campos do


conhecimento e das humanidades, com vistas a aprimorar a hermenêutica jurídica,
assim como também, aproximar o mundo jurídico da sociedade. E tem como desígnio,
pensar o Direito além da norma jurídica, numa perspectiva que não se encontra nos
manuais e códigos.

Segue no sentido de abrir espaço para o entendimento de que é possível


estudar o fenômeno jurídico de forma interdisciplinar e utilizando a arte,
especialmente a literatura, como ferramenta para que o Direito observe-se a partir de
outras perspectivas e compreensões de mundo.
35

2.1 A CULTURA DO BACHARELISMO E O ENSINO DO DIREITO NO BRASIL

Veja lá que sacrifícios


Neste mundo tem se dado
Que quantidade de lágrimas
Já não se tem derramado
Só fica quem for doutor
O mais tudo é confiscado (BARROS, O sorteio militar, p. 16)

Tratar sobre bacharelismo na discussão sobre Direito & Literatura é


importante inicialmente por terem sido os cursos jurídicos responsáveis pela formação
intelectual e cultural no século XIX e início do século XX. Tendo sido os primeiros
cursos e as únicas possibilidades da época de se conquistar um diploma num curso
superior no Brasil, além de juristas e políticos, se formaram também jornalistas,
escritores e poetas, que muito absorveram da cultura do bacharel, seja dentro dos
debates teóricos jurídico-filosóficos na sala de aula ou nas discussões extra
acadêmicas.

Em segundo lugar, esta discussão faz parte da reflexão sobre o momento


histórico em que viveu o autor que se pretende estudar, Leandro Gomes de Barros, que
nasceu em 19 de novembro de 1865, na Fazenda Melancia, no município de Pombal-
PB e faleceu em Recife, em 4 de março 1918, vítima da gripe espanhola. Leandro,
embora não tivesse formação jurídica, trazia em suas obras conteúdos que guardam
relação com o mundo do Direito. O sujeito discursivo faz pensar sobre a realidade do
sistema jurídico de sua época.

O folheto intitulado “Doutores de 60”, Leandro provoca sobre o quanto a


aquisição de um diploma em curso superior, em Direito ou Medicina, gerava ascensão
social do indivíduo, que passava a ser chamado de “doutor”, passando a pertencer à
elite econômica e política. O desejo de pertencer a esse grupo seleto de pessoas
influentes na cidade, porém, levava muitos como Chico a recorrer a conquistar um
diploma de modo não formal, sem ter de fato estudado para exercer a profissão. Chico
trabalhava como carregador e havia conseguido comprar um diploma de “Doutor” por
60 mil réis, que o levou a se gabar pela conquista, como se pode observar nos versos:
36

Porque a coisa pençada


Paresse até um revez
Criaturas que só faltam
Andarem de quatro pés
Um desses diz: sou doutor
Graças secenta mil réis

[...]

O Chico foi ao ministro


E disse quero um diploma
Deu os secenta mil réis
O ministro disse toma
Quando saltou no Recife
Disse um moleque olha a goma

Chico saltou no Recife


Como um desembargador
Chegou-lhe um ex-companheiro
Pai José carregador
Perguntou Chico perdesses
A chapa de ganhador?

Disse o Chico eu sou doutor


Meu nome agora é maior
Diz pai José tu agora
Ficas de mal a peior
Venda a carta e tire a chapa
Ser ganhador é milhor

[...]

Disse Maria tripeira


Mãe de Chico ganhador
Meu fio tu estais formado
Graças a nosso senhor
Agora posso morrer
Já tive um fio doutor

[...]

O doutor chegou em casa


Disse a Zé mandioqueiro
Meu pae eu perdi o tempo
Vossa-mercê seu dinheiro
Vou tirar uma matrícula
Viver como de primeiro (BARROS, Doutores de 60, p. 2-10)

O diploma falso, no entanto, de nada valia já que não tinha aprendido sequer
a ler. Em toda loja que chegava, Chico era cobrado pelos gastos que teve sem poder
pagar, enquanto seus pais estavam esperançosos que ele voltasse para casa com algum
dinheiro fruto de seu trabalho. Ao final, Chico perde o diploma e resolve voltar ao seu
ofício de carregador. A história, ao guardar a memória social da época, revela a
37

relevância que ganhava perante a sociedade alguém que tivesse adquirido um diploma.
Ser doutor significava ascender no status social.

Para compreender do que se trata esse período, o contexto e o movimento


conhecido como bacharelismo, este debate tem como fontes principais, as obras:
“Sobrados e Mocambos”, de Gilberto Freyre e “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque
de Holanda, dois clássicos da literatura nacional que cuidaram de fazer uma
interpretação do comportamento da sociedade brasileira do século XIX, analisando os
vetores que direcionaram a construção organizacional do país.

Embora as obras não tratem diretamente do bacharelismo, nem tenham sido


escritas com pretensão de debater a respeito; pelas descrições realizadas e pelo
conhecimento de História do Brasil dos autores, é possível utilizá-las como referência.
Aliás, são obras bastante recorrentes em trabalhos que sobre essa temática. Neste
sentido, são a base da discussão que hora se pretende desenvolver para a compreensão
do fenômeno norteador das relações de poder nos tempos do Império e que repercute
também na realidade atual.

Entende-se por bacharelismo, um movimento iniciado em meados do século


XIX, que tinha como objetivo primordial a formação de uma elite política, econômica
e intelectual no país. Para Kozima (2014, p. 492), o fenômeno trava-se da “situação
caracterizada pela predominância de bacharéis na vida política e social do país”. Além
disso, está relacionado diretamente ao fato de terem sido faculdades de Direito as
primeiras de curso superior no Brasil, tendo formado advogados e políticos, mas
também, jornalistas e poetas.

Considera-se, então, que o bacharelismo fora um dos fenômenos que


comporiam um processo de desligamento de relações coloniais entre Brasil e Portugal.
Dado início pelos movimentos sociais da época, de cunho liberalista, reclamava-se a
autonomização política do Brasil, que continuava dependente de Portugal também
intelectualmente, já que para chegar ao curso superior, os jovens estudantes tinham
que se deslocar para a metrópole, que dominava o sistema educacional da colônia.
38

Ainda de acordo com o autor em comento, os cursos jurídicos no Brasil


foram estabelecidos tendo como preocupação maior a constituição de uma elite fiel às
razões do Estado e que substituísse o modelo burocrático tradicional (ABREU, 1988,
p. 236). Assim, a formação de profissionais da esfera jurídica estava acompanhada da
profissionalização da política, da burocratização do aparelho estatal e da formação de
uma consciência nacionalista (ABREU, 1988, p. 78).

O bacharelismo seria uma maneira de utilizar a lei como ferramenta de


atuação política e configurou-se como uma das exterioridades do processo de
modernização dos países colonizados pela Europa, não sendo um aspecto observado
apenas no Brasil. Aliás, um dos países que mais abraçaram o bacharelismo no
apontamento de Buarque de Holanda (1995, p. 156), foram os Estados Unidos da
América.

Esse processo, nas colocações de Bonfim (2008, p. 164-174), gerou


guerrilhas em toda a América Latina, quando as populações aguerridas e determinadas
a conquistar a independência lutaram para conquistá-la de uma vez, mesmo que as
sociedades não tivessem passado pelas etapas de formação do capitalismo.

No caso específico do Brasil, a sociedade há tempos já apresentava os


elementos essenciais para a formação de uma sociedade livre da metrópole. O
processo de independência se acelerou com a vinda da Família Real, em 1807, quando
as tropas francesas lideradas por Napoleão Bonaparte invadiram Portugal. A
independência ocorreu em 1822. No entanto, segundo Bonfim (2008, p. 176-177) o
elemento refratário era forte, vindo juntamente com a corte para o Rio de Janeiro.
Aliás, tinha como príncipe o próprio herdeiro da Coroa portuguesa, Dom Pedro I. Em
reflexão sobre a Independência do Brasil, o autor questiona:

Em verdade, será bem difícil dizer em que momento justo o Brasil começou a sua
independência. Era colônia, sem nenhum valor em face da metrópole; com o tempo,
foi crescendo, crescendo, crescendo, e, um belo dia, verificaram todos que ali estava
uma nacionalidade, formada, vigorosa, pronta a fazer-se inteiramente senhora dos
seus destinos; nação à mercê da qual o reino de ultramar já vinha vivendo, e assim
continuaria, até que o tempo (ou algum aventureiro, refletia o próprio rei)
39

completasse a sua definitiva separação. Quando é que o Brasil entrou a ser


verdadeiramente autônomo?

Na realidade, além da narrativa apresentada pelos livros de história, a


independência do Brasil só foi sentida unicamente pelos refratários, que eram aqueles
que acompanharam a Família Real na sua vinda – frades, freiras, desembargadores,
monsenhores, monges, etc. A separação entre a colônia e a metrópole se deu
simplesmente na mudança de título do governante, de rei passou a ser imperador,
adotando sua Constituição (que era uma cópia da antiga), mantendo, na prática, a
mesma estrutura administrativa, e com os refratários ocupando cargos elevados no
Governo.

Os portugueses buscaram recriar na colônia o modo de vida que levavam na


metrópole. O comportamento aventureiro e preguiçoso, apesar de ocasionar diversas
fraquezas teve grande influência na vida nacional, gerando um encontro de culturas
diversas, possibilitando o conhecimento de outras formas de viver, bem como fazendo
com que os portugueses conseguissem se adaptar bem às novas terras4.

O colonizador português alimentava, com essa condição, um sentimento de


diferenciação social, de superioridade em relação aos colonizados, o que contribuía
para a consolidação de uma divisão social na relação metrópole/colônia. Garantir uma
posição superior hierarquicamente era garantir uma vida sem esforço e sem trabalho,
como os portugueses simpatizavam. É um fator que está presente no comportamento
dos povos ibéricos, a repulsa pela moral fundada no trabalho. Para Buarque de
Holanda (1995, p. 38), era compreensível

4
Nesse ponto, precisamente, os portugueses e seus descendentes imediatos foram inexcedíveis. Procurando
recriar aqui o meio de sua origem, fizeram-no com uma facilidade que ainda não encontrou, talvez, segundo
exemplo na história. Onde lhes faltasse o pão de trigo, aprendiam a comer o da terra, e com tal requinte, que —
afirmava Gabriel Soares — a gente de tratamento só consumia farinha de mandioca fresca, feita no dia.
Habituaram-se também a dormir em redes, à maneira dos índios. Alguns, como Vasco Coutinho, o donatário do
Espírito Santo, iam ao ponto de beber e mascar fumo, segundo nos referem testemunhos do tempo. Aos índios
tomaram ainda instrumentos de caça e pesca, embarcações de casca ou tronco escavado, que singravam os rios e
águas do litoral, o modo de cultivar a terra ateando primeiramente fogo aos matos. A casa peninsular, severa e
sombria, voltada para dentro, ficou menos circunspecta sob o novo clima, perdeu um pouco de sua aspereza,
ganhando a varanda externa: um acesso para o mundo de fora (HOLANDA, p. 46-47)
40

[...] que jamais se tenha naturalizado entre gente hispânica a moderna religião do
trabalho e o apreço à atividade utilitária. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais
excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a
luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de
grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação.

O interesse pelo trabalho e a solidariedade não eram ideais de espanhóis e


portugueses. A vida fácil e o ócio despertava muito mais admiração do que o próprio
negócio. O que português vinha buscar na colocação de Buarque de Holanda (1995, p.
49) não eram as riquezas resultantes do trabalho e sim da aventura. Buarque de
Holanda tece a diferenciação entre o “trabalhador” e o “aventureiro”, sendo este o
sujeito que age por conveniência, sem custos, buscando riqueza com facilidade, “seu
ideal será colher o fruto sem plantar a árvore” (HOLANDA, p. 44), a conquista
imediata é louvada; ao contrário daquele, que possui responsabilidades e dedicação ao
trabalho, atribuindo valor moral ao que lhe traz ânimo de lutar.

Tal condição de ociosidade e de prestígio social tem suas raízes em


comportamentos hereditários e levou os portugueses a adotarem um comportamento
elitizado e ainda mais aristocrático do que em outras sociedades da América Latina.

O que, com segurança, se pode afirmar dos portugueses e seus descendentes é que
jamais se sentiram eficazmente estimulados a essa energia. Mesmo comparados a
colonizadores de outras áreas onde viria a predominar uma economia rural fundada,
como a nossa, no trabalho escravo, na monocultura, na grande propriedade, sempre
se distinguiram, em verdade pelo muito que pediam à terra e o pouco que lhe davam
em retribuição (HOLANDA, 1995, p. 51).

Não obstante a manutenção da ociosidade e do status social está ligada ao


surgimento do bacharelismo. A busca pelo título de bacharel ou doutor estava a
crescer. E, no entanto, o controle educacional exercido no Brasil foi diferente do que
foi exercido pelas colônias espanholas, sendo ainda mais rígido. Segundo Carvalho
(2008, p. 126), a criação de universidades e escolas superiores havia sido proibida. A
população colonizada que quisesse alcançar o ensino superior era obrigada a buscá-lo
na metrópole.
41

Todas essas circunstâncias somadas à miscigenação, à dependência do


trabalho escravo e a problemas de produtividade com a monocultura levaram a um
enfraquecimento do poder político dos descendentes da aristocracia ainda no início do
século XIX. Era o modelo patriarcal, escravocrata e aristocrático que começava a
perder espaço para a modernização do Estado, que seria inevitável, já que o Brasil
estava em processo de descolonização e para isso necessitaria entrar em acordo com as
condições postas pela economia mundial.

Nas colocações de Caio Prado Jr. na obra Evolução Política do Brasil, o que
assinalou o início da modernização do país foi a supressão do tráfico de escravos. No
momento em que o Brasil se encontrava nesse processo de descolonização, passava a
integrar uma estrutura econômica mundial, se colocando dependente de condições
exigidas pela Inglaterra. Os interesses britânicos aconselhavam ao combate do tráfico
africano. Ocorria que o Brasil, por contar com o braço do trabalho escravo na
produção de açúcar estava em vantagem em relação às Índias Ocidentais, com as quais
concorriam e sobre as quais a Inglaterra tinha interesse. Em 1850, a Lei Eusébio de
Queiroz aboliu o tráfico negreiro. Tal fato ocasionou mudanças na agricultura, na
indústria e no comércio. A velha estrutura passava por uma remodelação (PRADO Jr.,
2012 p. 90-94).

O mundo faz crer


Que se viciou,
A praça botou
O matto a perder
Hoje só se vê
Roubo e corrupção,
Prende-se um ladrão
Ele se faz bôbo,
E diz: - Não fiz roubo
Isso é cavação... (BARROS, O tempo de hoje, p. 5)

O trecho acima é do folheto intitulado “O tempo de hoje”, de Leandro


Gomes de Barros, que denuncia os problemas sociais de seu tempo, principalmente as
dificuldades enfrentadas por seu povo em decorrência das transformações da sociedade
entre fim do século XIX e início do século XX, da crise e da corrupção. Os versos “A
praça botou / O matto a perder” revela a insatisfação do eu lírico no processo de
42

mudanças de comportamento e modo de vida, quando a sociedade, de rural, passava a


ser urbana.
Com essa mesma tonalidade de crítica social, o poeta popular escreveu
“Discussão de um praciano com um matuto”, no qual descreve discussão travada entre
Moysés, morador da cidade de Areia – PB e um trabalhador da zona rural vindo do
Rio Grande do Norte. O caso ocorreu em uma festa, quando uma moça leiloava
objetos de valor, inclusive um queijo enfeitado, que despertou interesse tanto o matuto
quanto o praciano, motivo pelo qual se deu a confusão. Moysés, por ser da cidade e
“ter estilo” e julgando-se também mais inteligente, sentia-se superior ao matuto:

Eu não gosto de matuto


E vou dizer-lhe a verdade
Matuto não pode entrar
Em toda sociedade
Pois matuto além de bruto
Tem pouca dignidade

Matuto não tem estilo


Matuto não sabe andar
Matuto não sabe ler
Muito menos conversar
Matuto pra ser cavalo
Só falta aprender rinchar

[...]

Quem mora no mato é bicho


Portanto, meu camarada,
Não queira gabar o mato
Que mato não vale nada
No mato só há pobreza
E gente mal educada

[...]

Se eu por acaso ainda fosse


O chefe desta cidade
Matuto aqui não entrava
Pois não há necessidade
De matuto aqui na praça
Onde há civilidade (BARROS, Discussão de um praciano com um matuto, p. 5, 10)

Em resposta a todas as ofensas do praciano que o subestimava e ainda dizia


que matuto na cidade só trazia prejuízo, o matuto disse:
43

Não é a rua que traz


Ao homem a inteligência
Pois no mato tem nascido
Homens de grande eloquência
Onde a rua tem criado
Infames sem consciência

[...]

Você fala de matuto


É porque não tem juiso
Olhe que matuto em praça
Nunca causou prejuiso
E onde não for matuto
Todo mundo fica liso

Pois matuto é quem produz


O milho, a fava, o feijão,
O café, o queijo, a fruta
O arroz, o algodão
O fumo, a batata e todos,
Gêneros de alimentação

O matuto é quem trabalha


Para padres e doutores
Empregados e soldados
Governos e professores
Afinal pra todo mundo
Até mesmo roubadores

O matuto é quem consome


Tudo o que se expõe a venda
A miudeza, a ferragem,
A carne, o sal, a fazenda
Portanto onde há comercio
Não há matuto que ofenda

Porque é sempre o matuto


A mola fundamental
Do movimento das ruas
Já por isto é natural
Que ninguém queira fazer
A qualquer matuto um mal

Portanto você não fale


Do matuto... e pense bem
Porque você sem matuto
Não comeria também
Porque para trabalhar
Você coragem não tem (BARROS, Discussão de um praciano com um matuto, p, 8
e 14)

De fato, a economia da época concentrava-se na zona rural, condição que


começou a se modificar com a industrialização, transferindo para a ‘praça’, a cidade, o
controle econômico. A esse respeito, Florestan Fernandes aponta que o crescimento
econômico impulsionado pela industrialização provocou a intensificação da
44

transferência de renda e de controles econômicos para o setor moderno. A economia


que antes era ruralista passava a se concentrar no meio urbano. E a região beneficiada
pelo processo (o eixo econômico Rio de Janeiro-São Paulo) passou a preencher
algumas das funções econômicas anteriormente saturadas por centros hegemônicos do
exterior (FERNANDES, 2008, p. 62).
A ascensão de bacharéis brancos na politica do Império se fez muito rápido,
dando início a era do romantismo jurídico, quando o país passava a ser conduzido pelo
conhecimento dos jovens, adquiridos na Europa dentro dos modelos e ideologias
transmitidas nas Universidades europeias, inspirados pelos ideais liberais da
Revolução Francesa e pelos empiristas britânicos.

Gilberto Freyre (2013, p. 446) observa que

Os bacharéis e doutores que iam chegando de Coimbra, de Paris, da Alemanha, de


Montpellier, de Edimburgo, mais tarde os que foram saindo de Olinda, de São
Paulo, da Bahia, do Rio de Janeiro, a maior parte deles formados em Direito e
Medicina, alguns em Filosofia ou Matemática e todos uns sofisticados, trazendo
com o verdor brilhante dos vinte anos, as últimas ideias inglesas e as últimas modas
francesas, vieram acentuar, nos pais e avós senhores de engenho, não só o
desprestígio da idade patriarcal, por si só uma mística, como a sua inferioridade de
matutões atrasados.

O título de bacharel era uma maneira através da qual os filhos da aristocracia


mantinham o seu prestígio social, fruto das raízes culturais e intelectuais da Península
Ibérica. Freyre (2002, p. 349-350) também aponta para uma influência israelita,
cultura difundida em Portugal, na mística jurídica e na ciência produzida na metrópole,
como “O próprio anel no dedo, com rubi ou esmeralda, do bacharel ou do doutor
brasileiro [...] os óculos ou pincenê também são usados como sinal de sabedoria ou de
requinte intelectual e científico”, além do legalismo.

O amor pelos símbolos também é abordado por Buarque de Holanda (1995,


p. 163) quando notou que “o amor bizantino dos livros pareceu, muitas vezes, penhor
de sabedoria e indício de superioridade mental, assim como o anel de grau ou a carta
de bacharel”. Observação da qual se pode analisar que, além do fator intelectual, ainda
45

haveria um fator sensível, a imagem, proporcionada pela mística, a ritualística na qual


se apoiava a cultura bacharelesca.

No que aponta Cury (2002), a consequência dessa transição foi que o


período foi caracterizado por uma cultura jurídica formalista, individualista, retórica e
juridicista e na junção entre o individualismo político e o formalismo legalista foi se
construindo o bacharelismo; visão que se assemelha com a de Sérgio Adorno, que,
como já citado neste trabalho, tinha o individualismo político como um dos ideais
motores da criação dos primeiros cursos jurídicos no Brasil (1988, p. 77). Dava-se o
surgimento de um novo personagem na sociedade brasileira do século XIX, o jovem
intelectual com diploma de bacharel em direito, que juntamente com os médicos,
protagonizavam um momento de transição de comportamentos.

Embora esses profissionais tivessem sua origem dentro dos meios


tradicionais, o desempenho de suas atividades provocou bruscas mudanças no modo de
vida rural e centrado no pater famílias. As relações familiares mudaram no ponto em
que o bacharel em direito passou a substituir a figura do pai, chefe de família, ao
adquirir o poder de tomar decisões, em vista de seu conhecimento técnico. E os
médicos substituíam a figura da mãe, que era quem tinha o domínio das medicações
caseiras.

Faz-se interessante ver a explanação de Freyre (2013, p. 74):

O bacharel – magistrado, presidente de província, ministro, chefe de polícia – seria,


na luta quase de morte entre a justiça imperial e a do pater famílias rural, o aliado do
Governo contra o próprio pai ou o próprio avô. O médico, o desprestigiador da
medicina caseira, que era um dos aspectos mais sedutores da autoridade como que
matriarcal de sua mãe ou de sua avó, senhora de engenho. Os dois, aliados da cidade
contra o engenho. Da praça contra a roça. Do Estado contra a família

O fenômeno do bacharelismo nesta observação trouxe uma crise para o


poder familiar, por não mais representar o antigo modo de vida rural, mas o moderno,
urbano. O Estado passava a manter em suas mãos responsabilidades que pertenciam ao
seio familiar.
46

Conforme assevera Buarque de Holanda (1995, p. 141) o Estado não é uma


ampliação da família. Na verdade, pode se configurar como uma descontinuidade e até
mesmo uma oposição. Nesse ponto de vista, o Estado se criaria a partir de uma
transgressão da ordem familiar, sendo esta abolida por uma transcendência. Isso
explica as transformações ocorridas nas relações desses grupos na passagem de uma
sociedade rural, regida pela figura do patriarca, para uma sociedade moderna, regida
pelos bacharéis.

Portugal pretendia manter a ligação com o Brasil pós-colonial por


intermédio da ida dos filhos da elite para estudar Direito em suas universidades,
principalmente a de Coimbra, estimulando essa dependência para que ainda
mantivesse um controle educacional sobre a antiga colônia. Esse controle ficava a
cargo dos jesuítas desde 1537 até terem sido expulsos em 1759 (CARVALHO, 2000,
p. 130). No entanto, já não se suportava tal dependência para a sociedade da época,
visto que as transformações econômicas e culturais ocorridas na realidade tupiniquim
não condiziam com os modelos adotados e ensinados por lá e trazidos para serem
aplicados no país.

Sergio Buarque de Holanda (1995, p. 31) nota que a tentativa de


implementar a cultura europeia num território de tão vasta extensão foi um fato rico
em consequências, pondo-nos até hoje na condição de “desterrados da própria terra”.
As teorias adotadas e medidas apreendidas eram aplicadas sem a observância de que
no contexto vivido na Europa recorria-se a práticas que só funcionavam lá e que, por
questões geográficas e sociais, não funcionavam no Brasil. Além disso, abrir cursos
jurídicos no Brasil seria mais viável para as classes dominantes que não necessitariam
enviar seus filhos para fora do país.

Holanda (1995, p. 119), ao tratar dos números referentes à quantidade de


bacharéis formados, fazendo uma comparação entre a vida intelectual na América
espanhola e no Brasil, aponta que o número de estudantes diplomados estava
47

[...] em cerca de 150 mil o total para toda a América espanhola. Só da Universidade
do México sabe-se com segurança que, no período entre 1775 e a independência,
saíram 7850 bacharéis e 473 doutores e licenciados. É interessante confrontar este
número com o dos naturais do Brasil graduados durante o mesmo período (1775-
1821) em Coimbra, que foi dez vezes menor, ou exatamente 720.

Ocorria que a rigidez com que era tratado o desenvolvimento da vida


intelectual no Brasil decorria da intenção de impedir que novos conhecimentos e ideias
viessem a ameaçar a estabilidade do domínio lusitano. Assim, os portugueses não
toleravam a convivência com aqueles que, de alguma forma, atiçassem
comportamentos de desobediência no povo morador.

É bem conhecido, a esse respeito, o caso da ordem expedida, já na aurora do século


XIX, pelo príncipe-regente, aos governadores das capitanias do Norte, até ao Ceará,
para que atalhassem a entrada em terras da Coroa de Portugal de ‘um tal barão de
Humboldt, natural de Berlim’, por parecer suspeita a viagem e ‘sumamente
prejudicial aos interesses políticos’ da mesma Coroa. (HOLANDA, 1995, p. 121)

E a formação em escolas superiores ficava limitada a um restrito número de


jovens que tinham condições de estudar no exterior. Uma minoria disposta a
determinar os rumos políticos no Brasil patriarcal. O título de bacharel representava
um caminho para a ascensão social e seus portadores carregavam o poder de
transformar a sociedade com a aplicação das influências teóricas adquiridas em seus
estudos na realidade da cultura europeia.

Além disso, há de se considerar que o diplomado, além de poder exercer a


atividade jurídica, o exercício da advocacia e também ensinar – o que não fazia parte
das principais pretensões, tendo em vista o baixo salário, estava direcionado a atuar na
administração pública, já que o Estado necessitava de pessoas com notório
conhecimento para direcionar as atividades burocráticas, principalmente em um tempo
de mudanças sociais.

Essa intelectualidade movida por técnicas que iam além das condições da
época lhes conferia legitimidade para exercer cargos elevados na política e confiança,
48

muito embora a linguagem dessa nova nobreza nem sempre se fizesse entender por
aqueles que não tinham o mesmo acesso a tais conhecimentos. Foi o que considerou
Freyre (2002, p. 280), afirmando que havia “o português dos bacharéis, dos padres e
dos doutores, quase sempre propensos ao purismo, ao preciosismo e ao classicismo, e
o português do povo, do ex-escravo, do menino, do analfabeto, do matuto, do
sertanejo”.

Neste ponto, considera-se que o mundo jurídico desenvolveu uma linguagem


particular. A linguagem falada nos tribunais não é a mesma falada nos meios comuns,
de tal modo que, embora se possa avaliar a importância da linguagem jurídica para o
exercício profissional, a mesma também é excludente, pois nem todas as pessoas
possuem acesso a esse entendimento, realidade que interfere também no acesso à
justiça, quando a falta de conhecimento gera uma falta de consciência sobre direitos ou
mesmo, pessoas são ludibriadas pelo poder das palavras de quem as domina.

Assim, a linguagem era outra característica do bacharelismo é que este teve


como herança do Império a valorização pela retórica, pela eloquência, pela
argumentação científica, que conferia credibilidade diante de uma população que não
possuía maturidade intelectual para propor questionamentos ou discordar, causando
segregação social.

O poder persuasivo desses que se colocavam como intelectuais tinha muito


mais a ver com as palavras rebuscadas que utilizavam, conferindo-lhes poder, do que
com a racionalidade dos discursos, fazendo uso de um “intelectualismo alienígeno”,
como apontou Wolkmer (2010, p. 85), ignorando desigualdades sociais profundas
diante de privilégios mantidos sob o gozo da mesma elite, que apenas tinha se
renovado.

A imagem, deste modo, era uma preocupação maior dos bacharéis que
buscavam parecer eruditos, quando suas ações não condiziam com seus discursos.
Kozima (2014, p. 493-494), em torno do paradoxo da imagem dos bacharéis, afirma
que a modernização do Estado e a configuração das relações sociais que naquele
49

momento surgiam não consistiram em nenhuma mudança significativa. O que houve


foi a incorporação desses elementos a um sistema que já existia.

Os bacharéis, conquistados pelas ideias iluministas e liberais, voltavam com


a carga de conhecimento teórico, porém na prática, não vinham empolgados com
alguma revolução. Pretendiam manter a configuração do mesmo sistema, pois lhes era
conveniente. O que mais lhes seduzia era a imagem, o status quo e os privilégios que o
título, a insígnia, lhes garantia. A independência não trouxe nenhuma transformação
socioeconômica para o caso brasileiro. Nem se falava em abolir a escravidão:

Vá lá que se tenha, não sem hesitações, abolido definitivamente a escravidão, prática


absolutamente incompatível com o modelo econômico liberal, e, mesmo dentro de
uma confusão de fatos, tenha sido instaurado o regime republicano; mas daí a
incorporar, sem maiores senões, valores que não estavam presentes na prática
cotidiana das relações sociais vai grande distância. (KOZIMA, 2014, p. 493-494)

No ponto de vista de Botelho (1999, p. 122-145), acreditava-se que o


sistema educacional, que era imposto de cima para baixo, sob a influência europeia,
moldaria a sociedade. No entanto, não se considerava que as circunstâncias sobre as
quais caminhavam as relações, conflitos e grupos sociais é que definiam os próprios
valores, havendo a necessidade de um tipo de formação que se comunicasse com as
experiências do cotidiano. A erudição que adquiriam os bacharéis e seus discursos
explicativos com base em conceitos de fora não ganhava sentido quando proferidos
nas circunstâncias específicas do Brasil. É o que se pode captar das palavras de
Bonfim (2008, p. 124):

Em vão se procurará nos seus discursos, programas, pareceres, proclamações, a


expansão dos problemas efetivos do momento, e as suas soluções possíveis.
Discutem sobre os casos que se apresentam na vida corrente da nacionalidade, com
as teorias gerais dos livros estrangeiros, ou com os chavões e aforismos consagrados
por esse senso comum, vão e antiquado, vindo de áreas defuntas, inspirado em
causas estranhas. Raciocinam a grandes alturas, veem sistemas e perdem de vista as
condições em que os fatos se passam.
50

Outro personagem que veio a ganhar ascensão no Brasil foi o intelectual


mulato, filho bastardo dos engenhos, como analisa Gilberto Freyre. Apesar do racismo
fortemente impregnado na consciência e na cultura, e de ser o país ainda escravocrata,
possuir o diploma de bacharel resultou para os negros e mulatos numa espécie de
“branqueamento”. Para o mulato da época, a opção que tinha para sua ascensão era
seguir pela arte militar. Quando passava a ocupar postos de senhores, “tornavam-se
oficialmente brancos” (FREYRE, 1981, p. 586-587).

Nas colocações de Freyre (2013, p. 447), às vezes era filho legítimo ou não
do senhor de engenho que tinha ido estudar na Europa sob influência de algum tio
padre ou parente maçom; outras vezes era filho de ‘mascates’, que voltavam da Europa
“socialmente iguais aos filhos das mais velhas e poderosas famílias de senhores de
terras”:

Do mesmo modo que iguais a estes, muitas vezes seus superiores pela melhor
assimilação de valores europeus e pelo encanto particular, aos olhos do outro sexo,
que o híbrido, quando eugênico, parece possuir como nenhum indivíduo de raça
pura, voltavam os mestiços ou os mulatos claros. Alguns deles filhos ilegítimos de
grandes senhores brancos; e com a mão pequena, o pé bonito, às vezes os lábios ou o
nariz, dos pais fidalgos.

A intelectualidade dos mesmos fez com que fossem tolerados em meio aos
círculos tradicionais. Era o que na obra de Freyre se chamou de “tolerância racial
brasileira”. Na medida em que os mulatos e até mesmo os negros, absorviam
comportamentos europeus, passavam a atingir um maior grau inserção social. Muitos
deles absorviam de tal forma o modo de vida europeu, que quando voltavam após
cinco anos caiam no desencanto de uma difícil readaptação ao meio brasileiro,
sobretudo o rural. E ainda que se distanciassem da ‘aristocracia matuta’, nela
encontraram os aliados para futuros movimentos de reconstrução da sociedade.

Com o ímpeto de aumentar o número de bacharéis no Brasil, foram


instituídas em 1827 as duas primeiras escolas superiores em direito, sendo uma em
Olinda, que depois foi transferida para Recife e outra em São Paulo. Na primeira, a
51

formação possuía um viés mais filosófico, ao passo que em São Paulo, a formação era
fortemente orientada pelo pensamento positivista. Mais tarde, foram instituídas escolas
na Bahia e no Rio de Janeiro.

Os cursos jurídicos eram direcionados a formar os recursos humanos que


conduziriam as atividades da administração pública de acordo com as circunstâncias e
a forma como se movimentava a economia, a política e a cultura no Império. Nas
palavras de Abreu (1988, p. 77):

A criação e fundação dos cursos jurídicos no Brasil, na primeira metade do século


XIX, nutriu-se da mesma mentalidade que norteou a trajetória dos principais
movimentos sociais que resultaram na autonomização política dessa sociedade: o
individualismo político e o liberalismo econômico. A constituição do Estado
Nacional reclamou tanto a autonomização cultural quanto – e sobretudo – a
burocratização do aparelho estatal.

Abreu (1988, p. 81) ainda aponta que em um contexto de descolonização, já


não fazia sentido que a sociedade continuasse na dependência das universidades
europeias para formar seus bacharéis. Para atender aos interesses das elites também foi
que se fundaram os cursos. Os estudantes que se formavam nessas escolas superiores,
porém, sentiam a mesma inquietação dos que concluíam seus estudos na Europa.
Embora tenham sido construídas em terras brasileiras, epistemologicamente estavam
ligados às teorias europeias.

Também é interessante transcrever a visão de Wolkmer, segundo quem:

[...] na prática, o sucesso do bacharelismo legalista devia-se não tanto ao fato de ser
uma profissão, porém, muito mais uma carreira política, com amplas alternativas no
exercício público liberal, pré-condição para a montagem coesa e disciplinada de uma
burocracia de funcionários (2010, p. 127)

Diante de todas as observações já feitas é que se constata a valorização que


se dava ao diploma, por garantir uma remuneração elevada e integrar socialmente
52

aqueles que estavam na condição de intelectuais, abrindo as portas para as carreiras de


magistrado, advogado, político, bem como no campo das artes, como a literatura.

No folheto escrito por Leandro Gomes, já citado - “Doutores de 60” – Chico


comprou um diploma no Rio de Janeiro e quando voltou a Recife, saltou “como
desembargador”, ou seja, elevando-se ao status de pessoa influente socialmente, o que
não condizia com a realidade, já que Chico de nada tinha conhecimento para ser
doutor. A condição limitava-se a um diploma falso e a aparência, quando passou a
vestir-se com um paletó comprado na loja do marinheiro e os sapatos comprados a
João sapateiro, fazendo confirmar o valor que se dava à imagem, aos símbolos e à
aparência de erudito para que o indivíduo fosse considerado doutor e fosse respeitado.

Sobre as condições do ensino jurídico nas faculdades inauguradas, a


princípio pode-se colocar que foram construídas em localidades que só mesmo os
herdeiros da aristocracia tinham acesso. Quem não residia em São Paulo ou Olinda,
tinha que se mudar para essas cidades e morar cinco anos, no mínimo (CARVALHO,
2000, p. 123-152). Essa condição levou os jovens a afastarem-se do círculo de suas
famílias, e, assim, também de seus interesses, o que era favorável ao Estado.

As críticas sobre a estrutura giravam em torno tanto do espaço físico, quanto


da qualificação profissional do corpo docente. Venâncio Filho (2004, p. 37) lembra
que mesmo após o fim do Império, as escolas se limitavam às duas que haviam sido
criadas e que “os cursos jurídicos tiveram de se abrigar à sombra das velhas
instituições eclesiásticas, o que ocorreu tanto em São Paulo, quanto em Olinda”.

A respeito do ensino transmitido nas instituições, ainda que a grade


curricular se apresentasse de forma conservadora, Adorno (1998, p. 93), para quem os
cursos jurídicos no Brasil não eram eficazes, tece a crítica de que a profissionalização
foi operada fora do contexto das doutrinas jurídicas ensinadas em sala, tendo em vista
que muitos dos formados haviam construído suas carreiras de modo autodidático,
inclusive buscando apoio na retórica e na literatura.

Nas considerações de Buarque de Holanda (1995, p. 164), o diploma teria a


capacidade de conferir uma diferenciação, que elevava seu portador acima do comum
53

dos mortais. Havia a crença de que o operador do Direito teria a capacidade de assumir
qualquer que fosse a atividade para a qual tivesse sido nomeado. Deste modo, os
bacharéis também enveredavam por áreas diversas, como a literatura e a imprensa.

Venâncio Filho (2004, p. 119) atribuiu a má qualidade do ensino jurídico à


baixa remuneração dos professores, além de que as carreiras que mais interessavam
aos diplomados eram as voltadas para a política e magistratura. Assim, embora os
diplomados ganhassem destaque na política, durante os anos de seus estudos, quase
nada foi produzido cientificamente. O que se visava estava relacionado à formação de
uma ideologia política no Estado nacional.

Adorno (1998, p. 154-155), ainda explica que:

A atividade didático-pedagógica foi política no sentido de estimular um aprendizado


que, seguramente, nenhuma outra instituição imperial foi capaz. O aprendizado de
que a militância política deveria se orientar por critérios intelectuais. Aquilo que não
se aprendia nas salas de aula era, sub-repticiamente, ensinado na imprensa
acadêmica [...]. Na imprensa, veiculavam-se grandes modelos de pensamento que
conferiam forma à prática política de defender e atacar sobre o que se via às voltas
do mundo acadêmico: as condições da agricultura, a vida partidária, a prática
eleitoral etc., além das condições de subsistência impostas aos tipos humanos da
cidade e do campo. Muito mais do que uma simples escola de transmissão de
ciência, a Academia de Direito de São Paulo foi uma verdadeira escola de costumes.

Fonseca (2008, p. 292), porém, faz considerações contrárias aos pontos de


vista acima colocados. Este autor aduz que Adorno propunha uma dualidade entre o
saber jurídico “puro”, referente às leis, e um saber não jurídico, vindo de outros
saberes, colocando em confronto o que seria a ‘academia formal’ e a ‘academia real’,
dualidade esta que não existia, não podendo ser compreendida na realidade do século
XIX.

Apesar de todas as críticas, é preciso sopesar que a criação das primeiras


escolas superiores de Direito no Brasil teve um papel importante na formação de toda
uma geração, orientada pelos mestres da geração anterior que haviam estudado em
Coimbra e que, por tanto, contribuíram na difusão do ideário liberal, já que dele
54

haviam embebecido. As Faculdades de Direito eram os principais centros de


construção do idealismo político adotado pelo Brasil.

Em 1888, a Lei Aurea, um dos marcos da passagem da vida rural para a vida
urbana, foi votada no senado e assinada pela Princesa Isabel em 13 de agosto, sendo o
Brasil, o último país a abolir o regime escravocrata na América, já que a condição
estava impregnada no funcionamento do sistema, tendo sido quase cinco milhões de
pessoas que aportaram no país para serem escravizadas.

O fim da escravidão não pode ser considerado uma “boa ação” por parte da
princesa. Nem tão somente resultado das pressões econômicas internacionais. A
abolição teve como fator principal a grande participação popular e artística no seu
movimento.

Quatro anos antes, em 25 de março de 1884, a província do Ceará libertou


seus escravos, fato que decorreu de muitas lutas, como a dos jangadeiros, em geral
mulatos, pardos e negros, que tinham como trabalho transportar escravos para
negociantes em 1880 passaram a recusar, gerando um movimento popular que
fortaleceu a luta pela abolição.

Em 1884, todas as lutas do Ceará culminaram com a promulgação da lei


provincial que tornava livres os escravos, o que muito influenciou a província de
Pernambuco. Não havendo mais escravidão no Ceará, o chamado Clube dos Cupins
deu início a um movimento de facilitação da fuga de escravos de Pernambuco para
Mossoró, Aracati e Fortaleza (SALLES, 1990, p.105). Tinha-se em consideração, de
acordo com Grinberg (2007, p. 75), que a propriedade estava relacionada à aquisição
de direitos, de modo que aqueles que chegavam ao território cearense passavam a ser
livres.

Leandro Gomes de Barros em folheto intitulado “A Caravana Democrática


em Ação - A Liberdade offerecida ao povo, pela democracia em ação em todo o
Brasil”, buscando manter a esperança de que a vida do povo nordestino poderia
melhorar com as mudanças políticas em curso, escreve sobre esse período marcado
pela Abolição da Escravatura e depois pela Proclamação da República:
55

[...] Morrerão com os oligarchas


As tiranias de outrora
O que hontem era escravo
É cidadão livre agora
Bate no peito e diz sou
Livre qual Deus me creou
Não reconheço mais jugo
Sou livre, sou cidadão
O governo da nação
Não será mais meu verdugo

Vive qual cego sem guia


A política brasileira
Trazendo presa nas mãos
Os trapos de uma bandeira
[...]

Queime-se agora o azourague


Que devora o infeliz
Destruam-se geladeiras
Que humilham este paiz.
Criem ferrugem os guilhões
Feixem-seas duras prisões
Que tem o povo captivo
Corte-se o imposto que mata;
E um governo democrata
Diga ao paiz: inda és vivo!

Amanhã terão os homens


Todos o mesmo conceito,
E pra todos chegará
Justiça, lei e direito
O jeca do alto sertão
Que planta o milho e o feijão
Também poderá votar
Porque com o voto secreto
Prestes – o grande insurrecto
Pode o Brasil governar

Graças a Deus que chegou


O Anjo da abolição
Semeando a liberdade
Na terra da promissão;
Plantou a arvore da vida
Que éra desconhecida
No paiz da crueldade
Vai essa árvore fraudando
E os frutos que vaão brotando
São paz, amor, liberdade. (BARROS, A Caravana Democorática em Ação, p. 13-15)

E em 15 de novembro de 1889 foi proclamada a República, acontecimento


que não foi acompanhado por grande parte da população brasileira, que assistia a tudo
sem compreender o que se passava. O fato histórico era estabelecido a partir da elite,
56

influenciada por ideias liberais. Esse processo colocou em risco o velho modelo
colonial, agrário, patriarcal, concentrado no poder de senhores donos de grandes terras.

O bacharelismo teve seu momento de ascensão que foi durante o Segundo


Império e sua decadência se deu na República Velha, quando aumentou a perda de
interesse pelo título e redução do número de matriculados nas faculdades de Direito,
em razão da acentuada participação da classe militar na nova configuração política
brasileira. Lobo (1996, p. 12) afirma que após 1930, os tecnocratas passaram a ocupar
o lugar dos bacharéis, fenômeno que se acentuou com o regime militar pós-64.
A ordem, cada vez mais, passou a se abrir para formar e empregar
profissionais burocráticos. Nesse contexto, os cursos jurídicos se espalharam; no
entanto, de baixa qualidade, correspondendo apenas aos interesses do sistema.
Enquanto o bacharelismo do século XIX e início do século XX valorizava a retórica, a
linguagem, a postura e a imagem dos bacharéis, os novos cursos jurídicos passaram a
valorizar a técnica.

O fenômeno bacharelismo, que foi colocado por Holanda (1995, p. 156),


como a “praga do bacharelismo”, nos dias atuais apresenta outros aspectos. Embora
seja diferente do movimento da época do império, há um novo aumento de procura e
formação de bacharéis em direito no Brasil, como se observa nos dados do Ministério
da Educação (MEC)/ Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (INEP) para a Evolução dos Concluintes de Direito no Brasil entre 1933 e
2003:
57

Gráfico 1 - Evolução dos Concluintes de Direito – Brasil – 1993-2003. Fonte: MEC/INEP. Sinopses
Estatística da Educação Superior. Vários anos. Nota: Média geométrica da década

O gráfico 1 mostra que até os anos 50 do século XX, a quantidade de


concluintes dos cursos jurídicos teve um crescimento pequeno. No entanto teve um
aumento exponencial a partir da segunda metade do século XX e início do século XXI.

A tabela abaixo (Censo da Educação Superior – INEP) traz de forma


detalhada a quantidade de cursos jurídicos abertos, o número de ingressantes,
matrículas efetuadas e concluintes no período de 1991 a 2012:
58

Tabela 1 – Fonte: INEP – Quantidades de cursos, de alunos ingressantes, matriculados e concluintes de


cursos jurídicos no Brasil no período de 1991 a 2012 (cursos presenciais e a distância).

No Censo da Educação Superior de 2016 realizado pelo INEP sobre os 10


maiores cursos de graduação em número de matrículas no Brasil, verifica-se que em
2009 o curso de direito contava com 651.730 matrículas. Em 2016 esse número subiu
para 862.324, tornando-se o curso com maior número de matrículas registradas. Esse
fenômeno tem a ver com a proliferação de cursos jurídicos que foram abertos pelo país
principalmente em Faculdades privadas.
59

Gráfico 2 – Número de matrículas e cursos de graduação, por categoria administrativa. Brasil 1980-2016. Fonte:
INEP

O gráfico 2, que também faz parte do Censo da Educação Superior, do


INEP, apresenta o número de matrículas em cursos de graduação por categoria
administrativa, sendo a pública e a privada a partir de 1980, demonstrando que as
instituições privadas no período pesquisado sempre lideraram os números, vindo ainda
a expandir a partir de 1995, quando criado e implementado o Exame de Ordem no
formato atual, pela Lei 8.906/94. Em 2016, enquanto a rede pública de ensino contava
com 24,7% do número de matrículas, a rede privada estava com 75,3%.

Os dados levam a considerar que o bacharelado em Direito no Brasil, ao


contrário dos tempos do Império tem ganhado cada vez mais popularidade no seu
acesso, deixando de ser um curso elitizado. Os números crescentes certamente estão
relacionados à oferta de cursos que se elevou, bem como a fatores históricos, da
tradição do bacharelismo de formar aqueles que seriam inseridos na elite cultural,
política e burocrática do país. Nos dias de hoje, o título de bacharel não garante a
elevação do status do indivíduo para fazer parte dessa elite, o que não significa que o
diploma tenha perdido sua importância para aqueles que almejam alcançar cargos
políticos.
60

Outra herança do bacharelismo que repercute no ensino jurídico no Brasil foi


o Positivismo jurídico, doutrina liberal-burquesa que tinha como pressuposto, estudar
o direito a partir de um sistema normativo hierarquicamente organizado, conferindo
um caráter mais formal ao que antes era meramente político. Teve como principal
expoente o filósofo Hans Kelsen, com a sua Teoria Pura do Direito (KELSEN, 1998,
passim).

Como observa Holanda (1995, p. 160), “os positivistas foram apenas os


exemplares mais característicos de uma raça humana que prosperou consideravelmente
em nosso país, logo que este começou a ter consciência de si”. O autor atribui à
prevalência do Positivismo jurídico no Brasil ao nosso culto pelas formas e falta de
aplicação seguida, estando à sociedade satisfeita com seus dogmas e confiante no
poder de suas ideias.

O entendimento positivista do Direito fora adotado pela Faculdade de São


Paulo e prevaleceu, em detrimento de um ponto de vista mais social que fora adotado
pela Faculdade de Olinda, depois transferida para Recife. O modelo positivista possuía
a vantagem de poder ser aplicado em qualquer território, independentemente de sua
configuração e tempo, por sua capacidade de ser universal e generalizar todos os
sistemas jurídicos.

É preciso recolocar, porém, que as duas faculdades foram responsáveis pela


formação não necessariamente de juristas, mas de pessoas que se destinariam a
trabalhar em cargos político-administrativos, o que levaria Wolkmer (1998, p. 98 –
102) a considerar que o período marcado por uma tensão entre um comportamento
patrimonialista herdado dos portugueses e a cultura jurídica liberal, teria também dado
início a uma falta de confiança no positivismo, já que na prática, a política funcionava
– assim como até hoje – por meio da troca de favores, frente a uma sociedade com
profundos traumas e desigualdades – os quase 400 anos de escravidão.

A conveniência do positivismo jurídico em solo nacional se deu muito mais


pela manutenção dos privilégios de uma elite diante das transformações educacionais,
econômicas e sociais do país. No Brasil, a lei sempre foi imposta de cima para baixo,
61

instituída pelos que chegam ao Poder. Na visão de Lyra Filho (1980, p. 6), o direito
positivado é a ótica exclusiva de uma classe dominadora que estabelece as leis, às
quais não pode ser reduzido o fenômeno como um todo em uma sociedade tão plural,
marcada pelo conflito de interesses de classes e grupos.

Em conferência realizada em 1935 na Faculdade de Direito de São Paulo


intitulada “Menos Doutrina, mais Análise” (A Época, p. 201-209), Gilberto Freyre
afirma a desnecessidade de doutrinadores vindos de fora ou de animadores de ideias,
tendo em vista que o ambiente da Faculdade é de uma inquietação criadora que
repugna qualquer tipo de conforto mental, pois estes competem muito mais para
interromper a renovação dos valores humanos. Seria preciso para o pesquisador, o
exercício de um ceticismo criador, que observe as peculiaridades do seu próprio
espaço.

Compreendendo que o Direito no seu funcionamento inevitavelmente


necessita da técnica, mas também tendo em vista que não está limitado às leis, a
análise da Ciência do Direito numa perspectiva não dogmática, provoca a observação
desta área tão vasta do conhecimento também a partir de formas sensíveis. A arte,
ainda que não esteja comprometida em expressar-se com a verdade, sendo também
ficcional, é atravessada e reflete as necessidades e inquietações do mundo a sua volta.
Conectada ao Direito, faz com que este transcenda o seu próprio isolamento técnico e
pedagógico, abrindo caminhos para sua humanização.

2.2 A CIÊNCIA DO DIREITO NUMA PERSPECTIVA NÃO DOGMÁTICA

A Ciência jurídica não é um saber absoluto em torno do fenômeno jurídico, é


um conhecimento resultante de uma construção teórica, não cabendo reduzir-se aos
textos normativos, mas reconhecendo a importância de outras dimensões desse saber.
O Direito ocidental, sob influência do Positivismo Jurídico e do pensamento europeu,
que considera a norma jurídica como o seu único objeto, pode enriquecer-se quando se
observa de outros olhares.
62

Embora seja inafastável que o Direito mantenha seu caráter positivo, guiado
pelo princípio da Segurança Jurídica, para não perder parte de sua essência, é desejável
que se abrace com outras esferas do conhecimento, já que o fenômeno pode ser notado
ou captado em outras vertentes da criação humana, inclusive na Literatura. O Direito é
um fenômeno social, ou seja, construído a partir do lugar social em que se encontra
determinado povo em determinado tempo.

Esta visão confere ao fato um caráter dinâmico, afastando-se da paralisia, do


aspecto estático do dogma. No pensamento de Villey (2007, p. 21-22), “o progresso
atual dos Direitos Humanos não deixa de implicar negação do positivismo legalista:
longe de receber sua autoridade dos textos positivos do Estado”, se inferindo na ideia
do “homem”. As leis apenas expressam seus direitos, enquanto que a interpretação tem
se tornado um caminho cada vez mais recorrente no mundo jurídico. Ora, o texto
normativo, por ser genérico, necessita ser interpretado para que seja aplicado ao caso
concreto.

Ainda que a interpretação no Brasil tenha se configurado como o poder de


manter os ideais e interesses da mesma elite que se perpetua no domínio econômico e
político, pensar na discussão de que o Direito não está limitado à letra da lei, abre
caminho para o reconhecimento da poiesis presente na área, possibilitando a sua
reinvenção a partir da dinâmica em que vive a sociedade e seus múltiplos contextos.

A ciência do Direito no que se refere à pesquisa adotou como foco, a norma


como “dever ser”, deixando um pouco de lado a perspectiva do “ser”. De acordo com
Tércio Sampaio Ferraz Junior (1980, p. 18), a expressão “ciência do Direito” surgiu no
século XIX, criada pelos alemães na Escola Histórica, que objetivavam dar caráter
científico aos seus estudos jurídicos. A pesquisa em Direito especializou-se no estudo
das normas jurídicas, de modo que, independente de qual seja o seu objeto, a pesquisa
jurídica busca apreendê-lo do ponto de vista do Direito, ou seja, interessa estudar as
leis e dispositivos legais referentes a situações ou condições específicas.
63

Essa visão foi estabelecida pela influência do Positivismo Jurídico, que


embasado no ceticismo5 e na vontade humana, fazia a separação entre fato e valor e
teve como principal expoente o jusfilósofo austríaco Hans Kelsen, que dedicou sua
vida à elaboração de uma teoria voltada para a elevação do Direito como uma ciência
consciente de sua especificidade e com objeto delimitado, aproximando o fenômeno da
exatidão.

Os defensores desse ponto de vista, inclusive, se inspiravam nas teorias da


física e da geometria para formular seus pensamentos, pautando-se pela objetividade e
pelo que pode ser observável. Para o positivismo jurídico, a norma jurídica independe
de outros aparelhos normativos.

O Jusnaturalismo havia estabelecido a natureza do Direito como sendo


normativa e se fundamentava na Razão. Para esta corrente do pensamento, seria
imprescindível relacionar os conceitos de Direito e Moral, já que a Razão poderia
identificar todos os sistemas normativos, sendo estes, frutos da relação entre Direito e
Moral.

O Positivismo Jurídico, antes de Kelsen, fundamentava-se na vontade


humana e trazia como objeto os fatos sociais e o comportamento humano em
sociedade. A norma jurídica, aqui, independeria de outros aparelhos normativos,
inclusive da Moral e, deste modo, para que o Direito alcançasse a condição de Ciência,
seria necessário considerar a sua autonomia em relação a outras esferas do
conhecimento.

Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, passou a aceitar a separação


entre fatos e valores, como herança do pensamento positivista, colocando que o Direito
não está interligado a Moral, buscando também a autonomia do Direito. Já no que diz
respeito ao objeto, o filósofo adotou um posicionamento jusnaturalista. A Ciência
jurídica, no pensamento kelseniano, não tinha como objeto os fatos e nem os valores,
mas sim as normas jurídicas. No entanto, há de se considerar que, para o

5
“Doutrina filosófica segundo a qual o espírito humano não pode atingir nenhuma certeza a respeito da
verdade”. Dicionário UNESP o português contemporâneo. [S.1.]: UNESP. 2004. P. 267.
64

jusnaturalismo, o Direito é um sistema normativo; enquanto que para Kelsen, o Direito


possui uma dimensão normativa.

Em sua obra Teoria Pura do Direito, discorre que:

Na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a


afirmação - menos evidente - de que são as normas jurídicas o objeto da ciência
jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas
jurídicas como pressuposto ou consequência, ou - por outras palavras - na medida
em que constitui conteúdo de normas jurídicas. Pelo que respeita à questão de saber
se as relações inter-humanas são objeto da ciência jurídica, importa dizer que elas
também só são objeto de um conhecimento jurídico enquanto relações jurídicas, isto
é, como relações que são constituídas através de normas jurídicas. A ciência jurídica
procura apreender o seu objeto “juridicamente”, isto é, do ponto de vista do Direito.
Apreender algo juridicamente não pode, porém, significar senão apreender algo
como Direito, o que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo de uma norma
jurídica, como determinado através de uma norma jurídica. (1998, p. 50)

Neste sentido, a Ciência do Direito teria como objeto de pesquisa


simplesmente a norma jurídica. Sobre as relações humanas, o autor põe que a ciência
jurídica visa apreendê-las juridicamente, ou seja, só são foco de estudo quando
sustentam conteúdo jurídico, quando podem ser analisadas dentro da perspectiva da
lei. Os fatos sociais seriam observados a partir de sua determinação nas normas
jurídicas.

Diferentemente do saber vulgar ou do senso comum, que faz uso da


linguagem cotidiana, “a ciência é um saber metodicamente fundado, demonstrado e
sistematizado” (DINIZ, 2009, p. 18), sendo essa sistematicidade a base do saber
científico, elaborado deliberadamente na consciência de seus fins e dos meios para se
chegar, fundamentando-se em comprovações. Nas lições de Maria Helena Diniz
(2009, p. 19):

A ciência é, portanto, uma ordem de constatações verdadeiras, logicamente


relacionadas entre si, apresentando a coerência interna do pensamento consigo
mesmo, com seu objeto e com as diversas operações implicadas na tarefa
cognoscitiva. O conhecimento científico pretende ser o saber coerente. O fato é que
cada noção que o integra possa encontrar seu lugar no sistema e se adequar
logicamente às demais é a prova de que seus enunciados são verdadeiros. Se houver
alguma incompatibilidade lógica entre as ideias de um mesmo saber científico,
65

duvidosas se tornam as referidas ideias, os fundamentos do sistema e até mesmo o


próprio sistema.

Neste sentido, a ciência seria o agrupamento de noções logicamente


interligadas com vistas a comprovar determinado fato. Na ausência de compatibilidade
lógica entre as ideias juntadas nesse saber, os argumentos, enunciados e fundamentos
se tornam duvidosos, comprometendo o sistema. O saber científico é justificado por
meio da sistematização dessas ideias.

Tercio Sampaio Ferraz Junior (2003, p. 88-91) assevera que costumam


confundir a técnica jurídica com a Ciência do Direito. A técnica é importante, dizendo
respeito à atividade jurisdicional em sentido amplo, porém não é a própria ciência. E
explica que esta se constitui como uma arquitetônica de modelos, subordinando-os,
tendo em vista a decidibilidade, que é uma questão aberta, um problema e não uma
decisão concreta.

Os problemas, então, se abrem para diversas possibilidades, muitas vezes


incabíveis, dando origem a teorias que se tornam doutrinas. O conjunto de doutrinas
passa a se transformar em Dogmática jurídica. Neste ponto, o problema de entender a
confusão entre técnica e ciência do Direito na argumentação de Tercio ocorre porque a
Ciência seguiria para um caminho de dogmatização, tecnização, o que retornaria à
confusão.

A dogmática jurídica, conforme coloca Warat (1985, p. 16) “se apresenta


como uma tentativa de construir uma sistemática do direito positivo, sem formular
nenhum juízo de valor sobre o mesmo”.

A adoção do Positivismo Jurídico de Kelsen, pensamento que prevaleceu


como norteador na construção da Ciência do Direito, ainda que respeite a sua
autonomia em relação a outras ciências, não exclui a possibilidade de tecer conexões.
Como observa o próprio, “quando esta doutrina é chamada de ‘teoria pura do Direito’,
pretende-se dizer com isso que ela está sendo conservada livre de elementos estranhos
66

ao método específico de uma ciência cujo único propósito é a cognição do Direito”


(1945, p. 28).

A Ciência Jurídica não nega sua conexão com outras disciplinas, apenas
busca evitar que haja uma mistura de metodologias diferentes que venha a apagar a
essência da Ciência Jurídica (KELSEN, 1998, p. 2). Assim, o Direito também pode se
interligar com outras áreas do conhecimento e da vida social, não de forma
metodológica, mas para fins de interpretação e estudo.

Por estar inserido dentro de um contexto social, o fenômeno jurídico possui


diversas faces, podendo relacionar diversas áreas, inclusive dentro do próprio Direito,
configurando um caráter interdisciplinar.

Embora a Ciência do Direito, em geral, se faça dogmática, estática, o que


podemos considerar é que o Direito, no geral, é justamente o contrário. O mundo
jurídico é dinâmico e se transforma continuamente conforme o tempo e o espaço onde
está inserido. Nesse ponto da discussão é que reside o problema. Grande parte dos
livros e manuais entende que a Ciência do Direito tem unicamente como objeto, a
norma jurídica. Em decorrência das transformações sociais, a ciência jurídica se
envolve de inexatidão. Ainda é possível considerar que a modificação de uma lei ou
um dispositivo não quer dizer que todo um sistema se modifica. São transformações
pontuais, compreendidas e legitimadas em certo espaço com o tempo.

Nos dizeres de Angel La Torre (1978, p. 152):

Um jurista analisa objetivamente leis, ainda que se esforce para que o Direito de seu
país se ajuste aos conceitos éticos mais perfeitos, tal como ele os concebe. A atitude
positivista não pressupõe e tampouco nega a importância dos estudos da sociologia
jurídica, isto é, das indagações sobre a atuação do Direito na realidade social, mas
simplesmente afasta da ciência jurídica e da análise das normas este tipo de
consideração.

O Direito, pelo fato de estar interligado aos fatos sociais, absorve as


transformações ocorridas na sociedade e, assim, possui um caráter dinâmico e não
67

absoluto. A Ciência não trabalha com certezas absolutas, mas com fundamentos
lógicos, sendo resultado de uma construção teórica, que pode ser alterada na
observância de constatações diferentes das previstas anteriormente.

A importância da metodologia para a ciência advém por ser através dela que
se traça o caminho para a fundamentação e comprovação do que se enuncia, para a
validação do saber científico. E a escolha do método de pesquisa depende do objeto e
do que se objetiva. O método fixa as bases que direcionam ao conhecimento do objeto.
Maria Helena Diniz (2009, p. 21) observa que “esse condicionamento não implica
marcos definitivos, dentro dos quais se deve desenvolver o labor científico”, ou seja, a
ciência não é um conhecimento absoluto sobre seu objeto, mas uma construção
investigativa na qual esse objeto vai sendo conhecido.

Além disso, no último capítulo de Teoria Pura do Direito, Kelsen aborda


sobre a questão da interpretação, como um trabalho a ser feito tanto pelo operador do
Direito, quanto pelo Cientista do Direito. Sobre a interpretação feita pelos órgãos
jurídicos, Kelsen (1998, p. 247) reflete que:

Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do


objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a
fixação da moldura que representa o Direito a interpretar é, consequentemente, o
conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem.

Deste modo, não há qualquer critério que defina qual deve ser a
interpretação correta para o Direito Positivo. O que há é uma moldura, dentro da qual
cabem várias significações e soluções possíveis, de igual valor, embora apenas uma se
torna positivada. Trata-se de um trabalho de intelecto, de compreensão, que se
direciona para uma escolha do posicionamento que seja o mais correto diante de todos
os outros que cabem na moldura.

Hans Kelsen (1998, p. 249) ainda coloca que essa questão não é problema da
Ciência do Direito, mas de uma Política de Direito, afirmando que “a tarefa que
consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o único ato
68

administrativo correto é, no essencial, idêntica à tarefa de quem se proponha, nos


quadros da Constituição, criar as únicas leis justas (certas)”.

Já sobre a interpretação jurídico-científica, Kelsen defende que esta

[...] não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma
norma jurídica. Como conhecimento do seu objeto, ela não pode tomar qualquer
decisão entre as possibilidades por si mesmas reveladas, mas tem de deixar tal
decisão ao órgão que, segundo a ordem jurídica, é competente para aplicar o Direito.
(Kelsen, 1998, p. 249)

Ou seja, não cabe à Ciência do Direito fazer exposição sobre a ficção de que
uma norma permite apenas uma interpretação, a ‘correta’. Essa tarefa, que tem caráter
político, fica a cargo dos órgãos jurídicos. Nessa discussão sobre interpretação, o que
se quer aqui apontar é que o próprio Kelsen, cria um processo de legitimação do que
discute. Porém, ao tratar da moldura dentro da qual diversas interpretações são
possíveis, abre o espaço para o questionamento de sua própria Teoria.

O Direito pode ser observado muito além do quadro normativo. Dentro da


lei não cabe tudo o que se pode discutir em torno da seara jurídica. Por brotar no seio
do cotidiano, pode ser observado em todas as suas relações, desde as relações
familiares até as mais altas esferas de poder. Ainda que a lei seja afirmação de direitos,
a mesma não diz o que é, mas o que deveria ser. Neste sentido, é importante frisar a
colocação de Marcílio França Filho (2016, p. 92), para quem

A totalidade do Direito não está contida na lei, porque a lei, simplesmente, não
comporta todo o Direito. O art. 20, §3º da constituição alemã, por exemplo, consagra
este mandamento fundamental da juridicidade ao estabelecer que “os Poderes
executivo e Judiciário obedecem à Lei e ao Direito”, reconhece, registra e admite
que há um direito que ultrapassa a letra da lei e que é possível encontrar o Direito
fora (aquém e além) dos limites da norma jurídica positiva
69

Assim, limitar o estudo jurídico às normas escritas é negar outras


possibilidades de se observar o fenômeno e frear seu próprio processo de evolução e
busca por melhor efetividade.

De acordo com o ponto de vista de Marcos Nobre (2005, p. 24 - 29), a


pesquisa em Direito em 20 e 40 anos melhorou, no entanto, ainda está fadada ao
atraso, em decorrência de seu isolamento em relação às outras disciplinas das Ciências
Humanas e Sociais e certa confusão entre a prática jurídica e a prática acadêmica.
Desde a graduação há uma supervalorização do tecnicismo, sendo necessária uma
renovação dos cursos, da concepção de pesquisa jurídica. O que impede essa
renovação é justamente a confusão entre a prática do profissional e a elaboração
teórica, como observada por Tercio Sampaio Ferreira Júnior (2003, p. 88-91).

Sobre a conceituação de Empiria, John Locke (1612-1704) de modo sublime


em sua obra Ensaios sobre o entendimento Humano expôs, “Se, pois, se pergunta:
Quando é que o homem começa a ter ideias?, eu creio que a verdadeira resposta que se
possa dar é esta: Desde que tenha alguma sensação.” (1729, Liv. U, cap. I, 24). A
experiência seria o ponto de partida do conhecimento. Na esfera jurídica, se sustenta
desde os romanos que o direito emana dos fatos – ex fator oritur jus. O Direito
resultaria de um conjunto de fatos interligados por nexos de causalidade (REALE,
2002, p. 92).

O real nasce com o objeto. No ponto de vista de Eginardo Pires (1971, p.


168), em seu trabalho A Teoria da Produção dos Conhecimentos:

Em primeiro lugar, ele poderia designar uma forma de prática teórica que permanece
enclausurada no plano do visível, ou seja, do real tal como ele está já identificado e
ordenado no discurso ideológico. Em segundo lugar, empirismo significa uma teoria
do conhecimento, a teoria desta prática teórica que pensa que as determinações que
ela transporta para o seu discurso são recolhidas do real mesmo, do próprio objeto
empírico [...]

Neste sentido, a principal característica da empiria é que o conhecimento


nasce do objeto, que se apresenta como é no real, cabendo ao sujeito saber ver e
70

descrever como ele é. É no contato do sujeito (racional) com o objeto (real), ou seja,
no dado empírico, que se verifica a constatação e, por tanto, o conhecimento, como
também observa Marques Neto (2001, p. 13). Teria a pesquisa empírica o papel
fundamental de “reduzir todo o conteúdo do conhecimento a determinações
observáveis” (JAPIASSU, 1975, p. 87).

Ainda de acordo com Japiassu (1975, p. 89-92), quatro são os princípios do


empirismo. O primeiro diz que não é possível a existência de uma intuição intelectual
pura, estando a experiência dependente da sensibilidade. O segundo diz que a
experiência nos leva a conhecer o sensível e que a lógica permite sistematizar
determinado saber. O terceiro considera que a percepção é que atribui significado ao
que é captado pela sensibilidade. O quarto assevera que o juízo deve ser comprovado
pela experiência, o objeto só é válido se for comprovável empiricamente.

A pesquisa empírica, diferentemente da visão de Ciência do Direito focada


na norma, ou seja, no que “deve ser”, é essencialmente coletiva e interdisciplinar e tem
como objeto o “ser”. Deste modo, outras ciências sociais, a exemplo da economia e da
sociologia, buscam estudar a norma jurídica enquanto um elemento dinâmico e
concreto, analisando o contexto social em que a norma opera.

De acordo com Paulo Eduardo Alves da Silva (2013, p. 17), a pesquisa


empírica no Brasil é uma realidade que cresce diariamente e:

[...] é especialmente relevante, pois na medida em que se reivindica para a ciência


jurídica maior rigor metodológico e interdisciplinaridade, e que a dogmática jurídica
desça da torre de marfim na qual ela se isola muitas vezes, a pesquisa empírica passa
a ter uma posição de destaque, justamente porque permite o contato com
pesquisadores de outras áreas e a renovação da dogmática jurídica; o fato de lidar
com a realidade cria sensibilidade para a dogmática jurídica.

Deste modo, quando o Direito se abre para se relacionar com outras áreas, se
permite conhecer melhor a realidade num processo de renovação da dogmática
jurídica. Interessante é a observação de Carlos Alberto Salles em debate moderado por
Paulo Eduardo Alves da Silva sobre a pesquisa empírica em Direito. A respeito do
71

impacto da empiria na dogmática, Salles (2013, p. 29) coloca que o método de


pesquisa é uma caixa de pandora:

A caixa de Pandora, na verdade, está inserida na narrativa acerca do titã Epimeteu.


Após a condenação do seu irmão, Prometeu, que roubara o fogo dos Deuses,
Epimeteu acaba ficando muito solitário na terra e pede aos deuses gregos uma
companheira. De forma paralela à história bíblica de Adão e Eva, os deuses atendem
seu pedido enviando-lhe Pandora, cujo nome significa “aquela cheia dos dons’’.
Eles viveram felizes, mas um dia Pandora resolveu mexer em uma caixa que
Epimeteu lhe dissera para jamais abrir. [...] Um dia Pandora ouviu uma voz vinda da
tal caixa. Curiosa, não resistiu deixar de conferir o que era. Abriu uma pequena
fresta, o suficiente para debandarem de dentro da caixa todos os males que o marido
havia confinado ali. Epimeteu explicou, depois, que tinha recebido aquela caixa dos
deuses com os dons para distribuir entre as várias criaturas vivas. No entanto, ele
deixara naquela caixa algumas coisas que achava que não serviam para ninguém.
Eram as maldades, as doenças, os sentimentos negativos. Quando Pandora abriu a
caixa tudo aquilo se soltou.

Para a dogmática jurídica, a pesquisa empírica é a Pandora, que abre a caixa de


todos os males.

De acordo com esta linha de pensamento, a dogmática trabalha com o que é


estável, preciso e certo. Porém, nem sempre essa exatidão é permitida pela ciência dos
fatos, de modo que a instabilidade e a contingência da realidade incomodam o pensar
do jurista, causando um desconserto de seu discurso, que se caracteriza pela imputação
de valor; do sistema jurídico, interferindo na sistemática que o jurista necessita,
demonstrando que não funciona como deveria; e uma desestruturação também no
funcionamento da dogmática jurídica. Ainda assim, afirma Miguel Reale (2002, p.
578) que é do contraste entre ‘ser’ e ‘dever ser’, entre o abstrato e o concreto, entre a
realidade e o modelo, que reside toda a vida do Direito.

A construção do saber jurídico não é limitado ao conhecimento da norma


jurídica. O Direito, por estar interligado a quase tudo na vida social, exige também um
conhecimento global, que traga de outras vertentes do conhecimento e dos fatos, as
informações que a mera técnica não traz, nem os manuais. Colocar o mundo do Direito
como isolado de outros mundos é limitar suas possibilidades de interpretação e de
conhecer as razões de sua própria existência. Aliás, a própria lei para surgir, está
envolta de toda uma estrutura e contexto histórico e social.
72

Ocorre que para efeitos metodológicos, para que a Ciência do Direito não
perca seu próprio caráter, busca não absorver para si métodos provenientes de outras
áreas do conhecimento. O objeto da Ciência do Direito é a norma jurídica. Nesta
discussão também nos cabe a reflexão de que se a ciência trabalha com fatos
comprovados e tendo a Ciência jurídica a responsabilidade também de observar o
comportamento humano em sociedade, cabe ao pesquisador não se limitar a uma visão
dogmática. Há um paradoxo. O próprio positivismo jurídico, deste modo, justificaria
também a necessidade de libertar o Direito do seu mundo fechado, aproximando-o da
comunidade.

Kelsen adotou uma teoria intermediária, com aspectos do jusnaturalismo


assim como do juspositivismo. Por isso considerou que a dimensão normativa é uma
das que o direito possui. Esta dimensão, porém, por si só não abraça todo o Direito e
nem sempre aponta para os fatos, ou seja, para aquilo que é. Sendo o Direito um
mundo autônomo, que para tornar-se Ciência procurou afastar-se de outras vias do
mundo científico, delimitando seu objeto nas normas jurídicas e não mais nos fatos e
nos valores, como teremos um Direito mais próximo da realidade social? Parece que
colocar o Direito Positivo como Direito Real é jogo de linguagem de quem cria as leis
e seus interesses.

A pesquisa empírica tem o poder de observar, com sensibilidade, o que as


generalizações científicas não observam. A empiria desconcerta grande parte dos
juristas, pois observa os limites do real diante do isolamento da dogmática, quebrando
a conveniência de uma visão estática do Direito, ao trabalhar e tatear fatos com a
experiência. A literatura, porém, desempenha um importante papel, até mesmo
superando o da empiria, como observa Carvalho Filho (1959, p. 66):

a uma obra literária não se há de pedir, evidentemente, uma sistematização jurídica


ou criminológica. Não é menos certo, porém, que, lidando com a psicologia
criminal, a literatura tem alcançado, em incontáveis ocasiões, tal maestria, e, mesmo,
superioridade sobre as ciências empíricas.
73

Resta reafirmar que a importância de se pensar e estudar o Direito além do


dogma, como um modo de melhorá-lo, produzindo decisões que sejam mais
compatíveis com a vida real. Juvenal Savian Filho (2007, p. 43) aponta para uma
reestruturação da ética. Para ele “a ética fundamentada apenas na ideia iluminista de
dever não é suficiente para atender as necessidades do humano”. Para isso, a saída
seria uma desconstrução desse padrão ético, abrindo-se para refletir diversas formas de
apreender a experiência humana. Uma dessas formas é a literatura, que permite ao
direito exercitar a alteridade, compreender outros pontos de vista, pois a complexidade
da vida e do mundo, a lei não tem capacidade de esgotar.
74

3. CONEXÕES ENTRE DIREITO & LITERATURA

Anteriormente, a Ciência do Direito considerava-se limitada ao estudo da


norma propriamente dita, àquilo que estava definido nos textos legais, com
fundamento no princípio da Segurança Jurídica. Tratava-se do positivismo jurídico,
proposto pelo jurista austríaco Hans Kelsen, aqui já debatido, que tinha como objetivo
estudar o fenômeno jurídico, tendo por base as normas positivas, impostas pelas
autoridades.

É preciso ponderar ainda sobre Positivismo Jurídico, que este ponto de vista
fora bastante mal interpretado durante os tempos, atribuindo a esse discurso o suposto
afastamento entre o Direito e a Moral. A realidade, no entanto, é que a partir do século
XX, o Direito passou a ganhar outros enfoques, conectando-se com outras áreas do
conhecimento, tais como a filosofia, a sociologia, a psicologia e a literatura. Era o
início do pós-positivismo, que para Barroso (2006, p. 27-28), não surgiu com a ânsia
de descontruir a visão anteriormente fundada, mas trazendo uma superação do
conhecimento convencional.

Após refletir sobre a importância de uma visão não dogmática do Direito que
o aproxime de outras áreas da vida social, visando aprimorar o caráter interpretativo do
fenômeno jurídico e gerando outras possibilidades conhecê-lo, esta pesquisa envereda
pelo entendimento do campo Direito & Literatura (Law & Literature), surgido nos
Estados Unidos em 1970 e tendo se difundido também na Europa. No Brasil, esta
vertente é mais recente, não possuindo ainda uma Teoria que faça a junção dos dois
fenômenos. Para tecer essas aproximações, este texto se baseia na literatura
internacional sobre o assunto, bem como em pesquisas já realizadas no Brasil.

Entende-se que este campo de estudo possui três vertentes, sendo estas:
Direito ‘da’ Literatura; Direito ‘como’ Literatura e Direito ‘na’ Literatura, que é por
onde se orienta esta dissertação, buscando na Literatura em Cordel, especificamente na
obra de Leandro Gomes de Barros, aspectos relacionados ao mundo do Direito.
75

Considera-se que a obra de Leandro Gomes de Barros, no pensamento de


Ariano Suassuna, configura-se como “arte participante”, possuindo caráter de uma arte
engajada, mantendo o compromisso com uma transformação, uma causa social,
refletindo sobre as necessidades de seu tempo e espaço, denunciando problemas
sociais e criticando os governantes por suas irresponsabilidades com os anseios do
povo.

3.1 MOVIMENTO DIREITO & LITERATURA

Diante da abertura que almeja o mundo do Direito atual, observa-se que este
se encontra inteiramente interligado às transformações ocorridas na sociedade,
adaptando-se às suas necessidades no tempo e no espaço, assim como também outras
esferas da cultura, como a culinária, a música e a literatura. Tanto o Direito como a
expressão artística são fenômenos atravessados pelas circunstâncias que envolvem e
direcionam a construção do mundo e são reflexo do ser humano que os cria.

Com essa visão, Carpeaux (1992, p. 180-181), em sua obra História da


Literatura Ocidental, colocava a literatura como sendo a “expressão total da natureza
humana”, revelando que o “homem antigo era incapaz de distinguir, na obra de arte,
entre a Natureza e a representação da Natureza; viu a Natureza sempre através da
arte”, referindo-se à antiguidade clássica. A arte sempre esteve atrelada à religiosidade
e à mitologia, de modo que, ainda que se tratasse de criações poéticas, possuía a
sensibilidade de captar a natureza humana. E essa sensibilidade é atemporal.

Seria a arte um espelho da realidade, com capacidade de gerar reflexões em


torno dos mecanismos de controle da sociedade, questionando o que é justo diante das
necessidades comuns. Santos (1966, p. 13), ao refletir sobre o papel da arte na
sensibilidade humana diz que a manifestação artística é uma “superestimação da vida”
e coloca o artista como tendo o papel do espelho, através do qual a imagem da
realidade é refletida com um pouco de si, de sua personalidade e temperamento.
76

Talvez seja por esse motivo que Platão, em A República, dedicou o Livro X
para tratar da expulsão dos poetas da cidade, por considerá-los perigosos para os
trilhos que levariam a uma sociedade perfeita, já que para ele, o papel dos poetas seria
imitar o verdadeiro conhecimento, trazendo nessa arte paradoxos quando misturavam
o bem e o mal e questionavam a justiça, motivo pelo qual a poesia deveria ser
censurada em nome do Direito.

A conexão entre o Direito, a Literatura e a possibilidade desta influenciar na


perspectiva de mundo e comportamento das pessoas ocorre pelo simples fato de que
tais áreas estão envoltas de toda uma conjuntura política e cultural que as levam a
manifestar-se de acordo com suas necessidades. O mundo do Direito se vê na
necessidade de adaptar-se às novas configurações, assim como também a Literatura,
que passa a compreender termos, conceitos e temas que inquietam o artista e revelam o
sentimento da realidade.

Embora a absorção e compreensão de determinada obra literária sejam


relativas, tendo em vista a sua linguagem, que está direcionada para determinado
público, como é o caso da literatura em cordel, o seu poder comunicativo sensibiliza as
pessoas que se sentem representadas nas suas páginas. Essa sensibilidade é capaz de
provocar transformações no espaço social, por também mudar a visão de mundo das
pessoas que de alguma forma tem acesso.

Além de influenciar o comportamento humano, em consequência pode


colaborar com uma transformação também nas leis, já que o Direito tem o costume
como uma das fontes formais impróprias; costume enquanto prática e sentimento
coletivo de obrigatoriedade que estabelece a visão de certo e errado e
consequentemente e involuntariamente cria o Direito.

Tercio Sampaio Ferraz Junior (2003, p. 242) ensina que:

[...] o costume, como fonte das normas consuetudinárias, possui em sua estrutura,
um elemento substancial - o uso reiterado no tempo - e um elemento relacional - o
processo de institucionalização que explica a formação da convicção da
obrigatoriedade e que se explicita em procedimento, rituais ou silêncios
presumidamente aprovadores.
77

Refletindo em torno desse sentimento, entre 1751 e 1756, o pensador


iluminista francês Diderot, no verbete Direito Natural, relacionava a questão do
Direito Natural com o fator emocional. O reconhecimento do Direito estaria
fortemente ligado a uma relação de empatia que se gerava a partir da repercussão de
um sentimento interior de igualdade entre os seres humanos. Esse sentimento estaria
presente tanto no filósofo, quanto naquele que não havia feito nenhuma reflexão.

Essa observação foi salientada por Lynn Hunt, em sua obra “A Invenção dos
Direitos Humanos”, que sob influência deste pensamento, estende também aos
Direitos Humanos, afirmando que sua autoevidência se encontra na repercussão de um
sentimento interior em cada indivíduo, gerando uma relação de empatia.

Hunt (2009, p. 32), tendo esse pensamento como base, é ousada ao defender
que a literatura, especialmente o romance epistolar6 do século XVIII, teria contribuído
para o surgimento da noção de Direitos Humanos, a sua autoevidência. Esses
romances teriam provocado mudanças na mentalidade de indivíduos, que por sua vez
teriam dado vazão a novos conceitos e formas de organização social e política.

A relação entre Direito e Literatura, embora recente no Brasil, tem seus


primórdios no início do século XX, nos Estados Unidos, com a publicação de um
artigo intitulado “A List of One Hundred Legal Novels”, em 1922, de autoria de John
Henry Wigmore, que traçou uma relação de cem obras com temas jurídicos de diversas
áreas para serem estudadas por advogados, pensando que estes muito podiam se
beneficiar em sua prática com o que poderiam apreender das obras7.

Wigmore (1922, p. 26) colocou a disposição dos estudantes, obras literárias


de temática jurídica que lhes oferecessem uma base de melhor compreensão das
6
Romances epistolares diz respeito a obras construídas com uma técnica que enreda uma história por meio de
cartas, conferindo-lhes um realismo mais eficaz. São exemplos: Pamela (1740), de Samuel Richardson; Clarissa
(1747-8), também de Samuel Richardson; e Júlia ou A Nova Heloísa (1761), de Jean-Jacques Rousseau; obras
citadas por Lynn Hunt em seu livro.
7
Entre as obras citadas por Wigmore estão Oliver Twist, Os Cadernos de Pickwick, A Loja de Antiguidades e
Barnaby Rudge, de Charles Dickens; O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas; Adam Bede, de George
Eliote; Tom Jones, de Henry Fielding; A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne; e The Heart of Midlothian e
Ivanhoé, de Walter Scott.
78

instituições e dos fatos sociais e conflitos. Visava-se aprimorar a formação dos juristas
que buscavam na literatura maior clareza da realidade da sociedade. E fez, inclusive,
uma divisão em grupos específicos a partir de critérios de classificação das obras.
Dividiu em quatro categorias:

(A) Novels in which some trial scene is described - perhaps including a skilful
cross-examination;

(B) Novels in which the typical traits of a lawyer or judge, or the ways of
professional life, are portrayed;

(C) Novels in which the methods of law in the prosecution and punishment of crime
are delineated; and

(D) Novels in which some point of law, affecting the rights or the conduct of the
personages, enters into the plot8.

Em 1925, o juiz Benjamin Cardozo escreveu o ensaio “Law and Literature”,


publicado posteriormente também em 1939 no volume 48 da Yale Law Journal, sendo
introduzido por J. M. Landis no ensaio que discute acerca da linguagem jurídica, da
arte de escrever dos juristas no exercício da profissão, que lhes confere precisão nos
argumentos através de termos específicos, dando ênfase ao pensamento de quem
escreve. A crítica feita à linguagem jurídica se encontra no uso de significados
próprios da técnica em atividades não-técnicas.

Com prioridade, no decorrer do ensaio adentra na esfera da técnica da


opinião judicial, dividindo-a em seis tipos, o magisterial ou imperativo; o lacônico ou
sentencioso; conversacional ou familiar; refinado ou artificial, “cheirando a lâmpada,
chegando às vezes à preciosidade ou ao eufemismo”; o demonstrativo ou persuasivo; e
aglutinativo, assim chamado por ter a tesoura e a pasta como seus emblemas9. Em

8
(A) Romances em que é descrita alguma cena de julgamento - talvez incluindo um hábil interrogatório; (B)
Romances em que são retratados os traços típicos de um advogado ou juiz, ou os modos de vida profissional; (C)
Romances em que os métodos da lei na acusação e punição do crime são delineados; e (D) Romances em que
alguma questão de direito, afetando os direitos ou a conduta das personagens, entra dentro na trama. [Tradução
nossa]8 (WIGMORE, 1922, p. 26).
9
“Classification must be provisional, for forms run into one another. As I search the archives of my memory, I
seem to discern six types or methods which divide themselves from one another with measurable distinctness.
There is the type magisterial or imperative; the type laconic or sententious; the type conversational or homely;
the type refined or artificial, smelling of the lamp, verging at times upon preciosity or euphuism; the type
79

suma, o texto de Cardozo discute onde a literatura se encontra com a lei, visando
encaminhar o leitor para empregar a linguagem de forma econômica e suficiente para
transmitir suas colocações no exercício da jurisdição, observando que a grande virtude
de um juiz é a clareza de suas ideias.

Nos anos 70, o início do período chamado pós-positivismo deu ao Direito a


possibilidade de ser observado a partir de diversas perspectivas. O debate teórico do
movimento começou com a publicação da obra “The Legal Imagination”, de James
Boyd White, de 1973. Este livro faz duas abordagens a partir das quais, para o autor,
se pode debruçar sobre o assunto e veio abrir o caminho para debates vindouros e
estratégias em torno do movimento Law and Literature.

A primeira abordagem teria um caráter pedagógico, observando a


importância da inserção da literatura no ensino jurídico. Tendo como direção os
estudantes de cursos de Direito, White teve como intenção gerar uma reflexão sobre a
linguagem jurídica em seu sentido amplo, a escrita, a atuação, a narrativa e o modo de
pensar do profissional. De acordo com o jurista "ao fazer essas perguntas sobre ti
mesmo, este curso adota como tema tua própria vida intelectual no direito" (WHITE,
1985, p. 21).

Esse efeito ocorreria pela capacidade da literatura de oferecer variados


pontos de observação sobre determinado caso, além de ser fonte de diversos
conhecimentos não adquiridos nos manuais de direito, na lei ou nos tratados. A relação
da educação jurídica com a literatura levaria os estudantes a dilatarem sua consciência
em torno da ideia de justiça e dos questionamentos inerentes ao exercício profissional;
nas obras literárias, os juristas encontrariam o que não encontram nas limitações da
esfera jurídica.

Uma segunda abordagem envereda pelo estudo da linguagem enquanto um


ponto de intersecção entre os fenômenos jurídico e literário. Aqui seriam evidenciados
os pontos comuns, especialmente a condição de que as duas áreas atuam com a
linguagem, refletem sua aplicação na perspectiva de seus interesses e técnicas.

demonstrative or persuasive; and finally the type tonsorial or agglutinative, so called from the shears and the
pastepot which are its implements and emblem.” J. M. LANDIS. LAW AND LITERATURE, 48 Yale L.J.
(1939). Disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/ylj/vol48/iss3/9
80

Grande parte das obras de James Boyd White foi dedicada a pesquisar a
relação entre Direito e Literatura. No artigo “Law and Literature: No manifesto”,
contido no livro “From Expectation to Experience – essays on law and legal
education”, que teve como foco um ponto de vista mais pedagógico, o jurista defende
que, ainda que seja a literatura uma expressão artística, possui poder de ampliar a visão
de mundo do jurista:

It is not that literature has nothing to teach us about the world or about the analysis
of texts, but that it teaches in a different way: it expands one‟s sympathy, it
complicates one‟s sense of oneself and the world, it humiliates the instrumentally
calculating forms of reason so dominant in our culture (by demonstrating their
dependence on other forms of thought and expression), and the like. […] Literature
is art, and its form is essential to its meaning. What it teaches us is indeed about the
world, but it is also about ourselves – our minds and languages – and it is not
translatable into propositions of moral and social truth. (WHITE, 2000, p. 55)10

Em seu texto, White ressalta a relevância de se captar a literatura também


como juristas, considerando que a arte, por sua sensibilidade e liberdade, torna visível
não só o mundo a nossa volta, como também a forma como nos comunicamos. A arte
abre um caminho de compreensão que supera as formalidades determinadas pela razão
predominante. Para além do fator estético, a arte também teria sua importância
política. (WHITE, 2000, p. 61).

Além dessa consideração, as palavras de White fazem notar que a relevância


desse estudo é transmitir uma concepção do direito que foge de seu isolamento e
abraça outros entendimentos de nossa própria vivência. Esse posicionamento também
é compartilhado por Germano Schwartz (2006, p. 15) ao avaliar que:

A conexão existente entre Direito e Literatura tem por objetivo resgatar, se ainda há,
o senso de um tempo em que a justiça era poética, quando os debates acadêmicos e
sociais se desenvolviam em um ambiente de paixão, hoje abandonado pela crescente
burocratização do papel desempenhado pelos pesquisadores em nossas
Universidades e pelos operadores do Direito na práxis jurídica.

10
Não é que a literatura nada tenha para nos ensinar sobre o mundo ou sobre a análise de textos, mas que ensina
de um modo diferente: amplia a simpatia, complica o sentido de si e do mundo, humilha as formas de razão
instrumentalmente calculadas tão dominantes em nossa cultura (demonstrando sua dependência de outras formas
de pensamento e expressão) e coisas semelhantes. (…) A literatura é arte e sua forma é essencial para o seu
significado. O que nos ensina é, na verdade, sobre o mundo, mas também sobre nós mesmos - nossas mentes e
linguagens - e não se traduz em proposições de verdade moral e social. (WHITE, 2000, p. 55) [Tradução nossa]
81

É possível observar já de forma clara na obra a presença da distinção entre


“Direito na Literatura” e “Direito como Literatura”, que em 1988 foi debatida por
Robert Weisberg em um trabalho intitulado “The Law-Literature Enterprise”
publicado no Yale Journal of Law and the Humanities; sendo a primeira vertente o
estudo de termas jurídicos presentes na ficção e tendo como antecedente primeiro
Wigmore e a lista de romances que o mesmo publicou.

Aliás, Weisberg, antes dessa obra, em 1976 publicou o artigo "Wigmore's


'Legal Novels' revisited: New Resources for the expansive Lawyer" através da
Northwestern University Law Review, fazendo uma revisita a lista de romances de
Wigmore, reafirmando a categorização já proposta, bem como acrescentando novos
recursos:

(A) Works in which a full legal procedure is depicted, sometimes exclusively a "trial
scene," but just as frequently the preliminary investigations leading to the trial.
(B) Works in which, even in the absence of a formal legal process, a lawyer is a
central figure in the plot or story, frequently but not always acting as the actual
protagonist.
(C) Works in which a specific body of laws, often a single statute or system of
procedures, becomes an organizing structural principle.
(D) Works in which, in an otherwise essentially nonlegal framework, the
relationship of law, justice and the individual becomes a central thematic issue.
(WEISBERG, 1976, p. 17)11

Já a segunda vertente, Direito ‘como’ Literatura, adentra na pesquisa da


estilística e da gramática em textos de lei, decisões judiciais e tratados como obras
literárias (WEISBERG, 1988, p. 1). Esse segmento tem como precursor o juiz
Benjamin Cardozo, já discutido neste trabalho, que antes de Terry Eagleton, já
defendia o direito enquanto atividade literária com estética e significados próprios.

11
(A) Trabalhos em que um procedimento legal completo é descrito, às vezes exclusivamente uma "cena de
julgamento", mas com a mesma frequência as investigações preliminares que levam ao julgamento. (B) Obras
em que, mesmo na ausência de um processo legal formal, um advogado é uma figura central na trama ou na
história, frequentemente, mas nem sempre agindo como o protagonista real. (C) Trabalhos nos quais um corpo
específico de leis, frequentemente um único estatuto ou sistema de procedimentos, se torna um princípio
estrutural organizador. (D) Trabalhos nos quais, em uma estrutura essencialmente não-legal, a relação entre lei,
justiça e indivíduo se torna uma questão temática central. [tradução nossa]11 (WEISBERG, 1976, p. 17)
82

A literatura, deste modo, não teria como papel responder a questões que
competem unicamente ao mundo do Direito e nem estabelecer sobre como os juristas
devem pensar ou como os advogados devem proceder na resolução de conflitos. Para
White (2000, p. 72), “Literature and law are both about reason and emotion, politics
and aesthetics; they both promise to integrate what that question12 falsely separates,
and to do so by drawing attention to what is at stake whenever one person writes or
talks to another” 13. (WHITE, 2000, p. 72)

Eagleton (1997, p. 16), tratando da definição de Literatura, reconhece a não


existência de uma essência e considera que a mesma pode trazer na linguagem certa
‘estranheza’, transcendendo a ideia do ‘belo’, com a possibilidade também de, a título
de estética, estender, reduzir, simplificar, rebuscar, formar imagens etc. Para o
estudioso inglês, o entendimento de valores guarda muita relação com a Literatura.
Para ele, essa compreensão direciona a abandonar a ideia de que textos literários são
imutáveis e eternos e observa:

A dedução, feita a partir da definição de literatura como uma escrita altamente


valorativa, de que ela não constitui uma entidade estável, resulta do fato de serem
notoriamente variáveis os juízos de valor (...). Assim como uma obra pode ser
considerada como filosofia num século, e como literatura no século seguinte, ou
vice-versa, também pode variar o conceito do público sobre o tipo de escrita
considerado como digno de valor (...). Não existe uma obra ou uma tradição que seja
valiosa em si, a despeito do que se tenha dito, ou que venha a dizer sobre isso.
“Valor” é um termo transitivo: significa tudo aquilo que é considerado como valioso
por certas pessoas em situações específicas, de acordo com critérios específicos e à
luz de determinados objetivos. (EAGLETON, 1997, p. 17).

Ainda de acordo com o Eagleton (1997, p. 19), “todas as obras literárias são
reescritas, mesmo que inconscientemente pelas sociedades que as lêem”. Neste ponto é
onde se pode reconhecer a atemporalidade das obras pela capacidade de ganhar novas
12
A questão é sobre o que a literatura poderia dizer aos juristas, tendo em vista que se trata da expressão da
sensibilidade e percepções individuais, relacionada a critérios de estética, deferentemente do Direito que está
relacionado a critérios de racionalidade. “How can literature have anything to say to lawyers when literature is
inherently about the expression of individual feelings and perceptions, to be tested by the criteria of authenticity
and aesthetics, while law is about the exercise of political power, to be tested by the criteria of rationality and
justice?” (WHITE, 2000, p. 72)
13
“Literatura e Direito estão ambos sobre razão e emoção, política e estética; ambos prometem integrar o que
essa questão falsamente separa, chamando a atenção para o que está em jogo sempre que uma pessoa escreve ou
fala com outra” [Tradução nossa].
83

interpretações pelas sociedades que as acessam, colhendo informações necessárias a


partir de seus interesses; de modo que em um determinado momento uma obra pode
ser reconhecida como literatura e em outro tempo poderia ser reconhecida por seu
valor filosófico, o que independe da intenção do seu autor. Os juízos de valor teriam
estreita relação com as ideologias sociais.

Eagleton (2003, p. 11) também observa que:

A literatura é um discurso “não-pragmático”, ela não tem nenhuma finalidade


prática imediata, referindo-se apenas a um estado geral de coisas. Em grande parte
daquilo que é classificado como literatura, o valor verídico e a relevância prática do
que é dito é considerado importante para o efeito geral.

Deste modo, a definição de literatura estaria muito mais conectada com


aquilo que ela poderia gerar como efeito em determinado lugar e contexto histórico;
dependeria do olhar de quem lê e interpreta e não da obra em si. Em palavras mais
sintéticas, a arte não é o que ela é, mas o que ela provoca no seu meio. A acepção de
literatura dependeria não da leitura em si, mas da forma como alguém decide ler.

O Direito, assim, também se inclui na concepção de literatura. A depender


de como for lido, também pode ser literário. Nesse caso, textos legais seriam
observados com propósito hermenêutico, sob a ótica de técnicas literárias. A visão do
fenômeno neste caso superaria o seu conceito romântico, que coloca o literário apenas
como o que é fruto da imaginação. Os textos jurídicos, por requererem elementos
como concisão, interpretação, retórica e narrativa, seriam vistos também como
atividade literária. (BINDER; WEISEBERG, 2000, p. 9).

A arte, por sua capacidade de fazer pensar a realidade, está além de toda
verdade que se pregue absoluta e de todo sistema imposto, partindo da sua força
estética e experimental. Por ter o seu valor relevância no efeito geral, estremece as
bases das convicções, carregando em si certa ‘indisciplina’ frente ao jurídico. François
Ost (2005, p. 15) reflete sobre tal condição em sua obra Contar a lei, colocando que:
84

Nesse real movediço e complexo, o direito faz escolhas que se esforça por cumprir,
em nome da “segurança jurídica” à qual atribui a maior importância. Entre os
interesses em disputa, ele decide; entre as pretensões rivais, opera oligarquias.
Assim o exige sua função social que lhe impõe estabilizar as expectativas e
tranquilizar as angústias. Livre dessas exigências, a literatura cria, antes de tudo, a
surpresa: ela espanta, deslumbra, perturba, sempre desorienta.

Essa condição que lhe permite desconcertar padrões vigentes gera também,
pela sua característica experimental, a possibilidade da descoberta de novos caminhos,
que ao atritarem com o mundo jurídico, também oferecem novos olhares sobre meio
social e seus anseios, suas inquietações e suas transformações. Isso ocorre também
porque a literatura envivece a linguagem, conferindo-lhe uma dramaticidade que
provoca sentimentos como a empatia, quando o leitor se permite de fato adentrar no
universo de sua leitura.

A interpretação, deste modo, seria um ponto em comum entre os dois


fenômenos, que lidam com a linguagem e os signos que dela advém. Ao tempo em que
é elo, também se revela como um ponto de divergência, quando o jurídico tem o poder
de solidificar o texto em códigos, enquanto que a literatura encontra-se em liberdade,
na ausência de formalidade.

Ao interpretar, o leitor ao tempo que recebe as sensações que um texto lhe


causa, se coloca no encontro das possibilidades de sentido, já que tanto a interpretação
jurídica quanto a artística trabalha com signos que se colocam de acordo com a forma
de ser compreendida a realidade e com a evolução comportamental do ser humano.

As premissas contidas na lei põem-se genéricas, pois permitem que o texto


legal seja objeto de apreciação e interpretação, de modo que sua afronta gera o conflito
de onde emana a necessidade de dizer o direito, solucionando os problemas
decorrentes. As normas expressas trabalham com o que ‘deveria ser’ e não com o que
‘é’; os juristas criam um ideal de mundo que é materializado na norma jurídica a ser
seguida. Pode-se dizer que essa característica confere ao Direito o entendimento de
também ser uma ficção que gera suas próprias narrativas e fabulações.

Warat (1995, p. 68) analisa que o estudo da linguagem oferece a


compreensão sobre o conflito em torno da ideia de que a letra da lei possui um sentido
85

unívoco. Segundo ele, na realidade “existe uma ilusão de univocidade fornecida pela
inalterabilidade da instância sintática dos textos legais”, em outros termos, a falsa
sensação de que por estar definida uma norma no texto legal ou mesmo no caso de ser
alterada esta norma, automaticamente o comportamento da sociedade se transforma.

Os signos presentes na lei, por tanto, se encontram em relação com


estereótipos, falácias, fabulações e outros recursos da linguagem dos quais se valem os
juristas para se ‘fazer crer’ e persuadir sobre uma suposta racionalidade do Direito,
quando na verdade este sustenta suas cargas valorativas (WARAT, 1995, p. 69).

O reconhecimento da presença da literatura no mundo do direito – e vice


versa – embora em desenvolvimento no Brasil, é bastante comum. Observe-se o estudo
da Constituição com a utilização de técnicas literárias, ressaltando que o Direito
também é uma linguagem aberta para o encontro de significados; e a abordagem de
temas recorrentes da seara jurídica em obras literárias, como em Machado de Assis,
Monteiro Lobato, Franz Kafka ou nos Romances policiais de Agatha Christie. Não
obstante, na prática, verifique-se a possibilidade da citação de poesias e outros gêneros
num Tribunal do Júri, com vistas a convencer o Juiz, provocando sua sensibilidade por
intermédio da arte.

O movimento Law and Literature foi a primeira iniciativa de estudo em


torno da relação entre Direito e Literatura, sob a inquietação de juristas que buscavam
compreender os fenômenos do mundo do Direito com a utilização de textos da
literatura universal, traçando paralelos entre os fenômenos e pondo em questionamento
o formalismo jurídico. Sobre Direito e Literatura, Vera Karam de Chueiri (2006. p.
234) bem observa que:

Direito e Literatura podem dizer respeito tanto ao estudo de temas jurídicos na


Literatura, e neste caso estar-se-ia referindo ao Direito na Literatura; como à
utilização de práticas da crítica literária para compreender e avaliar o Direito, as
instituições jurídicas, os procedimentos jurisdicionais e a justiça, e neste caso, estar-
se-ia referindo ao Direito como Literatura. No primeiro caso, é o conteúdo da obra
literária que interessa ao Direito, enquanto, no segundo, a própria forma narrativa da
obra pode servir para melhor compreender a narrativa jurídica, como, por exemplo,
as sentenças que os juízes constroem.
86

Neste sentido, verifica-se as formas principais através das quais o fenômeno


jurídico se associa:

- Direito ‘da’ literatura, que tem como objeto de estudo os direitos do autor, da
utilização de determinada obra, a liberdade de expressão, os limites que pode possuir
uma obra para que não afete direitos humanos, além do estudo de leis e jurisprudências
que estejam em consonância com a escrita, publicação e distribuição de literatura;

- Direito ‘como’ literatura, que envereda pelo estudo nas normas jurídicas e seu
conteúdo valorativo a partir de técnicas literárias, como a retórica e a linguística,
estando relacionado à hermenêutica, considerando os atos jurídicos como técnicas
literárias;

- Direito ‘na’ literatura, que se propõe a mergulhar nas obras literárias para coletar
elementos que digam respeito à seara jurídica, levantando reflexões sobre a justiça, a
liberdade, o poder, as leis vigentes, o papel do advogado, o funcionamento e os
procedimentos realizados nos tribunais etc.

Tratando da Literatura como um fenômeno inserido nessa abordagem,


temos na consideração do ‘Direito na Literatura’ a observação do modo como os
textos literários refletem o Direito, seja ele expresso ou apenas legitimado pela
sociedade; em outros termos, busca-se estudar a presença do jurídico no estético.

A difusão de tal relação começou na Europa a partir do século XX, abrindo


espaço para uma visão transdisciplinar, ainda sendo recente no Brasil. Como pontua
Trindade e Gubert (2008, p. 11-66),

[...] o direito na literatura (Law in literature), corrente desenvolvida sobretudo na


Europa e ligada ao conteúdo ético da narrativa, através da qual se examinam
aspectos singulares da problemática e da experiência jurídica retratados pela
literatura – como a justiça, a vingança, o funcionamento dos tribunais, à ordem
instituída, etc. -; entendida como obra literária, isto é, como documento de aplicação
do direito e da consciência jurídica, a partir da ideia de que a virtualidade
representada pela narrativa possibilite alcançar uma melhor compreensão do direito
e seus fenômenos – seus discursos, suas instituições, seus procedimentos, etc. –
colaborando, assim, com a formação da cultura e da comunidade jurídica.
87

Por esse viés, o desenvolvimento da análise de aspectos do Direito na


Literatura também teve como um de seus objetivos primordiais, encontrar na esfera da
sensibilidade a possibilidade de alcançar melhor compreensão sobre o funcionamento
dos institutos jurídicos, em vista de que a literatura, ao tratar sobre o comportamento
humano e social, aproximaria o jurídico do real.

José Calvo González (2016, p. 25), professor da Universidade de Málaga, na


Espanha, em seu livro Justicia Constitucional y Literatura, nos permite refletir
também sobre outra forma, Direito ‘com’ Literatura, que analisa a incorporação de
elementos da linguagem literária pela linguagem jurídica, gerando nesta uma fonte de
intertextualidade, referindo-se a atos de transcrição de práticas institucionais, aos
discursos presentes na prática jurisdicional. Para este autor, se narrar histórias diz
respeito à arte de seguir contando-as, a justiça é uma experiência narrativa (CALVO,
2002, p. 81).

A literatura também pensa sobre as necessidades humanas e sociais,


manifestando-se de acordo com os fatos de sua época, alertando, influenciando e
denunciando os conflitos, podendo sensibilizar a sociedade e, por tanto, trazendo
consigo uma função social.

Ocorre que as obras literárias, ainda que tratem do imaginário, de situações


ficcionais, transmitem aquilo que o estudo normal do Direito não consegue exprimir
nos exemplos contidos em seus livros e manuais, servindo de alicerce para a reflexão e
interpretação por parte dos operadores do Direito antes de aplicá-lo e também para fins
pedagógicos e de pesquisa. É nesse sentido que a Literatura pode contribuir com a
formação cultural tanto na comunidade, quanto em âmbito jurídico, alimentando
reflexões em torno da ideia de Justiça e instigando à luta, ainda que sonhadora, por seu
efetivo exercício.

O movimento Direito & Literatura no Brasil, no entanto, ainda se mostra


modesto. Apesar da importância dos estudos já realizados, não existe uma Teoria
concretizada a respeito da temática. Além disso, poucos são os cursos de Direito no
Brasil que encontraram condições de oferecer disciplinas que trabalhem com essa
88

proposta, o que é possível observar diferentemente nos Estados Unidos e na Europa,


que já possuem um caminho trilhado de estudos desenvolvidos na área.

Pode-se apontar, a princípio, que o seguimento no caso brasileiro remete às


arcadas do Bacharelismo (debatido no segundo capítulo deste trabalho). A
possibilidade de ingressar em um curso superior com a condição de terem sido cursos
jurídicos os primeiros a serem abertos no país no século XIX, levou não só juristas e
políticos a se formarem, mas também jovens com inclinação para a literatura, as artes
de modo geral e o jornalismo, principalmente em virtude do ensino que valorizava a
retórica e a linguagem.

É preciso também salientar a importância dos trabalhos de autores como


Aloísio de Carvalho, José Gabriel Lemos Britto, Luís Alberto Warat e Eitel Santiago
de Brito Pereira. Estes são considerados os precursores do movimento no Brasil.
Aloísio de Carvalho, é tido como pioneiro do movimento no Brasil, tendo se dedicado
a estudar principalmente Direito na Literatura na década de 30 do século XX. Tendo
como foco a obra de Machado de Assis, publicou os artigos “Machado de Assis e o
problema penal” e “Crime e criminosos na obra de Machado de Assis”.

Luís Alberto Warat também foi fundamental para o desenvolvimento desta


área de estudo no Brasil. Sua contribuição se deu principalmente através da obra “A
ciência jurídica e seus dois maridos”, de 1985. Inspirado pelo livro de Jorge Amado,
Warat tece uma relação de Dona Flor com a ciência jurídica, no sentido de que seus
maridos, Teodoro e Vadinho, representavam respectivamente o dogma da razão e o
desejo marginal, os paradigmas da ciência, que também são nossos.

Na visão de Warat, Dona Flor – A ciência jurídica – aspirava por liberdade


e não tinha vergonha de assumir as suas contradições; Teodoro – a razão, o dogma –
perdeu a oportunidade de viver, transformando o amor em dever e vivendo em
burocracia; Vadinho, por sua vez, representava o exercício da autonomia por ter vivido
intensamente e despretensiosamente (2000, p. 13).

Em seu texto “Manifesto do surrealismo jurídico”, Warat (1988, p. 13)


coloca que “Juntar o Direito à poesia já é uma provação surrealista [...] o crepúsculo
89

dos deuses do saber [...] a queda de suas máscaras rígidas [...] a morte do maniqueísmo
juridicista”. A importância desse texto se revela por ser pedagogicamente subversivo,
valendo-se da sensibilidade para propor um novo olhar ao aluno, que terá a
responsabilidade de compreender e buscar caminhos para as próprias necessidades.

Contemporaneamente podemos colocar Lênio Streck, André Karam


Trindade, Arnaldo Sampaio de Morais Godoy, Miriam Coutinho de Farias Alves, Jânia
Maria Lopes Saldanha, Eliane Botelho Junqueira, Luiz Carlos Cancellier de Olivo,
entre outro(as) estudioso(as) que tem desenvolvido pesquisas importantes na área.

A reunião de alguns desses autores contemporâneos se encontra no livro


“Direito e Literatura: Da Realidade da Ficção à Ficção da Realidade”, de 2013,
organizado por Streck e Trindade, que também estão à frente do programa Direito &
Literatura – Trindade na direção e Streck na apresentação. O programa é produzido
pela parceria entre o Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos e a Rede
Brasileira Direito e Literatura (RDL) e exibido pela TV Unisinos e TV Justiça, no qual
debate com outros pesquisadores constatações em obras literárias sobre o sentido
jurídico, as intenções da lei e o que tais obras têm a dizer sobre o sistema normativo,
seja ele escrito ou não.

O postulado da Interdisciplinaridade tem alimentado o Direito na busca de


originalidade interpretativa, bem como no que se refere à práxis. O mundo jurídico,
nesse processo, passa a utilizar a sensibilidade, a liberdade de experimentar e a
intuição presentes nos textos literários para aperfeiçoar-se, transcendendo os limites da
norma seca, da dogmática jurídica, visando transformação social, almejando garantir
uma melhor aplicabilidade de suas leis a partir de um novo ponto de vista.
90

3.2 PAPEL SOCIAL DOS FOLHETOS DE CORDEL

A literatura de cordel brasileira tem o surgimento de sua editoração quando


da publicação dos primeiros folhetos, em 1893, por Leandro Gomes de Barros, poeta
popular paraibano que, muito mais do que dar continuidade a forma de se fazer poesia
no sertão nordestino (a cantoria), desenvolveu um gênero literário que se espalhou
pelo Brasil e em 19 de setembro de 2018 foi reconhecido como Patrimônio Cultural
Imaterial Brasileiro pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional). Foi no fim do século XIX que os aspectos formais do cordel brasileiro
foram definidos.

A expressão Literatura em cordel, referida à produção literária oriunda dos


sertões do Nordeste do país, hoje em dia é adotada muito mais por força dos estudos
acadêmicos realizados em torno do assunto. Por muito tempo, os poetas populares
foram resistentes a essa denominação, preferindo chamar simplesmente de Folhetos.
No entanto, ficou assim conhecida por ter caído no gosto popular e por serem as obras
expostas e cordões ou cordéis, por influência portuguesa. Nas palavras de Abreu
(1999, p. 17-18):

A expressão ‘literatura de cordel nordestina’ passa a ser empregada pelos estudiosos


a partir da década de 1970, importando o termo português que, lá sim, era
empregado popularmente. Na mesma época, influenciados pelo contato com os
críticos, os poetas populares começam a utilizar tal denominação.

A poesia popular na sua forma escrita é uma continuação de sua forma oral,
quando as rimas dos violeiros e cantadores contavam casos, revelando o imaginário e a
memória popular, através de duelos que remontam os desafios da antiguidade grega.
Aqui vale salientar a colocação de Câmara Cascudo (1984, p. 129) a respeito do
cantador de viola, comparando-o a manifestações de outras partes do planeta:
91

Que é o cantador? É o descendente do Aedo da Grécia, do rapsodo ambulante dos


Helenos, do Gleeman anglo-saxão, dos Moganis e Metris árabes, do velálica da
índia, dos Runóias da Finlândia, dos bardos armoricanos, dos escaldos da
Escandinávia, dos menestréis, trovadores, mestres-cantadores da Idade Média. Canta
ele, como há séculos, a história da região e a gesta rude do homem. É a epea grega, o
barditus germano, a gesta franca, a estória portuguesa, a xácara recordadora.

Deste modo, a poesia popular na forma como se desenvolveu no Brasil


encontra seus primeiros sinais na Era clássica, nos aedos gregos. Essas raízes estão
ainda mais consistentes na Idade Média, na cultura das cantigas medievais, do
trovadorismo (Século XI), que foi o primeiro movimento literário lusitano, que se
relacionava com assuntos religiosos e contava histórias de reis e rainhas, de amor,
amizade, escárnio e maldizer.

Alguns autores tem questionado a colocação da Literatura em Cordel


enquanto poesia popular ou folclórica. Aderaldo Luciano (2012, p. 17), por exemplo,
afirma que essa associação está relacionada à “forma preconceituosa e excludente com
que as elites intelectuais sempre trataram as produções que não saíssem de suas lides
ou que não seguissem os seus ditames”. No seu ponto de vista, o gênero deveria ser
estudado não como Literatura folclórica, mas como Literatura brasileira.

Abreu (1999, p. 9) também questiona essa referência da origem dos folhetos


brasileiros nas cantorias medievais, afirmando que embora seja uma interpretação
aceita, não é conclusiva, pois os defensores dessa ideia não são claros ao apresentarem
o processo de transformação que se deu até a formatação atual.

Mas considerando que talvez seja essa a raiz, da Península Ibérica, os


elementos dessa cultura vieram desembocar nas terras brasileiras com a chegada dos
povos lusitanos, encontrando terreno fértil no nordeste, que apresentava todas as
condições para que esse gênero se desenvolvesse e se difundisse, transformando-se de
modo original.

A literatura em cordel se deu também pela influência da cultura indígena e


africana, que veio para a região, como a narrativa nagô chamada akpalô, que significa
“aquele que conta as memórias do povo” (SLATER, 1984, p. 20) e espalhando-se em
92

sextilhas, martelos, galopes e outras métricas variantes do gênero, adquirindo outras


imagens e conteúdos, fruto das vivências, relações, pensamentos e visões sociais dos
cantadores.

A tradição da poesia transmitida oralmente no sertão, principalmente por


meio das pelejas, em que os cantadores faziam provocações improvisadas entre si,
passou a encontrar espaço também ao ser impressa em folhetos. Esse formato editorial
foi influenciado pela forma de produção de poesia popular na Europa, em razão do
baixo custo, principalmente em Portugal, com as folhas volantes; na Espanha, com os
pliegos sueltos e na França, com a Littérature de colportage.

Outra característica que tornou o gênero admirado e popularizado foi a sua


linguagem simples, próxima do povo, cercada inclusive de gírias e neologismos,
lançando-se em temas que faziam parte do imaginário e da vida real. Seus versos,
deste modo, exprimem hábitos, códigos, crenças e superstições da massa. Abreu
(1999, p. 95) nota que:

Na zona rural, eram apreciados em engenhos, pequenas propriedades e em fazendas


de gado, não só pelos trabalhadores mas também pelos proprietários das terras que
patrocinavam a cantoria e liam – ou escutavam ler – as histórias. Distinções
clássicas entre campo e cidade, cultura popular e cultura de elite parecem diluir-se
perante os folhetos. No início do século, as diferenças entre campo e cidade não
eram tão marcadas no Nordeste e, embora poetas e leitores pertencessem
fundamentalmente às camadas pobres da população, membros da elite econômica
também tinham nos folhetos e nas cantorias uma de suas principais fontes de lazer

A literatura em cordel brasileira, mesmo com a influência da literatura


popular europeia, encontrou no Brasil um modo genuíno. E tendo surgido também por
influência da oralidade, da poesia dos cantadores, considera-se que se trata da
continuidade de tradições já existentes e fortes, ainda que tenha assumido outros
formatos.

Sobre oralidade, Paul Zumthor (1997, p. 10) discute que “ninguém sonharia
em negar a importância do papel que desempenharam na história da humanidade as
tradições orais. As civilizações arcaicas e muitas culturas das margens ainda hoje se
93

mantêm, graças a elas”. Nesse mesmo sentido Abreu (1999, p. 73) observa que a
oralidade não é uma peculiaridade do Nordeste, visto que todos os povos exercitaram
narrativas orais, considerando ainda que cada região assumiu uma forma específica.

Ao dar início ao projeto editorial dessa literatura, Leandro Gomes de Barros


estava certamente envolvido pela poesia oral da Vila do Teixeira (cidade paraibana
onde passou parte de sua vida). Sua poesia absorveu fortemente o ritmo e as rimas das
cantorias. Slater (1984, p. 77) analisa que:

[…] os folhetos brasileiros foram, com maior probabilidade, “inventados” por um


grupo já existente de cantadores-poetas semiprofissionais, perfeitamente,
impregnados em uma determinada tradição de versejar. Esses indivíduos puderam
aplicar seus próprios conhecimentos de poeta cantador a um livreto amadurecido
que evoluíra durante quatro séculos.

Sobre a classificação e o conteúdo, José Alves Sobrinho (2003, p. 109) observa


que:

O nome “folheto”, em Literatura de Cordel, é entendido, como nome genérico, mas,


conforme o número de páginas pode ser classificado em: “folhetos” (quando de 8,
12 e 16 páginas) e “romances” (quando de 24, 32, 48 e 64 páginas) ou “histórias”
conforme o conteúdo e o assunto.

1 - Peleja, Debate, Discussão e 10 - Castigos e Exemplos

Encontro 11 - Política, Sociedade e Ciência

2 - Marcos e Vantagens 12 - Reportagens

3 - História de inspiração popular 13 - Heroísmo

4 - História de inspiração não 14 - Proezas

popular 15 - Miscelânea

5 - Fabulação 16 - Profanação

6 - Gracejos e Espertezas 17 - Depravação

7 - Religião e Beatismo 18 - Conselhos

8 - Profecias 19 - Escândalo e Corrupção

9 - Avisos
94

Abreu (1999, p. 119-121) também debatendo sobre a temática dos folhetos,


nota que mesmo não havendo restrições, os poetas populares sempre construíram suas
rimas baseados fortemente na realidade social, trazendo como temas centrais, casos
relacionados ao cangaço, os impostos, os fiscais, o custo de vida, os baixos salários, a
exploração do povo trabalhador e as secas. Nesse contexto, é constante o debate em
torno das desigualdades sociais, como em A secca no Ceará, de Leandro Gomes de
Barros:

Santo Deus! Quantas misérias


Contaminam nossa terra
No Brazil ataca a seca
Na Europa assola a guerra
A Europa ainda diz
O governo do paiz
Trabalha para o nosso bem
O nosso em vez de nos dar,
Manda logo nos tomar
O pouco que ainda se tem

[...]

Os habitantes procuram
O governo federal
Implorando que os socorra
Naquele terrível mal
A creança estira a mão
Diz senhor tem compaixão
E ele nem dar-lhe ouvido
É tanto a sua fraqueza
Que morrendo de surpresa
Não pode dar um gemido

Alguém no Rio de Janeiro


Deu dinheiro e remeteu
Porém não sei o que houve
Que cá não apareceu
O dinheiro é tão sabido
Que quis ficar escondido
Nos cofres dos potentados
Ignora-se esse meio
Eu penso que elle achou feio
Os bolsos dos flagelados (BARROS, A secca no Ceará, 1920, p. 6 -7)

Como grande parte da população não sabia ler, os versos muitas vezes eram
decorados e transmitidos também de forma oral. Por esta razão, os folhetos de cordel
seriam um modo de preservar a tradição da oralidade, visto que como expressa
95

Houaiss (1979, p. 15), mesmo que os folhetos tenham surgido com base na tradição
oral, esta não deixa de ser considerada, “já que o cordel desde sempre aspira ser
‘ouvido’, constituindo a forma impressa um meio de expansão da oralidade”. Essa
necessidade de ser ouvido por parte do cordel vê-se em “O Povo na Cruz” quando
Leandro Gomes de Barros inicia com um pedido de alerta,

Alerta, Brasil, alerta!


Desperta o somno pezado
Abre os olhos que verás
Teu povo sacrificado
Entre peste, fome e guerra
De tudo sobressaltado (BARROS, O Povo na Cruz, 1907, p. 1)

Os romances e folhetos, com esse tom de oralidade, eram considerados uma


forma de diversão, de entretenimento e a leitura ocorria coletivamente. Além disso,
essa arte também tinha uma função informativa no nordeste dos séculos XIX e XX,
quando as notícias demoravam a chegar, principalmente nos interiores.

Com uma linguagem acessível a todo público, as pessoas não alfabetizadas


encontravam no cordel um modo de compreender os fatos que estavam acontecendo
no Brasil e no mundo. E também se viam representadas pelos versos, que davam voz a
uma parte da população que se via socialmente excluída. De acordo com Peixoto
(2003, p. 14),

As condições sociais da região eram favoráveis ao surgimento e desenvolvimento de


tal forma de comunicação literária, tornando o Nordeste área favorável à sua
difusão. A organização da sociedade patriarcal, o surgimento de manifestações
messiânicas, o aparecimento dos cangaceiros, as secas periódicas causando
desequilíbrios econômicos e sociais, bem como as lutas de famílias, eram fatores
que contribuíam para tornar os grupos de cantadores em instrumentos do
pensamento coletivo de um povo carente de instrução, através das manifestações da
memória popular.

Neste sentido, o cordel constituía um espaço para que as camadas mais


pobres da população manifestassem sua história e suas necessidades, diante de uma
sociedade em que quem tinha acesso à informação e educação formal eram apenas os
96

coronéis, donos de engenhos e descendentes, em detrimento da massa envolvida pelos


problemas decorrentes da seca, pelo cangaço e pelo trabalho camponês.

Fazem dezesete anos


Que o norte foi visitado
O conde d’Eu veio aqui
E foi muito festejado
Veio agora Affonso Penna
Ninguém sabe o resultado

O povo esperava
Tudo por ali
Que ele vindo aqui
Tudo melhorava
Julguei que ele dava
Sacos de dinheiro
Fiz um mealheiro
Do tamanho de um jigo
E disse comigo:
Breve sou banqueiro (BARROS, Affonso Penna, 1906, p. 1)

A ansiedade do povo pela chegada de Affonso Penna não era à toa. O povo o
recebia como se quase fosse uma divindade. Tal comportamento é uma reação à
condição de abandono do Nordeste por parte do Governo, principalmente em tempos
de seca e crise econômica, quando os direitos sociais são logo afetados, provocando
dificuldades pela falta de emprego, alimentação, saúde e educação.

Chora o desgraçado,
Se maldiz o nobre,
Estrebucha o pobre,
Queixa-se o quebrado,
Diz o empregado
Que crise tyranna
Eu essa semana
Em noite de lua
Apanhei na rua
Casca de banana... (BARROS, O Tempo de hoje, 1918, p. 7)

As decorrências de uma crise econômicas são sentidas também no folheto “A


crise actual e o aumento do sello”, de 1915, época em que ocorria a Primeira Guerra
Mundial e o Brasil passava por uma crise em razão da seca, que cessava a produção de
alimentos para serem vendidos no comércio, enquanto que o Governo, como se não
97

bastasse e aproveitando-se da situação, aumentava os impostos, que já eram


exorbitantes.

No sertão não houve enverno


No sul também não choveu
Nos brejos mais na caatinga
Nem sereno apareceu
Está de uma forma este anno
Que nem o sapé nasseu

O governo vendo isso


Disse ao povo estou disposto
Se o anno for todo seco
Não chuver até agosto
Eu mando romper a banca
Augmento mais o imposto (BARROS, A crise actual e o aumento do sello, 1915, p.
1-7)

A crise, porém, afetava apenas à massa, que sofria pelo não reconhecimento
e garantia de direitos sociais. Faltava-lhe investimento em emprego, saúde, educação,
alimentação, transporte; enquanto que o Governo Federal, em resposta às mazelas da
população, acomodava-se para garantir o sustento dos que já estavam no poder.

O governo federal
acha que a cousa vai bem
E diz o dinheiro é pouco
Deste eu não dou a ninguém
Porque eu não solto o pássaro
Por um que algum dia vem

Que tem que o paiz se acabe


E se arrase num instante?
Eu nunca fui pae de artista
Menos de negociante
Leve o diabo a lavoura
Não me levando é bastante. (BARROS, A crise actual e o aumento do sello, 1915, p.
1-7)

O folheto revela que a única coisa que o governo fazia diante dos problemas
da sociedade era aumentar os impostos sem corresponder às necessidades que a
população tinha. Na realidade, se observava uma terrível tirania, os pobres sofriam
com a falta de condições que a crise e a seca provocavam. O governo engordava aos
custos dessa exploração.
98

Tudo agora leva sello


Não se reserva ninguém
O governo não pergunta
Quem é quem vai ou quem vem
Até eu já estou com medo
Não leve sêllo também

Vê-se em cada sello destes


As lágrimas de um infeliz
O diploma de um doutor
A casaca de um juiz
O baile do presidente
E a queda do paiz (BARROS, A crise actual e o aumento do sello, 1915, p. 1-7)

O folheto denuncia a exploração feita pelas instituições sobre um povo pobre


e sem instrução. Enquanto o brasileiro “luta até para morrer”, o governo cobra
impostos exorbitantes. “Alfândega, Estado, Intendência / Cada um tira um pedaço”.

No folheto, o brasileiro só tem direito ao imposto e a palmatória como luva.


Se morre, a família só herda nome de órfão e viúva, pois os maiores interessados em
quinhões de herança são o juiz, o escrivão e o coveiro. O governo, vendo tantos
martírios cruéis, ao invés de ouvir os clamores sociais, aumenta o selo. Os filhos de
chefes políticos, porém, antes de nascer seguros de destino; privilegiados, nascem com
oportunidades garantidas.

Em O Povo na Cruz, Leandro finaliza com uma estrofe que trata de crimes
impunes por serem cometidos por homens ricos contra pobres:

O rico matando o pobre


Nem se recolhe à prisão
Diz logo o advogado
Matou com muita razão
Se passa um mês na cadeia
Tem a gratificação. (BARROS, O Povo na Cruz, 1907, p. 11)

Este trecho revela o peso do status social na vida do indivíduo que habitava
essa sociedade, o que nos remete novamente aos nossos estudos em torno do
bacharelismo. Os membros da elite política e econômica do Estado desde sempre
foram protegidos pela própria lei, em detrimento dos que compunham a massa. E na
realidade de nossos dias, essa proteção dada aos detentores do poder se encontra em
99

institutos como o da imunidade parlamentar (art. 53, CF/88), que reserva um conjunto
de garantias aos parlamentares para que possam agir com ampla liberdade no exercício
do mandato sem que sejam submetidos a abusos do judiciário e do executivo.

Galvão (2001, p. 182-183) evidencia a função informativa da literatura de


cordel como sendo uma das mais importantes, afirmando que vários são os estudos que
apontam para isso, já que além de contribuir para que as pessoas ficassem por dentro
dos acontecimentos, ainda tinha o poder de gerar divertimento frente às adversidades.
O autor também nota a importância do cordel mesmo onde havia acesso ao rádio, na
primeira metade do século XX.

Mesmo nos dias atuais, de rápidas transformações no mundo da tecnologia e


das telecomunicações, é possível observar a função social relevante exercida por esse
gênero literário. Primeiro, em virtude de que o trabalhador do campo, muitas vezes
alheio às fontes oficiais de informação, coloca confiança na palavra transmitida pelos
versos dos poetas populares, como o autor supracitado também expõe.

Em segundo lugar, outro fator importante é a contribuição que o cordel traz


para que as novas gerações conheçam e compreendam a história e a memória social do
Brasil,

Ver-se-á um dia que para a história ou para a sociologia aí se encontrava uma das
mais ricas fontes. [...] Os acontecimentos importantes do Brasil, de países distantes
ou da localidade, as estórias tradicionais, os elementos folclóricos, personagens reais
ou da ficção e das lendas, todo um mundo de temas, de traços de vida [...].
(MOREIRA, 1964 apud CURRAN 2001, p. 23-24).

Buoro (2000, p. 25-29) analisa que é por meio da arte que o homem
interpreta sua própria natureza, descobrindo-a assim como também reinventando-a e
que no percurso da história, “não há civilização que não tenha produzido arte”. A arte,
de modo geral, possui essa função de registrar o pensamento em determinado
momento da história e de acordo com as condições do espaço em que é produzida. Tão
antiga quanto a existência humana, a expressão artística acompanha as necessidades
comuns desde os primórdios e nasce da necessidade de manifestação sobre
inquietações, valores e sobre a própria existência.
100

Antônio Cândido em seu texto “O Direito à Literatura” (2011, p. 177), ao


discutir sobre a necessidade que toda pessoa possui o direito de expressar-se, assim
como de mergulhar no universo fabulado, por meio da literatura, vista aqui como
“todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de
sociedade”, escreve que:

[...] ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na


sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no
inconsciente. Neste sentido, ela pode ter importância equivalente à das formas
conscientes de inculcamento intencional, como a educação familiar, grupal ou
escolar. Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas
de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas
normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles.

Essa é a razão pela qual a literatura é tão importante para as sociedades, por
seu poder de instruir, educar por meio da junção de uma mensagem, um conhecimento
a ser transmitido propositalmente pelo autor com a sua estética – visual e sonora –,
numa construção que “exerce um papel ordenador sobre a nossa mente” (CANDIDO,
2011, p. 179). O texto de Antônio Cândido tem como foco a relação entre Literatura e
Direito, fazendo sua análise a partir da necessidade de humanização sob dois pontos de
vista.

Em primeiro lugar, seria necessário considerar o acesso a obras literárias


como um direito humano, por tratar-se de uma necessidade universal, já que a
literatura tem o poder de dar forma ao sentimento das pessoas ou ao que se pensa sobre
o mundo, organizando o caos e assim, humanizando. Em segundo lugar, a literatura
seria um instrumento que tornaria a realidade do meio social ainda mais visível,
desmascarando restrição ou negação de direitos.

A humanização se encontra na disposição de fazer com que o leitor se


identifique, trazendo para si algo além do conhecimento, que é o questionamento, a
reflexão, a sensibilidade para entender as complexidades e anseios do mundo. Quando
uma obra se propõe a expor um posicionamento político ou social, “é aí que se situa a
101

literatura social [...] que parte de uma análise do universo da sociedade e procura
retificar as suas iniquidades” (CANDIDO, 2011, p. 182).

De acordo com o texto de Antônio Cândido, foi no período romântico que as


obras literárias começaram a adquirir uma tonalidade social e política. Assim também
foi com a literatura realista, que assumiu um papel de crítica frente às iniquidades
sociais, estando relacionada também ao Direito. Na visão do autor, no Brasil se faz
perceber em meados de 1930, quando o pobre passou a ser conteúdo central de obras
da literatura chamada erudita (CANDIDO, 2011, 182-183).

Antes disso, porém, a literatura popular já exercia seu papel de


conscientização e denúncia da miséria, da marginalidade e exploração econômica do
povo, o que nos faz perceber que a Literatura de cordel, ao tratar de questões sociais,
também está empenhada com a diminuição dos problemas da comunidade.

É com esse pensamento que se pode considerar que a Arte também é um


instrumento político, pois comunica conflitos, expõe a realidade ao seu redor,
reivindica necessidades do grupo social que ela representa e questiona os valores
hegemônicos da ordem social na qual se insere. E a Literatura em cordel, com seu tom
satírico, especialmente quando se trata da poesia de Leandro Gomes de Barros, com
críticas diretas ao governo e reflexões sobre a situação dos trabalhadores de sua época,
traz consigo esse poder, revelando um conjunto de tendências políticas e religiosas do
lugar social onde é criada.

É válido colocar que conforme Walter Benjamin (2011, p. 293-294) a obra


artística é “a expressão integral, não redutível a nenhum domínio unilateral, das
tendências religiosas, metafísicas, políticas e econômicas de uma época”,
reconhecendo que toda obra artística possui em seu interior um teor de crítica social.

No estudo da estética da arte, há duas correntes de pensamento que analisa a


função exercida pela atividade artística diante da vida social. Por um lado, acredita-se
que a arte não deve ter um significado ou papel social, estando direcionada
simplesmente a compreender os espaços de sua beleza; sua preocupação é
102

simplesmente estética, visando a formatação de sua própria performance e não está a


serviço de nenhuma transformação de cunho social.

Trata-se da Arte gratuita, da Arte pela Arte, tal como defendida por Oscar
Wilde em sua obra “A Decadência da Mentira”, quando em um diálogo entre Cyril e
Vivian se reflete sobre o que propõe a nova estética, Vivian expressa que a arte é
independente e não está submetida a nada que esteja além dos seus limites:

Art never expresses anything but itself. It has an independent life, just as
Thought has, and develops purely on its own lines. It is not necessarily
realistic in an age of realism, nor spiritual in an age of faith. So far from
being the creation of its time, It is usually in direct opposition to it, and the
only history that it preserves for us is the history of its own progress
(WILDE, 2003, p. 35-36)14

Neste ponto de vista, a arte teria como único objetivo, o desenvolvimento de


sua própria beleza, de modo que a sua perfeição só seria encontrada dentro dela
mesma e não em razão de fatores externos. Assim também observa Maritain apud.
Suassuna (2008, p. 250) que a arte gratuita ou desinteressada somente busca o que é
preciso criar em suas próprias leis, independentemente do que há fora dela.

O outro ponto de vista coloca que toda obra de arte está a serviço de alguma
ideia, geralmente política e que assume um compromisso com a conscientização
popular, garantindo o acesso das pessoas e desempenhando um papel educativo,
motivos pelos quais estaria mais preocupada com a comunicação. Os defensores dessa
vertente acreditam que, para além do fator estético, a arte seria considerada a partir de
sua natureza ideológica e estaria a serviço de alguma causa, de uma função social. É a
Arte participante, politizada.

De Bruyne citado por Suassuna (2008, p. 251) discute que:

14
A arte nunca expressa nada além de si. Tem uma vida independente, tal como o Pensamento tem, e se
desenvolve puramente em suas próprias linhas. Não é necessariamente realista em uma era de realismo, nem
espiritual em uma era de fé. Longe de ser a criação de seu tempo, ela está geralmente em oposição direta a ele, e
a única história que ela preserva para nós é a história do seu próprio progresso (WILDE, 2003, p. 35-36)
[Tradução nossa]
103

A Arte faz-nos sentir tudo o que tem uma significação para nós. É um meio de
exprimir, sob forma sensível, as concepções filosóficas da Humanidade... Os fatos
nos ensinam que a Arte não age sempre de maneira exclusiva e diretamente estética:
épocas inteiras a concebem de outro modo. A Arte está longe de desempenhar um
papel estritamente estético na vida individual e, sobretudo na vida social... Foi
somente depois da Renascença que uma certa Arte passou a procurar exclusivamente
a Beleza; noutros tempos e entre outros povos ela é antes de tudo prática... A Arte,
consequentemente, instrui a massa, fazendo-a captar intuitivamente, sem nada
demonstrar pelos raciocínios abstratos, aquilo que ela é incapaz de entender das
especulações da Ciência, da Filosofia e da Teologia.

Ariano Suassuna (2008, p. 251) faz a observação de que De Bruyne, ao falar


do caráter engajado da arte, está se referindo à arte medieval, já que não fez menção ao
conflito entre Arte gratuita e Arte participante, que é o risco da desumanização ou da
propaganda no caso da radicalização de qualquer um dos dois posicionamentos, o que
tem ocorrido do século XIX para cá: “A Arte gratuita pode cair na desumanização, na
frieza esteticista da ‘torre de marfim’ e do formalismo estéril; a Arte participante
termina levando o artista para os caminhos da propaganda”.

Suassuna ainda critica De Bruyne, afirmando que este entra em contradição


ao defender inicialmente que a arte tem sempre um objetivo prático, engajado,
participante e, no entanto, ao tratar da arte erótica, desconsidera ser esta uma arte
estética, já que o autor estaria envolvido por suas paixões, afetando o ‘desinteresse’,
que seria uma característica essencial da manifestação artística. Estaria essa arte
direcionada apenas ao sentido prático. Porém, para Suassuna (2008, p. 253), esse
raciocínio se aplicaria também aos outros tipos de arte.

Como solução para o conflito, Suassuna (2008, p. 253-255) aponta para um


acordo, no qual a Beleza não é uma preocupação exclusiva do fenômeno, mas uma
necessidade fundamental, de modo que as obras estariam inseridas em graus de
gratuidade ou participação. Para exemplificar, no que se refere ao campo político, o
autor coloca obras do mundo do Teatro, como:

1. Peça gratuita — Salomé, de Oscar Wilde.

2. Peça com problemas políticos implícitos — Ricardo III, de Shakespeare.


104

3. Peça política — A Mãe Coragem, de Bertolt Brecht.

4. Qualquer peça, escrita por aí, de pura propaganda, ou seja, um comício dialogado,
correspondendo, no campo político, ao “sermão dialogado” que imaginamos no
campo religioso.

Com esse exemplo, nota que a primeira obra teria como preocupação
simplesmente a beleza de sua forma, despida de qualquer pretensão política, ao passo
que no quarto ponto, não há nenhuma preocupação com a criação artística, seria
meramente um texto propagandístico que fez uso de um aspecto teatral para exprimir
uma obra sem nenhum significado no campo do Teatro. Para Suassuna, a segunda e a
terceira obra teriam a arte exercendo um papel mais efetivo, principalmente a segunda,
que reflete problemas políticos, sem, no entanto, ser uma obra política. (SUASSUNA.
2008, p. 256).

Na reflexão de sobre arte gratuita, de que a arte não está a serviço de uma
tese, é necessária a colocação de Maritain citado por Suassuna (2008, p. 254), segundo
o qual Tese seria “qualquer intenção extrínseca a própria obra”, que não faria parte do
pensamento que a anima e, por tanto, seria uma impureza. E Suassuna compactua com
esse pensamento no sentido de que a Tese não pode se sobrepor a Arte em si, sob pena
de perder sua beleza, sua legitimidade. Neste sentido, defende que para que a arte não
perca a sua beleza original, a Tese deve surgir juntamente com ela e nela, expressando
seu pensamento nas palavras a seguir:

A Arte parte do homem, é expressão do homem, isto é, de um ser total que, ao


empreender a criação da obra, lhe imprimirá necessariamente a marca de sua pessoa
inteira [...]. O que interessa é que a Beleza seja criada a partir do mundo real e do
mundo particular de cada um. Para isso, é preciso que essas tendências particulares
surjam na obra e com a obra, e não justapostas artificialmente a ela: de outra forma,
terminam prejudicando a Beleza, que é seu objetivo essencial (SUASSUNA, p.
257).
105

É preciso atentar ainda para que a busca do ideal não intimide, deslegitime
ou esterilize formas de arte diversas motivado na busca pela “pureza” ou pela
“participação” excessiva. A Literatura em Cordel, por exemplo, ainda que assuma suas
regras, nem sempre mantém compromisso com a beleza, tendo em vista seu modo
satírico de lidar com os fatos do cotidiano.

Dentro dos apontamentos de Ariano Suassuna, é possível que seja inserida a


Literatura de Cordel no espaço de uma arte participante, por sua capacidade de
comunicar, informar e se relacionar com a realidade da massa. A arte desse gênero
literário, estando direcionada a tecer críticas sociais, não se encontra imbuída nas
paixões do artista ao ponto de que venham a interferir na qualidade do trabalho ou na
sua razão de ser.

A pureza artística, deste modo, não está fundada apenas na formalização de


uma beleza ou na correspondência a padrões estéticos elitistas, mas na capacidade que
a arte tem, sendo ela abstrata ou não, de manifestar o verdadeiro sentimento de quem
produz. Entendendo que o artista é o reflexo do mundo ao seu redor, mesmo que sua
produção venha tratar sobre fatores externos que o incomodam, o que ele manifesta é a
reflexão movida por um pensamento interior que o anima e dá razão para que se
expresse.

Na verdade, o modo satírico como os folhetos de cordel tratam o espaço


comum faz perceber que o que Maritain chamou de Tese está diretamente ligado à
natureza da criação artística. Leandro Gomes de Barros, objeto de pesquisa desta
dissertação é um claro exemplo dessa reflexão, pois, envolvido por todo o
conhecimento adquirido durante sua vivência e atravessado pela realidade social do
Nordeste brasileiro, transformava suas paixões e observações sobre o dia a dia do povo
em uma criação artística original. O caráter político de sua obra nascia com a própria
obra.
106

4 NOS VERSOS DE LEANDRO: DO SOCIAL AO JURÍDICO,


DO JURÍDICO AO SENSO COMUM

A Literatura em Cordel, como já debatida no capítulo anterior, sempre esteve


fortemente focada em debater sobre desigualdades sociais e econômicas. A literatura
de Leandro Gomes de Barros, que Carlos Drummond de Andrade colocou como “o
Brasil em seu estado puro” carrega muitos elementos do mundo jurídico, o que nos
leva a refletir sobre as transformações da lei durante os tempos, bem como analisar o
papel de instituições e do governo diante dos desníveis da sociedade e como as
pessoas, mesmo com raro acesso à informação e conhecimento lidam com os seus
direitos. Para isso, foi necessário fazer uma seleção de algumas obras do referido poeta
com vistas a debater institutos, casos e conflitos referentes ao mundo jurídico, de
modo que este capítulo tem como foco pesquisar a presença do jurídico na Literatura,
captando de que forma esta aborda aquele e como os personagens veem o Direito. Este
capítulo trabalha especificamente com três obras de Leandro Gomes de Barros:
“Defesa feita pelo doutor Ibiapina”, para refletir sobre o Devido Processo Legal no
caso exposto pelo folheto; “Antônio Silvino no Jury – Debate de seu advogado” e
“Exclamações de Antônio Silvino na cadeia” para tratar da pena e da ressocialização.
107

4.1 TRIBUNAL DO JURI – “DEFESA FEITA PELO DOUTOR IBIAPINA”

Ninguém se julgue feliz


Nem desanime da sorte
Viu-se no Brejo de Areia
Da Parahyba do Norte
Um réo escapar da forca
Já sentenciado à morte (BARROS, Defeza feita pelo Doutor Ibiapina, 1917, p. 1)

O folheto “Defeza feita pelo Doutor Ibiapina” conta a história de Francisco


José, réu que depois de ter sido julgado, tendo a forca como sua sentença, foi livrado
da morte após a defesa proferida pelo advogado Doutor Ibiapina, que fez o juiz
recorrer da própria sentença, caso que ocorreu no Brejo de Areia, da Parahyba.

Doutor Ibiapina era advogado que depois se ordenou padre. E Francisco José,
um rapaz que fora abandonado pela família e achado no campo desamparado por um
homem que juntamente com sua senhora, por não terem filhos, resolveram criá-lo,
inclusive deixando para ele o sítio onde viviam como herança após falecerem.

O jovem, de acordo com os versos do folheto, “Era um rapaz sem defeito”.


Trabalhador e honesto, certamente não possuía antecedentes criminais e, embora não
tivesse fortuna alguma, era feliz com aquilo que possuía, até ter caído nos planos do
comendador Veloso. Este era viúvo e dono de vasta terra, muitos escravos e uma
grande fortuna, sendo esta, na verdade, roubada, “porque o caráter dele pesava menos
que nada” (BARROS, 1917 p. 2).

O plano do comendador envolvia a sua filha, com quem mantinha relações


sexuais às ocultas e desejava gozar mais facilmente da mesma. Para isso pensava ser
conveniente oferecê-la em casamento para algum rapaz pobre e branco, acreditando
que logo encontraria jovens que tivessem ambição pelo dinheiro. Muitos foram os
rapazes da alta sociedade que queriam casar-se com ela, mas não fazia parte de suas
más intenções, acreditando que assim seus planos seriam desarranjados. Tudo
arquitetado da forma como queria, foi ao encontro de Francisco José e ofereceu a filha
em casamento. O jovem respondeu que não pretendia casar-se com filha de potentado,
que havia sido enjeitado e que seu futuro seria o trabalho braçal. O comendador tanto
fez que iludiu o pobre rapaz.
108

Casando-se com ela, Francisco José passou a cuidar do que havia na terra de
sua esposa. Todos os dias, às seis da manhã, saia com os escravos e voltava somente à
tarde, trazendo para a casa grande um sexto com o que havia colhido no roçado. Todos
os dias, a mulher o esperava para ajudá-lo.

Certo dia, não encontrando sua esposa como de costume, abriu a porta, e a viu
em adultério com o pai, momento em que foi movido por uma forte emoção,
disparando sua espingarda contra a filha e o pai, como revela os versos: “Mais rubro
do que a braza / Que do fugareiro sai / Com o furor do corisco / Que da athmosfera cai
/ Disparou uma espingarda / Matando filha e pai” (BARROS, 1917 p. 5). O
comendador morreu na hora, enquanto que a filha durou três dias, tendo confessado ao
juiz os planos de seu pai e pedindo ao juiz que vigiasse se Francisco José concederia o
perdão pelo que ela fez. O jovem Francisco, por sua vez, se dá conta do crime que
cometeu e se entrega, assumindo a responsabilidade de responder pelo seu ato
violento:

Porém Francisco José


Diz ao juiz de direito
O que fizeram de mim
Eu acho que está bem feito
Porém um pedido dela
Eu morro! Mas não aceito (BARROS, 1917, p. 6)

Os parentes do comendador Veloso, que nunca haviam mantido proximidade,


começaram a se movimentar, interessados na herança e foram para a justiça buscar a
condenação de Francisco, pois assim, não havendo herdeiros legítimos, o inventário
estava feito e os parentes passavam a ter direito.

Peitaram toda a justiça


Para o réo ser condemnado
Garantindo devidir
A terra, o dinheiro e o gado
Escravos e todas as joias
Ficava tudo arrumado (BARROS, 1917, p. 6)
109

No primeiro Júri, o réu contou todos os doze votos a seu favor, fato do qual o
juiz não gostou e mandou o réu para um segundo julgamento, mantendo-se os doze
votos. O promotor resolveu apelar uma segunda vez ao tribunal superior, que resolveu
determinando que houvesse um terceiro júri. O júri foi novamente escolhido, de modo
que favorecesse o pensamento do juiz, também interessado em algum quinhão da
herança. E então Francisco foi condenado à morte. Em três dias seria o jovem
submetido à forca, enquanto os parentes do comendador já calculavam a divisão dos
bens.

Ao terceiro julgamento
Foi o réo submitido
Porem a justiça fez
Um jury bem escolhido
Condemnaram o réo a morte
Por meio desapercebido (BARROS, 1917, p. 7)

Interessante notar que o réu sabia da gravidade do crime cometido e em pleno


sentimento de culpa, nada dizia ao ouvir a sentença. Esse silêncio diante da situação
revela também uma ausência do direito à palavra, ao conhecimento daquilo que estava
sendo proferido pelo juiz, colocando-o em uma condição de impotência frente ao
poder da palavra. O Direito, tradicionalmente, traz consigo essa característica
particular, a sua linguagem, que também é excludente pela realidade de que grande
parte da população não tem acesso à compreensão da linguagem jurídica, muitas vezes
impedindo que o indivíduo busque um julgamento justo por não ter instrução.

O réo não dizia nada


Ouviu a sentença ler
Disse penas, pouco emporta
Uma vida se perder
Vinguei a maior injúria
Que um homem pode ter

Uns nascem para a vida


Eu nasci para a guilhotina
Estava o réo naquela hora
Pensando na dura sina
Quando entrou na cidade
O Doutor Ibiapina (BARROS, 1917, p. 8)
110

Francisco, assim como se conformava com o destino dedicado ao trabalho no


início do folheto, já buscava se conformar com a própria morte. Esse comportamento
de conformidade, além de confirmar a sua sensação de impotência diante de quem
disse a lei, traz certo determinismo, o que torna o indivíduo refém de suas próprias
circunstâncias, sem possibilidade de mudança de condição. A esse respeito Dallari
(1991, p. 18) descreve:

Qual o fundamento em que se apoiam [sic] os deterministas? Dizem eles que o


homem está submetido, inexoravelmente, a uma série de leis naturais, sujeitos ao
princípio da causalidade. Por essa razão, embora exista a possibilidade de interferir
em pormenores da vida social, há um fator ou há vários fatores determinando a
sucessão dos fatos fundamentais. Para alguns deterministas esse fator é de ordem
econômica, para outros é de ordem geográfica, havendo ainda várias outras correntes
deterministas, todas tendo em comum a afirmativa de que o homem tem sua vida
social condicionada por certo fator, não havendo a possibilidade de se escolher um
objetivo e de orientar para ele a vida social.

Quando Francisco inquietava-se, pensando sobre o seu duro destino, um


soldado viu que havia chegado à cidade o Doutor Ibiapina, que poderia ajudar no caso
e até anular a sentença e a pedido do réu, foi chamar o advogado no hotel onde havia
se hospedado, contando tudo o que estava acontecendo. Doutor Ibiapina, buscando ver
a justiça ser feita, dirigiu-se até o tribunal na qualidade de defensor do réu. Chegando
lá, o júri ainda trabalhava e pediu para ver a sentença. O juiz permitiu, mas disse que
quanto ao réu, nada poderia ser feito, pois a decisão já havia sido dada e assinada, não
podendo mais recorrer.

O fato é que o processo se deu sem obedecer aos trâmites legais e de forma
completamente desproporcional, sem a consideração de todas as circunstâncias do
crime. O julgamento foi movido por uma questão de interesses não só da família do
comendador Veloso que resolveu aparecer, mas também por interesse do juiz que
havia sido comprado e arquitetou a condenação do réu no terceiro júri. O Art. 179,
XIII da Constituição de 1824 previa que “A Lei será igual para todos, quer proteja,
quer castigue, o recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”. Este
artigo equivale ao que atualmente é o Art. 5º, dos direitos e garantias fundamentais.
111

O Devido Processo legal não era previsto na Constituição Imperial. Foi um


direito que passou a ser instituído no Brasil pela primeira vez com a promulgação da
Constituição Federal/88 no seu Art. 5º, LIV, segundo o qual “ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. E o inciso LV prevê que “aos
litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são
assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Francisco José foi julgado sem a presença de um advogado, não teve direito ao
contraditório e nem a ampla defesa, sendo condenado à morte por não possuir sequer
condições de argumentar, já que pouco conhecia a lei. Não conhecia, por exemplo, que
no caso de pena de morte, ele poderia protestar por outro julgamento em novo júri, que
seria da Capital da Província, de acordo com o Art. 308 do Código de Processo Penal
de 1932.

Para que o processo corra de forma justa, todo indivíduo necessita ter acesso
ao conhecimento dos instrumentos e recursos legais para a defesa, além de procurar os
responsáveis por lei para que seus interesses e direitos sejam respeitados e atendidos.
A presença do advogado foi decisiva no julgamento de Francisco José, pois ofereceu
outra visão do caso, gerando a necessidade de considerar que nenhum crime pode ser
pensado fora de seu contexto.

Com a resistência do Doutor Ibiapina,

Entregaram-lhe o processo
Ele o leu publicamente
Disse ao juiz senhor doutor
Este réo está inocente
Só condemna um homem deste
Um juiz inconsciente

Mande julga-lo de novo


Eu sou seu advogado
O réo com este processo
Não pode ser condenado
Mate-o porém com a lei
Assim não, está errado (BARROS, 1917, p. 10)

O Doutor Ibiapina leu a sentença publicamente e pediu que fosse julgado mais
uma vez. O pedido foi atendido e Ibiapina começou a argumentar sobre o quanto a
112

sentença era injusta sobre um homem que, por ser miserável e sem a eloquência dos
doutores, não tinha por quem chamar, não tendo acesso à justiça. O pedido de Ibiapina
visava um julgamento justo, dentro das premissas da lei e considerando as condições
do réu e do crime por ele cometido. O promotor levantou-se, ofendendo o réu, e
levando Ibiapina a erguer-se e exigir que o promotor fosse moderado em suas palavras
e continuou sua defesa, alegando que o réu havia sido afetado por uma forte emoção,
por ter encontrado sua esposa em adultério com o sogro,

O homem naquela hora


De que forma ele ficou?
A mulher em adultério
Da forma que ele achou
Disparando uma espingarda
A ambos os monstros matou (BARROS, 1917, p. 13)15

O promotor reafirmou que estava provado o crime e que os jurados não


considerassem atenuantes e confirmassem a pena de morte. O advogado respondeu-lhe
que não há sentença de morte se houver alguma atenuante e que para ser tal pena
imposta deveria ser comprovada a existência de circunstância agravante. O fato é que
Francisco José havia cometido um crime, por ele mesmo confessado, em decorrência
de ter sido enganado por planos maldosos do sogro, que pretendia continuar
explorando sexualmente sua própria filha, que antes de falecer deu razão ao marido
que a matou, tendo o crime sido perdoado pela própria vítima que também conhecia a
história do réu.

15
Importante considerar que na época, o comportamento social e jurídico em torno do casamento era outro.
Adultério era considerado crime. O Código Criminal de 1830 estabelecia pena de 1 a 3 anos para mulher adúltera
e para o amante, pena esta que não era considerada no caso do homem que traía a esposa de forma esporádica.
Esta visão com relação à infidelidade conjugal é cultural. Algumas sociedades, inclusive, tratava o ato como
passível de morte, o que remonta o Direito Romano, com a Lei das Doze Tábuas, que estabelecia punição
pecuniária para crimes como o adultério. Essa passagem específica do folheto propõe pensar no quanto o Direito
se transforma no decorrer dos tempos, juntamente com a cultura e conforme as necessidades sociais dos novos
tempos. Na época em que Francisco José cometeu o crime, a perspectiva de mundo estava embotada de uma
estrutura patriarcal e fortemente machista. A infidelidade conjugal praticada por uma mulher, numa época em
que ainda conservavam o conceito de “mulher honesta”, tenha uma pena mais severa do que quando praticada
pelo marido. O Código Penal de 1940 passou a equiparar as penas por adultério do homem e da mulher no Art.
240. E em 2005, foi revogado pela Lei 11.106.
113

A defesa do doutor Ibiapina não seguiu no sentido de deixar Francisco José


impune, afinal de contas, o crime estava exposto, “Que data repugnante / essa deseceis
de Agosto! / Que o véo negro da infâmia / Cobriu deste réo o rosto” (BARROS, 1917,
p. 12). A interferência do advogado não teve qualquer interesse envolvido além do
sentimento que o moveu para ver um processo correr de forma justa e proporcional,
levando em consideração as circunstâncias do caso.

No que tange as circunstâncias agravantes e atenuantes, o crime cometido não


teve nenhuma circunstância que pudesse agravar a pena e também era considerado um
jovem de bom comportamento, não tendo cometido nenhum crime na vida antes desse.
A reincidência foi prevista como agravante no Código Criminal, de 1830; no Código
de 1890, com o advento da República e também no Código Penal de 1940, que define
no Art. 63 que “Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois
de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado
por crime anterior”.

Se o réu tivesse cometido o crime após a instituição do Código Penal vigente,


teria como agravante o fato de ter cometido o assassinato contra cônjuge, o que não
estava previsto nos códigos anteriores. E como atenuantes, porém, o réu tinha a
condição de ter agido sob a influência de violenta emoção por ter encontrado sua
esposa o traindo com seu sogro; assim como também o fato de ter espontaneamente
confessado a autoria do crime perante a autoridade, assim como prevê o Art. 65, III, c)
e d) do Código Penal.

As frases ditas por Ibiapina na continuação de sua defesa fez com que todos
ficassem sensibilizados com a situação do réu, jurados, promotor e também o juiz, que
“exclamou como louco / Meu Deus, Meu Deus, eu que fiz / Ia matando inocente / Um
miserável infeliz” (BARROS, 1917, p. 16). Francisco José, por fim, foi inocentado,
teve direito a toda a herança de seu sogro, concedeu alforria a todos os escravos,
vendeu tudo e foi morar num lugar onde ninguém o conhecia.

O folheto faz refletir em torno da perspectiva do Direito Penal, sobre como


pensar o fato criminoso, questão tão importante para o Direito, tendo em vista que lida
114

com a liberdade do indivíduo, sobretudo pelo fato de que quando o Direito Penal passa
pela vida de um ser humano, esta se transforma completamente, principalmente em
razão do estigma que se cria em torno da pessoa que cometeu determinado crime.

No caso de Francisco José, este não teria sentido o estigma, visto que sua pena
seria de morte. Seu destino seria a forca se não tivesse sido salvo após as
argumentações feitas pelo advogado Doutor Ibiapina em sua defesa. A pena de morte,
no Brasil, passou a não existir para o caso de crimes comuns desde o fim do Império,
com a Proclamação da República em 1889. Hoje em dia é proibida no ordenamento
jurídico brasileiro pelo Artigo 5º, XLVII da Constituição Federal, que prevê que “não
haverá pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do Art. 84,
XIX”.

4.2 PENA E RESSOCIALIZAÇÃO – O CASO DE ANTÔNIO SILVINO

O estigma foi sentido por Antônio Silvino, quando foi preso após ter sido
acusado pelo clamor popular de diversos crimes que ele teria cometido. A pena muda
o indivíduo, tornando-o ainda mais revoltado. Essa realidade decorre da dificuldade de
reinserir o preso na sociedade, uma vez que o meio não abre mais as portas para que o
criminoso venha a ter um trabalho e uma vida com dignidade.

O caso de Antônio Silvino é ainda mais complicado, não só pela gravidade


dos crimes cometidos por ele, mas pelo fato de que na época, sequer se falava em
ressocialização. Embora na atualidade, existam leis que prezem por garantir que a pena
seja cumprida de forma mais humana, a ressocialização encontra suas dificuldades
muito mais pelo fato de que as observâncias da Lei de Execução Penal nem sempre
são possíveis de serem cumpridas em razão da precária condição do sistema prisional
que o Estado oferece.

O Art. 1º da Lei de Execução Penal apresenta inicialmente os objetivos da


pena, rezando que “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de
sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração
115

social do condenado e do internado”. Porém a realidade mostra que criminoso, ao


cumprir a pena, sai mais raivoso do que entrou, pois é lá onde, na ausência de tempo
dispendido para atividades de trabalho, estudo e recreação, o indivíduo aperfeiçoa seu
crime e aprende outras práticas criminosas juntamente com outros presos.

O folheto “Antônio Silvino no Jury – Debate de seu advogado” trata do seu


julgamento ocorrido ao meio dia de um 26 de outubro perante a justiça brasileira. O
cangaceiro seria julgado por ter cometido vários crimes, entre eles, roubos, incêndios e
homicídios. Ali seria sua última sentença, já tendo o cangaceiro passado outras vezes
pelo tribunal e sido preso por outros crimes cometidos nas suas andanças pelo
nordeste.

Ao início do rito, o juiz lhe pergunta o seu nome completo, que era Manoel
Baptista de Moraes. “Antônio Silvino” seria apenas uma alcunha, geralmente utilizada
pelos cangaceiros. Segundo ele, não teria cometido todos os crimes pelo qual fora
processado, alegando que muitos outros haviam praticado roubo em seu nome, que o
povo havia levantado falso testemunho e que nos processos do qual é réu por crimes
horrorosos (hediondos), muitos foram os excessos.

Sabe o réo porque está preso?


O juiz lhe perguntou
Disse Silvino: por falço
Que o povo me levantou
Servindo-se de meu nome
Não foi um só que roubou

Mais os horrorosos crimes


Que se vê em seus processos?
Respondeu Silvino; muitos
Escreveram com excessos
Onde eu passava já via
Os rastos de outros perversos (BARROS, Antônio Silvino no Jury, 1957,
p. 2)

Antônio Silvino também disse que não sabia o porquê de estar voltando ao
tribunal, afirmando ser ignorante, ‘não conhecendo bem e nem mal’, mas que ali
estava acompanhado de seu advogado porque o levaram. O juiz, então, ordenou que o
réu sentasse e passou a palavra para o advogado, para que fizesse suas alegações,
falando por vinte minutos e apresentando o máximo de atenuantes possíveis para que
116

Antônio Silvino tivesse, ao menos, a pena reduzida, o que de nada adiantou, tendo em
vista a gravidade dos crimes cometidos.

A primeira colocação do advogado diz respeito à impunidade e ao mal


funcionamento da justiça que condena uns e outros não, pelo mesmo crime; alega que
o réu foi “condenado em artigos onde se livraram vinte”, reafirmando que o mesmo
não teria praticado tudo o que se diz e refletindo sobre o quanto a justiça é seletiva,

Senhores Antônio Silvino


Não fez tudo o que se diz
Todos nos estamos a par
Do povo deste paiz
Que vendo o pobre com o peso
Diz carrega esse infeliz (BARROS, Antonio Silvino no Jury, 1957, p. 3)

Em verdade, Silvino havia cometido vários crimes em sua história e desde


criança, já apresentava uma tendência para a violência. Em outro folheto intitulado
“Todas as lutas de Antônio Silvino”, Leandro Gomes de Barros conta que ele nasceu
na Vila da Ingazeira e havia sido privado até os 11 anos (“Não consentiam que eu
fosse / a pagode nem à feira”) e já

[...] sonhava com serras


Com bosques e desertos feios
Com espetáculos de sangue,
Punhaladas e tiroteios,
Via monte de cadáveres
Riachos com sangue cheios (BARROS, Todas as lutas de Antônio
Silvino, p. 1)

Até que com essa idade foi à missa com um camarada e ao ver os alferes da
polícia aterrorizando a população, reagiu mesmo estando despreparado e nunca tendo
brigado. Esse fato, de acordo com o folheto, esfriou-lhe o coração. Depois desse fato,
seu pai foi morto pela polícia, acontecimento que o levou a entrar no cangaço de vez.

Depois mataram meu pai


Saltei de vez para o cangaço
Mato a 17 anos
Inda não cancei o braço
Tenho o pescoço de bronze
E os intestinos de aço (BARROS, Todas as lutas de Antônio Silvino, p. 4)
117

O Direito, na tendência que se estuda nas universidades e também


institucionalmente, converge para criminalizar a pobreza. Na sociedade excludente e
seletiva, aqueles que não se encaixam dentro do padrão, aqueles que são invisíveis
socialmente, quando chamam a atenção para uma realidade segregadora passam a ser
uma ameaça à ‘normalidade’. Assim, o pobre se torna um inimigo do Estado.

Retornando ao julgamento, em seguida, como um modo de provocar o lado


emocional dos jurados e do juiz, o advogado coloca que está em defesa de Antônio
Silvino não por interesse ou dinheiro, e que não adota “o sistema de um faminto
advogado”; mas por pena de um constituinte pobre e que não tem acesso à justiça por
também não possuir conhecimento e informação.

Eu não me refiro a isso


Porque eu seja interessado
E nem adoto o sistema
De um faminto advogado
Fallo porque tenho pena
De um infeliz desgraçado (BARROS, Antônio Silvino no Jury, 1957, p.
4)

O advogado também disse que, por a lei ter sido escrita por pessoas sérias,
grandes criminalistas e não por pessoas baixas ou revoltosas, o juiz não deveria
interpretar o caso com base no que se diz por aí, sob o risco de julgar com engano. E
ainda observa que há crimes atribuídos a Silvino cometidos quando talvez o pai dele
ainda fosse menino.

Por exemplo um hypothése:


Pedro disse que fulano
lhe disse que lhe disseram
que Paulo matou beltrano
nesse processo de Paulo
Não pode dar-se um engano?

Parece que um ente desses


Cumpre a ordem do destino
Eu ouço fallar em crimes
Cometidos por Silvino
Quando talvez o pai dele
Ainda fosse menino (BARROS, Antônio Silvino no Jury, 1957, p. 4 e 5)
118

O procurador do Estado, Dr. Souza Filho, respondeu-lhe que reconhece o


papel do advogado de defender o culpado e que reconhece as razões que o cargo
admite ao buscar todas as formas possíveis de fazer a defesa, no entanto, a prisão do
réu evitaria que ocorressem mais roubos, mortes e incêndios. Observa ainda que um
criminoso da natureza de Silvino, se solto, nunca mais se reabilita socialmente.

Dr. Simões (o advogado) responde que não é só no homem considerado


honrado que se vê boas ações e que muitos foram os casos de homens que, em um
momento de desgraça, caíram na criminalidade, foram processados e depois de serem
livres, tornaram-se regenerados.

Dr. Souza Filho, para afirmar não ser essa uma atenuante, responde com um
ditado popular “O cesteiro que faz um cesto / Faz mais cem e assim por diante”. Dr.
Simões, por sua vez, com uma lenda antiga responde que “O cavalo por um coice /
Não deve cortar-se a perna”.

O desembargador argumenta que Silvino tem crimes desde a cidade onde


nasceu, no sertão, não tendo recusado qualquer agressão, deixando o povo sem
garantia de segurança, já que onde vivia, só morava quem ele quisesse, aterrorizando
quem ousasse utilizar força contra ele. Se Silvino ficasse livre, dificilmente seria pego
novamente caso cometesse mais crimes. De acordo com o desembargador, o
cangaceiro teria feito duas mortes em Trapiá, quatro ou cinco em Canhotinho, duas ou
três em Ingá e mais mortes na Usina Jundiá.

O advogado Dr. Simões termina a sua defesa exaltando as palavras da lei.

A lei manda que se obre


O que consta na postura
Quem foi fazer fez errado
Quem vê e sabe censura
Da morte para a existência
Muda muito de figura

Porque a lei diz assim


Só poderá ser punido
O crime que for provado
Como foi acontecido
Tendo uma só testemunha
119

Inda não está garantido (BARROS, Antônio Silvino no Jury, 1957, p. 8


e 9)

Por fim, reafirma que Antônio Silvino não era o único cangaceiro que havia,
que muitos cometeram crimes, depois atribuídos ao réu, em lugares aonde ele nem ia.

O conselho se reuniu para a votação, que julgou Antônio Silvino condenado


sem possibilidade de remissão. O cangaceiro foi preso; e perdendo sua liberdade, lhe
ocorreram sentimentos de nostalgia, relembrando sua infância na cidade onde vivia,
refletindo sobre a liberdade do povo e os encantos do sertão. Em outros momentos, lhe
vinha pensamentos de vingança contra o juiz que lhe condenou e o sentimento de
revolta por sentir que todos estão contra si.

Entre as paredes da cadeia, Silvino também pensa consigo que, se solto, se


vingará do juiz e da população do nordeste por ter ido mais uma vez parar na cadeia.
Este folheto transmite reflexão sobre vários questionamentos: Será que a punição de
fato contribui para disciplinar o indivíduo que praticou algum crime? A pena reinsere
o preso na sociedade? De que forma aqueles que possuem o poder podem atuar com
vistas a garantir que o preso não se revolte contra o próprio Estado?

Em outro folheto de título “Exclamações de Antônio Silvino na Cadeia”,


Leandro Gomes de Barros discorre de outro momento no qual o cangaceiro foi preso e
revela:

Tinha 38 anos
Não tinha vivido um mez
Por tanto queria logo
Acabar-se desta vez
Depois de ter se entregado
Se arrependeu do que fez

Elle refletindo isso


Viu errado os planos seus
Exclamou dentro de si
Não há crimes como os meus
Bem diz o velho rifão
Quem deve a Deus paga a Deus (BARROS, Exclamações de Antônio Silvino na
cadeia, 1910, p. 3 – 4)
120

A punição trata-se de uma reação da sociedade e do Estado, ao buscar que a


justiça seja feita quando se vê ferida pelos atos criminosos de alguém, que por sua vez,
deverá ser responsabilizado penalmente, pagando pelo que cometeu. A pena seria
então uma consequência lógica do crime.

Para Hegel (1967, §100), ao cometer o crime, o sujeito sabe que, como
decorrência, será submetido a alguma punição. A pena não teria apenas o objetivo de
um controle social; também carrega como função resgatar a autonomia do indivíduo,
dando sentido à responsabilidade e reconhecendo o criminoso como um sujeito de
direito.

Considera-se, aliás, que naturalmente há uma expectativa humana sobre a


punição, monopolizada pela insegurança, pelo medo de que aquele que está sendo
acusado venha a praticar mais atos violentos contra o meio social. A resposta a esse
medo é realizar a satisfação com o poder punitivo do Estado, com o sofrimento
daquele que passa a ser considerado ‘diferente’ pela sociedade. O inimigo.

A pena, estabelecida pela lei e pelas instituições competentes, se configuraria


como um modo de não tornar a reação da vítima somente uma “vingança”. Para Hegel,
a vingança “por ser uma ação positiva de uma vontade particular, se torna uma nova
transgressão; como se contraditória em caráter, cai em uma progressão infinita e
descende de geração a geração ad infinitum” (1967, §102). Passa-se a concluir que o
ato criminoso não só atinge uma esfera privada, mas a universalidade do Direito.

O crime, na visão hegeliana, consiste num conflito existe entre a vontade


individual e a vontade universal. Aquela nega esta. E o Estado, na condição de
representante dessa vontade universal, quando a vê sendo ferida, compete-lhe negar o
ato criminoso, demonstrando que este não está em conformidade com a vontade
universal (1967, § 82).

No folheto “Exclamações de Antônio Silvino na cadeia”, o poeta descreve as


condições vividas na prisão:
121

Silvino disse por sonho


Isso aqui é a cadeia
Outra casa não podia
Ser tão ascaroza e feia
Só pode ser isso aqui
O lugar que tudo odeia

[...]

Viu hontem um leão heroe


Que no campo se batia
As nodoas de sangue vivo
Que sobre as prezas trazia
Hoje encontra um miserável
Habitante da agonia

Onde a luz do sol não ver-se


Nem uma estrela ilumina
Nem uma réstia da lua
Casualmente se inclina
Nem das manhãs de verão
Aquella luz argentina

Só vêr-se aqui neste sitio


Em horas que o calor arde
Fasendo veses de loucos
Gritam pela liberdade
Uns ou outros perguntando
Ella chegará mais tarde?

A vida é um paraizo
A liberdade um recreio
A tranquilidade é um campo
Saúde um vase de aceio,
Cadeia é jaula infernal
O quadro mais triste e feio

Aquillo para Silvino


Era uma horrenda agonia
Inda fasia tornar-se
Mais triste aquella enxovia
O terror daquele cárcere
Aumentava dia dia. (BARROS, Exclamações de Antônio Silvino na Cadeia, 1910, p.
5, 11 e 12)

Além da pena, ainda há mais consequências. O estigma social é a marca


imposta pela sociedade naquele que de alguma forma contraria a ordem vigente, seja a
ordem cultural, comportamental ou a ordem estabelecida pelas leis. Quando se trata de
uma condenação criminal, a imagem que a sociedade tem da pessoa do criminoso
muda negativamente ao ponto de dificilmente o preso conseguir se reinserir na sua
comunidade. Nas palavras de Mirabete (2002, p. 24):
122

[...] A pena privativa de liberdade não ressocializa, ao contrário, estigmatiza o


recluso, impedindo sua plena reincorporação ao meio social. A prisão não cumpre
uma função ressocializadora. Serve como instrumento para a manutenção da
estrutura social de dominação

A pena, da forma como é imposta no Brasil, não funciona de modo eficaz


quando se trata da ressocialização. Os trechos do folheto de Leandro Gomes de
Barros revelam apenas um retrato da realidade desumanizadora do sistema prisional.
O artigo 5º, XLIX, da Constituição Federal garante no texto “o respeito à integridade
física e moral” do preso.
Mas enquanto a liberdade é um desejo inerente à condição humana, a
precariedade da estrutura do serviço público impede que o detento e sua família
receba a devida assistência. O cárcere, embora superlotado, vem acompanhado de um
sentimento de solidão e abandono, levando o delinquente a alimentar o sentimento de
raiva, vindo novamente a delinquir, como é o pensamento de Antônio Silvino:

Mas o homem prezo está


Sujeito a qualquer mazella
E quem compra numa tasca
Paga pelo preço dela
Isso é caso que se dá
Desde o palácio a uma sella

Se pelo revez da sorte


Inda eu possa me soltar
Aos quatro estados do norte
Eu hei de gratificar
Por uns quatro ou cinco séculos
O povo tem que falar

[...]

Também eu juro ao meu Deus


Se algum dia eu me soltar
Faço cousa a cabra ruim
Que o diabo a de chorar
Até cascavel tem pena
Tapurú chega a exclamar

Dessas estradas de ferro


Desgraço todas as linhas
Famílias em Pernambuco
Só escaparão as minhas
Na Parahyba não fica
Quem bote água as galinhas (BARROS, Antônio Silvino no Jury, 1957,
p 15 – 16)
123

Na realidade, a pena produz uma condição de desigualdade e o criminoso


passa a ser excluído socialmente por ser estigmatizado. Dentro desse contexto há uma
crença por parte dos “iguais”, dos comuns, de que toda punição deve produzir
sofrimento e de que a pena é capaz de solucionar todos os problemas relacionados à
criminalidade, o que não é verdade. Nas condições precárias da infraestrutura do
sistema prisional, quando dificilmente as leis são empregadas, as prisões tornam-se
verdadeiras escolas do crime.
124

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dissertação tece como objetivo primordial pesquisar a respeito da conexão


entre Direito e Literatura, reconhecendo a discussão como um desafio para a seara
jurídica atual, especialmente no Brasil, que tem começado a desenvolver pesquisas na
área recentemente. A importância do estudo da união entre os fenômenos jurídico e
literário tem a ver com a possibilidade de o Direito humanizar-se através da Literatura,
quando passa a analisar a realidade social a partir de outros olhos. A arte, de uma
forma geral, por se comportar de forma aberta e livre transmite ao Direito aquilo que
do alto de sua “torre de marfim”, não consegue exprimir.

Talvez, em algum momento, seja inconveniente para o Direito aproximar-se


da realidade e do ser, por estremecer a base das convicções, da razão e do dogma. No
entanto, as transformações da esfera ao redor e suas necessidades nos mostram cada
vez mais a necessidade dessa aproximação, transcendendo o isolamento do mundo das
leis e passando a compreender a presença do jurídico em outros âmbitos do
conhecimento, científico ou não, e como ele tem sido representado.

Além disso, a pesquisa aproveitou o debate Direito & Literatura para


observar a presença do Direito em folhetos escritos pelo poeta popular Leandro Gomes
de Barros, captando de que forma a sua obra aborda o comportamento das instituições
jurídicas e refletindo a realidade de sua época, bem como as necessidades do povo
nordestino perante uma sociedade excludente e que criminaliza a pobreza.

Por essa razão, o trabalho desenvolvido tem como caráter o fato de ser
inédito e inovador na esfera acadêmica jurídica. O mesmo ensejo pelo qual o tema é
relevante é a razão que ofereceu certas limitações ao trabalho. Estudar Direito na
Literatura popular encontra no caminho a falta de referências bibliográficas, tendo em
vista que, além de existirem poucas obras no Brasil sobre a temática geral, há
pouquíssimas publicações que trazem como objeto de pesquisa o Direito alicerçado
especificamente à literatura popular.
125

No entanto, para a feitura deste trabalho, inicialmente foi preciso colher


referências que dessem suporte para a pretensão dessas linhas que hora se findam.
Textos, artigos, monografias, livros que trabalhassem sobre Direito & Literatura, bem
como sobre a literatura em cordel e sua relação com a realidade social. Em seguida, as
referências se deslocaram para poemas e folhetos de Leandro Gomes de Barros,
visando notar de que forma se poderia notar a presença do jurídico na obra.

A dissertação iniciou apresentando a vida e obra de Leandro Gomes de


Barros, objeto-autor da pesquisa, poeta nascido no Sítio Melancia, no município de
Pombal, alto sertão da Paraíba, de onde mudou-se para Teixeira, mantendo
convivência com outros poetas, cantadores e violeiros, ouvindo rimas e métricas que
viriam influenciar na produção de folhetos e romances sustentando sua vida e de sua
família quando já estava morando em Pernambuco.

Leandro Gomes de Barros, embora não tenha estudado Direito, era


inteligente e teve uma educação que lhe deu uma compreensão de mundo que poucas
pessoas tinham acesso na sua região, visto que só quem estudava eram os filhos da
aristocracia, que compunham o material humano do fenômeno chamado Bacharelismo.
Seus folhetos versaram sobre variados temas, sendo recorrente a denúncia das
desigualdades sociais. O Direito passou pela vida de Leandro em dois momentos: o
primeiro quando foi preso após a publicação de um folheto intitulado “O Punhal e a
Palmatória” (1918), considerado subversivo pelas autoridades da época; o segundo,
quando após sua morte, teve oculta a autoria de vários de seus folhetos.

A partir da contextualização biográfica, a pesquisa envereda pela cultura do


Bacharelismo, que caracterizou a sociedade brasileira nos séculos XIX e início do
século XX, sendo um fenômeno que tinha como direcionamento formar a elite
intelectual, política e econômica para reger administrativamente o país do seu processo
de transição em diante (quando o Brasil deixou de ser colônia de Portugal). As
considerações que podem ser exprimidas dessa parte é que o comportamento do
bacharelismo tem norteado até os dias atuais o estudo do Direito – em outros formatos
– e certamente influenciado a sua postura isolada em relação a outras áreas da vida
social.
126

A partir de então, a argumentação teceu a influência positivista no ensino do


Direito no Brasil como uma herança do bacharelismo, considerando que o positivismo
jurídico não teve como intenção afastar o Direito da Moral e nem de outras áreas do
conhecimento e das relações na sociedade. O Positivismo jurídico visou tão somente
dar um caráter científico próprio às pesquisas para que não se misturasse
metodologicamente com outras ciências, o que não impede que o fenômeno jurídico
seja estudado de modo interdisciplinar ou transdisciplinar, tecendo conexões com a
sociologia, a filosofia, a economia e, inclusive, a literatura.

Da exposição dos pressupostos que justificaram a delimitação do objeto, a


pesquisa passa aos pressupostos teóricos. Assim, apresenta o debate sobre o
movimento Direito & Literatura, que teve início nos EUA na década de 1970, tendo
também se difundido na Europa e começado a abrir caminhos no Brasil. A reflexão
desta parte do trabalho segue na observação de que as duas áreas trabalham com a
linguagem, sendo esse o ponto fundamental de convergência. Sendo os dois
fenômenos desenvolvidos e transformados conforme o pensamento social no decorrer
do tempo e sendo a literatura um campo aberto para a interpretação e para ser reflexo
das necessidades que guiam determinado povo em seu espaço e tempo, com esse
alicerce o Direito poderia aprimorar-se e humanizar-se cada vez mais.

A par destas lentes o objeto é trabalhado, a dissertação adentra na discussão


sobre a história do surgimento da Literatura em cordel para tratar da estética da Arte
popular como arte participante, em especial, a literatura de Leandro Gomes de Barros.
Em outras palavras, os folhetos de cordel, por refletirem e denunciarem problemas
sociais, estariam classificados como uma arte engajada, a serviço de alguma
transformação. Os folhetos estariam cumprindo a função social de informar o que
acontecia no mundo e também servia como porta-voz para a população explorada pelo
governo e marginalizada pela falta de conhecimento e de acesso à justiça.

A partir de quatro obras, sendo elas “Defeza feita pelo doutor Ibiapina”
(1917) e “Antônio Silvino no Jury – Debate de seu advogado” (1957), “Todas as lutas
de Antônio Silvino” (1912) e “Exclamações de Antônio Silvino na cadeia” (1910), a
pesquisa passa a discutir o comportamento do Tribunal do Júri, pensando sobre a
127

importância do réu ter acesso a um Devido Processo Legal, para que se efetive o seu
acesso à justiça no processo e sobre a pena enquanto a concretização de um sentimento
por parte da sociedade de gozo e de desejo de que o criminoso responda por seus atos;
bem como sobre a ressocialização.

Talvez, possa haver certo estranhamento com relação à temática desta


pesquisa pelo fato de ser uma área de estudos recente na Ciência do Direito, e
especialmente no Brasil, em fase de desenvolvimento. Esse estranhamento talvez seja
o mesmo de quando o Direito começou a se relacionar com a Sociologia e, hoje, no
entanto, a Sociologia Jurídica é disciplina presente na grade curricular dos cursos
jurídicos no Brasil.

Diante de tudo o que foi exposto no trabalho e retornando ao problema


inicial que buscou responder, considera-se que os folhetos de cordel produzidos por
Leandro Gomes de Barros, pela tonalidade crítica, exerceu um importante papel na
comunidade com seu potencial de comunicar, conscientizar e denunciar os problemas
sociais de sua época.

Os folhetos de cordel produzidos pelo autor-objeto, em seu caráter político,


trazem aspectos relacionados ao mundo do Direito ao manifestar-se a partir de uma
visão que representa o povo e sua busca por sobrevivência num sistema que explora e
marginaliza o pobre.

Por fim, conclui-se reafirmando a necessidade de que o Direito continue


seguindo no caminho de abrir-se para compreender a si mesmo por meio da Literatura,
assim como também que o mundo da Literatura se abra para o Direito. Sendo a
linguagem um ponto comum, o Direito teria da Literatura o exercício da alteridade, da
capacidade de observar também pelo lado do outro e de aproximar-se do ser humano e
suas necessidades reais.
128

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137

ANEXO 1
138
139
140

ANEXO 2
141
142

/
143
144
145

ANEXO 3
146
147
148
149
150

ANEXO 4
151
152
153

ANEXO 5
154
155
156

ANEXO 6
157
158
159
160
161

ANEXO 7
162
163
164
165
166
167

ANEXO 8
168
169
170
171
172

ANEXO 9
173
174
175
176
177

ANEXO 10
178
179
180

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