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ElonDaSilvaBarbosaDamaceno Dissert
ElonDaSilvaBarbosaDamaceno Dissert
JOÃO PESSOA
2019
ELON DA SILVA BARBOSA DAMACENO
JOÃO PESSOA
2019
Catalogação na publicação
Seção de Catalogação e Classificação
UFPB/CCJ
AGRADECIMENTOS
O desenvolvimento desta dissertação não teria sido possível sem o apoio de pessoas
que de algum modo se fizeram presentes durante a trajetória.
Agradeço
À minha orientadora Professora Drª Lorena Freitas pela paciência com a qual conduziu
o trabalho, bem como pela confiança depositada nesta ideia.
Ao Professor Dr. Enoque Feitosa pela força, reflexões e aulas realizadas nas reuniões
do grupo de pesquisa Realismo e Marxismo que em muito esclareceram os
direcionamentos da pesquisa.
Ao Professor Dr. Gaspar pelas sugestões e pelos livros compartilhados, trazendo uma
luz na finalização deste texto.
À Ione Severo, por ter concedido livros e cordéis sobre o autor-objeto do trabalho,
fazendo-me adentrar mais no universo literário do poeta.
À Nara Limeira e Guga Limeira pela força e por terem me presenteado com uma
Antologia reunindo poemas de Leandro Gomes de Barros.
À minha família pelo incentivo e motivação que transmitiram para que este fim se
concretizasse
Por que existem o mal e o sofrimento humano?
Perguntaria também
Como é que ele é feito
Que não dorme, que não come
E assim vive satisfeito.
Por que foi que ele não fez
A gente do mesmo jeito?
Tendo como pressuposto que a literatura pode servir de alicerce ao mundo jurídico
para fins de interpretação de sua realidade, esta pesquisa visa estudar como o Direito é
tratado na obra do poeta popular Leandro Gomes de Barros, que deu início ao
movimento editorial do cordel brasileiro, com folhetos e romances que pensavam as
questões sociais e políticas de seu tempo. Este trabalho tem como objetivos específicos
estudar sobre a necessidade cada vez mais latente de o jurídico aproximar-se mais da
realidade social, transcendendo o isolamento resultante da cultura do Bacharelismo; e
considerar a importância de o fenômeno ser abordado a partir de seus pontos de
intersecção com a arte, neste caso, a literatura popular, conduzindo o Direito a levantar
aquilo que seus livros dogmáticos carecem, a sensibilidade. Embora ainda não exista
no Brasil uma Teoria específica que trace a união entre Direito & Literatura, o estudo
trabalha com a hipótese de que é possível analisar os folhetos de cordel produzidos
pelo poeta sob o ponto de vista jurídico, configurando o caráter inovador deste texto. É
com essa motivação que o trabalho reflete sobre a necessidade de se estudar o Direito
partindo de uma visão não dogmática; questiona a conexão entre o campo da
Literatura de cordel e o do Direito, principalmente quando se trata da presença deste
naquele; ao passo que também analisa o papel do gênero literário enquanto arte
participante na comunicação e reflexão sobre as necessidades do povo.
Based on the assumption that literature can serve as a foundation for the legal world
for the purpose of interpreting its reality, this research aims to study how Law is
treated in the work of the popular poet Leandro Gomes de Barros, who initiated the
editorial movement of the Brazilian cordel, with leaflets and romances that thought the
social and political issues of his time. This work has as specific objectives to study
about the increasingly latent need of the juridical approach more closely to the social
reality, transcending the isolation resulting from the culture of Bachalerism degree;
and consider the importance of the phenomenon being approached from its points of
intersection with art, in this case, popular literature, leading the Right to raise what
their dogmatic books lack, sensibility. Although there is not yet a specific theory in
Brazil to trace the union between Law & Literature, the study works with the
hypothesis that it’s possible to analyze the cordel leaflets produced by the poet from a
legal point of view, shaping the innovative character of this text. It’s with this
motivation that the work reflects on the necessity to study the Law starting from a non-
dogmatic vision; questions the connection between the field of literature and law,
especially when it comes to the presence of this in that; while also analyzing the role
of the literary genre as an art participant in communication and reflection on the needs
of the people.
INTRODUÇÃO.............................................................................................................15
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................124
REFERÊNCIAS..........................................................................................................128
ANEXOS.....................................................................................................................137
15
INTRODUÇÃO
Embora seja inafastável que o Direito mantenha seu caráter positivo, guiado
pela segurança jurídica, para não perder a sua essência, é desejável que se abrace com
outras extensões, já que o fenômeno pode ser notado ou captado em outras vertentes
da criação humana, como a Literatura, estando inteiramente interligado às
transformações ocorridas no seu espaço, adaptando-se às necessidades de seu tempo.
Este capítulo segue com uma reflexão em torno de uma visão não
dogmática da Ciência Jurídica, considerando que o Direito não está limitado apenas ao
que está expresso na lei. Tendo em vista que a sociedade é dinâmica e muda conforme
as necessidades sociais que se apresentam durante os tempos, entendemos que o
fenômeno jurídico acompanha as transformações e por esse motivo necessita estar
próximo da sociedade. A análise dessa parte compreende o positivismo jurídico de
18
Hans Kelsen não como uma teoria que veio afastar o Direito da Moral, mas
simplesmente objetivando estabelecer um caráter científico próprio da Ciência
Jurídica.
Sua obra, mesmo tendo sido escrita entre o fim do século XIX e início do
século XX, continua atual por tratar de assuntos referentes à natureza humana,
carregando um discurso político de denúncia de problemas sociais, como a corrupção e
os descasos do governo com a comunidade, além de fazer críticas ferrenhas aos
impostos, que exploram economicamente a população sem corresponder às suas
necessidades.
O capítulo inicial desta pesquisa tem como norte fazer uma apresentação do
autor-objeto de estudo, o poeta popular Leandro Gomes de Barros, responsável por dar
impulso ao movimento editorial do cordel brasileiro, já que foi o primeiro a viver
unicamente da venda de seus folhetos, provocando também a luta em torno dos
Direitos Autorais no campo da poesia popular, já que o mesmo tivera muitas de suas
obras publicadas em nome de outros poetas que ocultaram a verdadeira autoria.
Leandro Gomes de Barros é considerado o rei da poesia popular, por ter sido
o primeiro a viver exclusivamente da produção e venda de folhetos de cordel, e assim,
popularizado essa forma de literatura no nordeste brasileiro. É natural do Sítio
Melancia, que, na época, pertencia ao município de Pombal – Paraíba e hoje pertence
ao município de Paulista. Nasceu no dia 19 de novembro de 1865, filho de José Gomes
de Barros Lima e Adelaide Xavier de Farias. De acordo com Arievaldo Vianna (2014,
p. 28), Leandro conviveu com os pais durante o início de sua infância no sítio que era
propriedade de seus avós maternos.
A cultura dos sertões representada pelos cantadores violeiros, teria tido suas
raízes no trovadorismo dos tempos medievais, que ao chegarem da Península Ibérica
às Américas, encontraria um terreno fértil para se espalhar nos versos de poetas que
deram a essa arte formato e características peculiares ao refletirem o seu tempo e o seu
espaço social.
Vianna (2014, p. 30-32) revela que dez anos antes de Leandro chegar à Vila
do Teixeira, o lugar já era cenário de lutas sanguinárias, envolvendo a família dos
perigosos Guabirabas e o jovem Liberato da Nóbrega, suplente a delegado que teria
enfrentado tal família, que era protegida pelos Dantas, família com grande influência
política na vila e que era do Partido Liberal, ao qual Liberato fazia oposição, sendo do
Partido Conservador.
22
Os Guabirabas, um grupo
De três irmãos e um cunhado,
Tudo assassino por índole,
Cada qual o mais malvado!
Aquele sertão inculto
Tinha essas feras criado (VIANNA, Arievaldo, 2014, p. 30)
1
BATISTA, Paulo Nunes. Raízes do Cangaço: Ligeiras considerações sobre as possíveis origens do cangaço.
Disponível em: <http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=35638&cat=Artigos&vinda=S> Acesso
em: 27 de setembro de 2018
23
Ao se desentender com o seu tio, com quem não tinha boa relação, o poeta
parte para o Pernambuco, morando em Vitória de Santo Antão até 1907. E começou a
escrever seus folhetos, ainda por volta de 1889, aos 24 anos, de acordo com a biografia
publicada pela Fundação Casa de Rui Barbosa2.
2
BIOGRAFIA à moda da Casa. Disponível em:
<http://www.casaruibarbosa.gov.br/SubsiteCordel/leandro_biografia.html>. Acesso em: 26 de setembro de 2018.
3
ATHAYDE, João Martins. A Peleja de João Athayde com Leandro Gomes de Barros. Disponível em:
<http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=cordelfcrb&pagfis=15426>. Acesso em: 26 de setembro
de 2018.
24
Com a morte do pai, Raquel Aleixo de Barros cuidou de preservar a sua obra
juntamente com o marido, o poeta Pedro Batista. No entanto, três anos depois veio a
falecer no parto de sua primeira filha e sua coleção particular de folhetos passou para
Sebastião Nunes Batista, sobrinho de Pedro, que deixou o legado sob a
responsabilidade da Casa Rui Barbosa – Rio de Janeiro (VIANNA, 2014, p. 55-56).
Figura 1 – “AVISO – Tendo falecido o poeta Leandro Gomes de Barros passou a me pertencer a propriedade
material de toda a sua obra literária. Só a mim, pois, cabe o direito de reprodução dos folhetos do dito poeta,
achando-me habilitado a agir dentro da lei contra quem cometer o crime de reprodução dos ditos folhetos”
(Imagem encontrada no acervo disponível no site da Fundação Casa Rui Barbosa)
Figura 2 – “Attenção – Com vistas aos Drs. Chefes de Policia dos Estados do Pará e Ceará – Já se achava este
folheto em composição quando chegou ao meu conhecimento que em Belém do Pará, um indivíduo de nome
Francisco Lopes e no Ceará um outro de nome Luiz da Costa Pinheiro, tem criminosamente feito imprimir e
vender este e outros folhetos do poeta Leandro Gomes de Barros, sem a menor autorização de minha parte que
sou legítimo dono de toda a obra literária desse poeta [...] PEDRO BAPTISTA” (Imagem encontrada no acervo
disponível no site da Fundação Casa Rui Barbosa)
26
[...]
Essa investida no sentido da padronização dos folhetos vem, sem dúvida, fortalecer
a sua marca editorial, constituindo também um modo de apropriação das obras de
autoria diversa, por ele negociadas para publicação. Especialmente no caso das obras
de Leandro, as quais, com a compra dos direitos de propriedade, Athayde passa a
representar legalmente, a apropriação se dá de forma radical. Algumas vezes, como
mostram, sobretudo as edições posteriores a 1930, as atualizações vão um pouco
além da revisão ortográfica e das pequenas mudanças observadas no título de
algumas obras, chegando, em muitos casos, a comprometer o reconhecimento da
autoria.
Quando a desgraça quer vir não manda avisar ninguém, não quer saber se um vai
mal e nem se outro vai bem, e não procura saber que idade fulano tem. Não especula
se é branco, se é preto, rico, ou se é pobre, se é de origem de escravo ou se é de
linhagem nobre. É como o sol quando nasce. O que acha na terra, cobre! Um dia,
quando se fizer a colheita do folclore poético, reaparecerá o humilde Leandro
Gomes de Barros, vivendo ele de fazer versos, espalhando uma onda sonora de
entusiasmo e de alacridade na face triste do sertão.
Figura 4 – “AVISO IMPORTANTE – Aos meus caros leitores do Brasil – Ceará, Maranhão, Pará e Amazonas –
aviso que desta data em diante todos os meus folhetos completos trarão o meu retrato. Faço este aviso afim de
prevenir aos incautos que teem sido enganados na sua boa fé por vendedores de folhetos menos sérios que teem
alterado e publicado os meus livros, cometendo assim um crime vergonhoso” - Contracapa do Folheto “História
de João da Cruz” (Imagem encontrada no acervo disponível no site da Fundação Casa Rui Barbosa)
29
Figura 5 – “Leandro Gomes de Barros, avisa que está morando em Areias, Recife, e que remeterá pelo correio
todos os folhetos de suas produções que lhe sejam pedidos” – Contracapa do Folheto “A Cura da Quebradeira”.
(Imagem encontrada no acervo disponível no site da Fundação Casa Rui Barbosa)
Em 1913, certamente mal informados, 39 escritores, num total de 173, elegeram por
maioria relativa Olavo Bilac príncipe dos poetas brasileiros. Atribuo o resultado a
má informação porque o título, a ser concedido, só poderia caber a Leandro Gomes
de Barros, nome desconhecido no Rio de Janeiro, local da eleição promovida pela
revista FON-FON, mas vastamente popular no Nordeste do País, onde suas obras
alcançaram divulgação jamais sonhada pelo autor de “Ouvir Estrelas”. [...] E aqui
desfaço a perplexidade que algum leitor não familiarizado com o assunto estará
sentindo ao ver defrontados os nomes de Olavo Bilac e Leandro Gomes de Barros.
Um é poeta erudito, produto da cultura urbana e burguesa média; o outro, planta
sertaneja vicejando à margem do cangaço, da seca e da pobreza. Aquele tinha livros
admirados nas rodas sociais, e os salões o recebiam com flores. Este, espalhava seus
versos em folhetos de cordel, de papel ordinário, com xilogravuras toscas, vendidas
nas feiras a um público de alpercatas ou de pé no chão.
30
Leandro Gomes de Barros não foi apenas o primeiro, foi o maior de todos os poetas
populares do Brasil. Desbravador de uma seara nova, a da publicação de folhetos,
nenhum outro lhe arrebatou a palma na quantidade e qualidade da obra divulgada.
[...] Como poeta satírico não teve igual. Metade de sua obra descamba para o
picaresco. Ele próprio se tinha na conta de humorista
Ariano Suassuna foi um dos escritores que bebeu da rica fonte do rei da
poesia popular ao ter se inspirado em duas de suas obras-primas – “O Dinheiro – O
Testamento do cachorro”, de 1909 e “O Cavalo que defecava dinheiro” na composição
da peça teatral O Auto da Compadecida, de 1955.
Trechos de sua vida são lembrados até hoje. Contam que já morava aqui no Recife
(Leandro) quando um senhor de engenho, indignado com um morador, resolveu
aplicar neste uma sova de palmatória. [...] Um dia o senhor de engenho é
surpreendido por violenta punhalada vibrada pela mesma mão que levara seus bolos.
O poeta Leandro aproveita o caso policial, transformando-o em folheto que era um
libelo contra o senhor de engenho. Descreve em “O Punhal e a Palmatória”, com
calor e simpatia, a inesperada vindita. O Chefe de Polícia, enfurecido com a
literatura de Leandro (e a serviço do latifundiário), manda metê-lo na cadeia. Apesar
de folgazão, Leandro era homem de muita vergonha e de muito sentimento. E como
naquele já distante ano de 1918 a cadeia constituía uma humilhação, à humilhação
da cadeia sucumbiu o grande trovador popular (ÁSFORA apud TERRA 1981, p. 09)
32
Ruth Terra (1983), porém, indo mais além, buscou no acervo dos Fundos
Villa-Lobos, vindo a encontrar o que seria “O Punhal e a Palmatória”. No entanto,
percebeu que a primeira estrofe não condizia com os versos que Ásfora havia
colocado. De acordo com os versos encontrados pela pesquisadora, a primeira estrofe
tecia uma clara crítica à nova forma de governo que se estabelecia no Brasil naquele
ano
[...]
33
Tudo há de se sellar
Isto é ordem executada
Para cazar-se uma noiva
Há de exigir-se selada
Sella-se o noivo também
E é quem mais sello tem
Não sellam o pai por favor
O mais tudo cai nas unhas
De juiz e colletor. (BARROS, As Misérias da Epocha, p. 1, 2 e 4)
[...]
[...]
[...]
O diploma falso, no entanto, de nada valia já que não tinha aprendido sequer
a ler. Em toda loja que chegava, Chico era cobrado pelos gastos que teve sem poder
pagar, enquanto seus pais estavam esperançosos que ele voltasse para casa com algum
dinheiro fruto de seu trabalho. Ao final, Chico perde o diploma e resolve voltar ao seu
ofício de carregador. A história, ao guardar a memória social da época, revela a
37
relevância que ganhava perante a sociedade alguém que tivesse adquirido um diploma.
Ser doutor significava ascender no status social.
Em verdade, será bem difícil dizer em que momento justo o Brasil começou a sua
independência. Era colônia, sem nenhum valor em face da metrópole; com o tempo,
foi crescendo, crescendo, crescendo, e, um belo dia, verificaram todos que ali estava
uma nacionalidade, formada, vigorosa, pronta a fazer-se inteiramente senhora dos
seus destinos; nação à mercê da qual o reino de ultramar já vinha vivendo, e assim
continuaria, até que o tempo (ou algum aventureiro, refletia o próprio rei)
39
4
Nesse ponto, precisamente, os portugueses e seus descendentes imediatos foram inexcedíveis. Procurando
recriar aqui o meio de sua origem, fizeram-no com uma facilidade que ainda não encontrou, talvez, segundo
exemplo na história. Onde lhes faltasse o pão de trigo, aprendiam a comer o da terra, e com tal requinte, que —
afirmava Gabriel Soares — a gente de tratamento só consumia farinha de mandioca fresca, feita no dia.
Habituaram-se também a dormir em redes, à maneira dos índios. Alguns, como Vasco Coutinho, o donatário do
Espírito Santo, iam ao ponto de beber e mascar fumo, segundo nos referem testemunhos do tempo. Aos índios
tomaram ainda instrumentos de caça e pesca, embarcações de casca ou tronco escavado, que singravam os rios e
águas do litoral, o modo de cultivar a terra ateando primeiramente fogo aos matos. A casa peninsular, severa e
sombria, voltada para dentro, ficou menos circunspecta sob o novo clima, perdeu um pouco de sua aspereza,
ganhando a varanda externa: um acesso para o mundo de fora (HOLANDA, p. 46-47)
40
[...] que jamais se tenha naturalizado entre gente hispânica a moderna religião do
trabalho e o apreço à atividade utilitária. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais
excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a
luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de
grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação.
O que, com segurança, se pode afirmar dos portugueses e seus descendentes é que
jamais se sentiram eficazmente estimulados a essa energia. Mesmo comparados a
colonizadores de outras áreas onde viria a predominar uma economia rural fundada,
como a nossa, no trabalho escravo, na monocultura, na grande propriedade, sempre
se distinguiram, em verdade pelo muito que pediam à terra e o pouco que lhe davam
em retribuição (HOLANDA, 1995, p. 51).
Nas colocações de Caio Prado Jr. na obra Evolução Política do Brasil, o que
assinalou o início da modernização do país foi a supressão do tráfico de escravos. No
momento em que o Brasil se encontrava nesse processo de descolonização, passava a
integrar uma estrutura econômica mundial, se colocando dependente de condições
exigidas pela Inglaterra. Os interesses britânicos aconselhavam ao combate do tráfico
africano. Ocorria que o Brasil, por contar com o braço do trabalho escravo na
produção de açúcar estava em vantagem em relação às Índias Ocidentais, com as quais
concorriam e sobre as quais a Inglaterra tinha interesse. Em 1850, a Lei Eusébio de
Queiroz aboliu o tráfico negreiro. Tal fato ocasionou mudanças na agricultura, na
indústria e no comércio. A velha estrutura passava por uma remodelação (PRADO Jr.,
2012 p. 90-94).
[...]
[...]
[...]
[...] em cerca de 150 mil o total para toda a América espanhola. Só da Universidade
do México sabe-se com segurança que, no período entre 1775 e a independência,
saíram 7850 bacharéis e 473 doutores e licenciados. É interessante confrontar este
número com o dos naturais do Brasil graduados durante o mesmo período (1775-
1821) em Coimbra, que foi dez vezes menor, ou exatamente 720.
Essa intelectualidade movida por técnicas que iam além das condições da
época lhes conferia legitimidade para exercer cargos elevados na política e confiança,
48
muito embora a linguagem dessa nova nobreza nem sempre se fizesse entender por
aqueles que não tinham o mesmo acesso a tais conhecimentos. Foi o que considerou
Freyre (2002, p. 280), afirmando que havia “o português dos bacharéis, dos padres e
dos doutores, quase sempre propensos ao purismo, ao preciosismo e ao classicismo, e
o português do povo, do ex-escravo, do menino, do analfabeto, do matuto, do
sertanejo”.
A imagem, deste modo, era uma preocupação maior dos bacharéis que
buscavam parecer eruditos, quando suas ações não condiziam com seus discursos.
Kozima (2014, p. 493-494), em torno do paradoxo da imagem dos bacharéis, afirma
que a modernização do Estado e a configuração das relações sociais que naquele
49
Nas colocações de Freyre (2013, p. 447), às vezes era filho legítimo ou não
do senhor de engenho que tinha ido estudar na Europa sob influência de algum tio
padre ou parente maçom; outras vezes era filho de ‘mascates’, que voltavam da Europa
“socialmente iguais aos filhos das mais velhas e poderosas famílias de senhores de
terras”:
Do mesmo modo que iguais a estes, muitas vezes seus superiores pela melhor
assimilação de valores europeus e pelo encanto particular, aos olhos do outro sexo,
que o híbrido, quando eugênico, parece possuir como nenhum indivíduo de raça
pura, voltavam os mestiços ou os mulatos claros. Alguns deles filhos ilegítimos de
grandes senhores brancos; e com a mão pequena, o pé bonito, às vezes os lábios ou o
nariz, dos pais fidalgos.
A intelectualidade dos mesmos fez com que fossem tolerados em meio aos
círculos tradicionais. Era o que na obra de Freyre se chamou de “tolerância racial
brasileira”. Na medida em que os mulatos e até mesmo os negros, absorviam
comportamentos europeus, passavam a atingir um maior grau inserção social. Muitos
deles absorviam de tal forma o modo de vida europeu, que quando voltavam após
cinco anos caiam no desencanto de uma difícil readaptação ao meio brasileiro,
sobretudo o rural. E ainda que se distanciassem da ‘aristocracia matuta’, nela
encontraram os aliados para futuros movimentos de reconstrução da sociedade.
formação possuía um viés mais filosófico, ao passo que em São Paulo, a formação era
fortemente orientada pelo pensamento positivista. Mais tarde, foram instituídas escolas
na Bahia e no Rio de Janeiro.
[...] na prática, o sucesso do bacharelismo legalista devia-se não tanto ao fato de ser
uma profissão, porém, muito mais uma carreira política, com amplas alternativas no
exercício público liberal, pré-condição para a montagem coesa e disciplinada de uma
burocracia de funcionários (2010, p. 127)
dos mortais. Havia a crença de que o operador do Direito teria a capacidade de assumir
qualquer que fosse a atividade para a qual tivesse sido nomeado. Deste modo, os
bacharéis também enveredavam por áreas diversas, como a literatura e a imprensa.
Em 1888, a Lei Aurea, um dos marcos da passagem da vida rural para a vida
urbana, foi votada no senado e assinada pela Princesa Isabel em 13 de agosto, sendo o
Brasil, o último país a abolir o regime escravocrata na América, já que a condição
estava impregnada no funcionamento do sistema, tendo sido quase cinco milhões de
pessoas que aportaram no país para serem escravizadas.
O fim da escravidão não pode ser considerado uma “boa ação” por parte da
princesa. Nem tão somente resultado das pressões econômicas internacionais. A
abolição teve como fator principal a grande participação popular e artística no seu
movimento.
influenciada por ideias liberais. Esse processo colocou em risco o velho modelo
colonial, agrário, patriarcal, concentrado no poder de senhores donos de grandes terras.
Gráfico 1 - Evolução dos Concluintes de Direito – Brasil – 1993-2003. Fonte: MEC/INEP. Sinopses
Estatística da Educação Superior. Vários anos. Nota: Média geométrica da década
Gráfico 2 – Número de matrículas e cursos de graduação, por categoria administrativa. Brasil 1980-2016. Fonte:
INEP
instituída pelos que chegam ao Poder. Na visão de Lyra Filho (1980, p. 6), o direito
positivado é a ótica exclusiva de uma classe dominadora que estabelece as leis, às
quais não pode ser reduzido o fenômeno como um todo em uma sociedade tão plural,
marcada pelo conflito de interesses de classes e grupos.
Embora seja inafastável que o Direito mantenha seu caráter positivo, guiado
pelo princípio da Segurança Jurídica, para não perder parte de sua essência, é desejável
que se abrace com outras esferas do conhecimento, já que o fenômeno pode ser notado
ou captado em outras vertentes da criação humana, inclusive na Literatura. O Direito é
um fenômeno social, ou seja, construído a partir do lugar social em que se encontra
determinado povo em determinado tempo.
5
“Doutrina filosófica segundo a qual o espírito humano não pode atingir nenhuma certeza a respeito da
verdade”. Dicionário UNESP o português contemporâneo. [S.1.]: UNESP. 2004. P. 267.
64
A Ciência Jurídica não nega sua conexão com outras disciplinas, apenas
busca evitar que haja uma mistura de metodologias diferentes que venha a apagar a
essência da Ciência Jurídica (KELSEN, 1998, p. 2). Assim, o Direito também pode se
interligar com outras áreas do conhecimento e da vida social, não de forma
metodológica, mas para fins de interpretação e estudo.
Um jurista analisa objetivamente leis, ainda que se esforce para que o Direito de seu
país se ajuste aos conceitos éticos mais perfeitos, tal como ele os concebe. A atitude
positivista não pressupõe e tampouco nega a importância dos estudos da sociologia
jurídica, isto é, das indagações sobre a atuação do Direito na realidade social, mas
simplesmente afasta da ciência jurídica e da análise das normas este tipo de
consideração.
absoluto. A Ciência não trabalha com certezas absolutas, mas com fundamentos
lógicos, sendo resultado de uma construção teórica, que pode ser alterada na
observância de constatações diferentes das previstas anteriormente.
A importância da metodologia para a ciência advém por ser através dela que
se traça o caminho para a fundamentação e comprovação do que se enuncia, para a
validação do saber científico. E a escolha do método de pesquisa depende do objeto e
do que se objetiva. O método fixa as bases que direcionam ao conhecimento do objeto.
Maria Helena Diniz (2009, p. 21) observa que “esse condicionamento não implica
marcos definitivos, dentro dos quais se deve desenvolver o labor científico”, ou seja, a
ciência não é um conhecimento absoluto sobre seu objeto, mas uma construção
investigativa na qual esse objeto vai sendo conhecido.
Deste modo, não há qualquer critério que defina qual deve ser a
interpretação correta para o Direito Positivo. O que há é uma moldura, dentro da qual
cabem várias significações e soluções possíveis, de igual valor, embora apenas uma se
torna positivada. Trata-se de um trabalho de intelecto, de compreensão, que se
direciona para uma escolha do posicionamento que seja o mais correto diante de todos
os outros que cabem na moldura.
Hans Kelsen (1998, p. 249) ainda coloca que essa questão não é problema da
Ciência do Direito, mas de uma Política de Direito, afirmando que “a tarefa que
consiste em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa) ou o único ato
68
[...] não pode fazer outra coisa senão estabelecer as possíveis significações de uma
norma jurídica. Como conhecimento do seu objeto, ela não pode tomar qualquer
decisão entre as possibilidades por si mesmas reveladas, mas tem de deixar tal
decisão ao órgão que, segundo a ordem jurídica, é competente para aplicar o Direito.
(Kelsen, 1998, p. 249)
Ou seja, não cabe à Ciência do Direito fazer exposição sobre a ficção de que
uma norma permite apenas uma interpretação, a ‘correta’. Essa tarefa, que tem caráter
político, fica a cargo dos órgãos jurídicos. Nessa discussão sobre interpretação, o que
se quer aqui apontar é que o próprio Kelsen, cria um processo de legitimação do que
discute. Porém, ao tratar da moldura dentro da qual diversas interpretações são
possíveis, abre o espaço para o questionamento de sua própria Teoria.
A totalidade do Direito não está contida na lei, porque a lei, simplesmente, não
comporta todo o Direito. O art. 20, §3º da constituição alemã, por exemplo, consagra
este mandamento fundamental da juridicidade ao estabelecer que “os Poderes
executivo e Judiciário obedecem à Lei e ao Direito”, reconhece, registra e admite
que há um direito que ultrapassa a letra da lei e que é possível encontrar o Direito
fora (aquém e além) dos limites da norma jurídica positiva
69
Em primeiro lugar, ele poderia designar uma forma de prática teórica que permanece
enclausurada no plano do visível, ou seja, do real tal como ele está já identificado e
ordenado no discurso ideológico. Em segundo lugar, empirismo significa uma teoria
do conhecimento, a teoria desta prática teórica que pensa que as determinações que
ela transporta para o seu discurso são recolhidas do real mesmo, do próprio objeto
empírico [...]
descrever como ele é. É no contato do sujeito (racional) com o objeto (real), ou seja,
no dado empírico, que se verifica a constatação e, por tanto, o conhecimento, como
também observa Marques Neto (2001, p. 13). Teria a pesquisa empírica o papel
fundamental de “reduzir todo o conteúdo do conhecimento a determinações
observáveis” (JAPIASSU, 1975, p. 87).
Deste modo, quando o Direito se abre para se relacionar com outras áreas, se
permite conhecer melhor a realidade num processo de renovação da dogmática
jurídica. Interessante é a observação de Carlos Alberto Salles em debate moderado por
Paulo Eduardo Alves da Silva sobre a pesquisa empírica em Direito. A respeito do
71
Ocorre que para efeitos metodológicos, para que a Ciência do Direito não
perca seu próprio caráter, busca não absorver para si métodos provenientes de outras
áreas do conhecimento. O objeto da Ciência do Direito é a norma jurídica. Nesta
discussão também nos cabe a reflexão de que se a ciência trabalha com fatos
comprovados e tendo a Ciência jurídica a responsabilidade também de observar o
comportamento humano em sociedade, cabe ao pesquisador não se limitar a uma visão
dogmática. Há um paradoxo. O próprio positivismo jurídico, deste modo, justificaria
também a necessidade de libertar o Direito do seu mundo fechado, aproximando-o da
comunidade.
É preciso ponderar ainda sobre Positivismo Jurídico, que este ponto de vista
fora bastante mal interpretado durante os tempos, atribuindo a esse discurso o suposto
afastamento entre o Direito e a Moral. A realidade, no entanto, é que a partir do século
XX, o Direito passou a ganhar outros enfoques, conectando-se com outras áreas do
conhecimento, tais como a filosofia, a sociologia, a psicologia e a literatura. Era o
início do pós-positivismo, que para Barroso (2006, p. 27-28), não surgiu com a ânsia
de descontruir a visão anteriormente fundada, mas trazendo uma superação do
conhecimento convencional.
Após refletir sobre a importância de uma visão não dogmática do Direito que
o aproxime de outras áreas da vida social, visando aprimorar o caráter interpretativo do
fenômeno jurídico e gerando outras possibilidades conhecê-lo, esta pesquisa envereda
pelo entendimento do campo Direito & Literatura (Law & Literature), surgido nos
Estados Unidos em 1970 e tendo se difundido também na Europa. No Brasil, esta
vertente é mais recente, não possuindo ainda uma Teoria que faça a junção dos dois
fenômenos. Para tecer essas aproximações, este texto se baseia na literatura
internacional sobre o assunto, bem como em pesquisas já realizadas no Brasil.
Entende-se que este campo de estudo possui três vertentes, sendo estas:
Direito ‘da’ Literatura; Direito ‘como’ Literatura e Direito ‘na’ Literatura, que é por
onde se orienta esta dissertação, buscando na Literatura em Cordel, especificamente na
obra de Leandro Gomes de Barros, aspectos relacionados ao mundo do Direito.
75
Diante da abertura que almeja o mundo do Direito atual, observa-se que este
se encontra inteiramente interligado às transformações ocorridas na sociedade,
adaptando-se às suas necessidades no tempo e no espaço, assim como também outras
esferas da cultura, como a culinária, a música e a literatura. Tanto o Direito como a
expressão artística são fenômenos atravessados pelas circunstâncias que envolvem e
direcionam a construção do mundo e são reflexo do ser humano que os cria.
Talvez seja por esse motivo que Platão, em A República, dedicou o Livro X
para tratar da expulsão dos poetas da cidade, por considerá-los perigosos para os
trilhos que levariam a uma sociedade perfeita, já que para ele, o papel dos poetas seria
imitar o verdadeiro conhecimento, trazendo nessa arte paradoxos quando misturavam
o bem e o mal e questionavam a justiça, motivo pelo qual a poesia deveria ser
censurada em nome do Direito.
[...] o costume, como fonte das normas consuetudinárias, possui em sua estrutura,
um elemento substancial - o uso reiterado no tempo - e um elemento relacional - o
processo de institucionalização que explica a formação da convicção da
obrigatoriedade e que se explicita em procedimento, rituais ou silêncios
presumidamente aprovadores.
77
Essa observação foi salientada por Lynn Hunt, em sua obra “A Invenção dos
Direitos Humanos”, que sob influência deste pensamento, estende também aos
Direitos Humanos, afirmando que sua autoevidência se encontra na repercussão de um
sentimento interior em cada indivíduo, gerando uma relação de empatia.
Hunt (2009, p. 32), tendo esse pensamento como base, é ousada ao defender
que a literatura, especialmente o romance epistolar6 do século XVIII, teria contribuído
para o surgimento da noção de Direitos Humanos, a sua autoevidência. Esses
romances teriam provocado mudanças na mentalidade de indivíduos, que por sua vez
teriam dado vazão a novos conceitos e formas de organização social e política.
instituições e dos fatos sociais e conflitos. Visava-se aprimorar a formação dos juristas
que buscavam na literatura maior clareza da realidade da sociedade. E fez, inclusive,
uma divisão em grupos específicos a partir de critérios de classificação das obras.
Dividiu em quatro categorias:
(A) Novels in which some trial scene is described - perhaps including a skilful
cross-examination;
(B) Novels in which the typical traits of a lawyer or judge, or the ways of
professional life, are portrayed;
(C) Novels in which the methods of law in the prosecution and punishment of crime
are delineated; and
(D) Novels in which some point of law, affecting the rights or the conduct of the
personages, enters into the plot8.
8
(A) Romances em que é descrita alguma cena de julgamento - talvez incluindo um hábil interrogatório; (B)
Romances em que são retratados os traços típicos de um advogado ou juiz, ou os modos de vida profissional; (C)
Romances em que os métodos da lei na acusação e punição do crime são delineados; e (D) Romances em que
alguma questão de direito, afetando os direitos ou a conduta das personagens, entra dentro na trama. [Tradução
nossa]8 (WIGMORE, 1922, p. 26).
9
“Classification must be provisional, for forms run into one another. As I search the archives of my memory, I
seem to discern six types or methods which divide themselves from one another with measurable distinctness.
There is the type magisterial or imperative; the type laconic or sententious; the type conversational or homely;
the type refined or artificial, smelling of the lamp, verging at times upon preciosity or euphuism; the type
79
suma, o texto de Cardozo discute onde a literatura se encontra com a lei, visando
encaminhar o leitor para empregar a linguagem de forma econômica e suficiente para
transmitir suas colocações no exercício da jurisdição, observando que a grande virtude
de um juiz é a clareza de suas ideias.
demonstrative or persuasive; and finally the type tonsorial or agglutinative, so called from the shears and the
pastepot which are its implements and emblem.” J. M. LANDIS. LAW AND LITERATURE, 48 Yale L.J.
(1939). Disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/ylj/vol48/iss3/9
80
Grande parte das obras de James Boyd White foi dedicada a pesquisar a
relação entre Direito e Literatura. No artigo “Law and Literature: No manifesto”,
contido no livro “From Expectation to Experience – essays on law and legal
education”, que teve como foco um ponto de vista mais pedagógico, o jurista defende
que, ainda que seja a literatura uma expressão artística, possui poder de ampliar a visão
de mundo do jurista:
It is not that literature has nothing to teach us about the world or about the analysis
of texts, but that it teaches in a different way: it expands one‟s sympathy, it
complicates one‟s sense of oneself and the world, it humiliates the instrumentally
calculating forms of reason so dominant in our culture (by demonstrating their
dependence on other forms of thought and expression), and the like. […] Literature
is art, and its form is essential to its meaning. What it teaches us is indeed about the
world, but it is also about ourselves – our minds and languages – and it is not
translatable into propositions of moral and social truth. (WHITE, 2000, p. 55)10
A conexão existente entre Direito e Literatura tem por objetivo resgatar, se ainda há,
o senso de um tempo em que a justiça era poética, quando os debates acadêmicos e
sociais se desenvolviam em um ambiente de paixão, hoje abandonado pela crescente
burocratização do papel desempenhado pelos pesquisadores em nossas
Universidades e pelos operadores do Direito na práxis jurídica.
10
Não é que a literatura nada tenha para nos ensinar sobre o mundo ou sobre a análise de textos, mas que ensina
de um modo diferente: amplia a simpatia, complica o sentido de si e do mundo, humilha as formas de razão
instrumentalmente calculadas tão dominantes em nossa cultura (demonstrando sua dependência de outras formas
de pensamento e expressão) e coisas semelhantes. (…) A literatura é arte e sua forma é essencial para o seu
significado. O que nos ensina é, na verdade, sobre o mundo, mas também sobre nós mesmos - nossas mentes e
linguagens - e não se traduz em proposições de verdade moral e social. (WHITE, 2000, p. 55) [Tradução nossa]
81
(A) Works in which a full legal procedure is depicted, sometimes exclusively a "trial
scene," but just as frequently the preliminary investigations leading to the trial.
(B) Works in which, even in the absence of a formal legal process, a lawyer is a
central figure in the plot or story, frequently but not always acting as the actual
protagonist.
(C) Works in which a specific body of laws, often a single statute or system of
procedures, becomes an organizing structural principle.
(D) Works in which, in an otherwise essentially nonlegal framework, the
relationship of law, justice and the individual becomes a central thematic issue.
(WEISBERG, 1976, p. 17)11
11
(A) Trabalhos em que um procedimento legal completo é descrito, às vezes exclusivamente uma "cena de
julgamento", mas com a mesma frequência as investigações preliminares que levam ao julgamento. (B) Obras
em que, mesmo na ausência de um processo legal formal, um advogado é uma figura central na trama ou na
história, frequentemente, mas nem sempre agindo como o protagonista real. (C) Trabalhos nos quais um corpo
específico de leis, frequentemente um único estatuto ou sistema de procedimentos, se torna um princípio
estrutural organizador. (D) Trabalhos nos quais, em uma estrutura essencialmente não-legal, a relação entre lei,
justiça e indivíduo se torna uma questão temática central. [tradução nossa]11 (WEISBERG, 1976, p. 17)
82
A literatura, deste modo, não teria como papel responder a questões que
competem unicamente ao mundo do Direito e nem estabelecer sobre como os juristas
devem pensar ou como os advogados devem proceder na resolução de conflitos. Para
White (2000, p. 72), “Literature and law are both about reason and emotion, politics
and aesthetics; they both promise to integrate what that question12 falsely separates,
and to do so by drawing attention to what is at stake whenever one person writes or
talks to another” 13. (WHITE, 2000, p. 72)
Ainda de acordo com o Eagleton (1997, p. 19), “todas as obras literárias são
reescritas, mesmo que inconscientemente pelas sociedades que as lêem”. Neste ponto é
onde se pode reconhecer a atemporalidade das obras pela capacidade de ganhar novas
12
A questão é sobre o que a literatura poderia dizer aos juristas, tendo em vista que se trata da expressão da
sensibilidade e percepções individuais, relacionada a critérios de estética, deferentemente do Direito que está
relacionado a critérios de racionalidade. “How can literature have anything to say to lawyers when literature is
inherently about the expression of individual feelings and perceptions, to be tested by the criteria of authenticity
and aesthetics, while law is about the exercise of political power, to be tested by the criteria of rationality and
justice?” (WHITE, 2000, p. 72)
13
“Literatura e Direito estão ambos sobre razão e emoção, política e estética; ambos prometem integrar o que
essa questão falsamente separa, chamando a atenção para o que está em jogo sempre que uma pessoa escreve ou
fala com outra” [Tradução nossa].
83
A arte, por sua capacidade de fazer pensar a realidade, está além de toda
verdade que se pregue absoluta e de todo sistema imposto, partindo da sua força
estética e experimental. Por ter o seu valor relevância no efeito geral, estremece as
bases das convicções, carregando em si certa ‘indisciplina’ frente ao jurídico. François
Ost (2005, p. 15) reflete sobre tal condição em sua obra Contar a lei, colocando que:
84
Nesse real movediço e complexo, o direito faz escolhas que se esforça por cumprir,
em nome da “segurança jurídica” à qual atribui a maior importância. Entre os
interesses em disputa, ele decide; entre as pretensões rivais, opera oligarquias.
Assim o exige sua função social que lhe impõe estabilizar as expectativas e
tranquilizar as angústias. Livre dessas exigências, a literatura cria, antes de tudo, a
surpresa: ela espanta, deslumbra, perturba, sempre desorienta.
Essa condição que lhe permite desconcertar padrões vigentes gera também,
pela sua característica experimental, a possibilidade da descoberta de novos caminhos,
que ao atritarem com o mundo jurídico, também oferecem novos olhares sobre meio
social e seus anseios, suas inquietações e suas transformações. Isso ocorre também
porque a literatura envivece a linguagem, conferindo-lhe uma dramaticidade que
provoca sentimentos como a empatia, quando o leitor se permite de fato adentrar no
universo de sua leitura.
unívoco. Segundo ele, na realidade “existe uma ilusão de univocidade fornecida pela
inalterabilidade da instância sintática dos textos legais”, em outros termos, a falsa
sensação de que por estar definida uma norma no texto legal ou mesmo no caso de ser
alterada esta norma, automaticamente o comportamento da sociedade se transforma.
- Direito ‘da’ literatura, que tem como objeto de estudo os direitos do autor, da
utilização de determinada obra, a liberdade de expressão, os limites que pode possuir
uma obra para que não afete direitos humanos, além do estudo de leis e jurisprudências
que estejam em consonância com a escrita, publicação e distribuição de literatura;
- Direito ‘como’ literatura, que envereda pelo estudo nas normas jurídicas e seu
conteúdo valorativo a partir de técnicas literárias, como a retórica e a linguística,
estando relacionado à hermenêutica, considerando os atos jurídicos como técnicas
literárias;
- Direito ‘na’ literatura, que se propõe a mergulhar nas obras literárias para coletar
elementos que digam respeito à seara jurídica, levantando reflexões sobre a justiça, a
liberdade, o poder, as leis vigentes, o papel do advogado, o funcionamento e os
procedimentos realizados nos tribunais etc.
dos deuses do saber [...] a queda de suas máscaras rígidas [...] a morte do maniqueísmo
juridicista”. A importância desse texto se revela por ser pedagogicamente subversivo,
valendo-se da sensibilidade para propor um novo olhar ao aluno, que terá a
responsabilidade de compreender e buscar caminhos para as próprias necessidades.
A poesia popular na sua forma escrita é uma continuação de sua forma oral,
quando as rimas dos violeiros e cantadores contavam casos, revelando o imaginário e a
memória popular, através de duelos que remontam os desafios da antiguidade grega.
Aqui vale salientar a colocação de Câmara Cascudo (1984, p. 129) a respeito do
cantador de viola, comparando-o a manifestações de outras partes do planeta:
91
Sobre oralidade, Paul Zumthor (1997, p. 10) discute que “ninguém sonharia
em negar a importância do papel que desempenharam na história da humanidade as
tradições orais. As civilizações arcaicas e muitas culturas das margens ainda hoje se
93
mantêm, graças a elas”. Nesse mesmo sentido Abreu (1999, p. 73) observa que a
oralidade não é uma peculiaridade do Nordeste, visto que todos os povos exercitaram
narrativas orais, considerando ainda que cada região assumiu uma forma específica.
popular 15 - Miscelânea
5 - Fabulação 16 - Profanação
9 - Avisos
94
[...]
Os habitantes procuram
O governo federal
Implorando que os socorra
Naquele terrível mal
A creança estira a mão
Diz senhor tem compaixão
E ele nem dar-lhe ouvido
É tanto a sua fraqueza
Que morrendo de surpresa
Não pode dar um gemido
Como grande parte da população não sabia ler, os versos muitas vezes eram
decorados e transmitidos também de forma oral. Por esta razão, os folhetos de cordel
seriam um modo de preservar a tradição da oralidade, visto que como expressa
95
Houaiss (1979, p. 15), mesmo que os folhetos tenham surgido com base na tradição
oral, esta não deixa de ser considerada, “já que o cordel desde sempre aspira ser
‘ouvido’, constituindo a forma impressa um meio de expansão da oralidade”. Essa
necessidade de ser ouvido por parte do cordel vê-se em “O Povo na Cruz” quando
Leandro Gomes de Barros inicia com um pedido de alerta,
O povo esperava
Tudo por ali
Que ele vindo aqui
Tudo melhorava
Julguei que ele dava
Sacos de dinheiro
Fiz um mealheiro
Do tamanho de um jigo
E disse comigo:
Breve sou banqueiro (BARROS, Affonso Penna, 1906, p. 1)
A ansiedade do povo pela chegada de Affonso Penna não era à toa. O povo o
recebia como se quase fosse uma divindade. Tal comportamento é uma reação à
condição de abandono do Nordeste por parte do Governo, principalmente em tempos
de seca e crise econômica, quando os direitos sociais são logo afetados, provocando
dificuldades pela falta de emprego, alimentação, saúde e educação.
Chora o desgraçado,
Se maldiz o nobre,
Estrebucha o pobre,
Queixa-se o quebrado,
Diz o empregado
Que crise tyranna
Eu essa semana
Em noite de lua
Apanhei na rua
Casca de banana... (BARROS, O Tempo de hoje, 1918, p. 7)
A crise, porém, afetava apenas à massa, que sofria pelo não reconhecimento
e garantia de direitos sociais. Faltava-lhe investimento em emprego, saúde, educação,
alimentação, transporte; enquanto que o Governo Federal, em resposta às mazelas da
população, acomodava-se para garantir o sustento dos que já estavam no poder.
O governo federal
acha que a cousa vai bem
E diz o dinheiro é pouco
Deste eu não dou a ninguém
Porque eu não solto o pássaro
Por um que algum dia vem
O folheto revela que a única coisa que o governo fazia diante dos problemas
da sociedade era aumentar os impostos sem corresponder às necessidades que a
população tinha. Na realidade, se observava uma terrível tirania, os pobres sofriam
com a falta de condições que a crise e a seca provocavam. O governo engordava aos
custos dessa exploração.
98
Em O Povo na Cruz, Leandro finaliza com uma estrofe que trata de crimes
impunes por serem cometidos por homens ricos contra pobres:
Este trecho revela o peso do status social na vida do indivíduo que habitava
essa sociedade, o que nos remete novamente aos nossos estudos em torno do
bacharelismo. Os membros da elite política e econômica do Estado desde sempre
foram protegidos pela própria lei, em detrimento dos que compunham a massa. E na
realidade de nossos dias, essa proteção dada aos detentores do poder se encontra em
99
institutos como o da imunidade parlamentar (art. 53, CF/88), que reserva um conjunto
de garantias aos parlamentares para que possam agir com ampla liberdade no exercício
do mandato sem que sejam submetidos a abusos do judiciário e do executivo.
Ver-se-á um dia que para a história ou para a sociologia aí se encontrava uma das
mais ricas fontes. [...] Os acontecimentos importantes do Brasil, de países distantes
ou da localidade, as estórias tradicionais, os elementos folclóricos, personagens reais
ou da ficção e das lendas, todo um mundo de temas, de traços de vida [...].
(MOREIRA, 1964 apud CURRAN 2001, p. 23-24).
Buoro (2000, p. 25-29) analisa que é por meio da arte que o homem
interpreta sua própria natureza, descobrindo-a assim como também reinventando-a e
que no percurso da história, “não há civilização que não tenha produzido arte”. A arte,
de modo geral, possui essa função de registrar o pensamento em determinado
momento da história e de acordo com as condições do espaço em que é produzida. Tão
antiga quanto a existência humana, a expressão artística acompanha as necessidades
comuns desde os primórdios e nasce da necessidade de manifestação sobre
inquietações, valores e sobre a própria existência.
100
Essa é a razão pela qual a literatura é tão importante para as sociedades, por
seu poder de instruir, educar por meio da junção de uma mensagem, um conhecimento
a ser transmitido propositalmente pelo autor com a sua estética – visual e sonora –,
numa construção que “exerce um papel ordenador sobre a nossa mente” (CANDIDO,
2011, p. 179). O texto de Antônio Cândido tem como foco a relação entre Literatura e
Direito, fazendo sua análise a partir da necessidade de humanização sob dois pontos de
vista.
literatura social [...] que parte de uma análise do universo da sociedade e procura
retificar as suas iniquidades” (CANDIDO, 2011, p. 182).
Trata-se da Arte gratuita, da Arte pela Arte, tal como defendida por Oscar
Wilde em sua obra “A Decadência da Mentira”, quando em um diálogo entre Cyril e
Vivian se reflete sobre o que propõe a nova estética, Vivian expressa que a arte é
independente e não está submetida a nada que esteja além dos seus limites:
Art never expresses anything but itself. It has an independent life, just as
Thought has, and develops purely on its own lines. It is not necessarily
realistic in an age of realism, nor spiritual in an age of faith. So far from
being the creation of its time, It is usually in direct opposition to it, and the
only history that it preserves for us is the history of its own progress
(WILDE, 2003, p. 35-36)14
O outro ponto de vista coloca que toda obra de arte está a serviço de alguma
ideia, geralmente política e que assume um compromisso com a conscientização
popular, garantindo o acesso das pessoas e desempenhando um papel educativo,
motivos pelos quais estaria mais preocupada com a comunicação. Os defensores dessa
vertente acreditam que, para além do fator estético, a arte seria considerada a partir de
sua natureza ideológica e estaria a serviço de alguma causa, de uma função social. É a
Arte participante, politizada.
14
A arte nunca expressa nada além de si. Tem uma vida independente, tal como o Pensamento tem, e se
desenvolve puramente em suas próprias linhas. Não é necessariamente realista em uma era de realismo, nem
espiritual em uma era de fé. Longe de ser a criação de seu tempo, ela está geralmente em oposição direta a ele, e
a única história que ela preserva para nós é a história do seu próprio progresso (WILDE, 2003, p. 35-36)
[Tradução nossa]
103
A Arte faz-nos sentir tudo o que tem uma significação para nós. É um meio de
exprimir, sob forma sensível, as concepções filosóficas da Humanidade... Os fatos
nos ensinam que a Arte não age sempre de maneira exclusiva e diretamente estética:
épocas inteiras a concebem de outro modo. A Arte está longe de desempenhar um
papel estritamente estético na vida individual e, sobretudo na vida social... Foi
somente depois da Renascença que uma certa Arte passou a procurar exclusivamente
a Beleza; noutros tempos e entre outros povos ela é antes de tudo prática... A Arte,
consequentemente, instrui a massa, fazendo-a captar intuitivamente, sem nada
demonstrar pelos raciocínios abstratos, aquilo que ela é incapaz de entender das
especulações da Ciência, da Filosofia e da Teologia.
4. Qualquer peça, escrita por aí, de pura propaganda, ou seja, um comício dialogado,
correspondendo, no campo político, ao “sermão dialogado” que imaginamos no
campo religioso.
Com esse exemplo, nota que a primeira obra teria como preocupação
simplesmente a beleza de sua forma, despida de qualquer pretensão política, ao passo
que no quarto ponto, não há nenhuma preocupação com a criação artística, seria
meramente um texto propagandístico que fez uso de um aspecto teatral para exprimir
uma obra sem nenhum significado no campo do Teatro. Para Suassuna, a segunda e a
terceira obra teriam a arte exercendo um papel mais efetivo, principalmente a segunda,
que reflete problemas políticos, sem, no entanto, ser uma obra política. (SUASSUNA.
2008, p. 256).
Na reflexão de sobre arte gratuita, de que a arte não está a serviço de uma
tese, é necessária a colocação de Maritain citado por Suassuna (2008, p. 254), segundo
o qual Tese seria “qualquer intenção extrínseca a própria obra”, que não faria parte do
pensamento que a anima e, por tanto, seria uma impureza. E Suassuna compactua com
esse pensamento no sentido de que a Tese não pode se sobrepor a Arte em si, sob pena
de perder sua beleza, sua legitimidade. Neste sentido, defende que para que a arte não
perca a sua beleza original, a Tese deve surgir juntamente com ela e nela, expressando
seu pensamento nas palavras a seguir:
É preciso atentar ainda para que a busca do ideal não intimide, deslegitime
ou esterilize formas de arte diversas motivado na busca pela “pureza” ou pela
“participação” excessiva. A Literatura em Cordel, por exemplo, ainda que assuma suas
regras, nem sempre mantém compromisso com a beleza, tendo em vista seu modo
satírico de lidar com os fatos do cotidiano.
Doutor Ibiapina era advogado que depois se ordenou padre. E Francisco José,
um rapaz que fora abandonado pela família e achado no campo desamparado por um
homem que juntamente com sua senhora, por não terem filhos, resolveram criá-lo,
inclusive deixando para ele o sítio onde viviam como herança após falecerem.
Casando-se com ela, Francisco José passou a cuidar do que havia na terra de
sua esposa. Todos os dias, às seis da manhã, saia com os escravos e voltava somente à
tarde, trazendo para a casa grande um sexto com o que havia colhido no roçado. Todos
os dias, a mulher o esperava para ajudá-lo.
Certo dia, não encontrando sua esposa como de costume, abriu a porta, e a viu
em adultério com o pai, momento em que foi movido por uma forte emoção,
disparando sua espingarda contra a filha e o pai, como revela os versos: “Mais rubro
do que a braza / Que do fugareiro sai / Com o furor do corisco / Que da athmosfera cai
/ Disparou uma espingarda / Matando filha e pai” (BARROS, 1917 p. 5). O
comendador morreu na hora, enquanto que a filha durou três dias, tendo confessado ao
juiz os planos de seu pai e pedindo ao juiz que vigiasse se Francisco José concederia o
perdão pelo que ela fez. O jovem Francisco, por sua vez, se dá conta do crime que
cometeu e se entrega, assumindo a responsabilidade de responder pelo seu ato
violento:
No primeiro Júri, o réu contou todos os doze votos a seu favor, fato do qual o
juiz não gostou e mandou o réu para um segundo julgamento, mantendo-se os doze
votos. O promotor resolveu apelar uma segunda vez ao tribunal superior, que resolveu
determinando que houvesse um terceiro júri. O júri foi novamente escolhido, de modo
que favorecesse o pensamento do juiz, também interessado em algum quinhão da
herança. E então Francisco foi condenado à morte. Em três dias seria o jovem
submetido à forca, enquanto os parentes do comendador já calculavam a divisão dos
bens.
Ao terceiro julgamento
Foi o réo submitido
Porem a justiça fez
Um jury bem escolhido
Condemnaram o réo a morte
Por meio desapercebido (BARROS, 1917, p. 7)
O fato é que o processo se deu sem obedecer aos trâmites legais e de forma
completamente desproporcional, sem a consideração de todas as circunstâncias do
crime. O julgamento foi movido por uma questão de interesses não só da família do
comendador Veloso que resolveu aparecer, mas também por interesse do juiz que
havia sido comprado e arquitetou a condenação do réu no terceiro júri. O Art. 179,
XIII da Constituição de 1824 previa que “A Lei será igual para todos, quer proteja,
quer castigue, o recompensará em proporção dos merecimentos de cada um”. Este
artigo equivale ao que atualmente é o Art. 5º, dos direitos e garantias fundamentais.
111
Francisco José foi julgado sem a presença de um advogado, não teve direito ao
contraditório e nem a ampla defesa, sendo condenado à morte por não possuir sequer
condições de argumentar, já que pouco conhecia a lei. Não conhecia, por exemplo, que
no caso de pena de morte, ele poderia protestar por outro julgamento em novo júri, que
seria da Capital da Província, de acordo com o Art. 308 do Código de Processo Penal
de 1932.
Para que o processo corra de forma justa, todo indivíduo necessita ter acesso
ao conhecimento dos instrumentos e recursos legais para a defesa, além de procurar os
responsáveis por lei para que seus interesses e direitos sejam respeitados e atendidos.
A presença do advogado foi decisiva no julgamento de Francisco José, pois ofereceu
outra visão do caso, gerando a necessidade de considerar que nenhum crime pode ser
pensado fora de seu contexto.
Entregaram-lhe o processo
Ele o leu publicamente
Disse ao juiz senhor doutor
Este réo está inocente
Só condemna um homem deste
Um juiz inconsciente
O Doutor Ibiapina leu a sentença publicamente e pediu que fosse julgado mais
uma vez. O pedido foi atendido e Ibiapina começou a argumentar sobre o quanto a
112
sentença era injusta sobre um homem que, por ser miserável e sem a eloquência dos
doutores, não tinha por quem chamar, não tendo acesso à justiça. O pedido de Ibiapina
visava um julgamento justo, dentro das premissas da lei e considerando as condições
do réu e do crime por ele cometido. O promotor levantou-se, ofendendo o réu, e
levando Ibiapina a erguer-se e exigir que o promotor fosse moderado em suas palavras
e continuou sua defesa, alegando que o réu havia sido afetado por uma forte emoção,
por ter encontrado sua esposa em adultério com o sogro,
15
Importante considerar que na época, o comportamento social e jurídico em torno do casamento era outro.
Adultério era considerado crime. O Código Criminal de 1830 estabelecia pena de 1 a 3 anos para mulher adúltera
e para o amante, pena esta que não era considerada no caso do homem que traía a esposa de forma esporádica.
Esta visão com relação à infidelidade conjugal é cultural. Algumas sociedades, inclusive, tratava o ato como
passível de morte, o que remonta o Direito Romano, com a Lei das Doze Tábuas, que estabelecia punição
pecuniária para crimes como o adultério. Essa passagem específica do folheto propõe pensar no quanto o Direito
se transforma no decorrer dos tempos, juntamente com a cultura e conforme as necessidades sociais dos novos
tempos. Na época em que Francisco José cometeu o crime, a perspectiva de mundo estava embotada de uma
estrutura patriarcal e fortemente machista. A infidelidade conjugal praticada por uma mulher, numa época em
que ainda conservavam o conceito de “mulher honesta”, tenha uma pena mais severa do que quando praticada
pelo marido. O Código Penal de 1940 passou a equiparar as penas por adultério do homem e da mulher no Art.
240. E em 2005, foi revogado pela Lei 11.106.
113
As frases ditas por Ibiapina na continuação de sua defesa fez com que todos
ficassem sensibilizados com a situação do réu, jurados, promotor e também o juiz, que
“exclamou como louco / Meu Deus, Meu Deus, eu que fiz / Ia matando inocente / Um
miserável infeliz” (BARROS, 1917, p. 16). Francisco José, por fim, foi inocentado,
teve direito a toda a herança de seu sogro, concedeu alforria a todos os escravos,
vendeu tudo e foi morar num lugar onde ninguém o conhecia.
com a liberdade do indivíduo, sobretudo pelo fato de que quando o Direito Penal passa
pela vida de um ser humano, esta se transforma completamente, principalmente em
razão do estigma que se cria em torno da pessoa que cometeu determinado crime.
No caso de Francisco José, este não teria sentido o estigma, visto que sua pena
seria de morte. Seu destino seria a forca se não tivesse sido salvo após as
argumentações feitas pelo advogado Doutor Ibiapina em sua defesa. A pena de morte,
no Brasil, passou a não existir para o caso de crimes comuns desde o fim do Império,
com a Proclamação da República em 1889. Hoje em dia é proibida no ordenamento
jurídico brasileiro pelo Artigo 5º, XLVII da Constituição Federal, que prevê que “não
haverá pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do Art. 84,
XIX”.
O estigma foi sentido por Antônio Silvino, quando foi preso após ter sido
acusado pelo clamor popular de diversos crimes que ele teria cometido. A pena muda
o indivíduo, tornando-o ainda mais revoltado. Essa realidade decorre da dificuldade de
reinserir o preso na sociedade, uma vez que o meio não abre mais as portas para que o
criminoso venha a ter um trabalho e uma vida com dignidade.
Ao início do rito, o juiz lhe pergunta o seu nome completo, que era Manoel
Baptista de Moraes. “Antônio Silvino” seria apenas uma alcunha, geralmente utilizada
pelos cangaceiros. Segundo ele, não teria cometido todos os crimes pelo qual fora
processado, alegando que muitos outros haviam praticado roubo em seu nome, que o
povo havia levantado falso testemunho e que nos processos do qual é réu por crimes
horrorosos (hediondos), muitos foram os excessos.
Antônio Silvino também disse que não sabia o porquê de estar voltando ao
tribunal, afirmando ser ignorante, ‘não conhecendo bem e nem mal’, mas que ali
estava acompanhado de seu advogado porque o levaram. O juiz, então, ordenou que o
réu sentasse e passou a palavra para o advogado, para que fizesse suas alegações,
falando por vinte minutos e apresentando o máximo de atenuantes possíveis para que
116
Antônio Silvino tivesse, ao menos, a pena reduzida, o que de nada adiantou, tendo em
vista a gravidade dos crimes cometidos.
Até que com essa idade foi à missa com um camarada e ao ver os alferes da
polícia aterrorizando a população, reagiu mesmo estando despreparado e nunca tendo
brigado. Esse fato, de acordo com o folheto, esfriou-lhe o coração. Depois desse fato,
seu pai foi morto pela polícia, acontecimento que o levou a entrar no cangaço de vez.
O advogado também disse que, por a lei ter sido escrita por pessoas sérias,
grandes criminalistas e não por pessoas baixas ou revoltosas, o juiz não deveria
interpretar o caso com base no que se diz por aí, sob o risco de julgar com engano. E
ainda observa que há crimes atribuídos a Silvino cometidos quando talvez o pai dele
ainda fosse menino.
Dr. Souza Filho, para afirmar não ser essa uma atenuante, responde com um
ditado popular “O cesteiro que faz um cesto / Faz mais cem e assim por diante”. Dr.
Simões, por sua vez, com uma lenda antiga responde que “O cavalo por um coice /
Não deve cortar-se a perna”.
Por fim, reafirma que Antônio Silvino não era o único cangaceiro que havia,
que muitos cometeram crimes, depois atribuídos ao réu, em lugares aonde ele nem ia.
Tinha 38 anos
Não tinha vivido um mez
Por tanto queria logo
Acabar-se desta vez
Depois de ter se entregado
Se arrependeu do que fez
Para Hegel (1967, §100), ao cometer o crime, o sujeito sabe que, como
decorrência, será submetido a alguma punição. A pena não teria apenas o objetivo de
um controle social; também carrega como função resgatar a autonomia do indivíduo,
dando sentido à responsabilidade e reconhecendo o criminoso como um sujeito de
direito.
[...]
A vida é um paraizo
A liberdade um recreio
A tranquilidade é um campo
Saúde um vase de aceio,
Cadeia é jaula infernal
O quadro mais triste e feio
[...]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por essa razão, o trabalho desenvolvido tem como caráter o fato de ser
inédito e inovador na esfera acadêmica jurídica. O mesmo ensejo pelo qual o tema é
relevante é a razão que ofereceu certas limitações ao trabalho. Estudar Direito na
Literatura popular encontra no caminho a falta de referências bibliográficas, tendo em
vista que, além de existirem poucas obras no Brasil sobre a temática geral, há
pouquíssimas publicações que trazem como objeto de pesquisa o Direito alicerçado
especificamente à literatura popular.
125
A partir de quatro obras, sendo elas “Defeza feita pelo doutor Ibiapina”
(1917) e “Antônio Silvino no Jury – Debate de seu advogado” (1957), “Todas as lutas
de Antônio Silvino” (1912) e “Exclamações de Antônio Silvino na cadeia” (1910), a
pesquisa passa a discutir o comportamento do Tribunal do Júri, pensando sobre a
127
importância do réu ter acesso a um Devido Processo Legal, para que se efetive o seu
acesso à justiça no processo e sobre a pena enquanto a concretização de um sentimento
por parte da sociedade de gozo e de desejo de que o criminoso responda por seus atos;
bem como sobre a ressocialização.
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139
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ANEXO 2
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/
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ANEXO 3
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ANEXO 4
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ANEXO 5
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ANEXO 6
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ANEXO 7
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ANEXO 8
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ANEXO 9
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ANEXO 10
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