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I R C U I T O F E C H A D O
Obras reunidas de Florestan Fernandes
Coordenação:
Maria Arminda do Nascimento Arruda

A FUNÇÃO SOCIAL DA GUERRA NA SOCIEDADE TUPINAMBÁ / O FOLCLORE EM QUESTÃO / FUNDAMENTOS


EMPÍRICOS DA EXPLICAÇÃO SOCIOLÓGICA / A SOCIOLOGIA NUMA ERA DE REVOLUÇÃO SOCIAL / A
INTEGRAÇÃO DO NEGRO NA SOCIEDADE DE CLASSES / A REVOLUÇÃO BURGUESA NO BRASIL / EDUCAÇÃO E
SOCIEDADE NO BRASIL / CIRCUITO FECHADO / PENSAMENTO E AÇÃO / QUE TIPO DE REPÚBLICA?
F l o r e s t a n F e r n a n d e s
C I R C U I T O F E C H A D O

Quatro ensaios sobre o “poder institucional”

prefácio:
Maria Arminda do Nascimento Arruda
Copyright © 2005 by herdeiros de Florestan Fernandes
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode
ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja
mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem apropriada
ou estocada em sistema de bancos de dados, sem a expressa
autorização da editora.

Preparação: Ronald Polito


Revisão: Carmen T. S. Costa e Otacílio Nunes
Índice remissivo: Luciano Marchiori
Capa: Paula Astiz
Produção de ebook: S2 Books

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Fernandes, Florestan, 1920-1995.

Circuito fechado : quatro ensaios sobre o “poder institucional” / Florestan Fernandes ; prefácio Maria
Arminda do Nascimento Arruda – São Paulo : Globo, 2010.

ISBN 978-85-250-5621-4
1. América Latina – Condições sociais 2. América Latina – Política e governo 3. Brasil – Condiçõers sociais
4. Brasil – Política e governo 5. Escravidão no Brasil 6. Intelectuais – América Latina 7. Negros – Condições
sociais 8. Universidades e faculdades – América Latina I. Arruda, Maria Arminda do Nascimento. II. Título.
10-00922 CDD-301

Índice para catálogo sistemático:


1. Poder institucional : Ensaios : Sociologia 301

Direitos de edição em língua portuguesa


adquiridos por Editora Globo S. A.
Av. Jaguaré, 1485 – 05346-902 – São Paulo, SP
www.globolivros.com.br
SUMÁRIO
Capa
Folha de rosto
Ficha catalográfica
Dedicatória
Prefácio: Uma Sociologia do Desterro Intelectual
Prefácio do Autor
Primeira Parte - Brasil: Passado e Presente
Capítulo 1 - A Sociedade Escravistano Brasil
A Produção Escravista e sua Evolução
A Ordem Social da Sociedade Escravocrata e Senhorial
Capítulo 2 - 25 Anos Depois: O Negro Na Era Atual
O Amadurecimento da Consciência Crítica
O Inconformismo Inócuo
As Transformações Visíveis
Segunda Parte - América Latina: Hoje
Capítulo 3 - A Ditadura Militar e os Papéis Políticos dos Intelectuais na América
Latina
Nota Explicativa
Introdução
A Natureza Sociológica do Processo
Uso e Limites do “ Poder Militar”
Estado e Sociedade em Tensão
O Intelectual e a Ditadura Militar
Os Papéis Políticos dos Intelectuais
Capítulo 4 - A Universidade em uma Sociedade em Desenvolvimento
Nota Explicativa
Introdução
A Universidade Latino Americana e seu Contexto Histórico Social
Aspectos da Situação Atual do Ensino Superior
Universidade e Desenvolvimento
Sobre o autor
Índice Remissivo
A Atsuko Haga,
amiga infatigável e leitora crítica tão
paciente, que tem me ajudado,
resolutamente, a enfrentar os
momentos mais amargos sem perder
a fé na razão e a confiança no futuro.
P R E F Á C I O

U M A S O C I O L O G I A D O
D E S T E R R O I N T E L E C T U A L

JÁ É LUGAR-COMUM afirmar que toda reflexão é herdeira do seu tempo e


raramente escapa à crítica corrosiva dos anos. Poucas são as obras capazes de
preservar o viço e conservar o vigor das ideias, a despeito da época em que
foram escritas e das motivações que as conceberam. Circuito fechado: quatro
ensaios sobre o “poder institucional” reúne textos de Florestan Fernandes,
produzidos entre 1966-1976, período de profundas transformações na sua vida
intelectual e pessoal, correspondendo ao afastamento compulsório da
Universidade de São Paulo pelo arbítrio do governo militar, em 1969, à
experiência docente na Universidade de Toronto no Canadá, o retorno ao Brasil e
a vivência da condição de exílio no seu próprio país. O livro é composto por dois
ensaios que versam sobre o tema da escravidão e da condição social do negro,
seguidos por outro par que trata do lugar dos intelectuais nos regimes ditatoriais
na América Latina e das universidades no contexto dessas sociedades em
processo de desenvolvimento. Circuito fechado distingue-se por conciliar, de
forma rara, a têmpera dos anos com o caráter de reflexão que conservou a força
da sociologia de Florestan, intelectual marcante e autor clássico na tradição do
pensamento brasileiro.
O livro explicita, de outro lado, posição já assumida pelo sociólogo pelo
menos desde A revolução burguesa no Brasil, obra decisiva à compreensão da
sua trajetória, publicada em 1975, ano anterior à primeira edição de Circuito
fechado, na qual afirmou no Prefácio:

É preciso que o leitor entenda que não projetava fazer obra de “Sociologia acadêmica”. Ao contrário,
pretendia, na linguagem mais simples possível, resumir as principais linhas da evolução do capitalismo
e da sociedade de classes no Brasil. Trata-se de um ensaio livre, que não poderia escrever se não fosse
sociólogo. Mas que põe em primeiro plano as frustrações e as esperanças de um socialista militante.

Na introdução da presente publicação, Florestan retoma o mesmo ponto de
vista ao caracterizar os quatro emsaios nela agrupados:

Circuito fechado reúne quatro ensaios, escritos sob propósitos diferentes e em momentos diversos da
vida do autor. Todos se ligam à minha atividade sociológica, como eu a entendo e pratico: um meio de
relação crítica com a sociedade brasileira e de confronto com os dilemas históricos de nossa época.

Engana-se o leitor, no entanto, se pensar os textos do ângulo de uma
interpretação militante, na acepção corrente do termo. As concepções críticas do
autor não se separam das análises rigorosas sobre as quais se debruçou;
tampouco dão guarida a diagnósticos dominados por circunstâncias ligeiras. O
livro revela o quanto Florestan era mestre nesta capacidade rara de manejar a
melhor sociologia no curso de um pensamento intolerante com as iniquidades
sociais, concebendo uma disciplina voltada à compreensão de uma realidade
débil para suplantar o abismo existente entre as classes em sociedades que
reproduzem o mesmo padrão de desigualdade e de domínio ao longo da história,
como é o caso da brasileira e das demais latino-americanas.
Se na obra A revolução burguesa no Brasil Florestan rejeitou a posição antes
assumida sobre a viabilidade de se “forjar nos trópicos este suporte de
civilização moderna”, para retomar uma frase de fecho de A integração do negro
na sociedade de classes e que ainda encerrava um facho de esperança no sentido
de o Brasil realizar as promessas civilizatórias do moderno, em Circuito fechado
todas as apostas estão cristalizadas na força incoercível das classes populares
para construir um futuro socialista e democrático, negador da repetição contínua
do passado.

O circuito fechado constitui uma equação metafórica de um dos ângulos da situação que prevalece
graças aos tempos retardados da revolução burguesa. A história nunca se fecha por si mesma e nunca se
fecha para sempre. São os homens, em grupos e confrontando-se como classes em conflito, que
“fecham” ou “abrem” os circuitos da história. A América Latina conheceu longos períodos de circuito
fechado e curtos momentos de circuito aberto. No entanto, o modo pelo qual se dão as coisas, nos dias
que correm, revela que “o impasse de nossa era” não consiste mais no caráter perene da repressão e da
opressão. Os que reprimem e oprimem, nestes dias, lutam para impedir o curto-circuito final, que para
eles vem a ser o desaparecimento de um Estado antagônico à Nação e ao Povo, ou seja, um Estado que,
como todo Estado elitista, tem sempre de “fechar a história” para os que não estão no poder.

O livro representa, a despeito das permanências perceptíveis no estilo
costumeiro de construir as reflexões e da manutenção das categorias
fundamentais do seu pensamento, a superação da fase caracteristicamente
acadêmica de Florestan Fernandes, transcorrida entre 1945-1969, datas que
medeiam a admissão como professor de sociologia na Universidade de São
Paulo e a aposentadoria compulsória imposta pelo arbítrio do regime militar. A
obra revela, de outro lado, o peso da sua experiência de desterro civil na
mudança de tonalidade das concepções do sociólogo sobre os processos de
transformação da sociedade brasileira, acontecida ao longo de uma década. Em A
integração do negro na sociedade de classes, que foi publicado em 1965,
Florestan ainda propugnava pela construção de políticas sociais, como a da
universalização da escola pública, para romper o padrão social e étnico da
desigualdade; em A revolução burguesa no Brasil demonstrou a
incompatibilidade do capitalismo dependente e da burguesia no Brasil com os
valores civilizatórios da modernidade; em Circuito fechado defendeu a
ultrapassagem do Estado autocrático burguês pelo conflito de classes. Como se
percebe, interpretações já desenvolvidas são retomadas para tratar de novos
problemas, mas segundo outro andamento reflexivo, deixando entrever uma
espécie de arremate na trajetória pessoal e intelectual de Florestan Fernandes.
A forte presença das suas concepções de sociologia não permite, por isso,
classificar o livro no rol das reflexões escritas à moda de um manifesto,
tampouco com objetivos políticos imediatos, visão, aliás, encontradiça em certas
análises que compõem a já volumosa fortuna crítica a seu respeito. Autores do
porte de Florestan não se submetem a qualificações simplificadoras, tampouco
podem ser exilados em retratos esquemáticos, ou destituídos da complexidade
tipicamente humana e característica daqueles que são prisioneiros do exercício
intelectual rigoroso, posto que voltado à construção de diagnósticos
consequentes. No mesmo ano em que publicou A revolução burguesa no Brasil,
afirmou em entrevista concedida à revista Transformação: “Não nos devemos
esquecer que estávamos na década de 1940 e 1950 e que, então, o fundamental
era construir a Sociologia como uma ciência empírica”. Acrescentando mais à
frente: “Não devemos exorcizar nem a palavra função, nem a análise causal
resultantes de elaborações interpretativas estruturais-funcionais. Elas são
instrumentais. O que se deve exorcizar é uma concepção naturalista de Ciências
Sociais: esse é que é o busílis da questão”. Ou ainda: “Não se tratava de ver
Marx em termos de dogmatismos de uma escola política. Marx emergia
diretamente de seus textos e de seu impacto teórico na Sociologia”. Ou, em
outras palavras, o tratamento analítico dos problemas de pesquisa é ligado, mas
ao mesmo tempo distinto, dos seus desdobramentos políticos.
Tais afirmações não elidiram os princípios de construção da sua problemática
sociológica, centrada no drama e na tragédia cotidianos vividos pelas camadas
populares marginalizadas da participação nos rumos do país e excluídas das
conquistas civilizadas e que explicam os dilemas do Brasil no trânsito do
moderno. São os negros e os seus descendentes, os índios, os pobres, os
trabalhadores explorados pelo movimento predatório do capital, o povo segundo
a sua denominação, os depositários das mais perversas iniquidades. Exatamente
por interpretar a história brasileira desse lugar de orfandade, conferiu
originalidade a sua obra, o que lhe permitiu conceber uma reflexão empenhada e
potente, sem que para isso fosse necessário subordinar as análises ao domínio de
posições políticas adrede assumidas. O foco nos deserdados conferiu coerência
entre a sua obra e a sua origem social, permitindo-lhe revelar que, na gênese dos
impasses da história do Brasil moderno, se aloja a rejeição de integrar e atribuir
cidadania real às classes populares, preservando-se a desigualdade, prática que
exige reproduzir uma estrutura política autocrática e privatista com o poder,
independentemente do regime político.
Na introdução de Circuito fechado, constatando que nas “nações pobres” a
história segue ritmos diversos, é imperioso “saber como eles se manifestam e
aonde eles levam, para que a autocracia burguesa possa ser denunciada e o
Estado autocrático burguês destruído”. Percebe-se, assim, como Florestan não se
alforriou da necessidade de se empreender uma análise embasada nos cânones da
pesquisa rigorosamente concebida, rejeitando visões impressionistas, como
explicita mais uma vez na introdução: “No entanto, o sociólogo tem de
aventurar-se às construções de longa duração e a vincular os resultados da
investigação histórica com as descobertas da pesquisa de campo. É seu dever
‘profissional’, mesmo que não seja socialista, ao contrário do que acontece
comigo”... Apesar e por causa de expor a sua filiação política, Florestan não
confunde a natureza do métier com orientações nitidamente valorativas,
afirmando a universalidade do método e o seu compromisso com o
conhecimento. Até por isso, o livro ultrapassa perspectivas exclusivas na
modelagem dos diagnósticos e das posições que abraça, independentemente de
rejeitar a crítica sociológica “impassível e neutra”.
O caráter de particular

complexidade dessa situação histórica sugere que não nos devemos contentar com a superficial hipótese
do “colonialismo interno”. Não nos defrontamos com algo tão simples. Porém, com uma história que se
recompõe, simultaneamente a partir de dentro (pela dominação burguesa) e a partir de fora (pela
dominação imperialista), produzindo, constantemente, novos modelos de desenvolvimento capitalista
que exigem a conciliação do arcaico, do moderno e do ultramoderno, ou seja, a articulação de antigas
“estruturas coloniais” bem visíveis a novas “estruturas coloniais” disfarçadas.

Segundo essa avaliação, o capitalismo, em países como o Brasil, é duplamente
determinado, espessando ainda mais a opacidade inerente a essa formação
histórica, complicando o entendimento do modo como se configurou, na medida
em que combinou formas não homólogas de desenvolvimento, subordinadas aos
ritmos diversos das esferas da economia, da política, do social, da cultura.
Aprofunda-se, portanto, a heterogeneidade existente nas sociedades periféricas
que combinam formas arcaicas e tradicionais ao moderno, obstando a realização
de uma ordem social aberta e democrática, em um processo em que a revolução
burguesa constrangeu o raio de ação dos agentes modernizadores que se limitou
a certas esferas da vida social, sem a capacidade de atingir o conjunto da
sociedade. Dito de outra maneira: a revolução burguesa em países dependentes
como o Brasil constrói um abismo entre as intenções da ação social dos agentes
frente aos efeitos que provoca. Uma burguesia débil não encarna a utopia da
nação e torna-se prisioneira do estamento oligárquico e da dominação externa;
uma ordem social competitiva fica restrita ao âmbito econômico-empresarial,
atrelando-se ao domínio burguês autocrático de transformação capitalista na
periferia. Nesse andamento de imposição da ordem por via antidemocrática,
resta como alternativa à mudança romper o círculo de ferro do domínio das elites
refratárias aos valores civilizados. A sua avaliação dos rumos assumidos pelo
capitalismo no Brasil, sobretudo pós-1964, o leva a abandonar a postura de
intervenção racional na promoção de reformas e a propugnar pela criação da
nova ordem por via radical. Circuito fechado elucida o caminho anterior e
posterior de Florestan Fernandes, que elegerá a classe trabalhadora como o
interlocutor privilegiado, filiando-se, posteriormente, ao Partido dos
Trabalhadores.
É nessa quadra particular da sua vida que se inserem os quatro ensaios que
compõem Circuito fechado. Os dois primeiros revisitam os temas da escravidão,
da problemática racial, do preconceito, da marginalização dos negros e dos
mulatos na sociedade brasileira. O primeiro — “A sociedade escravista no
Brasil” —, escrito para um simpósio internacional acontecido em Nova York, em
1976, pretende examinar “as relações de produção, a estratificação da sociedade
e a articulação das raças contidas nos vários polos de dominação escravista”. De
acordo com essa proposta, Florestan se propõe “esboçar uma espécie de síntese,
que procura pôr em relevo os elementos estruturais e dinâmicos invariantes, os
quais tornaram esse conjunto de diferenciações possível e, mesmo, necessário”.
Retornar ao passado escravista permite-lhe entender ao mesmo tempo a
persistência de um padrão social de marginalização recorrente dos negros e seus
descendentes, representantes das formas mais desenvolvidas de exclusão e de
rejeição à incorporação das classes populares na história do Brasil moderno. “O
que aconteceu dentro da colônia e no rebento tardio, que vem a ser a eclosão
modernizadora do capitalismo nas sociedades de origem colonial?”
A pergunta lançada ao passado brasileiro dirige-se à compreensão do presente
histórico das sociedades latino-americanas. “No cenário da América Latina, o
Brasil é um ‘caso ideal’ para o estudo das conexões da escravidão com o
desenvolvimento interno do capitalismo.” País no qual a modernização
capitalista realizou-se de modo mais típico, a experiência brasileira ilumina os
trajetos trilhados pelos países periféricos, em especial os do continente. O exame
“da antiga ordem escravocrata e senhorial” permite entender a permanência das
mesmas condições estruturais na época da transição neocolonial que, além de
não perder impulso, dinamiza-se no contexto da formação da sociedade nacional.

A vítima foi o “negro” como categoria social, isto é, o antigo agente do modo de produção escravista
que, quer como escravo, quer como liberto, movimentará a engrenagem econômica da sociedade
estamental e de castas. Para ele não houve “alternativa histórica”. Ficou com a poeira da estrada,
submergindo na economia de subsistência, com as oportunidades medíocres de trabalho livre das
regiões mais ou menos estagnadas economicamente e nas grandes cidades em crescimento tumultuoso,
ou perdendo-se nos escombros de sua própria ruína, pois onde teve de competir com o trabalhador
branco, especialmente o imigrante, viu-se refugiado e repelido para os porões, os cortiços e a anomia
social crônica.

A passagem acima sintetiza o conjunto das pesquisas e análises de Florestan
sobre a escravidão, as relações raciais, enfim, sobre as experiências dramáticas
dos negros e descendentes após a Abolição, no contexto de emergência da
revolução burguesa, no qual A integração do negro na sociedade de classes é
obra irreparável.
No ensaio seguinte dessa edição — “25 anos depois: o negro na era atual” —,
no qual realiza um balanço das pesquisas realizadas em parceria com Roger
Bastide para atender o chamado Projeto UNESCO de investigação das relações
raciais, no início dos anos 1950, o sociólogo escreveu:

Para que as coisas fossem diferentes, teria sido necessário que a revolução burguesa fosse, ao mesmo
tempo, aberta às pressões populares, democrática e nacionalista; e, de outro lado, que o próprio negro
tivesse criado, depois da Abolição e, principalmente, da “Revolução de 30”, legitimidade para o
protesto racial (tido pelas camadas conservadoras como o pior tipo de protesto, depois do conflito
operário) — o que, sabidamente, não ocorreu, pois a população negra nunca reuniu condições para
levar a democratização da ordem mais longe que as classes operárias e o radicalismo burguês. Tudo isso
significa que o inconformismo negro pode ser uma realidade psicológica, cultural e moral, mas não
pode tornar-se uma força social atuante e uma realidade política. Em uma sociedade de classes que
preserva um padrão de elitismo típico da dominação estamental, o conflito potencial de raça não tem
como eclodir na cena histórica. No passado, ele era expurgado da ordem legal e fortemente reprimido,
como uma “ameaça às instituições e à civilização”. No presente, ele é deliberadamente confundido com
o conflito de classe ou com a “subversão comunista da ordem” — e exposto à solução policial.

O negro, dada a sua permanente marginalização, não pode alçar-se à condição
de sujeito da sua história, sendo expropriado do seu próprio estatuto de
humanidade. A radicalidade à qual a análise chega está expressa neste
diagnóstico de perda da substância humana de seres sociais. Sem lugar, o
problema negro está sempre subsumido por outras demandas, seja porque a
escravidão é desumanizadora, seja porque se formou um tecido cultural tendente
a rasurar o preconceito, em nome de uma democracia racial que a todos atinge,
apaziguando a consciência das elites e excluindo a legitimidade do protesto.
Nesse quadro de arremate dos estudos sobre a problemática racial, subjaz a
análise realizada em A integração do negro na sociedade de classes, que já
revelou o amadurecimento da reflexão do sociólogo sobre o processo de
constituição do Brasil moderno e o seu franco recuo em relação às possibilidades
efetivas de se construir no país os princípios civilizatórios, raiz do tratamento
que conferiu à revolução burguesa e aos textos posteriores escritos sobre o tema.
Situando a problemática do negro na passagem da sociedade escravista para a
sociedade de classes, Florestan analisou as relações raciais no prisma da
dinâmica global da modernização brasileira, acentuada na cidade de São Paulo.
A rápida transformação urbana, ocorrida entre o final do século XIX e o começo
do século XX, impossibilitou a inserção do negro e do mulato no estilo urbano de
vida, por não possuírem recursos para enfrentar a concorrência dos imigrantes.
Ou, para acompanhar as suas categorias, a heteronomia presente na “situação de
castas” impediu aos negros assimilar as potencialidades oferecidas pela
“situação de classes”. Resulta desse processo o “desajustamento estrutural”, a
“desorganização social”, típicas da condição dos descendentes dos africanos,
relegados a viver um estado de marginalidade social, verdadeiros proscritos das
conquistas civilizadas. O preconceito e outras expressões de discriminação
exerceram a função “de manter a distância social” e de reproduzir o “isolamento
sociocultural”, tendo em vista a preservação das “estruturas sociais arcaicas”. O
ritmo intenso da história em São Paulo produziu forte descompasso entre a
ordem social (mais sincronizada com as transformações da estrutura econômica)
e a ordem racial (de ajustamento mais lento às mudanças), permanecendo como
uma espécie de “resíduo do antigo regime”, cuja eliminação futura adviria dos
“efeitos indiretos da normalização progressiva do estilo democrático de vida e da
ordem social correspondente”, posição que é superada após 1969.
Explicita-se, nessas passagens, a origem do seu entendimento sobre o modo
de realização da sociedade moderna no Brasil, enquanto processo complexo e de
resultados híbridos, uma vez que, independentemente do ritmo das
transformações, padece de uma sorte de fraqueza congênita, comprometendo
todo o seu desenvolvimento ulterior. As análises sobre a herança da escravidão
inseriam-se, dessa maneira, na busca de compreender como os fundamentos da
sociedade brasileira produziam bloqueios à plena consecução de princípios
civilizados, verdadeiros anteparos à pura modernidade capitalista. O projeto de
investigar o papel das relações escravistas no Brasil na constituição da sociedade
nacional desdobrou-se nos trabalhos escritos por seus assistentes, como
Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Maria Sylvia de Carvalho Franco,
entre outros colaboradores. A articulação dos temas de pesquisa rendeu frutos e
produziu afinidades intelectuais ao grupo reunido por Florestan, justificando a
identificação posteriormente construída e sintetizada na expressão Escola
Paulista de Sociologia, apesar de a convivência não ter sido sempre apaziguada
e comportar diferenças internas entre os participantes.
Os estudos nessa área temática foram, portanto, essenciais na constituição do
grupo de pesquisa e da importância dos sociólogos da USP no cenário das
ciências sociais no Brasil, na medida em que se tornaram interlocutores
privilegiados das gerações seguintes, sobretudo porque foram vocalizadores de
visões críticas sobre a modernização da sociedade brasileira, salientando as
tensões existentes, das quais as reflexões de Florestan e a chamada “teoria da
dependência”, formulada posteriormente por Fernando Henrique Cardoso, são
paradigmáticas. Os sociólogos de São Paulo, diversamente dos intelectuais do
ISEB que fizeram do Estado o principal interlocutor, dirigiram prioritariamente as
suas pesquisas para o entendimento das questões, das mudanças e dos impasses
sociais resultantes do processo acelerado de transformações. Foram produzidas,
naquela época, concepções diversas sobre a formação do capitalismo no país
que, embora tenham enriquecido o campo intelectual, tornaram-se alvo de
disputas sobre as modalidades mais legítimas de interpretação.
No curso dos debates, revelaram-se personalidades nucleadoras das posições e
definidoras das direções futuras da pesquisa, a exemplo de Florestan Fernandes,
que se tornou o principal construtor do cânone da sociologia brasileira,
naturalmente em decorrência da envergadura da sua obra. Florestan foi, por esse
conjunto de motivos, o principal artífice da formação da moderna linguagem
sociológica, se a concebermos na acepção de uma disciplina ancorada em
procedimentos rigorosos, realizada em moldes científicos e desenvolvida no
espaço acadêmico, mas que se voltou para os mais diferentes papéis afeitos aos
intelectuais no Brasil de então. A ênfase que conferiu à importância dos
cientistas sociais na discussão e definição das políticas públicas, em especial à
necessidade desses profissionais participarem da planificação social para corrigir
distorções no processo de construção do moderno, foi tributária da sociologia de
Karl Mannheim, o formulador da condição do intelectual socialmente
desvinculado. O sociólogo, como se depreende das suas reflexões, ocupa lugar
decisivo no tratamento dos problemas erigindo-se em interlocutor qualificado
pelo conhecimento científico. Por isso, Florestan atribuiu lugar de relevo aos
intelectuais comprometidos com os rumos da sociedade.
Os dois últimos ensaios de Circuito fechado — “A ditadura militar e os papéis
políticos dos intelectuais na América Latina” e “A universidade em uma
sociedade em desenvolvimento” — são sintomáticos da sua desilusão a respeito
do significado do papel desses atores em sociedades periféricas. Enquanto o
primeiro, escrito entre 1969-1970 quando era professor na Universidade de
Toronto, analisa os intelectuais no contexto das ditaduras latino-americanas
controladoras da liberdade de pensamento, o segundo, produzido em 1966 para
uma publicação no exterior, trata do tema de maneira indireta, pois realiza um
balanço da universidade nesses países do ponto de vista do significado que
tiveram na articulação “dos dilemas econômicos, sociais e culturais que pesam
sobre os diferentes países da América Latina”. Os dois estudos transpiram a sua
irrecuperável desilusão com o papel desse atores, com o fechamento dos espaços
de atuação. Ao lado do diagnóstico sobre a traição de muitos intelectuais que, ou
aderiram diretamente à situação, ou assumiram posições de afastamento, em
função das frustrações que geraram “confusões morais e pessimismo sistemático,
dando origem a uma superavaliação das atividades intelectuais como refúgio e
fim em si mesmas”, Florestan salienta a crise da atividade. “O malogro da
intelligentsia latino-americana reflete, de fato, o malogro de suas sociedades,
com respeito à sua organização interna e à sua evolução como sociedades
competitivas”. A derrota dos intelectuais foi tanto produto “estrutural e dinâmico
de suas inter-relações com as elites culturais existentes”, quanto consequência da
própria origem de classe, dificultando a ruptura, “parcial ou totalmente, com as
classes dominantes e suas elites no poder”.
Circuito fechado é, em essência, uma densa reflexão sobre a perda de lugar da
intelligentsia na América Latina, a sua derrota, capitulação e o seu encerramento
num circuito que se conclui. É um livro que não isenta os intelectuais da
responsabilidade com os rumos assumidos pela atividade: “os melhores
representantes do progresso da ciência e da tecnologia científica assumem
atitudes ou comportamentos que não correspondem à ética de responsabilidade
intelectual, que deveria ter vigência numa sociedade subdesenvolvida”. O
movimento que se fecha refere-se aos caminhos que lhe foram impostos por ter
sido desterrado do seu país na dupla significação do cidadão destituído de
direitos e do intelectual alijado da realidade de onde retirou as suas perguntas e
enraizou a sua obra. Não por casualidade, os quatro ensaios foram construídos a
partir de perguntas a serem respondidas e cujo equacionamento não enfraquece o
impulso de formular compulsivamente novas questões. Nos dois primeiros,
Florestan Fernandes enfrentou as suas próprias pesquisas, isto é, pôs em
escrutínio a sua responsabilidade de cientista; nos dois últimos, foi ao cerne do
próprio métier, numa espécie de acerto de contas com o seu passado e de busca
de outro lugar de responsabilidade do conhecimento.
O subtítulo do livro — Quatro ensaios sobre o “poder institucional” — pode
ser compreendido em chave interpretativa ambígua, derivada das definições
sociológicas de instituição, isto é, de orientações de valor organizadas e
estruturadas que possuem caráter duradouro. Em suma, como poder autocrático e
como valores fixados que só se alteram por conflitos profundos, com força para
dilapidar antigas crenças e afirmar outros princípios. O sociólogo, mesmo que
eventualmente não tenha pretendido, está aludindo às novas responsabilidades
dos intelectuais na América Latina. Não é de se surpreender, portanto, que ele as
tenha perseguido.


MARIA ARMINDA DO NASCIMENTO ARRUDA
Professora titular do Departamento de Sociologia da USP
P R E F Á C I O D O A U T O R

CIRCUITO FECHADO reúne quatro ensaios, escritos sob propósitos diferentes e em


momentos diversos da vida do autor. Todos se ligam à minha atividade
sociológica, como eu a entendo e pratico: um meio de relação crítica com a
sociedade brasileira e de confronto com os dilemas históricos de nossa época.
Somente o último ensaio, elaborado há dez anos, ficou definitivamente preso à
órbita do “trabalho acadêmico” stricto sensu. Como contribuição a uma
coletânea organizada por J. Maier e R. W. Weatherhead, a sua parte no
diagnóstico da universidade na América Latina estava prefixada. Achávamo-nos
na década de 1960 e as pressões ativistas, estudantis ou dos intelectuais, iam em
um crescendo. Contudo, cabia-me fazer um corte que se limitasse a apanhar as
conexões mais gerais da universidade com “uma sociedade em mudança”.
Dentro dos vários mundos que coexistem na América Latina, limitei-me a
ressaltar certas tendências que permitiam entender a reação recíproca — com
frequência inibidora — da universidade com o meio societário inclusivo.
Qualquer que seja minha presente insatisfação diante da postura teórica que
assumi nesse ensaio, devo confessar que ele me foi muito útil. De um lado, ele
forçou-me a fazer um diagnóstico global da universidade latino-americana um
pouco antes da intensificação e do aprofundamento da crise da universidade
brasileira: os anos de 1967 e 1968 marcam o clímax da discussão da reforma
universitária no contexto mais amplo de um radicalismo democrático que iria
levar, estudantes e professores, ao fundo dos problemas solúveis e insolúveis.
Aquele ensaio preparou-me intelectualmente para esse debate, levando-me a
situar-me diante dele de uma perspectiva mais geral e com uma visão relativa da
posição do Brasil no conjunto do ensino superior da América Latina, que poucos
se lembraram de tomar em conta. De outro lado, todo esse avanço da reflexão
comparada coincidia com os progressos que eu próprio vinha realizando no
estudo da formação e evolução do capitalismo dependente na América Latina.
Ainda não havia chegado ao fulcro dos problemas suscitados por uma revolução
burguesa em retardamento, regulada por potencialidades internas muito mais
fracas que os dinamismos do mercado mundial e da eclosão do capitalismo
monopolista, com seu padrão peculiar de imperialismo. Porém, já conseguira
apreender a teia principal de suas limitações intrínsecas. Podia, portanto,
entender o que vinha a ser a tão celebrada fórmula da “revolução pelo
desenvolvimento” e perceber com realismo o que ela reservava a todas as
universidades da periferia do mundo capitalista contemporâneo, inclusive na
América Latina e, em particular, no Brasil. Isso cobriu-me diante das ilusões de
outros colegas, que viram no “poder jovem” e na “inquietação estudantil” um
duplo avanço de destruição do arcaico e de construção do moderno, o qual não
era historicamente possível. Apoiei e participei dos movimentos intelectuais e
políticos dinamizados pelas organizações estudantis, orientando-me, quanto aos
diagnósticos, pelos resultados globais da análise sociológica, e, no plano
político, pelas implicações de um projeto de reforma que a própria sociedade
brasileira, nas suas manifestações mais avançadas, continha dentro dos limites
do “radicalismo democrático”. Apesar de tudo, o pensamento conservador
transbordou, inclusive a partir de dentro da universidade brasileira,
denunciando os adeptos da reforma universitária como inimigos públicos do
decoro intelectual e do equilíbrio interno das instituições do ensino superior!...
Não obstante, não fora esse ensaio, a contribuição que logrei dar, especialmente
em A universidade brasileira: reforma ou revolução?, seria muito mais pobre.
O terceiro ensaio nasceu de uma problemática mais complexa.
A coexistência de dois tempos históricos contraditórios e opostos, em conflito
de vida e morte — os tempos de uma revolução burguesa retardada, que iria se
acelerar com o intervencionismo econômico do Estado e com a irradiação do
capitalismo monopolista através das Nações latino-americanas “mais viáveis”; e
os tempos de uma revolução socialista em avanço, que mostrou, em Cuba, como
se desenha o presente e o futuro da América Latina —, desencadeou um
processo histórico de consolidação da dominação burguesa Nacional e Imperial
que mobilizou, em novo estilo, o famoso “braço armado da burguesia”. Nesse
ensaio, aparece a primeira manifestação da posição que tomei diante dessa típica
contrarrevolução a frio (iria tornar-se a quente, no Chile). O diagnóstico
sociológico, nesse plano, converte-se numa crítica de denúncia. De um lado, das
forças e fatores históricos que criaram essa necessidade “inelutável” de manter a
ordem através da violência estatal. De outro, do papel que os intelectuais
assumiram nesse bouleversement. Muitos se lembram que não há revolução sem
teoria revolucionária. Contudo, também não há contrarrevolução sem teoria
contrarrevolucionária. O mínimo que se pode afirmar, sociológica e
historicamente, é que os intelectuais — tanto os “liberais” quanto os
“conservadores” e “reacionários”, de mistura com muitos “reformistas”
inconsequentes — colaboraram ativa ou disfarçadamente com essa chamada
“revolução institucional” (?!). Cumpria-me dar um balanço e, ao mesmo tempo,
sugerir os rumos de uma tomada de posição corretiva, que ressuscitasse ou o
radicalismo democrático, esquecido tão depressa, ou as esperanças
verdadeiramente socialistas das “transformações de estrutura”, que não podem
eclodir sem a presença efetiva da maioria na condução dos processos
socioeconômicos e políticos fundamentais.
Os dois primeiros ensaios focalizam outros temas, na aparência “menos
quentes”: a sociedade escravista das épocas colonial e imperial; e a situação do
negro em São Paulo vinte e cinco anos depois da pesquisa R. Bastide-F.
Fernandes. Mas, quem é que disse que teríamos “essa” universidade ou “este”
presente se de permeio não estivesse um passado colonial, que deixou sequelas
que ainda não foram absorvidas nem eliminadas? Além do mais, como escrevi
algures, é a partir do negro que se deverá tentar descobrir como “o Povo emerge
na história” no Brasil. Muitos dirão que ele não emerge nem nunca emergiu.
Engano redondo. Se não estivesse emergindo, e com certa impetuosidade, nem
“as revoluções institucionais” nem o Estado autocrático burguês seriam uma
imperiosa necessidade histórica. Além disso, porque o Povo está emergindo na
história, há perspectivas de um presente e de um futuro de negação do passado.
A história subterrânea é pouco visível e sistematicamente ignorada pelos
historiadores “profissionais”. Ela envolve o atual, aquilo que está ocorrendo ou
está prestes a ocorrer. As classes dominantes nunca gostaram desse tipo de
pesquisa nos países em que a estabilidade parece ameaçada. No entanto, o
sociólogo tem de aventurar-se às construções de longa duração e a vincular os
resultados da investigação histórica com as descobertas da pesquisa de campo. É
seu dever “profissional”, mesmo que não seja socialista, ao contrário do que
acontece comigo.
Por causa da escravidão mercantil, o negro não só aparece como o elo mais
frágil e o polo mais explorado de uma sociedade de alta concentração de riqueza,
de poder e de prestígio social. Ele é, também, queira ou não, o marco de
referência da ruptura para a frente (como tentei assinalar em “Os aspectos
políticos do dilema racial brasileiro”). Através dele, portanto, não só o passado e
o presente se cruzam — o futuro nos diz o que ele nos reserva dentro da
“democracia racial” de nossa ordem institucional. O que pode fazer, pelo negro e
pelo mulato, um capitalismo dependente que lança suas raízes em um passado
colonial e escravista tão recente, no qual a acumulação originária teve na
escravidão um dos seus fulcros principais? Tudo isso quer dizer que, postos lado
a lado, os dois ensaios evocam um ponto de partida e um ponto de chegada,
sobre os quais é forçoso refletir com espírito crítico objetivo. O leitor terá de
colaborar amplamente comigo, para saturar os vazios de uma confrontação tão
ampla. O “negro rico” de São Paulo não ergue, apenas, a questão da “vez do
negro”. Ele nos diz, claramente, o que o capitalismo da periferia pode assegurar
aos “oprimidos”, em geral, e às “raças submetidas”, em particular. Há uma
igualdade? Ou uma perspectiva de igualdade? Em que ela consiste? Nas
chamadas “nações pobres” a história possui outros ritmos. Impõe-se saber como
eles se manifestam e aonde eles levam, para que a autocracia burguesa possa ser
denunciada e o Estado autocrático burguês destruído.
Ambos os ensaios — embora, de modo mais pertinente e concentrado,
especialmente o primeiro — põem-nos diante da descolonização como processo
histórico. Há tempo venho insistindo na necessidade de dar-se maior atenção à
investigação histórico-sociológica desse processo. O mau vezo de confundir-se
emancipação nacional, como processo histórico, com descolonização, como
processo econômico, sociocultural e político fez com que as ciências sociais
ignorassem a realidade da América Latina. A emancipação nacional ocorreu ao
nível das estruturas de poder dos estamentos dominantes e exigiu, como sua base
material necessária, que a descolonização fosse contida e, ao mesmo tempo, se
desenrolasse sinuosamente, como um processo ultraprolongado. Ainda lutamos
não só com as sequelas de estruturas “herdadas” da era colonial ou da
escravidão. Vemos como o capitalismo competitivo ou, em seguida, o
capitalismo monopolista revitalizam muitas dessas estruturas, requisito essencial
para a intensidade da acumulação de capital ou a continuidade de privilégios,
que nunca desaparecem, e de uma exploração externa, que sempre muda para
pior. A complexidade dessa situação histórica sugere que não nos devemos
contentar com a superficial hipótese do “colonialismo interno”. Não nos
defrontamos com algo tão simples. Porém, com uma história que se recompõe,
simultaneamente a partir de dentro (pela dominação burguesa) e a partir de fora
(pela dominação imperialista), produzindo, constantemente, novos modelos de
desenvolvimento capitalista que exigem a conciliação do arcaico, do moderno e
do ultramoderno, ou seja, a articulação de antigas “estruturas coloniais” bem
visíveis a novas “estruturas coloniais” disfarçadas. A existência de um Estado
nacional independente apenas complica esse processo. Porque ele supõe a
existência de uma vontade nacional pela qual a dominação de classe significa,
sempre, esses dois florescimentos concomitantes do capitalismo da periferia. A
crítica sociológica não pode permanecer impassível e “neutra”, como vem
fazendo, sistematicamente, a análise histórica. É preciso desmitificar esse
processo, desvendando o quantum de descolonização que não pode ser feito
simplesmente porque se restringe ou se toma impossível uma participação
popular revolucionária nas estruturas de poder da Nação e do Estado. Se não fui
tão longe, pelo menos tive o mérito de mostrar o que os investigadores precisam
fazer no estudo do passado recente e da época contemporânea no Brasil.
O título deste pequeno livro não deve enganar ninguém. O circuito fechado
constitui uma equação metafórica de um dos ângulos da situação que prevalece
graças aos tempos retardados da revolução burguesa. A história nunca se fecha
por si mesma e nunca se fecha para sempre. São os homens, em grupos e
confrontando-se como classes em conflito, que “fecham” ou “abrem” os
circuitos da história. A América Latina conheceu longos períodos de circuito
fechado e curtos momentos de circuito aberto. No entanto, o modo pelo qual se
dão as coisas, nos dias que correm, revela que “o impasse de nossa era” não
consiste mais no caráter perene da repressão e da opressão. Os que reprimem e
oprimem, nestes dias, lutam para impedir o curto-circuito final, que para eles
vem a ser o desaparecimento de um Estado antagônico à Nação e ao Povo, ou
seja, um Estado que, como todo o Estado elitista, tem sempre de “fechar a
história” para os que não estão no poder. Nesse sentido, vivemos a pior fase da
transição, aquela na qual a autodefesa do privilégio pela violência sistemática,
organizada, institucionalizada e “legitimada” através do poder concentrado do
Estado, dá a impressão que o “passado é perene” e que tenderá a reproduzir-se
no futuro como se reproduzia socialmente no passado. Pura ilusão. A virulência
do processo não indica uma história em crescendo mas uma história em declínio.
Enfim, a proximidade do ponto morto do clímax de uma crise, que poderá durar
ainda algumas décadas, mas como “o começo de uma nova era”.



Resta-me agradecer o incentivo de um colega que fez tudo que pôde para
animar-me a reunir ensaios tão heterogêneos em um pequeno livro. Trata-se do
professor Jaime Pinsky, a cujo convívio devo algumas das poucas aberturas que
tenho, atualmente, para o dia a dia brasileiro. Ao mesmo tempo queria agradecer
à Editora de Humanismo, Ciência e Tecnologia “Hucitec” Ltda., e especialmente
a Adalgisa Pereira da Silva e a Flávio George Aderaldo, a programação e a
edição do livro.

FLORESTAN FERNANDES
São Paulo, 16 de março de 1976
PRIMEIRA PARTE

B R A S I L:
P A S S A D O E P R E S E N T E
Eu canto aos Palmares
odiando opressores
de todos os povos
de mão fechada
contra todas as tiranias!
SOLANO TRINDADE (Canto dos Palmares)
CAPÍTULO 1

A SOCIEDADE ESCRAVISTA
NO BRASIL[1]

O BRASIL CONHECEU, em sua história colonial e independente, várias formas de


escravidão, as quais se associaram à escravização de raças diferentes, com
caracteres étnicos e culturais distintos, e a formações socioeconômicas
escravistas diversas. Em quase quatro séculos, em que a escravidão se constituiu
e se refez em conexão com as determinações diretas e indiretas dos vários
“ciclos econômicos”, não foi só a história que se alterou. Com ela se alteraram as
relações de produção, a estratificação da sociedade e a articulação das raças
contidas nos vários polos da dominação escravista.
O propósito deste artigo não consiste em fazer um levantamento global
sistemático de todas essas diferenciações, ocorridas, de modo simultâneo, no
espaço, ou de modo sucessivo, no tempo. Lembramos em primeiro lugar as
diferenciações para que se tenha em mente que não nos entregamos a uma
simplificação grosseira e para deixar claro que elas aparecem como o ponto de
partida de qualquer reflexão sociológica sobre o assunto. Contudo, o nosso
objetivo central é outro. Propomo-nos a esboçar uma espécie de síntese, que
procura pôr em relevo os elementos estruturais e dinâmicos invariantes, os quais
tornaram esse conjunto de diferenciações possível e, mesmo, necessário.
Portanto, vamos nos concentrar naquilo que, na reconstrução e na explicação da
realidade, Marx entendia como os “pontos de chegada”. Infelizmente, os
resultados prévios da pesquisa histórica, econômica e sociológica não nos
permitem trabalhar à vontade com as totalidades que nos interessam, que se
encadeiam às “grandes transformações históricas”, mas não são, apenas,
“produtos da história”, pois também contam como “as suas causas”.
A reflexão sociológica, concebida dessa maneira, converte-se numa espécie de
“história interpretativa de longa duração”. Não vamos nos penitenciar por isso. A
tradição especulativa, que leva a uma condenação da história, não nasce da
sociologia clássica, mas de influências filosóficas que as principais correntes da
sociologia clássica já haviam superado, nos quadros intelectuais de sua formação
e consolidação. Tampouco concordamos com os que pensam que a reflexão
sociológica, concentrada em realidades históricas de longa duração, não leva a
nada ou desemboca em uma história metafísica, “sem fatos”. Numa época em
que a sociologia diferencial (ou histórica) se reconstitui e recolhe o que há de
melhor nas diretrizes ontológicas, metodológicas e teóricas da análise dialética,
esse nos parece, ao contrário, o melhor caminho para estabelecer os
“conhecimentos precisos”, que devem estar na raiz de qualquer estudo
comparado na investigação sociológica.
É pacífico que não se pode progredir muito, em qualquer campo de estudos
comparados nas ciências sociais, antes que se introduza um máximo de
clarificação analítica, ao mesmo tempo conceitual e teórica, na reconstrução, na
descrição e na interpretação das realidades que se pretendam comparar. Em um
artigo tão pequeno como este não podíamos alimentar muitas pretensões. Porém,
temos plena consciência de que tentamos abrir uma perspectiva correta e
frutífera, especialmente quando se tem em mira a localização do Brasil
escravista neste simpósio sobre o estudo comparado das sociedades de plantação
no Novo Mundo.
A PRODUÇÃO ESCRAVISTA E SUA EVOLUÇÃO

SE EXCETUARMOS ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES (e muitas delas devidas às


peculiaridades dos Estados Unidos), os estudiosos da escravidão têm encarado
suas relações com o capitalismo da perspectiva das sociedades metropolitanas.
Na verdade, como conexão imediata da escravidão, o capitalismo se desenvolveu
lá — e, em particular, não nas sociedades metropolitanas em geral, mas naquelas
que podiam preencher hegemonia através do poderio político-militar e
financeiro-comercial. É preciso fazer uma rotação nessa perspectiva. O que
aconteceu dentro da colônia e no rebento tardio, que vem a ser a eclosão
modemizadora do capitalismo nas sociedades de origem colonial?
Essa pergunta é importante, quando se tem em vista os países da América
Latina e, entre eles, o Brasil em particular. As economias exportadoras de
“gêneros coloniais ou de produtos tropicais” não só nasceram profundamente
especializadas: essa especialização foi imposta pelas antigas metrópoles e,
embora mantida pelo mercado mundial depois da emancipação nacional, nunca
deixou de ser uma especialização colonial propriamente dita. Daí temos um
paradoxo: a emancipação nacional condiciona e se alimenta da preservação de
estruturas e dinamismos coloniais, que não poderiam ser destruídos sem criar
impossibilidades quer para a eclosão modernizadora, quer para a expansão
inicial de um mercado especificamente moderno e do capitalismo comercial que
ele implicava, quer para a consolidação de uma economia urbano-comercial
capitalista nas cidades e sua irradiação para o campo. As pressões para manter
formas de produção e estruturas coloniais vinham, pois, simultaneamente, “a
partir de dentro” (dos grupos dominantes na economia e na sociedade) e “a partir
de fora” (da expansão dos países industriais e dos dinamismos do mercado
mundial). No conjunto, a colonização formava, aí, a realidade-matriz, profunda e
duradoura; a descolonização surgia, com frequência, como uma realidade
recente, oscilante e superficial, incapaz de gerar, por si própria, as forças de
autodestruição do “mundo colonial” persistente ou de autopropulsão do
“desenvolvimento capitalista moderno” incipiente. Portanto, atrás de uma
aparente ebulição capitalista, deparamos com estruturas coloniais que se fixam
no mundo capitalista emergente, através de amálgamas e composições que irão
revelar duração secular ou semissecular, o que as converte no “outro lado
necessário” do capitalismo da periferia da Europa da revolução burguesa e do
nascente capitalismo industrial.
No cenário da América Latina, o Brasil é um “caso ideal” para o estudo das
conexões da escravidão com o desenvolvimento interno do capitalismo. Devido
à importância e à universalidade da escravidão, ela alcançou uma influência
construtiva homogeneizadora, que nem sempre possuiu em outras partes, e por
ela tiveram de passar os momentos iniciais de constituição de um mercado
interno não colonial, ou seja, ela se insere, com relativa rapidez, entre os pré-
requisitos tanto da eclosão capitalista modernizadora, quanto da formação,
consolidação e diferenciação do capitalismo comercial. Na etapa de crise final da
produção escravista-colonial, dela irrompe também a negação do regime
escravocrata e senhorial, se não através da atuação revolucionária das massas
escravas, que não chegou a ocorrer como “fator tópico” das transformações
históricas, pelas cisões, rupturas e convulsões que converteram o abolicionismo
numa “revolução do branco para o branco” (ou seja, em uma irrupção
revolucionária “dentro da ordem”, que leva a descolonização à estrutura e aos
dinamismos do mundo que o português criou, ou seja, da ordem escravocrata e
senhorial).
Tudo isso tem sido negligenciado, por uma razão bem simples. Ao contrário
do que ocorreu nos Estados Unidos, aqui não se poderia opor regiões
contrastantes em termos de formas de produção e de estruturas sociais ou de
poder; e, de outro lado, os ritmos evolutivos foram descontínuos e muito lentos.
Perdeu-se de vista, assim, o que a escravidão, que aparecia de modo visível
como o principal esteio de perpetuação de tudo que era colonial e senhorial,
representava para a emergência, a consolidação e a irradiação do que era
capitalista e moderno. As conexões estruturais e dinâmicas, muitas delas
institucionais, que surgiam nesta esfera, ocorriam ao longo de um gradiente
diacrônico: não eram, portanto, visíveis de maneira direta ou saliente. O que se
pode descobrir comparando dois estilos de vida coexistentes, nos Estados
Unidos, no caso brasileiro só se percebe com nitidez estabelecendo-se as
sequências de uma evolução histórica de ritmos oscilantes, em zigue-zagues, e
de sentido ambíguo. Contudo, nem por isso a realidade é menos imperativa. O
desaparecimento tardio da escravidão acaba por convertê-la em um dos fatores
da “acumulação originária” na cena histórica brasileira. Não se trata, pura e
simplesmente, de constatar que a escravidão desaparece e é enterrada com “a
crise do regime escravocrata e senhorial”. Ela alimentou essa crise, inclusive no
plano construtivo, já que sem a persistência da escravidão e a transferência do
excedente econômico que ela gerava para as cidades (segundo ritmos históricos
lentos) a “história ocorrida” seria inexequível. Não advogamos, com isso, que se
ponha a imigração e outros fatores em um segundo plano. Mas, apenas, que não
se conte a história tão depressa e tão por cima a ponto de deixar-se na penumbra
a verdadeira camada primária desse “mundo moderno” de raízes tão arcaicas.
Se se adota este amplo ponto de vista descritivo e interpretativo, podem-se
estabelecer dois tipos de confronto. O primeiro, apanhando as fases
socioeconômicas da evolução do sistema de produção e de dominação
econômica. Têm-se, aí, três períodos ou fases mais ou menos bem delimitados
historicamente:[2] 1º) a era colonial, que se caracteriza pelo controle direto da
Coroa e pelos efeitos do antigo sistema colonial na organização do espaço
ecológico, econômico e social; 2º) a era de transição neocolonial, que vai, grosso
modo, do início do século XIX, com a chegada da familia imperial, a abertura dos
portos e a Independência, até a sexta década do século XIX, a qual é caracterizada
pela eclosão institucional da modernização capitalista e a formação de um “setor
novo da economia”, ambas girando em torno da constituição e irradiação de um
mercado especificamente capitalista, implantado nas cidades com funções
comerciais dominantes (em consequência de suas conexões com o mercado
mundial e por começarem a funcionar como centros de concentração dos
negócios ou de movimentação do excedente econômico retido internamente); 3º)
a era de emergência e expansão de um capitalismo dependente, nascido do
crescimento e consolidação do “setor novo da economia”, que primeiro se
configura como uma economia urbano-comercial com funções satelizadoras em
relação ao campo e, em seguida, se reorganiza, transfigura e redefine como uma
economia urbano-industrial, com funções integrativas de escala nacional e
tendências de dominação metropolitanas, era esta que vai da sexta década do
século XIX aos nossos dias. O segundo confronto permite considerar as fases da
evolução do sistema social de poder. Têm-se, aí, o largo período colonial e as
duas eras da emancipação nacional, a primeira delimitada pela reintegração da
ordem escravocrata e senhorial no Império e a última, pela emergência e
consolidação de uma ordem social competitiva.[3] Ou seja, uma era em que a
continuidade da ordem escravocrata e senhorial convertia o Estado nacional em
um Estado senhorial e, portanto, escravista; e outra era na qual a expansão da
ordem social competitiva dá à luz um Estado burguês propriamente dito, através
de um prolongado e conturbado parto histórico. A evolução ocorrida indica que
foi preciso mais de meio século para que a descolonização atingisse, por fim,
todas as estruturas de poder das classes dominantes e a organização do Estado
nacional.
De acordo com uma ou outra dessas perspectivas, o funcionamento e o
rendimento da escravidão são vistos como contraparte de um contexto histórico-
estrutural regulador e determinante. Se se constrói o contexto histórico-estrutural
a partir do sistema de produção e de dominação econômica, o que ganha
saliência são as funções econômicas da escravidão, que variam ao longo da
evolução apontada. Se se constrói o contexto histórico-estrutural a partir do
sistema social de poder (e, portanto de dominação política), o que ganha
saliência são as funções sociais da escravidão, que variam menos mas, ainda
assim, também sofrem transformações ao longo da evolução apontada. Em um
tratamento analítico exaustivo, a primeira modalidade de reconstrução teria de
passar da base econômica para as estruturas sociais de poder (ou “as
superestruturas do sistema”), para que o quadro ficasse completo. E
reciprocamente, a segunda modalidade de reconstrução teria de abranger,
forçosamente, as determinações e as implicações da base econômica sobre o
sistema social de poder e de dominação política. A nossa exploração de ambas as
perspectivas será naturalmente limitada pelo alcance deste artigo (a primeira,
com um pouco mais de extensão, nesta parte; a segunda, muito parcialmente, na
parte subsequente). Os materiais empíricos e a principal bibliografia de
referência, que fundamentam essa excursão analítica, encontram-se em obras já
publicadas.[4]
Em termos da apropriação do homem pela violência, a “escravidão moderna”
apresenta muitos pontos de contato e de semelhança com a “escravidão antiga”.
No entanto, a escravidão moderna é, em sua essência, uma escravidão mercantil:
não só o escravo constitui uma mercadoria, é a principal mercadoria de uma
vasta rede de negócios (que vai da captura e do tráfico, ao mercado de escravos e
à forma de trabalho), a qual conta, durante muito tempo, como um dos nervos ou
a mola mestra da acumulação do capital mercantil. De outro lado, embora o
senhor comprasse o escravo, o que ele queria era a energia humana, não como
simples variedade ou equivalente da “energia animal em geral”, porém como
uma modalidade de energia que podia ser concentrada e utilizada
intensivamente, através da organização social do trabalho escravo, como se o
organismo humano fosse uma máquina. O inconveniente de que essa máquina
não só se desgastava mas também perecia durante o processo de produção
apenas intensificava o circuito da circulação, tornando tal rede de negócios uma
inexaurível mina de ouro.
Aí temos as duas conexões fundamentais da escravidão com o capitalismo no
período colonial, não se indo de dentro para fora, mas ficando-se no eixo
colonial do crescimento interno da economia. No nível do “mercado das peças”
a Colônia estava institucionalmente incorporada ao espaço econômico da
Metrópole e, também, dos centros econômicos a que esta se subordinava. Nesse
plano, portanto, a plantação e a mineração (com outras formas subsidiárias de
produção) faziam parte, de fato, de uma “periferia”. Por definição, uma colônia
de exploração não pode ser, em sentido estrito, uma periferia. A exclusão do
espaço econômico metropolitano representa, aliás, um dos requisitos para que a
colônia de exploração possa funcionar com eficácia e com um mínimo de atritos.
O inverso pode ocorrer (mas não é necessário que ocorra, pelo menos nos
estágios de implantação) com uma colônia de povoamento. A instituição do
trabalho escravo sublinha bem a extensão e a profundidade em que se dava a
exclusão. No entanto, a articulação entre a Colônia e a Metrópole se estabelecia
na “rede de negócios” imposta pela organização do comércio do escravo, em
larga escala, o que impunha aparelhar a Colônia de meios institucionais para dar
vazão regular ao fluxo de compra e venda de escravos. Isso implicava uma
diferenciação do mercado colonial, pondo-o a funcionar, nesse nível, como
extensão e em condições similares ao mercado metropolitano (embora com uma
flutuação do elemento especulativo que emanava do caráter colonial do
mercado, das práticas de extorsão que ele comportava e da escassez cíclica
daquela mercadoria, produto dos azares do negócio ou das incertezas do
mercado colonial).
Ao mesmo tempo, através do caráter mercantil da escravidão, o capital
mercantil penetrava as formas de produção pré-capitalista a que ela se associava.
É por essa razão que Marx sublinha que a plantação, nos Estados Unidos, nada
tinha de patriarcal. Como parte de uma economia patriarcal, embora possa
ocorrer a exploração econômica do escravo, este não conta como mercadoria e
como fonte de uma “indústria”. Mesmo que utilizasse escravos nativos, o senhor
tinha de penetrar no circuito do capital mercantil. Com o “tráfico africano” e a
universalização do trabalho escravo de origem africana, essa conexão se torna
mais ampla e profunda. Assim como tinha de participar do circuito comercial
para negociar seus produtos, o senhor precisava incorporar-se a esse circuito
para comprar (ou vender) escravos. Apesar de o grosso dessas atividades
envolver operações de crédito e pagamentos em espécie, elas eram estimadas em
termos monetários e requeriam um envolvimento da plantação e da mineração
(bem como das formas de produção subsidiárias) no âmago do circuito do capital
mercantil. Quando menos, o senhor convertia-se em um agente deste capital e o
seu excedente — que era um excedente produzido pelo trabalho escravo, de
modo direto (quando o senhor explorava suas unidades de produção) ou de modo
indireto (quando o senhor se beneficiava da produção alheia, também operada
por escravos) — correspondia à parte que lhe ficava no complexo rateio da
apropriação colonial, graças ao fato de ele possuir e explorar o trabalho escravo.
Portanto, a conexão do senhor com o capital mercantil se dava em dois pontos
relativamente débeis, o da negociação dos produtos e o da negociação dos
escravos, que o expunham à ganância dos agentes diretos desse capital e o
tornavam, gostasse ou não, um “parceiro menor” na repartição e no
desfrutamento do butim colonial.[5] Contudo, por causa mesmo desses dois
pontos, o senhor fazia parte do “mundo de negócios” colonial-metropolitano e a
própria escravidão constituía o suporte material dos papéis econômicos daí
resultantes, graças aos quais ele tinha acesso regular e institucionalizado à
acumulação de capital mercantil (pouco importando o resultado final do
processo: entesouramento; imobilização do excedente econômico sob a forma de
escravos e/ou de novas unidades de produção; troca de mercadorias; remessa de
mercadorias ou de créditos para a Metrópole; investimento no tráfico, no
contrabando, em transações comerciais e na aquisição de propriedades na
Metrópole ou em operações financeiras visando aos transportes e ao comércio
com outras colônias; aquisições de títulos de nobilitação ou participação de
empreendimentos da Coroa etc.). A vasta maioria dos senhores e dos colonos
não podia ir tão longe, condenando-se a uma inclusão marginal nessas
manifestações do capitalismo comercial, pouco consistente e vitalizado pelas
estruturas e dinamismos da economia colonial propriamente dita.
Portanto, a questão do que é uma “periferia” na constelação econômica de
uma colônia de exploração vem a ser algo deveras importante. Nem a Metrópole
nem as nações que detinham a hegemonia do comércio e das finanças no
mercado mundial tinham interesse ou estavam empenhadas em imprimir à
produção e ao mercado coloniais do Brasil um padrão de organização e de
crescimento análogo ao que tinha vigência institucionalizada na Europa. Na
verdade, esse padrão só se aplicava ao Brasil colonial de modo muito restrito,
rígido e segmentado — e por uma razão muito clara: para dar vazão às fases das
operações mercantis que tinham de se desenrolar aqui, através de agentes ou de
prepostos da economia metropolitana e sob seu controle direto. Essas fases de
operações não eram muitas nem alcançavam notável diferenciação, pois sob esse
aspecto as conexões eram muito similares a de um entreposto de grande porte.
Portanto, era possível dar viabilidade, eficácia e continuidade a tais fases de
operações, que precisavam ser transplantadas e pelo menos parcial ou
segmentarmente ativadas a partir de dentro da economia colonial; sem criar-se
o risco de que elas engendrassem um crescimento econômico que transcendesse
os limites da produção e do mercado coloniais (suscitando processos extra e
anticoloniais em nível econômico). Os autores que recorrem à tese de que a
política econômica colonial da Coroa evoluiu insensivelmente da “colônia de
exploração” para a “colônia de povoamento” cometem um terrível equívoco. A
transplantação de núcleos imigrantes portugueses (e por vezes de elementos de
outra nacionalidade) não se prendia ao fato de engendrar, aqui, uma extensão
demográfica, econômica, sociocultural e política da sociedade metropolitana.
Nem a lavoura nem a mineração nem os típos de produção subsidiária que se
desenvolveram através delas acarretaram esse desfecho. O povoamento resultava
da necessidade de produzir o butim. Este não existia pronto e acabado. Para
colhê-lo era preciso produzi-lo. E se o caráter das orientações da Colônia se
alterou, isso não decorreu de uma política deliberada e aplicada com certo
afinco. Mas da lenta reação da população da sociedade colonial, que descobriu
que o antigo sistema colonial não reproduzia nem levava a outra coisa senão ao
próprio sistema colonial.
Por aí se vê como se põe (e como se deve interpretar sociologicamente) o
problema da conexão do capitalismo comercial com a escravidão colonial e
mercantil. Esta dava suporte material a fortes fluxos do capitalismo comercial na
Europa (naturalmente, os que se articulavam à “exploração colonial”) e a alguns
dinamismos comerciais que eles tinham de infiltrar na estrutura e no
funcionamento do “sistema colonial”. Todavia, os setores privilegiados da
economia e da sociedade coloniais não tinham como tirar proveito e expandir
esses “efeitos de infiltração”. Eles não viviam em um meio econômico como o
europeu: o sistema de produção e o mercado da Colônia não os arrastavam para
a voragem da revolução econômica desencadeada pelo capitalismo comercial na
Europa. Suas funções especificamente econômicas começavam e terminavam
dentro de uma faixa estreita e estática, delimitada pela produção e pela
reprodução do sistema econômico colonial. É certo que algumas figuras
tentaram ultrapassar esses limites. Esses casos são elucidativos, já que revelam a
tenacidade do bloqueio. Elas sentiram bem depressa a mão pesada da Coroa, dos
interesses metropolitanos ou ultrametropolitanos. De outro lado, a própria
escravidão colonial e mercantil não podia servir como ponto de apoio para
alterar essa situação. Por sua estrutura e dinamismo, ela era pré-capitalista e não
tinha como expor, a partir de si mesma, o mercado colonial a uma irradiação que
revolucionasse o seu padrão de organização e de crescimento. Como tentamos
sugerir, ela era uma necessidade, mas não uma parte da periferia: o ponto onde o
mundo colonial se distinguia, se opunha e negava o mundo metropolitano. Ela só
tinha existência como o meio inevitável para criar-se uma riqueza ou um butim
que não se encontrava pronto e acabado em estado natural. Como conexão do
capitalismo comercial, ela era um investimento de capital mercantil —
investimento, aliás, que não se dava apenas na escravaria — e, por vezes, de
magnitude considerável. Entretanto, esse capital nunca perdeu o seu caráter
estritamente mercantil e, ao mesmo tempo, fechado sobre si mesmo, o que
somente poderia acontecer pela supressão da escravidão e pelo desaparecimento
da exclusão que o estatuto colonial impunha sobre a produção escravista.
Este modo de entender o assunto requer uma modificação da análise habitual.
Impõe-se precisar a categoria de apropriação no contexto histórico do sistema
colonial. Na verdade, essa categoria envolvia dois tipos de relação superpostas.
De um lado, estava a apropriação realizada pelo senhor no nível da produção
escravista e da exploração do trabalho escravo. Contudo, essa apropriação não se
esgotava em si mesma: o proprietário do escravo, e, portanto, proprietário de sua
força de trabalho e do seu produto, não era proprietário exclusivo do excedente
gerado pela produção escravista, cujo valor, nos setores de maior significação
econômica, se realizava, necessariamente, fora e acima da Colônia. Em termos
relativos (e não de uma comparação extemporânea com a produção capitalista),
esse excedente não era tão pequeno. Boa parte da análise de sua formação se
funda na ideia de que ele resultava, pura e simplesmente, da extensão da jornada
de trabalho associada ao controle coercitivo do trabalho escravo. No entanto, o
que é específico da formação da mais-valia absoluta da produção escravista não
são esses dois elementos, quase sempre típicos das fases de implantação ou de
escassez da força de trabalho escravo. O elemento específico consiste no
trabalho combinado, que sem criar exigências de intervenção no nível técnico
permitia aumentar a produtividade. O próprio uso do controle coercitivo da
violência não se prendia somente à necessidade de intensificar a jornada de
trabalho. Ele procedia do fato que o trabalho combinado acarretava uma
disciplina que tirava da violência e da força bruta o caráter de um fim em si.[6]
Vendo-se as coisas desse ângulo, percebe-se que o trabalho escravo comportava
uma vasta gama de realização eficiente e inclusive de flexibilidade e de
aperfeiçoamento do seu agente. Bem como implicava certos intervalos, que, não
sendo preenchidos pela técnica, tinham de ser saturados através do trabalho
semilivre ou, mesmo, do trabalho livre (embora, como regra, numa extensão
superficial e limitada). De outro lado, existia um circuito de apropriação, em
parte legal, político e fiscal e em parte econômico, que constituía a essência da
apropriação colonial. O excedente econômico não era produzido para o desfrute
exclusivo do senhor, mas para entrar nesse circuito. Aí, senhor, Coroa e
negociantes, todos eram “escravos” do capital mercantil. Nessa relação, o poder
político-legal e o poder econômico determinavam desigualdades insuperáveis.
Sob esse pano de fundo, o senhor não passava de um duplo agente, em condição
mistificada e ambígua, da Coroa e do capital comercial na economia colonial. A
Coroa extraía a sua alíquota por via de um extorsivo sistema de associação,
concessões e tributação, que não vem ao caso examinar aqui.
Os negociantes, metropolitanos ou dos centros econômicos hegemônicos,
desvendavam o mistério da relação, levando-a ao plano concreto do
desdobramento do negócio como um todo. Algumas partes e certas fases do
negócio se desenrolavam no cenário comercial e financeiro da Metrópole;
porém, a parte substancial se encontrava nos núcleos estrangeiros, que
manipulavam à distância e indiretamente os nervos das economias coloniais e de
sua articulação às economias e ao mercado mundial: a mercantilização dos
“produtos coloniais” e todas as operações ou resultados financeiros de vulto iam
ter nas suas mãos. Portanto, como o senhor, a Coroa e a Metrópole não ficavam
com “a parte do leão”. O capital mercantil tecia as redes que não deixavam
escapar os peixes grandes e o seu apetite era insaciável.
Essa superposição de formas de apropriação nunca foi estudada de modo
conveniente: como se ignoraram as implicações econômicas da natureza
mercantil da escravidão moderna, também se deu pouca importância ao fato de
que a apropriação escravista não passava de uma das facetas da apropriação
colonial. Entre o senhor e o escravo havia uma relação econômica, embora ela
não fosse capitalista (a menos que se queira caracterizar toda aplicação de capital
como capitalista e se esqueça que a produção capitalista exige o aparecimento
de uma categoria histórica, que se chama “mais-valia relativa” em termos
marxistas). O escravo era propriedade do senhor e também contava como a
quase totalidade do seu fundo de capital. E o senhor tinha a ilusão de que se
apropriava de modo direto e imediato tanto do produto do trabalho escravo,
quanto do excedente econômico gerado pelos colonos independentes ou
dependentes, que lhe estivessem submetidos, em suas unidades de produção.
Contudo, a escravidão colonial e mercantil não fora erigida para ser um “negócio
privado” no sentido estrito e preciso do capitalismo industrial. Ela devia produzir
e reproduzir um butim, a ser compartilhado pelo senhor, pela Coroa e seus
funcionários, pelos negociantes metropolitanos e ultrametropolitanos. Esse
butim, no plano em que se dava a partilha colonial dos frutos da pilhagem,
perdia qualquer ligação com as suas origens. Aí, nem a produção escravista nem
a propriedade do senhor contavam para qualquer efeito. O que importava eram
as “mercadorias” e as “riquezas” que entravam, através desse singular rateio —
provavelmente o mais odioso tipo de pilhagem da história humana —, na
circulação engendrada pelo capital mercantil. É deste patamar que se desvenda o
que era a escravidão colonial e mercantil como uma totalidade, bem como quais
eram seus laços com um capitalismo comercial de pilhagem, com as irradiações
que ele estabelecia na direção da economia colonial e no seio da economia
metropolitana, das economias comerciais hegemônicas e do mercado mundial.
Na evolução subsequente — na era de transição neocolonial e no período da
era de formação do capitalismo dependente durante o qual o trabalho escravo
continuou a existir — a escravidão manteve o seu caráter mercantil. Por isso,
todas as ligações estruturais e dinâmicas apontadas acima não desapareceram,
mas se consolidaram, seja a partir de dentro, seja de fora para dentro ou de
dentro para fora. No entanto, nunca se entenderá convenientemente certos
processos econômicos que afetaram a organização da economia colonial, em sua
base escravista, e a modificação da relação dinâmica da escravidão com a
acumulação de capital mercantil no Brasil, se se ignoram certos efeitos de
encadeamento do fim da mineração e, em particular, o que a crise do antigo
sistema colonial representou para a operação da escravidão mercantil como fator
construtivo das transformações econômicas. A investigação histórica, econômica
e sociológica tem dado maior atenção a aspectos ou efeitos que se relacionam
com o eixo de gravitação da crise do próprio trabalho escravo, que iria enfrentar
as pressões inglesas, quanto à supressão do tráfico, ou as pressões internas das
leis emancipacionistas, que dominam historicamente as tendências gerais de um
longo período, que poderia ser descrito como “o período de crise final da
instituição”. De outro lado, como ocorria no horizonte intelectual dos senhores e
dos negociantes, ao que parece os cientistas sociais também perfilharam a ideia
de que o trabalho escravo constituía um “fato natural” e tão natural que
descrevem as últimas transformações da economia colonial e os principais
processos da constituição da lavoura do café e de sua irradiação econômica
interna como se a escravidão mercantil se perdesse nas fímbrias dos “fatores
naturais da produção”. Contudo, até o fim, apesar de incorporar-se ao capital
fixo, o trabalho escravo sempre foi um fator humano e mesmo depois que a
imigração já contava como o eixo histórico da evolução do sistema de trabalho,
o que só ocorre na década de oitenta, ele representou a base material da
revolução histórica que se dá na economia interna.
Não nos é possível fazer uma exposição sistemática de todos os fatos que
consideramos de significação histórica explicativa. Vamos arrolar, tratando em
conjunto as duas eras (mas deixando claro o que ainda era típico da era colonial
ou o que se prende especificamente a cada uma das outras duas eras
mencionadas), como a escravidão mercantil funciona, de um lado, como a base
material da revitalização da grande lavoura e de perpetuação das estruturas de
produção coloniais, e, de outro, como o fator sine qua non, o capital mercantil,
não se concentraria nem cresceria nas cidades, o que quer dizer que, sem o
trabalho escravo, não teríamos a forma de revolução urbano-comercial que é
típica da evolução da economia brasileira ao longo do século XIX. Se essa
revolução culmina no fim da década desse século e atinge o seu apogeu sob o
trabalho livre, isso não significa outra coisa senão que a diferenciação alcançada
sob o trabalho escravo pela economia interna exigia outra forma de trabalho — e
não que, sem a escravidão mercantil, o capitalismo comercial teria crescido
sobre seus próprios pés nas zonas urbanas e imposto à grande lavoura um novo
padrão de organização e de crescimento econômicos.[7] A nossa história tem
sido contada de uma perspectiva branca e senhorial; por isso, ela deixa o
escravo, como agente humano e econômico, na penumbra, e quando não se
lembra pura e simplesmente de condenar a escravidão, descreve os processos
econômicos de uma perspectiva tão abstrata, que prescinde de um dos elos da
“ação econômica” e da “produção agrícola”, que até a penúltima década do
século XIX foi o trabalho escravo.
A economia de plantação colonial-escravista articulou, entre si, várias formas
de produção subsidiárias e várias regiões da Colônia. Em muitas dessas formas
de produção, o trabalho escravo encontrava uma utilização meramente seletiva
ou segmentar. Mas, isso não é importante. O que possui importância é que essa
irradiação da economia de plantação explica a generalização precoce da
escravidão mercantil na economia colonial, com o branco refugando o “trabalho
mecânico” pela existência do escravo e as oportunidades das “fronteiras
abertas”. Contudo, foi o ciclo de mineração que produziu os efeitos de
encadeamento que, de um lado, suscitaram uma expansão da economia de
plantação “para o sul” e, de outro, puseram o escravo no âmago de “uma
revolução econômica dentro da ordem”. A mineração e a exploração
diamantífera incorporaram uma vasta área do território colonial aos setores
produtivos da Colônia, provocando o aparecimento e a expansão de formas de
troca, de produção de mantimentos e de circulação de riquezas que só foram
conhecidas anteriormente, na América Latina, no México e no Peru. Apesar da
curta duração desse período, os seus efeitos de longa duração foram
consideráveis. A Coroa com seus funcionários não puderam impedir várias
modalidades de retenção do ouro (e em escala menor mesmo dos diamantes)
pelos operadores diretos ou pelos agentes econômicos que controlavam tais
atividades. Por isso, ao terminar o episódio, havia muita “gente rica”, pelo
entesouramento encoberto, pela posse de escravos, e como resultado das trocas
comerciais. À retração progressiva e à aniquilação de formas subsidiárias de
produção e do comércio, segue-se um processo quase simultâneo, em algumas
regiões, ou relativamente lento, em outras, pelo qual o dinamismo da economia
colonial se revela em toda a plenitude — e isso pela primeira vez! Gente
originária de Minas, do Rio de Janeiro, do Nordeste, do Norte e de São Paulo
aparece em vários empreendimentos que iriam modificar a paisagem da antiga
zona estagnada ou subdesenvolvida da economia colonial. O açúcar e
especialmente o café estão na base dessa expansão, que iria se consolidar e
amadurecer como o ciclo do café. Para se ver a função desempenhada pela
escravidão mercantil nesse complexo processo, é preciso deter-se na área onde a
transição foi mais morosa e difícil.[8] No Oeste paulista, pessoas que se
ocupavam na mineração ou no comércio de alimentos e de muares, viam-se com
uma riqueza imobilizada, na forma de escravaria, que não podia ser negociada
(por causa do estado geral da economia da Colônia na época) e que não
encontrava utilização reprodutiva nos quadros da economia de subsistência da
região. Inicia-se, então, uma cadeia de experiências sucessivas, pelas quais esses
senhores tentaram descobrir um “gênero colonial” que pudessem explorar e
exportar. Por fim, fixaram-se no café e lograram escapar ao círculo vicioso com
que se defrontaram. Esse exemplo é característico. Como indica com razão Caio
Prado Júnior, a economia de plantação escravista tinha de crescer em sentido
horizontal. Os efeitos de encadeamento que consideramos mostra como se deu o
que poderíamos chamar de “incorporação de novas fronteiras” à economia de
plantação colonial. A riqueza entesourada sob a forma de ouro ou de diamantes
não estava condenada a perecer. O mesmo não sucedia com a escravaria.
Portanto, quer nas áreas de desenvolvimento lento, quer nas áreas de
desenvolvimento rápido, a escravidão mercantil estava por trás de uma
modificação tão substancial dos quadros históricos da economia colonial. Indo-
se ao fundo da análise, o que se descobre não é apenas que a escravidão
mercantil produzia e reproduzia a si própria. Ela também promovia a sua
extensão e generalização, pois estas condições estavam na própria raiz da
produção e da reprodução do trabalho escravo pelo escravo.
Esse processo achava-se em pleno florescimento quando se dá a
transplantação da família real para o Brasil, ocorre a abertura dos portos e os
episódios que levariam à Independência. O que significa que a fase neocolonial,
apesar de coincidir com o desenrolar do processo dominante da emancipação
nacional, cria um contexto histórico próprio, no qual o fato mais saliente é a
vitalidade em crescendo da economia de plantação. Essa vitalidade não só
provinha da escravidão mercantil: ela só poderia manter-se e aumentar pela
perpetuação e fortalecimento da escravidão mercantil. As camadas senhoriais e
os círculos dos negociantes urbanos não precisavam “buscar alternativas
econômicas novas”. O seu problema central consistia em como dar continuidade
ao tráfico africano e adaptar o uso da força de trabalho escravo às condições que
se criavam com esse deslocamento de fronteiras da economia de plantação. Em
consequência, os seus interesses levam diretamente a uma política
ultraconservadora, pela qual, em nível econômico, o essencial consistia em
manter a produção escravista como a base material do sistema. Ou seja, a
escravidão mercantil seria o fulcro da continuidade da ordem senhorial e
escravocrata. Em torno dela e através dela as estruturas econômicas e sociais da
economia de plantação ficariam intactas: o Estado-nação em emergência teria de
constituir-se sobre essa base material, que fazia da escravidão mercantil a fonte
da viabilidade econômica e política das novas estruturas sociais e políticas, que
iriam surgir nas cidades, nas relações dos estamentos senhoriais dominantes
entre si e com os outros setores da sociedade e na “comunidade nacional” em
elaboração.
Não obstante, com a emancipação nacional começa a surgir um novo contexto
histórico estrutural, que irá consolidar-se gradualmente, mas que, desde o início,
modifica a relação da escravidão mercantil com a economia e com a sociedade.
Os pontos centrais de tal transformação são dois: 1º) as consequências
econômicas do desaparecimento da apropriação colonial; 2º)o significado da
escravidão mercantil para o desenvolvimento do “setor novo da economia”, ou
seja, da economia urbano-comercial.
Pelo que vimos, com a emancipação nacional, a economia colonial não entra
em colapso. Para que isso acontecesse, de imediato ou posteriormente, seria
necessário que os escravos, os libertos e os vários setores da população pobre
livre estivessem envolvidos, em massa, no processo de descolonização. O que
entra em crise, portanto, é a parte política do antigo sistema colonial, que prendia
e subordinava a Colônia à dominação colonial metropolitana. O resto desse
sistema apenas se redefine, com a monopolização das funções administrativas,
legais e políticas da Coroa pela aristocracia agrária e os estamentos de que esta
dependia para controlar o Estado senhorial e escravista. Entretanto, no conjunto
tal transformação constituía uma revolução política de profundas consequências
econômicas. A questão principal é óbvia. Essa revolução eliminava o controle
direto e a mediação econômica da Metrópole: o que quer dizer, ela acabava com
aquilo que os setores dominantes da economia interna viam como “o esbulho
colonial”. Desaparecia a superposição da apropriação colonial sobre a
apropriação escravista. A apropriação do produto do trabalho escravo convertia-
se numa relação econômica específica, determinada a partir de dentro e regulada
pelos interesses coletivos da aristocracia agrária. Isso não impedia que o
excedente econômico, gerado pela produção escravista, entrasse no sorvedouro
do mercado mundial em condições muito desvantajosas. Contudo, a Coroa, os
seus funcionários e os interesses do comércio metropolitano — que nunca
puderam impedir que isto sucedesse — deixavam de absorver alíquotas desse
excedente, em grande parte abocanhado pelos próprios senhores. De outro lado,
com o controle do Estado, estes podiam montar a sua política econômica, ou
seja, uma política de autodefesa dos interesses escravocratas e de fortalecimento
do setor escravista da emergente economia nacional. Portanto, se a supressão do
nexo colonial não se refletiu na condição do escravo nem afetou a natureza da
escravidão mercantil, ela alterou a situação econômica do senhor, que deixou de
sofrer o peso da “espoliação colonial” e passou a contar, por conseguinte, com
todas as vantagens da “espoliação escravista” que não fossem absorvidas
indiretamente pelos mecanismos secularizados do comércio internacional.
Muitos dos “efeitos” que são atribuídos indiscriminadamente às consequências
indiretas e remotas do ciclo de mineração e de exploração diamantífera lançam
aqui suas raízes. A escravidão mercantil se desvencilha da “cadeia colonial” e o
único beneficiário dessa rotação histórica é o setor senhorial. A expansão da
economia de plantação através do café iria mostrar a magnitude das diferenças e
o que representa economicamente, para o senhor, “dispor livremente” do produto
do trabalho escravo.
Ao mesmo tempo, as “influências construtivas” diretas e indiretas da
escravidão sobre o desenvolvimento econômico deixavam de escoar-se para
fora. Embora o mercado mundial atravessasse por essa ponte, as estruturas
escravistas da produção deixaram de ser um esteio quase exclusivo de
“desenvolvimento para fora”, isto é, para a Metrópole e os centros econômicos
que controlavam a economia metropolitana. Como os interesses comerciais e
financeiros dos senhores se concentraram nas cidades e a partir das cidades
também se organizaram os “negócios de exportação”, a escravidão mercantil
passou a ser a base material última do crescimento do capital mercantil dentro do
país. Aí, é preciso que se leve em conta dois processos concomitantes, mas
distintos. Um deles tem importância excepcional apenas até os meados do século
XIX, em que a supressão do tráfico se torna uma realidade, embora o comércio
com o escravo continuasse a ser alimentado a partir das migrações internas. A
questão é clara: a emancipação fez com que o Brasil também participasse do
circuito do “mercado triangular”. Ainda que se escoasse para fora uma boa parte
dos lucros produzidos pelo tráfico, a partir da abertura dos portos, do Vice-
reinado e da Independência uma boa parte da riqueza que tinha essa origem
ficou em “praças brasileiras”. O aparecimento de um mercado especificamente
moderno favoreceu essa internalização dos “negócios negreiros” e o impacto que
eles tinham sobre a acumulação de capital mercantil, agora dentro do país. O
outro processo se relaciona com a diferenciação dos papéis econômicos dos
senhores, seu engolfamento na vida econômica das cidades e da expansão
relativa da escravidão urbana. De um lado, o excedente econômico gerado pela
produção escravista, na parte em que ele ficava no Brasil e ia alimentar o
crescimento do “setor novo da economia”, dinamizava e dava maiores
proporções à expansão interna do capitalismo comercial. De outro, a escravidão
mercantil, como fonte do uso do trabalho escravo ou da pessoa do escravo dentro
da vida urbana, ganhava maiores proporções, embora ela nunca alcançasse,
nesse nível, importância análoga à que teve em algumas cidades norte-
americanas. Aparentemente, apenas o Rio de Janeiro, por abrigar a Corte e
satelizar, durante muito tempo, uma vasta hinterlândia agrícola, converteu essa
fonte em algo digno de consideração. De qualquer maneira, na fase neocolonial
se estabelece um novo engate entre a escravidão mercantil e a acumulação
originária. Certas funções que a escravidão desempenhou para o
desenvolvimento capitalista da Europa apareceram aqui e determinaram os
rumos, a intensidade e os frutos do florescimento do capitalismo comercial como
realidade histórica interna.
À medida em que isso sucedia, os senhores se viram apanhados de modo mais
profundo pela conexão capitalista de seu status. Duas evoluções merecem ser
evocadas. A primeira, tão bem descrita por S. J. Stein. Embora mantendo seu
enquadramento econômico, sociocultural e político senhorial, houve fazendeiros
de café que procuraram “modernizar tecnologicamente” a produção escravista.
Com isso, pretendiam lutar contra a deterioração das terras e a baixa
produtividade. No fundo, queriam salvar a condição senhorial da ruína
econômica. Contudo, aumentaram ainda mais o seu fundo de capital fixo,
ficando à mercê dos especuladores, acelerando e aprofundando a gravidade da
crise que pretendiam evitar. Outra, e esta deveras importante para os estudiosos
da escravidão moderna, foi apontada por Sergio Buarque de Holanda e o autor
deste trabalho. Os fazendeiros de café do Oeste paulista procuraram reduzir o
uso do trabalho escravo em fins não produtivos. O principal elemento dessa
evolução aparece na separação entre domus e plantação. A escravaria doméstica
se reduz e é gradualmente substituída, enquanto o capataz assume encargos de
gerência mais amplos. Vivendo na cidade, o fazendeiro passava alguns períodos,
com a família, na sede da fazenda: mas a família senhorial vê seriamente
reduzida ou eliminada a periferia de escravos e semilivres domésticos. Tal
evolução não afeta nem a estrutura nem a natureza da escravidão mercantil.
Contudo, erige uma área de especialização virtual compulsória do trabalho
escravo e elimina vários fatores de desperdício, intrínsecos ao padrão tradicional
de produção escravista. Se ela não tem maior importância analítica, pelo menos
indica que a moderna plantação sob trabalho livre já começa a constituir-se sob a
vigência da escravidão. O único elemento paternalista que existia antes, que
consistia no fato de a casa-grande ou a sede se implantar socialmente, como
unidade existencial, no seio da plantação, está em vias de desaparecer antes da
crise final do escravismo.
Por fim, para concluir este levantamento: qual é a relação da escravidão com o
desenvolvimento capitalista interno na fase inicial do capitalismo dependente no
Brasil (e que é a fase de formação do capitalismo competitivo)? Temos, entre a
década de 1860 e a data da Abolição, quase três decênios. Trata-se de um
período curto e que foi, de fato, a era de “crise final irreversível da escravidão”.
Os autores mais atilados, no estudo desse período, inclusive os que descreviam o
processo de visu, como Couty, são unânimes em ressaltar como a escravidão se
erigia em uma barreira intransponível. Ou ela ou o capitalismo. Isso não deixava
de ser verdadeiro. Nem por isso, porém, tal verdade excluía outra realidade:
chegara-se ali através e graças à escravidão mercantil. O que nos repõe na trilha
do pensamento hegeliano: ao desaparecer, em sua crise de morte, a escravidão
deixava de produzir-se a si própria para produzir o seu contrário, para gerar uma
“vida nova”. A própria expansão da economia urbano-comercial engendrava
novos elos ou aprofundava os elos antigos entre a escravidão mercantil e o
desenvolvimento capitalista dentro do país. Agora, desdobra-se diante do
observador o circuito total. O que aparece, à primeira vista, como “o excedente
econômico produzido pelo café” — e que é, ainda, em larga medida, o excedente
econômico resultante do trabalho escravo — está na raiz de todo processo
econômico de alguma importância. Nessa época, a acumulação originária sofre
um desdobramento, pois a imigração suscita uma evolução nova, de largo prazo.
Não obstante, será dos meados da década de 1880 em diante que este fator irá
prevalecer e determinar os ritmos históricos vinculados ao trabalho livre e à sua
exploração. Isso esclarece a nossa pergunta. Nesse período de três décadas não
há apenas uma repetição do passado, com o fortalecimento de certas tendências
que já foram esclarecidas. O contexto histórico-estrutural apresenta condições
que permitem mudar a qualidade das relações da economia urbano-comercial
com uma escravidão em extinção. O grau de internalização institucionalizada de
complexas funções comerciais e financeiras é suficiente para garantir um
aproveitamento mais amplo e, mesmo, revolucionário do capital mercantil
acumulado através da produção escravista. O que faz com que ele ajude a
financiar, juntamente com capital mercantil captado no Exterior, um vasto
processo de criação de infraestrutura econômica, de crescimento da grande
lavoura, de modernização urbana, de diferenciação econômica no sentido da
industrialização e, até, de imigração, expansão da pequena propriedade ou do
trabalho livre etc. Nas convulsões finais, portanto, a escravidão mercantil exercia
influências construtivas que não preenchera antes, nem no período colonial nem
no período de transição neocolonial, pela simples razão de que antes não existia
um meio capitalista consolidado, capaz de ampliar e de aproveitar seus efeitos
multiplicadores. Sob um capitalismo comercial plenamente constituído e quase
maduro, não se tratava mais de provocar certos deslanches. Mas, de pôr a
acumulação de capital mercantil gerada pela escravidão a serviço da revolução
burguesa.[9]
A ORDEM SOCIAL DA SOCIEDADE
ESCRAVOCRATA E SENHORIAL

A ANÁLISE DA SOCIEDADE escravocrata e senhorial esbarra em muitas


dificuldades. Assim como se negligenciou a busca de conceitos e de categorias
históricas adequados à compreensão, descrição e interpretação da escravidão
mercantil, também se tem negligenciado a procura de uma maior precisão no uso
de conceitos e categorias históricas apropriados à compreensão, descrição e
interpretação da sociedade escravocrata e senhorial, que se montou, desde o
período colonial, sobre a base material da produção escravista. Suscitaram-se
falsos debates, resultantes de uma distorção mecanicista do determinismo
econômico ou da explicação dialética, como a tentativa de restabelecer a
“sociedade feudal” sobre a escravidão mercantil. Ou proscreveram-se conceitos,
como o de casta e de estamento, essenciais para a explicação de sociedades
estratificadas nas quais a desigualdade econômica, social e política não se
vincula ao capital industrial (e, portanto, à institucionalização do trabalho livre e
da mais-valia relativa). Aqueles conceitos encontram largo uso entre os
especialistas da sociologia histórica e da sociologia comparada — e mesmo os
criadores do marxismo, Marx e Engels, os utilizam quando pretendem introduzir
um máximo de saturação histórica no manejo de categorias gerais. Ao se evitar o
emprego simultâneo de conceitos e categorias históricas como “casta”,
“estamento” e “classe” perde-se, portanto, aquilo que seria a diferença específica
na evolução da estratificação social no Brasil. Por fim, a investigação empírica
não se aprofundou tanto a ponto de forçar uma melhor exploração das teorias
existentes sobre as sociedades estratificadas e, em particular, para suscitar um
quadro teórico integrativo, capaz de render conta da complexa situação
brasileira. Temos procurado evitar todos esses empecilhos, mas é muito árduo e
limitado o esforço de autores isolados ou de grupos de investigadores demasiado
pequenos. Sob esse aspecto, o paralelo com o avanço da investigação dos tipos
de sociedades estratificadas na Europa merece ser lembrado, pois ele põe em
primeiro plano que é essencial a colaboração crítica de gerações sucessivas de
investigadores. O esboço que faremos a seguir constitui um ponto de chegada
que precisa, ainda, ser explorado de modo mais amplo e crítico pelos que vierem
a lidar, mais tarde, com os mesmos problemas com melhores perspectivas e
maior base empírica. Trata-se de um “conhecimento aproximado” muito
imperfeito, que só tem um mérito inquestionável: o de colocar a discussão desses
problemas dentro de um ponto de vista rigorosamente sociológico.
As linhas gerais da evolução da estratificação social são as mesmas que as da
produção escravista. Do mesmo modo que a escravidão mercantil alcançou o seu
apogeu depois da desagregação do Império colonial, o sistema social que se
monta sobre a produção escravista vai atingir o seu máximo de eficácia e sua
maturidade histórica depois da emancipação nacional. A escravidão mercantil
serve de lastro a esse giro histórico: ao restringir os limites e os ritmos da
descolonização, ela condiciona não só a persistência das estruturas sociais da
Colônia, como também determina que elas alcancem, pela primeira vez, todas as
potencialidades sociodinâmicas que elas continham e não podiam emergir nem
expandir-se sob o Império colonial. O que quer dizer que, com base na
escravidão mercantil, o “antigo sistema colonial” deu origem a uma complexa
ordem societária que transcendia a si própria e exigia, para alcançar a sua
plenitude histórica, a “liberdade do senhor” e a desagregação da dominação
metropolitana.
O esquema básico da sociedade estamental e de castas do período colonial
repousa numa construção muito simples. Os portugueses transplantaram, para cá,
a ordem social que tinha vigência em Portugal na época dos descobrimentos e da
conquista. O que quer dizer que ocorreu uma formidável tentativa deliberada de
preservação e de adaptação de todo um corpo de instituições e de padrões
organizatórios-chaves, com vistas à criação de um “novo Portugal” (expressão
empregada pelo padre Cardim com referência a São Vicente) que deveria
emergir das condições sociais de vida de uma colônia de exploração. Todavia, os
trópicos, a abundância de terras e o propósito colonial de pilhagem sistemática,
combinados às reduzidas potencialidades demográficas do colonizador,
introduziram interferências que não puderam ser eliminadas ou superadas dentro
de uma estratificação estamental. O recurso para vencer esse obstáculo consistiu
numa superposição: a ordem estamental tinha validade para os brancos, na sua
grande maioria portugueses; os outros, no início as populações nativas,
gravitavam fora dessa ordem e logo foram convertidos em “aliados” e
“submetidos”, todos com status virtual ou real de “escravos de fato”. Na medida
em que a coleta de pau-brasil e as feitorias cederam lugar à luta com os
indígenas pela posse e controle das terras e pela força de trabalho indígena, essa
escravidão de fato foi rapidamente formalizada e institucionalizada. Dada a
abundância de povoações indígenas “inimigas”, a mercantilização desse tipo de
escravidão econômica (pois o que estava em jogo era o uso sistemático da força
de trabalho indígena ad libitum dos colonizadores) não se impôs como um
imperativo imediato. Contudo, mesmo sob o regime de feitorias a compra e
venda de escravos indígenas podia ocorrer amplamente. Com as donatárias, as
transformações subsequentes do esforço de colonização e a fundação ou
expansão de povoações, o crescimento da grande lavoura e da produção do
açúcar generalizaram a mercantilização do escravo indígena e provocaram sua
institucionalização. Portanto, a transplantação dos escravos africanos em bases
comerciais apenas aprofundou um arranjo global, no qual a estratificação inter-
racial e interétnica modificara profundamente o modelo original português de
ordem societária.
A sociedade, no seu todo, compunha-se de um núcleo central, formado pela
“raça branca” dominante, e pelos conglomerados de escravos índios, negros ou
mestiços. Entre esses dois extremos, situava-se uma população livre de posição
ambígua, predominantemente mestiça de brancos e indígenas, que se
identificava com o segmento dominante em termos de lealdade e de
solidariedade, mas que nem sempre se incluía na ordem estamental. Onde o
crescimento da economia colonial foi mais intenso, esse setor ficava largamente
marginalizado, protegendo-se sob a lavoura de subsistência mas condenando-se
a condições permanentes de anomia social. Onde o conjunto da população
branca e mestiça tinha de se dedicar à lavoura de subsistência, complementando-
a com formas de produção subsidiárias da grande lavoura ou com a preação de
índios, a consanguinidade garantia uma solidariedade de parentesco pela qual
pelo menos uma parte desses segmentos de “homens livres” se incorporava à
ordem estamental. De qualquer modo, com as populações indígenas “aliadas”,
essa população livre pobre representava uma espécie de “argamassa
paramilitar”, usada como um aríete na defesa das povoações, na penetração dos
territórios desconhecidos e na conquista de novas fronteiras. Quaisquer que
sejam os problemas descritivos suscitados por esse amplo setor oscilante, o
núcleo central (acrescido ou não de parcelas da população livre pobre) abrangia
os vários estamentos em que se dividia socialmente a “raça dominante”. Os
escravos indígenas, africanos e mestiços formavam, em relação a esse núcleo
estamental, uma subordem de castas. Com o tempo, os libertos ganharam o
status legal que lhes conferia condição estamental. No entanto, para efeitos
práticos eles eram tratados como se pertencessem à subordem de castas. Por fim,
um código rígido regulava o tratamento recíproco dos membros dos vários
estamentos entre si e, mesmo, das “questões de hierarquia” envolvidas no
tratamento recíproco de membros do estamento dominante (esse código abrangia
outras especificações, relativas ao vestuário, uso de armas, de joias e emblemas,
comportamento em público, certos direitos e deveres etc., que não vem ao caso
ventilar aqui). Com o tempo, ele se diluiu, incorporando-se aos usos e costumes
(ou seja, convencionalizando-se), e passou a fazer parte, no que restou sob essa
forma, das expectativas de tratamento e de comportamento tradicionais dos
estamentos aristocráticos.
Está fora de propósito que façamos, aqui, uma descrição exaustiva dessa
sociedade. Todavia, em vista do objeto central deste seminário, conviria dar pelo
menos alguma atenção às questões que entrelaçam a economia de plantação com
essa dupla ordem de estamentos e de castas. Entre essas questões, selecionamos
quatro, que parecem ser as mais importantes de um ângulo que combine história
e teoria: 1º) as funções do patrimonialismo nas relações da Coroa com os
vassalos e, por consequência, no processo de colonização; 2º) os efeitos da
escravidão sobre a eficácia e a flexibilidade da ordem estamental; 3º) a variedade
de formas de dominação que eram coordenadas e unificadas através da
superposição de estamentos e de castas dentro de uma mesma ordem societária
compósita; 4º) as inconsistências institucionais intrínsecas à escravidão
mercantil ou resultantes da escravização segundo o princípio do direito romano
partus sequitur ventrem e como elas podiam se converter, não obstante, em
“funções úteis” naquela ordem societária compósita.
Quanto ao primeiro tópico, se tomarmos como ponto de referência teórica as
conclusões de M. Weber em seu estudo comparado do patrimonialismo e do
feudalismo, o império colonial português da época dos descobrimentos, da
expansão marítima e da conquista organizava-se como um complexo Estado
patrimonial. A concentração de poder e de riqueza nas mãos do soberano
representava a contraparte da associação deste com a nobreza, o clero e os
“homens de fortuna”, do país e do Exterior, em uma grande empresa militar,
econômica, política e religiosa comum. Essa relação não se constituíra como
fruto da expansão colonial; ela se formara anteriormente, por motivos que não
vêm ao caso lembrar aqui, e foi posta à prova, ampliada e aprofundada através
da expansão colonial. Duas coisas nos interessam nessa relação. Primeiro, o que
a associação representa como uma forma de divisão de riscos e de solidariedade
político-legal e econômica. Uma Coroa pobre, mas ambiciosa em seus
empreendimentos, procura apoio nos vassalos, vinculando-os aos seus objetivos
e enquadrando-os às malhas das estruturas de poder e à burocracia do Estado
patrimonial. Esse aspecto é deveras importante. Sem essa associação não haveria
nem império colonial português nem economia de plantação no Brasil. Por isso,
o “colonizador” ou o “colono” é sempre um vassalo, um agente da Coroa, e arca,
por sua conta e risco, embora com alguns privilégios ou vantagens e, por vezes,
com algum suporte oficial, com a construção do império na Colônia. Ele é o
outro lado do Estado patrimonial, o que simplifica a tarefa da construção do
império, de sua defesa militar e do seu crescimento econômico. Os que só viram
o lado frágil dessa relação negligenciaram por que ela surgiu e o que ela
significou em termos da criação de um imenso sistema colonial. Segundo,
convém que não se deixe na penumbra qual era a função da referida associação
nos quadros do emergente mundo colonial. Uma colônia de povoamento coloca
problemas especiais na expropriação e apropriação de terras, pois os espaços
vazios eliminam a disposição de “trabalhar para os outros” à meação, a
pagamento etc. O que dizer de uma colônia de exploração? E o que dizer de uma
colônia de exploração no Brasil, com suas fronteiras abertas e sua
disponibilidade de terras? No caso, a relação patrimonial permitia condicionar a
transferência da ordem estamental existente em Portugal: as concessões de
sesmarias demarcavam as estruturas de poder que não podiam nem deviam ser
destruídas, como condição histórica para manter a estratificação estamental que
servia de base social à existência e ao fortalecimento do Estado patrimonial.
Portanto, as doações da Coroa (ou feitas em seu nome) traduziam uma política
de concentração social da propriedade da terra. Tal política não criou apenas o
latifúndio. Ela excluiu, ab initio, a massa da população livre, pertencente ou não
à ordem estamental, da posse da terra e, por aí, do controle do poder local e do
direito de ter vínculos diretos com o Estado. Em si mesma, a terra não era uma
riqueza e iria demorar algum tempo para que ela assumisse esse significado
(mesmo como conexão do capital mercantil). Mas erigia-se na base material da
transferência e da perpetuação de uma arraigada estrutura de privilégios e da
própria dominação patrimonialista.
O segundo tópico leva-nos à dimensão esquecida do mundo colonial
brasileiro. Se foi a propriedade da terra — e não a escravidão, que constituía o
eixo econômico do antigo sistema colonial — que condicionou a persistência e o
fortalecimento do patrimonialismo, quais foram, então, as consequências da
introdução da escravidão na ordem estamental transplantada? Na verdade, a
escravidão esvaziara a ordem estamental portuguesa de muitas de suas funções
econômicas e sociais. Todavia, o empreendimento colonial, especialmente sob
um tipo de colônia de exploração que requeria uma variada retaguarda
demográfica, impunha de algum modo a reprodução social da sociedade
metropolitana. Aí voltamos ao problema da periferia. A economia de plantação
exigia dois desenvolvimentos paralelos. De um lado, uma comunidade local, que
não abrangia somente “senhores” e “escravos”. Havia os colonos que detinham,
através de doações subestabelecidas pelo senhor, posse de lotes de terra e alguma
escravaria (de vinte, trinta ou quarenta peças). Havia também os colonos
dependentes, que trabalhavam sob meação e em outras condições, com a
colaboração de um número menor de escravos. Por fim, havia “oficiais
mecânicos” e outros tipos de gente, sem os quais a supervisão do trabalho
escravo, o funcionamento do engenho e o transporte da matéria-prima seriam
impraticáveis. Tudo isso significa que o substrato humano da economia de
plantação era heterogêneo e que a força de trabalho escravo não existia no
vácuo, mas em um mundo social no qual a presença do branco era imperativa em
várias posições estratégicas. De outro lado, a economia de plantação exigia algo
mais que uma feitoria comercial-militar. Era preciso criar, para essa massa de
gente branca diferenciada e para o escoamento da produção, certos povoados
com um mínimo de funções urbanas, político-administrativas, militares e
religiosas. Desses povoados nasceram as vilas e as cidades do mundo colonial:
eles cresceram em função da economia de plantação e do circuito comercial da
Metrópole com a Colônia (bem como de outros circuitos, que surgiram dentro da
Colônia ou através do contrabando). Os dois desenvolvimentos paralelos
conduziam ao mesmo resultado. A base demográfica branca do sistema colonial
como um todo tinha de estratificar-se segundo critérios estamentais, isto é, como
uma “extensão da mãe pátria”, ou então destruiria os fundamentos da dominação
patrimonialista e do Estado patrimonial. Tudo isso é curioso, porque muitos
analistas ressaltam o “caráter anárquico” e “democrático” da sociedade colonial.
No entanto, se esses atributos fossem reais, a colônia de exploração geraria, por
uma evolução espontânea e incontida, uma colônia de povoamento em condições
de lutar por sua autonomia. O que nos obriga a pôr a escravidão nesse contexto,
para verificar o que ela acarretava no plano do funcionamento e da reprodução
da ordem societária estamental. Em poucas palavras, ela provocava o seu
empobrecimento e o seu enrijecimento. Os artesãos e oficiais mecânicos, por
exemplo, tornavam-se artesãos e oficiais mecânicos titulares. Eles não
transferiam para os escravos todas as suas obrigações. Porém, somente
saturavam os interstícios em que o seu trabalho “especializado” era
insubstituível. Em suma, a escravidão irradiou-se por toda a ordem estamental:
todos os estamentos, dos nobres e dos homens bons aos oficiais mecânicos viam
nos escravos “os seus pés e as suas mãos”. O que nos interessa são os
dinamismos que deixam de aparecer ou que são sufocados. Os que não são nem
escravos nem libertos adotam, de uma forma ou de outra, a ótica senhorial. A
apatia do “povo miúdo”, que prevalecia na Metrópole, reproduzia-se numa
escala ampliada, através de um conformismo sociopático, que não provinha do
“espaço cósmico” nem da pulverização do microcosmo social (supostamente
fomentada pela economia de plantação). Ela era um efeito da superposição de
estamentos e de castas que convertia o estamento dominante em árbitro da
situação e estimulava os demais estamentos e os estratos socialmente oscilantes
a se converterem em caixa de ressonância dos interesses senhoriais.
O terceiro tópico é o único que despertou largo interesse entre os
investigadores brasileiros e por isso encontrou maior esclarecimento empírico e
teórico. No entanto, é forçoso reconhecer que os conhecimentos obtidos são
unilaterais (pensamos principalmente nas contribuições mais significativas de
Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Nestor Duarte e Fernando de Azevedo) e essa
unilateralidade nasce da redução do macrocosmo social inerente à ordem
estamental e de castas ao microcosmo social inerente à plantação ou ao engenho
e à fazenda. Para uma análise sociológica que se volta para as totalidades, a
economia de plantação faz parte de um contexto histórico estrutural inclusivo e
determinante; o problema central não consiste em explicar uma ou outro, mas
ambos. Portanto, temos de considerar a economia de plantação em dois níveis
simultâneos e interdependentes: todo um complexo de relações comunitárias e
societárias que a articulava a várias estruturas econômicas, sociais e de poder, ou
seja, a várias formas de dominação. De um lado, havia a comunidade local, que
abrangia duas unidades distintas — o domus ou o lar senhorial; e a senzala ou o
confinamento dos escravos — e ambas existiam em um espaço social mais
amplo na localidade, dentro do qual viviam todos os agregados de gente branca
ou mestiça e, com frequência, uma ou mais povoações e vilas circunvizinhas. De
outro lado, havia o macrocosmo social, com o qual, em regra, só o senhor, a
família senhorial e alguns dos colonos brancos tinham uma relação funcional
frequente e com o qual, no nível do “regime de governo colonial”,
exclusivamente o senhor ou seus prepostos tinham vínculos permanentes
legítimos. Esse macrocosmo vinha a ser a cidade que funcionasse como
entreposto comercial e núcleo das instituições religiosas, jurídicas,
administrativas e políticas — e o mundo que se atingia através dela e dos seus
canais institucionais, inclusive a Metrópole e a Coroa. Ao se enumerar todos
esses modos de relação deparamos com várias formas de dominação (entre
iguais ou com subordinados da mesma posição social e de posição social
inferior, do pater familias e do dominus, ou do vassalo preso nas malhas do
poder colonial como correia de transmissão das “necessidades” e da “vontade”
da Coroa). Em termos de poder, a essa variação corresponde o “poder
doméstico”, o “poder senhorial” no sentido de um poder específico sobre o
escravo e de poder em geral sobre os “homens comuns” brancos ou mestiços, o
“poder da aristocracia”, no plano mais abstrato, dos que irradiavam, através da
dominação tradicional e da dominação patrimonialista, as funções paternalistas,
burocráticas e políticas dos que tinham o direito de comandar, em nome próprio
e através de delegações locais do “poder do povo” ou em nome das autoridades
administrativas coloniais e da Coroa.
Quando se reduz tudo isso ao poder patriarcal, inerente ao pater familias e ao
dominus, comete-se a mesma simplificação e a mesma mistificação que se
praticam ao reduzir a escravidão mercantil à “escravidão antiga”. Não estamos
diante do senhor de escravos grego ou romano nem do senhor feudal. Há, aqui,
uma irredutível complicação, que nos obriga a levar em conta vários elementos
diversos e contraditórios na relação de dominação — o que é tradicional e
patrimonialista, o que é patriarcal e paternalista, o que é burocrático e político, e
o que nasce da relação do dono com a “coisa” quando essa coisa é um ser
humano que se compra e a fonte de toda a força de trabalho fundamental. O
próprio Max Weber, que distinguiu tão bem os vários tipos de dominação,
recomendou que se procurasse reter, nas situações concretas, as combinações
históricas possíveis de todos esses elementos. Ora, essa regra de observação e de
interpretação impõe que se apanhe a economia de plantação nos dois níveis de
relações comunitárias e societárias. Em síntese, a superposição de estamentos de
uma “raça” dominante e de castas de “raças” dominadas punha a ordem
societária correspondente sobre um vulcão. A força bruta, em sua expressão mais
selvagem, coexistia com a violência organizada institucionalmente e legitimada
pelo “caráter sagrado” das tradições, da moral católica, do código legal e da
“razão de Estado”. O mítico paraíso patriarcal escondia, pois, um mundo
sombrio, no qual todos eram oprimidos, embora muito poucos tivessem acesso,
de uma maneira ou de outra, à condição de opressores. Aliás, a escravidão
mercantil só poderia implantar-se e desenvolver-se em uma ordem societária
dessa natureza, na qual se definia a figura legal do escravo, simultaneamente,
como “um inimigo doméstico” e “um inimigo público”.[10] O ponto de apoio
estrutural e dinâmico desse tirânico estilo de acomodação interétnica e inter-
racial nascia de uma confluência e da conjugação de formas de repressão, de
controle armado e de despotismo generalizado (forjadas e mantidas pela
superposição de estamentos e castas), graças às quais uma rala minoria não só
monopolizava socialmente todo o poder, como o aplicava a seu bel-prazer. Essa
monopolização permitia que, com relativa facilidade, as instituições-chaves
pusessem nas mãos dessa minoria, em qualquer momento e em qualquer nível
das relações comunitárias e societárias, os meios necessários para defender a
ordem, impedindo qualquer evolução explosiva da “anarquia reinante”, do
“rancor do escravo” e dos possíveis “atropelos” da gente miúda branca e
mestiça.
A escravidão mercantil pressupunha uma inconsistência institucional medular:
o fundamento monetário da escravidão fazia com que “a liberdade do escravo”
fosse, por sua vez, uma “questão de mercado”. De outro lado, a superposição de
estamentos e de castas em uma colônia de exploração onde existia permanente
escassez de mulheres da “raça branca” e extensa liberdade sexual incitava à
miscigenação em todos os sentidos possíveis.[11] Os filhos dessas uniões
herdavam a posição das mães escravas e, qualquer que fosse a sua cor e sua
relação de parentesco com o senhor, ele nascia escravo, sendo tratado e
explorado como tal. Houve muita controvérsia a respeito das “funções
integrativas e democratizadoras” da miscigenação. Graças a Antonio Candido de
Melo e Sousa, porém, tornou-se mais fácil descobrir como a família patriarcal
operava de fato. O acesso à posição de dominus só era possível aos que
pertencessem ao núcleo legal dessa família. A ampla miscigenação, ocorrida em
sua periferia (com referência à escravaria doméstica e até da senzala), nada tinha
que ver com a estrutura da família senhorial, protegida pelos laços do casamento
legal. Por isso, onde a miscigenação transcorresse dentro daquele núcleo,
“pessoas de cor” (mesmo escuras) não só nasciam livres, como podiam ascender,
eventualmente, à condição de pater familias e de dominus. Contudo, essa era
uma possibilidade e, ao que se sabe, mais a “exceção” que a “regra”, nos centros
coloniais de maior vitalidade da economia de plantação. Os sociólogos
costumam contar a frequência dos casos para depois generalizarem. Esse
procedimento metódico foi invertido e se esqueceu, quase por completo, que a
exceção é fundamental para o conhecimento analítico da regra (especialmente
quando se pode estabelecer como “a exceção confirma a regra”). O estrato
dominante da minoria branca estava por demais empenhado na defesa
sistemática do monopólio da dominação racial e estamental — segundo uma
estratégia de autoproteção contra a “mácula de sangue” e a “mácula de ofícios
mecânicos”, como o esclarecem frei Vicente da Salvador e tantas outras fontes
— para tolerar uma brecha no funcionamento da ordem escravocrata e senhorial.
Não obstante, o caráter mercantil da escravidão e a miscigenação abriam dois
focos de fissuras potenciais, que se aprofundaram com o tempo, introduzindo
fortes tensões no padrão de equilíbrio racial e estamental da sociedade
escravista. Por isso mesmo, apesar do catolicismo e do suposto efeito
conciliador que lhe seria inerente, essas linhas de fissura caíam na esfera de
consciência crítica dos estamentos senhoriais; e as ações ou relações sociais, que
poderiam intensificá-las, estavam sujeitas a fortes controles externos. Em
qualquer das duas direções a “fraqueza do senhor” submetia-se a um código
tradicionalista severo, que inclusive legitimava a burla de “últimas vontades”,
expressas em testamento, especialmente se poderiam ser tidas como lesivas ou
perigosas (ou pura e simplesmente demasiado lenientes). A crise da consciência
cristã, portanto, se não impedia nem suavizava a escravidão mercantil, tampouco
protegia certos efeitos que deveriam ser “intocáveis” e “sagrados”.
Aí temos uma complexa situação histórica. Apesar do caráter mercantil da
escravidão, o acesso do escravo à liberdade acabava não sendo uma “questão
puramente mercantil”. Várias barreiras e pressões restringiam o processo de
“liberação por compra”. O que estava em jogo eram a existência e a reprodução
do trabalho escravo, base material de toda a economia de plantação e da
sociedade correspondente. O mesmo sucedia com a mudança do status do cativo
por vontade ou intervenção do próprio pai (ou de alguém por ele nomeado). Se
casos desta natureza se tornassem muito numerosos, além do trabalho escravo
estariam ameaçados a dominação da “raça branca” e o próprio princípio da
estratificação estamental. Por isso, às linhas de fratura da ordem escravocrata e
senhorial correspondiam outras linhas igualmente fortes de sua defesa e
fortalecimento. Nenhuma “ética cristã” e muito menos o duro catolicismo
colonial português[12] poderiam transpor essa realidade histórica. Mas, em
consequência, a ordem que se fechava para o escravo criava duas alternativas.
Primeiro, como em outras economias e sociedades de plantação, as tensões do
escravo desabrochavam de modo indireto (suicídio, infanticídio, sabotagem do
trabalho, destruição da propriedade do senhor, roubos, crimes etc.) ou através
das fugas, nem sempre bem-sucedidas, apesar do aparecimento e difusão dos
quilombos e da tradição que eles evocam da rebeldia do escravo. Segundo, a
manipulação deliberada das fissuras em um “sentido útil”. A liberação do
escravo acabava sendo, muitas vezes, menos que uma demonstração de bondade
e de piedade cristãs (embora, muitas vezes e em toda parte, isso tenha ocorrido
com certa regularidade). Dois problemas práticos se abatiam sobre a ordem
escravocrata e senhorial. Um, era de natureza estrutural. O povo colonizador não
era suficientemente numeroso para transplantar para a Colônia todo o tipo de
gente pobre e de oficiais mecânicos que ela requeria. Para saturar esse vazio
inevitável, impunha-se uma espécie de bombeamento demográfico, pelo qual
uma parte da população escrava era transposta para o setor livre, na condição de
liberto. O outro, era de natureza conjuntural. Os momentos de crise do mercado
mundial se refletiam negativamente sobre a expansão da produção e o custeio de
manutenção da escravaria. O recurso mais empregado consistia em transferir o
trabalho escravo da grande lavoura para lavoura de subsistência, como sugere
Celso Furtado. Mas essa solução envolvia outras manipulações, entre as quais se
salientam certas práticas bem conhecidas, como a manumissão dos escravos
mais ou menos inaptos para o trabalho produtivo de qualquer espécie (escravos
velhos, doentes, aleijados etc.). O que quer dizer que, nas duas direções, havia
uma “racionalidade senhorial”, que governava o fluxo das concessões sob o
escravismo. Excetuados os casos de exceção, a regra era ditada pelo esforço de
preservar a estabilidade da ordem senhorial e escravocrata, bem como de
fortalecer o seu padrão de equilíbrio racial e estamental. O que estava em jogo
era a defesa nua e crua do senhor e dos interesses senhoriais. E se alguma vez as
autoridades coloniais ou a Coroa interferiam com o intuito de resguardar o
escravo ou “os limites” da escravidão, o significado dessa interferência é
patente: tratava-se de impedir que a transgressão da violência institucional
média, pelos próprios senhores e por seus prepostos, se convertesse no fulcro de
tensões raciais incontroláveis e de uma instabilidade que transcendesse o poder
conjunto de autodefesa armada dos senhores, das autoridades coloniais e da
Coroa.
Em todos os tipos de sociedades estratificadas — seja a sociedade de castas, a
sociedade estamental, a sociedade de classes ou uma combinação delas — o
padrão estrutural e dinâmico da ordem existente possui vigência universal. Isso
não quer dizer que a vida social, no plano comunitário ou no nível societário,
tenha a mesma intensidade em todos os pontos cobertos pela ordem social
vigente. Do mesmo modo, os ritmos históricos de funcionamento,
autorreprodução e transformação da ordem social não se impõem com a mesma
intensidade em toda parte. No caso da ordem escravocrata e senhorial,
engendrada pela economia colonial de plantação, o produto principal no ciclo
econômico, o volume e a facilidade do seu escoamento para a Metrópole e o
mercado mundial é que determinavam as áreas internas onde o regime escravista
e a sociedade estamental e de castas atingiam o seu máximo de saturação
histórica. Não podemos dar a essa questão todo o interesse que ela merece. Não
obstante, é essencial lembrar, pelo menos, dois de seus aspectos cruciais.
Primeiro, da implantação e desenvolvimento do antigo sistema colonial no
Brasil à sua extinção político-legal, as regiões que imprimiram maior vitalidade
ao crescimento da ordem escravocrata e senhorial foram, naturalmente, aquelas
onde a produção de açúcar alcançou o seu apogeu ou aquelas nas quais a
mineração e a exploração diamantífera serviram como eixo à oscilação da esfera
dominante da produção escravista-colonial. É claro que as demais regiões se
ordenavam, institucionalmente, pelos mesmos requisitos econômicos, militares,
jurídico-administrativos, políticos e religiosos. O que significa que a ordem
societária era a mesma e o mesmo, portanto; o relacionamento das “raças” e dos
estamentos sociais. Apenas, nessas regiões predominavam formas de produção
secundárias (como o cacau, o fumo, o algodão etc.) e formas subsidiárias de
produção colonial (preação de índios, produção de charque e de peles, fazendas
de criação etc.), cuja extensão e vitalidade estavam “voltadas para dentro” — o
que fazia com que a base material da ordem societária reduzisse a proporção
entre escravos africanos e indígenas ou modificasse a relação numérica entre a
população escrava e a população livre. Esta sempre era minoritária mas nas
áreas subdesenvolvidas da economia e da sociedade coloniais a minoria branca
se tornava ainda mais rala e tinha de exercer as várias modalidades de
dominação, apontadas acima, utilizando como ponto de apoio uma vasta
retaguarda composta por elementos indígenas “aliados” ou “submetidos” e por
elementos mestiços dependentes. Por isso, essas minorias tinham de aprofundar
os ritmos históricos em outras direções, nem sempre “contidas pela ordem”,
talando as populações nativas e levando o terror inerente à ordem escravocrata e
senhorial aos limites mais extremos (não poupando sequer as ordens religiosas,
como o demonstram os episódios das lutas contra os jesuítas, nem respeitando as
tentativas da Coroa de conter “a violência senhorial”, que poderia,
potencialmente, evoluir no sentido de alimentar processos especificamente
anticoloniais). Nada disso levou a rupturas mais profundas nem impediu que a
universalização da ordem escravocrata e senhorial atingisse mesmo os espaços
onde era maior o “vazio histórico” em relação aos requisitos econômicos,
demográficos, sociais e políticos da ordem escravocrata e senhorial. Uma
explicação superficial tenderia a levantar a hipótese de uma supercompensação
psicológica, como um “efeito de demonstração” possível em um mundo no qual
quem não tivesse dom comprovável acabaria suspeito de “mácula de sangue” e
de “condição mecânica” (ou, se fosse mestiço, poderia ser tomado como escravo
ou liberto). Não se pode excluir o valor de semelhantes hipóteses. Contudo, é
evidente que elas apanham a órbita secundária das relações humanas. A
explicação fundamental, de uma perspectiva macrossociológica, está na própria
organização e viabilidade da economia e da sociedade coloniais. A associação
entre o vassalo, como colono, e a Coroa, diretamente e através das funções
imediatas das autoridades coloniais, era o elemento básico do sistema. Sem essa
associação, da qual vinha como decorrência a própria ordem escravocrata e
senhorial, sobre a qual se assentava tanto a “possibilidade”, quanto o “futuro” da
colônia de exploração, tudo se tornaria inviável. Portanto, os efeitos de
compensação entram em conta numa linha secundária de interpretação dos fatos.
E eles ajudam a entender como, em condições de extrema pobreza ou de
dificuldades inconcebíveis, o que aparecia era um zelo mais extremo pela
“limpeza de sangue” e pelos “atributos de fidalguia”, uma lealdade exaltada à
Coroa e hipócrita à religião católica, bem como uma saturação dos vazios
históricos pela ação direta dos próprios colonos, que se tornavam, assim, “as
mãos e os pés” do antigo sistema colonial.
Segundo, é preciso pelo menos dar alguma atenção ao problema histórico do
que poderia e deveria ser uma ordem escravocrata e senhorial no seio de uma
colônia de exploração do império lusitano. A evolução das estruturas de poder,
em Portugal, tendia a reduzir as prerrogativas da alta nobreza, embora isso
ocorresse de maneira oscilante. Na medida em que se fortalecia um Estado
patrimonial e absolutista, os vários estratos da alta e da média nobreza — e
mesmo alguns estratos dos pequenos fidalgos de “dom antigo” ou nobilitados
pelos serviços prestados ao Império — tendiam a gravitar em torno do séquito
do soberano ou das oportunidades militares, econômicas, burocráticas e políticas
abertas pela administração estatal. Algumas famílias nobres mais ricas e
poderosas demoraram para sentir os efeitos dessa evolução ou tiveram
oportunidades para remontar os ventos adversos. Contudo, em média, as
oscilações não impediam que o fortalecimento de um Estado patrimonial
absolutista, que crescera demais para os recursos financeiros de que dispunha ou
poderia mobilizar, repercutisse de modo negativo sobre a situação e as
aspirações dos estamentos nobres. Essa tendência tinha, forçosamente, de
refletir-se na parte colonial do império e com maior intensidade no Brasil. De
um lado, porque, à exceção de alguns nobres que vieram para cá como
mandatários ou altos funcionários da Coroa, a gente de dom que se transplantou
para o Brasil era predominantemente de terceira ou segunda grandeza. Os
poucos que poderiam, a partir da situação colonial, resistir com eficácia às
tendências montantes à centralização do poder estatal estavam destinados a
circular pelo vasto império ou pretendiam voltar para Portugal tão depressa
quanto fosse possível. De outro lado, a base econômica, social e política da
aristocracia colonial — ou seja, do “rebento crioulo” da nobreza lusitana — não
conferia aos estamentos senhoriais o poder para contra-arrestar qualquer
tendência que prejudicasse os estamentos nobres metropolitanos. Ao contrário, a
chamada aristocracia colonial era, em si mesma, um grave problema político
dentro do Império. Muito mais que à aristocracia metropolitana, a Coroa tinha,
quisesse ou não, de anular as potencialidades da aristocracia colonial,
impedindo-a de constituir uma comunidade de interesses e de alvos políticos
capaz de unificar-se em um sentido especificamente estamental. Uma evolução
dessa natureza poderia culminar na criação de um Estado dentro do Estado, ou
seja, em processos de autonomização econômica e político-legal que a Coroa
não teria meios para enfrentar e destruir.
A solução desse problema político foi, talvez, o traço mais fino da habilidade
da Coroa e nela reside o segredo da longa duração do antigo sistema colonial no
Brasil e da “transição pacífica” pelo tope, da fase colonial para a fase
neocolonial, com uma emancipação política que transcorreu como uma autêntica
“revolução dentro da ordem”. É que, apesar de todas as tensões e conflitos, a
Coroa soube manter a associação do colono com o império numa escala tão
ampla e íntima que ele nunca passou de um agente privado instrumental da
“política imperial”. O colono de status senhorial não só era o vassalo e o
representante da Coroa na Colônia: ele era, simultaneamente, a base material
visível e a mão armada invisível da existência do império colonial. Sem essa
ligação, o governo colonial português, com todas as suas instituições
administrativas, militares, religiosas e políticas, entraria em colapso, pois teria de
enfrentar um vácuo total. Como explicar essa ligação, aparentemente paradoxal e
contraditória? A Coroa e os estamentos senhoriais eram o que hoje se poderia
chamar de irmãos siameses. No Brasil, a construção da colônia de exploração e o
seu progresso deveram-se a essa correlação, em grande parte fundada numa
evolução interdependente, criada e fortalecida pelo patrimonialismo. Tanto a
riqueza e o poder da Coroa quanto a riqueza e o poder do colono privilegiado
cresciam do mesmo modo e na mesma direção, em termos de despotismo
absolutista. Só que enquanto o poder da Coroa era canalizado por um Estado
nacional patrimonialista, tendo por fundamento o império colonial, o poder do
colono privilegiado era canalizado pela colônia de exploração, tendo por
fundamento o domínio patrimonialista com sua economia de plantação e o seu
modo de produção escravista. Para que um pudesse crescer, o outro também
tinha de crescer. Enquanto a colônia de exploração se desenvolvesse em sentido
horizontal, sem modificar suas estruturas e sem revolucionar os seus ritmos
históricos, esse paralelismo não precisava ser destruído a partir do polo colonial.
De outro lado, enquanto se mantivesse tal paralelismo, a Coroa podia usar sua
posição estratégica para preservar as coisas “nos devidos lugares”, isto é,
impedindo que o poder absolutista do senhor colonial transcendesse os focos de
sua expansão natural, isto é, o domínio colonial e as instituições coloniais de
caráter local, em que se congregavam e deliberavam os “homens bons”. Fora
desse circuito, o senhor colonial podia exercer pressões diretas ou indiretas sobre
os vários níveis das autoridades coloniais e fazer petições à Coroa, diretamente
ou por agentes desta (civis e religiosos). Trata-se de uma montagem política
perfeita, que ainda hoje aparece como uma pequena obra-prima. Quisesse ou
não, o senhor colonial era o “parceiro válido” da Coroa e, em última instância, o
verdadeiro sustentáculo do império no Brasil. Ao movimentar as contradições
inerentes ao antigo sistema colonial “dentro da ordem”, ele favorecia,
inevitavelmente, e fortalecia a Coroa. Por sua vez, a própria estrutura e as
contradições inerentes à ordem escravocrata e senhorial paralisavam o senhor
colonial em tudo que dissesse respeito às contradições do mesmo sistema que só
pudessem ser enfrentadas e resolvidas “contra a ordem”. A massa de escravos,
de libertos e de mestiços pobres erguia o fantasma de uma rebelião geral, que
poderia muito bem ter como estopim o “inimigo doméstico” que era, ao mesmo
tempo, o “inimigo público”. Em si mesmo, para os estamentos senhoriais (ou
para a chamada aristocracia colonial) esse risco era muito mais temível e
indesejável que o pleno funcionamento do antigo sistema colonial. O que quer
dizer, em outras palavras, que o antigo sistema colonial português gerou o agente
principal de que carecia, com uma mentalidade tão ultraconservadora e egoísta,
que se tornava apto a pôr em primeiro plano e a satisfazer-se com os seus
interesses mais estreitos e imediatos. Portanto, se a ordem estamental, em
Portugal, caminhava em crescente atraso com referência à história da Europa da
revolução capitalista, a ordem estamental e de castas, no Brasil, impunha-se os
padrões e os ritmos de uma história colonial. Tudo porque o senhor não
transcendia à Coroa, no plano histórico, e ao tornar-se escravo da produção
escravista sucumbia à condição colonial.
Essa exposição das estruturas e dinamismos funcionais e históricos da antiga
ordem escravocrata e senhorial pode parecer muito longa. Mas, é preciso levar
em conta duas coisas: 1º) aí está o período mais longo da análise, pois abrange o
tempo percorrido pela formação da colônia de exploração e sua evolução até o
limiar do último quartel do século XVIII; 2º) essa ordem não se alterará em sua
substância, posteriormente, em especial no período de transição neocolonial, em
que ela atingirá sua plenitude histórica e desabrochará todas as suas
potencialidades ao nível das relações comunitárias e societárias. A crise da
ordem escravocrata e senhorial surgiu de baixo para cima, em termos estáticos,
por causa do problema da renovação da escravaria e da reprodução do trabalho
escravo. E foi agravada pelas pressões dinâmicas decorrentes da expansão do
setor capitalista novo, que se irradiou das cidades para as zonas rurais, expondo
os senhores a um novo circuito histórico, através do qual a base material da
produção escravista e a própria reprodução do modo de produção escravista
foram condenadas à extinção paulatina, embora se mantivessem as demais
condições de sua riqueza e do seu poder (como o monopólio da terra, forte
predomínio no controle das estruturas de poder político, constante e crescente
participação nas atividades econômicas nascidas do crescimento da economia
urbano-comercial, despotismo social em todos os planos da organização das
instituições-chaves, das comunidades locais ou da sociedade nacional etc.).
Portanto, apogeu e crise aparecem como dados concomitantes. O senhor não sai
dessas transformações como era antes. Porém, se ele aproveita, agora em estilo
tradicional-patrimonialista e em estilo capitalista, o momento de apogeu, ele não
se converte em vítima da crise final dessa ordem. A vítima foi o “negro” como
categoria social, isto é, o antigo agente do modo de produção escravista que,
quer como escravo, quer como liberto, movimentara a engrenagem econômica
da sociedade estamental e de castas. Para ele não houve “alternativa histórica”.
Ficou com a poeira da estrada, submergindo na economia de subsistência, com
as oportunidades medíocres de trabalho livre das regiões mais ou menos
estagnadas economicamente e nas grandes cidades em crescimento tumultuoso,
ou perdendo-se nos escombros de sua própria ruína, pois onde teve de competir
com o trabalhador branco, especialmente o imigrante, viu-se refugado e repelido
para os porões, os cortiços e a anomia social crônica.
Já contamos demais essa história, para repeti-la aqui, de novo, em todos os
seus pormenores. Apenas para completar os quadros históricos desta exposição,
conferindo-lhe um mínimo de unidade, vamos ressaltar alguns aspectos centrais
da revitalização da ordem escravocrata e senhorial na fase de transição
neocolonial bem como do complexo interdependente de causas e efeitos, os
quais tornaram o modo de produção escravista inviável e, com isso, fizeram o
que a emancipação nacional não conseguira, levar a descolonização às estruturas
econômicas e sociais herdadas da “sociedade colonial” e mantidas na “sociedade
imperial”.
A descrição feita acima sugere, claramente, que a ordem escravocrata e
senhorial, elaborada em uma colônia de exploração, não tinha como dinamizar
por si mesma, mantidas as condições existentes, as suas contradições internas.
Essas condições se alteraram mais a partir de fora para dentro que a partir de
dentro, mas assim mesmo nas duas direções. O fim do último quartel do século
XVIII e todo o primeiro quartel do século XIX formam uma época histórica de
crise da consciência ultraconservadora do senhor colonial.[13] O desfecho do
ciclo de mineração e de exploração diamantífera desencadeou vários processos
concomitantes de mobilidade espacial e econômica, de deslocamento de
fronteiras econômicas, com diferentes tentativas de substituir a lavoura de
subsistência pela grande lavoura e de descobrir um novo eixo econômico para o
modo de produção escravista. O principal elemento dessa eclosão histórica
dentro do mundo colonial era político. O senhor colonial começava a desatar
suas amarras com o regime colonial, ao mesmo tempo em que se propunha o
problema de sua impotência econômica e de sua inviabilidade política em termos
da organização do império colonial. Por fim, o significado da condição colonial,
que atravessava sua posição dominante na sociedade e a neutralizava, prevalece,
então, sobre as compensações que o regime podia oferecer. Ao mesmo tempo,
essa transformação é apanhada pelas relações da Colônia com a Europa e sua
posição dentro do império colonial português. Em consequência da invasão de
Portugal, a família real se refugia no Brasil e várias ocorrências mudam a
vinculação do país com o mercado externo. De um lado, ao converter o Rio de
Janeiro em centro político da Corte, a Coroa conferia ao Brasil a condição — por
passageira que fosse — de núcleo de irradiação do poder real e metropolitano.
Isso equivalia a interiorizar o império colonial sob nova condição: não mais a do
antigo sistema colonial, mas das instituições necessárias à existência e eficácia
do poder imperial. Se isso garantia para as camadas senhoriais a base política
para uma “transição dentro da ordem”, isto é, através da família real e do poder
imperial, ao mesmo tempo significava que o “senhor colonial” iria pretender, daí
por diante, ser apenas “senhor”. De outro lado, ao abrir os portos e conceder à
Inglaterra amplos privilégios econômicos, a Coroa inaugura um circuito
histórico novo: a economia de plantação e o comércio interno ganhavam
vínculos diretos com o mercado mundial. As funções econômicas da Metrópole
teriam de ser, por sua vez, internalizadas, e isso representou a base material para
uma profunda rotação econômica. Pois é em torno dela que se iria dar a eclosão
do capitalismo comercial moderno, através do seu mercado, de suas instituições
básicas e do estilo de modernização econômica que ambos exigiam, no acanhado
mundo urbano herdado da era colonial.
Todas essas transformações simultâneas e inter-relacionadas através do
“tempo histórico europeu” continham o mesmo significado para a sobrevivência
e o fortalecimento da ordem escravocrata e senhorial. Esta não foi condenada
juntamente com o antigo sistema colonial. Ao contrário, o destino dos dois foi
cuidadosamente separado, de acordo com os interesses em jogo inerentes às
principais forças históricas. As camadas senhoriais tinham natural interesse em
resguardar a base material de seu poder social e econômico, que era o monopólio
da terra, a propriedade escrava e o regime de plantação; a Coroa, em um
momento tão dramático de derrocada, precisava ainda mais que os senhores
proteger o que antes se chamara a “sua vaca de leite”; a Inglaterra e os outros
centros dominantes do comércio internacional competiam duramente entre si
pela partilha dos despojos coloniais de Portugal, mas tinham o mesmo interesse
pela continuidade da produção de “gêneros coloniais” no Brasil e de sua
exportação para o mercado europeu. No conjunto, pois, essa primeira etapa da
transição neocolonial foi muito favorável à persistência da ordem escravocrata e
senhorial como ela existia anteriomente e, o que é deveras mais importante, de
tal confluência de fatores resulta que essa ordem ganha maior elasticidade em
dois níveis distintos. No plano puramente econômico, as funções centralizadoras
da Metrópole entram em crise irremediável e começam a ser rapidamente
absorvidas a partir de dentro, um processo que se iria consolidar e aprofundar
com a emancipação nacional. Ao mesmo tempo, o arcaico e rígido mercado
colonial interno começa a esboroar-se, e em seu lugar começa a aparecer um
mercado capitalista especificamente moderno, que se desenvolverá aos poucos,
de início nas cidades de maior porte, mas segundo ritmos intensos (em virtude
dos novos vínculos com o mercado mundial e o controle do comércio de
exportação e de importação predominantemente por firmas estrangeiras). Na
evolução que vai até a segunda década do século XIX essas transformações
podem parecer acanhadas. E de fato, elas o eram, pois é somente depois da
Independência que todos esses processos atingirão seu clímax. Não obstante,
elas retiravam a economia de plantação do eixo do antigo sistema colonial,
transferindo-a para o eixo mais dinâmico do mercado mundial, e contribuíam
para expor os papéis econômicos do senhor ou dos intermediários do comércio
de exportação a influências mais diretas e especificamente capitalistas. No plano
estritamente político, os efeitos da dinamização da ordem escravocrata e
senhoriais são ainda mais consideráveis. Os estamentos senhoriais começam a
ganhar existência própria, fora e acima do estreito palco fornecido pelo domínio
patrimonialista e senhorial, do poder local e das pressões canalizadas
institucionalmente de modo indireto sobre a Coroa. Eles não só começam a
tomar consciência da comunidade de interesses econômicos, sociais e políticos
numa linha integrativa estamental. Surgem as primeiras manifestações coletivas,
embora regionais ou “concentradas no tope”, através dos figurões do Governo,
de um “querer coletivo” que iria articular-se de modo muito rápido. Tão rápido,
que a Independência converteu-se numa transação senhorial: os senhores já
tinham alcançado solidariedade política estamental suficiente para poderem
impor a própria posição social como fundamento dos processos de emancipação
de Portugal e para conterem essa radical transformação nos limites de uma
“revolução política dentro da ordem”, ou seja, com a preservação do monopólio
da terra, da propriedade do escravo e de todos os privilégios da aristocracia.[14]
O que se poderia designar como a “Idade de Ouro” da ordem escravocrata e
senhorial vai da segunda etapa da fase de transição neocolonial (mais ou menos
da Independência até a década de 60) ao início do último quartel do século XIX
(portanto, uma fase em que a formação do capitalismo competitivo dependente
já alargara as bases do comércio interno e já atingira a primeira irradiação
importante da indústria de bens de consumo). Aqui, os problemas históricos da
duração da ordem escravocrata e senhorial passam para segundo plano. De fato,
nos meados do século XIX já se tornam evidentes os fatores e os efeitos
estruturais de uma crise irreversível dessa ordem. Não obstante, ela revela nesse
período o seu máximo de eficácia histórica e de flexibilidade. Ambos os efeitos
se prendem ao polo senhorial. Os estamentos senhoriais lograram plena
integração de seus interesses econômicos, sociais e políticos numa escala
horizontal e nacional, tornando-se o que se poderia descrever como um
estamento em si e para si, com condições de monopolizar o poder político estatal
e de comandar a política econômica interna. Isso não quer dizer que os
estamentos intermediários estivessem anulados ou que não lutassem contra a
“organização oligárquica” do poder e da liderança política da aristocracia
agrária. Mas que o Império, no Brasil, foi um regime escravista e que tinha os
seus limites nos marcos da ordem social dominados pelos senhores de escravos.
Em suma, a supressão dos liames coloniais com Portugal não implicou
desaparecimento do império colonial. Este se internalizou e se estabilizou,
alimentando-se a partir de dentro pelas funções econômicas, sociais e políticas
do domínio senhorial, da economia de plantação e do modo de produção
escravista. O liberalismo senhorial era um liberalismo que começava e terminava
na “liberdade do senhor” — e cobria-se contra qualquer risco de uma revolução
verdadeiramente nacional, que tirasse o Estado nacional do seu controle
estamental. O que ocorreu, teve tão larga duração e deixou sequelas que vêm até
hoje, permite corrigir a interpretação que cientistas políticos fazem da formação
do Estado representativo nas “nações emergentes” de origem colonial. Não é
verdadeiro, pelo menos no século XIX, que os estamentos dominantes e as suas
elites usassem as instituições representativas para excluir o Povo da participação
política e das estruturas de poder. Na verdade, o Povo, na situação brasileira,
nunca teve tais regalias. O que era o Povo? Os estamentos dominantes e
intermediários, como queriam os parlamentares e os publicistas conservadores
do Império? Ou o conjunto da população brasileira, composta em sua quase
totalidade de escravos ou de libertos e “homens livres” completamente
desvalidos, mesmo para se qualificarem para a representação política? De modo
que a adoção das instituições representativas não foi um passo para excluir o
Povo do poder, mas um artifício para manter a concentração social do poder nas
mãos dos estamentos sociais dominantes e intermediários. A constituição de uma
sociedade civil ultrasseletiva permitia criar a base política de um sistema
nacional de poder estável, no qual todas as funções do Estado e do Governo
podiam transcorrer dentro dos “parâmetros da ordem”.
Em consequência, as funções que a Coroa portuguesa por vezes refugou na
defesa dos interesses escravistas senhoriais, o Império brasileiro preencheu com
a desenvoltura e a eficácia necessárias. Ao contrário do que afirmam alguns
autores, que atribuem um caráter mitológico suprarracional à “política
econômica”, o Império teve uma política econômica, e esta gravitava em torno
dos interesses da aristocracia agrária e do comércio de importação e de
exportação, largamente ligado (embora não exclusivamente) àqueles interesses.
As medidas que aprofundavam a crise da produção escravista, vindas de fora (da
pressão inglesa) ou de dentro (da pressão emancipacionista e abolicionista),
encontravam nela forte oposição e só logravam êxito a duras penas (para com
frequência serem adulteradas; ou para serem postas em prática nos limites do
“consentimento senhorial”). A expansão do café ofereceu, assim, uma evidência
ideal dessa “Idade de Ouro” da ordem escravocrata e senhorial.[15] Ela mostra
até onde se poderia ir, dentro e através da economia de plantação, no
fortalecimento da sociedade de castas e de estamentos. Contudo, é preciso não
esquecer que, ao lado da política, havia outros fatores que explicam esse extremo
de vitalidade e de flexibilidade, atingidas por uma ordem social que estava
condenada e poderia ter desaparecido com a Independência, se esta fosse, de
fato, uma revolução nacional de cunho popular. O crescimento das economias
urbanas e o mundo de negócios criados pelo café, especialmente em São Paulo e
no Rio de Janeiro, serviram de eixo a um engolfamento do senhor em outras
esferas da vida econômica. Em uma sociedade na qual o capital ou era importado
ou estava concentrado nas mãos dos que realizavam a expropriação do trabalho
escravo e participavam internamente do seu rateio social entre os estamentos
privilegiados, o senhor era um dos principais candidatos a se converter em
“homem de negócios” de estilo moderno. Isso começa a acontecer nos fins do
século XVIII e ao largo de toda a fase de transição neocolonial. Mas o apogeu
desse processo é alcançado com a fase de formação do capitalismo competitivo
dependente. Os efeitos desse engolfamento direto ou indireto do senhor nas
transações capitalistas nas grandes cidades, onde ocorria nossa peculiar
revolução urbana,[16] em nada melhorava a condição e o destino do escravo. Os
reflexos imediatos dessa conexão, na medida em que ela já é mais ou menos
conhecida, indicam que os senhores se empenharam, de fato, em prolongar ao
máximo a duração da escravidão, não só para ganhar tempo para poderem
substituir o escravo pelo trabalhador livre,[17] mas, principalmente, para
explorar da forma mais intensa possível e no prazo possível o trabalho do
escravo. Em certas regiões, por sua vez, os senhores não tinham alternativa. Com
o desaparecimento do modo de produção escravista, ver-se-iam condenados a
perder qualquer viabilidade como agentes ativos da economia de plantação.
A crise da ordem social escravocrata e senhorial constitui um processo de
extinção histórica prolongada de um sistema econômico, social e político. É um
caso concreto que aparece, no nível interpretativo, como uma demonstração
típico-ideal de que as formações sociais não podem ir além e sobreviver à forma
de produção correspondente. Muito do “antigo regime” iria existir além dessa
crise, graças à articulação de estruturas arcaicas e modernas imperantes no
padrão de desenvolvimento das economias capitalistas da periferia. Não
obstante, o elemento que condicionou a crise e a levou ao colapso final foi a
impossibilidade de renovar a força de trabalho escravo e de reproduzir o modo
de produção escravista. Por isso, embora o escravo e o liberto não tivessem um
palco histórico no qual pudessem atuar abertamente como agentes de uma
“revolução contra a ordem”, no substrato da história eles desempenharam essa
função capital. Foi nos núcleos mais dinâmicos de expansão da economia de
plantação[18] que esse efeito seria sentido com maior rapidez e nele se apelou,
de maneira mais organizada e intensa, à imigração e à substituição do trabalho
escravo, pelo trabalho livre. A pequena lavoura e a economia de plantação de
áreas de menor vitalidade de crescimento poderiam enfrentar essa lenta agonia
por mais tempo. Porém, tal solução esbarrava com os interesses econômicos dos
fazendeiros de café do Oeste paulista, cujas figuras de proa ocupavam o centro
do “mundo dos negócios” e vários tipos de papéis econômicos, que iam do
comércio de exportação e de importação às atividades bancárias, às especulações
imobiliárias, com terras ou com os transportes, e aos empreendimentos
industriais.[19] O elemento competitivo e a acumulação originária de capital em
moldes capitalistas já haviam penetrado, aliás, de modo tão profundo a condição
do senhor, que ele já era pura e simplesmente o “fazendeiro”, uma “versão
burguesa” do senhor colonial ou do barão do café de Minas Gerais e do Vale do
Paraíba.[20] Ao abandonar a exploração do trabalho escravo e a espoliação do
excedente econômico gerado pela produção escravista, o senhor, portanto, volta
as costas para a sua antiga condição histórica, largando a si mesmos — em uma
demonstração de “negra ingratidão”, indignadamente apostrofada por Nabuco —
a ordem escravocrata e senhorial e o Império. O que comporta uma reflexão
melancólica. Enquanto os escravos “são postos no olho da rua”, largados a si
mesmos, “os ratos abandonam o navio”. Mas levam consigo tudo o que tinham,
pois aderindo à República os antigos senhores resolveram o “problema dos
braços para a lavoura”, bem como salvam o monopólio da terra e o poder
oligárquico, impondo à revolução burguesa em ascensão os seus próprios ritmos
históricos arcaicos e o padrão mandonista que iria minar e destruir a ordem
republicana.[21]
Há, também, outro “lado moderno” mais humano nessa crise da ordem
escravocrata e senhorial. Ele vem do conflito irredutível e irrefreável que se
estabeleceu entre o trabalho livre e o trabalho escravo. A conciliação entre as
duas formas de trabalho poderia ser feita nas fazendas, especialmente à custa de
certos artifícios, que não podem ser relatados aqui (como deixar aos escravos as
lavouras mais duras e os trabalhos mais penosos, usar o trabalho escravo nas
“tarefas pioneiras” etc.). Porém, mesmo nas fazendas os imigrantes se
mostraram menos dóceis que os trabalhadores brancos ou mestiços nacionais.
Criaram conflitos conhecidos e forçaram uma gradual eliminação do trabalho
escravo, em um processo que não ia contra o agente humano do trabalho
escravo, mas contra o modo escravista de produção. Este rebaixava o valor do
trabalho, suscitava a persistência generalizada de padrões de dominação
intoleráveis e tendia a impedir que as relações de contrato, tão essenciais para a
existência do “trabalho livre” e para o aparecimento de um verdadeiro mercado
de trabalho, se institucionalizassem nas zonas rurais nas quais a economia de
plantação sob o trabalho livre tendia a crescer de maneira acelerada. Em poucas
palavras, enquanto perdurasse, o modo de produção escravista convertia o
“imigrante” e o “trabalhador livre” em geral em substituto e equivalente do
“escravo”. E isso tinha consequências mais nocivas e incontornáveis nas
fazendas de café e nas pequenas cidades do interior. No entanto, é nas cidades
grandes, cujo comércio prosperava segundo ritmos nunca vistos anteriormente e
nas quais a diferenciação do sistema de produção levava a uma industrialização
de tendências permanentes, com perspectivas de crescimento constante, que a
oposição à escravidão era particularmente mais violenta. Não se tratava mais de
algo como o que ocorria nos meados do século XIX, quando a “opinião pública
esclarecida” mostrava sua indignação moral contra as brutalidades dos “maus
senhores” ou dos “vícios” que a escravidão introduzia numa “sociedade
civilizada”. Tampouco se tratava das reflexões, que iriam se tornar tão
absorventes a partir do início do último quartel desse século, sobre “como
preparar o escravo para o trabalho livre”. O fim da década de 1870 e toda a
década de 1880 abrange uma época de agitação apaixonada contra a escravidão,
na qual o movimento abolicionista se tornou intrinsecamente revolucionário e se
fixaram os parâmetros de que capitalismo e escravidão não podiam coexistir.
Membros ilustres de famílias aristocráticas, como Nabuco ou o célebre dr.
Antônio Bento, davam as mãos a todos os que pretendessem participar da
desagregação do trabalho escravo. Este último, inclusive, indo mesmo mais
longe que Patrocínio, levou a agitação para as senzalas, combatendo o poder
senhorial dentro de seu próprio bastião. A mitologia da campanha abolicionista
foi muito engrandecida depois da Abolição. Ainda assim, de modo direto ou
indireto, dela participaram todos os setores sociais importantes, em cidades
como o Rio de Janeiro, São Paulo e outras, embora o testemunho insuspeito de
Antônio Bento deixe bem claro: “A abolição foi feita pela pobreza, com o maior
sacrifício que é possível imaginar-se”.[22] E, no ato final, também pelo escravo!
Essa correlação entre desenvolvimento capitalista e extinção da escravidão,
como diria Durkheim, é “normal”. O modo de produção escravista serviu para
construir as fortunas das aristocracias agrárias da Colônia e do Império. Em
termos de formação e de expansão do capitalismo como uma realidade histórica
interna, ele preencheu as funções de fator de acumulação originária de capital.
Quando esse fator se tornou historicamente inoperante e, além disso, passou a
ser substituído por formas de acumulação de capital especificamente capitalistas,
foi definitivamente condenado ao desaparecimento. De um lado, ele contribuiu
para o crescimento interno de um mercado capitalista e de formas de produção
capitalista. De outro, ao se constituírem, estes acabaram eliminando, no plano
histórico e no nível estrutural simultaneamente, o modo de produção escravista
e, com ele, todas as suas superestruturas, da dominação senhorial na esfera do
domínio patrimonial ao Estado monárquico. Portanto, a ordem escravocrata e
senhorial foi destruída a partir de dentro, através de desenvolvimentos
capitalistas direta ou indiretamente engendrados pela economia de plantação
escravista; e foi, ao mesmo tempo, suplantada e substituída a partir de fora,
pelos desenvolvimentos capitalistas que se irradiaram da economia urbano-
comercial para a sua periferia agrária. Trata-se de um circuito histórico bem
conhecido. Apenas, no Brasil, ele não se deu de maneira completa. Como o polo
senhorial do regime monárquico logrou converter-se no polo oligárquico do
regime republicano, graças a certas condições materiais e políticas que
permitiram essa rotação histórica, ao desaparecer, o trabalho escravo deixou
atrás de si várias formas de trabalho semilivre e de trabalho escravo disfarçado
que continuam a existir até hoje, mesmo em economias de plantação tidas como
“especificamente modernas”.
CAPÍTULO 2

25 ANOS DEPOIS:
O NEGRO NA ERA ATUAL[23]

O PROJETO DA PESQUISA sobre relações raciais foi publicado em 1951.[24] Escrito


pelo autor deste artigo, ele visava a estabelecer um consenso intelectual que nos
permitisse, a mim e ao professor Roger Bastide, entrar em acordo sobre os
aspectos controvertidos da situação racial brasileira, apesar das diferenças de
pontos de vista que pudéssemos ter a respeito do assunto. Ao mesmo tempo,
impunha-se unificar, empírica e teoricamente, as técnicas e os métodos de
observação, reconstrução e interpretação da realidade, que devíamos explorar.
Os dois objetivos foram alcançados de imediato, através de uma discussão crítica
que nos ofereceu a oportunidade de conhecermos melhor o pensamento um do
outro. Com pequenas retificações, o projeto passou a exprimir uma plataforma
de trabalho comum, tornando-se operacional tanto para as etapas de coleta e
análise dos dados, quanto para a etapa mais complexa de descrição e explicação
dos processos de interação racial na cidade de São Paulo.
A pesquisa constituiu um êxito patente, apesar da severa limitação de recursos
com que nos defrontamos. Na história da pesquisa sociológica no Brasil, ela
aparece como a primeira tentativa de certo vulto de trabalho cooperativo[25] e
de utilização da pesquisa empírica sistemática como “técnica de consciência
social” dos dilemas históricos da sociedade brasileira. Ela deu origem a vários
estudos importantes;[26] e encontrou ampla confirmação por outras pesquisas,
que estavam sendo feitas na mesma ocasião[27] ou que foram encetadas
posteriormente, graças à sua influência.[28] Procuramos buscar a colaboração
direta e crítica dos sujeitos da investigação, especialmente do negro e do mulato,
cujos sentimentos, atitudes e orientações de comportamento eram mal
conhecidos. A colaboração do negro e do mulato foi maciça: nos seminários
contávamos com uma afluência média de 130 ou 150 pessoas. Nessa massa,
selecionamos intelectuais negros, para entrevistas em grupo focalizadas;
mulheres com maior consciência do “problema negro”, para seminários e
entrevistas focalizadas; e sujeitos para história de vida e entrevistas formais ou
informais, de caráter pessoal. A colaboração do branco se deu através da
assistência de um grande número de estudantes de sociologia da Universidade de
São Paulo, de assistentes e auxiliares de ensino da cadeira de Sociologia I, e de
pessoas que ocupavam posições-chaves em diversos tipos de instituições, através
das quais as “linhas de cor” definiam sua vitalidade e funções, selecionadas para
entrevistas formais e informais. Embora os documentos pessoais constituíssem
um dos eixos da investigação, as reuniões mensais representavam uma técnica de
observação em massa e os seminários com intelectuais ou mulheres abriam
perspectivas à análise de atitudes e comportamentos em pequenos grupos. É
certo que não se tratava de entidades sociais espontâneas, pois se formavam sob
a motivação da pesquisa. Contudo, através da observação direta procuramos
colher materiais sobre as situações concretas de vida e de interação racial. Na
medida do necessário, tais dados foram complementados por informações
censitárias e tratamento estatístico descritivo de entrevistas focalizadas sobre
aspirações e perfis de carreiras. De outro lado, para evitar o obscurecimento das
explicações que nascem da ignorância do passado, fizemos um amplo esforço de
sondagem histórica, para acompanhar a posição do negro e do mulato na
evolução da economia e da sociedade paulistanas, do século XVI à década de
1940 ou 1950 do século XX. Na verdade, a cidade de São Paulo possui certas
peculiaridades, algumas históricas (no período colonial, ela foi durante muito
tempo o que chamaríamos de uma “região subdesenvolvida” e permaneceu nessa
condição até ao surto cafeeiro), outras econômicas e étnicas (ela se tornou o eixo
da revolução urbano-comercial e industrial no Brasil, ao mesmo tempo em que
se convertia no maior centro de concentração de imigrantes estrangeiros), e
outras propriamente sociais (a cidade se transformou em cidade regional e logo
em seguida em cidade metropolitana de modo rápido e acelerado). Por isso, o
que se passou na cidade de São Paulo, em termos de concentração, irradiação e
aceleração da revolução burguesa, só iria se repetir em outras cidades brasileiras
posteriormente e com frequência através da satelização do desenvolvimento
socioeconômico brasileiro pelo eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Em outras
palavras, a cidade de São Paulo viveu todo um processo histórico que se
desencadeou no resto do Brasil sob a sua hegemonia e como uma maturação
“tardia”. Cumpria verificar se essa explosão histórica incluía o ex-agente do
trabalho escravo e se as novas estruturas econômicas, sociais e políticas
destruíam o antigo regime na esfera das relações raciais. O próprio “elemento
negro” tentou tomar pé nesses processos, através de movimentos de protesto e de
crítica raciais (especialmente nas décadas de 1930 e de 1940), o que exigia um
desdobramento na observação e na análise sociológicas da contraideologia racial
elaborada no seio do “meio negro” (o que fizemos por meio de entrevistas,
histórias de vida e do estudo da documentação escrita, principalmente dos
jornais negros). Sabíamos que nem tudo que iríamos descrever ou descobrir se
daria da mesma maneira em outras localidades brasileiras. Como não incluímos
essa convicção no planejamento da pesquisa, deixamos de lado suas
consequências teóricas (pois não dispúnhamos de recursos para ir além,
procurando comparações com outras situações, contrastantes ou similares). De
qualquer modo, essa convicção nos impediu de generalizar de forma afoita e foi
com prazer que vimos surgir os primeiros tateios de reflexões voltados para a
comparação.[29] Mas, se se trata da cidade de São Paulo apenas, isso não quer
dizer que o que se passava aí não repetia algo mais ou menos geral (quanto à
sociedade escravista) e que tende a acontecer em outras partes da sociedade
brasileira de nossos dias (nas condições imperantes de transição para a economia
urbano-industrial e para o capitalismo monopolista).
Hesitamos muito quanto à categoria descritiva privilegiada. Preferimos
empregar os conceitos de branco, negro e mulato entre aspas, para indicar os
percalços de uma flutuação que não pode ser efetivamente controlada pelos
investigadores. Na época, apenas o conceito de meio negro foi explorado com
intenções inclusivas e totalizadoras. Não nos propúnhamos a estudar só os
negros nem procuramos descobrir em que a condição do mulato poderia ser
peculiar (em face do “branco” e do “negro”). De fato, ao descrevermos o que
podíamos observar através das duas categorias, postas lado a lado, estávamos
tentando unificar as experiências e as orientações de comportamento do negro e
do mulato. Não nos atrevemos a fundir as observações numa mesma categoria,
por respeito às ambiguidades da situação e das patentes diferenças entre os dois
agentes humanos. Apesar de nossas intenções relativizadoras e unificativas,
recebemos críticas especialmente dos ativistas do meio negro, que são
visceralmente contra todas as distinções e repelem, por igual, expressões como
“elemento de cor”, “pessoa de cor” etc., e palavras como “preto”, “mulato
claro”, “mulato escuro” etc. Para eles, todos os elementos que não são
fenotipicamente brancos, são negros e a palavra negro surge, portanto, como um
símbolo de identidade psicológica e racial. Essa inclinação se fortaleceu ainda
mais nos últimos anos, como pudemos descobrir em um debate recente.[30] Os
negros e mulatos que não são “racialmente conscientes”, porém, mantêm as
antigas descrições, que revelam, profundamente, categorias e critérios
perceptivos construídos pelo “branco” no passado. De qualquer forma, a nossa
pesquisa ficou com duas limitações. Se ela é totalizadora, ela não chega a operar
com uma única categoria integrativa e exclusiva, como pretendem os principais
representantes das várias correntes do radicalismo e do ativismo afro-brasileiro.
Se ela é relativizadora, ela não separa o “negro” do “mulato”: se os distingue, o
faz para projetá-los no que possuem e sofrem em comum, o que desperta a crítica
dos brancos que se identificam com a ideologia da “democracia racial” e suscita
reserva nos especialistas que se interessam mais pelo que é peculiar à “condição
do mulato”.[31] Todavia, não se pode fazer tudo de uma vez. A nossa pesquisa
não era isenta de valores — pois víamos nela uma contribuição à crítica objetiva
a uma situação histórica de preconceito e discriminação camuflada; e
aceitávamos, abertamente, uma identificação moral e política com o negro, como
condição intelectual para que nossa contribuição se inserisse no processo de
criação de uma verdadeira democracia racial —, mas por mais que
pretendêssemos nos superar, tivemos de cair nas malhas do conhecimento
científico circunscrito e especializado. Dependemos de outras investigações, e
particularmente de investigações que sejam feitas por negros, para chegarmos a
um conhecimento mais completo e inclusivo e, ao mesmo tempo,
suficientemente diferenciador.
Depois de 25 anos, em termos de datas-limites, o assunto que se coloca é
claro. As transformações recentes da cidade de São Paulo, tão profundas no nível
da economia, da sociedade e da cultura, afetaram radicalmente o quadro que nos
foi dado observar e descrever? Aquele quadro ainda faz parte da “realidade
quotidiana” ou foi pulverizado? A questão, como indicamos em nossas hipóteses
de trabalho, é que o Brasil se transforma rapidamente mas, ao mesmo tempo,
nem todas as suas estruturas entram em jogo e fazem parte da história em
processo. A desigualdade racial permanece um fato inquestionável. Nem poderia
ser diferente. O fracasso dos movimentos de protesto negro redundou na
ausência do negro na luta por seu destino na cena histórica. As alterações que
ocorreram não revelam menos a presença do negro na economia, na sociedade e
na cultura. Porém como parte dos processos globais e dos dividendos indiretos.
A história seria diferente se aqueles movimentos tivessem persistido, se
ampliado e aperfeiçoado; aí, os principais interessados estariam lutando pela
democracia racial e com toda a probabilidade sua pressão sobre a desigualdade
racial seria diversa. As notas que se seguem, sem pretenderem ultrapassar o
caráter de uma sondagem muito tosca e impressionista, retêm as imagens da
situação atual, do ângulo do negro e do mulato que participam de uma visão
inconformista do “problema racial”.[32] Eis os três pontos que comportam uma
exposição de relativa consistência: 1º) o aproveitamento crítico dos resultados da
pesquisa (naturalmente, pelos setores mais ou menos ativistas do meio negro;
mas, também, pelo branco, onde isso se mostra sintomático); 2º) por que as
transformações recentes da sociedade brasileira não engendraram qualquer
alteração profunda da desigualdade racial nem de um tipo mais atuante,
organizado e conflitante de inconformismo racial; 3º) os aspectos nos quais são
patentes transformações significativas do quadro de contato racial descrito
inicialmente (e válido para a década de 1950).
O AMADURECIMENTO DA CONSCIÊNCIA CRÍTICA

DESDE SUAS ORIGENS, a sociologia se constitui como uma “técnica de consciência


social”, orientada para a percepção e a explicação críticas do presente,[33] esfera
na qual deveria ligar “o estado atual das coisas” às transformações históricas em
processo.[34] Essa função obliterou-se nos países em que a profissionalização
institucional dissociou a pesquisa sociológica dos grandes debates coletivos e
isolou os sociólogos dos movimentos sociais inconformistas.[35] Não é esse o
caso no Brasil, apesar do caráter repressivo do controle da investigação científica
e do comportamento antidemocrático das elites econômicas, culturais e políticas.
Os intelectuais brasileiros mais ou menos atuantes continuam a formar uma
intelligentsia funcional para os grandes debates coletivos e para as
transformações históricas em processo, desempenhando papéis construtivos pelo
menos quanto à verbalização e à difusão de várias formas de inconformismo e de
radicalismo. A própria opressão institucional faz com que essa funcionalidade
não desapareça, mesmo em condições de extrema repressão do “intelectual
crítico” e da “sociologia militante”. Na medida em que os vários grupos e classes
sociais não possuem meios próprios de autoconsciência e de autoexplicação das
condições adversas do ambiente, eles têm de voltar-se para os “intelectuais
críticos”, em geral, e para a “sociologia militante”, em particular, na busca de
uma visão inconformista articulada, no que concerne seja ao radicalismo
burguês, seja à contracultura e ao socialismo revolucionário.
Essa conexão, condenada pelo pensamento conservador e temida pelos
“intelectuais acomodados”, beneficiou amplamente a avaliação positiva e a
divulgação extracientífica dos resultados da pesquisa Bastide-Fernandes.
Embora um aproveitamento prático realmente eficiente não tenha ocorrido,
mesmo nos setores iletrados do meio negro ela teve um impacto inesperado. A
ausência de racismo institucional, por sua vez, contribuiu para que esses
resultados: 1º) recebessem acolhida muito favorável por parte dos radicais e
ativistas negros, que viram neles um prolongamento e um aprofundamento das
tentativas de desmascaramento racial encetadas pelos principais mentores do
“protesto negro” nas décadas de 1930 e de 1940; 2º) fossem aceitos com
simpatia e incorporados pelo branco inconformista, de personalidade
democrática e identificado com a mudança de mentalidade ou de costumes. Não
obstante, tanto no meio negro quanto no meio branco, foi nos setores
abertamente radicais que o interesse pela contribuição empírica e teórica da
pesquisa alcançou maior intensidade e consistência. É que a avaliação produtiva
e o aproveitamento construtivo dos resultados da pesquisa exigiam um nível de
secularização de atitudes e comportamentos que não são comuns ou frequentes
em uma sociedade de classes em formação; e a incorporação de certas
explicações ao horizonte intelectual médio exigia uma ruptura prévia com as
concepções conservadoras e tradicionalistas dominantes, pelo menos na esfera
da ideologia racial. Por isso, embora não sejam conhecidos contrastes relevantes
a respeito, o meio negro revelou uma sensibilidade maior às “verdades
reveladas” ou “comprovadas”. De José Correia Leite, Raul Joviano do Amaral,
Fernando Goes, Oswaldo de Camargo, a S. Rodrigues Alves, José Pelegrini e
Abdias do Nascimento — sem enumerar todos os veteranos “mais conspícuos” e
os jovens “mais promissores” — partiram as avaliações reativas mais
entusiásticas e apologéticas, que adquiriram, na prática, o significado de um rito
de adoção.[36] Através daquela pesquisa, portanto, a sociologia não só se
incorporou ao desmascaramento do mito da democracia racial — ela se inseriu,
também, na confusa situação presente e nos anseios daqueles que procuram
redefinir o protesto negro em busca de “um mundo melhor para os negros”, de
uma “verdadeira confraternização racial” e de “igualdade sem hipocrisia”.
Em um primeiro nível, a pesquisa Bastide-Fernandes não só “confirmou” os
diagnósticos da situação racial brasileira, que serviam de base à contraideologia
e à contrautopia elaboradas através dos movimentos sociais que abalaram o meio
negro em São Paulo nas décadas de 1930 e 1940. Ela pôs em evidência a
dignidade histórica desses movimentos, que surgem atualmente, na verdade,
como as únicas manifestações autênticas e autônomas de populismo, ocorridas
no passado recente. O protesto negro falhou, por motivos intrínsecos e em
virtude da falta de ressonância no mundo dominante dos brancos. Mas, a sua
herança intelectual e política, ignorada antes daquela pesquisa, ficou delimitada
e reconhecida, transcendendo aos limites em que ficou contida durante a sua
eclosão e evolução. Em um segundo nível, a pesquisa Bastide-Fernandes foi
mais longe e penetrou mais fundo — como tinha, aliás, de acontecer — tanto nas
ambivalências e nas debilidades do protesto negro, quanto na miséria racial de
uma sociedade que se pretende democrática embora mantenha, indiferente,
estruturas raciais herdadas do passado colonial e escravista. O protesto negro
estava condenado a morrer nas fronteiras do meio negro, pois ele não podia
debilitar os padrões existentes de dominação e de desigualdade raciais
permanecendo no âmbito institucional da ordem republicana. De outro lado, as
estruturas raciais da sociedade brasileira só poderão ser ameaçadas e destruídas
quando a “massa de homens de cor”, ou seja, todo o elemento negro, puder usar
o conflito institucionalmente em condições de igualdade com o branco e sem
nenhuma discriminação de qualquer espécie, o que implicaria participação racial
igualitária nas estruturas de poder da comunidade política nacional. Os
intelectuais negros revelaram um singular tropismo positivo pelos resultados da
pesquisa nos dois níveis mencionados: eles não se puseram em defesa estreita de
suas posições anteriores nem dos diagnósticos implícitos ou explícitos.
Avançaram até onde conseguimos chegar, levando com eles seus seguidores
mais ou menos letrados e até iletrados, que não teriam condições culturais para
entender e aceitar as contribuições da sociologia crítica. Analistas apressados e
superficiais, especialmente quando tomam como ponto de referência a natureza
do protesto negro nos Estados Unidos da atualidade, veriam nessa evolução mais
uma evidência da passividade do negro brasileiro e de sua propensão a imitar o
branco. Mas, tal apreciação seria malévola e inconsistente. Eles perceberam
muito bem em que plano se davam as convergências e as superações, e aonde o
sociólogo não pode chegar — e a sua tarefa especificamente anticonformista e
de rebelião dos costumes precisa se manter ou se renovar. Incorporaram as várias
combinações que se podem fazer sociologicamente entre “classe” e “raça”; e
com isso lograram uma nova perspectiva prática para entender melhor as
inconsistências institucionais da propalada democracia racial e para conceber
melhor a “Segunda Abolição”, que não lograram desencadear como pretendiam.
É óbvio que o amadurecimento da consciência crítica, no meio negro, não
caminhou unilateralmente e em uma direção dominante. Os mesmos motivos
que explicam o fracasso relativo e o impasse final dos movimentos de protesto,
[37] também explicam, ainda hoje, a pulverização da crítica reativa na
atualidade. Não se trata, apenas, do desnível socioeconômico, cultural e político
do negro em face do branco. O padrão brasileiro de dominação racial engendrou
uma ambivalência inexorável no meio negro — e esta não pode ser combatida e
extirpada sem a eliminação prévia daquele. Isso quer dizer que, enquanto o
negro não romper com a visão mistificadora da realidade racial, dispondo-se a
colocar o branco no centro de um antagonismo que deve ser, inevitavelmente, de
“classe” e de “raça”, ele será vítima de várias confusões morais e da
incapacidade de lutar, de fato, por posições coletivas nas estruturas de poder. Os
movimentos da década de 1930 e de 1940 atestam essa conclusão: até ao negar a
ordem, se não for ao fundo das coisas e da combinação brasileira de “classe” e
“raça”, ele acabará favorecendo, de um ou de outro modo, as ideologias e as
formas de hegemonia de raça dominante. Aliás, o mesmo raciocínio se aplica ao
meio branco, mas por motivos inversos. O esforço de desmascaramento e de
superação da situação racial existente não pode partir do branco, por
“inconformista”, “radical” ou “revolucionário” que ele seja. O seu
inconformismo, radicalismo ou revolucionarismo de classe só parcial e
incompletamente poderiam conter os componentes mais explosivos da igualdade
racial. No conjunto, por paradoxal que pareça, as reações positivas aos
resultados da pesquisa refletem, de um lado e de outro, impossibilidades
crônicas e conjunturais. Por fim, cumpre mencionar que o negro encontrou um
ponto de apoio inesperado, que traz consigo mais que “uma confirmação pelo
branco”, o prestígio da ciência. Talvez tal avaliação traduza uma superestimação
da pesquisa sociológica e do papel intelectual do sociólogo. Não importa. Um
limite é demarcado e transposto — e isso é o principal. O branco, por sua vez, se
for identificado com orientações verdadeiramente democráticas (quanto à
organização da personalidade, à concepção do mundo e à convivência inter-
racial), descobre como alargar o âmbito de seu ataque aos costumes anacrônicos
e às sequelas raciais da escravidão. Para ele, será sempre uma surpresa verificar
que o próprio negro se antecipou às descrições sociológicas; mas a sociologia lhe
oferece uma oportunidade para transcender à ideologia racial dominante, já que
seu critério de verdade passa pelos fatos (não pela contraideologia do negro). O
que significa que é através da crítica sociológica da situação que o branco pode,
mais facilmente, entender o protesto negro e apoiá-lo de modo prático, indo da
simpatia ocasional para a rejeição global. Contudo, nem o branco nem o negro
chegaram ao chamado “terreno da ação” à luz dos conhecimentos novos. Seu
aproveitamento dos resultados da pesquisa ficaram contidos em um limite
prévio, a meio caminho entre a negação de uma ordem social que dissimula seus
fundamentos raciais e a vontade de alterar de alto a baixo as estruturas raciais da
sociedade brasileira. Em consequência, nem os conflitos de classe estimulam o
encaminhamento da crise racial, nem os conflitos de raça ajudam a configurar a
revolução com base na classe. Nesse ponto, a crítica sociológica foi mais longe e
sua contribuição potencial continua inexplorada.
Feito esse balanço geral convém indicar certas retificações evidentes. Muitas
“atitudes esclarecidas”, que apareceram simultaneamente entre negros e entre
brancos, nada têm a ver com os resultados da pesquisa e sua absorção pelo
horizonte cultural médio. Ao contrário, elas foram induzidas pela alteração dos
estilos de vida e das mentalidades dos dois estoques raciais em presença. A
industrialização maciça e a convulsão metropolitana, a esse respeito, secretaram
atitudes, padrões de comportamento e valores que expõem a ordem racial
herdada do passado ao que se poderia designar como o início da crise final. No
entanto, mesmo estabelecendo-se esse confronto e aceitando-se suas
consequências, não ficam comprometidos os efeitos úteis da pesquisa e dos seus
resultados (os que podemos avaliar sociologicamente; e os que resultam da
elaboração histórica descrita acima). Pois eles não só reforçaram propensões
críticas preexistentes e ajudaram a criar outras novas. Também incluíram, de
modo definido e aparentemente durador, o dever de estar informado sobre a
natureza e os efeitos nocivos do “preconceito de cor” no ideal de personalidade
do negro educado e esclarecido. A corrente nova, de negros e brancos que
ostentam atitudes raciais divergentes, autenticamente democráticas e igualitárias,
encontra uma base perceptiva e explicativa para a sua atuação racional e, ao
servir de contrapeso às pressões conservantistas, amplia o público aberto à
“sociologia crítica e militante”. Hoje já não se poderia mais pensar em “combate
ao preconceito de cor” ou cogitar de medidas práticas de “controle do
preconceito e da discriminação raciais” sem pôr em primeiro plano a
contribuição da sociologia e a colaboração dos sociólogos. Ainda não se
constituíram os meios institucionais que poderiam fazer o enlace da pesquisa
sociológica com as impulsões inconformistas e inovadoras do comportamento
coletivo divergente. As necessidades desse enlace existem e impõem ao negro
inconformista um novo ponto de partida, que o obriga a ser mais realista e, ao
mesmo tempo, mais difícil de satisfazer. Em função do nível crítico da
percepção sociológica, a negação da ordem se abre simultaneamente para a
“classe”, a “raça” e os seus entrelaçamentos visíveis ou invisíveis. O que quer
dizer que saltamos do ideal inconcretizável da “Segunda Abolição” para a ideia
da revolução de baixo para cima: o negro aí aparecendo como o Povo que se
torna agente da história.
O INCONFORMISMO INÓCUO

O PROJETO DE PESQUISA de 1951 insistia no conceito de “capitulação passiva”.


Então, conhecíamos mal o protesto negro, sua contraideologia racial e os ideais
que orientaram as lutas pela frustrada “Segunda Abolição”. Hoje, o conceito que
merece preeminência é o reverso de inconformismo inócuo. Esse conceito
representa a imagem invertida daquilo que se entende, no meio negro, como “o
complexo”. Todo negro, quer ele caiba na categoria do “negro tradicional”, que
transige com as expectativas do branco, de acomodação espontaneamente
passiva; quer ele seja o que os próprios negros designam como o “negro
trânsfuga”, que “foge ao problema” e, com cálculo ou sem ele, “sufoca o seu
orgulho”, em troca de compensações elementares e com frequência fugazes; quer
ele corresponda ao que caracterizamos como o “novo negro”,[38] firmemente
disposto a competir e até a aceitar o conflito pessoal com o branco “para subir
socialmente”; quer ele corresponda ao que os brancos entendem como “negro
racista”, pronto para repelir o padrão de dominação racial assimétrica, a
ideologia racial correspondente e as estigmatizações resultantes, e para colocar
no seu lugar a “beleza do negro”, com sua “superioridade biológica” e sua
“supremacia intelectual” e com um ideal retaliador de igualdade das raças e da
democracia racial, mais afro-brasileiro que “negro brasileiro” — enfim, todo
negro, nessa variedade de tipos, quando se põe diante do branco, revela alguma
forma de inconformismo, por mais oculto e tosco que ele seja (embora, nas áreas
de tensão, de competição e de conflito, o inconformismo transpareça claramente,
como o falo ereto desproporcional, pintado por Abdias do Nascimento). Na
verdade, “o complexo” trabalha em várias direções opostas e contraditórias.
Da capitulação passiva à rebeldia ativa, com passagens pela “traição franca”
diante dos “irmãos de raça” e pelo comportamento estritamente racional com
relação a fins ou a valores. Todavia, se se leva a análise ao que é mais profundo
e, em regra, parcial ou totalmente inconsciente, “o complexo” sempre implica
uma anuência tácita que é uma acusação, uma “alienação” que é uma “esperteza
contra o branco” ou, nos dois níveis mais complicados, a resistência calculista e
a rebelião declarada, pelas quais se inverte e se dá combate ao tradicionalismo
nas relações raciais. Portanto, as mesmas reações que engendram “o complexo”
produzem o inconformismo (embora a elaboração psicológica e cultural deste
dependa do tipo de personalidade e das condições externas da situação social do
sujeito e de sua interação com os brancos). A base estrutural do comportamento
racial do negro está intrinsecamente mesclada a componentes psicodinâmicos e
sociodinâmicos que negam o que ele “precisa” e “deve ser” em termos das
expectativas do branco e do padrão assimétrico de acomodação racial. Por aí se
desenha uma dialética das relações raciais que faz com que, por detrás do
“complexo”, que inferioriza e subalterniza o negro psicológica, cultural e
socialmente, exista uma compensação, por vezes meramente simbólica ou
simplesmente subjetiva, pela qual o negro procura definir-se e afirmar-se como
pessoa, tentando impor a sua própria realidade moral, de modo discreto e
dissimulado ou de modo agressivo e retaliador. A lógica contestatória só aparece
quando essa negação implícita ou explícita rejeita o mundo dos brancos e o lugar
nele destinado ao negro.
Estamos, pois, diante de um inconformismo básico, que assume várias formas
e, com frequência, ilude o próprio negro. Ele possui uma natureza larvar em
nível de comportamento e de ajustamento raciais do “negro tradicional”; já
quando se trata do “negro trânsfuga”, o inconformismo surge “envenenado”,
como a maçã na história da Branca de Neve, pois a relação desse tipo de negro
com o mundo dos brancos é perversa e pervertida; o “novo negro” comporta
ambiguidades, mas são ambiguidades que rendem juros e o colocam na espiral
do êxito, em detrimento do branco, de sua vontade e de seu ímpeto de
dominação dos outros; mas, se ele corrói a tendência à subalternização do negro,
ele não se bate frontalmente contra ela; o que faz o “negro racista”, que deixa de
racionalizar o inconformismo, apresentando-o na forma mais límpida de uma
contestação da ordem racial e da posição subalterna do negro dentro dela. A
gradação implica um radicalismo progressivo, pelo qual o negro, de fato, elabora
culturalmente “o complexo”, projetando-o contra o branco, a sua dominação
racial e as iniquidades especificamente raciais da sociedade de classes, herdadas
do passado ou não. Esse é um ponto que precisa ser retido com cuidado. Nas
análises iniciais, ficamos muito rente aos dados e mesmo nas descrições dos
movimentos de protesto negligenciamos esse explosivo componente
psicodinâmico, com as várias elaborações sociocuIturais que ele comporta. As
insatisfações intrínsecas ao “complexo”, que são externamente materiais e
sociais, possuem um reverso psicológico e moral, que metamorfoseia a
necessidade de ser uma pessoa em uma incompatibilidade diante da ordem racial
existente. Se essa incompatibilidade pode ser absorvida onde o padrão de relação
racial assimétrica se impõe por anuência tácita ou malícia, o mesmo não pode
suceder no nível de comportamentos raciais racionais com relação a fins e a
valores. Aí, a elaboração final é ou uma “má consciência” diante de uma ordem
racial irremediavelmente “injusta” diante do negro, eximindo-o de
compromissos morais sólidos, ou a “denúncia” pura e simples, de contraposição
e radicalismo sistemático. Ora, os dois tipos de negro que estão nos limites de
tais orientações de comportamento e de ajustamento inter-racial são também os
negros que podem manipular suas insatisfações e seu radicalismo na arena
histórica. Por pequeno que seja o espaço social que tenham para preencher tais
papéis, eles sentem a disposição de fazê-lo e são coagidos “a entrar na torrente”,
por motivos psicossociais egoísticos ou por alvos coletivos mais ou menos
altruístas.
A questão é que a sociedade brasileira não se abre para quaisquer dessas
elaborações do inconformismo, do larvar ao radicalismo sistemático. Ele tem de
ser sufocado dentro do meio negro (ou, o que é pior, como “drama de
consciência”, pela própria personalidade que o secrete). A sociedade permanece
fechada a essas impulsões de humanidade do negro, pois o uso aberto da tensão
e do conflito continua a ser um privilégio dos estratos sociais dominantes da
“raça dominante”. Apesar de todas as transformações ocorridas, nessa esfera há
pouca diferença entre o presente, o passado recente e o passado remoto; a
escravidão desapareceu, porém subsiste um mandonismo estreito, que converte a
dominação de classe em equivalente da dominação estamental e de casta. Para
que as coisas fossem diferentes, teria sido necessário que a revolução burguesa
fosse, ao mesmo tempo, aberta às pressões populares, democrática e
nacionalista;[39] e, de outro lado, que o próprio negro tivesse criado, depois da
Abolição e, principalmente, da “Revolução de 30”, legitimidade para o protesto
racial (tido pelas camadas conservadoras como o pior tipo de protesto, depois do
conflito operário) — o que, sabidamente, não ocorreu, pois a população negra
nunca reuniu condições para levar a democratização da ordem mais longe que as
classes operárias e o radicalismo burguês.[40] Tudo isso significa que o
inconformismo negro pode ser uma realidade psicológica, cultural e moral, mas
não pode tornar-se uma força social atuante e uma realidade política. Em uma
sociedade de classes que preserva um padrão de elitismo típico da dominação
estamental, o conflito potencial de raça não tem como eclodir na cena histórica.
No passado, ele era expurgado da ordem legal e fortemente reprimido, como
uma “ameaça às instituições e à civilização”. No presente, ele é deliberadamente
confundido com o conflito de classe ou com a “subversão comunista da ordem”
— e exposto à solução policial. Só o branco poderia manipular esse tipo de
tensão, e o branco no caso vem a ser o branco das elites das classes dominantes,
pouco interessado em levar a democratização das estruturas econômicas, sociais
e políticas aos “porões da sociedade”. Assim como ele monopoliza as decisões
sobre as mudanças que devem ser implementadas, ele também seleciona e
monopoliza as tensões que devem ser incrementadas.[41] Essas tensões não
passam pela revolução democrática da ordem, mas por sua consolidação e
perpetuação como ela está, uma ordem social que é de classes para as elites e
para as classes dominantes, porém que é semiestamental ou estamental para as
classes operárias e o Povo em geral. Em consequência, poderíamos concluir que,
se a questão racial não é literalmente uma questão de polícia, isso se dá porque o
próprio negro não pode fomentar, material e politicamente, uma séria questão
racial. A estrutura da sociedade está preparada para reprimir qualquer pressão
racial que se volte para a democratização da ordem social (e, implicitamente, da
ordem racial que ela absorve e retrata): a Abolição não aumentou em nada as
probabilidades de participação econômica, social, cultural e política do
“elemento negro”. Ela foi uma revolução do branco para o branco e, nesses
limites, manteve intacto o padrão assimétrico de relação racial e as
desigualdades raciais, institucionalizadas ou não.[42] A única tentativa do negro
para alterar essa situação histórica, através dos movimentos de protesto das
décadas de 1930 e de 1940, malograram. O que quer dizer que a “ordem
democrática” existente não é democrática para todos. E ela não é nada
democrática para o negro em geral, perdido no seio das populações mais ou
menos pobres e sistematicamente marginalizadas das estruturas de poder.
Os processos de “formação do Brasil moderno” sofreram uma profunda
deflexão nos últimos trinta anos. O desenvolvimento foi ampla e profundamente
condicionado e dirigido do exterior, embora seu patamar interno fossem as
potencialidades de uma economia capitalista periférica dotada de um vasto
mercado interno e rica de matérias-primas ou produtos exportáveis. Esses dois
polos dinâmicos condicionaram uma forma de revolução capitalista especial, que
conjuga três elos de decisão: as classes burguesas “nacionais”, a comunidade
“internacional” de negócios e o Estado brasileiro. Essa modalidade de revolução
capitalista forçou as elites das classes burguesas, privadamente e através do
Estado, a adotar formas de dominação econômica, sociocultural e política
especificamente autocráticas e ultraconservadoras. Em consequência, o
movimento que em certos países da Europa e nos Estados Unidos gerou uma
ordem burguesa aberta e democrática, no Brasil produziu uma ordem burguesa
fechada e autocrática. O despotismo inerente à dominação burguesa se adaptou à
forma possível de acumulação capitalista, gerando um elitismo dotado de todos
os recursos da modernização, inclusive de forte concentração do poder político
estatal. Com isso, os antigos e novos privilégios puderam ser defendidos ao
longo de várias fases sucessivas de transformação urbana e de transição
industrial. As classes dominantes lograram, assim, bloquear a pressão popular e
manter, ao lado da concentração do poder político, uma concentração paralela da
riqueza e do prestígio social. Embora a massa de operários aumentasse em
número, de modo constante, e as migrações internas incrementassem sem cessar
as populações urbanas, a riqueza e o poder ficaram concentrados no tope (mais
ao nível dos 1%, 5% e 10% de maior renda e de melhores probabilidades de
participação cultural, ainda que a faixa dos 30% de maior renda tenha recebido,
em grosso, compensações relativamente satisfatórias).
Esbatido sobre esse contexto histórico, o populismo se diluiu,[43] pois
nenhuma modalidade de demagogia burguesa e de radicalismo elitista poderia
servir de enlace entre as classes privilegiadas e as massas populares. Para se
autodefender e se autoprivilegiar as classes burguesas precisaram amparar-se em
seus setores armados e tecnocráticos, utilizando o aparato estatal para comprimir
a ordem legal e restringir as garantias civis. Em tal clima, mesmo a liberdade das
elites e das classes dominantes sofreu uma drástica compressão. As massas
populares, nas quais está inserida a maioria da população negra e mestiça,
ficaram reduzidas ao silêncio e à inatividade. Foram neutralizadas politicamente,
embora possam participar culturalmente do desenvolvimento socioeconômico e
ritualmente do “processo político”. O sentido desse duplo movimento
contrastante precisa ser retido com cuidadosa atenção. Ao ápice da revolução
capitalista corresponde uma marginalização maciça do grosso da população,
convertida em uma maioria silenciosa dócil e intimidada. A chamada capacidade
de negociação ou de barganha das massas populares e das classes trabalhadoras
foi reduzida a zero. O precário intercâmbio com a plebe, consentido sob a
demagogia populista, desapareceu e com ele o reduzido espaço político que
articulava o “diálogo” das massas com o despotismo conservador das classes
dominantes.[44]
A elevação da “consciência crítica” do negro desemboca, portanto, em um
vazio histórico. Ao contrário do que se esperava, os movimentos de protesto das
décadas de 1930 e de 1940 — silenciados sob e pelo Estado Novo —, em vez de
abrirem, encerram um ciclo histórico. Eles constituem a última manifestação da
luta contra os vestígios do “antigo regime”, tão nocivos para o negro e para as
populações destituídas em geral. No novo contexto histórico (pelo menos
enquanto durar o regime de despotismo instaurado pela autocracia burguesa),
movimentos dessa espécie são impossíveis. Os processos em curso favorecem o
tipo de personalidade do “novo negro”, mas as condições imperantes não são de
molde a favorecer igualmente a prosperidade paralela de uma “burguesia negra”
e de um “capitalismo negro”, como aconteceu nos Estados Unidos e na África do
Sul.[45] A “tolerância sob forte desigualdade racial” restringe severamente o
campo de oportunidades e regula o movimento de ascensão econômica e social
pelo modelo de infiltração, como se fosse um conta-gotas. O próprio negro acaba
rompendo os obstáculos identificando-se com os interesses e os valores dos
estratos sociais dominantes e de suas elites, aspirando a um elitismo precoce e
deformador, que o separa irremediavelmente da massa negra e de seus
problemas. Por conseguinte, o único inconformismo que quebra as barreiras
históricas se transforma, no terrível processo de ascensão econômica, social e
cultural do negro, em um elemento de manipulação do negro pelo branco e pela
ordem estabelecida. Apesar de tudo que tem de importante esse processo, em
termos da relação do negro com a sociedade brasileira e sua transformação, ele
resulta em uma reserva de tensões para o futuro mais ou menos remoto. De
imediato, o “novo negro” está enredado com o seu êxito pessoal, familiar e
social, dentro do mundo fechado e elitista em que pode viver. Ele não se dispõe a
dinamizar as suas potencialidades de negação da ordem em uma.perspectiva
mais ampla e mais drástica, pois, se fizesse isso, correria o risco de sair do
circuito e não chegar ao tope permitido. O inconformismo aberto e radical, por
sua vez, está banido “institucionalmente” da ordem legal. O “negro racista” vê-
se, portanto, condenado à impotência. Como o “negro tradicional” e o “negro
trânsfuga”, mas por outras razões, é compelido a “engolir sua vergonha”. A
frustração racial não dispõe de canais sociais, institucionalizados ou
espontâneos, para achar a luz do dia. Ela é comprimida para dentro das pessoas e
armazenada no meio negro. Se isso será ou não útil no futuro, é uma questão
para as indagações históricas. Quanto ao presente, essa frustração racial
comprimida e armazenada não se converte nem em forças psicodinâmicas nem
em forças sociodinâmicas produtivas. Elas se destroem negativamente — ou
destroem a personalidade do negro e o equilíbrio do meio negro.
Esse fato é capital. Os que se preocupam com a mudança social, encarada
abstratamente, e com a revolução burguesa, vista nas conexões centrais para a
evolução do capitalismo, têm naturalmente algo a dizer. No entanto, até agora
nem a aceleração da mudança social nem o auge da revolução burguesa, nas
condições predominantes no Brasil, ajudaram a quebrar os padrões preexistentes
de desigualdade racial ou impediram que eles se superpusessem às estruturas da
sociedade de classes. Pode ser que os desdobramentos dessa evolução
contenham outras transformações e que a expansão do capitalismo traga consigo
novas modalidades de solapamento e desagregação da desigualdade racial. Por
enquanto, o que aconteceu nos últimos 30 anos evidencia o oposto: a
incorporação de padrões e estruturas arcaicos, em uma sociedade de classes em
formação e expansão. E, em contraposição, a impotência do negro em fazer valer
os seus tipos de inconformismo, por falta de base material, psicológica e moral
para suplantar “o complexo” e convertê-lo em uma fonte de emulação na luta
contra a desigualdade racial (que é, implicitamente e inevitavelmente, uma luta
contra o branco e contra a ordem existente).
Voltamos, de novo e por outra via, ao argumento central. A simples elevação
da “consciência crítica” do negro não leva a nada. Ou, antes, ela leva a uma nova
forma de frustração, muito mais corrosiva e perniciosa que as anteriores. Pois
isso tudo convence o negro de que o “esclarecimento” e uma “nova
mentalidade” só são úteis ao percurso pessoal e individual do negro que “quer
subir”. O que constitui um forte reforço às avaliações que conduziram à
convicção de que os movimentos de protesto “dão azar”, vinculando o “novo
negro” com uma espécie de oportunismo visceral e sistemático. Ora, tal
ajustamento afasta o negro do caminho certo: para alterar a atual combinação de
“raça” e “classe” seria preciso que o negro utilizasse politicamente essa
“consciência crítica”, voltando-se contra os resíduos do passado, expressos na
tolerância ritual, no padrão assimétrico de relação racial e na ideologia racial
correspondente; e, principalmente, tentando construir as bases de novas formas
reais de igualdade progressiva entre as “raças” (ou seja, que a “raça” não
interfira negativamente nos mecanismos de “classe” e vice-versa). Estas
necessidades psicossociais e histórico-sociais, que não são atendidas e não
encontram canais de encaminhamento e concretização, exigem que o
inconformismo do negro adquira outro caráter, em particular que possa ser
absorvido pela rede de instituições e de estruturas sociais da sociedade de
classes. Existem limitadas perspectivas de integração efetiva do negro a essa
sociedade fora e acima de tais condições, pois o inconformismo do negro precisa
encontrar oportunidades de elaboração psicológica, social, cultural e política, já
que é através dele que se poderá constituir e perpetuar-se um novo padrão de
relação racial igualitária e de ordenamento de “raça” e “classe” em bases
democráticas. Isso provocaria uma transformação sociodinâmica do
inconformismo do negro; ao converter-se numa força social construtiva e
incorporada à rede de instituições e de estruturas sociais, de início e durante um
período de tempo de duração imprevisível tal força social teria de operar
mudanças profundas nos fundamentos raciais da sociedade brasileira, atuando
como um fator histórico tanto de “revolução dentro da ordem”, quanto de
“revolução contra a ordem”. Pois, mesmo sob a hipótese de continuidade do
capitalismo, semelhante liberação sociodinâmica do inconformismo negro
levaria a descolonização até onde ela deveria ter chegado, quando da supressão
do trabalho escravo e da implantação do trabalho livre.
Pode-se admitir que tais reflexões envolvem conjecturas otimistas: nem
sempre as sociedades realizam as evoluções que deveriam completar seu ciclo
histórico. E no que diz respeito à sociedade de classes, sabe-se perfeitamente que
o capitalismo libera certas forças revolucionárias, mas represa e reprime outras.
No caso, como a massa negra interessa mais como “massa trabalhadora”, é
pouco provável (para não dizer-se que é de todo improvável) que a sociedade de
classes consiga, no Brasil, sob um capitalismo dependente e subdesenvolvido,
realizar uma façanha que o capitalismo não logrou nem mesmo nos Estados
Unidos. No entanto, conjecturas dessa natureza são muito úteis à análise e à
interpretação sociológicas. Elas possuem uma função heurística: põe-nos diante
da realidade à luz de um experimentum crucis ideal e simulado. De um lado, tais
elaborações interpretativas sugerem que a evolução mais plausível manterá o
paralelismo de “raça” e “classe”, como sucedeu na sociedade estamental e de
castas sob a Colônia e o Império. Mantido semelhante paralelismo, qualquer
padrão de relação racial igualitária e todo ordenamento de “raça” e “classe” em
bases democráticas serão simplesmente inviáveis. Uma maior massa de negros
se integrará nas várias classes existentes. Mas isso não romperá com as
contradições raciais herdadas do passado e incorporadas ao regime de classes.
Permitirá, sob a vigência da tolerância racial, que o mundo do negro se organize
em moldes simétricos ao dos brancos e, eventualmente, maior comunicação
entre grupos raciais diferentes do mesmo nível social. De outro lado, as mesmas
conjecturas também deixam evidente que o “novo negro” constitui o rebento
viçoso do florescimento racial do capitalismo dependente e subdesenvolvido. É
aí que se está concentrando o real “aproveitamento das novas oportunidades”.
Uma minoria negra se destaca da massa negra trabalhadora e tende a alocar-se
em várias posições de classe no espaço social da ordem existente. Como se trata
de um processo mecânico, que agrega novos grupos às estruturas de classes, sem
alterar em nada o paralelismo de “raça” e “classe” (ao revés, está adaptando o
paralelismo às condições de organização, funcionamento e evolução do regime
de classes sob o capitalismo), o que se configura como mais provável é o
aprofundamento da formação de elites negras ao longo das linhas de classes (no
nível das classes médias, a classe média de cor já começa a deixar de ser uma
“falsa classe média”, como diagnosticara Bastide) e a consolidação de um
elitismo negro que produzirá uma maior tolerância do “negro de prol”, isto é, o
“novo negro” diante do mencionado paralelismo de “raça” e “classe”. Pelo
menos enquanto as elites negras em formação e diferenciação não forem
atingidas pela frustração dos outros setores da população negra e por seus tipos
de inconformismo, elas tenderão a se acomodar à situação histórica e a evitar a
adesão às pressões raciais mais radicais, “dentro da ordem” ou “contra a ordem”.
Não obstante, no conjunto a alteração do panorama histórico será, ainda
assim, considerável. Com as tendências de elevação dos níveis de vida e de
participação cultural, o novo paralelismo da “raça” e “classe” significa uma
revolução do meio negro. O “negro pobre” continuará largado à sua sina, isolado
da atuação das elites negras e ignorado pelo resto da sociedade, como tem
acontecido até hoje. Contudo, contará de fato com a eclosão de oportunidades
que a industrialização maciça e a explosão metropolitana estão abrindo, o que
nos permite estender as conjecturas expostas acima: essa massa pobre é que fará,
a largo prazo, o papel de pião na transformação dos fundamentos raciais da
sociedade brasileira. Dificilmente ela contará com condições econômicas e
culturais tão favoráveis que levem ao anestesiamento e à ignorância dos
problemas políticos mais profundos do negro. De outro lado, os novos níveis de
expectativas e o ressentimento que resultará da ascensão parcial de alguns
setores da própria população negra (além do mais, pouco sensíveis ao dilema
racial do negro brasileiro, por causa de seu elitismo) forçarão a reelaboração das
frustrações reprimidas, associadas aos vários tipos de inconformismo descritos.
Mesmo que a violência possa ser e venha a ser evitada, nada impedirá uma
fermentação ignorada até hoje das tensões raciais. E quanto mais forte for a
repressão conservadora, da sociedade inclusiva e das elites negras, maior será a
contradição entre “raça” e “classe” e menores serão as probabilidades de
eliminação do referido paralelismo dentro da ordem.
AS TRANSFORMAÇÕES VISÍVEIS

O QUADRO GLOBAL descrito mostra que, mesmo agora, “ainda não chegou a vez
do negro” — pois ainda não chegou a vez do Povo. A situação histórica, porém,
não é tão adversa à população negra, como o foi durante o primeiro ciclo de
prosperidade econômica da cidade, dos fins do século XIX à crise de 1929. Então
a população negra vivia dentro da cidade mas sem pertencer a ela; tratava-se de
uma condição extrema de isolamento cultural e de marginalização
socioeconômica. As oportunidades iam para os brancos, especialmente das
famílias tradicionais ou imigrantes. O progresso estuante não existia para o meio
negro, mergulhado na mais extrema desorganização social, pauperismo e
desalento,[46] uma fase dramática e amarga, que suscitou a imagem do
“emparedamento do negro”. Nos últimos 25 anos a industrialização maciça e a
convulsão metropolitana se alimentaram de “braços nacionais”: as migrações
internas desembocaram na cidade e delas saíram os contingentes de
trabalhadores menos qualificados ou desqualificados. Os setores pobres e
dependentes da cidade participam por aí do crescimento econômico. O negro de
origem local ou estadual ou que vem nessas correntes humanas encontra com
maior facilidade uma avenida para a classificação social através do trabalho, por
humilde e mal remunerado que ele seja. O grande obstáculo, que vinha a ser a
falta de trabalho ou a instabilidade do trabalho, tende a se neutralizar. Com o
“emprego”, o negro pode conquistar mais facilmente a base material para a
participação institucional, de que estava quase completamente excluído, e pode
montar novos projetos de vida. Doutro lado, as migrações internas carreiam para
a cidade fortes contingentes de mestiços, na maioria “mulatos claros” ou
“mulatos escuros”, o que aumenta o setor de origem remota afro-brasileira e, ao
mesmo tempo, estimula a busca de novos estereótipos. O “baiano” tende a
substituir o “negro” na estereotipação negativa: uma variação semântica
importante, que diminui uma visibilidade incômoda e ajuda a quebrar certas
resistências teimosas. Além disso, as favelas, os cortiços, a pobreza ou a
mendicância, a prostituição e a vagabundagem, os trabalhos braçais e “serviços
por conta própria” humildes continuam a implicar uma visibilidade desfavorável.
Contudo, a convulsão urbana pulverizou o meio negro, disseminando-o por
várias regiões e concentrando-o na periferia da cidade. Em consequência, essa
visibilidade se dilui e é mais acessível ao branco pobre. De qualquer modo, ela é
fortemente compensada pelos efeitos visíveis da classificação ocupacional, da
mobilidade profissional e, por vezes, da ascensão social do negro. Ela já não se
associa automaticamente, como no passado recente, à estigmatização negativa.
Os estereótipos raciais não desapareceram nem deixaram de produzir efeitos
devastadores sobre as aspirações e as ambições do negro. Mas, eles já não
podem servir tão facilmente de fundamento a certas rejeições, especialmente na
esfera do trabalho: certas ocupações atrairiam poucos pretendentes se o antigo
crivo de seleção permanecesse intocável, o que acarretaria prejuízos econômicos
para o próprio branco. Se ainda prevalece a condição de marginal,[47] os jovens
sem trabalho e sem perspectiva, a mãe solteira, o menor abandonado, a
desorganização familiar e a miséria, o quadro global é menos tenebroso e
apresenta aspectos compensadores, onde o trabalho, o emprego, a classificação
ocupacional e a mobilidade profissional incorporaram o negro à classe operária
ou a alguns dos setores das classes médias. O passado não ficou totalmente para
trás. Ele revive em vários pontos da cidade, em ilhas de desespero social,
encravadas nas favelas ou no novo tipo de cortiço da periferia. O “negro bem-
sucedido”, por sua vez, aparece com maior frequência na vida social e no
horizonte cultural do branco. Seja guiando o seu automóvel, morando em casa
própria de bairros respeitáveis ou ostentando sua prosperidade pelo “traje
impecável” e o “alto estalão de vida” (uma tradição que não desapareceu no
meio negro e que revela a forte necessidade da compensação de status).
Portanto, temos agora duas visibilidades: a “má”, que suscita no branco
lembranças e estereótipos negativos que deveriam desaparecer, e a “boa”, que
obriga o branco a rever suas atitudes e convence o negro de que “sua sorte está
mudando”. Embora ainda seja cedo demais para tirar conclusões a respeito dessa
dupla visibilidade social, é evidente que ela está concorrendo para tirar o negro
do limbo, do opróbrio dos estereótipos infamantes dos brancos ou do próprio
“recalque” e da condição deletéria de “bode expiatório”. Graças à proletarização
e à ascensão a estratos de classe média (em alguns casos, também de classe alta;
mas são pouquíssimos), constitui-se uma base material estável de participação
— e não de exclusão sistemática — e de uma nova relação do negro com a
sociedade capitalista. Os pontos de concentração das oportunidades econômicas,
educacionais, intelectuais e políticas ainda são fracos ou débeis demais para
quebrar as linhas tradicionais de desigualdade racial ou para “fazer o branco
engolir o seu orgulho”. Todavia, o negro deixou de ser o espectador à margem da
vida e da história.
Se a “boa visibilidade” ainda não se impõe, a “má visibilidade” está perdendo
o caráter autodesmoralizador que possuiu durante tanto tempo e começa a
neutralizar-se como foco de “desmoralização do negro” perante o branco. De
fato, o negro com seus problemas não desaparece na “sociedade de massas”.
Essa seria uma simplificação grosseira. Contudo esta contém vários alçapões e
pode esconder dentro deles, ou pelo menos dissimular através deles, muitos
aspectos desoladores da “miséria humana” do negro, antes tão chocantemente
visíveis numa escala universal. Onde existem favelas — médias, pequenas ou
grandes — nas orlas de bairros ricos ou no seio de bairros pobres, e onde
existem cortiços, a visibilidade negativa aumenta. Mas, nem sempre a forte
participação de negros e mulatos na população dessas favelas e cortiços aparece
em associação com a miséria, o desemprego sistemático, a desorganização
familiar etc. O novo tipo de cortiço (especialmente nos bairros da periferia) e
várias favelas contêm, com frequência, uma vida interna autopoliciada e
conspícua, na qual mesmo a extrema pobreza requer um mínimo de participação
institucional. O que significa que há pobreza “com alguma esperança”, pois os
padrões de organização doméstica impõem certa soma de obrigações que
favorecem a educação dos filhos e pressupõem alguma solidariedade social. O
afluxo de migrantes de origem rural parece ser o principal fator dessa alteração,
que reduz ou elimina a “irresponsabilidade do negro”; e ela é fortemente
reforçada pelas oportunidades de trabalho regular e de estabilidade ocupacional.
De outro lado, a pobreza também se vincula aos resíduos do tradicionalismo, que
não desapareceram nesse primeiro arranque da explosão metropolitana.
Alimentação, música, padrões de entreajuda (familiar e vicinal) e formas de
recreação dão, aqui e ali, um “colorido nordestino” e exótico mas “altamente
respeitável” — ao estilo emergente de “vida de pobre” na cidade. O negro que
não está preso aos resíduos da anomia que veio do passado se engolfou nesse
estilo de vida, amparando-se nele para lograr um modesto ponto de partida. No
conjunto, é deveras importante a tendência básica, que dissocia os velhos
estereótipos e estigmas raciais da condição social do negro. A escravidão e a
Abolição já estão bastante longe — e o mesmo sucede com o doloroso período
que vai até 1930, de anomia social sistemática — para reforçar antigas
compulsões dos brancos ou para gerar outras novas, encerrando o negro no
círculo de ferro de uma condenação irremediável e irremissível. Nesse plano, a
pulverização da miséria e a disseminação da pobreza, no imenso espaço
geográfico da metrópole, fizeram com que a “sociedade de massas” oferecesse,
ao mesmo tempo, múltiplos refúgios e vários pontos de partida à sua dispersa
população negra. Se o passado não está extinto, as cicatrizes não dominam nem
governam mais a vida do negro; e tampouco o forçam a procurar o isolamento
autoprotetivo, pelo qual se destruía, e a converter a desorganização pessoal,
familiar e social em um multiplicador incontrolável de sua “desgraça coletiva”.
Tudo isso indica que seria aconselhável a realização de uma nova pesquisa
sobre a matéria. Conhece-se muito mal o que está ocorrendo nas várias áreas da
Grande São Paulo quanto às relações de negros e brancos e à transformação dos
velhos padrões de acomodação e integração raciais. Percebe-se que a
proletarização do negro e a estabilidade ocupacional (ou, pelo menos, as
oportunidades de trabalho) alteraram por completo a base material de grande
parte da população negra. De outro lado, esta tende a defrontar-se com diversas
situações de classe de modo mais ou menos definido e estável. Enquanto antes a
classificação era precária e minoritária, hoje pelo menos a proletarização alcança
o grosso dessa população enquanto alguns setores penetram certos estratos da
pequena burguesia e da alta burguesia urbanas. A expressão ecológica dessas
tendências aparece na agregação de segmentos da população negra em torno de
bairros mais homogêneos, quanto aos meios de subsistência e aos níveis de vida,
e na ocupação predominante da periferia. Essa forma de apinhamento parece ter
favorecido certas linhas de concentração demográfica e ecológica, com pessoas e
famílias mais ou menos ligadas entre si procurando as mesmas áreas e nelas
tentando manter tipos de solidariedade tradicional preexistentes. Também se
percebe que as migrações internas enriqueceram a população negra da cidade,
trazendo para cá negros mais ou menos aptos a competir profissionalmente com
os brancos do mesmo nível social, tanto na busca de colocações, quanto na luta
pelo “trabalho melhor” e pelos “empregos que dão dinheiro”. Até agora, a
educação escolarizada favoreceu muito pouco o negro de origem local. Também
aí o adventício abre uma clareira ao pretender para o filho “uma educação
melhor” e expondo seus vizinhos a novas aspirações e aos valores sociais
correspondentes. O que significa que novos padrões de competição, quanto à
ocupação, educação, moradia, nível de vida etc., estão se constituindo ou
consolidando e que eles desembocam na ideia de que a escola é essencial “para o
futuro dos filhos”. E de fato, o negro torna-se mais visível como estudante, do
ensino primário ao ensino superior, e, agora, sem a intervenção do mecenas
branco.
Um processo que já estudamos, relacionado com a técnica de ascensão social,
agora alcança um contingente bem maior da população negra. A aceitação da
infiltração como forma de competição dissimulada e de mobilidade social
vertical continua dominante. Ao que parece, com a dissolução do protesto negro,
desapareceu a esperança de uma ascensão coletiva do negro. As mesmas atitudes
que notamos no passado reaparecem no novo contexto histórico. O “negro que
quer subir” repudia abertamente o protesto racial e busca dentro da ordem, numa
linha egoística e individualista (embora com a cooperação eventual do branco e a
solidariedade possível — mas nem sempre atuante e eficiente da própria
família), a “solução de seus problemas”. Isso não quer dizer que ele seja
“neutro” com referência ao preconceito e à discriminação. Como se lança à
competição inter-racial, ela acumula uma experiência esclarecedora. Ele condena
apenas uma demonstração de “racismo” que poderia prejudicar sua ascensão;
pois está convencido de que o caminho para “combater o preconceito” é gradual
e indireto (o que representa uma elaboração original de uma contraideologia
racial conservadora, ainda não estudada sociologicamente). Por isso, repele o
protesto coletivo e, do mesmo modo, as demonstrações de “inferioridade”, que
associa ao desalento, ao desleixo, à falta de educação e de ordem na família, às
várias manifestações de anomia no meio negro etc., das quais se torna um crítico
severo. Como contraponto do branco conservador, ele valoriza a instrução, a
competência profissional, o caráter, o trabalho, a acumulação de riqueza e a
família, embora exagerando os vários traços que poderiam caracterizar uma
concepção elitista da vida e do mundo. Isso põe o novo negro a cavaleiro de duas
tendências. Primeiro, ele absorve um elitismo que é imitado do branco, mas
ainda predominantemente dos brancos dos antigos círculos dominantes das
famílias tradicionais (portanto, o que ele valoriza não é o elitismo do nouveau
riche, porém o que se poderia chamar de “elitismo aristocrático”). Segundo;
como o imigrante, ele aceita qualquer ocupação, mas como “estágio inicial” e
transitório, algo inevitável ou necessário embora indesejável (o que o leva a
repelir a condição operária e a proletarização como estilo de vida, de alguma
forma capazes de aprofundar a degradação do negro). Reproduz, com um atraso
considerável, as utopias dos antigos imigrantes, sem contar com os mesmos
recursos materiais e institucionais para combinar trabalho, solidariedade
doméstica, mobilidade ocupacional, êxito econômico e ascensão social. Essa
combinação, aliás, hoje não é tão fácil quanto o foi no passado, quando uma
posição estratégica no sistema econômico era suficiente para garantir as
melhores previsões. As oportunidades econômicas reais são escassas e não
podem ser aproveitadas com os recursos de que dispunham os imigrantes
pioneiros, muitas vezes melhores do que aqueles de que dispõe o “novo negro”
na atualidade. Ainda assim, a motivação é decisiva: ela mantém tendências
complexas de competição com o branco, força a elevação da participação
institucional e fortalece propensões igualitárias sem as quais o negro se
condenaria à exclusão e à marginalização.
A insegurança ainda se faz sentir como um fator adverso. Ela ainda estimula a
busca de uma autoproteção destrutiva, através do isolamento social (na família e
no nível social dentro do meio negro). Ela não opera tão negativamente como no
passado, pois a família tende a revelar maior estabilidade e a estratificação em
termos de nível social abrange maiores números (o que favorece os dinamismos
sociais e recreativos dos clubes, tornando mais fácil a consecução de um “nível
conspícuo” mas protegido de vida). No entanto, o grosso dessas compensações
só é acessível aos setores de classe média ou alta da população negra. E, mesmo
nessas classes, isso reduz o universo social do negro. De um lado, ele gravita
dentro do “mundo do negro”, construído como uma réplica imaginária do
“mundo dos brancos”. De outro, ele confere alta nocividade ao processo de
acefalização implícito. As elites negras são seccionadas e dissociadas da massa
negra. Toda solidariedade racial torna-se, assim, impossível e tem de ser
substituída por uma espécie de “solidariedade estamental” (dos negros que
pertencem à mesma clique de um mesmo estrato elitista). Por aí, o passado se
reproduz ampla e destrutivamente. Mesmo os líderes que se projetam mais acima
de seu próprio nível social não rompem com as limitações resultantes. Ao
contrário, eles instituem no meio negro o tipo de relação clássica que,
antigamente, estabelecia liames entre o notável branco e seus clientes. A
comunicação das elites com a massa ganha, assim, um significado pouco criador,
porque a massa negra é sempre um “elemento de manobra” ou um “meio para
certos fins”, que nunca preveem ideais de “redenção da raça negra” ou de
protesto coletivo. Esse clientelismo negro, em plena emergência e irradiação,
precisaria ser estudado. Ele cria certas áreas de contato, engendra algumas
formas de participação cultural novas e põe as elites negras na mesma posição
das antigas elites dos imigrantes, preocupadas com várias modalidades de
assistência social aos conterrâneos. Porém, isso não é muita coisa, se se leva em
conta a precariedade da situação da população negra e as terríveis exigências da
desigualdade racial. Na verdade, as obras assistenciais, feitas até agora, têm
servido mais para valorizar socialmente as “classes médias e altas de cor”, que
para suavizar os problemas de extrema carência da massa negra. Essas elites se
lançam, naturalmente, em um nível de competição sofisticada por consideração
social, como fizeram, aliás, no passado, muitos imigrantes, que sabiam o valor
que as famílias tradicionais atribuíam a tais demonstrações de solidariedade e de
prestígio. O seu único resultado, que beneficia o negro em geral, diz respeito à
“boa visibilidade”. Por aí se evidencia, através do jornal, da televisão e da rádio,
que o negro dispõe de uma nova situação econômica, social e cultural, a ponto
de cuidar da “gente desfavorecida” de sua comunidade.
Esse efeito não é de menosprezar-se. O “novo negro” tenta, em vez de cobrar
uma igualdade racial coletiva que a sociedade brasileira não lhe daria,
revolucionar indiretamente o horizonte cultural do branco. No entanto, não usa a
pressão econômica, cultural ou política nem a coerção psicológica, como fizeram
os negros norte-americanos na década de 1930. Emprega meios sutis e por vezes
maliciosos, como a ostentação do nível de vida “alto” e “aristocrático”, da
“competência inexcedível”, do “caráter irrepreensível”, da “vida organizada e
responsável” etc. Como não tem liberdade nem base material para usar o
conflito, precisa contentar-se com a “reeducação do branco” na avaliação moral
do negro. Ao fazer isso, consegue algum êxito pelo que se vê, já que pressiona
habilmente no sentido de dissociar os “fracassos dos pretos” de razões
estereotipadas e da condenação estigmatizadora. Procede como se exigisse a
igualdade no plano puramente pessoal e como se quisesse que o branco se
convencesse que há negros e negros, como entre os brancos há brancos e
brancos, não havendo portanto sentido em avaliar o negro através de uma
imagem falsa, estereotipada e irreal. Essa tática se ajusta como uma luva ao
preconceito dissimulado e à discriminação assistemática: não só apanha o branco
desarmado; explora o terreno sempre virgem dos tateios iniciais, a confusão
moral do branco (tão grande quanto a do negro, pois a armadilha funciona dos
dois lados) e a disposição frequente à abertura para “o negro de alma branca” (o
que converte a exceção que confirma a regra numa vantagem adicional para
qualquer “negro calculista”). São meandros tortuosos e é indiscutível que eles
constituem uma forma refinada de tortura mental, a qual os negros em ascensão
deveriam recusar e combater. Todavia, eles não criaram esse jogo e, muito
menos, as suas regras. Armaram uma carapaça adaptativa, pela qual, em vez de
se colocarem no próprio lugar, forçam o branco a revisões que são cruéis para
os dois lados. Na maioria das vezes obtêm o que desejam ou esperam. Se é mais
ou menos difícil localizar a casa de uma “família negra bem colocada”, os
vizinhos sabem muito bem se moram perto de um “negro rico” e “bem-educado”
(e podem presumir se ele pertence à classe média ou alta). É mais fácil ainda
estabelecer avaliações corretas diante de uma família negra “bem-vestida”, que
viaja em automóvel próprio ou ostenta de uma ou de outra maneira o seu status.
O quadro subjetivo que se esboça não é mais o tradicional — “o negro precisa
do branco para vencer”; mas, o alternativo: “esse negro precisa ser muito
importante para estar nesse lugar”. Com ambiguidade e relutância, o branco
repete uma aprendizagem histórica, que já teve de enfrentar diante do português,
do italiano, do sírio e libanês, do espanhol etc. Os estereótipos e os estigmas
esvaziam-se na medida em que as exceções que confirmam a regra se tornam
muito numerosas. Ou eles precisam ser refeitos e redefinidos ou perdem sua
eficácia. No caso do negro, ao que parece, a situação atual ainda não alimenta
um limite histórico dessa natureza. Mas, qualquer que seja o desnível entre os
“mitos” alimentados pelo “novo negro” e as brechas reais na fortaleza do mundo
dos brancos, é patente um avanço considerável. Antes, “o negro de alma branca”
servia de base para manipulações simplistas, graças às quais o êxito do negro se
tornava irrelevante para as avaliações concretas (ficando sempre de pé que a
mestiçagem ou a proteção de algum branco explicava, no fundo, “o milagre”). O
mecanismo da exceção que confirma a regra criava um ponto morto e uma
cesura intransponível na reavaliação social do negro. Hoje, o mecanismo
continua a ser empregado. Entretanto, dentro de um contexto diverso: à medida
que cresce o setor de classe média e alta da população negra, surge uma erosão
inevitável do mecanismo, a qual tende a aumentar e a agravar-se com o tempo.
Os avanços descritos não introduzem uma liberação intelectual e moral do
jovem negro. Este se defronta com dramas reais ou falsos, como se evidencia
pela literatura de ficção negra.[48] Os conflitos entre as aspirações igualitárias e
o padrão brasileiro de preconceito e discriminação raciais produzem estragos
devastadores no jovem. Este está no começo da aprendizagem, iniciando-se no
adestramento do que se poderia chamar de cinismo autodefensivo. Aos poucos,
ele se predispõe a aceitar as duas “verdades”, a que afirma e a que nega a
democracia racial. No contexto atual, esses conflitos tornam-se, ao mesmo
tempo, mais agudos e dolorosos, suscitando reações contraditórias de
ambivalência de atitudes e de alienação, pelas quais a evasão ganha o caráter de
uma técnica tosca de autoproteção psicológica e moral. Se em vez do elitismo e
da ascensão por infiltração tivesse prevalecido um novo estilo de protesto racial
coletivo, é provável que o jovem negro tivesse de procurar caminhos de
autorrealização menos tortuosos e ambíguos.[49] As propensões à autopiedade, à
fabulação imaginária e à sublimação de fantasias, ao desalento compensatório ou
ao escapismo teriam de ser substituídas por outras formas de crise da
personalidade, como sucedeu, aliás, no passado, quando os jovens negros
vararam a barreira psicológica do enfrentamento com o branco nas lutas pela
“Segunda Abolição”. Dentro da sociedade de classes, ou contra ela, teria de
iniciar uma busca mais realista de sua autoafirmação, sem o “carrossel de
ilusões” que destrói tão prematuramente o talento jovem no meio negro,
principalmente nas classes médias e altas. A opção por uma das duas “verdades”,
porém, não se dá concretamente, menos por culpa do jovem que da “estrutura da
situação histórica” (na qual se mesclam as pressões da sociedade brasileira e “a
falta de orientação combativa” das famílias negras “bem-sucedidas”). Em
consequência, o jovem negro, que deveria ser o elo mais forte no aparecimento
de um inconformismo militante e na cadeia de uma revolução democrática,
neutraliza-se e converte-se no equivalente humano do boêmio negro das décadas
de 1920 e de 1930, mas sem suas justificativas históricas. Os veteranos dos
movimentos de protesto coletivo criticam esse jovem, que eles não
compreendem, e que pensam ser “alienado” e “envenenado”. Uma condenação
prematura e filha da fraqueza. Se aplicassem a esse jovem as mesmas técnicas de
desmascaramento que aplicaram ao branco, nas décadas de 1930 e de 1940,
descobririam em que sentido eles são também “vítimas” da situação racial
brasileira. De outro lado, não seria melhor que eles próprios fizessem uma
revisão crítica e apontassem os fatores reais da sufocação do talento jovem no
meio negro, a qual segue paralela à desmoralização e ao esvaziamento de todo
radicalismo racial igualitário e libertário? Não seria melhor, em particular, que
tentassem estabelecer uma ponte entre as gerações, para que o protesto racial
coletivo pudesse ser reciclado e voltasse à tona, nas novas condições
econômicas, sociais e culturais do país, como uma garantia de continuidade da
luta do negro para que a sociedade brasileira se torne, de fato, uma sociedade
multirracial democrática?
SEGUNDA PARTE

AMÉRICA LATINA: HOJE


O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos
e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, (Nosso tempo)
CAPÍTULO 3

A DITADURA MILITAR
E OS PAPÉIS POLÍTICOS
DOS INTELECTUAIS NA
AMÉRICA LATINA[50]
NOTA EXPLICATIVA

ESTE ENSAIO FOI EDITADO como publicação avulsa da universidade de Toronto em
1969-1970, junto com outro estudo e sob o título The Latin American in
residence lectures (com prefácio do professor Kurt. L. Levy; e a colaboração, na
preparação do texto em inglês ou na revisão, do querido colega professor
Kenneth N. Walker e dos então estudantes pós-graduados Marion Blute e Craig
McKie). Não cometi a injúria de solicitar autorização para publicá-lo em
português na presente edição.
O sociólogo não está livre de exercer suas funções e seus papéis intelectuais
nas piores condições para si próprio (e, quiçá, para a sociologia). Às vezes, se o
que entra em conta é uma denúncia (expressa ou velada), ele é limitado por sua
profissão ou por suas vinculações acadêmicas dentro do mundo da universidade.
Os que lerem este ensaio não devem deixar de ter isso em mente — não para
desculpar o autor, que conhece e aceita os riscos que deveria correr, mas para
ajudá-lo. Estamos num limite em que a inteligência e a imaginação dos leitores
são essenciais: ela permite saturar os vazios, colorir as omissões e perceber o que
nem sempre é óbvio.
Na ocasião em que foi escrito, entre fim de dezembro de 1969 e início de
janeiro de 1970 (a versão inicial do trabalho foi apresentada como conferência
pública, sob patrocínio oficial, em um dos auditórios da Universidade de Toronto
em 20 de janeiro de 1970), os focos de referência implícitos da discussão eram o
Brasil, a Argentina, a Bolívia e o Peru. A explicitação dos casos que serviam de
base para a análise do novo estilo de golpe de Estado e de militarização do
Estado capitalista era simplesmente inócua. Os ouvintes, professores, estudantes
e intelectuais tinham condições de acompanhar uma formulação altamente
abstrata, sem perder de vista do que se tratava, empiricamente; e, o que é mais
importante, de introduzir as gradações históricas inevitáveis, dadas as diferenças
existentes entre esses países.
A inclusão do Peru não se devia a qualquer animosidade pessoal ou a alguma
ignorância dos aspectos positivos que a militarização do poder estatal tenderia a
assumir naquele país.[51] Embora o autor nunca se tenha entusiasmado com a
ideologia da “revolução peruana”, ambígua no seu aparente repúdio
concomitante do capitalismo e do comunismo, é evidente que, no Peru, o novo
modelo de ditadura militar tentou enfrentar e resolver problemas capitais, que
vão da reforma agrária à proteção da Nação contra os interesses
ultraconservadores internos e contra os interesses imperialistas externos,
articulados na prática econômica e política. O caso peruano se incluiu no campo
de observação e de exposição por motivos formais. A impregnação tecnocrática-
militar do Estado e o funcionamento do governo militarizado são altamente
similares em todos os quatro casos. O que varia são as funções históricas do
Estado e as identificações políticas do governo militarizado, pois em um plano
se configura, em toda a plenitude, a ditadura militar polarizada através da reação
e da contrarrevolução burguesas; e, no outro, a ditadura militar pretende
configurar-se como uma espécie de bonapartismo acima das classes,
polarizando-se através de um nacionalismo revolucionário oscilante (embora,
concretamente, tenha tentado medidas exclusivas de “revolução dentro da
ordem” e de “revolução contra a ordem”). Desde que tais diferenças essenciais
sejam tomadas em conta, é crucial considerar em conjunto os quatro casos:
assim aparecem com maior nitidez as linhas de demarcação, que separam a
ditadura militar em nome das classes possuidoras e de suas elites da ditadura
militar “acima das classes”; e, o que é mais relevante, o que é específico aos três
casos que tendem para a situação típica no presente, na qual os interesses
internos e os interesses externos, articulados pelo capitalismo monopolista e
unificados pela dominação burguesa, fazem com que a ditadura militar das
classes possuidoras seja instrumental para impedir a revolução contra a ordem,
tanto quanto para confinar a revolução dentro da ordem à modernização
consentida, imposta de fora para dentro e de cima para baixo. O leitor poderá,
certamente, lamentar que esses filões não tenham sido explorados explicitamente
e de modo sistemático; eles estão, porém, mais do que evidentes, já que
iluminam o sentido global da análise e, em particular, a caracterização das
evoluções potenciais de curto e médio prazos (no tópico que focaliza o tema
“Estado e sociedade em tensão” e, posteriormente, numa passagem do debate
sobre os papéis políticos dos intelectuais).
Naquele momento já eram evidentes os contrastes que permitiriam separar as
características e as prováveis linhas de evolução dos três casos que cabiam na
ditadura militar de classe, com orientações reacionárias e contrarrevolucionárias
(definidos em termos da contradição com a “democracia burguesa” e com o
radicalismo burguês). No entanto, como o limite explicativo e crítico se oferecia
na abstração de traços comuns essenciais (em termos de instituições e de
processos ou de comportamento de classes dominantes), tais diferenças eram
irrelevantes. Parecia, então, que o caso extremo já se havia dado. Porém, só no
Chile e em 1973, a América Latina tomaria conhecimento de que aquela
realidade histórica ainda não se esgotara e que, nas dobras da ditadura militar das
classes possuidoras, havia uma conexão histórica contrarrevolucionária
permanente, suscetível de aprofundamento em função dos embates entre
capitalismo monopolista e o movimento socialista revolucionário. No fim da
década de 1960, em suma, uma análise de oposição frontal e que não se situava
no âmbito de demonstrações especificamente políticas podia limitar-se à
enumeração abstrata de aspectos estruturais e dinâmicos comuns aos casos
conhecidos de maior significação histórico-sociológica.
Haveria pouco sentido em aproveitar esta nota explicativa para arrolar leituras
complementares e, em particular, para situar os desdobramentos da pesquisa
sociológica sobre o assunto. As referências bibliográficas originais não tinham
significado “erudito”. Elas visavam, apenas, a sugerir as linhas de informação do
autor e a atualidade do tema na preocupação dos sociólogos, “comprometidos”
ou “neutros”, “pró” ou “contra”. Quanto à evolução do pensamento do autor, que
continuou a aprofundar o exame do tema e o seu envolvimento na oposição a
esse tipo de regime, o leitor que estiver interessado deve recorrer a Capitalismo
dependente e classes sociais na América Latina (Rio de Janeiro: Zahar, 1973,
esp. pp. 102-115) e A revolução burguesa no Brasil (Rio de Janeiro: Zahar,
1975, toda a última parte ou, esp., cap. 7). Aí se poderão patentear as linhas de
compensação introduzida por descrições mais balanceadas, que também
pretendem participar da “sociologia crítica e militante”, mas atingem esse
propósito fora e acima de uma confrontação contingente ou condicionada por
objetivos reduzidos de relação com um público determinado.
Há, ainda, a considerar as críticas feitas a este trabalho (os elogios nem
sempre chegam ao autor; e, quando chegam, podem ser negligenciados na
comunicação com o leitor). A crítica mais frequente focalizou a falta de
fundamentação empírica ou a ausência de um propósito formal de construir uma
teoria desses regimes. Ora, se fui claro, tanto no texto original quanto nesta
breve nota explicativa, trata-se de uma desorientação da crítica. Pretendia algo
que não se enquadrava nem na descrição sistemática nem na interpretação
exaustiva, com pretensões classificatórias. Ou seja, uma apertada síntese de
certos conhecimentos sociológicos, além do mais de uma perspectiva de negação
e de confrontação aberta, quase uma “literatura de partido” (a qual não cheguei,
por falta de um palco partidário e, ao mesmo tempo, porque a Universidade de
Toronto, e, posteriormente, outras universidades, ofereceram uma “alternativa
acadêmica” para o livre debate de cunho sociológico — embora sem ser
estritamente profissional). Não buscava beneficiar-me de nenhuma ambiguidade
nem proteger-me por trás dos muros acadêmicos. É que as circunstâncias eram
aquelas e não me era dado escolher as condições em que tentava sair à liça. Isso
me impunha uma severa limitação. Todavia, qual foi o partido, organização
radical ou movimento político que me convidou para outro tipo de discussão? Só
me foi dado discutir francamente como “sociólogo engajado”: um debate que
podia ser crítico, militante e contundente, mas ficando sempre dentro da
sociologia (pela natureza dos argumentos, os fins da exposição ou as
expectativas do público). Se o resultado desagrada os que só entendem a
sociologia como descrição empírica ou alta construção teórica mais ou menos
“neutra”, o melhor é passar adiante. Para esses, recomendo — não adianta
comprar este livro e, muito menos, procurar no seu terceiro ensaio o que ele não
contém nem pretende oferecer.
Uma segunda crítica tem se voltado contra um pretenso “preconceito
antimilitar” do autor. Como e enquanto socialista, sempre fui e serei contra o
militarismo; como e enquanto cientista, por outro lado, não posso aceitar a
violência dos poderosos como última via de decisão política e instrumento de
conformação da razão. Mas, ser antimilitarista não é o mesmo que ser contra o
militar. O militar nunca escolhe, individualmente ou como coletividade, os
papéis que pode ou que tem de desempenhar na história. Doutro lado, na própria
sociedade capitalista há um amplo campo de utilização do militar a favor ou
contra a revolução democrática (isto é, em termos de preservação do status quo,
de revolução dentro da ordem ou de revolução contra a ordem). É um erro crasso
querer transformar o militar, individual ou coletivamente, em uma categoria pura
e na ultima ratio dos processos históricos. Acredito que antes já dei
demonstrações concretas de que posso compartilhar com os militares aquilo que
se pode chamar de defesa da “boa causa” (tentei, de motu proprio e inutilmente,
buscar o seu apoio para a Campanha de Defesa da Escola Pública; e,
ocasionalmente, tive alguns companheiros militares lúcidos nas várias
manifestações do radicalismo burguês nos últimos trinta anos). E, mesmo neste
texto, indiquei os vários caminhos que a presente crise abre ao uso político do
militar e das forças militares como “braço armado da burguesia” ou contra ela.
Tenho a impressão de que a minha posição é clara e coerente; e que não me
coloco contra o militar em geral, pois aqui cuido do militarismo engendrado na
sociedade de classes capitalista dependente e subdesenvolvida, na era em que a
sua crise interna e a crise mundial do capitalismo ameaçam a dominação
burguesa e a sobrevivência do estado capitalista.
A terceira crítica se concentrou no modo pelo qual tentei situar os papéis do
intelectual no mesmo processo de contrarrevolução burguesa e de militarização
do poder estatal. Muitos julgam que não houve nem capitulação passiva nem
colaboração dissimulada nem solidariedade ativa por parte dos intelectuais (seria
melhor dizer-se: de grupos de intelectuais) a um odioso movimento
contrarrevolucionário e a uma férrea ditadura de classes privilegiadas. Ao
mesmo tempo, os que afirmam isso continuam a usufruir, imperturbavelmente,
as vantagens que alcançaram ou a melhorá-las — como se o mundo criado pela
autocracia burguesa fosse o melhor dos mundos possíveis (salvo alguns
inconvenientes, que atingem os precipitados ou os renitentes). Essa não é sequer
a linguagem ou o comportamento de um Pilatos. Não se lavam as mãos. Come-
se mesmo de mãos sujas. Admitindo que todos os argumentos têm uma base de
verdade — não é isso que me preocupa; e tampouco pretendi generalizar, pois
também mencionei o “maquis” da intelligentsia. O que fica, como papel crítico
e negador da ordem para o intelectual, se ele se acomoda sem “boa” ou “má”
crise de consciência? Ou se ele se comporta como se o mister intelectual fosse
indiferente às transformações do mundo e da cultura? Não estava cuidando de
casos concretos ou de experiências individuais. E, de fato, se a exceção pode
invalidar um princípio, a exceção também confirma a regra. E era isto que tinha
de ser posto a nu. A omissão, na área vital da produção do pensamento, é a pior
das fugas. E, como já pregava o clássico Vieira, pecar por omissão é o pior dos
pecados. O que esperar de uma sociedade ou de uma civilização nas quais os
intelectuais assistem impassíveis à brutalização do homem, enquanto desfrutam,
com ou sem requinte mas sempre com afinco, o seu “nível de vida” e os seus
grandes ou pequenos privilégios?
F. F.
1º de setembro de 1975.
INTRODUÇÃO
A IDEIA DE QUE a América Latina é uma região na qual os golpes de Estado são
uma rotina política tornou-se comum. Tendo-se em vista a participação dos
militares nesses golpes, o melhor estudo sociológico sobre o fenômeno mostra
que, de 1930 a 1965, os países latino-americanos sofreram cento e um golpes
militares de estado com êxito.[52]Somente o Uruguai e o México, por motivos
diversos, estiveram ausentes desse levantamento, no período acima mencionado.
Apesar disso, os países latino-americanos tiveram, no passado e no presente,
períodos de relativa estabilidade, nos quais os setores civis dominantes da
sociedade foram capazes de controlar tanto o poder político quanto o militar.
O estilo do golpe de Estado, o envolvimento político dos militares e os tipos
de ditadura militar variam no tempo e no espaço, de acordo com as
características demográficas, econômicas, sociais, culturais e políticas dos
países, e de acordo com a organização das Forças Armadas e de suas funções,
manifestas ou latentes, dentro do Estado e da sociedade nacional.[53] A
discussão de um assunto de tal complexidade torna-se impossível numa
exposição breve.
Minha intenção é mais específica. Em alguns países da América Latina,
atualmente emerge e se expande, como um processo transitório, uma
militarização definida do Estado e da política.
Este fenômeno pode ser descrito e interpretado, sociologicamente, sob muitos
pontos de vista. Nesta discussão, abordá-lo-ei em termos da situação total em
que as forças armadas se converteram num prolongamento da política mediante
outros meios, e num fator contingente de contrarrevolução.
A NATUREZA SOCIOLÓGICA DO PROCESSO

ESTA TENDÊNCIA EM DIREÇÃO à militarização do Estado e da política não decorre


da “modernização dos exércitos” e tampouco é consequência de uma decisão
interna dos militares imposta pela violência em nome dos interesses das Forças
Armadas. A ditadura militar surge ou está surgindo, em sua nova forma, como
um mecanismo de autodefesa política de uma complexa situação de interesses,
criada pelo capitalismo dependente, num período de crise e de reorganização na
América Latina. O exército não é um agente político, que trabalhe para si
próprio (como uma categoria social), ou para um setor particular da sociedade
(como estrato burocrático das classes médias “tradicionais” ou “modernas”).
O Exército encontra-se envolvido nessa tendência em virtude das
potencialidades institucionais estratégicas de ação organizada e efetiva das
Forças Armadas, num contexto onde a ordem social estabelecida enfrenta
diferentes tipos de fissuras, que se encadeiam às novas tendências da revolução
burguesa sob o “capitalismo monopolista”, os efeitos desintegradores da
explosão demográfica, a superconcentração nas cidades ou a inflação galopante
e a inquietação popular nas áreas urbanas e rurais. Como o envolvimento é de
natureza institucional, o status quo e os interesses privados dominantes, internos
e externos, foram privilegiados, o que deu ao golpe de Estado militar, de fato, o
caráter de uma contrarrevolução.
Esta descrição sugere a necessidade de se levar em consideração três aspectos
primordiais dos golpes de Estado militar. Primeiramente, eles envolvem um tipo
de ditadura militar que é, na realidade, uma ditadura de classe. Considerando-se
este aspecto, existe pequena diferença entre estes regimes e as precedentes
formas “democráticas” de governo. Na realidade, as formas “democráticas” de
governo precedentes sempre encorajaram, de modo dissimulado, ainda que
ocasionalmente com apoio popular, uma concentração de poder social
extremamente elevada. Portanto, elas eram, realmente, um sistema flexível de
opressão e de dominação autoritária, através do qual as classes altas e alguns
círculos privilegiados das classes médias monopolizavam o poder politicamente
organizado, o controle do Estado e os benefícios do crescimento econômico e
cultural. Sob a ditadura militar somente a concentração de poder veio a ser mais
rígida, violenta e sistemática, permanecendo iguais todas as demais condições.
Por outro lado, como efeito dessa mudança, a opressão tornou-se aberta e
desmascarada. Qualquer dissimulação ou flexibilidade “democrática” tornou-se
desnecessária, pois a margem de tolerância para com a dissensão ou mesmo o
consenso “ritual” foi reduzida ao mínimo.
Em segundo lugar, a tomada institucional do poder político obrigou os
militares, na condição de categoria social, a um esforço deliberado de
acomodação de suas divergências políticas. Em outras palavras, as elites
militares foram compelidas a uma composição interna, através da qual o controle
do poder tem o seu preço no próprio âmbito das Forças Armadas, impondo a
neutralização calculada das opções políticas divergentes e a eliminação dos
intolerantes (sem outras razões políticas; ou qualquer lealdade explícita para com
uma “ética militar profissional”). Isto significa que as elites militares se viram
forçadas a adotar uma perspectiva tecnocrática; tornando-se mais ou menos
cegas às orientações políticas predominantes no meio interno das sociedades
nacionais. Como um efeito natural dessa polarização, duas coisas diferentes
ocorreram. De um lado, a busca de consenso militar em termos “neutros”,
“profissionais” ou “tecnocráticos”. Isso foi conseguido através de uma nova
ideologia, construída sobre a concepção militar de “desenvolvimento com
segurança”.[54] De outro lado, a conjugação da ditadura militar com uma
filosofia altamente tecnocrática implica um gradual endurecimento de calibre
direitista. A militarização do Estado e da política tende a mover-se facilmente na
pior direção, pois, como uma fonte visível de totalitarismo fascista.
Em terceiro lugar, o novo estilo de ditadura militar proclama-se a si mesmo
como uma “revolução”, extraindo sua legitimidade do seu próprio “poder
revolucionário” e de sua capacidade de submeter todos os ramos do Estado
(inclusive o parlamento e a justiça) e todas as camadas da sociedade às
ordenações “institucionais” militares. De fato, o poder militar inverteu sua
relação com o Estado e a sociedade, assumindo abertamente, portanto, a
condição de poder supremo e inquestionável, como a última fonte de
legitimidade da ordem política e legal. Isto implica mais do que a existência de
um Estado dentro do Estado: pois o Estado fica subordinado à “vontade
revolucionária” das Forças Armadas, ou seja, é transformado num Estado
autoritário. No entanto, devido à natureza de classe da ditadura militar, o
processo mencionado se caracteriza mais como uma reserva de poder que como
uma transição efetiva para o despotismo militar. Os objetivos do processo são
dois: substituir o consenso negociado pela decisão vertical e impor como norma
a submissão passiva. A distância na direção de um Estado autoritário ativo só é
vencida em áreas específicas, como na eliminação sistemática da oposição real
ou potencial válida ou no nível sombrio do terror permanente, que se volta
contra os que defrontam a ditadura militar pela força.
Por conseguinte, a ditadura militar não tenta absorver “todo o poder para as
Forças Armadas”. Pelo menos até agora, aparece como uma forma típica de
tirania de classe, na qual os “homens de farda” constituem-se no último recurso
para a manutenção da ordem social estabelecida. Isso produz uma grande
ambiguidade: em que sentido os militares são a encarnação de uma “vontade
revolucionária”? É a palavra “revolução” usada como manipulação perversa ou
tem ela algum significado objetivo, no contexto histórico do pensamento político
conservador das classes altas e médias? Os argumentos, neste nível, são
relativos, mesmo para os sociólogos. Do meu ponto de vista pessoal,
convertendo-se na mão armada de uma tirania de classe, os militares cometeram
traição nacional. Mas tal convicção não exclui meu dever de encontrar uma
explicação objetiva para os motivos dos militares, como e enquanto membros
das classes sociais, que misturaram a opressão despótica com a mudança social
politicamente controlada.
A ideia de “revolução”, especialmente no seio das classes alta e média dos
países .mais desenvolvidos da América Latina, é uma extrapolação de uma
experiência histórica recente. Estes países absorveram, durante o recente período
de dominação europeia, um modelo de desenvolvimento econômico, social e
cultural que deu às suas burguesias certas funções autônomas nos processos de
integração nacional. A Primeira Guerra Mundial, a crise de 1929 e,
especialmente, a Segunda Guerra Mundial favoreceram algumas tendências do
desenvolvimento econômico, que criaram a ilusão de que o estágio da
industrialização seria conquistado através de esforços e decisões internos.
Contudo, ao mesmo tempo, o modelo de desenvolvimento econômico, social e
cultural, elaborado sob o imperialismo europeu do século XIX e durante as três
primeiras décadas deste século, entrou em colapso. Estrutural e dinamicamente,
os países da América Latina foram incorporados, pelas grandes empresas
modernas e por outros meios, ao espaço econômico, cultural e político dos
Estados Unidos. Esta mudança rápida produziu uma realidade inesperada. O
último estágio da revolução burguesa coincide com a substituição do modelo
precedente de desenvolvimento econômico, social e cultural; e vem se efetuando
sob profunda iniciativa e controle externos.
O novo modelo de desenvolvimento econômico, social e cultural requer
mudanças rápidas e complexas na infraestrutura da economia (na organização,
tanto da produção quanto do mercado, em níveis local, nacional e continental),
na tecnologia, no sistema de educação, na organização e eficácia dos serviços
públicos, na contribuição do Estado para a segurança e a expansão dos setores
privados, no padrão de vida, no consumo e na comunicação de massa, e nas
orientações de valor das camadas dominantes das classes alta e média. O efeito
básico do novo modelo de desenvolvimento econômico foi um novo padrão de
dependência, ao mesmo tempo assaz aguda e inevitável (sob a persistência da
ordem social vigente), interiorizada através de um processo típico de
modernização, organizado, orientado e controlado a partir de fora (pelos Estados
Unidos da América mas, em certa escala, por outros países capitalistas
avançados da Europa e pelo Japão).
Outros efeitos, mais difusos mas fundamentais, são uma confusão moral e
uma frustração econômica, especialmente no nível dos setores dominantes das
classes alta e média e de suas elites detentoras do poder. As esperanças de
autonomia nacional e de um brilhante estilo de vida burguês, experimentado
durante a primeira década deste século, nas grandes cidades, deram lugar a uma
industrialização que transforma o capitalismo dependente da América Latina
numa associação colonial indireta disfarçada com os Estados Unidos da
América, a superpotência hegemônica capitalista, e com outras sociedades
capitalistas avançadas.
E, finalmente, como um efeito transitório, seria necessário considerar também
a crise da ordem econômica preexistente, agravada por tendências conjunturais
de estagnação ou recessão, pela explosão demográfica e migrações em massa
para as cidades, pela inflação galopante, pelo “populismo”, inquietação política e
movimentos esquerdistas. Os setores dominantes das classes alta e média se
adaptaram rápida e cinicamente às condições oferecidas pela emergência do
novo modelo de dependência e desenvolvimento econômico. Contudo, eles
sofreram uma convulsão nos seus padrões de valor e de autoconfiança, herdados
do passado recente, tornando-se socialmente confusos quanto ao futuro e em
necessidade crescente de um bode expiatório, para ocultar seus insucessos e para
dar sentido ao neocolonialismo indireto, aceito livremente.
Nesse amplo contexto histórico, a ideia de “revolução” foi retomada do
passado, como uma necessidade psicossocial, moral e política. Como uma
revolução burguesa se achasse realmente em processo, desde o último quartel do
século XIX, os setores sociais dominantes tinham à sua disposição uma situação
de interesse de classe para recapturar a ideia de “revolução” e projetá-la,
objetivamente, no contexto histórico emergente. A ênfase na necessidade de
desenvolvimento rápido, autossuficiente e contínuo estendeu-se a todas as
classes através da propaganda, dos escritos dos intelectuais ou dos movimentos
de massa e da influência de algumas agências internacionais, contribuindo para
simplificar a redefinição cultural da ideia de revolução. Ela foi mantida isolada
do seu significado real, enquanto concepção de classe e como “projeto de
classe”.
Se considerarmos as ideias de “revolução”, que os militares tomaram aos
interesses privados internos e externos, em termos dos seus vínculos de classe,
descobriremos tanto o seu significado real, quanto por que, atrás da ideias de
“revolução”, havia de fato uma contrarrevolução. Como um processo histórico e
social concreto, a “revolução” se operou como um mecanismo político. Os
setores dominantes das classes alta e média não tinham outro recurso, para se
protegerem das consequências diretas ou indiretas do novo modelo de
desenvolvimento econômico, social e cultural, senão neutralizar as crescentes
pressões internas, favoráveis às reformas estruturais e democráticas. O uso
calculado do Estado e a utilização da violência organizada para alcançar
determinados fins foram os meios de ação e de autodefesa que encontraram à sua
disposição.
Através da composição civil-militar e da delegação temporária do poder
político às Forças Armadas, esses meios foram, na realidade, mobilizados. Os
setores dominantes das classes alta e média alcançaram, assim, o monopólio da
orientação política da sociedade, impondo seus próprios interesses numa
dramática situação de mudança. Agindo dessa forma, todos os outros interesses e
valores de integração nacional — mesmo sob o capitalismo, e essenciais para
uma revolução burguesa autônoma — foram esquecidos e abandonados. A
democratização da renda, do prestígio social e do poder, o único meio de integrar
milhões de pessoas excluídas ou semimarginalizadas em relação ao mercado, à
ordem social vigente e à Nação, foi completamente ignorada. Nesse sentido, a
“revolução” deu origem a um golpe de Estado reacionário e nasceu como uma
contrarrevolução, um assalto ao poder organizado pelos e para os privilegiados,
em sociedades nas quais os miseráveis constituem a maioria.
USO E LIMITES DO “ PODER MILITAR”

DE ACORDO COM A DESCRIÇÃO precedente, o novo tipo de golpe de Estado e de


ditadura militar constitui uma expressão compósita de uma realidade histórica
complexa. Ambos estão imersos numa situação de classes de face dupla. De um
lado, eles representam a “burguesia nacional”, incluindo, nesta acepção, o setor
capitalista da classe alta (urbana e rural) e as diferentes camadas da classe média,
mais ou menos identificadas com o status quo. Nesta polarização, as Forças
Armadas não são representativas de uma determinada classe. Todos os setores
são privilegiados politicamente como condição para se garantir a concentração
do poder político no tope e para se assegurar a estabilidade da ordem social
existente. Por outro lado, eles absorvem as expectativas de papéis e as
orientações de valor dos interesses estrangeiros privados e da potência
hegemônica externa, os Estados Unidos. Na polarização decorrente, as Forças
Armadas desenvolvem duas funções bem definidas. Primeiramente, suportam
algumas condições de estabilidade, exigidas pelo novo padrão de dominação
econômica, cultural e política externa. Segundo, decidem, no nível do poder
político, a opção de classe dominante, em face do conflito entre capitalismo e
socialismo em nossa época.
É evidente, sob tais polarizações, que as Forças Armadas não iniciaram o
processo de militarização do Estado e das estruturas políticas como e enquanto
grupo ou categoria social em si e para si. Sua orientação foi (e é) determinada
pela composição dos interesses privados e públicos, internos e externos, com
vistas a certas condições de estabilidade econômica, social e política, impostas
em nome de uma “transição segura” para uma nova forma de desenvolvimento
capitalista dependente.
Por causa do caráter desta nova forma de desenvolvimento, as Forças
Armadas estão, de fato, identificadas com a modernização. Mas esta
modernização, por sua origem, natureza e funções, é uma expressão dinâmica
dos interesses mistos internos e externos envolvidos. Primeiro, é uma
modernização controlada de fora, como uma fonte de neutralização permanente
de qualquer tendência de crescimento autônomo. Segundo, é uma modernização
politicamente controlada pelos setores dominantes das classes alta e média,
portanto uma modernização que rende dividendos somente para esses setores e
suas elites no poder.
Seria atrativo explicar a orientação adotada pelos “homens de farda” em
termos da “perspectiva profissional”, do “atraso cultural” em relação aos civis
mais nacionalistas, às manipulações tecnocráticas e ditatoriais etc. Porém, na
realidade, explicações desse tipo são superficiais e parciais. Os “homens de
farda” são unicamente variações de outros homens das mesmas classes. As
profissões militares, além disso, formam partes das mesmas largas oportunidades
ocupacionais, abertas para essas classes. Por outro lado, a educação dos “homens
de farda” organiza-se de acordo com as expectativas de poder e as orientações de
valor básicas predominantes naquelas classes.
Deste ponto de vista, o que se liga, de imediato, à opção política das Forças
Armadas é o horizonte cultural inerente à maneira conservadora de raciocínio e
de ação, profundamente enraizada, nos países da América Latina, nas classes
privilegiadas (alta e média). Esta forma de raciocínio e de ação conservadora
explica, igualmente, tanto a orientação egoístico-autoritária, quanto a
acomodação passiva diante das expectativas e imposições externas. Poder-se-ia
dizer que o capitalismo dependente possui sua própria tradição, de acordo com a
qual a ideologia das nações hegemônicas, como regra de fato, torna-se a
ideologia das nações dominadas. Isto é óbvio, particularmente, no caso da
ideologia do “desenvolvimento com segurança”, claramente absorvida de fora.
É inquestionável que esta ideologia possui seus próprios elementos de falsa
consciência social. No entanto, é sabido que tal ideologia propagou-se
primeiramente entre os civis. Seus elementos de falsa consciência social são, por
sua vez, típicos da concepção burguesa conservadora do mundo sob o
capitalismo dependente.
Não obstante, tais aspectos são deveras importantes para a compreensão “da
revolução imposta de cima e através da ordem”, perfilhada e praticada pelos
“homens de farda”. Atrás da fachada, o novo tipo de ditadura militar é uma
composição de interesses internos e externos, estando profundamente orientada
para fazer o jogo como o fulcro e a garantia da estabilidade do sistema. Assim
nós temos duas questões, que merecem atenção especial. Primeiro, o uso
calculado das Forças Armadas como um fator transitório de extrema
concentração de poder e de autoritarismo político. Segundo, os limites do “poder
político-militar”.
Considerando-se a primeira questão, os “homens de farda” foram usados
politicamente (mais do que tiraram proveito) pelas elites no poder existentes. A
discussão acima evidencia os tipos de uso envolvidos. Contudo, seria
aconselhável especificar as áreas de uso estratégico do poder militar para fins
políticos.
A área mais importante é naturalmente a relacionada com os problemas da
“grande burguesia”. Ameaçada de dentro, pelo “populismo”, pela inquietação
social e pelo radicalismo de esquerda, e pressionada de fora, pela competição
com ou através da absorção pela grande empresa corporativa, a “grande
burguesia” esteve perto de um colapso. A crise desgastou especialmente seus
setores rurais e sua base financeira. A ditadura militar tentou reorganizar a
economia em sua totalidade, a fim de solucionar tais problemas de um modo
estrutural (favorecendo a transição gradativa do empreendedor rural para outros
tipos de negócios e dotando o mercado financeiro de maior elasticidade). Em
adição, juntamente com a depressão dos salários dos trabalhadores, ela adotou
políticas de deflação que preenchem a função de transferir a riqueza,
organizadamente, dos grupos de baixa renda para o Estado e, por meio deste,
para algumas empresas públicas e privadas de importância econômica
estratégica.
As classes médias foram contempladas de maneira acessória (excetuando-se
os militares e os tecnocratas das empresas públicas e privadas). Todavia, os
problemas das classes médias aparecem em dois níveis intricados: 1. de
manutenção e ampliação dos seus privilégios relativos de renda, prestígio e
poder; 2. de consolidação do status de classe média em termos de mobilidade
social vertical e de linha de sucessão familial. Por causa desses problemas, as
classes médias são, ao mesmo tempo, conservadoras, frustradas e ávidas por
poder. Apesar de suas pressões radicais, feitas por pequenas minorias, e de seu
ardiloso conservantismo dominante, as classes médias receberam apenas as
migalhas. Suas vantagens tomaram caráter indireto, graças às posições ocupadas
pelos militares, os burocratas, os tecnocratas e os políticos, extraídos das classes
médias, nas novas estruturas políticas e nas renovadas elites no poder. Na
verdade, a dinâmica da militarização do poder e da modernização do Estado deu
a esses círculos, especialmente quando comprometidos com o “regime”,
consideráveis ganhos em prestígio social, poder e facilidade de consolidação do
status, quase sempre alimentados por agências públicas (como na educação, em
oportunidades profissionais etc.).
A grande empresa corporativa estrangeira constitui um capítulo à parte. Essa
empresa levanta uma série de problemas como problemas econômicos,
resultantes do padrão monopolístico de organização, de seus lucros excessivos, e
em muitos casos, de sua falta de importância em vista dos fins globais de
crescimento econômico nacional; problemas políticos, ligados à natureza do
novo modelo de desenvolvimento dependente sob o industrialismo, a
desnacionalização das empresas locais, a política da reinversão e remessa de
lucros, e o maior de todos, a intromissão financeira, legal e governamental
sistemática dos países hegemônicos, especialmente os Estados Unidos da
América na conformação e controle do novo modelo de desenvolvimento
econômico; e, por fim, problemas sociais, provocados pela absorção irrestrita de
tecnologia avançada, que contribui para poupar trabalho em países necessitados
de rápido aumento dos empregos, e pelos impactos negativos do novo modelo de
desenvolvimento dependente sobre a integração nacional do sistema econômico.
Os dois problemas estratégicos foram naturalmente impostos pela dinâmica da
grande empresa corporativa e pelos controles financeiros, legais e políticos, que
ficam por trás dela. Em todos os países da América Latina, a expansão deste tipo
de empresa está associada a grandes sacrifícios internos, muito bem conhecidos.
Quando ela atinge seu clímax e poderia tornar-se uma fonte de pressões internas
na expansão e reorganização do mercado nacional, ela se volta para os mercados
externos de outros países da América Latina, pressionando em direção a uma
política de exportação e de “integração regional”. Isto implica novos sacrifícios
adicionais e perda imprevista de capacidade de crescimento diferenciado e
integrado (em nível de economias nacionais). A ditadura militar é decididamente
favorável a essa política econômica e a encara como uma vantagem promissora.
De outro lado, a grande empresa corporativa é um problema em si mesma. Ela é
tão poderosa, que sua expansão externa é uma ameaça permanente para a
hegemonia econômica e cultural dos países aos quais ela pertence. Por causa
disto, os Estados Unidos estão envolvidos em um complicado sistema de
controle legal e político, de natureza tipicamente autodefensiva, para evitar uma
futura realocação do centro estratégico de operação das grandes empresas
corporativas. Este é o aspecto mais notável do florescente “Império Norte-
Americano”: o controle econômico externo é seguido de um controle político
externo ainda mais poderoso. Em regra, a ditadura militar é muito
condescendente com ambos os processos e tende a avaliar a intromissão externa,
extensiva e intensiva, em assuntos nacionais, como uma questão de segurança
interna! Sob este aspecto, ela é mais leal à nova teoria de “poder e cooperação
interdependentes” do que à soberania de suas próprias nações. Como o processo
total é tão complicado, os países subdesenvolvidos e dependentes da América
Latina não têm meios efetivos de contrarreação, dentro da ordem econômica e
social existente. Os resultados da Missão Rockefeller mostram que os setores
privados do país hegemônico compreenderam claramente o processo em sua
totalidade. Eles estão conscientes de que algumas estruturas econômicas,
herdadas do velho sistema colonial, não podem ser adaptadas aos novos padrões
de dominação econômica e cultural. Por isso, toleram e até dão apoio à
eliminação progressiva ou rápida dessas estruturas, que se tornaram obsoletas e
constituem um obstáculo para a completa reorganização da economia capitalista
na América Latina. As ditaduras militares, à semelhança de suas burguesias,
tiram pouco proveito mesmo destas tendências de desenvolvimento dependente,
numa era de crise e transição.
As pressões internas que visassem a reformas democráticas foram
consideradas como fonte de desordem e como uma ameaça à proclamada
“civilização cristã”. Essa polarização negativa dos setores dominantes das
classes alta e média tem um valor estratégico. A inquietação das massas urbanas
e rurais, os movimentos estudantis, o protesto católico e o radicalismo intelectual
forneceram, em conjunto, o bode expiatório para uma contrarrevolução
sacrossanta. Todas as manifestações rejeitadas e reprimidas de não conformismo
foram paradoxalmente alimentadas por orientações de valor e por expectativas
sociais do tipo “revolução dentro da ordem”. Por isto, elas servem de barômetro
para definir o caráter particular da tirania de classe, que se impôs a si própria
como uma “revolução”, e para avaliar-se a forma resultante da opressão, que
suprimiu até o modelo “pequeno-burguês” e “ilustrado” de radicalismo.
Finalmente, uma última área engloba movimentos e atividades de revolução
social propriamente dita. Nos países em que prevalecem desigualdades sociais
tão chocantes, como na América Latina, tais movimentos e atividades podem
facilmente atingir um ponto explosivo. Não existe lealdade popular para com a
ordem social estabelecida e a explosão em potencial é uma questão de
oportunidade política. Não obstante, como os Estados Unidos aprenderam de
modo errado as lições da revolução cubana, suas influências sobre o pensamento
conservador e as Forças Armadas da América Latina tomaram uma direção
negativa. Elas engrandeceram e difundiram um medo pânico e uma drástica
contraviolência. E, de outro lado, elas oferecem uma boa desculpa e uma saída
oportunista para os civis e militares conservadores, que puderam justificar
facilmente os golpes de Estado, a ditadura militar, o terrorismo direitista e uma
terrível repressão obscurantista. No entanto, o risco corrido pelas “instituições” e
pela ordem social estabelecida era mais imaginário que real. O medo pânico,
contudo, preencheu duas funções: 1. promover a identificação da sociedade civil
com a militarização do Estado e das estruturas políticas;
2. justificar o uso sistemático da violência organizada contra quaisquer
pessoas ou grupos suspeitos de atividades subversivas. A contraviolência
permite, por sua vez, o uso planejado de um duplo mecanismo de associação
entre os setores dominantes das classes alta e média, as tiranias por eles
instituídas e o poder hegemônico externo dominante, os Estados Unidos. A
repressão dos movimentos de reforma democrática foi de importância estratégica
para as classes alta e média das sociedades latino-americanas. Contudo, a
organização de uma contrainsurreição, através dos recursos humanos dos
Estados latino-americanos, mas com a ajuda externa, era de importância
estratégica para os Estados Unidos e, em menor grau, para as outras nações
capitalistas adiantadas, envolvidas nas novas tendências de desenvolvimento
dependente. Como resultado dinâmico e estrutural desse duplo mecanismo, a
dependência transferiu-se rapidamente das esferas econômicas e culturais para
os níveis políticos, burocráticos e militares.
Em relação à segunda questão, os limites do “poder político-militar”, é óbvio
que, em termos da composição descrita, a militarização do Estado é um
fenômeno contingente. Ela pode durar alguns anos. Mas está condenada a
desaparecer tão logo se torne desnecessária. Para adquirir realidade política
substancial, as Forças Armadas necessitariam novos tipos de alianças sociais e
novas orientações de valor. Mantendo-se as condições presentes, o poder militar
não tem meios para impor sua vontade além e acima do momento deliberado de
omissão dos setores dominantes das classes alta e média.
ESTADO E SOCIEDADE EM TENSÃO

A ÚLTIMA QUESTÃO propõe os problemas políticos básicos. Seria impossível


negar que a tendência moderna descrita possui uma natureza verdadeiramente
tradicional e profundamente enraizada. De fato, ela é uma nova versão de um
processo político, econômico e social arcaico. O novo tipo de tirania é a forma
assumida pela dominação, opressão e autoritarismo oligárquicos sob as
condições históricas presentes, nas quais alguns setores da classe média
conseguem compartilhar dos privilégios e do poder da classe alta. Talvez, uma
melhor descrição sociológica seria um pouco mais complexa. O novo tipo de
tirania aparece como subproduto da transformação da dominação oligárquica em
dominação plutocrática, composta de interesses sociais, políticos e econômicos,
públicos e privados, tanto internos quanto externos. Contudo, a última descrição
não muda a realidade do elemento arcaico, constituído pela extrema
concentração social da riqueza, do prestígio e do poder.
Os problemas que surgem da última questão estão relacionados com a
dinâmica da ordem social vigente, sob as condições que prevalecem na América
Latina, e com a evolução das estruturas de poder herdadas. De um modo amplo,
temos duas realidades diferentes: um Estado lutando rigidamente para estabilizar
a ordem social existente, segundo certos interesses particularistas internos e
externos; e uma sociedade tentando destruir um Estado que se tomou uma
camisa de força. Estas duas realidades estão em irremediável conflito.
Sob este ponto de vista, a tirania oculta atrás da ditadura militar pode ser bem-
sucedida e durar duas ou três décadas (talvez mais, talvez menos, dependendo
dos países da América Latina que se considerem). Todavia, as posições militares
e a natureza dos seus laços com a sociedade podem transformar-se de maneiras
diversas. De outro lado, os valores e as orientações políticas das classes sociais,
dos poderes hegemônicos externos e dos países socialistas em relação à América
Latina podem mudar, também, de maneiras diversas. A necessidade de articular
interesses privados internos e externos, de caráter divergente, e de lançar mão de
golpes militares de Estado é, por si mesma, uma evidência clara de que as
pressões da sociedade contra a tirania estão se tornando muito “fortes para serem
enfrentadas por meios normais”. Não há razões para se admitir que essas
pressões desaparecerão em virtude da militarização do Estado e do poder
político. Ao contrário, a rigidez de tal processo é previsivelmente propícia ao
fortalecimento de algumas tensões estruturais e ao aparecimento de conflitos
mais violentos.
Nem as Forças Armadas e os interesses privados externos e internos, nem os
outros setores sociais da sociedade (agora em silêncio ou subjugados), poderão
permanecer continuamente em tal estado de acomodação conflitante. Na
realidade, o golpe de Estado pelas Forças Armadas é, por si mesmo, uma
mudança profunda, que está provocando o nascimento de novas formas de
acomodação ou de conflito grupal e de uma vasta socialização política dos
militares. Então, poder-se-ia perguntar, quais seriam as alternativas possíveis
para o futuro, olhando-se as coisas a partir das composições de poder
predominantes? Aceitando distinções toscas, nós consideraríamos três arranjos
típicos: 1. a estabilização do novo padrão de opressão política e do novo regime
autoritário; 2. a exacerbação do controle militar do poder e, em consequência,
das funções políticas e burocráticas do Estado; 3. uma revolução socialista.
O primeiro arranjo atende aos requisitos políticos do modelo emergente de
desenvolvimento econômico e cultural dependente, vinculados ao capitalismo
monopolista. O “desenvolvimento como revolução”, dadas as presentes
condições demográficas, econômicas, sociais, culturais e políticas da América
Latina, trabalha nessa direção. Portanto, se a composição dos interesses internos
e externos prevalecer a largo prazo, uma concentração social permanente do
poder se imporá como uma condição necessária. Nesse caso, o êxito do novo
tipo de tirania dependeria de uma reação ativa dos setores civis, com a
substituição da antiga e exausta dominação oligárquica por uma dominação
plutocrática, orientada tecnocraticamente. Uma tal evolução produziria uma
reorganização relativa do poder militar. Isto não significa uma “devolução do
poder” aos civis. Mas, talvez, um “aperfeiçoamento” do chamado modelo
mexicano, mediante uma adaptação da participação normal das Forças Armadas
no núcleo das estruturas de poder, especialmente no que respeita às exigências
políticas, militares e policiais de repressão contrainsurrecional. A combinação de
um regime autoritário com a militarização de determinados serviços públicos e
de funções estratégicas do executivo é tão vantajosa para os interesses privados
internos e externos, que ela não será abandonada facilmente pelos setores
dominantes das classes alta e média ou pelos poderes hegemônicos externos.
Portanto, a “restauração da democracia”, ou seja, o restabelecimento do tipo
anterior de opressão “liberal” é totalmente inviável. Isso exigiria um crescimento
econômico e cultural autônomo tão rápido e um controle tão completo de
inquietação social ou da insurreição política, que a “restauração da democracia”
se torna impossível, enquanto “realidade burguesa”. O grande dilema, para a
elite no poder, militar e civil, é como conseguir participação e suporte populares.
O tão decantado e desejado modelo mexicano somente é realizável quando as
massas podem ser engoIfadas pelo fluxo de uma verdadeira revolução social.
O segundo arranjo é, de fato, muito complexo. Ele depende de fatores
estruturais diferentes, dos quais a reação dos “homens de farda” às mudanças em
processo é apenas um dos elementos dinâmicos da situação. Mas duas
orientações extremas parecem ser mais ou menos imperativas, dado um malogro
definitivo na consecução do primeiro arranjo. Essas duas probabilidades são: a)
um radicalismo político-militar, seja como resposta à incapacidade de
estabelecer-se o novo tipo de desenvolvimento dependente sob o capitalismo
monopolista, seja como um produto da predominância sectária de grupos
direitistas entre as Forças Armadas e os setores civis dominantes; b) a
fermentação e a consolidação graduais de um “nacionalismo revolucionário”,
construído sob a proteção do poder militar.
Esses dois caminhos são tão antagônicos, que é difícil imaginar como eles
podem ser produzidos pela mesma situação histórica. Não obstante, os “homens
de farda” foram projetados na arena do poder político organizado. Suas atitudes,
orientações de valor e comportamentos políticos sofrerão mudanças dramáticas
graças às experiências com o poder político e através de um conhecimento mais
acurado de seus países. Por causa disso, os setores sociais mais conservantistas e
as influências externas estão tentando intensificar algumas identificações morais
dos militares com uma concepção pervertida de “segurança nacional”. O
objetivo é criar uma forte corrente para uma saída direitista, capaz de converter
rapidamente a militarização do poder político em um regime fascista acabado.
As frustrações da burguesia nacional e as fraquezas das massas poderiam
contribuir, então, para uma espécie de racionalização e modernização do antigo
despotismo.
Entretanto, como os demais seres humanos, os “homens de farda” estão
experimentando um processo de ressocialização política. Eles estão aprendendo
coisas novas não somente a respeito da “arte política”, mas sobre iniquidades
sociais que, de agora em diante, serão praticadas sob sua responsabilidade
política. Através da cooperação de técnicos e tecnocratas nacionais ou
estrangeiros, eles estão aprendendo novas técnicas sociais, novos modelos de
organização institucional, e de mudança planejada e controlada. Por outro lado,
eles se viram moralmente envolvidos em “projetos nacionais” de reforma social
e politicamente expostos à corrupção, à crítica ou à aprovação dos setores
populares etc. Essas condições são favoráveis à emergência, aperfeiçoamento e
difusão de um novo tipo de “populismo”, um “populismo militar”. Desde que o
“populismo militar” possa ser controlado pelos interesses privados dominantes,
internos e externos, ele é um mero fator de controle político autoritário a partir
de cima. Mas, como grupo social organizado e por causa de seu poder
institucional, as Forças Armadas têm maiores oportunidades de se esquivarem às
pressões conservantistas. O processo pode se iniciar como um processo típico de
modernização do Estado e de suas funções; e pode terminar como uma
verdadeira revolução nacional. A evolução dessa polarização política depende de
mudanças nas identificações existentes dos militares com a lealdade
conservadora, de mudanças de atitude dos setores radicais, das classes alta e
média diante dos “homens de farda” e da constituição de novas estruturas
políticas, capazes de integrar esse tipo de composição social. Pessoalmente, sou
cético quanto a tal perspectiva. Contudo, ela pode ser factível num contexto no
qual algum progresso dos setores reformistas e democráticos da sociedade
pudesse liberar os assim chamados “setores nacionalistas” das Forças Armadas.
Nesse caso, ao invés de um “desenvolvimento dentro da segurança”,
conservador ou direitista, o “nacionalismo revolucionário”, sob a garantia do
poder militar, poderia combinar desenvolvimento autônomo com integração
nacional. A questão é se o “populismo militar”, como aconteceu com o
“populismo civil”, não está condenado ao malogro, por falta de identificação
com a revolução democrática vinda de baixo.
O terceiro arranjo tem sido visto, depois das novas tendências de levantes
militares, como um caminho interceptado. Aceita-se geralmente que o uso
político do poder militar, em combinação com a capacidade dos Estados Unidos
de intervenção maciça e imediata, em outros países, bloquearam qualquer
evolução para uma insurreição socialista na América Latina. De um ponto de
vista objetivo, isto é um grosseiro contrassenso, baseado em duas suposições
falsas. A primeira, envolve um paralelismo superficial entre a “Dominação
Romana” e o “Império Norte-Americano”. Não existe fundamento para tal
associação. Um império alicerçado nos interesses capitalistas está por si mesmo
condenado a mudar rapidamente e a ser reconstruído de acordo com as
transformações do próprio tipo de capitalismo. Desde o início, com Veneza,
Portugal, Espanha e Holanda, até os tempos mais recentes, com a Grã-Bretanha,
França, Alemanha ou Itália, as grandes reorganizações do capitalismo
privilegiaram todas as formas de estruturas políticas, inclusive a “nacional” e a
“imperial”. Os Estados Unidos têm levado a vantagem de uma tecnologia
superavançada e de uma articulação capitalista internacional momentânea,
catalisada pela sua própria hegemonia dentro do “mundo capitalista” e pela
duração do jogo de paciência russo dentro do “mundo socialista”. Todavia, essas
condições são condições históricas, instáveis pela sua própria natureza. O que
conta são os dinamismos intrínsecos do moderno capitalismo monopolista e os
efeitos estruturais da presente expansão do socialismo na organização do
mercado internacional e na sobrevivência do capitalismo. Negligenciando-se o
último aspecto, é evidente que a dinâmica do capitalismo monopolista é a mais
perigosa ameaça enfrentada pelo “império norte-americano”, já que seu poder e
hegemonia se fundam no poder e hegemonia de umas poucas “grandes empresas
corporativas”, os verdadeiros “impérios”. Como estas “grandes. empresas” estão
se espalhando e se internacionalizando, seu futuro controle ecológico,
econômico, legal e político é uma matéria imprevisível. Esta conclusão mostra
que alguns acontecimentos circunstanciais foram mal interpretados, talvez por
causa da inabilidade com que os Estados Unidos enfrentaram certos problemas
internacionais e continentais, dando prioridade à violência em ocasiões nas quais
outros meios pacíficos deveriam merecer atenção cuidadosa. No que se refere à
América Latina, isto implica que os Estados Unidos serão crescentemente
forçados a uma política mais acomodativa e flexível.
O segundo contrassenso relaciona-se com a avaliação dos elementos básicos
na constituição de uma nova ordem social nos países da América Latina. Para os
novos governos autoritários, o essencial é a combinação da violência organizada
com algumas mudanças estruturais, de interesse primário para os setores
dominantes das classes alta e média, para as empresas corporativas estrangeiras e
para os Estados Unidos. Não obstante, a violência organizada (mesmo sob
condições de repressão brutal e de opressão sistemática) não pode ser um fator
permanente de equilíbrio social. Ela pode garantir um período de extrema
concentração social de poder e de controle político arbitrário da situação pelas
elites no poder. Entretanto, ela gera, por si mesma, fluxos reativos de
contraviolência. O que é essencial, pois, não é a violência em si mesma, mas o
uso social das condições de estabilidade e de mudança controlada durante o
período de extrema concentração do poder. Sob as condições econômicas,
sociais e políticas predominantes, de privação absoluta ou relativa, o capitalismo
seria favorecido pela negação da pobreza e do desemprego aberto ou disfarçado.
Oportunidades de trabalho estável assalariado, em grande escala, e a integração à
ordem social existente são exigências básicas da grande maioria silenciosa dos
pobres, nas áreas urbanas e rurais. Contudo, as reformas em processo, impostas
pelo setor público sob liderança militar ou realizadas pelos interesses privados
internos e externos, por agências real ou supostamente internacionais etc., estão
primariamente relacionadas com objetivos particularistas dos setores dominantes
das classes alta e média das empresas corporativas estrangeiras, dos Estados
Unidos e de outras nações capitalistas avançadas. Essas reformas produziram,
estão produzindo e produzirão alguns efeitos indiretamente positivos nos setores
populares. Porém, isto não é o bastante. As mudanças requeridas pela situação
são de caráter revolucionário (mesmo em termos de “uma revolução dentro da
ordem capitalista”). As mudanças em processo são de natureza
contrarrevolucionária, como subprodutos da predominância de uma composição
de interesses particularistas internos e externos.
Isso significa que a extrema concentração de poder e o período de relativa
estabilidade, produzidos pela opressão ou pela repressão, não estão sendo
utilizados de modo a conquistar, realmente, apoio e participação permanentes da
grande maioria silenciosa dos pobres. A frustração dessa maioria silenciosa está
aumentando rapidamente, mas em condições muito diferentes das do passado: o
uso aberto da violência pelos setores dominantes da sociedade, pelas
organizações contrainsurrecionais conhecidas como manipuladas do exterior, e
pela tirania estabelecida criou uma nova realidade política. A maneira tradicional
de opressão foi desmascarada pelas elites no poder e a legitimidade da violência
foi legal e politicamente proclamada como um fim em si mesmo. Em poucos
anos, os conservadores foram mais úteis à causa da revolução socialista que
todos os movimentos de esquerda, considerados em conjunto. Os horizontes
políticos das massas estão mudando de modo mais rápido que a ordem social. Se
a obstinação egoísta dos interesses particularistas predominantes permanecer
cega às urgentes reformas democráticas, necessariamente de grande escala, a
explosão será uma realidade política nas próximas décadas.
Sob tais circunstâncias, o poder militar confrontar-se-á com fissuras
inteiramente novas. Agora, é fácil distorcer o significado e as funções dos
movimentos socialistas ou radicais. Eles são vistos como “atividades
antipatrióticas”, de grupos minoritários, financiados, orientados e controlados do
exterior. E eles continuam, na verdade, distanciados do apoio popular maciço.
Sob outras condições, a distorção dos fatos será inútil e a rebelião socialista ou
radical se converterá em realidade histórica. Então, as Forças Armadas não
poderão manter-se tão fechadas e ao mesmo tempo tão protegidas diante da
fermentação e da explosão revolucionária. Sentimentos sociais e identificações
nacionais pressionarão os “homens de farda” primeiro em direção a uma
“participação popular”; e muitos deles serão finalmente engajados na revolução
social, na construção de um mundo autônomo e democrático, negado aos países
da América Latina sob os tipos de colonialismo e neocolonialismo ligados aos
vários estágios do capitalismo.
Esta discussão global mostra que não há sentido, quando consideramos a
situação histórica como uma realidade total, de pensar-se sobre o uso político do
poder militar somente em termos de uma determinada polarização.
Especialmente quando o Estado e a sociedade estão numa tensão insuperável, as
polarizações políticas do poder militar podem tomar, rapidamente, diferentes
direções. Mesmo nas piores condições, os homens sempre têm possibilidades
alternativas de escolha. Um controle militar rígido do Estado e uma tirania de
classe não são intangíveis. Ao contrário, eles forçam os “homens de farda” a
enfrentar problemas complexos e a tomar decisões difíceis. Ao enfrentar os
problemas complexos e ao tomar decisões difíceis, os “homens de farda” mudam
suas identificações sociais, seu horizonte cultural e o caráter de suas ações
políticas. Sob esse aspecto, o assalto do poder pelos militares não é o fim de um
processo histórico, mas o começo de muitos outros processos históricos. Os
“homens de farda” veem-se engolfados nesses processos, através dos quais
novas composições e soluções surgem como uma necessidade social. Isso
significa que eles não são os únicos agentes da história. Porém, à semelhança
dos outros homens, eles estão imersos nas formas existentes de comportamento e
de conflito grupais, das quais a história de uma sociedade emerge como produto
da atividade humana coletiva.
O INTELECTUAL E A DITADURA MILITAR

O INTELECTUAL NA AMÉRICA LATINA está tão intimamente ligado aos setores


dominantes das classes alta e média quanto o militar. Dependendo do país
considerado, eles são primos, irmãos ou gêmeos. Por esta razão, o “momento de
omissão” da sociedade civil, que deu ao poder militar a dimensão política
descrita, foi claramente, também, um “momento de omissão” dos intelectuais.
Eles estavam tão identificados com o medo pânico e tão impregnados de ardor
contrarrevolucionário quanto qualquer outro círculo conservador das classes alta
e média dominantes.
Poder-se-ia dizer que, como categoria social, os intelectuais pagaram um alto
preço à nova forma de tirania de classe e à repressão político-militar, e que um
grande número de intelectuais esteve e está envolvido na resistência política
contra a existência e a consolidação do novo tipo de dominação autoritária.
Todavia, esta evidência revela uma dupla realidade. A exemplo dos “homens de
farda”, os intelectuais têm alguns segmentos radicais comprometidos com a
democracia, as reformas estruturais e a autonomia nacional. Por outro lado, a
condição do intelectual ainda é um fator secundário de diferenciação de papéis
sociais, de ego-envolvimento e de orientações de valor. O intelectual é,
fundamentalmente, um “membro responsável” dos setores dominantes das
classes alta e média, e quando possível, um “cérebro pensante” leal e ativo da
elite no poder.
Por isso, a militarização do poder encontrou (e vem encontrando) um apoio
cada vez mais amplo e forte, ao invés de oposição por parte dos intelectuais.
Uma grande maioria estava (e continua a estar) abertamente a favor da
proclamada “revolução para salvar a ordem social”. Esse setor aproveitou a
situação para expandir a repressão militar e a opressão política, de modo aberto
ou dissimulado, nas esferas das atividades intelectuais. Outros setores mais ou
menos largos gostariam de fazer as coisas de “maneira civilizada”, sem
violências e injustiças extremas, especialmente no nível da “liberdade
intelectual”. No entanto, esses setores também encaravam a situação em termos
de “interesses de classe” e de “lealdade de classe”, encarando as medidas
excepcionais contra os intelectuais como um preço necessário, aceitando mesmo
alguns papéis repressivos para “preservar as instituições” ou para “proteger
aqueles que pudessem ser defendidos”!
Apenas uma minoria se opôs à militarização do poder em nome de orientações
de valor intelectuais especificamente abstratas. Uma pequena parte dessa
minoria tinha uma autêntica orientação liberal-conservadora. Alguns entre eles
desafiaram o poder militar ou tentaram ativar, secretamente, uma espécie de
organização de autodefesa (em nome da “liberdade intelectual” clássica). Porém,
um grande contingente daquela minoria seguiu os radicais, a verdadeira
intelligentsia da América Latina, “oponentes do sistema” e, por esta razão,
inimigos conscientes da ditadura militar e da florescente tirania de classe. Eles
foram (e estão sendo) esmagados através de várias formas de repressão policial,
de opressão política e de discriminação intelectual. Não foram, todavia,
destruídos ou aniquilados. Ao contrário, a crise expurgou esses intelectuais de
seus elementos espúrios, aumentou sua solidariedade e amadureceu sua
percepção política da realidade.
A situação exposta poderia ser descrita e interpretada, sociologicamente, sob
diferentes pontos de vista. No entanto, estamos interessados nas conexões
estruturais e dinâmicas existentes entre o regime autoritário e os intelectuais. Por
esta razão, discutiremos aqui somente três questões básicas: 1. os fatores diretos
e indiretos que produziram o autoenvolvimento e a orientação coletiva dos
intelectuais na direção das tendências assumidas pela militarização do poder; 2.
o mecanismo de recrutamento e compensação dos intelectuais comprometidos
com a construção da “infra” e da “super” estruturas de um regime autoritário; 3.
as razões para o malogro dos intelectuais da América Latina, durante e depois do
período de crise.
A enumeração e a análise completas dos fatores relacionados com a primeira
questão é impossível. Grosso modo, os fatores mais importantes são indiretos: as
posições e papéis intelectuais acham-se ramificados através dos status
privilegiados das classes alta e média. Em consequência, os intelectuais ficam
permanentemente expostos a interesses, a ideologias e a valores que, por sua
própria natureza, são intrinsecamente conservadores, no sentido de que fazem
parte do horizonte cultural conservantista dos setores dominantes das classes alta
e média. Isso não significa que eles sejam contra a “modernização” ou “inimigos
da mudança social”, mas que a posição de classe e as orientações de classe dos
intelectuais tendem a ser mais uma função da estabilidade da ordem social
existente, que das exigências específicas de suas atividades culturais, diletantes
ou profissionais. Eles podem estar engajados nos processos de modernização e
de mudança cultural. Mas tal engajamento possui limites restritos: 1. a
preservação do status quo, em períodos de estabilidade social; 2. o controle
político da modernização e da mudança social, pelos setores dominantes das
classes alta e média, em períodos de crise. Por isso, os intelectuais não
representam uma força cultural de toda a sociedade. Exercem suas atividades
construtivas na qualidade de força cultural dos setores sociais que formam a
sociedade civil na América Latina, ou seja, a parte “integrada” das sociedades
nacionais a que pertencem. Essa função dirige suas atividades construtivas para
objetivos intelectuais neutros ou para fins intelectuais positivamente ligados à
continuidade e ao fortalecimento dos privilégios das classes alta e média.
Esse fator indireto foi, na realidade, a fonte dinâmica do ajustamento dos
intelectuais à “necessidade” dos golpes de Estado militares e dos seus principais
“motivos de reconhecimento” para com a militarização do poder político.
Entretanto, por detrás de suas atitudes, comportamentos e orientações de valor
predominantes, há uma situação estrutural que fragmenta as atividades
intelectuais em posições e papéis que carecem, como tais, de qualquer
autonomia social e de qualquer poder político inerente de autodeterminação.
Essa situação estrutural engendra uma imagem específica dos “intelectuais”, na
qual a facilidade com que é conquistada a estima pública e um prestígio quase
ritual, mediante a publicação de obras escritas, e a impotência associada a
mecanismos compensatórios de frustração e de sublimação constituem os dois
lados de uma mesma moeda. Suponho que é a situação estrutural — mais do que
o controle externo, imposto através e pelos setores dominantes da sociedade —
que explica sociodinamicamente o complexo padrão de conservantismo, inerente
aos papéis intelectuais. O que é importante considerar-se, desse ponto de vista, é
que o isolamento dos intelectuais gera uma exclusão dos papéis intelectuais na
dinâmica da história, da cultura e da sociedade. A “tradição liberal” torna-se um
escudo, que os protege dos riscos de uma participação social aberta e
responsável como intelectuais. O isolamento origina uma “torre de marfim”, cuja
função consiste em acomodar os intelectuais às expectativas de papéis sociais e
aos controles societários externos. Portanto, o isolamento não funciona como
uma fonte dinâmica de autoafirmação intelectual, de um poderoso pensamento
abstrato revolucionário (ou, pelo menos, crítico). Ele funciona, antes, como
instrumento de autoneutralização e autocastração, que organiza as atividades
intelectuais como formas culturais do pensamento conservador. Através desta
situação estrutural, pois, uma sociedade civil conservadora conforma as
atividades intelectuais criadoras à sua própria realidade histórico-cultural.
Isso explica por que o pensamento conservador é um produto sociodinâmico
da organização das atividades intelectuais; e consequentemente, por que a grande
maioria dos intelectuais está substancialmente do lado dos golpes de Estado
militares e da militarização do poder, em vez de se acharem em oposição frontal
às restrições ou à supressão da “liberdade intelectual”. Entrementes, o sistema
institucional, ligado à produção, transmissão e difusão de conhecimento, também
está subordinado aos privilégios sociais das classes alta e média e às suas
orientações de valor conservantistas. Há pouco interesse numa discussão ampla
desse aspecto — a elite cultural conservadora imprimiu uma estrutura
conservadora e funções conservadoras às instituições ligadas aos meios de
comunicação de massa, à educação, à pesquisa científica ou tecnológica etc. Por
isso, tão logo os golpes de Estado se encontraram em preparação, um plano
coerente, voltado para o uso estratégico daquele sistema institucional, foi
elaborado e posto em prática com êxito. O centro desse esforço baseou-se na
combinação, bastante complexa, dos serviços secretos das Forças Armadas, dos
movimentos intelectuais direitistas apoiados pelos interesses privados internos
ou externos, das agências de contrainsurreição norte-americanas, de algumas
empresas de pesquisa social comercializada ou aplicada etc. O que interessa à
presente discussão é a conglomeração dos motivos intelectuais predominantes,
que foram tão decisivos para os desígnios dos serviços secretos e estados-
maiores das Forças Armadas.
Em todos os níveis, o sistema institucional organizado em torno de objetivos
intelectuais esteve, e está, enfrentando uma crise interna. Em todas as
instituições, um elemento comum de crise é a “diferença de gerações”, que na
América Latina assume um caráter dramático de conflito dos jovens contra
formas abertas ou disfarçadas de controle gerontocrático do poder. Foi
verdadeiramente fácil unir os interesses dissimulados das elites intelectuais neste
nível, em nome da “defesa da ordem”. Um segundo conflito importante apareceu
nas universidades, nas quais os melhores representantes das profissões liberais
viram-se confrontados com as exigências de um novo padrão de trabalho de
tempo integral. Neste nível, de novo, os interesses dissimulados encontraram
proteção sob a bandeira da “defesa da ordem”. Em algumas instituições
dedicadas à pesquisa científica e tecnológica há um conflito entre duas
tendências diferentes: a pesquisa considerada como um meio honorífico de se
obter bons salários e prestígio, em contraposição à pesquisa empenhada no
avanço do conhecimento original. Aqui, os interesses dissimulados triunfaram,
rotulando a devoção ardente à pesquisa científica e tecnológica como “ameaça
comunista” aberta ou camuflada. De modo geral, a competição profissional e o
conflito social envolveram motivos intelectuais na zelosa “defesa da ordem”.
Nessas circunstâncias, os interesses dissimulados transformaram-se, no seio dos
círculos intelectuais, em armas venenosas. Eles impediram, ao mesmo tempo,
qualquer espécie de resistência intelectual efetiva contra o obscurantismo ou
qualquer espécie de solidariedade intelectual genuína. Os três exemplos
fornecem uma clara evidência de duas coisas diferentes: 1. as instituições
organizadas em torno das atividades intelectuais constituíram cenário dos
mesmos conflitos que impeliram os militares aos golpes de Estado e à
militarização do poder político; 2. essas instituições foram usadas em proveito
dos interesses escusos predominantes, para apoiar tanto os golpes de Estado
militares, quanto a militarização do poder político. Consideradas em seus níveis
de atividades “profissionais” ou “culturais”, as elites intelectuais aparecem como
agentes da contrarrevolução burguesa e o “braço pensante” do poder militar.
A segunda questão, concernente aos mecanismos de recrutamento dos
intelectuais envolvidos na construção dos regimes autoritários emergentes,
coloca dois problemas diversos. Um, relacionado com o período de
“conspiração”, no qual os intelectuais conservadores foram gradualmente
absorvidos pelos serviços secretos e os estados-maiores das Forças Armadas. O
outro relaciona-se com o período de organização e de consolidação da
militarização do poder político.
As recentes mudanças da tecnologia bélica, do padrão de guerra e de
envolvimento dos interesses rnilitares na pesquisa científica e tecnológica deram
origem a um processo mais complexo de intelectualização dos militares. Sob o
patrocínio dos Estados Unidos, esse processo teve uma influência concentrada
na América Latina: os militares tornaram-se os campeões de uma teoria
simplificada de “desenvolvimento dentro da segurança” e, também, os “policy-
makers” de uma concepção pervertida de “associação interdependente”, que
desempenhou uma função básica na organização política de seus países na
década de 1960. À semelhança dos outros setores das elites civis no poder, os
intelectuais foram maciçamente absorvidos pelas agências culturais e pelos
“contatos” militares durante o período de “conspiração”. Através de tais
processos, pelo menos os melhores representantes dos intelectuais conservadores
sofreram algum tipo de doutrinação militar e de ressocialização política
autoritária. Além disso, as chamadas elites culturais foram preparadas não só
para dar sua aprovação aos golpes de Estado militares, pois elas também
estavam identificadas, politicamente, com a militarização do poder e
predispostas a aceitar a liderança política dos militares nos termos que estes
propunham, isto é, sob regime autoritário.
Por causa disso, o recrutamento de intelectuais para cooperar na construção de
um novo regime autoritário não enfrentou dificuldades. A realização desse
objetivo seria, sob quaisquer condições, muito fácil em países tão minados por
um conservantismo obscurantista, fortes interesses particularistas de classe e
uma classe média ávida por poder. Por outro lado, a transição para o novo padrão
de industrialismo dependente criou sua própria esfera de racionalidade, na qual
os intelectuais podem encontrar diferentes áreas de realização criadora e uma
arena de poder. O fluxo da cooperação intelectual, leal e entusiasta ou fria e
calculada, ultrapassou todas as expectativas (e mesmo as probabilidades
existentes de absorção útil). Alguns atritos surgiram, destruindo a ilusão de que
“a restauração da ordem” envolveria rápido restabelecimento do controle civil do
poder político, e provocando o retraimento dos intelectuais que fizeram o papel
de “inocentes úteis” ou de “aliados perigosos”. Mas, a massa dos intelectuais
“conservadores” (“liberais” ou “neutros”) mostrou uma grande tolerância,
proclamando sua fé na “ordem revolucionária”.
Os atritos tiveram diferentes motivos. Para os intelectuais, o mais importante
era (e é) a emergência, entre os militares, de uma elite contraintelectual. Isso
indica que os militares estão dispostos a criar seus próprios intelectuais — para
acabar com a competição intelectual em volta de posições de força e para
estimular o monopólio militar parcial das melhores oportunidades intelectuais.
Outra causa importante de atritos foi (e é) o estilo militar de controle e liderança.
O mecanismo vertical de decisão imposta do tope e de mando parece chocante e
limitativo, mesmo para os intelectuais mais servis. Finalmente, os militares
esposaram uma visão sectária e puritana dos seus papéis como “policy-makers”.
Eles fazem consultas formais e informais em “alto nível”, ou seja, no nível das
elites no poder (incluindo as elites culturais). Mas, demonstram pouca
flexibilidade em pontos já assentados por suas doutrinas preestabelecidas e não
revelam qualquer disposição para as “discussões acadêmicas”. Em conjunto,
esses atritos dão um sabor amargo à participação do poder político-militar. Não
obstante, os militares conhecem as vantagens básicas da especialização, da
cooperação disciplinada, e da modernização do Estado. Sob sua
responsabilidade, o regime autoritário está se tornando um Estado tecnocrata de
múltiplas faces. Isto implica uma miríade de oportunidades para os intelectuais
de “mentalidade aberta” e tolerantes. No fim, eles perdem o sentido de
dignidade, inerente à posição do intelectual na sociedade. Mas ganham poder
“vivo”, como lacaios do poder político-militar institucionalizado.
Os mecanismos de recompensa repousam, portanto, em oportunidades a serem
mantidas ou em novas vias de acesso aos diferentes níveis de poder. Os
intelectuais “revolucionários” — aqueles que estão identificados com os golpes
de Estado militares e com a militarização do poder político — podem ter uma
desculpa. Eles olham a si próprios como agentes do novo tipo de leviatã, como
os cérebros pensantes das Forças Armadas, e como “a inteligência do regime”. O
mesmo poderia ser dito em relação aos técnicos e aos cientistas envolvidos na
tecnocratização do poder político-militar (do Estado e das Forças Armadas, à
educação, a meios de comunicação de massa, à economia etc.). Eles se veem —
e são, realmente — a “verdadeira inteligência” daquele leviatã, a elite cultural
que está emergindo com e através do regime autoritário militar. Mas eles
possuem, adicionalmente, uma ideia clara de que podem sobreviver
politicamente sem o poder militar. Os dois setores intelectuais mencionados
estão construindo, sob a dominação militar, com a cooperação dos interesses
privados internos ou externos, e o auxílio do poder continental hegemônico, os
Estados Unidos, uma versão latino-americana aperfeiçoada do salazarismo e do
franquismo.
Por aí se vê que o antigo tipo de intelectual “liberal” e o tipo moderno de
intelectual “tecnocrata” estão unidos na mesma causa e são compensados pelos
mesmos meios. Algumas vezes, contam com as mesmas origens sociais ou
culturais e alimentam interesses profissionais abertos ou dissimulados similares.
Contudo, o último setor tem mais em comum e identifica-se mais com os
militares; sem contar que um regime autoritário moderno pode produzir mais
dividendos para ele, independentemente de qualquer ônus moral ou político.
Através de semelhante regime, os intelectuais do último setor estão construindo
mais do que as estruturas políticas e administrativas da ditadura militar. Eles
estão tentando construir o tipo de economia, de sociedade e de Estado nos quais
poderão ser, sob o capitalismo industrial dependente, uma poderosa elite
cultural.
A terceira questão, as razões de malogro da intelligentsia latino-americana,
levanta muitos problemas que não podem ser discutidos aqui. Para evitar mal-
entendidos: eu acredito que parte dos intelectuais constituiu uma intelligentsia
verdadeira, orientada na direção de uma percepção e de uma explicação crítica
da realidade e da construção de uma concepção negativa do mundo, oposta à
ordem social existente, baseada em extrema concentração da riqueza, do
prestígio e do poder no tope, e numa grande massa de iniquidades sociais e de
miséria; e voltada para reformas democráticas ou para a revolução social. A
situação externa dessa intelligentsia explica sua falta de consistência, sua
fraqueza intelectual, e sua irracionalidade política. Ela é o produto de interesses
de classe e de ideologias divergentes: os intelectuais ilustrados, de origem
“burguesa” ou “pequeno-burguesa”; a moral radical, de extração católica ou de
outras raízes religiosas e humanitárias; o jovem rebelde, em sintonização com os
diferentes movimentos modernos de protestos de geração; os intelectuais
definidamente comprometidos com atividades e ideologias de esquerda, do
anarcossindicalismo e do socialismo às várias correntes atuais do comunismo; os
tecnocratas politizados, fascinados pela “revolução da ordem social” através do
poder político organizado e do capitalismo de Estado etc. Assim, devido à sua
composição social, padrões culturais e identificações políticas, a emergente
intelligentsia latino-americana constitui mais uma congérie que um todo
diferenciado e articulado. Não obstante, apresenta certos laços de solidariedade
intelectual e de associação política. E, o que é mais importante, ela é um setor
ativo dos intelectuais, cuja influência vem crescendo rapidamente nas últimas
quatro décadas graças à sua enorme capacidade criadora, de fermentação e de
produção intelectuais. Por essa razão, foi o único setor dos intelectuais que
tentou desenvolver, primeiro, a desobediência civil sistemática e, mais tarde,
uma oposição aberta contra golpes de Estado militares e a militarização do poder
político.
As razões que explicam o apoio dado pelos intelectuais à contrarrevolução
também explicam o malogro da intelligentsia latino-americana. Na falta de
condições para um envolvimento permanente dos pobres no seio do poder
organizado institucionalmente, nos processos culturais de integração nacional e
nos movimentos de protesto social, aquela intelligentsia não conta com o apoio
social necessário. Os chamados “setores radicais” da classe média podem
oferecer um cenário, algumas condições de comunicação de massa e uma estreita
base política. Não obstante, como são uma minoria desorganizada e instável, até
agora mostram-se mais capazes de fazer face às frustrações da própria classe
média, que de abrir caminho para as reformas democráticas ou a revolução
social. Por conseguinte, a intelligentsia latino-americana usa o vácuo político e o
tipo de liberdade criados pela ordem social existente para fins conservadores e
para a dominação autocrática. Assim que os setores dominantes das classes alta e
média perceberam os riscos inerentes à existência, ao crescimento e às atividades
de tal intelligentsia, existiam duas coisas que eles podiam fazer facilmente: 1. a
supressão do vácuo político (através de uma superconcentração do poder); 2.
restrição da liberdade para os interesses e valores políticos da elite no poder
(mediante uma superestimulação dos mecanismos existentes de opressão de
classe). Se a situação histórica fosse diferente, essas duas medidas não seriam
exequíveis (o que significa que os golpes de Estado militares e a militarização
do poder seriam impedidos através da ação social dos setores “radicais” das
classes médias e dos pobres). Mas na situação dada, ambas as medidas foram
impostas sucessivamente e a intelligentsia latino-americana perdeu, por algum
tempo, seu débil sustentáculo social e suas oportunidades para uma influência
aberta.
A análise anterior demonstra que a fraqueza básica da intelligentsia latino-
americana é um produto estrutural e dinâmico de suas inter-relações com as
elites culturais existentes. Para ser livre e revolucionária, uma intelligentsia
precisa romper, parcial ou totalmente, com as classes dominantes e suas elites no
poder. Mas a intelligentsia latino-americana é predominantemente composta de
profissionais ligados à ordem social através de posições de classe média (a
grande maioria) e alta (uma pequena minoria). Como as sociedades não possuem
garantias de liberdade institucionalizadas e reais, esse setor não pode
empreender uma luta independente pela democracia, pela reforma social e
mesmo pela “revolução nacional”. As implicações negativas de tal situação são
muito complexas, uma vez que as identificações sociais e as orientações de valor
das classes médias, dentro de uma sociedade capitalista de consumo em massa
subdesenvolvida, ultrapassam o nível político. O estilo de vida e as expectativas
sociais predominantes produzem um compromisso com o uso conspícuo do
tempo e com objetivos políticos ou culturais que estão em contradição com uma
atitude de negação da ordem social. Esta situação provoca algumas
incongruências insuperáveis, tais como um radicalismo tipicamente
compensatório e outras irracionalidades, que resultam da ambiguidade do
“esquerdismo” nas sociedades capitalistas subdesenvolvidas. A “negação da
ordem” toma simultaneamente formas diferentes, desde a “consolidação da
democracia” e da “revolução através do desenvolvimento” (ambas “revoluções
dentro da ordem”) até a revolução social. Tais alternativas confundem opções
políticas, ideológicas e utópicas exclusivas, dando origem a um pensamento não
conformista politicamente ineficiente.
O malogro da intelligentsia latino-americana reflete, de fato, o malogro de
suas sociedades, com respeito à sua organização interna e à sua evolução como
sociedades competitivas. A minoria dos privilegiados controla o poder político
através de uma sociedade cívica parcialmente fechada. A maioria dos pobres e
da gente marginalizada ou semimarginalizada constituem congéries destituídas
de poder. A intelligentsia foi incapaz de superar a brecha histórica e sua oposição
à contrarrevolução apenas inicia o caminho em direção a uma nova era. Na
qualidade de único setor entre os intelectuais que opôs resistência aos golpes de
Estado militares e à militarização do poder político, ela foi parcialmente
esmagada e banida de suas funções culturais estratégicas. Em resumo, os
intelectuais não constituíram problema para a ditadura militar e para a nova
tirania de classe. Eles deram apoio à nova tendência com lealdade ou por
interesse. Os que ficaram com a democracia e na oposição eram demasiado
fracos para organizar uma reação interna. Por isso, foram derrotados quase sem
luta, embora não tenham se rendido, até agora, diante da violência militar e da
contrarrevolução “burguesa”.
OS PAPÉIS POLÍTICOS DOS INTELECTUAIS

A CARACTERÍSTICA POLÍTICA básica do novo tipo de ditadura militar e de tirania de


classe é a supressão, inibição ou controle legal e policial de todas as garantias e
liberdades que são “normais” em uma sociedade competitiva e eram
consideradas “essenciais” pelos setores dominantes das classes alta e média, nos
países mais avançados da América Latina. Esse endurecimento do controle
formal e esta restrição ou extinção da liberdade não foram planejados para
suprimir as condições da ação política eficaz da elite no poder. Ao contrário,
foram impostos como um mecanismo para impedir o uso possível das garantias e
liberdades preexistentes em termos dos interesses e orientações de valor de
outras classes, especialmente para evitar mudanças estruturais e reformas
democráticas reclamadas pelos “setores radicais” das classes média e baixa,
urbanas ou rurais. Em consequência, a transição autoritária tem uma função bem
definida: instituir as condições sociais, culturais e políticas sob as quais aquelas
garantias e liberdades podem ser usadas “seguramente”, para os fins dos setores
sociais dominantes e suas elites no poder. Em termos sociológicos, isso significa
que as elites culturais têm um campo seguro, amplo e aprovado de atividades
intelectuais. Essas atividades não foram (nem poderiam ser) abolidas. Como
requisito da transição para um novo padrão de desenvolvimento econômico e
cultural dependente, é necessário introduzir novas formas de atividades
intelectuais e substituir ou mudar as formas antigas. Assim, o regime autoritário
aparece em conexão com uma inevitável ampliação e modernização das
atividades intelectuais, em um período de rápida diferenciação dos papéis dos
intelectuais e de intensa inovação na esfera cultural. Os regimes autoritários não
são (nem poderiam ser) contrários a esses processos. Eles são somente contra o
controle de tais processos pelos intelectuais, porque isso poderia significar a
perda do controle da situação pelos setores sociais dominantes.
Enfim, a dominação militar e o novo tipo de tirania de classe modificaram as
condições de recrutamento, trabalho e influência dos intelectuais, impondo-lhes
que adaptassem suas atividades e papéis sociais às funções de uma elite cultural
sob um regime autoritário. O objetivo consiste em integrar os intelectuais às
elites no poder, dentro dos limites e dos fins da tirania de classe existente. A
reorganização do mundo das atividades intelectuais é, assim, um dos aspectos
dos processos mais amplos de reorganização das estruturas econômicas, sociais e
políticas. Isso põe duas questões básicas para a nossa discussão: 1. que círculos
intelectuais serão capazes de aceitar ou de desafiar manipulações tão
substanciais? 2. Quais são as linhas políticas alternativas de ação e opção abertas
aos intelectuais?
Em referência à primeira questão, é necessário encarar a situação presente de
uma perspectiva bem ampla. Alguns sociólogos, por convicções ideológicas ou
suposições teóricas, refutam a existência tanto de uma revolução burguesa
quanto de uma integração nacional como processo revolucionário nos países da
América Latina. Em minha opinião, nas sociedades capitalistas
subdesenvolvidas, a revolução burguesa ocorre como um padrão de evolução
estrutural, seja do seu capitalismo dependente, seja de seu sistema
correspondente de classes. De outro lado, a integração nacional pode ser
expandida dentro das possibilidades estreitas de uma revolução burguesa
controlada do exterior, já que ela pode ser a fonte de tensões econômicas, sociais
e políticas de caráter revolucionário (como uma “revolução dentro da ordem”,
que poderia associar alguma forma do “socialismo de acumulação” com um
desenvolvimento autônomo das estruturas nacionais, agora estranguladas sob o
capitalismo dependente). O novo estilo dos regimes autoritários surgiu (ou está
surgindo), na América Latina, como requisito político para a intensificação da
revolução burguesa sob impulso e controle externo, na fase do industrialismo
financeiro. As atitudes e orientações de valor dos intelectuais diante desse
regime são e serão, crescentemente, uma função de suas polarizações de classe.
As tendências em processo estão produzindo um novo tipo de capitalismo
industrial na América Latina. Mas, ao mesmo tempo, elas estão produzindo
novas formas de dependência externa e de neocolonialismo. As estruturas
nacionais estão sofrendo e sofrerão novas modalidades de estrangulamento e
deterioração em proveito dos interesses privados internos e externos.
O que poderia ser considerado a amplitude política do comportamento crítico
dos intelectuais, nesta dada situação histórica, não é nem determinada pelo
próprio regime autoritário nem por qualquer virtude inerente aos intelectuais
como um todo. O regime autoritário é “instrumento político” de uma tirania de
classe e a militarização do poder constitui o único meio pelo qual ela poderia ser
eficientemente realizada. A reação política (positiva, negativa ou “neutra”) dos
intelectuais a um regime autoritário, como foi visto, é primordialmente uma
questão de interesses de classe. Como os intelectuais estão fragmentados em
diversas congéries e sofrem um envolvimento moral e político predominante
pelo status quo, sua avaliação da ditadura militar é, sociodinamicamente,
moldada pela estrutura dos interesses de classe dos setores dominantes das
classes alta e média, a curto ou a largo prazo. Da mesma forma, os intelectuais
carecem de autonomia social e de homogeneidade cultural, especialmente em
questões políticas decisivas. Os intelectuais desempenham seus papéis
específicos de conformidade com “as regras do jogo”, estabelecidas fora do
mundo intelectual, por vezes até em termos extraintelectuais. Não obstante,
algumas instituições (especialmente as universidades) podem “proteger”
algumas poucas atividades intelectuais independentes, de significação política,
ou com implicações políticas, em diferentes níveis da cultura e da modernização.
A polarização de classe dos papéis dos intelectuais, despertada e fortalecida
por controles políticos e morais circunstanciais, de natureza extraintelectual,
gera condições de frustração amarga, de desorientação e desmoralização. Os
setores intelectuais ligados às classes dominantes e à elite no poder contam com
possibilidades definidas para a sublimação de tais tensões. Através da
identificação social, cultural e política com os interesses de classe das classes
dominantes, eles são capazes de absorver as tensões e de assumir papéis
políticos velhos ou novos no seio de um regime autoritário de dominação e de
governo. O mesmo processo é aberto a outros setores intelectuais, que operam
nos campos “neutros” das atividades intelectuais (ou que se consideram
“comprometidos de modo puramente intelectual”). Esses setores também são
capazes de absorver as tensões e de assumir papéis políticos velhos ou novos de
uma maneira tipicamente racional (em termos de interesses calculados; ou em
nome dos “interesses da nação”, dos “interesses da ciência”, dos “interesses da
educação” etc.) no seio do regime autoritário. Nos diferentes casos, tais papéis
políticos não estão isentos de exigências intelectuais específicas. Isso significa
que os círculos intelectuais, anteriormente mencionados, podem desempenhar
alguns papéis políticos construtivos — para a emergente tirania de classe e seu
regime autoritário, mas também em um sentido amplo, para o crescimento da
cultura. Os setores intelectuais que estão ligados às classes dominantes, mas se
opõem à ditadura militar, embora pequenos em número e politicamente
insignificantes, estão na pior situação. Como abandonaram seus interesses de
classe e seus papéis dentro da elite no poder e carecem de uma linha de oposição
consistente à ditadura militar, eles são destruídos pela ambivalência de sua
posição. As frustrações geram confusões morais e pessimismo sistemático,
dando origem a uma superavaliação das atividades intelectuais como refúgio e
fim em si mesmas. Os papéis políticos abertos a esses setores são indiretos
(dentro do mundo “intelectual”: as universidades, organizações de pesquisa,
casas editoras, serviços técnicos públicos ou privados etc. e, como artifício
neurótico, a febre da produtividade intelectual).
Os setores que formam a intelligentsia, estritamente falando, estão numa
posição mais difícil. Eles carecem de meios de absorção de suas frustrações e
são sobrecarregados com expectativas de controle e de ação conflitantes,
impostas pela ditadura militar ou pelos grupos radicais e por si próprios. A
situação global cria uma tempestade de fricções, desilusão e desorientação
moral.
Aqueles que ainda se acham protegidos institucionalmente podem tentar uma
“reversão neutra”, envolvendo-se em atividades intelectuais de significado
político apenas latente (de “importância” para os estudantes, para a ciência, para
o futuro da instituição, para o desenvolvimento da nação etc.). O caráter
compensatório dos ajustamentos não elimina a importância dessa orientação,
como uma frente silenciosa de resistência, tanto contra a tirania de classe, quanto
contra o regime autoritário. Aqueles que se viram engajados politicamente em
movimentos organizados, radicais ou de esquerda, também estão protegidos, em
certo grau, pelo menos contra a autodesintegração e a desmoralização pessoal.
Eles podem preencher papéis políticos bem definidos e construtivos, negando e
opondo-se à ditadura militar através de atividades intelectuais clandestinas.
Aqueles que perderam suas posições e agiam como franco-atiradores enfrentam
uma dura escolha: a solução oferecida por uma “reversão neutra”, sem
sustentação ou proteção institucional (a qual implica uma retratação dissimulada
e a aceitação aberta de uma acomodação política dentro do “sistema”); ou a
solução oferecida pela “radicalização política”, através da incorporação a
movimentos radicais ou revolucionários subsistentes.
Essa enumeração demonstra que, nas presentes condições, a tirania de classe
dominante: 1. possui controle externo sobre as atividades intelectuais e sobre as
funções políticas dos intelectuais na sociedade; 2. tem controle interno dos
papéis políticos dos intelectuais, requeridos pela superconcentração do poder no
nível dos setores dominantes das classes alta e média e pela militarização do
poder político. Em consequência, os regimes autoritários, sob a dominação
militar, possuem poder suficiente para produzir o tipo de intelectual de que
necessitam. Sob esse aspecto, a questão não é de “falta de papéis políticos” dos
intelectuais, mas de uma sistemática corrupção, através da qual os intelectuais
estão sendo transformados em lacaios políticos de uma tirania de classe e de sua
ditadura militar. Em contrapartida, só poucos representantes da pequena mas
estimulante intelligentsia preservaram alguns papéis políticos tolerados ou
proibidos, a um alto preço em sacrifícios pessoais, e com pequena eficácia e sob
riscos crescentes de marginalização. Eles não são capazes de desafiar e destruir,
por si mesmos, os novos regimes autoritários. Porém, podem desempenhar seus
papéis políticos em diversos níveis, desde as atividades intelectuais organizadas
institucionalmente aos movimentos clandestinos de oposição e rebelião. Sua
força e influência políticas não são produto de números, mas da qualidade e da
necessidade. A fraqueza fundamental do tipo descrito de tirania de classe e a
iniquidade da ditadura militar, sua sustentação política exterior, estão dando (e
darão cada vez mais) maior importância aos papéis políticos da intelligentsia
latino-americana.
Quanto à segunda questão, as linhas políticas alternativas de ação e de opção
abertas aos intelectuais, seria necessário considerar as diferentes probabilidades
de evolução da presente situação política. Alguns papéis específicos dos
intelectuais e suas implicações políticas indiretas (para o desenvolvimento da
pesquisa científica, da educação, do planejamento etc., ou para empreendimentos
abstratos) não foram afetados. Eles sofreram uma mudança de orientação, em
consequência do novo padrão de dominação econômica e cultural externa. As
esperanças de crescimento cultural autônomo e de uma “revolução intelectual”
através da ciência, da tecnologia avançada e da educação democrática serão
basicamente destruídas. Mas, aqueles papéis e suas implicações políticas
indiretas são inerentes ao sistema de instituições da “civilização tecnológica
moderna”. Acham-se estrutural e dinamicamente protegidos: aumentarão
quantitativamente e qualitativamente, mediante um novo tipo de modernização
dependente, controlada do exterior. De outro lado, a tirania de classe e os
regimes autoritários militares não são contra “o homem de saber” em si mesmo.
Apenas empenham-se em controlar ou destruir o assim chamado homem de
saber “rebelde” e o desenvolvimento do “conhecimento crítico” sobre a
sociedade. Porém, se a superconcentração e a militarização do poder atingirem
seus objetivos políticos, sob o novo modelo de dominação econômica e cultural
externa, surgirá algum tipo de equilíbrio político, e com ele o intelectual
“rebelde” e o “conhecimento crítico” reaparecerão na cena histórica. Talvez “o
homem de saber” será um pouco mais cauteloso; e os setores dominantes da
sociedade e de suas elites no poder um pouco mais tolerantes. O essencial é o
fato de que a “civilização ocidental moderna” não pode sobreviver sem os
intelectuais “rebeldes” e o “conhecimento crítico”. Eles fazem parte do seu
padrão de continuidade através de mudanças permanentes e rápidas. Isto também
é verdadeiro para o presente e para o futuro dos países da América Latina.
De toda a discussão precedente depreende-se que os golpes militares de
Estado e a militarização do poder só destruíram algumas condições históricas
das atividades intelectuais. Não suprimiram nem os intelectuais, enquanto
categoria social, nem a intelligentsia, de modo particular. Como a revolução
burguesa está numa etapa crítica de transição, a integração nacional ainda se
encontra ameaçada pela dominação externa ou pervertida pelos efeitos
estruturais do capitalismo dependente; a pobreza ou miséria de milhões
continuam a ser uma realidade crua; e a resposta a esse desafio social, o uso da
violência, atingiu o seu clímax ao nível do poder político organizado. Portanto,
os papéis políticos dos intelectuais estão adquirindo e adquirirão de maneira
crescente uma nova dimensão histórica. Não importa o tempo que durem, os
regimes autoritários são somente instrumentos equivalentes ao Estado-tampão —
são governos-tampões. Eles estão criando maiores problemas econômicos,
sociais e políticos de que os que podem resolver, especialmente nas condições da
América Latina. Por causa disso, os “intelectuais não conformistas” serão
chamados, talvez mesmo pelos militares, mas certamente pelas novas
composições do poder, para participar dos processos políticos necessários à
revolução democrática, requerida pelos países da América Latina.
Deve-se considerar, no entanto, que o significado, as funções e as
manifestações sociais do “radicalismo intelectual”, e o envolvimento dos
intelectuais no uso político da violência sofrerão algumas mudanças previsíveis.
Até agora, o “radicalismo intelectual” foi uma simples expressão de atritos
absorvidos pelas elites no poder. Uma intelligentsia expurgada e marginalizada,
nas condições de crescimento e de proteção proporcionadas pelas atividades
políticas clandestinas, afasta-se por sua própria natureza da “normalidade” das
elites culturais. Em relação ao uso da violência, os países da América Latina
estão agora alcançando um ponto crítico de transição na história: o monopólio da
violência pelos setores dominantes da sociedade, por meios institucionais mais
ou menos dissimulados, atingiu seu clímax num período em que a violência
começou a ser moralmente combatida (inclusive por “círculos conservadores” da
Igreja católica) e ameaçada politicamente pela confrontação ativa. Sob tais
condições, o “radicalismo intelectual” defronta-se com a necessidade política da
contraviolência e converte-se em fonte do pensamento revolucionário
sistemático. No cerne do dilema político, criado pela tirania de classe e seus
regimes militares autoritários, está um processo de radicalização política do
intelectual “não conformista” e o engajamento revolucionário da intelligentsia. A
superconcentração do poder político e o uso irracional da violência não deixam
outra alternativa aos intelectuais envolvidos na luta por uma democracia
verdadeira. A derrota da tirania de classe e a destruição de seus regimes
autoritários, por quaisquer meios possíveis, converte-se em papel político
primário não só dos “intelectuais” — ou do seu setor comprometido
politicamente com o não conformismo, a intelligentsia — mas do homem
comum.
Não obstante, as diferentes probabilidades políticas, mencionadas acima (cf.
“Estado e sociedade em tensão”), merecem alguma atenção nesta discussão. A
presente situação é uma fase de transição politicamente perigosa para os setores
sociais dominantes, para os interesses externos privados e para o poder
hegemônico continental, os Estados Unidos. Como não existe possibilidade de
“protesto popular” e de “crítica livre”, as atividades terroristas e de guerrilha
tornam-se, de modo crescente, um equivalente funcional da democracia. Esta
situação politicamente perigosa impõe alternativas contraditórias: a radicalização
da opressão e da repressão; e uma confusa busca da transição segura para um
novo padrão de desenvolvimento industrial dependente sob o capitalismo
monopolista. O quadro criado por tal situação, entre os intelectuais, acabou de
ser descrito. Para os setores sociais dominantes, os interesses privados externos e
os Estados Unidos, o que realmente interessa é a segunda alternativa (a primeira
é, para eles, apenas um “mal necessário”). Não é fácil alcançá-la e ela não pode
ser alcançada na mesma extensão e do mesmo modo em todos os países da
América Latina. Contudo, o que fica absolutamente claro é que ela não pode ser
atingida sob e através da violência organizada, mas somente por meio do
crescimento econômico rápido, da mudança social acelerada e da modernização
cultural intensa.
Se esses fins puderem ser alcançados (através de uma cooperação competitiva
vigorosa entre as Estados Unidos, alguns países europeus e a Japão) os golpes de
Estado e a militarização do poder político lograrão êxito. Sob novas condições
econômicas, sociais e culturais, a tirania de classe adquirirá flexibilidade política
e meios eficientes e indiretos para estabilizar, organizar e controlar o poder, com
uma grande margem de “participação política”, “mobilização de massa” e
“governo representativo”. Será uma realidade política onipresente, mas invisível.
Dado que a transição significará a aceitação de um estado de neocolonialismo
moderno, os atuais fatores de tensões sociais internas e externas subsistirão,
alguns com uma força mais aguda e explosiva. Além do mais, todos os setores
intelectuais adquirirão papéis políticos. Os setores conservadores dos
intelectuais, porque ver-se-ão envolvidos no processo de “nativização” dos
centros de decisão do poder; os setores inovadores dos intelectuais,
especialmente os técnicos, os tecnocratas e os cientistas “neutros”, porque
estarão interessados na “nacionalização” dos centros de decisão do poder.
Ambos os setores desempenharão papéis políticos normais dos intelectuais nos
países dependentes: tentando ajustar politicamente a “revolução nacional” às
condições econômicas, sociais e culturais emergentes, com vistas a um estágio
mais complexo e avançado do capitalismo dependente. A intelligentsia, por seu
turno, enfrentará os mesmos problemas sociais e dilemas políticos da América
Latina de hoje, porém em condições políticas piores. A aceleração do
crescimento econômico e cultural, sob o controle externo e a persistência de uma
extrema concentração social de riqueza, prestígio social e poder não serão de
grande ajuda na solução desses problemas. Todavia, mudanças simultâneas em
diferentes aspectos de economia, da sociedade e da cultura, com um aumento
geral das oportunidades de trabalho (para as classes média e baixa),
provavelmente terão efeitos inibidores sobre as “tendências radicais” dos
movimentos sociais. Não obstante, a percepção social e o padrão de crítica da
pobreza, da falta de participação popular, ou da exploração externa serão mais
refinados e exigentes. A intelligentsia deverá adquirir politicamente mais do que
o que está perdendo através da presente repressão e extermínio. Ela poderá ser
melhor sucedida, portanto, na aquisição de novos papéis políticos, em três níveis
simultâneos: 1. as pressões em favor de uma verdadeira democracia, em todas as
esferas da vida social; 2. as pressões contra o impacto negativo da extrema
concentração da riqueza ou do poder, e da exploração externa na integração e
autonomia nacionais; 3. as pressões em favor de reformas estruturalmente
igualitárias e da revolução social. O “sistema” necessitará de tais tipos de
manifestações do radicalismo político, como um artifício adaptativo para
pressionar, ao mesmo tempo, os interesses privados internos e os controles
políticos externos.
Parece que o malogro nessa direção, como vimos, poderá contribuir para uma
inevitável exacerbação do controle militar do poder político. As alternativas
mencionadas — um extremo endurecimento direitista da ditadura militar ou sua
transformação num “populismo militar” — possuem significados muito
diferentes para o desempenho político dos intelectuais. Sob a primeira
probabilidade, as tendências seriam intensificadas. Os setores “velhos” e
“modernos” dos intelectuais, em termos de interesses dissimulados e de
comportamento racional, estariam literalmente comprometidos na construção de
uma versão “colonial-fascista” dos regimes autoritários militares existentes.
Certo uso “nacional” e “radical” de ambos os setores poderia estar em harmonia
com uma “política patriótica” predatória. A intelligentsia, como tal, estaria
condenada à destruição completa ou a ser “usada” para tais fins “patrióticos”.
Entretanto, essa alternativa possui um elemento positivo: uma radicalização
extrema e “profissional” das atividades políticas clandestinas da intelligentsia.
Os intelectuais ativistas se tornariam militantes revolucionários, lutando para a
“restauração da democracia” ou para a “revolução socialista”. Sob a segunda
probabilidade, os papéis políticos dos intelectuais sofreriam alguma convulsão.
De fato, apesar do proclamado “nacionalismo revolucionário”, o populismo
militar é uma forma disfarçada e débil de concentração e organização direitistas
do poder. Sua importância resulta de certos compromissos abertos e sistemáticos
em face da participação popular, da política nacionalista e anti-imperialista,
mudanças sociais estruturais e planificadas etc. Tais compromissos não só criam
tendências voltadas para a integração nacional; sob pressões de massa, eles
podem impelir alguns círculos das elites no poder (inclusive os militares) e a
sociedade nacional na direção de um capitalismo de Estado, do reformismo
democrático, ou do socialismo. Grande parte do “velho” setor dos intelectuais
ficaria marginalizada, mas o seu setor “moderno”, imerso em processos de
decisão nacional, como componente de uma burocracia tecnocrática, voltar-se-ia
para o “radicalismo” político e para a “esquerda”. A intelligentsia se veria,
então, congestionada pela elevação de aderentes e politicamente solapada e
pervertida. Mas teria diferentes probabilidades de desempenho político
construtivo, e pelo menos sua verdadeira esquerda poderia assumir algumas
polarizações políticas decisivas.
A tendência para uma revolução socialista, no contexto histórico latino-
americano, como em outros países subdesenvolvidos, não é exatamente um
“produto inerente às contradições do capitalismo”. Essa seria uma imagem
clássica, de um ponto de vista europeu ou alienado. Em todas as nações
subdesenvolvidas, e isso mesmo nas que são mais orientadas pelo capitalismo e
relativamente mais avançadas (a exemplo de alguns países latino-americanos), o
que conta não são as “contradições intrínsecas” do capitalismo, mas o fracasso
relativo do capitalismo para enfrentar os problemas sociais e os dilemas políticos
dessas nações. O capitalismo dependente é incapaz de sobrepujar a pobreza
crônica e generalizada, a marginalização sistemática de milhões, a falta
permanente de integração nacional, e a exploração externa crescente. As razões
para tal fracasso são estruturais. A “revolução dentro da ordem”, através do
desenvolvimento, é impossível: 1. sob a extrema concentração social da riqueza,
do prestígio social e do poder; 2. Sob o controle externo espoliativo do
crescimento econômico, da modernização cultural e da política “nacional”. As
ditaduras militares atuais e seus possíveis sucedâneos não podem evitar um
colapso futuro (que poderia ser evitado unicamente se uma revolução burguesa
autônoma ocorresse, como sucedeu nos Estados Unidos e no Japão). A
consciência política de tal situação histórica não foi alcançada por todos os
intelectuais. No entanto, os círculos intelectuais mais maduros e resolutos da
intelligentsia latino-americana estão aprendendo, através de experiências
concretas.
De um lado, estão descobrindo os meios potenciais da revolução socialista na
América Latina (tão diversos dos outros modelos “clássicos”, já conhecidos).
Por outro lado, estão acumulando novos conhecimentos sobre a estrutura e a
dinâmica do sistema de classe sob o capitalismo dependente, ou seja,
conhecimentos que constituirão a base para uma teoria viável da revolução
socialista na América Latina.
Ambos os tipos de aprendizagem e de pensamentos revolucionários são muito
importantes para esses círculos da intelligentsia. Isso porque eles não irão
concentrar os seus esforços exclusivamente em uma oposição estreita e
superficial contra os regimes autoritários militares: o alvo de seus ataques será a
tirania de classe, produzida por uma revolução burguesa permanentemente
abortiva, incapaz de atingir os caminhos e os fins de um desenvolvimento
capitalista autossustentado e relativamente autônomo. Enquanto os regimes
autoritários militares podem se tornar instrumentais para outros intentos
políticos, sob condições históricas diversas, a influência política de uma
intelligentsia verdadeiramente revolucionária também pode contribuir para uma
percepção melhor da realidade histórica e para a sua transformação social pelo
comportamento revolucionário da massa. Esse é, talvez, o papel político
específico de uma autêntica intelligentsia, que se ache disposta a participar do
destino social e das lutas de povos impiedosamente brutalizados.
Apesar do meu envolvimento pessoal e de minhas inclinações políticas ou
ideológicas explícitas, tentei traçar uma perspectiva objetiva da situação do
intelectual diante dos golpes de Estado militares e da militarização do poder. Por
essa razão, todas as polarizações possíveis ou em potencial dos papéis políticos
dos intelectuais foram consideradas, seja em termos de defensores ou de
opositores dos regimes autoritários militares. Não obstante, a intelligentsia
mereceu maior atenção. A razão de tal ênfase é fácil de se entender. Um estudo
sociológico engajado desse fenômeno deveria ser não só uma tentativa de
caracterizaçao empírica e de explicação teórica, mas também, acima de tudo,
uma análise das condições através das quais a ordem social, que gerou a
necessidade histórica de coisas como a tirania de classe e (em consequência) os
regimes autoritários militares, pode ser destruída. A intelligentsia encontra-se, ao
mesmo tempo, sob a maior pressão e no centro da oposição política a tal ordem
social. Seus papéis políticos ativos, em seus aspectos negativos (como negação
daquela ordem social), e em seus aspectos positivos (como afirmação de uma
ordem social igualitária e democrática), exigiram atenção cuidadosa. Não só
porque ela compreende os “rebeldes responsáveis”, mas porque ela está tentando
se unir à maioria silenciosa dos pobres e oprimidos, para a construção de um
novo tipo de sociedade.
CAPÍTULO 4

A UNIVERSIDADE
EM UMA SOCIEDADE EM
DESENVOLVIMENTO
NOTA EXPLICATIVA

ESTE ENSAIO FOI ESCRITO em 1966 e destinava-se a um livro sobre A universidade
na América Latina, organizado por Joseph Maier e Richard W. Weatherhead.[55]
Cabia-me discutir algumas relações da situação do ensino superior e da
organização da universidade com a transformação da sociedade circundante.
Outros temas ficaram a cargo de autores diferentes, o que explica a sua
negligência ou localização muito sumária no presente trabalho.
É obvio que os dados empíricos se referem aos materiais que me eram
acessíveis no Brasil até 1966. A atualização do quadro de referência empírica
está, naturalmente, fora de cogitações. Isso implicaria a redação de um trabalho
novo. O tópico 2, sobre o que se poderia chamar de “a universidade tradicional e
sua transformação”, não exigiria qualquer alteração. Conviria agregar à leitura,
em particular, um livro de José Carlos Mariátegui (Sete ensaios de interpretação
da realidade peruana. Tradução de S. O. de Preitas e C. Lagrasta. São Paulo:
Alfa-Omega, 1975, pp. 95-105), recém-publicado em português (não só para o
leitor avaliar por si próprio o atraso com que o movimento de reforma
universitária se desencadeia no Brasil; também para que ele tome contato com a
amplitude pedagógica, intelectual e política daquele movimento na América
Espanhola da década de 1920). É com relação ao tópico 3 que os dados que
servem de base à análise envelheceram. Todavia, a técnica analítica (que
constitui uma parte importante do trabalho) mantém sua atualidade; ela abriu
margem a reflexões que ainda hoje são úteis e que, por sua vez, não perderam
consistência, quando se considera o período ao qual se aplicavam. A alteração da
posição do Brasil, naquele quadro global, se fez mais quantitativamente que
qualitativamente (veja-se F. Fernandes. A universidade brasileira: reforma ou
revolução? São Paulo: Alfa-Omega, 1975, esp. pp. 33-37). Pela natureza do
assunto, o tópico 4 deveria ter envelhecido, pois as relações entre universidade e
desenvolvimento se alteraram, em virtude da expansão do capitalismo
monopolista. Não obstante, a contrarrevolução, que eclodiu em todos os países
nos quais a “democracia burguesa” parecia prestes a consolidar-se e expandir-se,
abortou alterações de maior significado. O ensaio, que pareceu “pessimista” a
vários colegas que o leram (inclusive com referência às expectativas reformistas
e revolucionárias despertadas pela rebelião da juventude), hoje pode ser avaliado
como objetivamente crítico (evidenciando que o autor não se curvou às suas
esperanças como e enquanto socialista militante). Em seu livro acima citado se
encontra matéria para aprofundar as reflexões com material mais recente (esp.
caps. 3, 4, 6 e 8). Não teria propósito atualizar a bibliografia utilizada. Todavia,
pelo menos alguns poucos livros merecem ser salientados: Darcy Ribeiro. A
universidade necessária (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969), La universidad
peruana (Lima: CENTRO, 1974); Tomás A. Vasconi e Inés Reca.
Modernización y crisis en la universidad latinoamericana (Santiago: CESO,
1971); François Bourricaud. La universidad a la deriva (Caracas: Fundación
Eugenio Mendoza, 1971); Huascar Taborga. Mito y realidad de la universidad
boliviana (La Paz: Cochabamba, 1970); Marialice M. Foracchi. A juventude na
sociedade moderna (São Paulo: Pioneira, 1972). É impraticável fazer uma
atualização da bibliografia sobre o papel da juventude radical e dos movimentos
estudantis. Pelo menos os seguintes artigos devem ser mencionados, como ponto
de partida: Marialice Mencarini Foracchi. “Ideologia estudantil e sociedade
dependente” (Revista Mexicana de Sociologia, vol. XXXI, nº 3, 1969) e
“Estudante e política no Brasil” (Aportes, Paris, nº 7, jan. 1968); Ian Weinberg e
Kenneth N. Walker. “Student politics and political systems” (The American
Journal of Sociology, vol. 75, jul. 1969); Ted Goertzel, “American imperialism
and the Brazilian student movement” (Youth & Society, vol. 6, nº 2, 1974). Como
um marco na descrição da violência na repressão do inconformismo estudantil:
Salvador Hernández, El PRI y el movimiento estudantil de 1968 (México: El
Caballito, 1971).
A universidade sempre esteve em relação tensa com os estratos dominantes e
com o obscurantismo na América Latina. Mesmo a “universidade tradicional”
não escapou à incompreensão e a algumas represálias, que certas vezes atingiram
seriamente os elementos mais representativos do corpo docente ou as tentativas
mais ousadas dos estudantes. No entanto, as crises que se inauguram no após-
1930 e, em especial, as repercussões da chamada “guerra fria” no continente,
antes e particularmente depois da revolução cubana, expuseram a universidade
latino-americana a formas sistemáticas e institucionalizadas de repressão e de
opressão, malgrado as tendências conservadoras do corpo docente e sua
propensão suicida à capitulação passiva. Como consequência, a fermentação em
processo no meio estudantil e entre os intelectuais mais esclarecidos (e mais ou
menos radicais) tornou-se um capítulo da ultraviolência, sendo sufocada no
nascedouro. Sempre me coloquei à frente dos que acham que a função do
intelectual consiste em negar a ordem, em nome do pensamento crítico e das
forças de transformação revolucionária da sociedade de classes. Se esses temas
não comparecem na presente discussão ou só aparecem em termos de certas
conexões da mudança social com a seleção das funções sociais construtivas da
universidade, isso se deve aos aspectos do assunto que me cabia abordar. Minha
participação no movimento da reforma universitária iria intensificar-se e
radicalizar-se somente em 1967 e 1968, alterando toda a minha perspectiva do
assunto. O ensaio, como um todo, no entanto, não foge a tudo que tenho tentado
fazer de minha vida, em constante confrontação com o pensamento conservador
e o controle externo da universidade.
F.F.
1º de setembro de 1975.
INTRODUÇÃO

A AMÉRICA LATINA não é um todo homogêneo. Nem econômica, nem social,


nem culturalmente se poderia falar numa “unidade histórica básica” das
diferentes sociedades nacionais, que constituem o “mundo latino-americano”.
Em conjunto, como sucede com o “mundo europeu”, o “mundo africano” ou o
“mundo asiático”, ao se pensar sobre a América Latina como um todo fazemos
uma simplificação, sobrepondo certas semelhanças fundamentais a outras tantas
diferenças, que não são menos fundamentais.
Se fizéssemos um balanço crítico, as semelhanças e as diferenças não se
compensariam nem se neutralizariam. Ao concretizar seu “destino nacional”,
cada sociedade latino-americana forjou algo que não pode ser diluído no
patrimônio comum, embora lance nele suas raízes. Por conseguinte, cada
sociedade nacional possui a “sua” ou as “suas” universidades e não pretendemos
omitir esse fato. Em termos de organização, funcionamento e valores tais
universidades dificilmente poderiam ser reduzidas a uma mesma realidade, sem
perderem o que as caracteriza nos respectivos cenários nacionais e o que lhes dá
o vigor que explica, a um tempo, as suas grandezas e as suas misérias.
Não obstante, vários fatores de natureza histórica e sociocultural dão sentido e
justificam uma discussão integrativa, desde que se tenha em conta que tal
discussão deverá ser meramente preliminar e exploratória. No estado atual dos
nossos conhecimentos sobre a América Latina é inviável proceder a análises
comparadas verdadeiramente específicas e rigorosas. Isso não impede que se
tente uma espécie de “diagnóstico da situação global”, de caráter abstrato e
geral, com fundamento naqueles fatores e em razões analíticas que aconselhem a
ignorar as diferenças que não sejam relevantes para o diagnóstico.
Atendo-nos ao essencial, três são os fatores que podem justificar tal intento
com referência às conexões porventura existentes entre universidade e
desenvolvimento. Primeiro, há um elemento que, se não é propriamente
homogeneizador, pelo menos cria certa uniformidade histórico-cultural. Trata-se
do padrão de civilização vigente e de suas tendências de implantação e de
evolução nas sociedades nacionais da região. Através da conquista, da
colonização e dos ideais políticos de emancipação nacional, os diferentes países
latino-americanos assimilaram a civilização ocidental moderna e desenvolveram-
se, organizatória e estruturalmente, em função de seus padrões de vida
econômica, social e política. Por esse motivo, em todos eles a universidade
responde a necessidades psicológicas, sociais e culturais altamente similares e
tende a dar a mesma contribuição fundamental ao equilíbrio da ordem social ou
à sua evolução histórica. Segundo, malgrado seu êxito relativo na absorção e na
expansão da civilização ocidental moderna, em todos esses países os efeitos do
passado colonial e da persistente dependência econômica diante do exterior
conduziram a uma escassez crônica de recursos materiais, financeiros e
humanos, que geraram e continuam a gerar dificuldades por assim dizer típicas
na esfera cultural do desenvolvimento econômico, social e político. Em
consequência, embora a intensidade dos sucessos e dos malogros marcantes
sejam variáveis, todos os países se defrontam com dilemas educacionais muito
parecidos e com problemas universitários análogos. Terceiro, os modelos
institucionais vigentes, particularmente no setor educacional e com respeito ao
ensino universitário, possuem as mesmas origens e sofrem os mesmos percalços.
Extraídos inicialmente do estoque cultural ibérico, sofreram renovações durante
o ciclo da emancipação política (sob a predominância da influência francesa,
ocasionalmente substituída ou suplementada pela influência alemã ou inglesa) e
recebem, agora, o impacto da posição hegemônica dos Estados Unidos. Em
todos os casos, as instituições universitárias transplantadas tiveram de adaptar-
se, estrutural e dinamicamente, a situações histórico-sociais que selecionaram
positivamente apenas algumas de suas funções essenciais (aquelas que fossem
compatíveis com o estilo social de vida predominante). Essa circunstância
histórica mas repetitiva limitou, reconhecidamente, as potencialidades
construtivas da educação escolarizada (inclusive e principalmente ao nível do
ensino superior) e restringiu o alcance de sua contribuição positiva para o
desenvolvimento econômico e sociocultural.
Essa breve enumeração sugere, por sua vez, que a análise sociológica do tema
corre o risco, ao concentrar-se nos elementos comuns, de desembocar em um
quadro de “realismo pessimista”. As limitações e as dificuldades avultam sobre
as realizações produtivas e as facilidades. Isso nos aconselha a deixar patente
que não compartilhamos de nenhuma espécie de negativismo ou de derrotismo,
na apreciação dos dilemas econômicos, sociais e culturais da América Latina.
No que concerne aos seus problemas educacionais, pensamos não só que eles
são normais, no melhor sentido sociológico dessa noção. Estamos convictos de
que eles poderão e deverão ser resolvidos gradualmente, dadas certas condições
econômicas, sociais e políticas que os diferentes países latino-americanos
ganharão, progressivamente, por vias capitalistas ou socialistas.
Em nosso entender, a herança cultural recebida da Europa possui dois aspectos
contrastantes. De um lado, ela foi altamente vantajosa, compensadora e
estimulante, pois forneceu aos latino-americanos o mais alto patamar
civilizatório alcançado pelo “homem moderno”. Contudo, o fato de essa herança
cultural carecer de profunda e complexa adaptação às condições materiais e
morais de vida existentes na região, mais ou menos impróprias aos desígnios
criadores do homem como “portador de cultura”, ocasionou problemas de
dinâmica cultural que ainda não foram suficientemente investigados. O homem
desgastou uma grande parcela de suas energias e de sua capacidade inventiva
tentando criar condições para a mera preservação de sua herança cultural. No
fundo, o que se conseguiu, ao longo de uma evolução secular, representa um
marco na história cultural da humanidade; e merece ser avaliado como o
principal feito da “expansão do mundo ocidental moderno”, no que tange a essa
parte do Novo Mundo.
Essas reflexões se aplicam especialmente às aspirações educacionais, aos
padrões de socialização escolarizada e às instituições de ensino superior. A esse
respeito, seria recomendável e útil que se abandonasse o vezo de se
estabelecerem confrontos superficiais entre os avanços das nações adiantadas da
Europa ou dos Estados Unidos com os países da América Latina. O fato de
aquelas aspirações, padrões e instituições terem vingado, adquirindo condições
locais ou regionais de autodesenvolvimento e de aperfeiçoamento constante, é
um índice que fala por si mesmo. O homem não só venceu a adversidade.
Logrou plantar profundamente as raízes mais delicadas e complexas de sua
civilização nas árduas e toscas condições de existência com que se defrontava.
Não só ficou fiel a um ideal de vida e às suas implicações educacionais. Ganhou,
por esse caminho, o único meio pelo qual poderia converter-se em senhor dos
processos civilizatórios e lançar-se, com o correr do tempo, à conquista do
futuro.
O critério de exposição adotado prende-se à natureza da análise, que concentra
a atenção sobre certos aspectos comuns, que podem ser abstraídos sem perder
seu significado descritivo e interpretativo do ponto de vista sociológico. Todavia,
ele também se recomenda em termos de considerações empíricas, pois a
documentação acessível ainda não é suficiente para dar margem a tentativas de
síntese mais ambiciosas, especialmente no plano teórico. Na verdade, não
pretendemos outra coisa senão projetar o leitor dentro de um “logos cultural”.
Por isso, procuramos caracterizá-lo, com o rigor possível, através de atributos ou
de tendências mais conhecidos atualmente, com a esperança de que a
bibliografia disponível (em parte resumida no fim deste livro) possa servir como
ponto de partida para esclarecer a sua curiosidade e aprofundar indagações que
não podiam ser feitas nos limites da presente discussão.
A UNIVERSIDADE LATINO AMERICANA
E SEU CONTEXTO HISTÓRICO SOCIAL

AS INSTITUIÇÕES MAIS ANTIGAS, devotadas ao ensino superior, na América Latina


(algumas vezes organizadas como “seminários”, “escolas” ou “faculdades”,
outras como “universidades”, no mundo colonial ou depois da emancipação
política),[56] têm sido submetidas a uma crítica implacável, mais passional e
indiscriminada que propriamente realista e relativista. O teor ultrassevero das
críticas explica-se facilmente. Elas surgiram numa época em que a organização e
o rendimento daquelas instituições estavam superados, ou seja, em que os seus
modelos estavam condenados pelas exigências da situação, embora isso não
fosse geralmente reconhecido e aceito. Principalmente ao longo das duas
primeiras décadas do século XX, em que o problema da reforma universitária se
impõe na escala de movimento social, até a década de 1930, em que as
influências da pedagogia moderna atingiram o seu ápice, a crítica negativa e
violenta da antiga universidade adquire o sentido de um estilo de pensamento e
de ação. Os analistas estrangeiros reforçaram essa tendência, na medida em que
examinavam o ensino superior latino-americano sem procurar as causas
histórico-sociais e econômicas de suas insuficiências ou deficiências e em que
negligenciavam, generosamente, a existência de males análogos nos países que
contavam como doadores dos modelos vigentes de ensino superior. Se fizessem
uma comparação rigorosa, teriam descoberto que, na Europa, as limitações
apontadas também existiam, ainda que em outras proporções, e que seus efeitos
negativos não eram sanados através da estrutura e funcionamento das
instituições de ensino superior, mas pelo modo através do qual a sociedade
ambiente aproveitava o talento e a contribuição positiva da universidade.
O fato é que se chegou a uma imagem da antiga universidade latino-
americana que constitui uma distorção e uma aberração, qualquer que seja a
parcela de verdade contida nas proposições críticas mais ou menos objetivas.
Não podemos dar atenção ao processo intelectual pelo qual se chegou a essa
imagem, nem discutir o significado e as funções que ele preencheu,
construtivamente, na renovação do seu objeto. No entanto, é preciso que
comecemos por assinalar a sua existência, pois isso é indispensável para que se
possa compreender, adequadamente, que as instituições de ensino superior da
América Latina nunca estiveram dissociadas dos contextos histórico-sociais em
que se formaram e nos quais evoluíram. As suas características, que passaram a
ser impugnadas pelos setores mais avançados do corpo docente, pelos
intelectuais preeminentes e pelos estudantes, provinham em larga parte do
condicionamento do meio socioeconômico e cultural e tinham muito que ver
com as atitudes de autocrítica e de renovação, sustentadas pelos movimentos de
“autonomia universitária”. Se elas não possuíssem nenhuma dimensão positiva,
é claro, o bloqueio da percepção crítica e das iniciativas inovadoras seria total; e
o impasse obrigaria a superar-se a situação pela criação de novas instituições (e
não pela reforma das antigas).
Isso posto, parece evidente que adotamos uma perspectiva relativista e
compreensiva, diante da formação e da evolução das escolas superiores,
faculdades e universidades latino-americanas. As conclusões da análise efetuada
não permitem esclarecer, de modo específico, quais foram as influências
qualitativas e quantitativas dessas instituições na transformação a largo prazo das
sociedades de que faziam parte. Que elas exerceram tais influências é patente,
como se verá em seguida. Ao que parece, porém, as influências de maior
magnitude ou significado se deram, em nível histórico ou em nível sociocultural,
sob a forma de causação circular e torna-se impraticável dizer onde começa ou
onde termina a contribuição da universidade para a alteração dos costumes, a
organização da mentalidade das “pessoas cultas” ou dos “notáveis” e a
graduação da “revolução dentro da ordem”, que se desenrolou em todos os
países depois da emancipação política e, principalmente, da consolidação dos
estados nacionais independentes. Todavia, o aspecto reverso, pelo qual as
transformações do meio econômico, social e político repercutiram na
composição, no acesso, no funcionamento e na melhoria progressiva da
universidade, parece ser mais nítido e inquestionável. Apesar das técnicas sutis
ou grosseiras de resistência às inovações, a universidade latino-americana
revelou uma notável maleabilidade, o que facilitou os mecanismos mais ou
menos dramáticos de autocrítica e de autorrenovação. O que fornece aparentes
evidências em contrário — a lentidão do esforço de mudança; a falta de
objetivos precisos e de eficácia nos propósitos renovadores; a animosidade dos
círculos letrados conservadores, sejam ou não universitários; a descontinuidade
dos programas de renovação encetados etc. — não significa, em termos
sociológicos, “rigidez”, “imobilismo” ou “incapacidade de mudança”. Antes de
fazer-se um diagnóstico judicativo, deve-se proceder a uma avaliação rigorosa
das relações entre meios e fins: as influências inovadoras teriam sido bastante
fortes e persistentes para atingir os objetivos proclamados de “reforma
universitária”? A inércia apenas vingou e venceu onde tais influências
revelaram-se prematuras, frágeis e incongruentes. Nesse caso, o que entra em
jogo são as potencialidades materiais, intelectuais e humanas do meio social e
não a estrutura intrínseca das universidades e o poder de autodeterminação do
pessoal que elas envolvem. Em resumo, ao que parece as universidades
acompanharam os processos de transformação do contexto histórico-social. Por
vezes, elas desempenharam funções construtivas naqueles processos e, se aqui
ou ali aparecem exemplos em contrário, eles devem ser devidamente
interpretados como a exceção que confirma a regra.
A primeira e principal fonte de confusão, na análise da antiga universidade
(ou escola superior e faculdade), consiste na sua alegada função de mera
agência de difusão de conhecimentos e de técnicas, elaborados originalmente no
exterior. Outros caracteres, postos em relevo, dizem respeito à sua estrutura
fechada (pois era acessível a reduzido número de pretendentes), ao seu teor
enciclopédico, pseudo-humanístico e de segunda mão (pelo congestionamento
da erudição de superfície), à natureza autocrática e verbalista do ensino (em
virtude do princípio do magister dixit), e, por fim, ao imobilismo da própria
instituição (que não entraria, como tal, em interação plástica com os dilemas
humanos do seu meio social e intelectual). Todas essas críticas possuem algum
fundamento. Mas, cabe perguntar-se se, no contexto histórico da sociedade
colonial e no contexto histórico da sociedade nacional emergente, o ensino
superior poderia responder a outros requisitos organizatórios, tanto estruturais
quanto funcionais. Na verdade, a antiga universidade atendia, por sua
organização, funcionamento e filosofia pedagógica, às necessidades intelectuais
do ambiente, aos valores educacionais que resultavam do estilo de vida social
dominante e ao modo pelo qual a mudança institucional se concretizava
historicamente. Todo o processo de absorção cultural, nas duas épocas históricas
em questão, era regulado segundo as regras e os mecanismos da modernização
tipicamente “colonial” ou dependente. Tratava-se, sobretudo, de um processo de
transferência maciça e de assimilação compacta de técnicas sociais, valores e
instituições impostos pela civilização, através de interesses e controles
econômicos, sociais e políticos das metrópoles (no período colonial) e das
nações que lançaram as bases do imperialismo moderno (no período nacional).
Em ambos os contextos histórico-sociais, portanto, cabia às instituições de
ensino superior a função que preencheram. Elas deviam ser e operar como uma
ponte entre as colônias ou as sociedades nacionais emergentes e o “mundo
civilizado” europeu. O que se requeria delas não era que fossem núcleos de
produção de saber original e centros de invenção criadora. Mas, que elas
organizassem e mantivessem o fluxo mínimo de conhecimentos, técnicas sociais
e valores, do qual dependia: a implantação e o florescimento da “civilização
ocidental” no Novo Mundo; a preparação das elites de uma sociedade
estratificada em castas e estamentos; a persistência e o refinamento dos padrões
de “cultura letrada”, que podiam ser cultivados e revalorizados socialmente.
A própria organização econômica dessa sociedade, vinculada de forma
heteronômica às Metrópoles ou às Nações europeias que controlavam o mercado
mundial, fazia com que os recursos destinados à educação fossem demasiado
limitados (mesmo em termos das necessidades educacionais de uma ordem
social senhorial e para manter-se um “ensino para poucos”). Tanto sob o antigo
sistema colonial, quanto sob o neocolonialismo, grande parte do excedente
econômico era canalizada normalmente para fora, para alimentar o crescimento
econômico e o desenvolvimento sociocultural das metrópoles ou das nações
europeias que detinham o controle do comércio mundial. Em consequência, os
países da América Latina não dispunham de condições materiais e sociais para
expandirem a “civilização ocidental” segundo os padrões europeus. Estes
podiam ser imitados formalmente, mas sem um intenso crescimento econômico
e um desenvolvimento sociocultural paralelo jamais seria possível explorar
plenamente as potencialidades funcionais das instituições importadas (inclusive
na esfera da educação escolarizada e, dentro dela, principalmente com referência
ao ensino superior, que só produz rendimentos efetivos a longo prazo). Se as
instituições escolares conheceram alguma expansão e atingiram certos padrões
mínimos de qualidade e eficácia, para os limitados fins mencionados, isso se
deve ao fato de que a especialização profissional e técnica se incluía entre as
necessidades sociais prementes. Em particular depois da emancipação política e
da implantação de estados nacionais independentes, era preciso formar
intelectuais capazes de lidar com certos problemas práticos, dos quais dependia o
funcionamento normal da economia, do próprio Estado nacional e da
administração pública, e das instituições que asseguravam às elites e a seus
estratos sociais os padrões de conforto e de segurança a que estavam
acostumadas. Todavia, os problemas práticos que surgiam nesses níveis não
requeriam fortes ou complicados processos de invenção cultural. Na época
colonial ou na época da emancipação nacional e da consolidação do Estado
nacional independente, o grosso desses problemas podia ser resolvido através de
conhecimentos, técnicas sociais e valores incorporados à herança cultural
transplantada ou transplantável. As habilidades ou manipulações novas
apareciam mais na área de adaptação desses conhecimentos, técnicas e valores às
situações nas quais emergiam e deviam ser resolvidos os problemas. Por isso, as
escolas (inclusive e principalmente as escolas superiores) não podiam
encarregar-se, sozinhas, da socialização completa dos aprendizes. O tirocínio
requerido para formar-se o perito, levando-se em conta a preparação formal e a
habilidade efetiva, obrigava a amplas combinações entre um ensino por assim
dizer informativo e o amadurecimento por meio do uso das informações
recebidas em condições práticas. Esse aspecto tem sido negligenciado, como se a
antiga universidade se destinasse a preencher, apenas, as funções reguladoras de
um rito de passagem: ao receber seu diploma, o “bacharel” estaria nobilitado e
em plena posse dos direitos conferidos pelas profissões liberais. Embora o título
possuísse o significado de um símbolo e esse símbolo fosse, de fato, nobilitante,
o seu prestígio nascia da posição dos seus portadores na estrutura da sociedade.
Só mais tarde, e como um dos efeitos reativos dessa conexão, é que ele passou a
ser nobilitante independentemente do monopólio do poder e do prestígio social
pelos estamentos dominantes. O essencial, pois, não era o título. Mas, a
qualificação para iniciar a parte prática da aprendizagem, por meio da qual o
aprendiz absorvia os “segredos da profissão” e, ao mesmo tempo, obtinha
condições fluidas de comunicação mais profunda com os avanços de sua
profissão ou da civilização no exterior e adquiria os papéis que possibilitariam a
iniciação na “arte de dirigir-se”, como parte de uma elite dominante.
Só existe um critério para avaliar-se até que ponto esse tipo de universidade
(ou de escola superior) preenchia a sua função “colonizadora”, “civilizadora”,
“elitista” e “aristocratizante”, à qual se associou um ideal espiritualista e
humanístico, de natureza consumidora, da “cultura letrada”: ele consiste em
relacionarem-se os desígnios de tal ensino superior com as realizações dos
homens que se formaram sob sua inspiração. Se se fizer uma indagação dessa
espécie, a eficácia da antiga universidade (ou escola superior) patenteia-se,
claramente, em três direções diferentes (nos limites, naturalmente, das
exigências ou das necessidades socioculturais dos seus contextos históricos).
Primeiro, foi através dela que se formaram as primeiras gerações que lutaram
contra o sistema colonial, organizaram o Estado nacional independente e
lograram converter os estamentos privilegiados das ex-colônias em aristocracias.
Pode-se pôr em dúvida muitos dos valores e ideais dessas gerações e o seu
liberalismo era antes uma filosofia de igualdade social entre privilegiados que
um autêntico rebento democrático. Mas, é inegável que conseguiram, em
condições tumultuosas, contraditórias e difíceis, um ritmo constante de
modernização progressiva de seus países, em todos os níveis da vida social e da
cultura. Segundo, dada a correlação apontada, entre estrutura da sociedade
global, acesso à universidade e sentido técnico-profissional do ensino superior,
as instituições que transmitiam esse ensino possuíam uma ligação dinâmica com
a constituição e a preservação do padrão de equilíbrio requerido pela ordem
social vigente. Semelhante conexão imprimia um caráter conservador à antiga
universidade, já que os interesses econômicos, sociais e políticos, que definiam
esse padrão de equilíbrio, emanavam dos estamentos sociais dominantes.
Entretanto, o pensamento conservador, principalmente depois da emancipação
política e da consolidação do Estado nacional independente, apresentava grande
fluidez e não era avesso à mudança. Como a posição daqueles estamentos na
estrutura de poder não era nem podia ser ameaçada por pretensões
revolucionárias de outros círculos sociais, o liberalismo econômico, político e
cultural, embora pervertido em sua essência, representava mais que uma simples
fachada. Especialmente em matérias que interessavam às elites dos estamentos
dominantes, ele inspirava ou suscitava variados processos de modernização.
Terceiro, no nível especificamente intelectual, o saber ou era ostentatório, ou
precisava demonstrar sua eficácia no plano técnico-profissional. Limitando-nos à
última alternativa, é claro que não foi a antiga universidade que impôs tal
critério de reconhecimento de valor do saber à sociedade. Ao contrário, foi esta
que modelou a universidade para produzir os tipos de letrados, de literatti e de
homens de saber de que carecia. O advogado, o médico e o engenheiro, que se
formavam e socializavam sob o clima de excessiva valorização e de nobilitação
de suas profissões, tendiam a expandir a orientação especificamente técnico-
profissional do saber proporcionado por suas respectivas “ciências”. A
“pesquisa” tinha escassa significação para eles, não lhes importando a não ser
como meio rudimentar de estabelecer ou verificar o diagnóstico de uma situação
prática. Por isso, ela não chegava a possuir, normalmente, qualquer envergadura,
nem mesmo como “pesquisa tecnológica”, e reduzia-se a uma auxiliar da razão
em manipulações de natureza técnico-profissional. Contudo, levando-se em
conta que as sociedades nacionais emergentes estavam empenhadas em
intensificar determinados processos de modernização econômica, social e
política, as atividades práticas assim desenvolvidas não eram destituídas de
amplo significado social. Doutro lado, no nível indicado, as formas de saber
vinculadas à advocacia, à medicina e à engenharia permitiam lidar com os
problemas práticos em termos de equilíbrio estático (pouco importando se as
ficções que presidiam à sua definição procediam do “sistema legal”, do
“organismo” ou do “maquinismo”). Essa circunstância garante, indiretamente e
pela base, uma grande conformidade entre o horizonte intelectual dos letrados-
profissionais, dos literatti e dos homens de saber (ou “notáveis”), formados pela
universidade (ou escola superior), e as orientações liberal-conservadoras
predominantes na sociedade global. A inteligência podia usufruir e beneficiar-se
de uma consagração honorífica e, ao mesmo tempo, realizar suas tarefas
intelectuais ou suas atividades criadoras sem desafiar interesses ou ideologias
dos estamentos sociais dominantes e sem envolver-se em conflitos estruturais
com a ordem social vigente.
A discussão precedente sugere duas coisas, que são essenciais para
caracterizar e situar o dilema universitário latino-americano. De um lado, os
modelos importados de organização do ensino superior possuíam certas
limitações pedagógicas bem conhecidas, que já foram patenteadas com
referência aos próprios países europeus, em que se originaram. Não obstante, é
evidente que suas potencialidades educacionais e intelectuais apenas chegaram a
ser exploradas e mobilizadas de maneira muito incompleta e superficial na
América Latina. Isso indica que seus propalados “defeitos intrínsecos” possuem
menor importância, para explicar sociologicamente as referidas limitações, do
que se imagina. De outro lado, o fator de presumível “baixo rendimento” dado
por aqueles modelos também parece claro. Suas potencialidades educacionais e
intelectuais nunca chegaram a ser devidamente exploradas e mobilizadas, porque
a sociedade inclusiva não lhes ofereceu bases materiais e socioculturais
adequadas, além de utilizar os seus produtos (e o talento em geral) de forma
visivelmente contrafeita e inconsistente. Portanto, foram limitações e
inconsistências externas às instituições de ensino superior que forneceram
campo propício à exacerbação dos mencionados “defeitos intrínsecos”,
agravando os seus efeitos diretos contraproducentes e gerando os conhecidos
caracteres negativos da antiga universidade latino-americana.
Essa conclusão possui enorme interesse sociológico, na medida em que a
evolução da nova universidade[57] iria defrontar-se com as mesmas fontes de
redução de sua eficácia e de sua capacidade de expansão. Ao que parece, o
dilema universitário latino-americano possui uma origem histórica (e não uma
origem puramente cultural). O grau de modernização relativa do sistema
institucional é mais avançado do que os graus paralelos ou concomitantes de
crescimento econômico e de desenvolvimento social. Essa circunstância explica-
se facilmente. Os países da região participam direta e ativamente do ciclo
cultural da “civilização ocidental moderna” e das tendências mais significativas
de sua renovação no exterior. No entanto, sua economia dependente e suas
estruturas sociais anulam ou reduzem tais vantagens, fazendo com que, no
conjunto, o progresso na absorção das instituições e dos seus valores represente
muito pouco para a intensificação da mudança progressiva global. A escassez de
recursos materiais e financeiros, bem como o estilo imperante de utilização
social dos recursos humanos disponíveis e de aproveitamento social do talento
acarretam uma espécie de esvaziamento histórico das instituições. Elas passam a
render, naturalmente, não em função de suas potencialidades ideais, pressupostas
nos modelos institucionais importados; mas em função do modo pelo qual a
sociedade inclusiva relaciona, estrutural e funcionalmente, tais potencialidades
com suas necessidades socioculturais. Ou seja, do modo pelo qual a sociedade
inclusiva mobiliza e explora socialmente as referidas potencialidades,
dinamizando-as como fator de autodesenvolvimento.
A época histórica mais recente permite estabelecer uma contraprova dessa
interpretação. Durante a última metade do século XIX, mas principalmente no
último quartel desse século, o capitalismo começa a converter-se numa realidade
histórica na maioria dos países da América Latina. Todavia, as condições que
cercaram essa transformação imprimiram à “revolução burguesa” uma forma que
pode ser considerada típica das sociedades capitalistas subdesenvolvidas: à
integração do capitalismo comercial e financeiro seguiu-se um constante e
relativamente intenso desenvolvimento urbano-industrial, sem que se tornasse
possível extinguir estruturas socioeconômicas pré-capitalistas e superar a
posição heteronômica das economias latino-americanas na organização do
mercado mundial. Em consequência, a “revolução burguesa” engendrou um
sistema capitalista diferenciado mas dependente, desembocando num impasse
permanente, que impede que o crescimento econômico opere como um fator
nacional de autonomização socioeconômica, política e cultural. Sob a égide
desse capitalismo dependente, a América Latina continuou a produzir excedente
econômico para fora, diferenciando e revitalizando, através de sua peculiar
“revolução burguesa”, os interesses internos que subordinam o seu
desenvolvimento aos dinamismos das nações capitalistas avançadas.
O que nos interessa, nesse vasto quadro, é o que sucedeu com a universidade
latino-americana. A “revolução burguesa” caracterizou-se, em todos os países,
pelas transformações que afetaram a composição e a organização da sociedade.
Ocorreu um considerável e contínuo aumento da população. A integração
nacional das economias, em bases capitalistas, provocou mudanças também
consideráveis e contínuas na distribuição da renda, do prestígio social e do
poder. Surgiram novas cidades, ampliou-se o setor urbano das populações e
nasceram as grandes metrópoles da região. Em conexão com esses fenômenos,
apareceram novos grupos sociais, embora a concentração social da riqueza e do
poder político conservasse as antigas elites em suas posições de dominação e de
liderança. A educação perdeu, aos poucos, o caráter de privilégio social e de
prerrogativa dos estamentos dominantes. Os recursos naturais, financeiros e
humanos destinados à educação sofreram, por sua vez, uma constante elevação
progressiva, embora se mostrassem cronicamente insuficientes para fazer face ao
crescimento demográfico, à proporção dos elementos jovens na população e às
expectativas de democratização das oportunidades educacionais. Sob o impacto
dos fatores quantitativos desse amplo processo de mudança estrutural, as velhas
instituições entraram em crise (e, com elas, as antigas instituições escolares).
Nesse contexto, os efeitos da modernização revelaram-se particularmente
fecundos no plano intelectual. Em um clima de tensão e de luta, as novas teorias
pedagógicas, vindas da Europa e dos Estados Unidos, permitiram aprofundar as
críticas a todo o sistema escolar, herdado do passado. Elaborou-se uma sorte de
“idealismo pedagógico”, de conteúdo pragmático-racionalista, que propunha
reformas educacionais de inegável magnitude e que definia a nova universidade
a partir de uma conjugação construtiva entre novos modelos institucionais
importados e necessidades potenciais do meio sociocultural latino-americano.
Embora o fenômeno se iniciasse no fim do século passado, foi entre a primeira
e a terceira década deste século que ele adquiriu a consistência e a qualidade de
processo histórico irreversível, nos países em que logrou vingar. No que nos
importa aqui, cumpre salientar que ele desencadeou um processo positivo de
crítica à antiga universidade (faculdade ou escola superior), propondo-se antes
as funções construtivas que as instituições de ensino superior deviam preencher,
que as mazelas das velhas instituições. Não se pretendia “destruir uma herança”,
mas superar um passado tão cheio de contingências. A contribuição positiva dos
movimentos de “autonomia” e de “reforma” universitárias dizia respeito,
portanto, ao que se devia fazer para criar-se uma universidade capaz de
preencher todas as funções normais, que ela precisaria satisfazer à luz dos
requisitos da civilização baseada na ciência e na tecnologia científica. Supunha-
se, pois, que o meio social inclusivo poderia dinamizar aquelas funções, com os
recursos materiais, financeiros e humanos acessíveis; e que ele não tolhia, por si
mesmo ou através da intromissão das forças conservadoras, a missão diretora
que a universidade deveria exercer na vida cultural e moral da sociedade. O
acesso livre às oportunidades de educação superior, só limitável pelas aptidões
efetivas dos candidatos; a alta qualidade da aprendizagem; a introdução da
pesquisa científica e tecnológica e sua associação regular ao ensino; a produção
de saber original; interdependência em condições de autonomia intelectual com
os centros estrangeiros de investigação e de ensino (e, por conseguinte, autêntica
cooperação com os centros de investigação mais avançados); a representação e a
participação dos estudantes na administração e na política universitárias; uma
vinculação dinâmica da universidade com os “problemas do Povo” e com as
“necessidades nacionais”; e uma renovação institucional bastante profunda e
eficaz para suportar tais objetivos — eis as principais reivindicações dos
movimentos.
Embora os movimentos produzissem, por si mesmos, frutos parcos e
inconstantes, seus objetivos se viram parcialmente concretizados, a largo prazo,
graças aos efeitos inevitáveis do crescimento demográfico e do desenvolvimento
socioeconômico.[58] A nova universidade firmou-se, em uns países mais, em
outros menos, mas sem atingir o êxito esperado. Não só atitudes, técnicas,
valores e estruturas tidos como “arcaicos” persistiram, dentro e fora da
universidade, afetando o seu rendimento, restringindo ou anulando a sua
autonomia, e tolhendo a sua evolução progressiva. As melhores realizações no
sentido desta evolução entraram em relativo torpor precoce, estagnaram ou
produziram efeitos incompatíveis com as esperanças mais fundadas. Ficou
patenteado que a inovação circunscrita, localizada e isolada não constitui, em si
e por si mesma, um caminho seguro para fazer-se a revolução cultural que a
criação da nova universidade pressupunha. Além disso, os diagnósticos mais
penetrantes impuseram a conclusão de que a “reforma puramente institucional” é
regulada e controlada (mesmo que os agentes do processo possuam clara
consciência da relação entre meios e fins) pelas disposições, orientações e
possibilidades do meio social circundante. Aos poucos, fatores negligenciados
ou inseridos na rede de efeitos nas reflexões pedagógicas iniciais — como a
estrutura da economia, a organização da sociedade e o funcionamento do Estado
— ganharam o centro do palco e dominaram as preocupações gerais. Descobriu-
se que uma sociedade nacional subdesenvolvida, mesmo sob o capitalismo
dependente, está sujeita a uma situação contraditória. Ela precisa da educação
escolarizada como “fator de desenvolvimento” e até de “revolução social”, tanto
para conquistar autonomia de crescimento, quanto para consolidar e fazer valer
sua soberania. Não obstante, raramente ela dispõe, pelas vias normais, dos
recursos materiais, financeiros e humanos suscetíveis de converter as mudanças
desejadas e necessárias em fator de “salto histórico”. De um lado, porque são
sociedades que não comandam o crescimento e a aplicação marginal de suas
próprias riquezas. De outro, porque são sociedades nas quais as parcelas de
riqueza, absorvidas e controladas nacionalmente, são em grande parte destruídas
de forma improdutiva, por causa de privilégios de classe arraigados e da
expansão imoderada da economia de consumo. Constatações desta espécie
despertaram educadores, políticos e administradores para o “uso racional” dos
recursos materiais, financeiros e humanos disponíveis. Dados os limites dentro
dos quais se estabelece o nível de escassez dos recursos e a gravidade dos
problemas educacionais, especialmente na esfera do ensino superior, logo se
evidenciou que esse tipo de “racionalidade possível” nunca passaria de uma
panaceia. Sem transformações profundas e persistentes da organização da
economia, da sociedade e da cultura, ele nada poderá fazer de crucial, mesmo a
longo prazo.
No marco de tais reflexões, que superam o idealismo liberal e põem em
questão o farisaísmo conservador, o problema da nova universidade se projetou
num contexto histórico-social conturbado. Enquanto a própria instituição se
deteriora lentamente, correndo o risco de repetir a sina da antiga universidade
(em alguns países), ou avança em zigue-zagues, ameaçando o próprio sentido da
“reforma universitária” e seus efeitos construtivos (em outros países), cresce e
generaliza-se a convicção de que as mudanças reais terão de ser procuradas e
conquistadas, palmo a palmo, fora da universidade. A concepção utópica, que
presidiu à primeira fase dos movimentos de “autonomia” ou de “reforma” (e
segundo a qual a nova universidade poderia emergir de mudanças institucionais
inteligentes, convertendo-se em seguida no fulcro de canalização pacífica das
alterações revolucionárias em processo), cai em crescente descrédito. Seu lugar
está sendo disputado por duas orientações de comportamento social alternativas.
A da acomodação realista, de acordo com a qual o “teto” da reforma
universitária, em sociedades subdesenvolvidas, é dado pela escassez dos
recursos e as limitações resultantes de possibilidades inevitavelmente estreitas de
utilização social construtiva das universidades. A única solução inteligente
consistiria em associações de propósitos limitados com as sociedades avançadas,
que permitiriam concretizar uma interdependência corretiva e linhas de
desenvolvimento cooperativo de grande interesse para as sociedades
subdesenvolvidas. E o da opção puramente revolucionária, que põe em primeiro
plano a transformação prévia das estruturas econômicas, sociais e políticas
existentes. Nada adiantaria mudar as universidades, se estas não possuem meios
internos e externos que as adaptem às funções que devem preencher, em nível do
ensino ou da produção de conhecimentos originais e em nível das exigências de
uma sociedade subdesenvolvida, na era da ciência e da tecnologia científica. A
primeira alternativa praticamente trai o espírito dos movimentos de reforma
universitária, pois aceita que uma estagnação relativa da nova universidade
constituiria um preço razoável para a dependência cultural crônica, em relação
ao exterior. A outra alternativa transcende aquele espírito, mas sob o preço de
pôr em segundo plano os problemas centrais da própria reforma universitária,
ofuscados por outros problemas de natureza econômica, social e política, vistos
como “estratégicos”. Isso quer dizer que a nova universidade se encontra diante
de um impasse histórico, aliás, um impasse análogo ao que pesa sobre o
capitalismo dependente. Se a história do passado remoto não se reproduzir, esse
impasse poderá ser vencido ou pela aceleração e radicalização da “revolução
burguesa” (o que significaria: “solução pelo desenvolvimento”), ou pela
destruição do próprio capitalismo (o que significaria: “solução pela revolução
social”).
Essas indicações são suficientes para sugerir que a nova universidade ainda
não superou a crise de que nasceu. Ela não mantém uma relação de equilíbrio
dinâmico com a ordem social estabelecida, malgrado as influências
conservadoras ou radicais que se debatem dentro dela. Acha-se tão dividida
quanto a sociedade inclusiva e tão impotente quanto esta para encontrar um
termo médio ou uma saída unilateral de superação das tensões. Nesse clima,
prevalecem a indecisão, a perplexidade e a frustração, como se a atividade
intelectual criadora estivesse de antemão condenada à negação de si mesma. Por
isso, os universitários (professores ou estudantes) e os intelectuais de formação
universitária (os chamados “antigos alunos”) podem percorrer qualquer dos três
caminhos que se abrem como “possibilidades históricas” diante deles: o da
estagnação relativa; o do desenvolvimento acelerado; ou o da revolução social.
Seus ajustamentos futuros dependem mais da maneira pela qual a sociedade
inclusiva equacionar historicamente essas saídas, que de convicções íntimas,
firmemente estabelecidas e rígidas, que imponham tais saídas em termos
ideológicos exclusivos — conservantistas, reformistas ou revolucionários. Este
retrato certamente define o drama que está por trás do dilema universitário
latino-americano. Como sucedeu com a antiga universidade, a nova
universidade também não é uma “instituição diretora”. Ela constitui uma
amálgama em busca de reorganização e de reintegração totais e não possui meios
para forjar por si mesma o seu destino. Aguarda, em compasso de espera, os
momentos de decisão histórica, para compor a fisionomia que deverá ter no
mundo do planejamento, da automação, da energia nuclear, das integrações
econômicas regionais e da hegemonia das superpotências.
ASPECTOS DA SITUAÇÃO ATUAL DO ENSINO SUPERIOR

A EVOLUÇÃO DA AMÉRICA LATINA, nos últimos dez anos, caracterizou-se pelo


intenso crescimento demográfico, estancamento ou baixo crescimento
econômicos (pelo menos na média dos países) e fortes tendências de
deslocamento de população (seja de áreas rurais estagnadas ou em regressão
para áreas rurais com vitalidade econômica, seja do “campo” para as médias e
grandes cidades). O sistema escolar, sob esse pano de fundo, viu-se sob duas
tensões contrárias. Uma, que nascia da pressão quantitativa, desencadeada
inexoravelmente pela “explosão demográfica” e agravada pela revolução das
expectativas educacionais e pela intensidade do movimento migratório campo-
cidade. Outra, que procedia da escassez crônica de recursos materiais e humanos
destinados à educação, frequentemente agravada pela má utilização dos fatores
existentes e por disposições mais ou menos impróprias ao estabelecimento de
políticas eficientes de democratização do ensino. Os efeitos dos processos
demográficos são aparentemente positivos. Há quem pense que eles conduziram
à deterioração dos padrões de ensino. Contudo, se eles não alcançassem
proporções “explosivas”, é duvidoso que os níveis educacionais médios,
predominantes na região, tivessem se alterado (pelo menos em suas expressões
quantitativas), de modo tão acentuado nas décadas de 1940-50 e 1950-60. As
transformações econômicas, sociais e culturais não concorreram, de fato, para
uma efetiva democratização universal do ensino. Por isso, a expansão
quantitativa das matrículas e dos níveis educacionais representa um produto
direto dos dinamismos demográficos. Doutro lado, parece evidente que o
agravamento das pressões demográficas, que começam a afetar também os
índices de participação do ensino pós-primário, e o dilema da magnitude dos
custos educacionais tendem a modificar as orientações tradicionais no uso dos
recursos materiais e humanos destinados à educação. Essa mudança, que mal se
inicia, irá contribuir, previsivelmente, para a alteração ou a proscrição de
critérios irracionais, extrapedagógicos e antidemocráticos de distribuição e
aproveitamento das oportunidades educacionais.
O quadro 4 oferece uma visão global do nível de escolaridade na América
Latina, em 1950. Sua leitura demonstra que a maior parte da população (93,1%)
incorporava-se, em média, em duas categorias: os que não tinham nenhuma
escolaridade ou menos de um ano de escolaridade; e os que contavam de 1 a 3
anos de escolaridade. Apenas 6% se incluíam nas categorias dos que possuíam
de 7 a 9 anos e de 10 a 12 anos de escolaridade. E somente 0,9% possuíam 13
anos e mais de escolaridade. Os níveis médios de escolaridade, além de muito
baixos, apresentavam forte contraste, entre as porcentagens da população global
e as da população escolarizada. O nível médio de escolaridade desta última era
exatamente o dobro da primeira (conforme o país, oscilava de duas vezes e meia
até dez vezes mais: como sucedia com o Brasil, Guatemala, El Salvador, Bolívia,
República Dominicana ou Haiti). Esse contraste sugere que a educação
escolarizada ainda constituía um privilégio social. Por sua vez, o número de
pessoas com educação pós-primária (quase 16 pessoas por 100 habitantes) era
um dos mais baixos do mundo (comparem-se as indicações fornecidas naquele
quadro sobre os Estados Unidos, o Japão e Porto Rico). Isso significa,
sociologicamente, que só ao acaso o peneiramento de tais pessoas poderia
corresponder às suas aptidões e às suas aspirações educacionais. Critérios
econômicos, sociais e provavelmente políticos decidiam o peneiramento,
especialmente aos níveis do ensino secundário, colegial e superior. Quanto a este
último, é conhecida a predominância dos estratos superiores das classes alta e
média na população universitária:[59]



A década de 1950-60, apesar da relativa adversidade econômica, parece
marcada por um crescimento relativamente considerável do sistema escolar
desses países, como evidenciam os seguintes dados:[60]


Como se pode constatar, os países que se aproximaram ou superaram essas
médias atingiram ou estão atingindo um patamar de alfabetização que lhes
permite dedicar maiores esforços ao ensino médio e superior. Ao que parece, os
objetivos centrais de mudança da política educacional voltavam-se para este
último. Mas, dados o afunilamento do sistema escolar, as avaliações sociais
dominantes e a maior acessibilidade do ensino médio, isso acarretou uma
elevação desproporcional do ensino médio (que teve a sua matrícula aumentada
em escala inesperada). Em consequência, a relação entre uma matrícula no
ensino superior e o total de matrículas correspondentes no ensino primário caiu
de 57 para 50, de 1950-60. No entanto, a mesma relação do ensino superior com
o ensino médio subiu de 6 para 7. Informações relativas a 1966 mostram, grosso
modo, como as mencionadas características estão evoluindo:[61]


Por esses dados, a uma matrícula no ensino superior, em 1966, correspondia,
aproximadamente: 42 matrículas no ensino primário; e 8 matrículas no ensino
médio. A representação percentual demonstra que, em conjunto, implantou-se
uma tendência no sentido de diminuir paulatinamente o achatamento estrutural
do sistema escolar:


A correlação entre as matrículas nos três níveis de ensino sugere que não se
processou nenhuma alteração substancial nos critérios econômicos e
socioculturais de distribuição das oportunidades educacionais. Contudo, ela
confere algum vigor à hipótese segundo a qual a pressão demográfica tem
operado como uma espécie de equivalente da influência dinâmica da
democratização do ensino. Pois uma parte considerável da população
escolarizada no nível médio não contou com suficiente fluidez no sistema
escolar para poder passar ao nível ulterior. Esse efeito poderia explicar-se pela
rigidez do ensino superior, sujeito ao critério de número clausus em alguns
países ou a crescimento moderado, por falta de recursos, em outros. Todavia, o
simples congestionamento das matrículas no ensino médio altera a concorrência
pelas oportunidades educacionais no nível imediato do ensino, introduzindo ou
aumentando a importância relativa do fator competição no rateio social das
referidas oportunidades. Isso não modifica, certamente, a qualidade de privilégio
social que caracteriza, em maior ou menor grau, o ensino médio e superior. Mas
indica claramente que, graças aos dinamismos demográficos e aos processos
socioculturais correlatos, a sociedade tende a mudar sua relação com o sistema
escolar.
Esta conclusão é deveras importante, porque sublinha que não é o sistema
escolar, em si mesmo, que se modifica em sua estrutura, em suas funções e em
seu rendimento, como condição prévia para o atendimento de parcelas
crescentemente maiores da população. Ao inverso, são as transformações do
volume e da organização da população que compelem o sistema escolar a se
abrir gradualmente à avalanche, embora mantendo seus caracteres estruturais e
funcionais “arcaicos”. A contraprova dessa interpretação é fornecida pelo fato de
que, na maioria dos países, o sistema escolar enfrenta o aumento crescente das
matrículas nos níveis do ensino médio e superior (para não se falar do ensino
primário), apenas em termos quantitativos: ele ingurgita, sem transformar-se
estrutural e dinamicamente. De modo geral, ainda não se constituíram (ou estão
em elaboração lenta) novas orientações de política educacional que permitam
passar do crescimento quantitativo para a reorganização do sistema escolar.
A discussão precedente, tomando por pano de fundo o ano de 1950 ou a
evolução ocorrida entre 1950-60 e 1966, desemboca numa evidência
melancólica. O ensino superior, embora não seja definido legalmente como
“privilégio”, na prática é monopolizado socialmente pelos estratos médios e
altos da população. Entretanto, até na prodigalização dos privilégios existe uma
hierarquia. Os quadros 1 e 2 abrem margem para muitas conjecturas fundadas a
esse respeito. É claro que países como o Brasil e o México, ou a Colômbia e o
Peru, possuem perspectivas que não se definem claramente nas estatísticas, pois
contam com potencialidades de crescimento econômico e de desenvolvimento
social que ainda não foram exploradas dentro dos limites da própria expansão do
capitalismo dependente. Todavia, nas fases de transição que estão atravessando,
devem submeter-se a penosos sacrifícios, se quiserem garantir-se tais
perspectivas. Os países que já lograram o tipo de integração econômica
permitido pelo capitalismo dependente, ao contrário, ostentam maior progresso
médio, mas, ao mesmo tempo, defrontam-se com sérias dificuldades no que
concerne à preservação e à elevação das vantagens acumuladas. Estariam nesse
caso países como a Argentina, o Uruguai ou o Chile, por exemplo. No contexto
latino-americano, somente Cuba poderá evoluir no sentido de neutralizar
influências socioeconômicas e políticas que interferem cronicamente na
evolução do sistema escolar. Infelizmente, não podemos examinar a fundo as
questões que se colocam dessa perspectiva e somos forçados a considerar as
diferenças relativas, com frequências apreciáveis, de um ângulo mais limitado,
que as dramatiza em termos do que elas representam quantitativamente, em um
momento determinado.
Uma aproximação grosseira da realidade é fornecida através do volume e
variação da matrícula na América Latina. Esse indicador é passível de críticas,
pois alguns países (como a Argentina) aceitam livremente os candidatos; outros,
como o Chile ou o Brasil, levantam barreiras à promoção ou restringem o
número de vagas. Além disso, a evasão escolar no nível do ensino superior
constitui uma realidade desoladora, mais grave naturalmente nos países em que a
transição do ensino médio ao superior é mais fácil. No entanto, as informações
comparáveis disponíveis dizem respeito à matrícula (ver quadro 2), não nos
restando outro recurso senão aproveitar os dados com o cuidado possível. Se
tomarmos os países que atingiram ou superaram a média da matrícula (em ordem
decrescente: Argentina, Uruguai, Chile, Panamá, Venezuela, Costa Rica, Cuba e
México), descobriríamos: 1º) que o aumento percentual da matrícula, no ensino
superior, neles era de 5,1 em 1960 (e não 3,0); 2º) que a variação do aumento
percentual da matrícula, com referência a 1950, neles era da ordem de 222% (e
não de 67%). Inversamente, se tomarmos os países que não atingiram a média de
matrícula (em ordem crescente da diferença negativa: Peru, Equador, Paraguai,
Colômbia, Brasil, Bolívia, República Dominicana, El Salvador, Nicarágua,
Honduras, Guatemala e Haiti), descobriríamos: 1º) que o aumento percentual da
matrícula, no ensino superior, neles era da ordem de 1,5 (e não de 3,0); 2º) que a
variação do aumento percentual da matrícula, com referência a 1950, neles foi da
ordem de 37% (e não de 67%).[62] Se se levar em conta que o aumento da taxa
anual de crescimento da população foi, neste último grupo de países, de 2,4 para
2,9 (no período 1945-55), reclamando um esforço adicional de 22% ao ano,
aproximadamente, pode-se avaliar as deficiências do seu crescimento real na
esfera considerada. Doutro lado, para romper o verdadeiro estado de estagnação
invisível em que se encontram, e atingir simplesmente a média da região, os
doze países do segundo grupo teriam de realizar um incremento adicional médio
de matrículas no ensino superior no mínimo da ordem de 100% ao ano. Se se
propusessem alcançar os níveis atuais do primeiro grupo de países, então o
referido incremento adicional médio deveria ser da ordem de 240%!
Os dados coligidos no quadro 1 oferecem uma base razoável para se entender
por que os países do primeiro grupo conseguiram alcançar, antes de 1950 ou na
década de 1950-60, condições para expandir seu ensino superior. Excetuando-se
o México e a Costa Rica, eles incluíam-se entre os países com mais de US$ 300
per capita, em 1959; excetuando-se o Panamá e Costa Rica, eles contavam com
uma população urbana igual ou superior a 50% da população total; além disso, o
que é mais importante, na América Latina, excetuando-se Costa Rica, todos
possuíam mais de 1/4 de sua população em cidades de 20.000 habitantes e mais,
embora em alguns países (Costa Rica, Venezuela, México e Panamá) a
intensificação da urbanização seja fenômeno recente (como se pode inferir da
porcentagem do crescimento urbano na década de 1950-60). Ao inverso, no
segundo grupo de países, excetuando-se a Colômbia e o Brasil, os demais
contavam com uma renda percapita inferior a US$ 250; todos apresentavam
menos de 50% de população urbana, com predominância de menos de 40%;
excetuando-se a Colômbia e o Brasil, nenhum país possuía 1/4 de sua população
em cidades de 20.000 habitantes e mais; e, com exceção da Colômbia, a
intensidade do crescimento urbano, onde ela ocorreu, evidencia mais “fuga do
campo” que outra coisa.
A correlação positiva da situação socioeconômica do primeiro grupo de países
com o desenvolvimento do ensino superior torna-se evidente, quando se
associam as condições apontadas com a variação do aumento percentual de
matrículas (conforme quadro 2). Excetuando-se Cuba, que mudou a orientação
de sua política educacional, e o Uruguai, sobre o qual não se dispõe de dados
comparáveis,[63] todos os países daquele grupo igualaram ou superaram
porcentagens de crescimento da matrícula no ensino superior que lhes
permitiriam alcançar ou manter ritmos de aumento análogos ou superiores ao da
média da região. Os avanços mais impressionantes foram feitos pela Venezuela,
México e Chile, que em 1950 não atingiam os níveis médios e os igualaram ou
ultrapassaram em 1960. Contudo, o significado vantajoso do desenvolvimento
econômico, social e cultural anterior fica ainda mais patente com os casos do
Chile, Argentina e Uruguai. Apesar do estancamento econômico (e por vezes de
crises sociais e de agruras políticas), conseguiram preservar um ritmo de
progressão constante do aumento da matrícula (o que explica a proeza do Chile,
que não é fruto da aceleração do crescimento econômico, como na Venezuela e
no México, e as tendências observadas nos outros dois países). O quadro 8
sugere que as dificuldades econômicas se refletiram nos gastos orçamentários
com a educação, tanto na Argentina, quanto no Chile. É provável, pois, que a
iniciativa privada, a ajuda externa e a racionalização do uso dos recursos
destinados à educação tenham compensado, de alguma maneira, quanto ao
ensino superior, as limitações dos recursos oficiais. A parte tomada pelos gastos
com educação nos orçamentos do México, Costa Rica e Venezuela demonstra
que os governos desses países estão participando ativamente (e com relativa
disponibilidade de recursos financeiros) da elevação do esforço educacional no
nível do ensino superior. Ao que parece, o êxito das iniciativas oficiais é
garantido pelas condições externas ao sistema escolar, as quais garantem àquelas
nações um aproveitamento construtivo do incremento de esforço educacional (o
que nem sempre se realiza com referência aos países do segundo grupo).
Os países do segundo grupo, por sua vez, comprovam que a ausência de certas
condições econômicas, socioculturais e políticas tanto dificulta ou impede a
aceleração do crescimento do ensino superior, quanto pode determinar
fenômenos bem definidos de estagnação ou de retrocesso. Aparentemente, os
casos mais dramáticos seriam os dos países que evidenciariam a última condição
(o Peru e a Bolívia, por exemplo, em 1950 superavam a média da região; em
1960 decaíram e ficaram aquém da referida média). Todavia, bem examinadas as
coisas, os casos mais dramáticos não aparecem nitidamente como tais nas
estatísticas. A razão disso é simples. O que dificulta o crescimento da educação,
no segundo grupo de países, é o clima dentro do qual o esforço educacional se vê
projetado. Os problemas educacionais são focalizados socialmente com relativa
negligência e resolvidos apenas nos limites em que sua solução vem a ser
importante para a perpetuação do statu quo. Daí resulta uma inércia cultural
crônica diante das exigências da educação, a qual reduz o esforço educacional
desses países (colocando-o, com frequência, muito abaixo do que eles poderiam
efetivamente fazer, se fosse outra a ótica usada na esfera da política
educacional). Tomando-se esta perspectiva de avaliação, todos os países do
segundo grupo ilustrariam, de um modo ou de outro, o mesmo drama comum: a
persistência, em nossos dias, de uma tradição cultural imprópria às funções que a
educação escolarizada preenche na organização da vida moderna. Entre eles,
talvez dois países (a Colômbia e o Brasil) mereçam ser tomados como casos
exemplares, na medida em que possuíam elementos para vencer a mencionada
tradição cultural ou para realizar um esforço educacional de maior amplitude, e
não o fizeram.
A Colômbia alcançara vários requisitos econômicos e sociais, que permitiriam
incluí-la, de fato, no primeiro grupo, com um pouco mais de elasticidade no uso
dos critérios descritivos empregados. Doutro lado, ostenta uma variação do
aumento percentual das matrículas no ensino superior da ordem de 100%. No
entanto, o quadro 8 deixa patente que a deliberação de intensificar o esforço
educacional não chegou a ser tão forte a ponto de conferir à educação uma alta
participação nos gastos orçamentários (de 5,3%, em 1950, passou a 9,1%, em
1960; outros países, do primeiro e do segundo grupos, privilegiaram a educação
como esfera de investimento produtiva, destinando-lhe acréscimos que
envolviam uma variação relativa superior a 9% e a 10% ou mais). Parece
evidente, pois, que um dos países da América Latina, que dispunha de condições
mais propícias para acelerar o seu esforço educacional no ensino superior, não se
impôs, como o fez o México, por exemplo, alvos suficientemente ambiciosos
para levarem ao atendimento dos mínimos médios da região. Semelhante esforço
teria exigido um aumento percentual na variação das matrículas da ordem de
234%, com claras implicações quanto à orientação programática e financeira da
política educacional.
A situação brasileira é, sob todos os aspectos, porventura mais típica da
condição do segundo grupo de países que a da Colômbia. Não só porque o
esforço educacional desenvolvido pelo Brasil, no mesmo período, é visivelmente
menor (com relação ao ensino superior e com referência à proporção dos gastos
orçamentários com a educação), mas ainda porque certos acontecimentos
políticos recentes fizeram com que ele se tornasse o principal representante do
“farisaísmo educacional” tradicionalista na América Latina. Esse farisaísmo
consiste em proclamar uma ideologia educacional de conteúdo democrático e de
significado moderno; e em desenvolver uma prática educacional que
corresponde à negação de tal ideologia. O exemplo brasileiro também é típico à
luz das implicações educacionais da militarismo. Agora está em voga,
especialmente nos Estados Unidos, uma literatura sociológica que valoriza o
sentido “racional” e “inovador” do militarismo nos países subdesenvolvidos. É
provável que, por motivos de segurança da política internacional dos Estados
Unidos, o militarismo represente, do ponto de vista norte-americano, o máximo
de progresso com o mínimo de riscos. Para os países que sofrem os golpes
militares, porém (em particular, para os países da América Latina que estão no
segundo grupo), se a ação política desencadeada não tiver ligações profundas
com movimentos civis de reconstrução da ordem legal vigente (como sucedeu
no Brasil com a revolução de 1930), o militarismo representa uma preservação
do statu quo por meios violentos (ou da presunção do uso da violência). Eles não
se dirigem apenas contra os riscos potenciais da democratização do poder:
voltam-se contra todos os símbolos ou mecanismos pelos quais a democracia
pode estabelecer-se, como aspiração social, como estilo de vida e como realidade
política. Por isso, adquirem significados e funções reacionárias, que irrompem
de forma negativa na esfera da educação. É fácil avaliar tais efeitos, no que eles
nos interessam aqui. Apesar de serem figuras de confiança do governo militarista
brasileiro (que tomou o poder em 1964), os reitores das universidades federais
do Brasil se viram compelidos a “denunciar” publicamente: 1º) que a
participação do Ministério de Educação e Cultura no orçamento da União vem
decaindo progressivamente: 11,0%, em 1965; 9,7%, em 1966; 8,7%, em 1967;
7,7%, na proposta orçamentária de 1968; 2º) que as universidades federais
receberam cortes que reduziram seus orçamentos em 37%; 3º) que a participação
das universidades federais nas dotações destinadas à educação também vem
decrescendo continuamente: 3,9%, em 1965; 3,5%, em 1966; 3,4%, em 1967;
2,8%, na proposta orçamentária de 1968.[64] Esse quadro é característico. A
educação sofre um processo de esvaziamento financeiro, como se não
constituísse uma esfera de inversão produtiva e necessária. Como, ao mesmo
tempo, as medidas simplistas vão do corte das verbas ao aumento compulsório
das matrículas, pode-se imaginar qual é o resultado final do militarismo como
ingrediente da “política educacional” dos países subdesenvolvidos.
Não obstante, já na década de 1950-60, o crescimento da matrícula no ensino
superior do Brasil estava aquém de uma política deliberada, que visasse pelo
menos equiparar o país aos progressos médios da região. O aumento alcançado
na variação percentual da matrícula representava, aproximadamente, 1/3 do
esforço que deveria ser feito para a consecução de semelhante objetivo global. O
caso brasileiro ilustra, pois, que é inerente às propensões de uma tradição
cultural conservadora moderar a expansão do ensino, contendo-a dentro de um
ritmo que permita atender, especificamente, ao aumento potencial da procura nos
estratos superiores das classes médias e altas. Os golpes militares, em vez de
destruir, fortalecem essa orientação e agravam os seus efeitos perniciosos,
exacerbando a conotação das oportunidades educacionais, no nível do ensino
médio e superior, como “privilégio de classe”. Dentro desse contexto, o ensino
superior fica permanentemente associado ao status e ao prestígio social das
élites, com o agravante de que ele não é concebido e usado como um fator de
dinamização do crescimento econômico, do desenvolvimento sociocultural, ou
do progresso da pesquisa científica e tecnológica. Mas, como um dos fatores da
estrutura social que regulam a transmissão do status e do prestígio social, de uma
geração a outra, segundo os padrões da ordem social existente e das estruturas de
poder que eles configuram. Por aí se vê que a inércia cultural relativa, que afeta
o desenvolvimento do ensino superior no segundo grupo de países, constitui um
produto crônico (e sob vários aspectos sociopático) da estrutura e funcionamento
da ordem social. Explicam-se, assim, o solapamento e a neutralização de todas
as pressões favoráveis à mudança, especialmente daquelas que afetem a
qualidade do ensino e a distribuição das oportunidades educacionais, e o
amortecimento das tendências puramente quantitativas de crescimento global do
sistema escolar. A visão tradicionalista, que organiza a percepção e a inteligência
da situação, converte o ensino superior numa barreira social e resiste tenazmente
contra a sua transformação em núcleo institucional dinâmico do
desenvolvimento da personalidade, da sociedade e da cultura.
Essa apreciação de conjunto precisa ser completada em dois pontos. Na
discussão precedente foi negligenciado um aspecto que agrava seriamente o
esforço educacional do segundo grupo de países. Dez deles apresentam uma
população em idade escolar, de 20 a 24 anos, igual ou superior à média da região
(em ordem de diferença decrescente: República Dominicana, Guatemala,
Nicarágua, Brasil, El Salvador, Honduras, Peru, Costa Rica, Paraguai e Haiti).
No entanto, nove desses países se encontravam, em seu esforço de expansão do
ensino superior, abaixo da média global (em ordem de diferença crescente: Peru,
Paraguai, República Dominicana, Brasil, El Salvador, Nicarágua, Honduras,
Guatemala e Haiti). E quatro entre esses países enfrentavam um retrocesso ou
alguma estagnação nesse nível do seu esforço educacional (respectivamente:
Nicarágua e Peru; Guatemala e Haiti). Pensando-se em termos da massa de
população em idade escolar e dos padrões médios da região, excetuando-se o
Peru (cujo caso não possui, em termos relativos, a gravidade que aparenta) e o
Haiti (que praticamente deveria começar da estaca zero), sete dos países
mencionados (na ordem das diferenças negativas crescentes: Nicarágua e
Paraguai; República Dominicana; Brasil e Guatemala; El Salvador; Honduras)
não lograram crescimento verdadeiramente compensador das matrículas no
ensino superior. Para que isso tivesse ocorrido, o seu esforço educacional, nesse
nível, deveria ter sido duas, duas vezes e meia, três, cinco e até oito vezes maior
do que foi.
Outro aspecto negligenciado refere-se ao aumento da variação percentual
aparentemente alto (da ordem de 50%, 60%, 80% e até 100%) de seis países que
estavam abaixo da média para a região, em 1950, e mantiveram essa posição, em
1960 (Honduras, El Salvador, República Dominicana, Brasil, Colômbia e
Equador). A discussão anterior já esclareceu suficientemente as proporções do
malogro relativo do esforço educacional dos quatro primeiros países. Restam,
pois, os casos da Colômbia e do Equador, que devem ser estimados em função
dos padrões médios da região. Ambos são dois casos-limites, pois a variação do
aumento percentual das matrículas aparenta uma magnitude considerável (100%
e 80%, respectivamente). Contudo, apesar de ultrapassarem a média da região
(67%), o esforço educacional de ambos os países ficou, nesse nível do ensino,
aquém do que deveria ser feito para atingirem a média da região (para que isso
ocorresse, a Colômbia deveria ter realizado um esforço quase duas vezes e meia
maior; e o Equador, pelo menos mais a metade do que conseguiu realizar). Isso
evidencia que mesmo as duas nações de maior êxito relativo no segundo grupo
de países, na verdade, perderam terreno quanto ao ritmo médio de
desenvolvimento global da matrícula no ensino superior (embora a perda relativa
do Equador seja de magnitude quase insignificante). Os dois casos possuem um
interesse especial, porém, porque revelam até onde as aparências são
enganadoras. Um crescimento aparentemente intenso e compensador oculta, na
realidade, a preservação de posições relativas desvantajosas no conjunto da
região. O que quer dizer que o segundo grupo de países não sairá da estagnação
real em que se acha, se não forem postas em prática medidas corretivas de
natureza estrutural e de longo alcance.
Os resultados dessa análise quantitativa apanham apenas aspectos da situação
que são necessariamente superficiais. Pelo que se sabe, através das investigações
feitas por educadores e cientistas sociais, o aspecto mais grave do ensino
superior na América Latina é qualitativo. Portanto, haveria um paradoxo a
adicionar ao quadro descrito com tintas inevitavelmente sombrias. Ele consiste
em que, além de deficiente, a expansão quantitativa desenrola-se numa direção
errada: o sistema escolar, ao crescer e diferenciar-se, multiplica e difunde um
tipo de ensino superior superado e, sob vários aspectos, “disfuncional” numa
sociedade competitiva em desenvolvimento. Desse prisma, o avanço do primeiro
grupo de países traduziria um progresso ingrato, porque eles estariam
empregando maior soma de recursos materiais e humanos na propagação e na
expansão de um ensino superior que mereceria ser posto à margem e superado.
Não possuímos dados comparáveis que permitam discutir semelhantes
problemas; e na última parte deste estudo trataremos, sumariamente, dos
aspectos qualitativos que interessam mais à presente análise. Apenas para nos
situarmos diante desse debate, gostaríamos de assinalar que o fenômeno
apontado não possui o caráter de um mal em si e de um drama insuperável. Era
preciso que os países da América Latina atingissem um nível de
desenvolvimento socioeconômico que provocasse o desnivelamento social do
ensino superior, com a subsequente expansão das velhas escolas e dos antigos
padrões de escolarização. Só através desse processo histórico-social, que se acha
em curso em todos os países (embora com intensidade variável), é que se dará a
lenta depuração e a fatal superação de práticas educacionais envelhecidas ou
arcaicas. Por isso, o esboço descritivo, que pretendíamos realizar, abrangerá
apenas mais duas questões. Uma, que diz respeito à distribuição das matrículas
pelos diferentes ramos de ensino. Outra, que se relaciona com o destino prático
dos graduados. No exame das duas questões pretendemos completar o
diagnóstico sociológico já esboçado, tentando desvendar se uma “sociedade
subdesenvolvida”, nos marcos históricos do capitalismo dependente, pode ou
não imprimir à universidade as funções que ela deveria desempenhar para
constituir-se em “fator de desenvolvimento” (ou de aceleração e de
autonomização do desenvolvimento).
Em 1965 graduaram-se, aproximadamente, 71.000 pessoas por universidades
ou escolas superiores latino-americanas. Eis a distribuição dos graduados, pelos
diversos ramos do ensino:[65]


O conjunto de ramos de ensino ligados com as profissões tidas como
tradicionais (medicina, direito e engenharia) concorre nada menos que com 52%
do total. Doutro lado, setores tão vitais para o desenvolvimento cultural de uma
nação moderna, como o da educação e o das ciências naturais, participam de
modo relativa mente baixo ou ínfimo (21% e 4%, respectivamente). Além disso,
somando-se os totais de educação, direito, ciências sociais e econômicas,
arquitetura e belas-artes, temos 37.000 graduados (ou 51%) contra os 14.000
graduados (ou 20%) de engenharia, ciências naturais e agricultura. Ao que tudo
indica, pois, a universidade latino-americana ainda não conseguiu superar as
distorções nascidas do antigo condicionamento técnico-profissional e
socioeconômico, que inibia o seu desenvolvimento como um fator cultural
multifuncional.
Essas conclusões poderiam ser confirmadas e ampliadas, se usássemos os
dados concernentes à distribuição de matrículas em 11 países da América Latina
(veja-se o quadro 3). Tais dados mostram que, entre 1955-56 e 1960, havia a
seguinte distribuição percentual das matrículas:[66]


Parece evidente que a antiga distorção técnico-profissional ainda prevalece
nas universidades latino-americanas, em termos que concorrem para preservar
uma alta concentração da procura em torno de ramos do ensino relativamente
pouco significativos para a modernização da tecnologia, o crescimento
econômico e o desenvolvimento sociocultural. Razões econômicas e
psicossociais, relacionadas com a manutenção de status das famílias de classe
média e alta ou com as pressões dinâmicas de uma estrutura ocupacional
deformada em alguns de seus níveis pelo congestionamento de profissionais
liberais, continuam a preponderar no ânimo dos jovens e em suas aspirações de
“carreira intelectual”. O círculo permanece tão fechado, que os jovens são
permanentemente compelidos a fazer o reduzido grupo de escolhas que
prevaleciam no passado, mesmo em sociedades nas quais já existem novos
recursos educacionais, novas oportunidades de “empregos compensadores” e
novas vias de aproveitamento construtivo do talento.
Tende-se a condenar a universidade latino-americana por essa situação.
Todavia, não é a universidade que cria a estrutura de avaliações das carreiras,
fundadas em requisitos universitários. Ao que parece, ela se adaptou
profundamente, ao longo de uma evolução secular, às exigências de uma
sociedade que atrelava estreitamente a universidade a uma organização do poder
na qual só possuíam significação interesses econômicos, sociais e culturais de
uma estreita parcela da população. Isso produziu uma espécie de vácuo social na
configuração da universidade e de suas relações com a sociedade. Ela interage
estrutural e funcionalmente com esta, mas apenas no nível da organização de
poder em que se encontra inserida (ou seja, dos interesses materiais e morais das
classes médias e altas, bem como de suas élites econômicas, culturais e
políticas). Daí resultou uma barreira invisível à diferenciação progressiva das
funções na universidade e uma tendência quase inexorável à concentração
dominante das escolhas em um número reduzido de ramos do ensino. Como a
esse processo institucional sempre correspondeu uma acentuada concentração
dos graduados em algumas “carreiras condignas” (o que continua a ocorrer com
as oportunidades intelectuais, científicas ou técnicas emergentes), a universidade
ficou presa dentro de malhas pouco elásticas, que reduziam inevitavelmente o
seu impulso criador e restringiam fatalmente a sua contribuição para a alteração
da estrutura, do significado e das funções das “ocupações intelectuais”. Portanto,
aprofundando-se a análise, descobre-se que a universidade não é responsável
pela situação existente e suas consequências mais ou menos negativas. O
aparecimento, a consolidação e a valorização positiva de novas “carreiras
intelectuais” não se produzem como efeitos secundários da modernização. É
preciso que a própria estrutura da sociedade global se altere, provocando
transformações profundas na organização do sistema ocupacional, nos critérios
de peneiramento dos intelectuais e no aproveitamento socialmente construtivo
do talento. Como nada disso ocorreu, pelo menos dentro de uma escala
sociologicamente significativa, as mudanças que afetaram a organização, o
funcionamento e o rendimento da universidade foram superficiais. Até as novas
escolas ou faculdades acabam se defrontando com uma realidade dramática. Por
falta de suporte institucional adequado e de dinamismos societários vigorosos,
elas por assim dizer envelhecem precocemente. Em vez de fazerem pressão no
sentido de transformar as unidades preexistentes, elas se obsoletizam por
contágio ou graças a controles sociais indiretos, tornando-se totalmente
impotentes diante das “estruturas arcaicas”. Convertem-se às expectativas
socioculturais predominantes no meio e logo ficam irrelevantes como fator de
mudanças substanciais nas formas possíveis de vida intelectual.
Os dados apresentados não comportam uma análise sistemática das
orientações da procura de cursos ou de suas implicações propriamente
educacionais. Todavia, eles sugerem algumas conjecturas, úteis à compreensão
do estado atual do ensino superior na América Latina. Em primeiro lugar, não
deixa de ser impressionante a negligência de matérias tão essenciais para esses
países, como a agronomia e a veterinária. As pessoas que lidam praticamente
com tais questões, em posições dominantes e de liderança, formaram seu
horizonte cultural através da rotina, do conhecimento de senso comum e, por
vezes, do folclore. Mesmo quando aceitam inovações de caráter técnico-
científico ou quando admitem a colaboração circunstancial e localizada dos
especialistas, repelem o que chamam de “técnica formada” e desmerecem de
várias maneiras suas qualificações científicas “teóricas”. Os motivos que
determinam semelhantes atitudes e comportamentos ligam-se, provavelmente, à
defesa de prerrogativas autoritárias de status e de dominação incondicional, que
poderiam ser minadas e destruídas juntamente com o tradicionalismo.[67]
Doutro lado, não é raro que a criação e a expansão de escolas de agronomia e de
veterinária (como acontece de modo universal também com outras faculdades,
especialmente as de direito, de farmácia e odontologia, de filosofia, ciências e
letras etc.) exprimam mais o desejo de possuir certos símbolos de civilização,
que a decisão de enfrentar determinados problemas em escala racional. Por isso,
as escolas mais fáceis de montar encontram decidida preferência. Elas nada
representam (e em regra nada devem representar) como fontes de modificação
da rotina ou de mobilização e de utilização racionais dos recursos materiais e
humanos do ambiente.
Em segundo lugar, é preciso notar-se que a alta concentração da procura em
certos ramos do ensino superior, como a arquitetura, a engenharia e a medicina
(que alcançaram 42,5% das matrículas), não quer dizer que as universidades da
região estejam formando e preparando o pessoal especializado que seus países
necessitam nesses setores. Ao contrário, não só existe escassez de pessoal
qualificado nessas áreas, como são notórios tanto a sua má distribuição dentro
dos diferentes países (em regra, os graduados tendem a preferir as grandes
cidades ou as metrópoles como núcleos de exercício de suas profissões), quanto
o seu subaproveitamento (com frequência em atividades bem remuneradas e de
prestígio, mas que não requerem as qualificações indicadas). Além disso, na
maioria dos países, os médicos e os engenheiros, principalmente, têm
demonstrado que são mais sensíveis à defesa dos seus níveis de renda e de
prestígio que às necessidades mais ou menos prementes de seus povos. Fundados
em razões aparentemente louváveis, como a “alta qualidade do ensino” ou a
“preparação rigorosa” para a vida profissional, impedem, restringem ou inibem o
aproveitamento da capacidade ociosa de suas escolas ou faculdades. No que diz
respeito à expansão do ensino de arquitetura, engenharia e química industrial, ao
que parece apenas o México está tentando realmente modificar, de maneira
decisiva, os padrões tradicionais. Em menor escala, o mesmo parece estar
acontecendo na Colômbia e no Panamá. Merece também consideração especial,
por motivos inversos, a situação do Brasil. Apesar de carecer de uma reviravolta
nesse campo (não só pela extensão do país e do volume da população, mas por
causa de ter a industrialização atingido a fase de formação de indústrias de
produção de bens de produção), o Brasil está abaixo das médias globais e muito
abaixo do esforço educacional dos países que estão enfrentando com maior
tenacidade as suas deficiências nesses setores. No que tange à farmácia,
medicina e odontologia, duas coisas chamam a atenção. De um lado, as
deficiências flagrantes, que alcançam proporções dramáticas em alguns países da
América Latina. De outro, que alguns países estão empenhados em corrigir,
como podem, tais deficiências. O que acarreta, naturalmente, porcentagens que
são aparentemente altas para o grau de diferenciação e de desenvolvimento dos
respectivos países. De qualquer modo, seria bom não se perder de vista uma
hipótese de conjunto. Os dados sugerem, conclusivamente, que os onze países,
representativos dos dois grupos analisados acima, em ramos do ensino
importantes para o desenvolvimento como a engenharia, a química industrial e
as ciências médicas, mal conseguem adaptar-se à pressão do aumento crescente
das matrículas. Excetuando-se o México, prevalece uma orientação passiva e
inibidora, a qual impede que a universidade assuma a iniciativa de romper os
bloqueios tradicionais, forçando modificações urgentes na organização e
distribuição das matrículas.
Em terceiro lugar, cumpre-nos observar que nem sempre são justas as críticas
feitas à preponderância da procura em ramos do ensino como o direito, as
ciências sociais e econômicas, a pedagogia etc. Tais críticas fundam-se na alta
participação do direito nessa procura (por si só, esse ramo do ensino entra com
uma quota de 25% a 30% ou mais das matrículas, na maioria dos países) e na
presunção de que o direito não possui mais a importância que teve no passado
como fonte de recrutamento das élites culturais, político-administrativas e
econômicas. Na realidade, porém, a maioria dos países ainda depende dos
“bacharéis em direito” para compor suas élites. E a carência de cientistas sociais
e de professores de ensino médio, além das necessidades que impõem o uso
maciço do planejamento, tornam as demais escolas superiores tão úteis e
necessárias quanto as de engenharia, química e medicina. Feitas essas ressalvas,
seria conveniente mencionar alguns traços sintomáticos do atual sistema de
ensino, revelados pelas indicações expostas. A maneira pela qual países tão
diversamente desenvolvidos na esfera do ensino superior (como Argentina,
Brasil, El Salvador, Costa Rica, Panamá, Paraguai e Peru) oscilam em torno ou
acima da média global sugere o quanto a procura nesse nível reflete a
persistência do padrão tradicional. Essa implicação deve ser devidamente
ponderada, pois ela assinala que, nesse plano, não existem diferenças
substanciais entre os dois grupos de países. Independentemente da magnitude do
seu esforço educacional e de sua pobreza ou riqueza relativas, todos tentaram e
conseguiram um mínimo de êxito na montagem do tipo de “ensino superior” que
era encarado pelas élites tradicionais como o próprio símbolo da “cultura
refinada” e da qualificação para o exercício do poder. Os mesmos dados apoiam
uma observação importante. O México e a Colômbia são os dois únicos países
cujo esforço educacional está fortemente abaixo da média, quanto a esse nível do
ensino superior. Como não se pode presumir que isso resulte de uma escassez
relativa de recursos para a educação, é provável que esteja emergindo uma
tendência definitiva no sentido de reorientar e reorganizar a procura das
matrículas universitárias. Não deixa de ser sintomático, porém, que apenas em
dois países sobre onze apareça tal tendência, tida em muitos círculos intelectuais
como a pedra de toque para o início de transformações verdadeiramente
substanciais do ensino superior.
A segunda questão leva-nos à discussão do destino prático dos graduados.
Apesar do muito que se escreveu a respeito, não se dispõem de dados
comparáveis, suficientemente consistentes, para toda a América Latina. Faltam,
especialmente, indicações mais ou menos precisas sobre os requisitos
intelectuais das ocupações em que os graduados são aproveitados. Em regra,
pode-se afirmar que, excetuando-se carreiras inerentes às “profissões liberais” ou
técnicas, a preferência por graduados não nasce de exigências intelectuais
específicas, mas de questões de prestígio, tradição ou de pura solidariedade
social. Doutro lado, a emergência e a ascensão das classes médias não
quebraram os padrões tradicionais, como se tem interpretado tão generosamente.
As classes médias não tinham meios para privilegiar a riqueza, o prestígio social
ou o poder em sua competição por status e por mobilidade vertical. Tais fatores
eram monopolizados pelas classes altas. Por isso, a acumulação de saber ou de
“cultura” erigiu-se em seu verdadeiro bastião nas relações competitivas com as
demais classes, embora isso não engendrasse nenhuma forma de monopolização
do saber ou da “cultura” (pois as classes altas preservaram suas antigas posições
nesse nível, admitindo apenas um alargamento dos círculos sociais que tinham
acesso às formas privilegiadas de educação). Em consequência, as classes
médias tenderam a se acomodar aos padrões tradicionais, de supervalorização e
de nobilitação tanto do título de bacharel, quanto da preferência pelos setores da
advocacia, medicina e engenharia. Onde e como puderam, manipularam a ordem
legal com vistas à criação de requisitos de exercício das profissões que
impunham (ou poderiam impor) qualificações universitárias. Dessa maneira,
privilegiavam o fator através do qual contavam com probabilidades de competir
com as classes altas numa estrutura social eivada de privilégios. Por aí se explica
por que as transformações tão profundas, acarretadas pela “revolução burguesa”
no plano econômico, tecnológico e político, quase não afetaram a organização, o
funcionamento e o rendimento das universidades. Estas continuaram a ser uma
espécie de “fábrica de bacharéis”, no melhor estilo da antiga universidade.
Esse processo não impediu que as relações entre a universidade e a sociedade
se alterassem em muitos pontos. Graças à complicação da divisão social do
trabalho, o sistema de ocupações inerente à economia de mercado, à “grande
cidade” e ao “Estado moderno”, surgiu em todos os países como uma realidade
histórica. Essa circunstância, combinada ao mecanismo pelo qual as classes
médias privilegiaram intelectualmente (e por vezes também legalmente) os
requisitos universitários das profissões “qualificadas” ou “altamente
qualificadas”, determinaram a persistência e a redefinição social dos padrões
tradicionais no novo contexto histórico. Como no passado mais ou menos
remoto, os graduados visam a carreiras altamente compensadoras (em prestígio,
em renda ou em ambas as coisas) de “natureza intelectual”; e como então
sucedia, várias dessas carreiras situam-se no âmbito de atuação do profissional
liberal, livre e independente, ou nos setores de atividades do “homem de ação”
(da política à administração pública e privada). Ao que parece, no entanto, as
mudanças econômicas, tecnológicas e políticas tendem a estabelecer uma nítida
predominância do assalariamento do universitário. Pode-se verificar essa
tendência através das seguintes indicações, pertinentes a 1950, que evidenciam
que a proporção de profissionais, semiprofissionais e técnicos livres é,
normalmente, 2, 3 ou 4 vezes menor (e circunstancialmente é 5, 6 ou até 7 vezes
menor) que a dos seus colegas assalariados:[68]


Está em curso, portanto, um processo de transformação do sistema
ocupacional, com referência a profissões com requisitos universitários, que se
adapta às mudanças de estrutura da ordem econômica, social e política.
Infelizmente, não existem dados que permitam analisar as implicações
educacionais (especialmente no nível do ensino superior) desse processo. Até o
presente, é possível avaliar apenas um aspecto de suas consequências. Trata-se
da dispersão (ou da polarização dispersiva) do pessoal com formação
universitária. É cada vez maior a amplitude e a diversificação de oportunidades
de carreira que a sociedade oferece aos graduados das universidades, tanto
dentro de uma linha que respeita e aproveita as potencialidades da
especialização, quanto numa linha de intensificação crescente de duras
competições interprofissionais. Esse processo, todavia, não pode ser descrito
com relação a todos os países. Utilizando-nos de informações concernentes ao
Brasil, contudo, podemos esboçar uma imagem viva do que está acontecendo.
Assim, dados relativos a pessoas ocupadas em profissões técnico-científicas (no
censo de 1/7/1950) revelam que, num total de 97.114 profissionais,
semiprofissionais e técnicos, 42.265 (ou seja, 47%) dedicavam-se às profissões
liberais, enquanto 51.849 (ou seja, 53%) dedicavam-se a outras atividades, por
conta própria ou como assalariados. O quadro 9 fornece uma visão de conjunto
da situação brasileira, sob esse aspecto (note-se que várias profissões técnico-
científicas não foram computadas: economistas, sociólogos, psicólogos,
orientadores educacionais, administradores etc.). Por ele se verifica que algumas
profissões técnico-científicas são mais suscetíveis que outras à polarização
dispersiva. Os dentistas e protéticos (com 92,9% em profissões liberais), os
advogados (com 75%) e os médicos (com 51,9%) estão entre os profissionais
que logram o máximo de autonomização numa estrutura ocupacional
competitiva. Por sua vez, o inverso se revela com os químicos (com 2,2% em
profissões liberais), os agrônomos (com 9,8%), os engenheiros (com 10,4%), os
veterinários (com 16,8%) e os arquitetos (com 25,5%), os quais tendem a um
máximo de irradiação dispersiva. Com três exceções, que não vem ao caso
discutir, essa irradiação envolve os profissionais de formação universitária em
todos os ramos de atividade econômica. É possível que as proporções indicadas
traduzam potencialidades de aproveitamento de pessoal de nível superior
alcançadas pela sociedade brasileira na década de 1950. Entretanto, presumimos
que as tendências centrais possuem caráter geral (em termos da organização da
economia e da sociedade sob o capitalismo dependente), aplicando-se pelo
menos aos países da América Latina que conseguem formar internamente os
profissionais em questão.
O processo mencionado suscitou várias controvérsias. Há quem pense que a
tendência a incorporar o universitário a “élites culturais” de funções criadoras
tão dispersivas e improdutivas seja uma degradação do intelectual. Também se
tem ventilado o problema de saber se a maneira indicada de dispersar os
graduados de diferentes ramos de ensino em carreiras tão variadas e disparatadas
não seria mera devastação de recursos humanos relativamente escassos (já que,
no mínimo, haveria subaproveitamento sistemático de pessoal de nível superior).
Na verdade, semelhante irradiação dispersiva de intelectuais com formação
universitária não estimula a produção criadora e colide abertamente com o que
se poderia chamar de uso racional do talento pela sociedade. Mas, é preciso ter-
se em vista que os países latino-americanos estão incorporando, dessa maneira,
novas formas de saber artístico, científico ou técnico a uma massa
crescentemente maior de indivíduos. Isso significa que se está alterando, por
uma via tão tumultuosa quão dispersiva e cara, os conteúdos e a organização do
horizonte cultural dos “intelectuais”. Aos poucos, a sociedade acabará contando,
em quantidade e em qualidade, com pessoal abundante para ocupações que
exigem altas qualificações. Portanto, ao processo descrito são inerentes pelo
menos alguns significados positivos, que têm sido negligenciados. O nível de
qualificação dos diferentes tipos de profissionais, que controlam as posições-
chaves da estrutura ocupacional de uma sociedade moderna, constitui em si
mesmo um dos fatores invisíveis mais importantes da continuidade e da
intensidade do desenvolvimento econômico e sociocultural. O que se poderia e
deveria pôr em causa, sob esse prisma, não seria a polarização dispersiva de
“intelectuais” com formação universitária, mas se eles obtêm (ou deixam de
obter), nos cursos universitários, o mínimo de qualificação requerida ou
desejável. Posta nestes termos, a questão muda de aspecto. Pois as escolas e
faculdades que ministram ensino superior (inclusive nos países do primeiro
grupo) raramente estão adaptadas para preencher a função de preparar seus
graduados para os diferentes tipos de carreira em que eles são ou podem ser
aproveitados. Eles sequer “aprendem a aprender” nas escolas e faculdades mais
deficientes. As instituições que absorvem os graduados, por sua vez, também
raramente possuem condições para complementar e aperfeiçoar a aprendizagem
universitária (tanto no setor público, quanto no setor privado). Estabelece-se,
assim, um círculo vicioso, que redunda, de fato, no “mau uso” e no “subemprego
sistemático” de fatores humanos essenciais à criação de suportes psicoculturais
do desenvolvimento econômico e social.
O aspecto mais dramático da situação, do ponto de vista em que ela é
colocada neste trabalho, consiste em que o círculo vicioso apontado não encontra
um fator de ruptura e de superação nem no crescimento da estrutura ocupacional
da sociedade nem em algum desequilíbrio súbito de origem especificamente
educacional. É sabido que o crescimento econômico tende a diluir, a longo
prazo, as inconsistências institucionais do sistema escolar. Doutro lado, em
condições de ebulição social e política, o sistema escolar por vezes consegue
(através do egresso das universidades e independentemente do padrão e do ritmo
do crescimento econômico) imprimir à sociedade uma evolução revolucionária.
Até o presente, nenhuma das duas alternativas se configurou como uma saída
histórica nos países da América Latina. O impulso fornecido à mudança
institucional pela “revolução burguesa”, sob o capitalismo dependente, é
descontínuo, fraco e dispersivo. Além disso, atingido certo patamar mais
avançado, os efeitos construtivos do crescimento econômico deixam de operar
construtivamente em escala nacional, porque em seguida aquele patamar se
estabiliza (por falta de fatores de aceleração da mudança) e deixa de funcionar
como um simples elo na direção de uma organização econômica mais complexa.
Em semelhantes condições, o agente humano da mudança institucional redefine
constantemente suas motivações econômicas, sociais e políticas, imprimindo
insensivelmente maior peso aos interesses egoísticos que o prendem ao statu quo
ante. Desse modo, esvazia de modo parcial ou total e perverte de um jeito ou de
outro o complexo processo de adaptação das instituições às suas funções
econômicas, sociais e políticas emergentes. Foi graças a uma progressão desse
tipo que as universidades ficaram permanentemente envolvidas pela situação de
interesses e pela perspectiva social dos estratos superiores das classes médias e
altas. As ideologias e as utopias educacionais, que poderiam dar fundamento a
uma autêntica e profunda “reforma universitária”, em vez de serem usadas como
forma de negação e de superação da antiga universidade, serviram de biombo
para ocultar a sua perpetuação sob novo figurino. Em consequência, da
universidade e dos seus egressos não partiu nenhum processo cultural de teor
revolucionário, suscetível de causar um impacto sobre a transformação da ordem
legal e, através dela, sobre o crescimento econômico e o desenvolvimento social.
Os quadros 6, 7 e 8[69] lançam, indiretamente, alguma luz sobre esses
aspectos sombrios do impasse que nasce da conjugação crônica de ritmos
insuficientes de crescimento econômico com padrões débeis e inconsistentes de
mudança institucional. O que chama a atenção do analista, nos referidos quadros,
é o círculo vicioso quase perfeito que inibe, solapa ou destrói qualquer influência
recíproca altamente criadora nos sentidos economia Ü sociedade Ü ensino
superior; ou ensino superior Ü sociedade Ü economia. Como a inibição, o
solapamento ou a neutralização das influências dinâmicas construtivas se dá sob
transformações quantitativas constantes, o aspecto sociopático da rigidez relativa
do ensino superior é perdido de vista. Contudo, a estrutura ocupacional e da
renda, suportada pelo sistema econômico, não alimenta um processo educativo
suficientemente diferenciado e vigoroso para galvanizar a universidade,
erigindo-a em um fator real de ruptura da inércia cultural e do desenvolvimento.
No conjunto total de ocupações, apenas 1,4% das pessoas ocupadas dispõem de
formação universitária (completa ou incompleta). Elas concentram-se em
algumas categorias ocupacionais (fornecem 23,6% dos profissionais e técnicos,
9,9% dos administradores e gerentes, e 2,0% dos empregados e vendedores). É
esse número ínfimo que delimita a estrutura ocupacional das pessoas com
formação universitária (na qual 62,3% se ocupam como profissionais e técnicos;
21,7%, como administradores e gerentes; e 16,0%, como empregados e
vendedores). Por aí se depreende o que a formação universitária pode
representar, estrutural e funcionalmente, como “força socioeconômica”. Em
condições de crescimento econômico contínuo e em aceleração crescente, essa
minoria poderia agir como um elo dinâmico entre a ordem social estabelecida e a
transformação da economia, da tecnologia e do sistema de instituições (inclusive
as instituições educacionais e, entre elas, as universidades). Nas condições
predominantes da América Latina, de estancamento econômico e de crescimento
econômico instável ou moderado, essa minoria apenas opera como um elo
dinâmico entre a ordem existente e a estabilidade social (ou a mudança sob o
máximo de segurança para os estratos superiores das classes médias e altas). Por
sua própria situação socioeconômica, tal minoria está condenada (pelo menos
enquanto prevalecerem as condições econômicas, sociais e culturais do presente)
a canalizar o crescimento econômico e o desenvolvimento educacional
(especialmente do ensino médio e superior) no sentido da preservação e do
fortalecimento dos seus próprios níveis de renda, de prestígio social e de poder.
Os sociólogos sabem que não existe “lógica dos grandes números” que resista ao
estancamento socioeconômico crônico ou ao desenvolvimento socioeconômico
moderado. Todavia, dadas e mantidas essas mesmas condições, a alternativa da
“lógica dos pequenos números” desemboca numa encruzilhada, na qual todos os
privilégios se unificam para a defesa do que garante a existência e a
sobrevivência dos privilégios: a ordem estabelecida. Atrás de uma mudança
aparentemente contínua, profunda e avassaladora, esconde-se a perpetuação do
statu quo ante, porque o que está em jogo não é a negação e a extinção dos
privilégios, mas a sua continuidade sob novas formas.
Isso não significa, naturalmente, que tudo esteja ou permaneça como no
passado. Se não ocorrer um mínimo de mudança institucional e de crescimento
econômico, de modo constante, a própria estrutura ocupacional e de distribuição
da renda, em que se fundam os privilégios econômicos, sociais e educacionais
vigentes, se veria ameaçada. Mas que, dependendo do impulso atual do
crescimento econômico e do ritmo da mudança institucional que resulte da
atuação consciente das élites culturais, a conjugação entre universidade e
desenvolvimento tenderá a estabelecer-se dentro de níveis em que o fundamental
sempre virá a ser resguardar o padrão tradicional de aproveitamento dos
graduados pela sociedade. Se esse panorama não se alterar a partir da própria
estrutura ocupacional e de distribuição da renda, é mais que certo que ele não se
modificará a partir da universidade. Pois ela não dispõe de dinamismos bastante
fortes para romper o terrível isolamento cultural a que se vê relegada, em virtude
dessa mesma estrutura ocupacional e de distribuição da renda, que privilegia os
seus graduados.
UNIVERSIDADE E DESENVOLVIMENTO

A QUESTÃO DE SABER-SE qual é a importância estrutural e dinâmica das


universidades como fator de desenvolvimento, na América Latina, depende,
naturalmente, do que se entenda por “desenvolvimento”. Uma sociedade
nacional pode transformar-se de maneira acelerada e tumultuosa, sem que se
possa falar, no entanto, que ela esteja se diferenciando no padrão organizatório
de sua estrutura social, ou seja, que se encontre em desenvolvimento. Isso
significa que a universidade pode se ver projetada no contexto de uma sociedade
em mudança — e contribuir positivamente para o condicionamento, a orientação
ou a intensificação de determinadas mudanças — sem que mereça ser
qualificada, sociologicamente, como “fator de desenvolvimento”.
Atendo-nos apenas ao que nos interessa diretamente, na situação econômica,
sociocultural e política, imperante na América Latina, desenvolvimento significa
alteração na posição através da qual suas sociedades nacionais participam da
civilização ocidental. O subdesenvolvimento dessas sociedades decorre do modo
pelo qual elas participam dessa civilização: através de uma posição
heteronômica (ou dependente), que não se altera pela simples manifestação do
crescimento econômico e da mudança sociocultural progressiva. Ambos são
requisitos para que elas se mantenham numa posição heteronômica em um
mundo em mudança (isto é, são condições para que elas se adaptem,
dinamicamente mas na mesma posição dependente, às alterações ocorridas nas
estruturas econômicas e de poder no plano internacional). As universidades das
nações subdesenvolvidas também estão inseridas nessas relações de dependência
e concorrem para preservar as formas de subordinação cultural existentes,
servindo de elo à assimilação de cultura produzida nas nações desenvolvidas e
hegemônicas, que exercem o monopólio na invenção e difusão das formas
básicas de saber. Elas podem exercer influências ativas, diretas ou indiretas,
sobre o crescimento econômico e a mudança sociocultural, e, não obstante, tais
influências podem estar especificamente vinculadas à preservação do statu quo
(no caso, a consolidação da ordem social competitiva que emerge e se expande
em conexão com o capitalismo dependente).
Dessa perspectiva, a universidade só aparece e se afirma historicamente como
“fator de desenvolvimento”, quando concorre para a negação e a superação desse
statu quo. Realizada esta condição estrutural-funcional, os seus dinamismos se
caracterizam pela contribuição que ela dá, institucionalmente, para a
autonomização progressiva da respectiva sociedade nacional na esfera da
cultura. Nesse sentido, ela assume, desde o momento em que se coloca a
negação e a superação do subdesenvolvimento, funções de transição que
possuem caráter revolucionário, ajudando a calibrar e a orientar o tipo de
revolução que é inerente ao desenvolvimento.
As duas partes precedentes deste estudo demonstram, conclusivamente, que
isso não está ocorrendo (e ao que parece está longe de ocorrer) na América
Latina. Mesmo os países mais “ricos” e “avançados” da região (com a exceção
de Cuba) projetam o seu esforço educacional, em todos os níveis do ensino,
numa direção que preserva ou aumenta sua dependência cultural em relação ao
exterior e que redunda no fortalecimento da ordem social competitiva associada
ao capitalismo dependente. Em consequência, suas universidades obedecem a
diretrizes que as convertem em fatores de progresso cultural, mas nas condições
crônicas, predominantes, de subdesenvolvimento. Suas funções socioculturais
construtivas estão voltadas para a consolidação do statu quo, cabendo-lhes
imprimir a eficácia possível ao padrão de integração da ordem social competitiva
nascido da conjugação de hegemonia cultural externa, capitalismo dependente e
estratificação em classes sociais.
Essa conclusão choca-se com o que se afirma comumente sobre o assunto,
com base em evidências quantitativas ou qualitativas mal interpretadas. Na
verdade, o pensamento corrente procede de políticos, educadores e cientistas
sociais que confundem sistematicamente “mudança sociocultural progressiva” e
“desenvolvimento”. Assim, qualquer evidência de alteração pode ser tomada
como sintoma de desenvolvimento, independentemente de suas relações
dinâmicas com a preservação estrutural ou com a transformação estrutural do
statu quo. É óbvio que viciam a perspectiva de análise e acabam descobrindo o
que desejariam que acontecesse. O “progresso educacional” pode assumir várias
dimensões e possuir vários significados. Cabe à investigação sociológica
determinar o que tais dimensões e significados representam no contexto social.
Até o presente, pelo menos, o “progresso educacional” que se vem desenrolando
nas universidades latino-americanas ainda parece insuficiente sequer para servir
de patamar à avalanche, que se desencadeia nas fases incipientes de negação do
subdesenvolvimento e de transição para formas mais ou menos autônomas de
vida intelectual fermentativamente criadora.
De acordo com essa compreensão do assunto, as universidades latino-
americanas — mesmo as melhores: em termos de pessoal, de equipamento, de
orientação e de realizações — ainda não se adaptaram, de fato, às funções que,
embora contingentes e transitórias, são vitais para a negação e a superação do
subdesenvolvimento: a conquista de autonomia intelectual na organização do
esforço educacional e de criação intelectual, com vistas aos dilemas materiais,
humanos e morais que deitam raízes na falta de correspondência efetiva entre a
ordem social vigente e a forma de integração da sociedade nacional. Em todas as
esferas cruciais de organização do esforço educacional e da criação intelectual,
prevalece uma acomodação mais ou menos passiva diante das soluções
procedentes do exterior (às vezes até postas em prática sob supervisão direta de
agentes humanos vindos de fora), que substitui o processo que seria “normal”
nas nações avançadas — a descoberta das soluções necessárias à luz do padrão
de civilização vigente e do poder que ele confere ao homem de intervir
consciente e deliberadamente, na organização e na alteração da porção
institucionalizada do meio social. Acresce que a busca e o aproveitamento das
vias possíveis de destruição das barreiras mais visíveis da heteronomia cultural
desenrolam-se em planos nos quais o irrealismo e as atitudes compensatórias (de
cunho individual, grupal ou nacional) importam mais que a realização eficaz,
que possa servir de patamar para a espiral da acumulação cultural progressiva,
com verdadeiros ganhos na absorção e interiorização de processos de invenção
cultural. Essa situação cultural configura-se, do ponto de vista sociológico, como
inegavelmente sociopática. As universidades latino-americanas submetem-se, de
maneira variável, ao clima dominante de resistência à mudança progressiva, de
solapamento sistemático das inovações necessárias a um esforço educacional e
de criação intelectual autonomizantes, e de desmoralização do pensamento
produtivo livre. Daí as conhecidas formas de derrotismo, de “mudança de
fachada” e até de charlatanismo intelectual que elas, com frequência, abrigam,
favorecem e chegam a estimular. Em consequência, dentro delas torna-se difícil
e precária a mudança progressiva que acarrete desenvolvimento: recursos
materiais e humanos ultraescassos são mal aplicados ou dissipados
destrutivamente de maneira crônica. E o seu crescimento se processa em zigue-
zagues, com constante perda e reconquista das posições ganhas, como se o
professor universitário responsável devesse lutar, durante toda a sua vida, com os
mesmos problemas instrumentais, relacionados com as condições mínimas do
seu labor intelectual. Poder-se-ia argumentar, em sentido contrário, com os
“casos excepcionais”. Eles, no entanto, apenas confirmam a regra. Na América
Latina, como em qualquer parte, eles rompem o seu caminho contra a
adversidade, graças ao seu talento, à sua coragem e decisão ou ao apoio também
excepcional que às vezes atraem. Contudo, é evidente que eles não conseguem
alterar as condições rotineiras de trabalho, pois a realidade continua a mesma
para os demais e, em seguida, para os seus próprios sucessores.
Portanto, o aspecto institucional é deveras importante para entender-se o que
ocorre com as universidades latino-americanas. Só que é preciso fazer-se uma
espécie de rotação macrossociológica, para ver-se a instituição em suas relações
estruturais e dinâmicas com a sociedade e a cultura, em escala nacional. Parece
evidente que a sociedade e a cultura não lhes deram o impulso que, em outras
situações históricas, conduziu os mesmos modelos institucionais às culminâncias
de suas potencialidades educacionais e intelectuais. Ao inverso do que se admite,
a conclusão que se poderia tirar, do que tem acontecido e do que está
acontecendo, consiste em que tanto os modelos institucionais “antigos”, quanto
os “modernos” foram e continuarão a ser mal explorados, em grande parte, por
causas extrínsecas à vida universitária. Esta foi plasmada sob um clima
permanente de baixas exigências e de apoio superficial e irregular. Não é de
admirar-se, por conseguinte, o baixo rendimento. Mas que, em tais condições, as
universidades funcionem, produzam alguns frutos e atinjam, aqui ou ali,
resultados dignos de consideração.
Na análise dessa questão, pelo menos enquanto prevalecerem as condições de
subdesenvolvimento, deve-se pôr de lado o tipo de abordagem sociológica
usualmente empregado pelos sociólogos das nações avançadas no estudo de suas
universidades. As correlações entre certas condições da organização do ambiente
(como índices do crescimento econômico, da urbanização, da secularização do
comportamento político ou econômico etc.) e as tendências mensuráveis do
“progresso educacional”, no nível do ensino superior, apenas explicam os
dinamismos que revelam o grau de adaptação dos modelos institucionais,
absorvidos pelas universidades, às condições histórico-sociais imperantes na
América Latina. O que quer dizer que explicam como e por que os dinamismos
das universidades latino-americanas são os dinamismos das universidades de
nações subdesenvolvidas, que ainda não aprenderam ou mal começam a
aprender a utilizar seus recursos materiais e humanos para enfrentar o
subdesenvolvimento. Elas só são heuristicamente iluminadoras por uma razão:
deixam irrefutavelmente claro que a uma sociedade nacional subdesenvolvida
correspondem, de modo fatal, universidades subdesenvolvidas. Os professores,
pesquisadores e estudantes universitários repudiam amargamente as injunções
dessa ideia. Doutro lado, a própria valorização e o cultivo sociais da
universidade como “símbolo de civilidade” (senão de civilização) chocam-se
com essa constatação. Contudo, ambas devem ser admitidas como o ponto zero
de uma mudança de orientação diante do próprio uso estratégico da universidade
como fonte de autonomização cultural e fator de racionalização na utilização
produtiva de recursos materiais ou humanos escassos. Na verdade, nem o
excedente criado pelo crescimento econômico, nem o uso social desse
excedente, nem o modo de empregar a parcela dele que é destinada às
universidades permitem configurar a realidade de outra maneira. O melhor
parece ser a admissão pura e simples dessa circularidade, como meio para
conhecê-la positivamente e combatê-la com maior eficácia. Mantida na
penumbra, nada se altera; e a própria universidade fica à margem da história e da
evolução cultural do seu país, tendo valor efetivo e perene apenas como
“símbolo civilizatório”.
Por isso, o foco da análise sociológica, a partir da situação de interesses de
que compartilha o investigador que pertence à sociedade subdesenvolvida, deve
estar nos aspectos que permitam explicar a persistência dos referidos
dinamismos da “universidade de nação subdesenvolvida”. É presumível que de
algum ponto deveria esboçar-se e irromper uma ruptura com as acomodações
sociais e intelectuais que redundam nessa persistência. Ou de dentro da
universidade; ou de fora, através do comportamento inteligente das elites
culturais ou então da ação de círculos sociais inconformistas; ou de todos esses
setores, conjugadamente. O conformismo diante dos padrões culturais e do
horizonte intelectual médio predominantes em tal tipo de universidade e, o que é
pior, a aceitação e a valorização da “mediocridade satisfeita”, que elas instituem
como parte normal da vida acadêmica, são indicadores expressivos de que
nenhum círculo social e nem mesmo os intelectuais encastelados nas
universidades se empenham decisivamente na superação dessa conjuntura.
Na raiz de semelhante apatia não está nem o grau de crescimento econômico,
nem a intensidade da urbanização, nem os contrastes entre a “sociedade
tradicional” e a “sociedade moderna”, nem tampouco as inconsistências da
secularização de atitudes e comportamentos sociais. Sem dúvida, efeitos de tais
processos se fazem sentir tanto na superfície, quanto no fundo da vida
universitária. Todavia, o que acontece nos países subdesenvolvidos é que esses e
outros processos se equacionam dentro de limites quantitativos e qualitativos que
são insuficientes para alterar os rumos preestabelecidos das coisas. Estas
continuam praticamente como antes ou quase iguais depois da intensificação do
crescimento econômico, da urbanização, da modernização etc. De fato, o
moderno arcaíza-se com a mesma facilidade com que o arcaico se moderniza.
Feitas as contas, a mudança real e substancial é muito menor do que se pensa.
Por isso, não opera como fator de precipitação e de coordenação de outras
mudanças subsequentes. A razão disso não está no homem, mas no tempo dentro
do qual ele organiza socialmente suas atividades e constrói a sua história.
De qualquer modo, valeria a pena fazer duas ponderações. Se existissem
disposições coletivas igualmente fortes, polarizadas em torno de opções culturais
conflitantes e inconciliáveis, é provável que surgissem círculos sociais
empenhados em combater o subdesenvolvimento (como existem círculos sociais
que estão empenhados em preservá-lo indefinidamente). Nesse sentido, as
limitações existentes só são barreiras na medida em que não surgem forças
sociais que atuem na direção oposta, desencadeando formas realistas de
consciência social da situação e de atuação social inteligente. Segundo, é preciso
evitar a tentação de converter tradicionalismo e modernização em encarnações
antitéticas do bem e do mal. Muitas das forças “modernizadoras”, ligadas a
interesses sociais internos ou externos, trabalham abertamente contra a
autonomização econômica, social e cultural da América Latina. Mesmo as
classes médias, que já foram representadas como o fiat do “crescimento
equilibrado”, são propensas a comportamentos sociais tão egoísticos e
destrutivos quanto os setores tradicionais das classes altas (como se verifica
através de suas tentativas de defender níveis de consumo incompatíveis com o
estancamento econômico ou no apoio sistemático que dispensam a regimes
totalitários disfarçados). As grandes organizações estrangeiras, que parecem
provocar uma revolução tecnológica, estão traduzindo os liames da dependência
econômica e cultural para a lógica dos nossos dias. Elas inauguram a era da
tecnologia moderna, mas sob a dominação do mercado e da cultura pelos centros
de irradiação do capitalismo monopolista. Portanto, é ingênuo supor-se que se
possam transferir precedentes de países que transitaram da “sociedade
tradicional” à “sociedade moderna” em bloco e sob processos autossustentados
para as nações subdesenvolvidas. Nestas, toda a realidade é diferente, e a
verdadeira força dinâmica emerge quando os conflitos de classe atingem as
estruturas de poder e ameaçam politicamente os interesses sociais “internos” ou
“externos”, que sejam responsáveis pelo estado crônico de subdesenvolvimento.
Se nos descartarmos das interpretações parciais e ilusórias, teremos de buscar
os fatores topicamente explicativos nos processos de formação e de
diferenciação das sociedades latino-americanas, que afetaram ou afetam a
organização e o rendimento de suas universidades como instituições sociais.
Sobre três pontos já existem evidências conclusivas, que permitem entender
melhor a situação e, talvez, modificá-la no futuro próximo.
Em primeiro lugar, a emergência do Estado e a evolução posterior da
“sociedade nacional” não ocasionaram a extinção de velhas estruturas de poder.
Ao contrário, estas se incrustaram nas instituições emergentes e acabaram
decidindo como elas deveriam funcionar. Esse processo nos interessa aqui em
virtude de suas evidentes implicações socioculturais dinâmicas. Ele levou a uma
situação histórico-social na qual Povo, como entidade social, e Povo, como
entidade política, são coisas distintas e exclusivas. Para as elites tradicionais,
“Povo” tanto podia ser a ralé ignorante e desprezível (tomada a palavra na
primeira acepção), quanto o pequeno grupo de detentores privilegiados do poder
(tomada a palavra na segunda acepção). À nossa análise somente interessam
algumas implicações desse desdobramento de perspectivas. Ele significa que o
Estado nacional surgiu e consolidou-se sem que existisse um movimento
paralelo de integração nacional, que abrangesse todas as classes sociais em
presença. Em consequência, a integração nacional iria refletir, a cada momento
histórico, as constelações de interesses econômicos, sociais e políticos que
dominassem o rateio do poder organizado institucionalmente. Ela nunca aparece
como mero amálgama (pois em cada momento representa uma composição
articulada de interesses econômicos, sociais e políticos solidários ou
convergentes), mas também nunca traduz os elementos comuns e universais do
querer coletivo. Configura-se como o poder de coalizão das classes que
encarnam o querer coletivo politicamente, falando e decidindo em nome dele.
A esse processo de formação societária nacional corresponderam formas
típicas de nacionalismo e de democratização do poder. O nacionalismo emergiu
e evoluiu como uma força disciplinada, contida e parcial, que respondia às
modalidades de consciência social, de interesses e de valores dos estratos sociais
dominantes. Ele não adquiriu uma natureza explosiva e revolucionária nem
assumiu poder integrativo aglutinante, pois não devia exprimir a conciliação de
concepções, de interesses e de valores sociais em tensão e em conflito. Por isso,
não se irradiou através do sistema institucional das sociedades nacionais em
formação nem captou a vontade profunda dos homens de status diferentes.
Elaborou-se e permaneceu como uma força social de superfície e de
circunstância, mantendo-se perenamente incapaz de identificar as diversas
classes sociais com alvos coletivos que as transcendessem e as galvanizassem
acima de seus destinos históricos particulares. Não chegou sequer a invadir as
instituições onde poderia medrar com ímpeto construtivo insopitável, como as
escolas ou os quartéis. Com a democratização do poder sucedeu algo
semelhante. Dada a estrutura econômica da sociedade e sua rápida evolução no
sentido do regime de classes, ela era uma fatalidade. Entretanto, também não
adquiriu o caráter de um processo que afetasse o status de todas as classes
sociais em presença. Como o controle do poder político garantia às classes
dominantes toda a eficácia inerente à ordem legal estabelecida (e produzisse o
efeito inverso para as outras classes), a democratização do poder evoluiu como
um processo descontínuo e sinuoso. Ele se caracteriza profundamente por
sucessivos desnivelamentos superficiais de privilégios sociais e nada tem em
comum com a universalização da equidade em face da ordem legal. Tal estilo de
democratização do poder significou (e continua a significar) que a democracia
confere aos estratos sociais localizados estrategicamente na estrutura de poder a
faculdade de decidir e de comandar em nome de todos. Em vez de pôr um
paradeiro à privatização do poder politicamente organizado, ela conduziu a
novas formas de privatização desse poder, ampliando sucessivamente, através
dos desnivelamentos que generalizaram certos privilégios das elites tradicionais
para os estratos mais ou menos ativos das classes médias, o número dos que
podem participar da eficácia da ordem legal.
Esse apertado bosquejo sugere como o background da formação e da
expansão da sociedade nacional condicionou a reelaboração cultural das
instituições sociais-chaves. A universidade sempre esteve imersa nos
acontecimentos ou nos processos políticos socialmente relevantes. Apenas, não
surgiram condições favoráveis à ebulição de qualquer “nacionalismo cultural”
construtivo, capaz de exercer influências duradouras e profundas na
autonomização da vida intelectual. A ciência, a tecnologia e os próprios modelos
institucionais de organização das universidades foram submetidos ao controle
das concepções, interesses e valores sociais dos estratos sociais que definiram,
em cada momento histórico, o sentido e a forma da integração nacional. Doutro
lado, a universidade não se projetou, como instituição, em um campo em que
operassem as forças sociais que combatiam os privilégios, mesmo em nome do
simples desnivelamento progressivo das “prerrogativas dos poderosos”. Ela
ficou jungida e estreitamente incorporada à própria rede dos privilégios e dos
privilegiados. Nos momentos de crise, somente depois de consumada a
transição, é que ela passava a atender clientelas sucessivamente mais amplas, em
termos de status de renda e de prestígio social. O importante a assinalar, sob esse
aspecto, é que ela não compartilhou frutiferamente dos benefícios das tensões
que atuaram, de modo latente ou explícito, como “fermentos revolucionários”
das convulsões da ordem legal, provocadas pela democratização parcial do
poder. Por conseguinte, é uma das instituições fundamentais nas quais se
mantêm mais fortes (quase intocáveis, no nível do pessoal docente) as avaliações
da mudança cultural progressiva imperantes nos estratos superiores das classes
médias e altas. Essas avaliações caracterizam-se pelo frio egoísmo particularista
e pela resistência sociopática a quaisquer inovações que pareçam ameaçar a
segurança desses estratos sociais. O teor urgente ou o grau de necessidade
imperiosa das inovações, em termos dos interesses da nação como um todo, não
contam acima desse limite. É claro que a ciência e a tecnologia científica
incluem-se largamente entre tais inovações. No fundo do diagnóstico
encontramos, pois, uma realidade sombria. Nenhum movimento de
efervescência nacional e nenhuma classe social tomaram a si, até hoje, a tarefa
histórica de moldar novas formas de consciência social e de valores sociais
suscetíveis de comunicar às universidades uma nova vitalidade cultural,
relacionando-as com o processo de integração nacional como influências
dinâmicas construtivas de alcance revolucionário.
Em segundo lugar, deve-se considerar outro conjunto de fatores, que tem sido
negligenciado nas interpretações correntes. Uma nação econômica, cultural e
politicamente dependente não dispõe de meios para organizar e expandir, com
autonomia, o sistema institucional em que se funda o desenvolvimento normal
da ciência e da tecnologia científica. A universidade depende do sistema
institucional básico que se congrega em torno dela e que lhe infunde vitalidade
de crescimento, independência diante das pressões mais ou menos irracionais do
meio e apego aos valores do pensamento inventivo sob quaisquer contingências.
Por mais que se escreva a respeito das repercussões da urbanização, da
industrialização e da modernização sobre o estilo de vida imperante nas
metrópoles e grandes cidades da América Latina, a verdade é que o sistema
emergente de serviços científicos, técnicos e técnico-científicos ainda está longe
de provocar as pressões requeridas para que as universidades se tornem
multifuncionais e atuantes, em sentido criador. Por enquanto, essas pressões não
chegaram sequer a abalar os padrões de organização e de rendimento das
universidades, que demonstram ser demasiado baixos e insatisfatórios. A razão
disso parece estar no fato de que o referido sistema institucional diferenciou-se e
expandiu-se, de modo realmente considerável, apenas nos setores da tecnologia
importada (e, com frequência, controlada de fora, como puro “negócio
comercial”). Ele não depende ou depende muito pouco da capacidade criadora
das universidades e das iniciativas locais. Raramente chega a levantar problemas
que desafiem ou interessem os professores ou pesquisadores das universidades,
não se refletindo, em regra, nos rumos que imprimem às suas investigações
puras ou aplicadas. Por enquanto, os segmentos mais vivos desse sistema
institucional devotam-se à pesquisa científica (embora, na maioria das vezes,
com fins práticos). Muitos deles constituem órgãos prestigiosos, até em escala
internacional. Mas, mesmo esses segmentos não interagem produtivamente com
as universidades — ou porque vivam à sua sombra, ou porque contam com
terríveis limitações, nascidas de suas precárias condições de trabalho. Embora
não exista uma guerra surda entre eles e as universidades, na maioria dos casos
são injustamente ignorados pelos investigadores acadêmicos. Essa situação
anômala explica-se pela falta de “tradição de pesquisa” nas universidades.
Contudo, a ela não são alheios outros motivos, menos impessoais ou
contingentes.
O que devemos ressaltar, sob esse aspecto, é que a sociedade não dispõe de
uma cultura com dinamismos fundamentais independentes. Por isso, ela não
pode sustentar e ampliar um sistema de instituições básicas capaz de absorver
gerações sucessivas de cientistas e de técnicos, com sólida preparação
universitária. E, o que é pior, ela não pode manter e melhorar o conjunto de
motivações e de controles sociais indiretos, de natureza especificamente
intelectual, que poderiam fomentar um verdadeiro clima de vida universitária
inquieta e criadora. As universidades, como outras instituições, abrigam gente
que precisa ser continuamente provocada e constantemente satisfeita em suas
necessidades de reconhecimento de valor. Sem um sistema de instituições
científicas e tecnológicas bastante diferenciado e em crescimento permanente, é
quase impraticável forjar tais motivações e controles de forma produtiva. As
universidades elaboram internamente seus próprios sucedâneos: mas eles não
produzem os mesmos efeitos. O paroquialismo e a autocomplacência misturam
avaliações intelectuais com relações congeniais e coleguismo. Não tendo com
quem dialogar, com quem discutir e a quem convencer, o professor e o
pesquisador universitários convertem-se em criaturas altamente egocêntricas e
em planta de estufa. O lado dramático dessa situação aparece na cisão
irremediável com o ambiente e com suas necessidades culturais. Na ausência do
mencionado suporte e do canal de comunicação que ele engendra, a universidade
fecha-se sobre si mesma. Termina por favorecer uma linha destrutiva de trabalho
intelectual, de purismos rígidos e dogmáticos, de avaliações compensatórias
puramente neuróticas, de virtuosismo estreito ou estéril e de rotina sufocante. Só
o talento excepcional consegue remar contra a corrente e evitar a autodestruição.
Todavia, com frequência através de ajustamentos intelectuais que
supervalorizam as contribuições abstratas sobre temas abstratos, como se o
pensamento “teórico” pudesse compensar a ausência de comunicação frutífera
com o meio cultural. Tudo se passa, pois, como se as universidades existissem
na sociedade e não para a sociedade. Elas não se engrenam, por falta de
mecanismos culturais adequados, com o fluxo da vida, que liga o pensamento
inventivo aos processos civilizatórios de crescimento autônomo da cultura.
Em terceiro lugar, situam-se os problemas de dinâmica cultural inerentes à
organização e ao funcionamento das universidades. Três questões são deveras
importantes para a presente discussão: 1º) a socialização para os papéis
intelectuais relacionados com as funções socioculturais preenchidas
efetivamente pelas universidades nas respectivas sociedades nacionais; 2º) o
grau de poder conferido pela sociedade a professores e investigadores para
desempenharem os papéis especificamente intelectuais organizados através do
status acadêmico, e o grau de autonomia de que dispõem as universidades para
realizar suas funções socioculturais; 3º)a estrutura e o funcionamento do sistema
de motivações, aspirações e controles intelectuais organizado em torno das
atividades acadêmicas e das carreiras universitárias (nos níveis do ensino, da
pesquisa e da administração).
Em todos os três planos apontados ocorrem inconsistências e disfunções que
decorrem da inexistência de uma subcultura acadêmica propriamente dita (ou,
como preferem outros, de um “estilo universitário de vida intelectual”). A
maneira pela qual o ensino superior se constituiu, desenvolveu e entrosou-se à
sociedade inclusiva, no passado remoto ou recente, reduziu fortemente a
diferenciação de um setor especial da cultura, diretamente vinculado às
atividades e carreiras universitárias; e, ao mesmo tempo, impediu que ele se
desenvolvesse com um ritmo próprio. Por conseguinte, o universitário —
professor, investigador ou estudante — não possui o seu “mundo intelectual e
moral”. Tem um pé na “vida acadêmica” e outro fora dela. Isso acontece com os
professores e pesquisadores, que na quase totalidade combinam os papéis
docentes com papéis ligados às profissões liberais ou com variadas ocupações
técnico-profissionais ou políticas (e com frequência o escritório, o consultório, a
clínica, o jornal, a administração ou a política etc. são mais importantes em suas
carreiras, ambições e aspirações). E também sucede com os estudantes que, na
maioria dos países, além de estudar, trabalham em diversos tipos de emprego
(numa proporção que varia aproximadamente da metade a dois terços da
população estudantil). Poucas são as universidades da América Latina que
possuem professores e pesquisadores em regime de tempo integral,
frequentemente repelido por causa dos seus reflexos sobre a redução da renda e
do prestígio social ou simplesmente impraticável por falta de recursos
financeiros. Também são poucas, dentro dessas universidades, as escolas que
exigem tempo integral dos estudantes. O homem que vive e trabalha na
universidade, sob aspectos cruciais de seus centros de interesses profissionais, de
suas aspirações intelectuais e de suas preocupações sociais, é sobretudo o
representante típico de sua classe ou de seu nível social — e raramente deseja ser
algo além disso. Se é verdade que leva para as suas atividades profissionais
extrauniversitárias e para o “grande mundo” o prestígio acadêmico, também é
verdade que traz para a universidade o seu prestígio profissional ou mundano.
Poucas são as escolas, entre as melhores universidades da América Latina, nas
quais o eixo exclusivo e absorvente da vida intelectual dos universitários gira em
torno de suas ocupações docentes, de pesquisa ou de criação original.
A inexistência de um “mundo intelectual universitário” poderia ser deveras
importante e estimulante, se os diversos centros de interesses profissionais, de
aspirações intelectuais e de preocupações sociais se intercruzassem,
influenciando construtivamente o labor intelectual realizado nas universidades.
Tal circunstância, nessas condições, permitiria eliminar os inconvenientes da
especialização e corrigir os efeitos negativos do isolamento do “mundo
acadêmico”. Todavia, na situação predominante na América Latina, esse se não
se concretiza nem como uma realidade fluida e contingente. Os centros de
interesses profissionais, as aspirações intelectuais e as preocupações sociais de
cada setor ocupacional desdobram-se segundo padrões divergentes, o que
significa que o “acadêmico pela metade” possui uma vida intelectual bifurcada
ou trifurcada, raramente encontrando meios para fugir da esterilização que daí
resulta. No fundo, apenas resta um terrível e irreparável saldo negativo: a erosão
permanente da mentalidade universitária, que se mantém amorfa, débil e
inoperante, sem qualquer vantagem para os demais setores de atividades
intelectuais ou para a sociedade.
A partir dessa situação global, são variados e incontroláveis os lapsos na
socialização dos universitários para os seus papéis especificamente intelectuais.
O preparo rigoroso e intensivo é mais um produto da chance que da
institucionalização das atividades de ensino e de pesquisa. Doutro lado, as
instituições ficam indefesas diante do tipo de intelectuais a que estão entregues:
elas deveriam socializá-los para seus papéis intelectuais, mas eles as moldam
segundo suas conveniências e determinam, portanto, o alcance e a bitola da
própria socialização. Assim, as debilidades e as inconsistências dos acadêmicos
condicionam as debilidades e as inconsistências da universidade, germinando um
círculo vicioso insanável. Tudo se passa como se uma imensa e interminável
conspiração silenciosa fosse conscientemente entretida para afastar tais
instituições de suas funções construtivas normais e das funções potenciais que as
tendências da expansão da civilização exigem de forma crescente. Desse ângulo,
parece evidente que a soma de poder inerente ao status do acadêmico e o grau de
autonomia das universidades são regulados numa linha de controles sociais
mínimos. Na medida em que aquele é apenas um semiacadêmico, ele se
desinteressa totalmente dos requisitos dinâmicos do seu status universitário e
prefere apelar para acomodações nas quais o poder de autodeterminação da
própria universidade seja o mais restrito possível. Nos momentos cruciais, onde
e quando possam surgir crises incontornáveis por meios rotineiros, recorre a seu
prestígio extra-acadêmico ou a outros recursos. Mesmo que as soluções obtidas
não correspondam ao ideal, elas lhe parecem melhor que o risco de enfrentar um
tipo de autonomia que pode voltar-se para a limitação ou a eliminação de sua
“liberdade”. A esse curioso processo intelectual autodestrutivo corresponde,
naturalmente, uma orientação mais ou menos tosca da sociedade inclusiva.
Como a maioria das grandes universidades são oficiais, elas se inserem no
âmbito da administração estatal. Mesmo onde os movimentos de reforma
universitária tiveram maior êxito, eles não conseguiram extinguir as pressões
indiretas do financiamento oficial e a necessidade de empregarem-se expedientes
políticos (às vezes através das entidades estudantis), para compensar a falta de
autonomia real.
O que nos importa, nesse painel sumário, são as repercussões de semelhante
estilo de vida acadêmica sobre a dinâmica da universidade como instituição
social. Ela se compõe, regularmente, de professores, pesquisadores e estudantes
que, mesmo em matérias de maior significado para a sua existência e
aperfeiçoamento, agem como “homens do seu meio” (o que quer dizer: “homens
de seu nível social” e apenas ocasionalmente “homens de sua época”). Eles
ignoram e contrariam facilmente as imposições mais simples e claras de seus
papéis intelectuais como universitários ou os interesses legítimos da própria
universidade, onde enxerguem (ou pensem enxergar) qualquer ameaça efetiva ou
fictícia e atual ou remota ao complexo statu quo cultural, que permite manter e
fortalecer a situação descrita. Dessa perspectiva, a universidade é uma instituição
desarmada e desorientada, incapaz de tomar consciência de si mesma, das
necessidades culturais que deveria atender e das atribuições que a converteriam
numa instituição educacional diretora. No passado, dados a estabilidade da
ordem social e o equilíbrio dinâmico que se estabeleceu entre ela e o
funcionamento da universidade, isso não importava. O “acadêmico” não era nem
devia ser um “universitário”. Era um “notável”, cujo prestígio procedia da
conjugação de sua condição estamental com a qualidade de “homem de saber”.
No presente, aí se acha o próprio fulcro do drama em que se debatem os
universitários e as universidades na América Latina. Rompida a estabilidade da
ordem social e quebrado o equilíbrio dinâmico que existia nas relações do
“acadêmico” com a sociedade, as tensões e os conflitos que irrompem no meio
social eclodem devastadoramente no seio da universidade, apanhando-a
desprevenida para resguardar suas funções socioculturais no clima de uma
sociedade em mudança. O pior é que as inconsistências da instituição e dos
papéis intelectuais configurados em seu sistema de status condicionam a
definição de lealdades em direções centrífugas. Interesses, aspirações e valores
sociais imanentes às posições dos universitários na estrutura da sociedade é que
determinam seus ajustamentos intelectuais, mesmo sob a quebra fragorosa de
obrigações ou deveres universitários imperiosos. A universidade perde, por
conseguinte, em substância e em capacidade estratégica. Em vez de adaptar-se
rapidamente às condições de mudança da sociedade, renovando-se para
influenciar qualitativamente as direções e a intensidade das alterações
socioculturais em processo, lança-se à defesa obstinada de suas estruturas
inoperantes (algumas “arcaicas”, mas outras “modernas” e até “ultramodernas”)
e das tendências de conservantismo cultural predominantes nos estratos
superiores das classes médias e altas. Em alguns países, ela chega a
comprometer-se, pela omissão e pela adesão mais ou menos disfarçada da
maioria do corpo docente e discente, ao novo modelo de opressão totalitária, que
dissimula a exacerbação do conservantismo sob a capa de “revolução”. Portanto,
a universidade latino-americana não está apenas desarmada e desorientada numa
era de mudança. Ela se revela incapaz de absorver institucionalmente o impacto
construtivo da mudança sociocultural. Por isso, em vez de adaptar sua
organização, estrutural e funcionalmente, às necessidades histórico-sociais
emergentes, ela se acomoda, pela opção consciente e pela ação deliberada,
principalmente ao nível do corpo de professores e de pesquisadores, às
expectativas sociais dos círculos conservadores. O observador estranho poderia
pensar na fórmula consagrada da “traição dos intelectuais”. Entretanto, nem isso
acontece. Ninguém trai uma causa que não existe ou que não aceita. Em um
sentido preciso, a universidade como instituição integrativa das grandes
ambições intelectuais e como instituição culturalmente orientadora da sociedade
está por constituir-se. Os universitários que optam pelos caminhos políticos de
suas classes sociais e agem de acordo com sua miopia histórica, mantêm-se fiéis
àquilo que aprenderam a acreditar, a respeitar e a servir. Pode-se lamentar a
confusão e o drama resultantes, pois a universidade concorre para fortalecer o
bloqueio cultural do horizonte intelectual das próprias elites. Mas, não se deve
obscurecer o fato primordial: a universidade realiza, através da maioria dos
professores, investigadores e alunos, a missão que lhe é conferida por uma
sociedade na qual os interesses culturais da coletividade se subordinam aos
interesses culturais “dos que mandam”. Se não ocorrer nenhum outro tipo de
alteração, ela só se converterá num fator de desenvolvimento quando a mudança
sociocultural progressiva entrar livremente na lógica do comportamento político
dos estratos superiores das classes médias e altas.
Essas duas conclusões são irrefutáveis. Os problemas de dinâmica cultural de
qualquer instituição precisam ser resolvidos a partir de dentro. As pressões
externas podem dar um impulso inicial, exercer uma influência fiscalizadora
estimulante ou proporcionar alguns incentivos constantes. Todavia, os
professores, pesquisadores e administradores das universidades — para não se
falar dos estudantes — precisam assumir as responsabilidades impostas por uma
era de desequilíbrio e de exigências radicais. Precisam, pois, definir seus papéis
intelectuais e os deveres morais correspondentes segundo limites mais amplos e
complexos. Sem essa redefinição, jamais poderão obrigar-se a si próprios e à
sociedade a uma nova orientação, no incremento dos recursos materiais e
humanos destinados ao ensino superior ou à pesquisa científica e na melhoria
dos critérios de aplicação de tais recursos. Os chamados problemas do ensino
superior, de tão graves e crônicos, já pertencem ao consenso geral (pelo menos
nos aspectos mais visíveis e nas suas implicações quantitativas). Eis os
principais tópicos do repertório usual: número reduzido de vagas e sua má
distribuição entre as escolas mais procuradas; privilegiamento de critérios
extraeducacionais na seleção dos candidatos; mecanismos impróprios de
formação, recrutamento e promoção de professores ou pesquisadores;
predomínio do ensino livresco, verbal e dogmático; falta de interação construtiva
nas relações entre docentes e estudantes, inclusive no treinamento em pesquisa;
inexistência de meios adequados para a pesquisa, quer a vinculada ao ensino,
quer a associada à descoberta de conhecimentos originais; ausência de vitalidade
financeira e de autonomia real das universidades, incapazes de elaborar e pôr em
prática os seus próprios orçamentos e suas políticas educacionais; deficiência
dos canais de comunicação regular com centros mais avançados de ensino e de
pesquisa, da região ou do exterior; incapacidade de manter a continuidade do
crescimento quantitativo e da melhoria qualitativa dos serviços de ensino e de
pesquisa; a impossibilidade de converter o ensino pós-graduado em via eficiente
de seleção, especialização e aproveitamento constante dos talentos jovens;
dificuldades em instituir e em universalizar os requisitos acadêmicos da carreira
universitária (mestrado, doutoramento etc.) e em convertê-los na base do
peneiramento e promoção do pessoal docente ou de pesquisa; níveis baixos de
retribuição financeira das ocupações docentes e de pesquisa, agravados por
fatores permanentes de insegurança intelectual e de coação suasória ou violenta,
apontadas como os fatores responsáveis pelo desinteresse diante das carreiras
universitárias e pelo aumento crescente da “evasão de cérebros” para a exterior;
obstáculos à realização e desenvolvimento de grandes projetos de pesquisa
fundamental e aplicada, por motivos econômicos ou por outras razões, de
natureza institucional, cultural ou política. Sabe-se que enquanto problemas
dessa envergadura não forem resolvidos, as universidades permanecerão como
um “símbolo civilizatório”, satisfazendo apenas parcialmente as funções
socioculturais que o meio já absorveu institucionalmente. Contudo, como eles
poderão ser resolvidos se a sociedade e a própria universidade não modificarem
suas atitudes, avaliações e comportamentos diante da mudança sociocultural
progressiva e das funções do ensino superior, da ciência e da tecnologia
científica na civilização moderna? É pouco provável que, numa época em que
até nações avançadas perdem terreno na competição cultural pelo progresso da
ciência e da tecnologia científica, sociedades subdesenvolvidas consigam marcar
tentos concretos sem aceitar transformações profundas e radicais em suas
instituições universitárias.
À luz dessas considerações, seria conveniente indagar-se quais são as
perspectivas que se abrem, em nossos dias, às universidades latino-americanas.
Estão elas condenadas a uma espécie de hibernação cultural precariamente
dissimulada, ou podem, realmente, conquistar o terreno que as afastam de uma
autêntica fermentação intelectual criadora? É impossível responder a essa
pergunta através de prognósticos seguros. Não obstante, há margem para
esperanças razoavelmente alentadoras e elas delineiam um quadro de relativa
confiança no futuro. Ao que parece, as perspectivas mais promissoras não são
para o presente ou para o futuro imediato. Além disso, dependem de mudanças
de atitudes e de comportamentos que não são automáticas e tampouco simples
ou rápidas. No entanto, a cada dia que passa a modificação de atitudes e de
comportamentos, nas esferas centrais da dinâmica da cultura e da sociedade,
impõe-se, visivelmente, como matéria de pura sobrevivência. Queiram ou não,
as novas gerações terão de enfrentar os dilemas econômicos, sociais e culturais
que pesam sobte os diferentes países da América Latina, à luz de novos critérios
morais e políticos. Desse ângulo, não só as coisas terão de alterar-se em sua
substância. Na escolha entre a estagnação e a sobrevivência a universidade se
encaminhará, voluntária ou involuntariamente, no sentido de saturar o vazio
cultural em que ela se debate na atualidade. Isso nos permite inferir que ela
acabará assimilando e dominando o seu destino, que consiste em transformar-se
num centro dinâmico de produção autônoma de saber original.
Contra tais perspectivas de transformação revolucionária a largo prazo
militam certas influências ativas (que, presumivelmente, serão eliminadas ou
neutralizadas sob a aceleração do crescimento econômico e do desenvolvimento
sociocultural). Entre essas influências, medularmente negativas, cumpre-nos
ressaltar: o caráter irracional e destrutivo da opressão conservadora; a escassez
de recursos (especialmente financeiros) para enfrentar os custos crescentes da
expansão da pesquisa fundamental e aplicada de relativa envergadura; as
propensões individualistas e altamente irrealistas, predominantes entre os
cientistas e os técnicos de maior imaginação e talento criador.
A primeira influência erige-se, atualmente, na grande barreira invisível da luta
surda das universidades com um ponto de partida histórico-cultural desanimador.
A opressão conservadora atua de forma corrosiva, tanto no seio das
universidades (graças ao número de professores, de pesquisadores e até de
estudantes que se identificam com o statu quo), quanto no meio social inclusivo
(pois amplos círculos sociais das classes altas, médias e baixas ligam os seus
destinos ao capitalismo dependente). O que a torna particularmente destrutiva e
perniciosa é a técnica de desmascaramento total, de que lança mão para
resguardar-se de toda espécie de mudança que pareça ameaçar o statu quo. Essa
técnica, descoberta pelos socialistas e por eles aplicada na luta contra os
ideólogos da burguesia, é explorada na América Latina pelos elementos mais
obstinadamente reacionários dos círculos conservadores. O procedimento
seguido é tosco e brutal: projetar as soluções ou opções consideradas “perigosas”
(em termos dos interesses conservadores e de sua hegemonia nas estruturas de
poder), com as pessoas ou grupos sociais que as representem, numa área de
abominação ideológica. Assim, problemas de natureza técnica, equacionados e
resolvidos em bases estritamente técnicas, são convertidos em matéria ideológica
e manipulados como conflitos de natureza política. Forja-se, desse modo, o
conjunto de verbalizações simuladoras que dão base seja à repudiação das
tentativas de mudança cultural, seja à repressão das condutas inovadoras (ou de
seus agentes humanos) por meios políticos, militares ou policiais. Semelhante
técnica rudimentar causou e está causando maiores danos ao desenvolvimento
das universidades latino-americanas que o estancamento econômico, a
estagnação cultural ou a escassez de recursos materiais e humanos, considerados
em si mesmos.
A segunda influência negativa é de observação mais difícil. Por motivos
aparentemente louváveis, entre os quais se misturam o orgulho intelectual, o
temor de incompreensões e o risco da perda de prestígio, os líderes dos melhores
grupos de cientistas e de técnicos tendem a esconder ou a camuflar os aspectos
mais precários de suas condições normais de trabalho. Todavia, desde os fins do
século passado, mas principalmente depois da Primeira Guerra Mundial, é fácil
notar-se certos florescimentos súbitos em alguns campos de pesquisas e, em
seguida, o declínio paulatino, por vezes irrecuperável, dos progressos obtidos.
Essa curva tem sido vista e interpretada, especialmente por observadores
estrangeiros, como evidência de uma versatilidade intelectual insanável. De fato,
porém, ela nasce de fatores de natureza institucional. As universidades não
possuem meios para captar recursos volumosos segundo um ritmo
multiplicativo. Em consequência, elas conseguem desencadear certos
desenvolvimentos do ensino ou da pesquisa que não podem ser mantidos ao
longo de um período grande de tempo. Os primeiros passos vão muito bem, sob
a euforia de condições circunstanciais. O difícil é preservar o terreno ganho e
usá-lo para avançar regularmente nas direções previstas. Os cientistas e os
técnicos possuem plena consciência do que ocorre, fazendo com frequência
terríveis esforços para se garantirem continuidade de desenvolvimento em seus
projetos mais ou menos ambiciosos. Como não possuem controle dos recursos
nem da administração, acabam sofrendo as frustrações resultantes e ficando com
a responsabilidade dos malogros. Acresce que nem sempre estes podem ser
atribuídos a causas financeiras visíveis: mudanças inesperadas e inevitáveis na
direção política ou administrativa do país ou da instituição acarretam o desenlace
negativo com a proverbial dança de áreas aparentemente privilegiadas na
aplicação de recursos escassos. O que interessa, é que se estabelece, de maneira
crônica, um processo de vaivém. O terreno ganho em dez anos é perdido nos dez
anos seguintes, o que faz com que as relações de gerações sucessivas sejam
insuficientes para a recuperação dos avanços que não chegam a se incorporar,
definitivamente, na rotina do trabalho intelectual institucionalizado. A “curva”
descrita parece ser uma fatalidade das sociedades subdesenvolvidas. Ao se
atingir uma fase crucial, que poderia servir de base para um esforço mais
complexo e produtivo, o próprio processo global se esboroa ou entra em
deterioração, passando a dar um rendimento desencorajador. Tal fenômeno não é
produto de inépcia nem de versatilidade, pois tanto o início quanto a manutenção
do processo exigem pensamento criador, energias intelectuais incomuns e grande
tenacidade. Porém, das condições materiais e culturais ambientes, que não
garantem, como ocorre nas sociedades desenvolvidas, uma evolução constante
na direção de patamares (ou picos) mais altos.
A terceira influência negativa transparece nas orientações dominantes nos
campos mais dinâmicos da ciência ou da tecnologia.
Os grupos de maior gabarito e de prestígio consolidado apegam-se, com
frequência, a duas tendências nocivas. Uma delas consiste em estimular-se
especializações que respondem a progressos recentes da ciência e da tecnologia
nos centros mundiais mais avançados. Essa tendência leva à valorização
sistemática de áreas de trabalho que raramente podem ser cultivadas em países
subdesenvolvidos. O seu resultado mais funesto é bem conhecido. A preparação
de cientistas ou de técnicos destinados, fatalmente, ao inaproveitamento pelo
meio social ou à imigração para o exterior. Há uma enorme polêmica em torno
da “evasão de cérebros” da América Latina. As estimativas existentes mostram
que só os Estados Unidos absorveram, de 1941 a 1963, numerosas ondas
sucessivas de pessoal qualificado dessa região.[70] O que não se analisa são os
fatores intelectuais ocultos, que comprometem as universidades nesse processo.
Se excluirmos os baixos salários, os fatores de insegurança intelectual e de
repressão violenta, verificaremos que muitos grupos de cientistas e técnicos
teimam em incentivar o cultivo de áreas de trabalho que não encontram
possibilidades de fomento e de expansão nas atuais condições, o que significa
que eles estão, consciente ou inconscientemente, estimulando a “evasão de
cérebros”. A outra tendência consiste em valorizar unilateralmente a pesquisa
fundamental, independentemente do significado que ela possa ter para os
problemas práticos ou humanos do mundo ambiente. Assim, cientistas e
técnicos, cada qual a seu modo, voltam as costas para as implicações intelectuais
de suas investigações para a autonomização cultural de seus países. Os
argumentos em que essa orientação se funda não podem ser discutidos aqui. O
que nos interessa são os seus efeitos: os melhores representantes do progresso da
ciência e da tecnologia científica assumem atitudes ou comportamentos que não
correspondem à ética de responsabilidade intelectual, que deveria ter vigência
numa sociedade subdesenvolvida. Omitindo-se diante dos problemas práticos e
humanos do mundo ambiente, nos setores de trabalho intelectual produtivo que
procuram expandir, concorrem direta e permanentemente para divorciar a
pesquisa científica e a pesquisa tecnológica dos esforços de desenvolvimento
cultural autônomo.
A favor das perspectivas de uma revolução criadora no seio das universidades
latino-americanas contam outras influências: a emergência e a difusão de novas
formas de percepção e de consciência da realidade pelos universitários
(professores, pesquisadores e estudantes); os efeitos construtivos do ensino e da
difusão da ciência ou das compulsões da tecnologia avançada; a crescente
valorização e utilização de técnicas racionais de captação e de aplicação dos
recursos materiais e humanos disponíveis. Essas influências são,
frequentemente, solapadas ou neutralizadas. Todavia, o fato de que elas existam
e se fortaleçam dia a dia é, em si mesmo, um índice de que as próprias
universidades entraram em uma fase de desorganização da qual não poderão sair
senão aceitando e absorvendo inovações mais ou menos radicais.
Os estudos sociológicos sobre os estudantes, os professores e o uso das
oportunidades educacionais revelam que estão ocorrendo mudanças de grande
significação em toda a América Latina e que essas mudanças afetarão,
profundamente, o futuro próximo e remoto das universidades. A dissidência e a
natureza da dissidência no seio do corpo docente e no meio estudantil não
possuem os característicos cataclísmicos que lhe são comumente imputados
pelos círculos conservadores. Ao contrário do que se afirma nesses círculos,
trata-se de um inconformismo intelectual substancialmente construtivo, com
objetivos críticos patrióticos e altruísticos. Rala e inconstante entre os
professores, a dissidência é, porém, quase maciça entre os estudantes.
Ameaçados em seu futuro pelo estancamento econômico e pelo atraso cultural,
os jovens se mostram mais propensos a um radicalismo utópico, pretendendo
encontrar na transformação estrutural das universidades respostas para
problemas que só podem ser resolvidos através da “revolução pelo
desenvolvimento”. Em consequência, combinam, de uma forma ou de outra, a
filosofia do gradualismo à “crítica do sistema”. As conexões desse radicalismo
utópico com as situações sociais de classes médias é bem conhecida. Os
membros dessas classes lutam com maiores dificuldades de preservação do
status na sucessão de gerações. Somente sob a condição de intensificação do
crescimento econômico e do desenvolvimento social é que podem privilegiar o
saber técnico, científico ou técnico-científico na competição por melhores
posições na participação do rateio social da renda, do prestígio social e do poder.
Os círculos conservadores têm consciência disso e temem os movimentos
estudantis mais por causa de seus efeitos indiretos imprevisíveis e
incontroláveis. O importante, para a nossa análise, está nas alterações implícitas
nessa mudança de perspectiva intelectual. A universidade acaba abrigando uma
população crescentemente vinculada a uma impostação pragmática das relações
entre conhecimento e sociedade ou entre universidade e desenvolvimento. Aos
poucos, as áreas de resistência às inovações essenciais restringem-se, diluem-se
ou desmoralizam-se. Ao mesmo tempo, cresce a consciência de que a
universidade é um “investimento produtivo” e um meio para atingir fins de
significação nacional. Portanto, as manifestações de dissidência apontadas
projetam a universidade no próprio fluxo das mudanças econômicas, sociais e
culturais que são vitais para desencadear a era de transição numa sociedade
subdesenvolvida. Elas suscitam os problemas da “reforma universitária” em
termos estruturais. E voltam-se, direta e conscientemente, para as funções
potenciais irrealizadas da instituição, procurando encontrar nelas a chave para a
autonominação cultural e política do desenvolvimento econômico. Assim, na
crista de tensões reprimidas ou toleradas, as universidades ganham o centro do
palco e insinuam-se entre as forças históricas que tentam plasmar o futuro
segundo padrões especificamente nacionais.
O ensino da ciência em bases institucionais e os efeitos reflexos da absorção
de tecnologia avançada também estão provocando alterações radicais nas
representações relacionadas com a organização e o rendimento das
universidades. Para o cientista, a universidade não é nem pode ser um fim em si,
mas um meio para atingir certos fins: cabe-lhe proporcionar ao jovem de talento
uma preparação rigorosa, que o torne apto a dedicar-se à investigação científica e
ao progresso da ciência. Por isso, à expansão do ensino da ciência se conjugou o
aparecimento de novas atitudes na avaliação das universidades latino-
americanas, surgindo um processo de renovação institucional que colocou os
problemas de reforma universitária na linguagem objetiva mas revolucionária do
conhecimento científico. Algo paralelo desenrolou-se em conexão com a
absorção de tecnologia avançada pelo ambiente. Surgiram grandes organizações
que não se interessam pela extração social ou pelo prestígio dos graduados, mas
por sua competência e qualificações profissionais. Elas não só necessitam
crescentemente de maior número de graduados; querem graduados aptos para as
carreiras técnico-profissionais escolhidas. Em consequência, também nessa
esfera a universidade — símbolo e fim em si mesma — cede lugar à
universidade como meio para certos fins, avaliados em termos pragmáticos
estritamente utilitários. A importância especial desses dois desenvolvimentos
procede do fato de que eles deram origem a processos de avaliação objetiva que
repercutiram, estão repercutindo e tendem a repercutir ainda mais na adoção de
novos critérios de organização das universidades e de melhoria do seu
rendimento quantitativo e qualitativo. O falso humanismo, que se alimentava de
um ensino enciclopédico-dogmático estéril, colocou-se na defensiva e passou a
ser substituído por uma filosofia educacional pragmática, que procura fortalecer
as funções da universidade que são fundamentais para o florescimento da ciência
e da tecnologia científica.
Um dos pontos nevrálgicos do impasse das universidades latino-americanas
sempre residiu na escassez de recursos materiais e humanos, agravada por sua
má aplicação sistemática. O encravamento cultural da instituição concorreu para
que ela ignorasse, até hoje, os recursos de aprendizagem do ambiente e, ao
mesmo tempo, tornou-a pouco sensível às necessidades sociais emergentes,
divorciando a aplicação dos recursos disponíveis dos processos de mudança
cultural alimentados pelo próprio meio. Apesar das deficiências de tais recursos
para o esforço educacional requerido, toda tentativa de racionalização esbarrava
nos vícios congênitos de uma estrutura institucional montada para converter o
ensino superior em um fim em si mesmo e em um bem de consumo. As
controvérsias que eclodiram, em toda parte, quando se introduziram novas
ideias, que pretendiam instaurar critérios de avaliações de custos e eficácia das
universidades, indicam de maneira insofismável o quanto certos hábitos de
devastação improdutiva estavam e continuam a estar firmemente arraigados. No
entanto, a explosão demográfica, primeiro, e as pressões qualitativas sobre a
diferenciação e a melhoria dos padrões de ensino, em seguida, concorreram para
impor certos procedimentos de racionalização do esforço educacional como uma
espécie de mal necessário. Por aí acabaram se esboçando novas tendências, que
foram fortalecidas e reorientadas por organismos internacionais (principalmente
os instituídos pela UNESCO), e que estão acentuando a importância multiplicativa
do uso racional de recursos escassos. Embora palavras como “racionalização
escolar”, “programação educacional” e “planejamento educacional” (e outras
correlatas) ainda constituam mera fachada, para esconder ou disfarçar a realidade
antiga, o fato é que a absorção e a difusão de novas técnicas de avaliação e
aproveitamento eficaz dos recursos destinados à educação aumentam dia a dia. A
grande dificuldade, que obstava esses processos no passado, residia na falta de
especialistas para lidar com os problemas de administração e de supervisão do
funcionamento do sistema escolar. Não só o número desses especialistas tem
aumentado, na esfera da educação e das ciências sociais, como também surgiram
novos serviços (mantidos pelos governos, pela iniciativa privada ou por
organismos internacionais), nos quais a sua cooperação pode ser explorada
construtivamente. Esse desenvolvimento é significativo para todo o sistema
escolar, mas apresenta especial importância no que concerne ao ensino superior e
à expansão da pesquisa científica ou tecnológica através das universidades.
Como o incremento dos recursos materiais e humanos está sujeito a certos tetos
relativamente rígidos, a elasticidade tem de ser obtida na esfera do modo de usar
os recursos. A introdução de critérios racionais contém implicações positivas em
outros dois pontos. De um lado, no da captação de recursos para a expansão e
melhoria das universidades. Vários vícios e deformações, herdados do passado, e
que limitavam drasticamente a mobilização de recursos materiais ou humanos
disponíveis, estão sendo lentamente removidos. De outro, a questão do
rendimento tende a ser levantada dentro de uma linha de superação consciente e
deliberada do subdesenvolvimento. As universidades acordam para as
necessidades econômicas, sociais e culturais emergentes, entrosando-se
lentamente às tentativas de associar a expansão da ciência e da tecnologia
científica à intensificação do crescimento econômico e do desenvolvimento
social.
Esse sumário mostra, em traços largos, que existem influências que trabalham
no sentido de adaptar as universidades aos processos de mudança social
progressiva e às funções que elas devem preencher, nos períodos iniciais de
transição, como fatores de autonomização cultural. As evidências comprováveis
não permitem falar que as transformações estão se dando de modo acelerado e
em bloco. Ao contrário, trata-se de um processo difícil, em que o próprio homem
com frequência prejudica a si mesmo e aos objetivos vitais de sua comunidade
nacional. Todavia, as coisas não poderiam se desenrolar de outra maneira. As
sociedades subdesenvolvidas precisam percorrer um árduo caminho para
vencerem suas barreiras internas e a corrida de obstáculos com as sociedades
avançadas. Aos poucos, à medida que aprendem a lidar produtivamente com
suas tensões e desequilíbrios sociais, é que descobrem que também podem
recorrer por conta própria às técnicas de invenção cultural ao seu alcance e que a
utilização construtiva dessas técnicas, nas condições permitidas por seus
recursos materiais e humanos, pode se converter numa rotina fecunda. Sob
muitos aspectos, o fato de que esse processo esteja se desenrolando é muito mais
importante que as debilidades e as inconsistências que ele apresenta. Isso
significa que, por fim, as universidades latino-americanas estão modificando sua
relação dinâmica com o próprio padrão da civilização ocidental. Elas começam a
desenvolver-se no sentido de saturar as funções potenciais que deviam preencher
institucionalmente e tendem a fazer isso numa escala que se adapta,
progressivamente, à negação e à superação do subdesenvolvimento. Portanto, as
páginas da história estão virando. É provável que ao desempenhar tais funções
elas se convertam em instituições diretoras, despertando em seus Povos a
consciência do valor da liberdade para a construção de seus destinos nacionais.
SOBRE O AUTOR

FLORESTAN FERNANDES nasceu em São Paulo (SP) no dia 22 de julho de 1920.


Tendo abandonado o primário na infância, frequentou o curso de madureza nos
anos letivos de 1938 a 1940. Formou-se em ciências sociais em 1943 pela
Universidade de São Paulo, onde obteve a licenciatura em 1944 — ano em que
se casou com Myriam Rodrigues, com quem teve seis filhos. De 1945 a 1946
cursou a pós-graduação na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo,
onde obteve o título de mestre em ciências sociais (antropologia) com a
dissertação A organização social dos Tupinambá (publicada em 1949). Tornou-
se doutor em ciências sociais (sociologia) pela USP em 1951 com a tese A função
social da guerra na sociedade tupinambá (publicada em 1952) e, em 1953, livre-
docente da cadeira de Sociologia I da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
da USP com a tese Ensaio sobre o método de interpretação funcionalista na
sociologia. Em 1964 foi aprovado como professor titular de Sociologia I da
mesma faculdade com a tese A integração do negro na sociedade de classes
(publicada em 1965). Entre 1965 e 1966 foi visiting-scholar na Columbia
University. Afastado da USP por aposentadoria compulsória em 24 de abril de
1969, em decorrência do Ato Institucional nº 5, lecionou sociologia na
Universidade de Toronto, Canadá, de 1969 a 1972, regressando ao Brasil no final
desse último ano. De 1976 a 1977 foi professor de cursos de extensão cultural no
Instituto Sedes Sapientiae, sendo contratado como professor da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo no último trimestre de 1977. Durante o
primeiro semestre desse ano foi visiting-professor na Yale University. Em 1978
torna-se professor titular da PUC-SP. Foi eleito duas vezes deputado federal por
São Paulo, pelo Partido dos Trabalhadores, nas legislaturas de 1987 a 1990 e de
1991 a 1994. Entre os prêmios e distinções que recebeu, destacam-se: Prêmio
Temas Brasileiros, conferido pela USP (1944), Prêmio Fábio Prado (1948),
Medalha Silvio Romero, conferida pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro
(1958), título de cidadão emérico conferido pela Câmara Municipal de São Paulo
(1961), Prêmio Jabuti de Ciências Sociais (1963), Prêmio Sociedade Brasil-
Israel (1966), The Anisfield-Wolf Award in Race Relations for 1969, conferido
pela Cleveland Foundation, professor emérito da USP (1985), doutor honoris
causa pela Universidade de Utrecht (1986), Prêmio Estácio de Sá conferido pelo
Governo do Estado do Rio de Janeiro (1989), doutor honoris causa pela
Universidade de Coimbra (1990), título de grande oficial da Ordem Nacional do
Mérito Educativo, conferido pelo Ministério da Educação (1993), Prêmio
Almirante Álvaro Alberto / Ciências Humanas, conferido pela Secretaria de
Ciência e Tecnologia da Presidência da República (1993), título de cidadão
honorário conferido pela Câmara Municipal de São Carlos (1994), título de
grande oficial da Ordem do Rio Branco, conferido pelo Ministério das Relações
Exteriores (1995) e título póstumo de cidadão honorário conferido pela Câmara
Legislativa do Distrito Federal (1995). Faleceu no dia 10 de agosto de 1995, em
São Paulo, seis dias após ter sido submetido a transplante de fígado no Hospital
das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Autor, organizador e tradutor de diversas obras, entre teses, ensaios, artigos,
conferências, monografias e prefácios, colaborou intensamente em jornais como
O Estado de S. Paulo, Folha da Manhã, Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil e
Jornal de Brasília. Entre seus inéditos e publicações no Brasil e no exterior,
destacam-se: Contribuição à crítica da economia política, de Karl Marx
(tradução e introdução, 1946); A organização social dos Tupinambá (1949); A
função social da guerra na sociedade tupinambá (1952); A etnologia e a
sociedade no Brasil: ensaio sobre aspectos da formação e desenvolvimento das
ciências no Brasil (1958); Negros e brancos em São Paulo (em colaboração com
Roger Bastide, 1959); Mudanças sociais no Brasil (1960); Ensaios de sociologia
geral e aplicada (1960); Folclore e mudança social na cidade de São Paulo
(1961); A sociologia numa era de revolução social (1962); A integração do
negro na sociedade de classes (1964); Educação e sociedade no Brasil (1966);
Fundamentos empíricos da explicação sociológica (1967); Sociedade de classes
e subdesenvolvimento (1968); The Latin American in Residence Lectures
(1969/1970); Elementos de sociologia teórica (1970); O negro no mundo dos
brancos (1972); Comunidade e sociedade no Brasil (organização, 1972);
Comunidade e sociedade (organização, 1973); Comunidade e sociedade
(organização, tomos inéditos); Las clases sociales en América Latina (em
colaboração com N. Poulantzas e A. Touraine, 1973); Capitalismo dependente e
classes sociais na América Latina (1973); A investigação etnológica no Brasil e
outros ensaios (1975); A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica (1975); A universidade brasileira: reforma ou revolução? (1975);
Circuito fechado: quatro ensaios sobre o “poder institucional” (1976); A
sociologia no Brasil: contribuição para o estudo de sua formação e
desenvolvimento (1977); A condição de sociólogo (1978); O folclore em questão
(1978); Lênin (organização e introdução, 1978); Da guerrilha ao socialismo: a
Revolução Cubana (1979); Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo”
(1979); Brasil: em compasso de espera (l980); A natureza sociológica da
sociologia (1980); Movimento socialista e partidos políticos (1980); Poder e
contrapoder na América Latina (1981); O que é revolução? (1981); A ditadura
em questão (1982); K. Marx, F. Engels: história (organização e introdução,
1983); A questão da USP (1984); Que tipo de república? (1986); Nova
República? (1986); O processo constituinte (1988); A Constituição inacabada
(1989); O desafio educacional (l989); Pensamento e ação: o PT e os rumos do
socialismo (1989); O significado do protesto negro (l989); A transição
prolongada (1990); As lições da eleição (1990); O PT em movimento:
contribuição ao I Congresso do Partido dos Trabalhadores (1991); Reflexão
sobre o socialismo e a autoemancipação dos trabalhadores (1992);
Parlamentarismo: contexto e perspectivas (1992); LDB: impasses e
contradições (1993); Democracia e desenvolvimento: a transformação da
periferia e o capitalismo monopolista da era atual (1994); Consciência negra e
transformação da realidade (1994); Tensões na educação (1995); A contestação
necessária (1995); Em busca do socialismo (1995); O colapso do governo
Collor e outras reflexões (em colaboração com Antônio Risério, inédito).
ÍNDICE REMISSIVO

abertura dos portos


abolição da escravatura
abolicionismo
açúcar
acumulação de capital
África do Sul
Alemanha
algodão
Alves, S. Rodrigues
Amaral, Raul Joviano do
América Latina
“American imperialism and the Brazilian student movement” (Goertzel)
anomia social
antigo regime
apropriação colonial
Argentina
aristocracia
artesãos
“atraso cultural”
autocracia burguesa
autonomização cultural
autoritarismo
Azevedo, Fernando de

“baiano”
Bastide, Roger
Bento, Antônio
Blute, Marion
Bolívia
Buarque de Holanda, Sergio ver Holanda, Sergio Buarque de burguesia
ver também revolução burguesa
burocracia

cacau
café
Camargo, Oswaldo de

Candido, Antonio
capital mercantil
capitalismo comercial
capitalismo competitivo
capitalismo da periferia ver periferia do capitalismo
capitalismo dependente
capitalismo industrial
Cardim, padre
Cardoso, Fernando Henrique, 20 castas
catolicismo
centros econômicos
Chile
civilização ocidental
classe alta
classe média
classe operária ver operários
classes sociais
ver também estratificação social
Colômbia
Colônia
colônia de exploração
colônia de povoamento
colonialismo
colonização
colonos
comércio
competição
comunismo
ver também socialismo
concentração de poder
concentração de riqueza
conformismo
consciência social
consumo
Coroa
cortiços
Costa Rica
Couty
crescimento econômico
ver também desenvolvimento econômico
crise da universidade brasileira
Cuba

democracia
“democracia racial”
descolonização
desenvolvimento econômico
ver também crescimento econômico
desenvolvimento social
desigualdade racial
ver também relações raciais
despotismo
direita política
ver também esquerda política discriminação racial
ditadura militar
dominação burguesa
dominação patrimonialista
Duarte, Nestor
Durkheim, Émile

economia colonial
economia de plantação
economia metropolitana
economia urbano-comercial
economia urbano-industrial
educação
ver também ensino médio; ensino superior; universidades latino-americanas
El Salvador
elites
elitismo
emancipação nacional
empresas
Engels, Friedrich
ensino médio
ensino superior
ver também universidades latino-americanas
Equador
era colonial
era de emergência
era de transição neocolonial
Escola Paulista de Sociologia
“escravidão antiga”
escravidão mercantil
“escravidão moderna”
escravos
escravos indígenas
Espanha
esquerda política
ver também direita política
Estado autocrático
Estado Novo
Estado patrimonial
Estados Unidos
estamentos sociais
estratificação social
ver também classes sociais
estruturas sociais
“Estudante e política no Brasil” (Foracchi)
estudantes
ver também educação; ensino médio; ensino superior; universidades latino-americanas
Europa
“evasão de cérebros”

família real portuguesa, transplantação da
família senhorial
favelas
fazenda
feudalismo
Foracchi, Marialice M.
Forças Armadas
França
Franco, Maria Sylvia de Carvalho
Freyre, Gilberto
Furtado, Celso

Goertzel, Ted
Goes, Fernando
golpes militares
Grã-Bretanha
Guatemala

Haiti
Hernández, Salvador
Holanda
Holanda, Sergio Buarque de
Honduras

Ianni, Octavio
“Ideologia estudantil e sociedade dependente” (Foracchi)
ideologias
Igreja católica
imigrantes
imperialismo
Império brasileiro
império colonial
importação
inconformismo
Independência do Brasil
industrialização
inflação
Inglaterra
Integração do negro na sociedade de classes, A (Florestan Fernandes),
integração nacional
intelligentsia latino-americana
interesses de classe
Itália

Japão
Juventude na sociedade moderna, A (Foracchi)

lavoura
Leite, José Correia, 104 liberalismo
liberdade intelectual
libertos
lucros

macrocosmo social
Maier, Joseph
Mannheim, Karl
Mariátegui, José Carlos
Marx, Karl
massa negra
massas
McKie, Craig
mercado colonial
mercado mundial
mestiços
Metrópole
México
microcosmo social
migrantes
militarismo
Minas Gerais
mineração
miscigenação
miséria
Missão Rockefeller
Mito y realidad de la universidad boliviana (Taborga)
mobilidade social
modernização
Modernización y crisis en la universidad latinoamericana (Vasconi & Rega), monarquia
monopólio da terra
mudança cultural
mudança social
mulatos

Nabuco, Joaquim
nacionalismo
Nascimento, Abdias do
neocolonialismo
Nicarágua
nobreza
Nordeste brasileiro
Novo Mundo

Oeste paulista
operários
opressão
ordem escravocrata
ordem racial
ordem social

Panamá
Paraguai
participação institucional
Partido dos Trabalhadores
paternalismo
patrimonialismo
Patrocínio, José do
Pelegrini, José
periferia do capitalismo
Peru

pesquisa científica
pesquisadores
pilhagem
pobreza
poder político
política econômica
população negra
populismo
Portugal
Prado Júnior, Caio
preconceito racial
prestígio social
PRI y el movimiento estudantil de 1968, El (Hernández)
Primeira Guerra Mundial
produção capitalista
produção escravista
professores
profissões
progresso educacional
prosperidade
protesto negro

racismo
ver também discriminação racial; preconceito racial “radicalismo democrático”
“radicalismo intelectual”
Reca, Inés
reforma universitária
relações raciais
ver também desigualdade racial
República brasileira
República Dominicana
revolução burguesa
ver também
burguesia
Revolução burguesa no Brasil, A (Florestan Fernandes)
revolução capitalista
“Revolução de 30”
revolução socialista
Ribeiro, Darcy
Rio de Janeiro

salários
São Paulo
São Vicente, 64 secularização
serviços públicos
Sete ensaios de interpretação da realidade peruana (Mariátegui)
sistema colonial

sistema escolar
socialismo
sociedade de classes
ver também classes sociais sociedade escravista
sociedade feudal
sociedade metropolitana
sociedades subdesenvolvidas
sociologia crítica
sociólogos
Sousa, Antonio Candido de Melo e ver
Candido, Antonio
Stein, S. J.
“Student politics and political systems” (Weinberg & Walker)
subdesenvolvimento

Taborga, Huascar
tecnologia
tirania de classe
trabalho escravo
trabalho livre
tradicionalismo
tráfico negreiro
transição neocolonial

Universidade brasileira: reforma ou revolução? (Florestan Fernandes)
Universidade de São Paulo
Universidade de Toronto
Universidade necessária, A (Darcy Ribeiro)
universidades latino-americanas
urbanização
Uruguai
utopias

Vale do Paraíba
Vasconi, A.
Veneza
Venezuela
Viana, Oliveira
Vicente do Salvador, frei
violência

Walker, Kenneth N.
Weatherhead, R. W.
Weber, Max
Weinberg, Ian
[1] Ensaio escrito para o simpósio sobre “Perspectivas comparadas sobre a escravidão nas sociedades de
plantação do Novo Mundo”, realizado em Nova York, de 24 a 27 de maio de 1976, sob os auspícios da New
York Academy of Sciences.
[2] Para melhor entendimento dessa caracterização, veja-se, do autor: Capitalismo dependente e classes
sociais na América Latina, pp. 13 e segs., e esp., A revolução burguesa no Brasil, cap. 6.
[3] Essa caracterização foi explorada sinteticamente pelo autor em Sociedade de classes e
subdesenvolvimento, p. 111 e segs. Alguns aspectos centrais do solapamento da ordem escravocrata e
senhorial pelo elemento competitivo são descritos em A revolução burguesa no Brasil, cap. 4.
[4] Conforme R. Bastide e F. Fernandes, Brancos e negros em São Paulo, caps. 1 e 2, passim; e F.
Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, esp. vol. I, cap. 1. Quanto à interpretação das
transformações da produção escravista e da transição para a plantatação tropical moderna, ver A revolução
burguesa no Brasil, pp. 103 e segs.; e O negro no mundo dos brancos, pp. 142 e segs.
[5] Em alguns casos excepcionais, essa debilidade não era tão forte ou podia ser compensada pelo recurso
simultâneo a várias formas de apropriação colonial e, em consequência, de acumulação de capital mercantil
pelo senhor. Boxer, em A idade de ouro do Brasil, aponta alguns desses casos e concentra-se em um deles,
que permite ilustrar de modo quase limite o que era necessário para que isso ocorresse (veja-se Salvador de
Sá e a luta pelo Brasil e Angola. 1602-1686, passim).
[6] Esta interpretação, é óbvio, não colide com o que escreve F. H. Cardoso (Capitalismo e escravidão no
Brasil meridional, pp. 186-205). Aqui, o que temos em vista é a importância estrutural e dinâmica do
trabalho combinado sob a escravidão colonial e mercantil, elemento sem o qual não se tem uma perspectiva
para entender a própria localização e a função da extensão da jornada de trabalho e, em especial, o
acréscimo da produtividade através do trabalho cooperativo indiferenciado ou pouco diferenciado, mas
sujeito a ritmos próprios e a uma supervisão constante.
[7] Aliás, até ao nível da produção o trabalho escravo podia criar espaço econômico para o trabalho livre
(cf. A. von der Straten-Ponthoz, Le budget du Brésil. vol. III, pp. 112-113 e, esp., 117-118). Isso quer dizer
que a relação geral, apontada por O. Ianni (Ensaio sobre a escravidão e capitalismo), segundo a qual o
aparecimento do operário deitava uma de suas raízes na existência do escravo, pode ser generalizada e
aplicada aos países da periferia. No Brasil, por exemplo, os fundos para custear a imigração nasceram do
excedente econômico gerado pela escravidão mercantil, quer eles proviessem da iniciativa privada (como
na experiência da fazenda Ibicaba), quer do Estado senhorial e escravista).
[8] Cf. R. Bastide e F. Fernandes, Brancos e negros em São Paulo, pp. 34 e segs.; F. Fernandes, O negro no
mundo dos brancos, pp. 143-144.
[9] O negro, como escravo, liberto ou homem livre e semilivre, esteve excluído, na qualidade de agente
histórico, do desencadeamento da revolução burguesa; o mesmo não acontecia com a escravidão, que foi
um dos eixos em torno no qual se processou a acumulação do capital mercantil. Por isso, a protagonização
histórica do processo ficou nas mãos do fazendeiro e do imigrante (cf. F. Fernandes, A revolução burguesa
no Brasil, cap. 3). Para um alargamento da descrição histórica do período: C. Prado Jr., História econômica
do Brasil, caps. 16-20; e S. Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, cap. VII.
[10] Cf. A. M. Perdigão Malheiros, A escravidão no Brasil, vol. I, p. 32.
[11] A respeito dessa inconsistência medular, cf. R. Bastide e F. Fernandes, Brancos e negros em São Paulo,
pp. 82 e segs.
[12] Apesar de que, como se sabe, foram os sacerdotes os principais críticos do terror organizado, inerente à
escravidão, no Brasil colonial (veja-se, por exemplo, F. Mauro, Nova história e Novo Mundo, pp. 205-224).
[13] Para se avaliar, em profundidade, essa crise da consciência senhorial ultraconservadora, veja-se C. G.
Mota, Atitudes de inovação no Brasil: 1789-1801 e, principalmente, Nordeste 1817.
[14] A descrição foi contida na primeira etapa da transição neocolonial. O leitor que tiver interesse por uma
interpretação mais ampla, em função dos efeitos econômicos, sociais e políticos da Independência, deve
recorrer a A revolução burguesa no Brasil, caps. 1 e 2.
[15] O leitor poderá ter uma ideia clara do que era o estadão de vida senhorial e da rede de articulações que
prendiam o senhor ao circuito econômico geral em S. J. Stein, Grandeza e decadência do café.
[16] Os marcos dessa revolução urbana aparecem caracterizados por R. M. Morse, Formação histórica de
São Paulo. Sobre as conexões do processo com a expansão interna do capitalismo, cf. F. Fernandes, A
revolução burguesa no Brasil, cap. 3.
[17] Cf. esp. R. Bastide e F. Fernandes, Brancos e negros de São Paulo, pp. 56 e segs.
[18] Cf. E. Viotti da Costa, Da senzala à colônia.
[19] Cf. F. Fernandes, A revolução burguesa no Brasil, cap. 3; F. Fernandes, A integração do negro na
sociedade de classes, pp. 24 e segs,; W. Dean, A industrialização de São Paulo, caps. I-V.
[20] F. Fernandes, A revolução burguesa no Brasil, cap. 4.
[21] Cf. esp. M. I. Pereira de Queiroz, O mandonismo local na vida política brasileira, e V. Nunes Leal,
Coronelismo, enxada e voto. Sobre a conexão do antigo elemento mandonista com o padrão de dominação
burguesa, cf. F. Fernandes, A revolução burguesa no Brasil, cap. 5.
[22] Cf. “Os abolicionistas” (A Redempção, 29 ago. 1897).
[23] Ensaio a ser publicado nos Estados Unidos e na França em livros de homenagem, respectivamente, a
Charles Wagley e Roger Bastide.
[24] R. Bastide e F. Fernandes, O preconceito racial em São Paulo (reproduzido em R. Bastide e F.
Fernandes, Brancos e negros em São Paulo, pp. 271-300).
[25] Veja-se a enumeração dos principais colaboradores em R. Bastide e F. Fernandes, Brancos e negros em
São Paulo, pp. 16-17. A investigação global, da qual o estudo das relações raciais na cidade de São Paulo
era apenas uma parte, contava ainda com um estudo sociológico das relações no município de Itapetininga,
feito pelo dr. Oracy Nogueira, e de duas análises psicológicas, realizadas pelas dras. Virgínia Leone Bicudo
e Aniela Meyer Ginsberg (ver R. Bastide et alii, Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo.
[26] O principal grupo de contribuições consta dos seguintes trabalhos: R. Bastide e F. Fernandes, Brancos
e negros em São Paulo; F. Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes; F. Fernandes, O
negro no mundo dos brancos; R. Bastide, Le prochain et le lointain, toda a primeira parte; R. Bastide, Les
réligions africaines au Brésil, parte I, cap. IV.
[27] Vejam-se, especialmente: L. A. Costa Pinto, O negro no Rio de Janeiro; T. Azevedo, Les élites de
couleur dans une ville brésilienne; C. Wagley (org.), Races et classes dans le Brésil rural; R. Ribeiro,
Religião e relações raciais.
[28] Vejam-se, especialmente: F. H. Cardoso e O. Ianni, Cor e mobilidade social em Florianópolis; F. H.
Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional; O. Ianni, As metamorfoses do escravo; J. B.
Borges Pereira, Cor, profissão e mobilidade. Sobre a bibliografia pertinente aos estudos das relações raciais
no Brasil: O. Ianni, Raças e classes sociais no Brasil, cap. VIII.
[29] O desdobramento da pesquisa para o Sul do Brasil previa a elaboração posterior de um estudo
comparativo. No entanto, não pudemos (F. H. Cardoso, O. lanni e o autor deste artigo) realizar esse projeto.
Tentativas de uso comparado dos materiais começaram a ser feitas mais tarde: cf. F. Fernandes, O negro no
mundo dos brancos, caps. II e III; T. Azevedo, Democracia racial, caps. II e III. Quanto à comparação da
situação racial brasileira oom outras situações raciais, cf. esp.: M. Harris, Patterns of race in the Americas;
H. Hoetink, Caribbean race relations; P. L. van den Berghe, Race and racismo.
[30] Várias conferências feitas em associações culturais negras permitiram ao autor acompanhar a evolução
de múltiplos aspectos da situação de contato racial e a influência que os resultados da pesquisa tiveram na
qualidade da percepção da realidade e nas categorias de explicação utilizadas pelos ativistas do meio negro.
A última conferência, feita sob os auspícios do Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas, em 13/10/1975,
sobre “A atual situação do negro no Brasil — perspectivas”, suscitou um longo debate e permitiu consolidar
muitas das conclusões a que o autor tinha chegado previamente, explorando sua condição de membro-
adotivo e pesquisado-participante.
[31] Uma preocupação mais específica pelo mulato no mundo racial brasileiro aparece no estudo de C. N.
Degler, Neither black nor white (Sobre este livro, E. de Oliveira e Oliveira escreveu um comentário que
merece atenção: “O mulato, um obstáculo epistemológico”, pp. 65-73); T. de Queiroz Júnior, Preconceito
de cor e a mulata na literatura brasileira.
[32] Essa ponderação é deveras importante. A maioria das conferências organizadas no meio negro são da
iniciativa dos antigos líderes do movimento de protesto coletivo ou de ativistas novos, que se formaram sob
sua influência. O próprio autor se identifica com uma perspectiva militante e radical, pois sem ela nunca se
constituirá no Brasil uma democracia racial (ver, em especial, F. Fernandes: “Aspectos políticos do dilema
racial brasileiro”, em O negro no mundo dos brancos, pp. 259-283). Não obstante, os materiais aproveitados
para análise, neste artigo, foram cuidadosamente selecionados e criticados, para não apresentarem uma
imagem distorcida da presente situação. No pensamento negro moderno, a posição mais radical, de um
“racismo antirracista”, tem sido tomada e defendida com envergadura por Abdias do Nascimento (vejam-se
seu depoimento, em Cadernos brasileiros, pp. 3-7; e, do livro que organizou, O negro revoltado, o capítulo
introdutório de sua autoria, pp. 13-63). Os estudos sociológicos já feitos permitem caracterizar a ideologia
racial dominante e a contraideologia negra (cf. notas 3, 4 e 5, referências a F. Fernandes, L. A. Costa Pinto,
F. H. Cardoso e O. Ianni). Um balanço recente do que se poderia chamar da “falsa consciência racial” no
pensamento brasileiro foi feita por T. E. Skidmore, Black into white. Quaisquer que sejam as limitações
perceptivas e cognitivas das categorias críticas aplicadas pelos negros (nos movimentos de protesto
coletivo, das décadas de 1930 e 1940; ou nas conferências de agitação das décadas de 1960 e 1970), o uso
do desmascaramento como técnica de combate e a identificação com impulsões raciais igualitárias e
democráticas tornam o seu pensamento muito mais objetivo e penetrante que o do branco.
[33] Por motivos óbvios, eximimo-nos de arrolar uma bibliografia sociológica sobre o assunto. Quem
estiver familiarizado com os estudos de H. Freyer, K. Mannheim ou C. W. Mills sabe em que consiste a
conexão mencionada da sociologia com a “consciência crítica da situação”.
[34] Cf. F. Tönnies, Princípios de Sociologia, pp. 349-357.
[35] C. W. Mills denuncia esse efeito em The sociological imagination.
[36] Em contraste, a avaliação do branco conservador foi, com frequência, muito mais moderada e
restritiva. Houve, até, quem assinalasse que estaríamos introduzindo “o problema racial” no Brasil!
[37] Ver F. Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, vol. 2, cap. 4. xxxvi Ver F.
Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, vol. 2, cap. 5.
[38] Ver F. Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, vol. 2, cap. 5.
[39] Para a caracterização sociológica da revolução burguesa no Brasil, ver F. Fernandes, A revolução
burguesa no Brasil (quanto ao caráter que essa revolução assume em sua fase de apogeu, caps. 5, 6 e 7).
[40] Ver acima, referência da nota 14.
[41] Sobre o controle político conservador da mudança social: F. Fernandes, Sociedade de classes e
subdesenvolvimento, pp. 101-111; Idem, A sociologia numa era de revolução social, cap. 7; Idem,
Mudanças sociais no Brasil, pp. 19-57; Idem, A revolução burguesa no Brasil, cap. 7.
[42] Ver R. Bastide e F. Fernandes, Brancos e negros em São Paulo, pp. 56 e segs.; F. Fernandes, A
integração do negro na sociedade de classes, vol. 1, pp. 24-38.
[43] Ver O. Ianni, O colapso do populismo no Brasil; e F. H. Cardoso, O modelo político brasileiro e outros
ensaios, cap. III.
[44] Ver F. Fernandes, A revolução burguesa no Brasil, caps. 5 e esp. 7.
[45] Como vêm descritos, por exemplo, em F. Frazier, Bourgeoisie noire; e L. Kuper, An african
bourgeoisie.
[46] Ver F. Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, vol. 1, cap. 2.
[47] Os atuais estudos sobre populações marginais não contêm referências às diferenças raciais. Ainda
assim, eles são úteis não só para uma sondagem dos processos de espoliação e de expansão da pobreza, mas
também para estudar-se como a modernização e a industrialização se refletem nos estratos mais pobres da
população (ver esp. M. T. Berlinck, Marginalidade social e relações de classes em São Paulo; e, apesar de
referir-se à Baixada Santista, M. C. Pinheiro Machado Paoli, Desenvolvimento e marginalidade). Com a
mesma ressalva, pode-se aproveitar estudos recentes sobre as migrações para a cidade (E. R. Durhan, A
caminho da cidade); e sobre a mobilização do trabalho (L. Pereira, Trabalho e desenvolvimento no Brasil;
L. Martins Rodrigues, Industrialização e atitudes operárias).
[48] Conforme, especialmente, Oswaldo de Camargo, O carro do êxito.
[49] Várias dessas propensões são muito bem apanhadas através dos contos de Oswaldo de Camargo.
[50] Tradução revista pelo autor.
[51] A versão apologética do regime peruano aparece em Carlos Delgado, A revolução peruana, 1972; a
versão crítica mais contundente, em Aníbal Quijano, Nationalism and capitalism in Peru, 1971. Ambas as
posições precisam ser vistas com reservas. Carlos Delgado impregna a “revolução peruana” de uma
originalidade socialista que ainda não se concretizou; e Aníbal Quijano ignora dimensões populistas,
reformistas e anti-imperialistas notórias do regime.
[52] J. Nun, Latin America: the hegemonic crisis and the military coup, 1969.
[53] Alguns estudos a respeito dos golpes de Estado na América Latina são bem conhecidos, como os
ensaios ou livros de V. Alba, G. Germani e K. Silvert, Louis Higgs (ed.), I. L. Horowitz, J. J. Johnson, E.
Lieuwen, G. Lupo, L. N. MacAlister, L. North etc. (ver L. N. MacAlister, “Recent research on the role of
the military in Latin America”, 1966). A esta bibliografia, seria necessário acrescentar os artigos publicados
pela Revista Latino-Americana de Sociologia (Buenos Aires) e o número especial de Apartes (nº 6, 1967,
com artigos de V. R. Beltran, A. Ciria, R. P. Case, F. C. Turner, M. C. Grondona, V. Alba e H. Jaguaribe).
No IX Congresso Latino-Americano de Sociologia (México, 1969) foram apresentadas importantes
contribuições, também utilizadas nesta discussão: J. Cotler, Crisis política y populismo militar en el Peru,
1969; J. Saxe-Fernandez, De “nation-building” a “empirebuilding”: hacia una estrategia militar
hemisférica; E. Valencia, Notas para una sociología de la guerrilla; F. L. Buitrago, Política y intervención
militar en Colombia; A. Pearce, El campesino en la revolución boliviana. Em relação à minha análise dos
aspectos do desenvolvimento econômico, social e político na América Latina, ver meu livro Sociedade de
classes e subdesenvolvimento, esp. cap. I.
[54] Conforme, especialmente, os trabalhos citados de J. Saxe-Fernandez e R. P. Case; e E. Lieuwen, U. S.
policy in Latin America, pp. 83-125. As consequências da nova política metropolitana de “desenvolvimento
com segurança” possuem desdobramentos que afetam profundamente as ciências sociais (veja-se, a
respeito, J. Saxe-Fernandez, “Ciencia social y contrarrevolución preventiva en Latinoamérica”, pp. 53-81.
[55] Os organizadores autorizaram gentilmente a publicação do trabalho em português em sua versão
original. Pediram para mencionar, porém, que obtiveram os fundos para a organização da obra de The
Midgard Foundation.
[56] A respeito da organização em “escolas”, “faculdades” e “universidades” existem diferenças notórias na
orientação da administração colonial portuguesa e espanhola, como na atuação dos respectivos cleros. Tais
diferenças persistiram após a implantação dos Estados nacionais e converteram-se em tradição cultural, que
só recentemente começou a ser corrigida. Essa questão não pode ser debatida aqui e pode ser facilmente
esclarecida pelos estudos de história educacional e de educação comparada.
[57] Nesta parte do trabalho teremos de dar, forçosamente, pouca atenção ao desenvolvimento recente ou
atual das instituições de ensino superior. Adiante, teremos de voltar repetidamente ao assunto, focalizando
essas instituições sob seus diferentes aspectos e sob prismas diversos. O leitor que quiser esclarecimentos
de ordem histórica sobre a antiga ou a nova universidade terá de socorrer-se dos estudos sobre história
educacional ou de educação comparada, que tomam por objeto o mundo latino-americano.
[58] Deve-se notar que o êxito dos movimentos de “autonomia” ou de “reforma” universitária foi mais
rápido em países de língua espanhola e que o Brasil só conhece a dinamização de tais movimentos em
época posterior. Todavia, com frequência o terreno ganho em um momento perdia-se no momento seguinte
(como se poderia ilustrar com o caso da Argentina: a reforma da Universidade de Cordoba, em 1918,
consagrou uma situação que foi revogada pela ditadura peronista; estabelecida em novas bases, por uma lei
sancionada em 30 de setembro de 1958, de iniciativa do reitor Risieri Frondizi, viu-se de novo ameaçada
pela recente ditadura militar do general Ongania). A pressão quantitativa e os dilemas políticos acabam
tendo, em semelhante contexto de incompreensão e de opressão da inteligência, mais eficácia que as
soluções de pura origem racional.
[59] Compilação feita por Havighurst, com base nos resultados das pesquisas de Bertram Hutchinson
(Universidade de São Paulo), Gino Germani (Universidade de Buenos Aires) e Comissão Coordenadora da
Reforma da Universidade Nacional de San Marcos, todas feitas na década de 50 (veja-se Robert J.
Havighurst et alii, La sociedad y la educación en América Latina, tabela XXII, p. 187).
[60] Dados extraídos de Situação social da América Latina, pp. 159-164.
[61] As informações concernentes a 1966 foram extraídas de Felipe Herrera, “América Latina se
transforma” (O Estado de S. Paulo, p. 38, 28 jan. 1968).
[62] Os cálculos foram refeitos para cada grupo de países.
[63] No entanto, o estudo de Aldo Solari (Aproximaciones al problema de la educación y el desarrollo
económico en el Uruguai) fornece indicações que permitem concluir que, não obstante suas dificuldades
econômicas, o Uruguai continuou a expandir todos os ramos do ensino, na referida década.
[64] “MEC recebe menos”, O Estado de S. Paulo, 24 dez. 1967.
[65] UNESCO-MINEDECAL/9, La formación de recursos humanos en el desarrollo económico y social de
América Latina, p. 45.
[66] Tivemos de adotar a classificação fornecida pela fonte utilizada, Não obstante, o leitor interessado
poderá reagrupar os dados facilmente, para compará-los com a enumeração anterior.
[67] Essa nos parece ser a hipótese de melhor valor heurístico para explicar a orientação de comportamento
discutida, em termos sociológicos. Fomos levados a essa interpretação pela análise de casos nos quais os
fazendeiros encaminham seus filhos, terminantemente, para outras carreiras e depois os reabsorvem nas
administrações das fazendas; e de casos nos quais os próprios pais, que possuem grandes propriedades
rurais, não procuram aproveitar filhos ou sobrinhos, formados em agronomia e veterinária, na solução de
problemas práticos relacionados com a produtividade da terra ou com o tratamento dos rebanhos.
[68] Dados extraídos de Gino Germani, “Estrategia para estimular la movilidad social”, pp. 250-251.
[69] Seria importante que o leitor procurasse ler, na fonte citada, a parte relativa às projeções com referência
a 1980 (cf. UNESCO-MINEDECAL/9, La formación de recursos humanos en el desarrollo económico y social
de América Latina, pp. 57 e segs. e esp. quadros 14, 15 e 16). A projeção, por levar em conta o futuro
(embora o futuro próximo), focaliza melhor as deformações da estrutura ocupacional e as dificuldades para
corrigi-las. As implicações dessa projeção não foram incluídas no texto por causa da extensão que a análise
tomaria.
[70] Vejam-se, a respeito, os dados fornecidos por UNESCO-MINEDECAL/9, La formación de recursos
humanos en el desarrollo económico y social de América Latina, pp. 51-53. Só da Argentina, entre 1950 e
1964, foram para os Estados Unidos mais de 5.000 professores e técnicos, sendo que 60% desse pessoal
eram constituídos por engenheiros, médicos e professores. Do Chile, por sua vez, só em 1963 foram 1.153
pessoas para os Estados Unidos, das quais a quarta parte era constituída de profissionais com qualificação
universitária. Um inquérito feito sobre o assunto pôs em evidência que 24% se declararam motivados a
imigrar em busca de melhores salários; 29% por aspirações de progresso profissional; 16% por maior
reconhecimento de valor; e 13% por melhores oportunidades de investigação (as fontes dos dados originais
são indicadas na obra citada). Ao que parece, seria preciso investigar as relações existentes entre as
orientações dominantes no ensino e na pesquisa das melhores universidades da América Latina e essa
imigração em massa. Por meio de entrevistas com alguns cientistas de renome descobrimos, há vários anos,
que incentivam, deliberadamente, especializações que acarretam trabalho permanente no exterior dos
melhores talentos. Pusemos à prova essa descoberta e constatamos que a tendência possui até uma filosofia
própria, pois se alega que não adiantaria trabalhar em áreas da ciência que não possuam “significado
internacional”!

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