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Florestan Fernandes. Circuito Fechado
Florestan Fernandes. Circuito Fechado
I R C U I T O F E C H A D O
Obras reunidas de Florestan Fernandes
Coordenação:
Maria Arminda do Nascimento Arruda
prefácio:
Maria Arminda do Nascimento Arruda
Copyright © 2005 by herdeiros de Florestan Fernandes
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode
ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja
mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem apropriada
ou estocada em sistema de bancos de dados, sem a expressa
autorização da editora.
Circuito fechado : quatro ensaios sobre o “poder institucional” / Florestan Fernandes ; prefácio Maria
Arminda do Nascimento Arruda – São Paulo : Globo, 2010.
ISBN 978-85-250-5621-4
1. América Latina – Condições sociais 2. América Latina – Política e governo 3. Brasil – Condiçõers sociais
4. Brasil – Política e governo 5. Escravidão no Brasil 6. Intelectuais – América Latina 7. Negros – Condições
sociais 8. Universidades e faculdades – América Latina I. Arruda, Maria Arminda do Nascimento. II. Título.
10-00922 CDD-301
U M A S O C I O L O G I A D O
D E S T E R R O I N T E L E C T U A L
B R A S I L:
P A S S A D O E P R E S E N T E
Eu canto aos Palmares
odiando opressores
de todos os povos
de mão fechada
contra todas as tiranias!
SOLANO TRINDADE (Canto dos Palmares)
CAPÍTULO 1
A SOCIEDADE ESCRAVISTA
NO BRASIL[1]
25 ANOS DEPOIS:
O NEGRO NA ERA ATUAL[23]
O QUADRO GLOBAL descrito mostra que, mesmo agora, “ainda não chegou a vez
do negro” — pois ainda não chegou a vez do Povo. A situação histórica, porém,
não é tão adversa à população negra, como o foi durante o primeiro ciclo de
prosperidade econômica da cidade, dos fins do século XIX à crise de 1929. Então
a população negra vivia dentro da cidade mas sem pertencer a ela; tratava-se de
uma condição extrema de isolamento cultural e de marginalização
socioeconômica. As oportunidades iam para os brancos, especialmente das
famílias tradicionais ou imigrantes. O progresso estuante não existia para o meio
negro, mergulhado na mais extrema desorganização social, pauperismo e
desalento,[46] uma fase dramática e amarga, que suscitou a imagem do
“emparedamento do negro”. Nos últimos 25 anos a industrialização maciça e a
convulsão metropolitana se alimentaram de “braços nacionais”: as migrações
internas desembocaram na cidade e delas saíram os contingentes de
trabalhadores menos qualificados ou desqualificados. Os setores pobres e
dependentes da cidade participam por aí do crescimento econômico. O negro de
origem local ou estadual ou que vem nessas correntes humanas encontra com
maior facilidade uma avenida para a classificação social através do trabalho, por
humilde e mal remunerado que ele seja. O grande obstáculo, que vinha a ser a
falta de trabalho ou a instabilidade do trabalho, tende a se neutralizar. Com o
“emprego”, o negro pode conquistar mais facilmente a base material para a
participação institucional, de que estava quase completamente excluído, e pode
montar novos projetos de vida. Doutro lado, as migrações internas carreiam para
a cidade fortes contingentes de mestiços, na maioria “mulatos claros” ou
“mulatos escuros”, o que aumenta o setor de origem remota afro-brasileira e, ao
mesmo tempo, estimula a busca de novos estereótipos. O “baiano” tende a
substituir o “negro” na estereotipação negativa: uma variação semântica
importante, que diminui uma visibilidade incômoda e ajuda a quebrar certas
resistências teimosas. Além disso, as favelas, os cortiços, a pobreza ou a
mendicância, a prostituição e a vagabundagem, os trabalhos braçais e “serviços
por conta própria” humildes continuam a implicar uma visibilidade desfavorável.
Contudo, a convulsão urbana pulverizou o meio negro, disseminando-o por
várias regiões e concentrando-o na periferia da cidade. Em consequência, essa
visibilidade se dilui e é mais acessível ao branco pobre. De qualquer modo, ela é
fortemente compensada pelos efeitos visíveis da classificação ocupacional, da
mobilidade profissional e, por vezes, da ascensão social do negro. Ela já não se
associa automaticamente, como no passado recente, à estigmatização negativa.
Os estereótipos raciais não desapareceram nem deixaram de produzir efeitos
devastadores sobre as aspirações e as ambições do negro. Mas, eles já não
podem servir tão facilmente de fundamento a certas rejeições, especialmente na
esfera do trabalho: certas ocupações atrairiam poucos pretendentes se o antigo
crivo de seleção permanecesse intocável, o que acarretaria prejuízos econômicos
para o próprio branco. Se ainda prevalece a condição de marginal,[47] os jovens
sem trabalho e sem perspectiva, a mãe solteira, o menor abandonado, a
desorganização familiar e a miséria, o quadro global é menos tenebroso e
apresenta aspectos compensadores, onde o trabalho, o emprego, a classificação
ocupacional e a mobilidade profissional incorporaram o negro à classe operária
ou a alguns dos setores das classes médias. O passado não ficou totalmente para
trás. Ele revive em vários pontos da cidade, em ilhas de desespero social,
encravadas nas favelas ou no novo tipo de cortiço da periferia. O “negro bem-
sucedido”, por sua vez, aparece com maior frequência na vida social e no
horizonte cultural do branco. Seja guiando o seu automóvel, morando em casa
própria de bairros respeitáveis ou ostentando sua prosperidade pelo “traje
impecável” e o “alto estalão de vida” (uma tradição que não desapareceu no
meio negro e que revela a forte necessidade da compensação de status).
Portanto, temos agora duas visibilidades: a “má”, que suscita no branco
lembranças e estereótipos negativos que deveriam desaparecer, e a “boa”, que
obriga o branco a rever suas atitudes e convence o negro de que “sua sorte está
mudando”. Embora ainda seja cedo demais para tirar conclusões a respeito dessa
dupla visibilidade social, é evidente que ela está concorrendo para tirar o negro
do limbo, do opróbrio dos estereótipos infamantes dos brancos ou do próprio
“recalque” e da condição deletéria de “bode expiatório”. Graças à proletarização
e à ascensão a estratos de classe média (em alguns casos, também de classe alta;
mas são pouquíssimos), constitui-se uma base material estável de participação
— e não de exclusão sistemática — e de uma nova relação do negro com a
sociedade capitalista. Os pontos de concentração das oportunidades econômicas,
educacionais, intelectuais e políticas ainda são fracos ou débeis demais para
quebrar as linhas tradicionais de desigualdade racial ou para “fazer o branco
engolir o seu orgulho”. Todavia, o negro deixou de ser o espectador à margem da
vida e da história.
Se a “boa visibilidade” ainda não se impõe, a “má visibilidade” está perdendo
o caráter autodesmoralizador que possuiu durante tanto tempo e começa a
neutralizar-se como foco de “desmoralização do negro” perante o branco. De
fato, o negro com seus problemas não desaparece na “sociedade de massas”.
Essa seria uma simplificação grosseira. Contudo esta contém vários alçapões e
pode esconder dentro deles, ou pelo menos dissimular através deles, muitos
aspectos desoladores da “miséria humana” do negro, antes tão chocantemente
visíveis numa escala universal. Onde existem favelas — médias, pequenas ou
grandes — nas orlas de bairros ricos ou no seio de bairros pobres, e onde
existem cortiços, a visibilidade negativa aumenta. Mas, nem sempre a forte
participação de negros e mulatos na população dessas favelas e cortiços aparece
em associação com a miséria, o desemprego sistemático, a desorganização
familiar etc. O novo tipo de cortiço (especialmente nos bairros da periferia) e
várias favelas contêm, com frequência, uma vida interna autopoliciada e
conspícua, na qual mesmo a extrema pobreza requer um mínimo de participação
institucional. O que significa que há pobreza “com alguma esperança”, pois os
padrões de organização doméstica impõem certa soma de obrigações que
favorecem a educação dos filhos e pressupõem alguma solidariedade social. O
afluxo de migrantes de origem rural parece ser o principal fator dessa alteração,
que reduz ou elimina a “irresponsabilidade do negro”; e ela é fortemente
reforçada pelas oportunidades de trabalho regular e de estabilidade ocupacional.
De outro lado, a pobreza também se vincula aos resíduos do tradicionalismo, que
não desapareceram nesse primeiro arranque da explosão metropolitana.
Alimentação, música, padrões de entreajuda (familiar e vicinal) e formas de
recreação dão, aqui e ali, um “colorido nordestino” e exótico mas “altamente
respeitável” — ao estilo emergente de “vida de pobre” na cidade. O negro que
não está preso aos resíduos da anomia que veio do passado se engolfou nesse
estilo de vida, amparando-se nele para lograr um modesto ponto de partida. No
conjunto, é deveras importante a tendência básica, que dissocia os velhos
estereótipos e estigmas raciais da condição social do negro. A escravidão e a
Abolição já estão bastante longe — e o mesmo sucede com o doloroso período
que vai até 1930, de anomia social sistemática — para reforçar antigas
compulsões dos brancos ou para gerar outras novas, encerrando o negro no
círculo de ferro de uma condenação irremediável e irremissível. Nesse plano, a
pulverização da miséria e a disseminação da pobreza, no imenso espaço
geográfico da metrópole, fizeram com que a “sociedade de massas” oferecesse,
ao mesmo tempo, múltiplos refúgios e vários pontos de partida à sua dispersa
população negra. Se o passado não está extinto, as cicatrizes não dominam nem
governam mais a vida do negro; e tampouco o forçam a procurar o isolamento
autoprotetivo, pelo qual se destruía, e a converter a desorganização pessoal,
familiar e social em um multiplicador incontrolável de sua “desgraça coletiva”.
Tudo isso indica que seria aconselhável a realização de uma nova pesquisa
sobre a matéria. Conhece-se muito mal o que está ocorrendo nas várias áreas da
Grande São Paulo quanto às relações de negros e brancos e à transformação dos
velhos padrões de acomodação e integração raciais. Percebe-se que a
proletarização do negro e a estabilidade ocupacional (ou, pelo menos, as
oportunidades de trabalho) alteraram por completo a base material de grande
parte da população negra. De outro lado, esta tende a defrontar-se com diversas
situações de classe de modo mais ou menos definido e estável. Enquanto antes a
classificação era precária e minoritária, hoje pelo menos a proletarização alcança
o grosso dessa população enquanto alguns setores penetram certos estratos da
pequena burguesia e da alta burguesia urbanas. A expressão ecológica dessas
tendências aparece na agregação de segmentos da população negra em torno de
bairros mais homogêneos, quanto aos meios de subsistência e aos níveis de vida,
e na ocupação predominante da periferia. Essa forma de apinhamento parece ter
favorecido certas linhas de concentração demográfica e ecológica, com pessoas e
famílias mais ou menos ligadas entre si procurando as mesmas áreas e nelas
tentando manter tipos de solidariedade tradicional preexistentes. Também se
percebe que as migrações internas enriqueceram a população negra da cidade,
trazendo para cá negros mais ou menos aptos a competir profissionalmente com
os brancos do mesmo nível social, tanto na busca de colocações, quanto na luta
pelo “trabalho melhor” e pelos “empregos que dão dinheiro”. Até agora, a
educação escolarizada favoreceu muito pouco o negro de origem local. Também
aí o adventício abre uma clareira ao pretender para o filho “uma educação
melhor” e expondo seus vizinhos a novas aspirações e aos valores sociais
correspondentes. O que significa que novos padrões de competição, quanto à
ocupação, educação, moradia, nível de vida etc., estão se constituindo ou
consolidando e que eles desembocam na ideia de que a escola é essencial “para o
futuro dos filhos”. E de fato, o negro torna-se mais visível como estudante, do
ensino primário ao ensino superior, e, agora, sem a intervenção do mecenas
branco.
Um processo que já estudamos, relacionado com a técnica de ascensão social,
agora alcança um contingente bem maior da população negra. A aceitação da
infiltração como forma de competição dissimulada e de mobilidade social
vertical continua dominante. Ao que parece, com a dissolução do protesto negro,
desapareceu a esperança de uma ascensão coletiva do negro. As mesmas atitudes
que notamos no passado reaparecem no novo contexto histórico. O “negro que
quer subir” repudia abertamente o protesto racial e busca dentro da ordem, numa
linha egoística e individualista (embora com a cooperação eventual do branco e a
solidariedade possível — mas nem sempre atuante e eficiente da própria
família), a “solução de seus problemas”. Isso não quer dizer que ele seja
“neutro” com referência ao preconceito e à discriminação. Como se lança à
competição inter-racial, ela acumula uma experiência esclarecedora. Ele condena
apenas uma demonstração de “racismo” que poderia prejudicar sua ascensão;
pois está convencido de que o caminho para “combater o preconceito” é gradual
e indireto (o que representa uma elaboração original de uma contraideologia
racial conservadora, ainda não estudada sociologicamente). Por isso, repele o
protesto coletivo e, do mesmo modo, as demonstrações de “inferioridade”, que
associa ao desalento, ao desleixo, à falta de educação e de ordem na família, às
várias manifestações de anomia no meio negro etc., das quais se torna um crítico
severo. Como contraponto do branco conservador, ele valoriza a instrução, a
competência profissional, o caráter, o trabalho, a acumulação de riqueza e a
família, embora exagerando os vários traços que poderiam caracterizar uma
concepção elitista da vida e do mundo. Isso põe o novo negro a cavaleiro de duas
tendências. Primeiro, ele absorve um elitismo que é imitado do branco, mas
ainda predominantemente dos brancos dos antigos círculos dominantes das
famílias tradicionais (portanto, o que ele valoriza não é o elitismo do nouveau
riche, porém o que se poderia chamar de “elitismo aristocrático”). Segundo;
como o imigrante, ele aceita qualquer ocupação, mas como “estágio inicial” e
transitório, algo inevitável ou necessário embora indesejável (o que o leva a
repelir a condição operária e a proletarização como estilo de vida, de alguma
forma capazes de aprofundar a degradação do negro). Reproduz, com um atraso
considerável, as utopias dos antigos imigrantes, sem contar com os mesmos
recursos materiais e institucionais para combinar trabalho, solidariedade
doméstica, mobilidade ocupacional, êxito econômico e ascensão social. Essa
combinação, aliás, hoje não é tão fácil quanto o foi no passado, quando uma
posição estratégica no sistema econômico era suficiente para garantir as
melhores previsões. As oportunidades econômicas reais são escassas e não
podem ser aproveitadas com os recursos de que dispunham os imigrantes
pioneiros, muitas vezes melhores do que aqueles de que dispõe o “novo negro”
na atualidade. Ainda assim, a motivação é decisiva: ela mantém tendências
complexas de competição com o branco, força a elevação da participação
institucional e fortalece propensões igualitárias sem as quais o negro se
condenaria à exclusão e à marginalização.
A insegurança ainda se faz sentir como um fator adverso. Ela ainda estimula a
busca de uma autoproteção destrutiva, através do isolamento social (na família e
no nível social dentro do meio negro). Ela não opera tão negativamente como no
passado, pois a família tende a revelar maior estabilidade e a estratificação em
termos de nível social abrange maiores números (o que favorece os dinamismos
sociais e recreativos dos clubes, tornando mais fácil a consecução de um “nível
conspícuo” mas protegido de vida). No entanto, o grosso dessas compensações
só é acessível aos setores de classe média ou alta da população negra. E, mesmo
nessas classes, isso reduz o universo social do negro. De um lado, ele gravita
dentro do “mundo do negro”, construído como uma réplica imaginária do
“mundo dos brancos”. De outro, ele confere alta nocividade ao processo de
acefalização implícito. As elites negras são seccionadas e dissociadas da massa
negra. Toda solidariedade racial torna-se, assim, impossível e tem de ser
substituída por uma espécie de “solidariedade estamental” (dos negros que
pertencem à mesma clique de um mesmo estrato elitista). Por aí, o passado se
reproduz ampla e destrutivamente. Mesmo os líderes que se projetam mais acima
de seu próprio nível social não rompem com as limitações resultantes. Ao
contrário, eles instituem no meio negro o tipo de relação clássica que,
antigamente, estabelecia liames entre o notável branco e seus clientes. A
comunicação das elites com a massa ganha, assim, um significado pouco criador,
porque a massa negra é sempre um “elemento de manobra” ou um “meio para
certos fins”, que nunca preveem ideais de “redenção da raça negra” ou de
protesto coletivo. Esse clientelismo negro, em plena emergência e irradiação,
precisaria ser estudado. Ele cria certas áreas de contato, engendra algumas
formas de participação cultural novas e põe as elites negras na mesma posição
das antigas elites dos imigrantes, preocupadas com várias modalidades de
assistência social aos conterrâneos. Porém, isso não é muita coisa, se se leva em
conta a precariedade da situação da população negra e as terríveis exigências da
desigualdade racial. Na verdade, as obras assistenciais, feitas até agora, têm
servido mais para valorizar socialmente as “classes médias e altas de cor”, que
para suavizar os problemas de extrema carência da massa negra. Essas elites se
lançam, naturalmente, em um nível de competição sofisticada por consideração
social, como fizeram, aliás, no passado, muitos imigrantes, que sabiam o valor
que as famílias tradicionais atribuíam a tais demonstrações de solidariedade e de
prestígio. O seu único resultado, que beneficia o negro em geral, diz respeito à
“boa visibilidade”. Por aí se evidencia, através do jornal, da televisão e da rádio,
que o negro dispõe de uma nova situação econômica, social e cultural, a ponto
de cuidar da “gente desfavorecida” de sua comunidade.
Esse efeito não é de menosprezar-se. O “novo negro” tenta, em vez de cobrar
uma igualdade racial coletiva que a sociedade brasileira não lhe daria,
revolucionar indiretamente o horizonte cultural do branco. No entanto, não usa a
pressão econômica, cultural ou política nem a coerção psicológica, como fizeram
os negros norte-americanos na década de 1930. Emprega meios sutis e por vezes
maliciosos, como a ostentação do nível de vida “alto” e “aristocrático”, da
“competência inexcedível”, do “caráter irrepreensível”, da “vida organizada e
responsável” etc. Como não tem liberdade nem base material para usar o
conflito, precisa contentar-se com a “reeducação do branco” na avaliação moral
do negro. Ao fazer isso, consegue algum êxito pelo que se vê, já que pressiona
habilmente no sentido de dissociar os “fracassos dos pretos” de razões
estereotipadas e da condenação estigmatizadora. Procede como se exigisse a
igualdade no plano puramente pessoal e como se quisesse que o branco se
convencesse que há negros e negros, como entre os brancos há brancos e
brancos, não havendo portanto sentido em avaliar o negro através de uma
imagem falsa, estereotipada e irreal. Essa tática se ajusta como uma luva ao
preconceito dissimulado e à discriminação assistemática: não só apanha o branco
desarmado; explora o terreno sempre virgem dos tateios iniciais, a confusão
moral do branco (tão grande quanto a do negro, pois a armadilha funciona dos
dois lados) e a disposição frequente à abertura para “o negro de alma branca” (o
que converte a exceção que confirma a regra numa vantagem adicional para
qualquer “negro calculista”). São meandros tortuosos e é indiscutível que eles
constituem uma forma refinada de tortura mental, a qual os negros em ascensão
deveriam recusar e combater. Todavia, eles não criaram esse jogo e, muito
menos, as suas regras. Armaram uma carapaça adaptativa, pela qual, em vez de
se colocarem no próprio lugar, forçam o branco a revisões que são cruéis para
os dois lados. Na maioria das vezes obtêm o que desejam ou esperam. Se é mais
ou menos difícil localizar a casa de uma “família negra bem colocada”, os
vizinhos sabem muito bem se moram perto de um “negro rico” e “bem-educado”
(e podem presumir se ele pertence à classe média ou alta). É mais fácil ainda
estabelecer avaliações corretas diante de uma família negra “bem-vestida”, que
viaja em automóvel próprio ou ostenta de uma ou de outra maneira o seu status.
O quadro subjetivo que se esboça não é mais o tradicional — “o negro precisa
do branco para vencer”; mas, o alternativo: “esse negro precisa ser muito
importante para estar nesse lugar”. Com ambiguidade e relutância, o branco
repete uma aprendizagem histórica, que já teve de enfrentar diante do português,
do italiano, do sírio e libanês, do espanhol etc. Os estereótipos e os estigmas
esvaziam-se na medida em que as exceções que confirmam a regra se tornam
muito numerosas. Ou eles precisam ser refeitos e redefinidos ou perdem sua
eficácia. No caso do negro, ao que parece, a situação atual ainda não alimenta
um limite histórico dessa natureza. Mas, qualquer que seja o desnível entre os
“mitos” alimentados pelo “novo negro” e as brechas reais na fortaleza do mundo
dos brancos, é patente um avanço considerável. Antes, “o negro de alma branca”
servia de base para manipulações simplistas, graças às quais o êxito do negro se
tornava irrelevante para as avaliações concretas (ficando sempre de pé que a
mestiçagem ou a proteção de algum branco explicava, no fundo, “o milagre”). O
mecanismo da exceção que confirma a regra criava um ponto morto e uma
cesura intransponível na reavaliação social do negro. Hoje, o mecanismo
continua a ser empregado. Entretanto, dentro de um contexto diverso: à medida
que cresce o setor de classe média e alta da população negra, surge uma erosão
inevitável do mecanismo, a qual tende a aumentar e a agravar-se com o tempo.
Os avanços descritos não introduzem uma liberação intelectual e moral do
jovem negro. Este se defronta com dramas reais ou falsos, como se evidencia
pela literatura de ficção negra.[48] Os conflitos entre as aspirações igualitárias e
o padrão brasileiro de preconceito e discriminação raciais produzem estragos
devastadores no jovem. Este está no começo da aprendizagem, iniciando-se no
adestramento do que se poderia chamar de cinismo autodefensivo. Aos poucos,
ele se predispõe a aceitar as duas “verdades”, a que afirma e a que nega a
democracia racial. No contexto atual, esses conflitos tornam-se, ao mesmo
tempo, mais agudos e dolorosos, suscitando reações contraditórias de
ambivalência de atitudes e de alienação, pelas quais a evasão ganha o caráter de
uma técnica tosca de autoproteção psicológica e moral. Se em vez do elitismo e
da ascensão por infiltração tivesse prevalecido um novo estilo de protesto racial
coletivo, é provável que o jovem negro tivesse de procurar caminhos de
autorrealização menos tortuosos e ambíguos.[49] As propensões à autopiedade, à
fabulação imaginária e à sublimação de fantasias, ao desalento compensatório ou
ao escapismo teriam de ser substituídas por outras formas de crise da
personalidade, como sucedeu, aliás, no passado, quando os jovens negros
vararam a barreira psicológica do enfrentamento com o branco nas lutas pela
“Segunda Abolição”. Dentro da sociedade de classes, ou contra ela, teria de
iniciar uma busca mais realista de sua autoafirmação, sem o “carrossel de
ilusões” que destrói tão prematuramente o talento jovem no meio negro,
principalmente nas classes médias e altas. A opção por uma das duas “verdades”,
porém, não se dá concretamente, menos por culpa do jovem que da “estrutura da
situação histórica” (na qual se mesclam as pressões da sociedade brasileira e “a
falta de orientação combativa” das famílias negras “bem-sucedidas”). Em
consequência, o jovem negro, que deveria ser o elo mais forte no aparecimento
de um inconformismo militante e na cadeia de uma revolução democrática,
neutraliza-se e converte-se no equivalente humano do boêmio negro das décadas
de 1920 e de 1930, mas sem suas justificativas históricas. Os veteranos dos
movimentos de protesto coletivo criticam esse jovem, que eles não
compreendem, e que pensam ser “alienado” e “envenenado”. Uma condenação
prematura e filha da fraqueza. Se aplicassem a esse jovem as mesmas técnicas de
desmascaramento que aplicaram ao branco, nas décadas de 1930 e de 1940,
descobririam em que sentido eles são também “vítimas” da situação racial
brasileira. De outro lado, não seria melhor que eles próprios fizessem uma
revisão crítica e apontassem os fatores reais da sufocação do talento jovem no
meio negro, a qual segue paralela à desmoralização e ao esvaziamento de todo
radicalismo racial igualitário e libertário? Não seria melhor, em particular, que
tentassem estabelecer uma ponte entre as gerações, para que o protesto racial
coletivo pudesse ser reciclado e voltasse à tona, nas novas condições
econômicas, sociais e culturais do país, como uma garantia de continuidade da
luta do negro para que a sociedade brasileira se torne, de fato, uma sociedade
multirracial democrática?
SEGUNDA PARTE
A DITADURA MILITAR
E OS PAPÉIS POLÍTICOS
DOS INTELECTUAIS NA
AMÉRICA LATINA[50]
NOTA EXPLICATIVA
ESTE ENSAIO FOI EDITADO como publicação avulsa da universidade de Toronto em
1969-1970, junto com outro estudo e sob o título The Latin American in
residence lectures (com prefácio do professor Kurt. L. Levy; e a colaboração, na
preparação do texto em inglês ou na revisão, do querido colega professor
Kenneth N. Walker e dos então estudantes pós-graduados Marion Blute e Craig
McKie). Não cometi a injúria de solicitar autorização para publicá-lo em
português na presente edição.
O sociólogo não está livre de exercer suas funções e seus papéis intelectuais
nas piores condições para si próprio (e, quiçá, para a sociologia). Às vezes, se o
que entra em conta é uma denúncia (expressa ou velada), ele é limitado por sua
profissão ou por suas vinculações acadêmicas dentro do mundo da universidade.
Os que lerem este ensaio não devem deixar de ter isso em mente — não para
desculpar o autor, que conhece e aceita os riscos que deveria correr, mas para
ajudá-lo. Estamos num limite em que a inteligência e a imaginação dos leitores
são essenciais: ela permite saturar os vazios, colorir as omissões e perceber o que
nem sempre é óbvio.
Na ocasião em que foi escrito, entre fim de dezembro de 1969 e início de
janeiro de 1970 (a versão inicial do trabalho foi apresentada como conferência
pública, sob patrocínio oficial, em um dos auditórios da Universidade de Toronto
em 20 de janeiro de 1970), os focos de referência implícitos da discussão eram o
Brasil, a Argentina, a Bolívia e o Peru. A explicitação dos casos que serviam de
base para a análise do novo estilo de golpe de Estado e de militarização do
Estado capitalista era simplesmente inócua. Os ouvintes, professores, estudantes
e intelectuais tinham condições de acompanhar uma formulação altamente
abstrata, sem perder de vista do que se tratava, empiricamente; e, o que é mais
importante, de introduzir as gradações históricas inevitáveis, dadas as diferenças
existentes entre esses países.
A inclusão do Peru não se devia a qualquer animosidade pessoal ou a alguma
ignorância dos aspectos positivos que a militarização do poder estatal tenderia a
assumir naquele país.[51] Embora o autor nunca se tenha entusiasmado com a
ideologia da “revolução peruana”, ambígua no seu aparente repúdio
concomitante do capitalismo e do comunismo, é evidente que, no Peru, o novo
modelo de ditadura militar tentou enfrentar e resolver problemas capitais, que
vão da reforma agrária à proteção da Nação contra os interesses
ultraconservadores internos e contra os interesses imperialistas externos,
articulados na prática econômica e política. O caso peruano se incluiu no campo
de observação e de exposição por motivos formais. A impregnação tecnocrática-
militar do Estado e o funcionamento do governo militarizado são altamente
similares em todos os quatro casos. O que varia são as funções históricas do
Estado e as identificações políticas do governo militarizado, pois em um plano
se configura, em toda a plenitude, a ditadura militar polarizada através da reação
e da contrarrevolução burguesas; e, no outro, a ditadura militar pretende
configurar-se como uma espécie de bonapartismo acima das classes,
polarizando-se através de um nacionalismo revolucionário oscilante (embora,
concretamente, tenha tentado medidas exclusivas de “revolução dentro da
ordem” e de “revolução contra a ordem”). Desde que tais diferenças essenciais
sejam tomadas em conta, é crucial considerar em conjunto os quatro casos:
assim aparecem com maior nitidez as linhas de demarcação, que separam a
ditadura militar em nome das classes possuidoras e de suas elites da ditadura
militar “acima das classes”; e, o que é mais relevante, o que é específico aos três
casos que tendem para a situação típica no presente, na qual os interesses
internos e os interesses externos, articulados pelo capitalismo monopolista e
unificados pela dominação burguesa, fazem com que a ditadura militar das
classes possuidoras seja instrumental para impedir a revolução contra a ordem,
tanto quanto para confinar a revolução dentro da ordem à modernização
consentida, imposta de fora para dentro e de cima para baixo. O leitor poderá,
certamente, lamentar que esses filões não tenham sido explorados explicitamente
e de modo sistemático; eles estão, porém, mais do que evidentes, já que
iluminam o sentido global da análise e, em particular, a caracterização das
evoluções potenciais de curto e médio prazos (no tópico que focaliza o tema
“Estado e sociedade em tensão” e, posteriormente, numa passagem do debate
sobre os papéis políticos dos intelectuais).
Naquele momento já eram evidentes os contrastes que permitiriam separar as
características e as prováveis linhas de evolução dos três casos que cabiam na
ditadura militar de classe, com orientações reacionárias e contrarrevolucionárias
(definidos em termos da contradição com a “democracia burguesa” e com o
radicalismo burguês). No entanto, como o limite explicativo e crítico se oferecia
na abstração de traços comuns essenciais (em termos de instituições e de
processos ou de comportamento de classes dominantes), tais diferenças eram
irrelevantes. Parecia, então, que o caso extremo já se havia dado. Porém, só no
Chile e em 1973, a América Latina tomaria conhecimento de que aquela
realidade histórica ainda não se esgotara e que, nas dobras da ditadura militar das
classes possuidoras, havia uma conexão histórica contrarrevolucionária
permanente, suscetível de aprofundamento em função dos embates entre
capitalismo monopolista e o movimento socialista revolucionário. No fim da
década de 1960, em suma, uma análise de oposição frontal e que não se situava
no âmbito de demonstrações especificamente políticas podia limitar-se à
enumeração abstrata de aspectos estruturais e dinâmicos comuns aos casos
conhecidos de maior significação histórico-sociológica.
Haveria pouco sentido em aproveitar esta nota explicativa para arrolar leituras
complementares e, em particular, para situar os desdobramentos da pesquisa
sociológica sobre o assunto. As referências bibliográficas originais não tinham
significado “erudito”. Elas visavam, apenas, a sugerir as linhas de informação do
autor e a atualidade do tema na preocupação dos sociólogos, “comprometidos”
ou “neutros”, “pró” ou “contra”. Quanto à evolução do pensamento do autor, que
continuou a aprofundar o exame do tema e o seu envolvimento na oposição a
esse tipo de regime, o leitor que estiver interessado deve recorrer a Capitalismo
dependente e classes sociais na América Latina (Rio de Janeiro: Zahar, 1973,
esp. pp. 102-115) e A revolução burguesa no Brasil (Rio de Janeiro: Zahar,
1975, toda a última parte ou, esp., cap. 7). Aí se poderão patentear as linhas de
compensação introduzida por descrições mais balanceadas, que também
pretendem participar da “sociologia crítica e militante”, mas atingem esse
propósito fora e acima de uma confrontação contingente ou condicionada por
objetivos reduzidos de relação com um público determinado.
Há, ainda, a considerar as críticas feitas a este trabalho (os elogios nem
sempre chegam ao autor; e, quando chegam, podem ser negligenciados na
comunicação com o leitor). A crítica mais frequente focalizou a falta de
fundamentação empírica ou a ausência de um propósito formal de construir uma
teoria desses regimes. Ora, se fui claro, tanto no texto original quanto nesta
breve nota explicativa, trata-se de uma desorientação da crítica. Pretendia algo
que não se enquadrava nem na descrição sistemática nem na interpretação
exaustiva, com pretensões classificatórias. Ou seja, uma apertada síntese de
certos conhecimentos sociológicos, além do mais de uma perspectiva de negação
e de confrontação aberta, quase uma “literatura de partido” (a qual não cheguei,
por falta de um palco partidário e, ao mesmo tempo, porque a Universidade de
Toronto, e, posteriormente, outras universidades, ofereceram uma “alternativa
acadêmica” para o livre debate de cunho sociológico — embora sem ser
estritamente profissional). Não buscava beneficiar-me de nenhuma ambiguidade
nem proteger-me por trás dos muros acadêmicos. É que as circunstâncias eram
aquelas e não me era dado escolher as condições em que tentava sair à liça. Isso
me impunha uma severa limitação. Todavia, qual foi o partido, organização
radical ou movimento político que me convidou para outro tipo de discussão? Só
me foi dado discutir francamente como “sociólogo engajado”: um debate que
podia ser crítico, militante e contundente, mas ficando sempre dentro da
sociologia (pela natureza dos argumentos, os fins da exposição ou as
expectativas do público). Se o resultado desagrada os que só entendem a
sociologia como descrição empírica ou alta construção teórica mais ou menos
“neutra”, o melhor é passar adiante. Para esses, recomendo — não adianta
comprar este livro e, muito menos, procurar no seu terceiro ensaio o que ele não
contém nem pretende oferecer.
Uma segunda crítica tem se voltado contra um pretenso “preconceito
antimilitar” do autor. Como e enquanto socialista, sempre fui e serei contra o
militarismo; como e enquanto cientista, por outro lado, não posso aceitar a
violência dos poderosos como última via de decisão política e instrumento de
conformação da razão. Mas, ser antimilitarista não é o mesmo que ser contra o
militar. O militar nunca escolhe, individualmente ou como coletividade, os
papéis que pode ou que tem de desempenhar na história. Doutro lado, na própria
sociedade capitalista há um amplo campo de utilização do militar a favor ou
contra a revolução democrática (isto é, em termos de preservação do status quo,
de revolução dentro da ordem ou de revolução contra a ordem). É um erro crasso
querer transformar o militar, individual ou coletivamente, em uma categoria pura
e na ultima ratio dos processos históricos. Acredito que antes já dei
demonstrações concretas de que posso compartilhar com os militares aquilo que
se pode chamar de defesa da “boa causa” (tentei, de motu proprio e inutilmente,
buscar o seu apoio para a Campanha de Defesa da Escola Pública; e,
ocasionalmente, tive alguns companheiros militares lúcidos nas várias
manifestações do radicalismo burguês nos últimos trinta anos). E, mesmo neste
texto, indiquei os vários caminhos que a presente crise abre ao uso político do
militar e das forças militares como “braço armado da burguesia” ou contra ela.
Tenho a impressão de que a minha posição é clara e coerente; e que não me
coloco contra o militar em geral, pois aqui cuido do militarismo engendrado na
sociedade de classes capitalista dependente e subdesenvolvida, na era em que a
sua crise interna e a crise mundial do capitalismo ameaçam a dominação
burguesa e a sobrevivência do estado capitalista.
A terceira crítica se concentrou no modo pelo qual tentei situar os papéis do
intelectual no mesmo processo de contrarrevolução burguesa e de militarização
do poder estatal. Muitos julgam que não houve nem capitulação passiva nem
colaboração dissimulada nem solidariedade ativa por parte dos intelectuais (seria
melhor dizer-se: de grupos de intelectuais) a um odioso movimento
contrarrevolucionário e a uma férrea ditadura de classes privilegiadas. Ao
mesmo tempo, os que afirmam isso continuam a usufruir, imperturbavelmente,
as vantagens que alcançaram ou a melhorá-las — como se o mundo criado pela
autocracia burguesa fosse o melhor dos mundos possíveis (salvo alguns
inconvenientes, que atingem os precipitados ou os renitentes). Essa não é sequer
a linguagem ou o comportamento de um Pilatos. Não se lavam as mãos. Come-
se mesmo de mãos sujas. Admitindo que todos os argumentos têm uma base de
verdade — não é isso que me preocupa; e tampouco pretendi generalizar, pois
também mencionei o “maquis” da intelligentsia. O que fica, como papel crítico
e negador da ordem para o intelectual, se ele se acomoda sem “boa” ou “má”
crise de consciência? Ou se ele se comporta como se o mister intelectual fosse
indiferente às transformações do mundo e da cultura? Não estava cuidando de
casos concretos ou de experiências individuais. E, de fato, se a exceção pode
invalidar um princípio, a exceção também confirma a regra. E era isto que tinha
de ser posto a nu. A omissão, na área vital da produção do pensamento, é a pior
das fugas. E, como já pregava o clássico Vieira, pecar por omissão é o pior dos
pecados. O que esperar de uma sociedade ou de uma civilização nas quais os
intelectuais assistem impassíveis à brutalização do homem, enquanto desfrutam,
com ou sem requinte mas sempre com afinco, o seu “nível de vida” e os seus
grandes ou pequenos privilégios?
F. F.
1º de setembro de 1975.
INTRODUÇÃO
A IDEIA DE QUE a América Latina é uma região na qual os golpes de Estado são
uma rotina política tornou-se comum. Tendo-se em vista a participação dos
militares nesses golpes, o melhor estudo sociológico sobre o fenômeno mostra
que, de 1930 a 1965, os países latino-americanos sofreram cento e um golpes
militares de estado com êxito.[52]Somente o Uruguai e o México, por motivos
diversos, estiveram ausentes desse levantamento, no período acima mencionado.
Apesar disso, os países latino-americanos tiveram, no passado e no presente,
períodos de relativa estabilidade, nos quais os setores civis dominantes da
sociedade foram capazes de controlar tanto o poder político quanto o militar.
O estilo do golpe de Estado, o envolvimento político dos militares e os tipos
de ditadura militar variam no tempo e no espaço, de acordo com as
características demográficas, econômicas, sociais, culturais e políticas dos
países, e de acordo com a organização das Forças Armadas e de suas funções,
manifestas ou latentes, dentro do Estado e da sociedade nacional.[53] A
discussão de um assunto de tal complexidade torna-se impossível numa
exposição breve.
Minha intenção é mais específica. Em alguns países da América Latina,
atualmente emerge e se expande, como um processo transitório, uma
militarização definida do Estado e da política.
Este fenômeno pode ser descrito e interpretado, sociologicamente, sob muitos
pontos de vista. Nesta discussão, abordá-lo-ei em termos da situação total em
que as forças armadas se converteram num prolongamento da política mediante
outros meios, e num fator contingente de contrarrevolução.
A NATUREZA SOCIOLÓGICA DO PROCESSO
A UNIVERSIDADE
EM UMA SOCIEDADE EM
DESENVOLVIMENTO
NOTA EXPLICATIVA
ESTE ENSAIO FOI ESCRITO em 1966 e destinava-se a um livro sobre A universidade
na América Latina, organizado por Joseph Maier e Richard W. Weatherhead.[55]
Cabia-me discutir algumas relações da situação do ensino superior e da
organização da universidade com a transformação da sociedade circundante.
Outros temas ficaram a cargo de autores diferentes, o que explica a sua
negligência ou localização muito sumária no presente trabalho.
É obvio que os dados empíricos se referem aos materiais que me eram
acessíveis no Brasil até 1966. A atualização do quadro de referência empírica
está, naturalmente, fora de cogitações. Isso implicaria a redação de um trabalho
novo. O tópico 2, sobre o que se poderia chamar de “a universidade tradicional e
sua transformação”, não exigiria qualquer alteração. Conviria agregar à leitura,
em particular, um livro de José Carlos Mariátegui (Sete ensaios de interpretação
da realidade peruana. Tradução de S. O. de Preitas e C. Lagrasta. São Paulo:
Alfa-Omega, 1975, pp. 95-105), recém-publicado em português (não só para o
leitor avaliar por si próprio o atraso com que o movimento de reforma
universitária se desencadeia no Brasil; também para que ele tome contato com a
amplitude pedagógica, intelectual e política daquele movimento na América
Espanhola da década de 1920). É com relação ao tópico 3 que os dados que
servem de base à análise envelheceram. Todavia, a técnica analítica (que
constitui uma parte importante do trabalho) mantém sua atualidade; ela abriu
margem a reflexões que ainda hoje são úteis e que, por sua vez, não perderam
consistência, quando se considera o período ao qual se aplicavam. A alteração da
posição do Brasil, naquele quadro global, se fez mais quantitativamente que
qualitativamente (veja-se F. Fernandes. A universidade brasileira: reforma ou
revolução? São Paulo: Alfa-Omega, 1975, esp. pp. 33-37). Pela natureza do
assunto, o tópico 4 deveria ter envelhecido, pois as relações entre universidade e
desenvolvimento se alteraram, em virtude da expansão do capitalismo
monopolista. Não obstante, a contrarrevolução, que eclodiu em todos os países
nos quais a “democracia burguesa” parecia prestes a consolidar-se e expandir-se,
abortou alterações de maior significado. O ensaio, que pareceu “pessimista” a
vários colegas que o leram (inclusive com referência às expectativas reformistas
e revolucionárias despertadas pela rebelião da juventude), hoje pode ser avaliado
como objetivamente crítico (evidenciando que o autor não se curvou às suas
esperanças como e enquanto socialista militante). Em seu livro acima citado se
encontra matéria para aprofundar as reflexões com material mais recente (esp.
caps. 3, 4, 6 e 8). Não teria propósito atualizar a bibliografia utilizada. Todavia,
pelo menos alguns poucos livros merecem ser salientados: Darcy Ribeiro. A
universidade necessária (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969), La universidad
peruana (Lima: CENTRO, 1974); Tomás A. Vasconi e Inés Reca.
Modernización y crisis en la universidad latinoamericana (Santiago: CESO,
1971); François Bourricaud. La universidad a la deriva (Caracas: Fundación
Eugenio Mendoza, 1971); Huascar Taborga. Mito y realidad de la universidad
boliviana (La Paz: Cochabamba, 1970); Marialice M. Foracchi. A juventude na
sociedade moderna (São Paulo: Pioneira, 1972). É impraticável fazer uma
atualização da bibliografia sobre o papel da juventude radical e dos movimentos
estudantis. Pelo menos os seguintes artigos devem ser mencionados, como ponto
de partida: Marialice Mencarini Foracchi. “Ideologia estudantil e sociedade
dependente” (Revista Mexicana de Sociologia, vol. XXXI, nº 3, 1969) e
“Estudante e política no Brasil” (Aportes, Paris, nº 7, jan. 1968); Ian Weinberg e
Kenneth N. Walker. “Student politics and political systems” (The American
Journal of Sociology, vol. 75, jul. 1969); Ted Goertzel, “American imperialism
and the Brazilian student movement” (Youth & Society, vol. 6, nº 2, 1974). Como
um marco na descrição da violência na repressão do inconformismo estudantil:
Salvador Hernández, El PRI y el movimiento estudantil de 1968 (México: El
Caballito, 1971).
A universidade sempre esteve em relação tensa com os estratos dominantes e
com o obscurantismo na América Latina. Mesmo a “universidade tradicional”
não escapou à incompreensão e a algumas represálias, que certas vezes atingiram
seriamente os elementos mais representativos do corpo docente ou as tentativas
mais ousadas dos estudantes. No entanto, as crises que se inauguram no após-
1930 e, em especial, as repercussões da chamada “guerra fria” no continente,
antes e particularmente depois da revolução cubana, expuseram a universidade
latino-americana a formas sistemáticas e institucionalizadas de repressão e de
opressão, malgrado as tendências conservadoras do corpo docente e sua
propensão suicida à capitulação passiva. Como consequência, a fermentação em
processo no meio estudantil e entre os intelectuais mais esclarecidos (e mais ou
menos radicais) tornou-se um capítulo da ultraviolência, sendo sufocada no
nascedouro. Sempre me coloquei à frente dos que acham que a função do
intelectual consiste em negar a ordem, em nome do pensamento crítico e das
forças de transformação revolucionária da sociedade de classes. Se esses temas
não comparecem na presente discussão ou só aparecem em termos de certas
conexões da mudança social com a seleção das funções sociais construtivas da
universidade, isso se deve aos aspectos do assunto que me cabia abordar. Minha
participação no movimento da reforma universitária iria intensificar-se e
radicalizar-se somente em 1967 e 1968, alterando toda a minha perspectiva do
assunto. O ensaio, como um todo, no entanto, não foge a tudo que tenho tentado
fazer de minha vida, em constante confrontação com o pensamento conservador
e o controle externo da universidade.
F.F.
1º de setembro de 1975.
INTRODUÇÃO
A década de 1950-60, apesar da relativa adversidade econômica, parece
marcada por um crescimento relativamente considerável do sistema escolar
desses países, como evidenciam os seguintes dados:[60]
Como se pode constatar, os países que se aproximaram ou superaram essas
médias atingiram ou estão atingindo um patamar de alfabetização que lhes
permite dedicar maiores esforços ao ensino médio e superior. Ao que parece, os
objetivos centrais de mudança da política educacional voltavam-se para este
último. Mas, dados o afunilamento do sistema escolar, as avaliações sociais
dominantes e a maior acessibilidade do ensino médio, isso acarretou uma
elevação desproporcional do ensino médio (que teve a sua matrícula aumentada
em escala inesperada). Em consequência, a relação entre uma matrícula no
ensino superior e o total de matrículas correspondentes no ensino primário caiu
de 57 para 50, de 1950-60. No entanto, a mesma relação do ensino superior com
o ensino médio subiu de 6 para 7. Informações relativas a 1966 mostram, grosso
modo, como as mencionadas características estão evoluindo:[61]
Por esses dados, a uma matrícula no ensino superior, em 1966, correspondia,
aproximadamente: 42 matrículas no ensino primário; e 8 matrículas no ensino
médio. A representação percentual demonstra que, em conjunto, implantou-se
uma tendência no sentido de diminuir paulatinamente o achatamento estrutural
do sistema escolar:
A correlação entre as matrículas nos três níveis de ensino sugere que não se
processou nenhuma alteração substancial nos critérios econômicos e
socioculturais de distribuição das oportunidades educacionais. Contudo, ela
confere algum vigor à hipótese segundo a qual a pressão demográfica tem
operado como uma espécie de equivalente da influência dinâmica da
democratização do ensino. Pois uma parte considerável da população
escolarizada no nível médio não contou com suficiente fluidez no sistema
escolar para poder passar ao nível ulterior. Esse efeito poderia explicar-se pela
rigidez do ensino superior, sujeito ao critério de número clausus em alguns
países ou a crescimento moderado, por falta de recursos, em outros. Todavia, o
simples congestionamento das matrículas no ensino médio altera a concorrência
pelas oportunidades educacionais no nível imediato do ensino, introduzindo ou
aumentando a importância relativa do fator competição no rateio social das
referidas oportunidades. Isso não modifica, certamente, a qualidade de privilégio
social que caracteriza, em maior ou menor grau, o ensino médio e superior. Mas
indica claramente que, graças aos dinamismos demográficos e aos processos
socioculturais correlatos, a sociedade tende a mudar sua relação com o sistema
escolar.
Esta conclusão é deveras importante, porque sublinha que não é o sistema
escolar, em si mesmo, que se modifica em sua estrutura, em suas funções e em
seu rendimento, como condição prévia para o atendimento de parcelas
crescentemente maiores da população. Ao inverso, são as transformações do
volume e da organização da população que compelem o sistema escolar a se
abrir gradualmente à avalanche, embora mantendo seus caracteres estruturais e
funcionais “arcaicos”. A contraprova dessa interpretação é fornecida pelo fato de
que, na maioria dos países, o sistema escolar enfrenta o aumento crescente das
matrículas nos níveis do ensino médio e superior (para não se falar do ensino
primário), apenas em termos quantitativos: ele ingurgita, sem transformar-se
estrutural e dinamicamente. De modo geral, ainda não se constituíram (ou estão
em elaboração lenta) novas orientações de política educacional que permitam
passar do crescimento quantitativo para a reorganização do sistema escolar.
A discussão precedente, tomando por pano de fundo o ano de 1950 ou a
evolução ocorrida entre 1950-60 e 1966, desemboca numa evidência
melancólica. O ensino superior, embora não seja definido legalmente como
“privilégio”, na prática é monopolizado socialmente pelos estratos médios e
altos da população. Entretanto, até na prodigalização dos privilégios existe uma
hierarquia. Os quadros 1 e 2 abrem margem para muitas conjecturas fundadas a
esse respeito. É claro que países como o Brasil e o México, ou a Colômbia e o
Peru, possuem perspectivas que não se definem claramente nas estatísticas, pois
contam com potencialidades de crescimento econômico e de desenvolvimento
social que ainda não foram exploradas dentro dos limites da própria expansão do
capitalismo dependente. Todavia, nas fases de transição que estão atravessando,
devem submeter-se a penosos sacrifícios, se quiserem garantir-se tais
perspectivas. Os países que já lograram o tipo de integração econômica
permitido pelo capitalismo dependente, ao contrário, ostentam maior progresso
médio, mas, ao mesmo tempo, defrontam-se com sérias dificuldades no que
concerne à preservação e à elevação das vantagens acumuladas. Estariam nesse
caso países como a Argentina, o Uruguai ou o Chile, por exemplo. No contexto
latino-americano, somente Cuba poderá evoluir no sentido de neutralizar
influências socioeconômicas e políticas que interferem cronicamente na
evolução do sistema escolar. Infelizmente, não podemos examinar a fundo as
questões que se colocam dessa perspectiva e somos forçados a considerar as
diferenças relativas, com frequências apreciáveis, de um ângulo mais limitado,
que as dramatiza em termos do que elas representam quantitativamente, em um
momento determinado.
Uma aproximação grosseira da realidade é fornecida através do volume e
variação da matrícula na América Latina. Esse indicador é passível de críticas,
pois alguns países (como a Argentina) aceitam livremente os candidatos; outros,
como o Chile ou o Brasil, levantam barreiras à promoção ou restringem o
número de vagas. Além disso, a evasão escolar no nível do ensino superior
constitui uma realidade desoladora, mais grave naturalmente nos países em que a
transição do ensino médio ao superior é mais fácil. No entanto, as informações
comparáveis disponíveis dizem respeito à matrícula (ver quadro 2), não nos
restando outro recurso senão aproveitar os dados com o cuidado possível. Se
tomarmos os países que atingiram ou superaram a média da matrícula (em ordem
decrescente: Argentina, Uruguai, Chile, Panamá, Venezuela, Costa Rica, Cuba e
México), descobriríamos: 1º) que o aumento percentual da matrícula, no ensino
superior, neles era de 5,1 em 1960 (e não 3,0); 2º) que a variação do aumento
percentual da matrícula, com referência a 1950, neles era da ordem de 222% (e
não de 67%). Inversamente, se tomarmos os países que não atingiram a média de
matrícula (em ordem crescente da diferença negativa: Peru, Equador, Paraguai,
Colômbia, Brasil, Bolívia, República Dominicana, El Salvador, Nicarágua,
Honduras, Guatemala e Haiti), descobriríamos: 1º) que o aumento percentual da
matrícula, no ensino superior, neles era da ordem de 1,5 (e não de 3,0); 2º) que a
variação do aumento percentual da matrícula, com referência a 1950, neles foi da
ordem de 37% (e não de 67%).[62] Se se levar em conta que o aumento da taxa
anual de crescimento da população foi, neste último grupo de países, de 2,4 para
2,9 (no período 1945-55), reclamando um esforço adicional de 22% ao ano,
aproximadamente, pode-se avaliar as deficiências do seu crescimento real na
esfera considerada. Doutro lado, para romper o verdadeiro estado de estagnação
invisível em que se encontram, e atingir simplesmente a média da região, os
doze países do segundo grupo teriam de realizar um incremento adicional médio
de matrículas no ensino superior no mínimo da ordem de 100% ao ano. Se se
propusessem alcançar os níveis atuais do primeiro grupo de países, então o
referido incremento adicional médio deveria ser da ordem de 240%!
Os dados coligidos no quadro 1 oferecem uma base razoável para se entender
por que os países do primeiro grupo conseguiram alcançar, antes de 1950 ou na
década de 1950-60, condições para expandir seu ensino superior. Excetuando-se
o México e a Costa Rica, eles incluíam-se entre os países com mais de US$ 300
per capita, em 1959; excetuando-se o Panamá e Costa Rica, eles contavam com
uma população urbana igual ou superior a 50% da população total; além disso, o
que é mais importante, na América Latina, excetuando-se Costa Rica, todos
possuíam mais de 1/4 de sua população em cidades de 20.000 habitantes e mais,
embora em alguns países (Costa Rica, Venezuela, México e Panamá) a
intensificação da urbanização seja fenômeno recente (como se pode inferir da
porcentagem do crescimento urbano na década de 1950-60). Ao inverso, no
segundo grupo de países, excetuando-se a Colômbia e o Brasil, os demais
contavam com uma renda percapita inferior a US$ 250; todos apresentavam
menos de 50% de população urbana, com predominância de menos de 40%;
excetuando-se a Colômbia e o Brasil, nenhum país possuía 1/4 de sua população
em cidades de 20.000 habitantes e mais; e, com exceção da Colômbia, a
intensidade do crescimento urbano, onde ela ocorreu, evidencia mais “fuga do
campo” que outra coisa.
A correlação positiva da situação socioeconômica do primeiro grupo de países
com o desenvolvimento do ensino superior torna-se evidente, quando se
associam as condições apontadas com a variação do aumento percentual de
matrículas (conforme quadro 2). Excetuando-se Cuba, que mudou a orientação
de sua política educacional, e o Uruguai, sobre o qual não se dispõe de dados
comparáveis,[63] todos os países daquele grupo igualaram ou superaram
porcentagens de crescimento da matrícula no ensino superior que lhes
permitiriam alcançar ou manter ritmos de aumento análogos ou superiores ao da
média da região. Os avanços mais impressionantes foram feitos pela Venezuela,
México e Chile, que em 1950 não atingiam os níveis médios e os igualaram ou
ultrapassaram em 1960. Contudo, o significado vantajoso do desenvolvimento
econômico, social e cultural anterior fica ainda mais patente com os casos do
Chile, Argentina e Uruguai. Apesar do estancamento econômico (e por vezes de
crises sociais e de agruras políticas), conseguiram preservar um ritmo de
progressão constante do aumento da matrícula (o que explica a proeza do Chile,
que não é fruto da aceleração do crescimento econômico, como na Venezuela e
no México, e as tendências observadas nos outros dois países). O quadro 8
sugere que as dificuldades econômicas se refletiram nos gastos orçamentários
com a educação, tanto na Argentina, quanto no Chile. É provável, pois, que a
iniciativa privada, a ajuda externa e a racionalização do uso dos recursos
destinados à educação tenham compensado, de alguma maneira, quanto ao
ensino superior, as limitações dos recursos oficiais. A parte tomada pelos gastos
com educação nos orçamentos do México, Costa Rica e Venezuela demonstra
que os governos desses países estão participando ativamente (e com relativa
disponibilidade de recursos financeiros) da elevação do esforço educacional no
nível do ensino superior. Ao que parece, o êxito das iniciativas oficiais é
garantido pelas condições externas ao sistema escolar, as quais garantem àquelas
nações um aproveitamento construtivo do incremento de esforço educacional (o
que nem sempre se realiza com referência aos países do segundo grupo).
Os países do segundo grupo, por sua vez, comprovam que a ausência de certas
condições econômicas, socioculturais e políticas tanto dificulta ou impede a
aceleração do crescimento do ensino superior, quanto pode determinar
fenômenos bem definidos de estagnação ou de retrocesso. Aparentemente, os
casos mais dramáticos seriam os dos países que evidenciariam a última condição
(o Peru e a Bolívia, por exemplo, em 1950 superavam a média da região; em
1960 decaíram e ficaram aquém da referida média). Todavia, bem examinadas as
coisas, os casos mais dramáticos não aparecem nitidamente como tais nas
estatísticas. A razão disso é simples. O que dificulta o crescimento da educação,
no segundo grupo de países, é o clima dentro do qual o esforço educacional se vê
projetado. Os problemas educacionais são focalizados socialmente com relativa
negligência e resolvidos apenas nos limites em que sua solução vem a ser
importante para a perpetuação do statu quo. Daí resulta uma inércia cultural
crônica diante das exigências da educação, a qual reduz o esforço educacional
desses países (colocando-o, com frequência, muito abaixo do que eles poderiam
efetivamente fazer, se fosse outra a ótica usada na esfera da política
educacional). Tomando-se esta perspectiva de avaliação, todos os países do
segundo grupo ilustrariam, de um modo ou de outro, o mesmo drama comum: a
persistência, em nossos dias, de uma tradição cultural imprópria às funções que a
educação escolarizada preenche na organização da vida moderna. Entre eles,
talvez dois países (a Colômbia e o Brasil) mereçam ser tomados como casos
exemplares, na medida em que possuíam elementos para vencer a mencionada
tradição cultural ou para realizar um esforço educacional de maior amplitude, e
não o fizeram.
A Colômbia alcançara vários requisitos econômicos e sociais, que permitiriam
incluí-la, de fato, no primeiro grupo, com um pouco mais de elasticidade no uso
dos critérios descritivos empregados. Doutro lado, ostenta uma variação do
aumento percentual das matrículas no ensino superior da ordem de 100%. No
entanto, o quadro 8 deixa patente que a deliberação de intensificar o esforço
educacional não chegou a ser tão forte a ponto de conferir à educação uma alta
participação nos gastos orçamentários (de 5,3%, em 1950, passou a 9,1%, em
1960; outros países, do primeiro e do segundo grupos, privilegiaram a educação
como esfera de investimento produtiva, destinando-lhe acréscimos que
envolviam uma variação relativa superior a 9% e a 10% ou mais). Parece
evidente, pois, que um dos países da América Latina, que dispunha de condições
mais propícias para acelerar o seu esforço educacional no ensino superior, não se
impôs, como o fez o México, por exemplo, alvos suficientemente ambiciosos
para levarem ao atendimento dos mínimos médios da região. Semelhante esforço
teria exigido um aumento percentual na variação das matrículas da ordem de
234%, com claras implicações quanto à orientação programática e financeira da
política educacional.
A situação brasileira é, sob todos os aspectos, porventura mais típica da
condição do segundo grupo de países que a da Colômbia. Não só porque o
esforço educacional desenvolvido pelo Brasil, no mesmo período, é visivelmente
menor (com relação ao ensino superior e com referência à proporção dos gastos
orçamentários com a educação), mas ainda porque certos acontecimentos
políticos recentes fizeram com que ele se tornasse o principal representante do
“farisaísmo educacional” tradicionalista na América Latina. Esse farisaísmo
consiste em proclamar uma ideologia educacional de conteúdo democrático e de
significado moderno; e em desenvolver uma prática educacional que
corresponde à negação de tal ideologia. O exemplo brasileiro também é típico à
luz das implicações educacionais da militarismo. Agora está em voga,
especialmente nos Estados Unidos, uma literatura sociológica que valoriza o
sentido “racional” e “inovador” do militarismo nos países subdesenvolvidos. É
provável que, por motivos de segurança da política internacional dos Estados
Unidos, o militarismo represente, do ponto de vista norte-americano, o máximo
de progresso com o mínimo de riscos. Para os países que sofrem os golpes
militares, porém (em particular, para os países da América Latina que estão no
segundo grupo), se a ação política desencadeada não tiver ligações profundas
com movimentos civis de reconstrução da ordem legal vigente (como sucedeu
no Brasil com a revolução de 1930), o militarismo representa uma preservação
do statu quo por meios violentos (ou da presunção do uso da violência). Eles não
se dirigem apenas contra os riscos potenciais da democratização do poder:
voltam-se contra todos os símbolos ou mecanismos pelos quais a democracia
pode estabelecer-se, como aspiração social, como estilo de vida e como realidade
política. Por isso, adquirem significados e funções reacionárias, que irrompem
de forma negativa na esfera da educação. É fácil avaliar tais efeitos, no que eles
nos interessam aqui. Apesar de serem figuras de confiança do governo militarista
brasileiro (que tomou o poder em 1964), os reitores das universidades federais
do Brasil se viram compelidos a “denunciar” publicamente: 1º) que a
participação do Ministério de Educação e Cultura no orçamento da União vem
decaindo progressivamente: 11,0%, em 1965; 9,7%, em 1966; 8,7%, em 1967;
7,7%, na proposta orçamentária de 1968; 2º) que as universidades federais
receberam cortes que reduziram seus orçamentos em 37%; 3º) que a participação
das universidades federais nas dotações destinadas à educação também vem
decrescendo continuamente: 3,9%, em 1965; 3,5%, em 1966; 3,4%, em 1967;
2,8%, na proposta orçamentária de 1968.[64] Esse quadro é característico. A
educação sofre um processo de esvaziamento financeiro, como se não
constituísse uma esfera de inversão produtiva e necessária. Como, ao mesmo
tempo, as medidas simplistas vão do corte das verbas ao aumento compulsório
das matrículas, pode-se imaginar qual é o resultado final do militarismo como
ingrediente da “política educacional” dos países subdesenvolvidos.
Não obstante, já na década de 1950-60, o crescimento da matrícula no ensino
superior do Brasil estava aquém de uma política deliberada, que visasse pelo
menos equiparar o país aos progressos médios da região. O aumento alcançado
na variação percentual da matrícula representava, aproximadamente, 1/3 do
esforço que deveria ser feito para a consecução de semelhante objetivo global. O
caso brasileiro ilustra, pois, que é inerente às propensões de uma tradição
cultural conservadora moderar a expansão do ensino, contendo-a dentro de um
ritmo que permita atender, especificamente, ao aumento potencial da procura nos
estratos superiores das classes médias e altas. Os golpes militares, em vez de
destruir, fortalecem essa orientação e agravam os seus efeitos perniciosos,
exacerbando a conotação das oportunidades educacionais, no nível do ensino
médio e superior, como “privilégio de classe”. Dentro desse contexto, o ensino
superior fica permanentemente associado ao status e ao prestígio social das
élites, com o agravante de que ele não é concebido e usado como um fator de
dinamização do crescimento econômico, do desenvolvimento sociocultural, ou
do progresso da pesquisa científica e tecnológica. Mas, como um dos fatores da
estrutura social que regulam a transmissão do status e do prestígio social, de uma
geração a outra, segundo os padrões da ordem social existente e das estruturas de
poder que eles configuram. Por aí se vê que a inércia cultural relativa, que afeta
o desenvolvimento do ensino superior no segundo grupo de países, constitui um
produto crônico (e sob vários aspectos sociopático) da estrutura e funcionamento
da ordem social. Explicam-se, assim, o solapamento e a neutralização de todas
as pressões favoráveis à mudança, especialmente daquelas que afetem a
qualidade do ensino e a distribuição das oportunidades educacionais, e o
amortecimento das tendências puramente quantitativas de crescimento global do
sistema escolar. A visão tradicionalista, que organiza a percepção e a inteligência
da situação, converte o ensino superior numa barreira social e resiste tenazmente
contra a sua transformação em núcleo institucional dinâmico do
desenvolvimento da personalidade, da sociedade e da cultura.
Essa apreciação de conjunto precisa ser completada em dois pontos. Na
discussão precedente foi negligenciado um aspecto que agrava seriamente o
esforço educacional do segundo grupo de países. Dez deles apresentam uma
população em idade escolar, de 20 a 24 anos, igual ou superior à média da região
(em ordem de diferença decrescente: República Dominicana, Guatemala,
Nicarágua, Brasil, El Salvador, Honduras, Peru, Costa Rica, Paraguai e Haiti).
No entanto, nove desses países se encontravam, em seu esforço de expansão do
ensino superior, abaixo da média global (em ordem de diferença crescente: Peru,
Paraguai, República Dominicana, Brasil, El Salvador, Nicarágua, Honduras,
Guatemala e Haiti). E quatro entre esses países enfrentavam um retrocesso ou
alguma estagnação nesse nível do seu esforço educacional (respectivamente:
Nicarágua e Peru; Guatemala e Haiti). Pensando-se em termos da massa de
população em idade escolar e dos padrões médios da região, excetuando-se o
Peru (cujo caso não possui, em termos relativos, a gravidade que aparenta) e o
Haiti (que praticamente deveria começar da estaca zero), sete dos países
mencionados (na ordem das diferenças negativas crescentes: Nicarágua e
Paraguai; República Dominicana; Brasil e Guatemala; El Salvador; Honduras)
não lograram crescimento verdadeiramente compensador das matrículas no
ensino superior. Para que isso tivesse ocorrido, o seu esforço educacional, nesse
nível, deveria ter sido duas, duas vezes e meia, três, cinco e até oito vezes maior
do que foi.
Outro aspecto negligenciado refere-se ao aumento da variação percentual
aparentemente alto (da ordem de 50%, 60%, 80% e até 100%) de seis países que
estavam abaixo da média para a região, em 1950, e mantiveram essa posição, em
1960 (Honduras, El Salvador, República Dominicana, Brasil, Colômbia e
Equador). A discussão anterior já esclareceu suficientemente as proporções do
malogro relativo do esforço educacional dos quatro primeiros países. Restam,
pois, os casos da Colômbia e do Equador, que devem ser estimados em função
dos padrões médios da região. Ambos são dois casos-limites, pois a variação do
aumento percentual das matrículas aparenta uma magnitude considerável (100%
e 80%, respectivamente). Contudo, apesar de ultrapassarem a média da região
(67%), o esforço educacional de ambos os países ficou, nesse nível do ensino,
aquém do que deveria ser feito para atingirem a média da região (para que isso
ocorresse, a Colômbia deveria ter realizado um esforço quase duas vezes e meia
maior; e o Equador, pelo menos mais a metade do que conseguiu realizar). Isso
evidencia que mesmo as duas nações de maior êxito relativo no segundo grupo
de países, na verdade, perderam terreno quanto ao ritmo médio de
desenvolvimento global da matrícula no ensino superior (embora a perda relativa
do Equador seja de magnitude quase insignificante). Os dois casos possuem um
interesse especial, porém, porque revelam até onde as aparências são
enganadoras. Um crescimento aparentemente intenso e compensador oculta, na
realidade, a preservação de posições relativas desvantajosas no conjunto da
região. O que quer dizer que o segundo grupo de países não sairá da estagnação
real em que se acha, se não forem postas em prática medidas corretivas de
natureza estrutural e de longo alcance.
Os resultados dessa análise quantitativa apanham apenas aspectos da situação
que são necessariamente superficiais. Pelo que se sabe, através das investigações
feitas por educadores e cientistas sociais, o aspecto mais grave do ensino
superior na América Latina é qualitativo. Portanto, haveria um paradoxo a
adicionar ao quadro descrito com tintas inevitavelmente sombrias. Ele consiste
em que, além de deficiente, a expansão quantitativa desenrola-se numa direção
errada: o sistema escolar, ao crescer e diferenciar-se, multiplica e difunde um
tipo de ensino superior superado e, sob vários aspectos, “disfuncional” numa
sociedade competitiva em desenvolvimento. Desse prisma, o avanço do primeiro
grupo de países traduziria um progresso ingrato, porque eles estariam
empregando maior soma de recursos materiais e humanos na propagação e na
expansão de um ensino superior que mereceria ser posto à margem e superado.
Não possuímos dados comparáveis que permitam discutir semelhantes
problemas; e na última parte deste estudo trataremos, sumariamente, dos
aspectos qualitativos que interessam mais à presente análise. Apenas para nos
situarmos diante desse debate, gostaríamos de assinalar que o fenômeno
apontado não possui o caráter de um mal em si e de um drama insuperável. Era
preciso que os países da América Latina atingissem um nível de
desenvolvimento socioeconômico que provocasse o desnivelamento social do
ensino superior, com a subsequente expansão das velhas escolas e dos antigos
padrões de escolarização. Só através desse processo histórico-social, que se acha
em curso em todos os países (embora com intensidade variável), é que se dará a
lenta depuração e a fatal superação de práticas educacionais envelhecidas ou
arcaicas. Por isso, o esboço descritivo, que pretendíamos realizar, abrangerá
apenas mais duas questões. Uma, que diz respeito à distribuição das matrículas
pelos diferentes ramos de ensino. Outra, que se relaciona com o destino prático
dos graduados. No exame das duas questões pretendemos completar o
diagnóstico sociológico já esboçado, tentando desvendar se uma “sociedade
subdesenvolvida”, nos marcos históricos do capitalismo dependente, pode ou
não imprimir à universidade as funções que ela deveria desempenhar para
constituir-se em “fator de desenvolvimento” (ou de aceleração e de
autonomização do desenvolvimento).
Em 1965 graduaram-se, aproximadamente, 71.000 pessoas por universidades
ou escolas superiores latino-americanas. Eis a distribuição dos graduados, pelos
diversos ramos do ensino:[65]
O conjunto de ramos de ensino ligados com as profissões tidas como
tradicionais (medicina, direito e engenharia) concorre nada menos que com 52%
do total. Doutro lado, setores tão vitais para o desenvolvimento cultural de uma
nação moderna, como o da educação e o das ciências naturais, participam de
modo relativa mente baixo ou ínfimo (21% e 4%, respectivamente). Além disso,
somando-se os totais de educação, direito, ciências sociais e econômicas,
arquitetura e belas-artes, temos 37.000 graduados (ou 51%) contra os 14.000
graduados (ou 20%) de engenharia, ciências naturais e agricultura. Ao que tudo
indica, pois, a universidade latino-americana ainda não conseguiu superar as
distorções nascidas do antigo condicionamento técnico-profissional e
socioeconômico, que inibia o seu desenvolvimento como um fator cultural
multifuncional.
Essas conclusões poderiam ser confirmadas e ampliadas, se usássemos os
dados concernentes à distribuição de matrículas em 11 países da América Latina
(veja-se o quadro 3). Tais dados mostram que, entre 1955-56 e 1960, havia a
seguinte distribuição percentual das matrículas:[66]
Parece evidente que a antiga distorção técnico-profissional ainda prevalece
nas universidades latino-americanas, em termos que concorrem para preservar
uma alta concentração da procura em torno de ramos do ensino relativamente
pouco significativos para a modernização da tecnologia, o crescimento
econômico e o desenvolvimento sociocultural. Razões econômicas e
psicossociais, relacionadas com a manutenção de status das famílias de classe
média e alta ou com as pressões dinâmicas de uma estrutura ocupacional
deformada em alguns de seus níveis pelo congestionamento de profissionais
liberais, continuam a preponderar no ânimo dos jovens e em suas aspirações de
“carreira intelectual”. O círculo permanece tão fechado, que os jovens são
permanentemente compelidos a fazer o reduzido grupo de escolhas que
prevaleciam no passado, mesmo em sociedades nas quais já existem novos
recursos educacionais, novas oportunidades de “empregos compensadores” e
novas vias de aproveitamento construtivo do talento.
Tende-se a condenar a universidade latino-americana por essa situação.
Todavia, não é a universidade que cria a estrutura de avaliações das carreiras,
fundadas em requisitos universitários. Ao que parece, ela se adaptou
profundamente, ao longo de uma evolução secular, às exigências de uma
sociedade que atrelava estreitamente a universidade a uma organização do poder
na qual só possuíam significação interesses econômicos, sociais e culturais de
uma estreita parcela da população. Isso produziu uma espécie de vácuo social na
configuração da universidade e de suas relações com a sociedade. Ela interage
estrutural e funcionalmente com esta, mas apenas no nível da organização de
poder em que se encontra inserida (ou seja, dos interesses materiais e morais das
classes médias e altas, bem como de suas élites econômicas, culturais e
políticas). Daí resultou uma barreira invisível à diferenciação progressiva das
funções na universidade e uma tendência quase inexorável à concentração
dominante das escolhas em um número reduzido de ramos do ensino. Como a
esse processo institucional sempre correspondeu uma acentuada concentração
dos graduados em algumas “carreiras condignas” (o que continua a ocorrer com
as oportunidades intelectuais, científicas ou técnicas emergentes), a universidade
ficou presa dentro de malhas pouco elásticas, que reduziam inevitavelmente o
seu impulso criador e restringiam fatalmente a sua contribuição para a alteração
da estrutura, do significado e das funções das “ocupações intelectuais”. Portanto,
aprofundando-se a análise, descobre-se que a universidade não é responsável
pela situação existente e suas consequências mais ou menos negativas. O
aparecimento, a consolidação e a valorização positiva de novas “carreiras
intelectuais” não se produzem como efeitos secundários da modernização. É
preciso que a própria estrutura da sociedade global se altere, provocando
transformações profundas na organização do sistema ocupacional, nos critérios
de peneiramento dos intelectuais e no aproveitamento socialmente construtivo
do talento. Como nada disso ocorreu, pelo menos dentro de uma escala
sociologicamente significativa, as mudanças que afetaram a organização, o
funcionamento e o rendimento da universidade foram superficiais. Até as novas
escolas ou faculdades acabam se defrontando com uma realidade dramática. Por
falta de suporte institucional adequado e de dinamismos societários vigorosos,
elas por assim dizer envelhecem precocemente. Em vez de fazerem pressão no
sentido de transformar as unidades preexistentes, elas se obsoletizam por
contágio ou graças a controles sociais indiretos, tornando-se totalmente
impotentes diante das “estruturas arcaicas”. Convertem-se às expectativas
socioculturais predominantes no meio e logo ficam irrelevantes como fator de
mudanças substanciais nas formas possíveis de vida intelectual.
Os dados apresentados não comportam uma análise sistemática das
orientações da procura de cursos ou de suas implicações propriamente
educacionais. Todavia, eles sugerem algumas conjecturas, úteis à compreensão
do estado atual do ensino superior na América Latina. Em primeiro lugar, não
deixa de ser impressionante a negligência de matérias tão essenciais para esses
países, como a agronomia e a veterinária. As pessoas que lidam praticamente
com tais questões, em posições dominantes e de liderança, formaram seu
horizonte cultural através da rotina, do conhecimento de senso comum e, por
vezes, do folclore. Mesmo quando aceitam inovações de caráter técnico-
científico ou quando admitem a colaboração circunstancial e localizada dos
especialistas, repelem o que chamam de “técnica formada” e desmerecem de
várias maneiras suas qualificações científicas “teóricas”. Os motivos que
determinam semelhantes atitudes e comportamentos ligam-se, provavelmente, à
defesa de prerrogativas autoritárias de status e de dominação incondicional, que
poderiam ser minadas e destruídas juntamente com o tradicionalismo.[67]
Doutro lado, não é raro que a criação e a expansão de escolas de agronomia e de
veterinária (como acontece de modo universal também com outras faculdades,
especialmente as de direito, de farmácia e odontologia, de filosofia, ciências e
letras etc.) exprimam mais o desejo de possuir certos símbolos de civilização,
que a decisão de enfrentar determinados problemas em escala racional. Por isso,
as escolas mais fáceis de montar encontram decidida preferência. Elas nada
representam (e em regra nada devem representar) como fontes de modificação
da rotina ou de mobilização e de utilização racionais dos recursos materiais e
humanos do ambiente.
Em segundo lugar, é preciso notar-se que a alta concentração da procura em
certos ramos do ensino superior, como a arquitetura, a engenharia e a medicina
(que alcançaram 42,5% das matrículas), não quer dizer que as universidades da
região estejam formando e preparando o pessoal especializado que seus países
necessitam nesses setores. Ao contrário, não só existe escassez de pessoal
qualificado nessas áreas, como são notórios tanto a sua má distribuição dentro
dos diferentes países (em regra, os graduados tendem a preferir as grandes
cidades ou as metrópoles como núcleos de exercício de suas profissões), quanto
o seu subaproveitamento (com frequência em atividades bem remuneradas e de
prestígio, mas que não requerem as qualificações indicadas). Além disso, na
maioria dos países, os médicos e os engenheiros, principalmente, têm
demonstrado que são mais sensíveis à defesa dos seus níveis de renda e de
prestígio que às necessidades mais ou menos prementes de seus povos. Fundados
em razões aparentemente louváveis, como a “alta qualidade do ensino” ou a
“preparação rigorosa” para a vida profissional, impedem, restringem ou inibem o
aproveitamento da capacidade ociosa de suas escolas ou faculdades. No que diz
respeito à expansão do ensino de arquitetura, engenharia e química industrial, ao
que parece apenas o México está tentando realmente modificar, de maneira
decisiva, os padrões tradicionais. Em menor escala, o mesmo parece estar
acontecendo na Colômbia e no Panamá. Merece também consideração especial,
por motivos inversos, a situação do Brasil. Apesar de carecer de uma reviravolta
nesse campo (não só pela extensão do país e do volume da população, mas por
causa de ter a industrialização atingido a fase de formação de indústrias de
produção de bens de produção), o Brasil está abaixo das médias globais e muito
abaixo do esforço educacional dos países que estão enfrentando com maior
tenacidade as suas deficiências nesses setores. No que tange à farmácia,
medicina e odontologia, duas coisas chamam a atenção. De um lado, as
deficiências flagrantes, que alcançam proporções dramáticas em alguns países da
América Latina. De outro, que alguns países estão empenhados em corrigir,
como podem, tais deficiências. O que acarreta, naturalmente, porcentagens que
são aparentemente altas para o grau de diferenciação e de desenvolvimento dos
respectivos países. De qualquer modo, seria bom não se perder de vista uma
hipótese de conjunto. Os dados sugerem, conclusivamente, que os onze países,
representativos dos dois grupos analisados acima, em ramos do ensino
importantes para o desenvolvimento como a engenharia, a química industrial e
as ciências médicas, mal conseguem adaptar-se à pressão do aumento crescente
das matrículas. Excetuando-se o México, prevalece uma orientação passiva e
inibidora, a qual impede que a universidade assuma a iniciativa de romper os
bloqueios tradicionais, forçando modificações urgentes na organização e
distribuição das matrículas.
Em terceiro lugar, cumpre-nos observar que nem sempre são justas as críticas
feitas à preponderância da procura em ramos do ensino como o direito, as
ciências sociais e econômicas, a pedagogia etc. Tais críticas fundam-se na alta
participação do direito nessa procura (por si só, esse ramo do ensino entra com
uma quota de 25% a 30% ou mais das matrículas, na maioria dos países) e na
presunção de que o direito não possui mais a importância que teve no passado
como fonte de recrutamento das élites culturais, político-administrativas e
econômicas. Na realidade, porém, a maioria dos países ainda depende dos
“bacharéis em direito” para compor suas élites. E a carência de cientistas sociais
e de professores de ensino médio, além das necessidades que impõem o uso
maciço do planejamento, tornam as demais escolas superiores tão úteis e
necessárias quanto as de engenharia, química e medicina. Feitas essas ressalvas,
seria conveniente mencionar alguns traços sintomáticos do atual sistema de
ensino, revelados pelas indicações expostas. A maneira pela qual países tão
diversamente desenvolvidos na esfera do ensino superior (como Argentina,
Brasil, El Salvador, Costa Rica, Panamá, Paraguai e Peru) oscilam em torno ou
acima da média global sugere o quanto a procura nesse nível reflete a
persistência do padrão tradicional. Essa implicação deve ser devidamente
ponderada, pois ela assinala que, nesse plano, não existem diferenças
substanciais entre os dois grupos de países. Independentemente da magnitude do
seu esforço educacional e de sua pobreza ou riqueza relativas, todos tentaram e
conseguiram um mínimo de êxito na montagem do tipo de “ensino superior” que
era encarado pelas élites tradicionais como o próprio símbolo da “cultura
refinada” e da qualificação para o exercício do poder. Os mesmos dados apoiam
uma observação importante. O México e a Colômbia são os dois únicos países
cujo esforço educacional está fortemente abaixo da média, quanto a esse nível do
ensino superior. Como não se pode presumir que isso resulte de uma escassez
relativa de recursos para a educação, é provável que esteja emergindo uma
tendência definitiva no sentido de reorientar e reorganizar a procura das
matrículas universitárias. Não deixa de ser sintomático, porém, que apenas em
dois países sobre onze apareça tal tendência, tida em muitos círculos intelectuais
como a pedra de toque para o início de transformações verdadeiramente
substanciais do ensino superior.
A segunda questão leva-nos à discussão do destino prático dos graduados.
Apesar do muito que se escreveu a respeito, não se dispõem de dados
comparáveis, suficientemente consistentes, para toda a América Latina. Faltam,
especialmente, indicações mais ou menos precisas sobre os requisitos
intelectuais das ocupações em que os graduados são aproveitados. Em regra,
pode-se afirmar que, excetuando-se carreiras inerentes às “profissões liberais” ou
técnicas, a preferência por graduados não nasce de exigências intelectuais
específicas, mas de questões de prestígio, tradição ou de pura solidariedade
social. Doutro lado, a emergência e a ascensão das classes médias não
quebraram os padrões tradicionais, como se tem interpretado tão generosamente.
As classes médias não tinham meios para privilegiar a riqueza, o prestígio social
ou o poder em sua competição por status e por mobilidade vertical. Tais fatores
eram monopolizados pelas classes altas. Por isso, a acumulação de saber ou de
“cultura” erigiu-se em seu verdadeiro bastião nas relações competitivas com as
demais classes, embora isso não engendrasse nenhuma forma de monopolização
do saber ou da “cultura” (pois as classes altas preservaram suas antigas posições
nesse nível, admitindo apenas um alargamento dos círculos sociais que tinham
acesso às formas privilegiadas de educação). Em consequência, as classes
médias tenderam a se acomodar aos padrões tradicionais, de supervalorização e
de nobilitação tanto do título de bacharel, quanto da preferência pelos setores da
advocacia, medicina e engenharia. Onde e como puderam, manipularam a ordem
legal com vistas à criação de requisitos de exercício das profissões que
impunham (ou poderiam impor) qualificações universitárias. Dessa maneira,
privilegiavam o fator através do qual contavam com probabilidades de competir
com as classes altas numa estrutura social eivada de privilégios. Por aí se explica
por que as transformações tão profundas, acarretadas pela “revolução burguesa”
no plano econômico, tecnológico e político, quase não afetaram a organização, o
funcionamento e o rendimento das universidades. Estas continuaram a ser uma
espécie de “fábrica de bacharéis”, no melhor estilo da antiga universidade.
Esse processo não impediu que as relações entre a universidade e a sociedade
se alterassem em muitos pontos. Graças à complicação da divisão social do
trabalho, o sistema de ocupações inerente à economia de mercado, à “grande
cidade” e ao “Estado moderno”, surgiu em todos os países como uma realidade
histórica. Essa circunstância, combinada ao mecanismo pelo qual as classes
médias privilegiaram intelectualmente (e por vezes também legalmente) os
requisitos universitários das profissões “qualificadas” ou “altamente
qualificadas”, determinaram a persistência e a redefinição social dos padrões
tradicionais no novo contexto histórico. Como no passado mais ou menos
remoto, os graduados visam a carreiras altamente compensadoras (em prestígio,
em renda ou em ambas as coisas) de “natureza intelectual”; e como então
sucedia, várias dessas carreiras situam-se no âmbito de atuação do profissional
liberal, livre e independente, ou nos setores de atividades do “homem de ação”
(da política à administração pública e privada). Ao que parece, no entanto, as
mudanças econômicas, tecnológicas e políticas tendem a estabelecer uma nítida
predominância do assalariamento do universitário. Pode-se verificar essa
tendência através das seguintes indicações, pertinentes a 1950, que evidenciam
que a proporção de profissionais, semiprofissionais e técnicos livres é,
normalmente, 2, 3 ou 4 vezes menor (e circunstancialmente é 5, 6 ou até 7 vezes
menor) que a dos seus colegas assalariados:[68]
Está em curso, portanto, um processo de transformação do sistema
ocupacional, com referência a profissões com requisitos universitários, que se
adapta às mudanças de estrutura da ordem econômica, social e política.
Infelizmente, não existem dados que permitam analisar as implicações
educacionais (especialmente no nível do ensino superior) desse processo. Até o
presente, é possível avaliar apenas um aspecto de suas consequências. Trata-se
da dispersão (ou da polarização dispersiva) do pessoal com formação
universitária. É cada vez maior a amplitude e a diversificação de oportunidades
de carreira que a sociedade oferece aos graduados das universidades, tanto
dentro de uma linha que respeita e aproveita as potencialidades da
especialização, quanto numa linha de intensificação crescente de duras
competições interprofissionais. Esse processo, todavia, não pode ser descrito
com relação a todos os países. Utilizando-nos de informações concernentes ao
Brasil, contudo, podemos esboçar uma imagem viva do que está acontecendo.
Assim, dados relativos a pessoas ocupadas em profissões técnico-científicas (no
censo de 1/7/1950) revelam que, num total de 97.114 profissionais,
semiprofissionais e técnicos, 42.265 (ou seja, 47%) dedicavam-se às profissões
liberais, enquanto 51.849 (ou seja, 53%) dedicavam-se a outras atividades, por
conta própria ou como assalariados. O quadro 9 fornece uma visão de conjunto
da situação brasileira, sob esse aspecto (note-se que várias profissões técnico-
científicas não foram computadas: economistas, sociólogos, psicólogos,
orientadores educacionais, administradores etc.). Por ele se verifica que algumas
profissões técnico-científicas são mais suscetíveis que outras à polarização
dispersiva. Os dentistas e protéticos (com 92,9% em profissões liberais), os
advogados (com 75%) e os médicos (com 51,9%) estão entre os profissionais
que logram o máximo de autonomização numa estrutura ocupacional
competitiva. Por sua vez, o inverso se revela com os químicos (com 2,2% em
profissões liberais), os agrônomos (com 9,8%), os engenheiros (com 10,4%), os
veterinários (com 16,8%) e os arquitetos (com 25,5%), os quais tendem a um
máximo de irradiação dispersiva. Com três exceções, que não vem ao caso
discutir, essa irradiação envolve os profissionais de formação universitária em
todos os ramos de atividade econômica. É possível que as proporções indicadas
traduzam potencialidades de aproveitamento de pessoal de nível superior
alcançadas pela sociedade brasileira na década de 1950. Entretanto, presumimos
que as tendências centrais possuem caráter geral (em termos da organização da
economia e da sociedade sob o capitalismo dependente), aplicando-se pelo
menos aos países da América Latina que conseguem formar internamente os
profissionais em questão.
O processo mencionado suscitou várias controvérsias. Há quem pense que a
tendência a incorporar o universitário a “élites culturais” de funções criadoras
tão dispersivas e improdutivas seja uma degradação do intelectual. Também se
tem ventilado o problema de saber se a maneira indicada de dispersar os
graduados de diferentes ramos de ensino em carreiras tão variadas e disparatadas
não seria mera devastação de recursos humanos relativamente escassos (já que,
no mínimo, haveria subaproveitamento sistemático de pessoal de nível superior).
Na verdade, semelhante irradiação dispersiva de intelectuais com formação
universitária não estimula a produção criadora e colide abertamente com o que
se poderia chamar de uso racional do talento pela sociedade. Mas, é preciso ter-
se em vista que os países latino-americanos estão incorporando, dessa maneira,
novas formas de saber artístico, científico ou técnico a uma massa
crescentemente maior de indivíduos. Isso significa que se está alterando, por
uma via tão tumultuosa quão dispersiva e cara, os conteúdos e a organização do
horizonte cultural dos “intelectuais”. Aos poucos, a sociedade acabará contando,
em quantidade e em qualidade, com pessoal abundante para ocupações que
exigem altas qualificações. Portanto, ao processo descrito são inerentes pelo
menos alguns significados positivos, que têm sido negligenciados. O nível de
qualificação dos diferentes tipos de profissionais, que controlam as posições-
chaves da estrutura ocupacional de uma sociedade moderna, constitui em si
mesmo um dos fatores invisíveis mais importantes da continuidade e da
intensidade do desenvolvimento econômico e sociocultural. O que se poderia e
deveria pôr em causa, sob esse prisma, não seria a polarização dispersiva de
“intelectuais” com formação universitária, mas se eles obtêm (ou deixam de
obter), nos cursos universitários, o mínimo de qualificação requerida ou
desejável. Posta nestes termos, a questão muda de aspecto. Pois as escolas e
faculdades que ministram ensino superior (inclusive nos países do primeiro
grupo) raramente estão adaptadas para preencher a função de preparar seus
graduados para os diferentes tipos de carreira em que eles são ou podem ser
aproveitados. Eles sequer “aprendem a aprender” nas escolas e faculdades mais
deficientes. As instituições que absorvem os graduados, por sua vez, também
raramente possuem condições para complementar e aperfeiçoar a aprendizagem
universitária (tanto no setor público, quanto no setor privado). Estabelece-se,
assim, um círculo vicioso, que redunda, de fato, no “mau uso” e no “subemprego
sistemático” de fatores humanos essenciais à criação de suportes psicoculturais
do desenvolvimento econômico e social.
O aspecto mais dramático da situação, do ponto de vista em que ela é
colocada neste trabalho, consiste em que o círculo vicioso apontado não encontra
um fator de ruptura e de superação nem no crescimento da estrutura ocupacional
da sociedade nem em algum desequilíbrio súbito de origem especificamente
educacional. É sabido que o crescimento econômico tende a diluir, a longo
prazo, as inconsistências institucionais do sistema escolar. Doutro lado, em
condições de ebulição social e política, o sistema escolar por vezes consegue
(através do egresso das universidades e independentemente do padrão e do ritmo
do crescimento econômico) imprimir à sociedade uma evolução revolucionária.
Até o presente, nenhuma das duas alternativas se configurou como uma saída
histórica nos países da América Latina. O impulso fornecido à mudança
institucional pela “revolução burguesa”, sob o capitalismo dependente, é
descontínuo, fraco e dispersivo. Além disso, atingido certo patamar mais
avançado, os efeitos construtivos do crescimento econômico deixam de operar
construtivamente em escala nacional, porque em seguida aquele patamar se
estabiliza (por falta de fatores de aceleração da mudança) e deixa de funcionar
como um simples elo na direção de uma organização econômica mais complexa.
Em semelhantes condições, o agente humano da mudança institucional redefine
constantemente suas motivações econômicas, sociais e políticas, imprimindo
insensivelmente maior peso aos interesses egoísticos que o prendem ao statu quo
ante. Desse modo, esvazia de modo parcial ou total e perverte de um jeito ou de
outro o complexo processo de adaptação das instituições às suas funções
econômicas, sociais e políticas emergentes. Foi graças a uma progressão desse
tipo que as universidades ficaram permanentemente envolvidas pela situação de
interesses e pela perspectiva social dos estratos superiores das classes médias e
altas. As ideologias e as utopias educacionais, que poderiam dar fundamento a
uma autêntica e profunda “reforma universitária”, em vez de serem usadas como
forma de negação e de superação da antiga universidade, serviram de biombo
para ocultar a sua perpetuação sob novo figurino. Em consequência, da
universidade e dos seus egressos não partiu nenhum processo cultural de teor
revolucionário, suscetível de causar um impacto sobre a transformação da ordem
legal e, através dela, sobre o crescimento econômico e o desenvolvimento social.
Os quadros 6, 7 e 8[69] lançam, indiretamente, alguma luz sobre esses
aspectos sombrios do impasse que nasce da conjugação crônica de ritmos
insuficientes de crescimento econômico com padrões débeis e inconsistentes de
mudança institucional. O que chama a atenção do analista, nos referidos quadros,
é o círculo vicioso quase perfeito que inibe, solapa ou destrói qualquer influência
recíproca altamente criadora nos sentidos economia Ü sociedade Ü ensino
superior; ou ensino superior Ü sociedade Ü economia. Como a inibição, o
solapamento ou a neutralização das influências dinâmicas construtivas se dá sob
transformações quantitativas constantes, o aspecto sociopático da rigidez relativa
do ensino superior é perdido de vista. Contudo, a estrutura ocupacional e da
renda, suportada pelo sistema econômico, não alimenta um processo educativo
suficientemente diferenciado e vigoroso para galvanizar a universidade,
erigindo-a em um fator real de ruptura da inércia cultural e do desenvolvimento.
No conjunto total de ocupações, apenas 1,4% das pessoas ocupadas dispõem de
formação universitária (completa ou incompleta). Elas concentram-se em
algumas categorias ocupacionais (fornecem 23,6% dos profissionais e técnicos,
9,9% dos administradores e gerentes, e 2,0% dos empregados e vendedores). É
esse número ínfimo que delimita a estrutura ocupacional das pessoas com
formação universitária (na qual 62,3% se ocupam como profissionais e técnicos;
21,7%, como administradores e gerentes; e 16,0%, como empregados e
vendedores). Por aí se depreende o que a formação universitária pode
representar, estrutural e funcionalmente, como “força socioeconômica”. Em
condições de crescimento econômico contínuo e em aceleração crescente, essa
minoria poderia agir como um elo dinâmico entre a ordem social estabelecida e a
transformação da economia, da tecnologia e do sistema de instituições (inclusive
as instituições educacionais e, entre elas, as universidades). Nas condições
predominantes da América Latina, de estancamento econômico e de crescimento
econômico instável ou moderado, essa minoria apenas opera como um elo
dinâmico entre a ordem existente e a estabilidade social (ou a mudança sob o
máximo de segurança para os estratos superiores das classes médias e altas). Por
sua própria situação socioeconômica, tal minoria está condenada (pelo menos
enquanto prevalecerem as condições econômicas, sociais e culturais do presente)
a canalizar o crescimento econômico e o desenvolvimento educacional
(especialmente do ensino médio e superior) no sentido da preservação e do
fortalecimento dos seus próprios níveis de renda, de prestígio social e de poder.
Os sociólogos sabem que não existe “lógica dos grandes números” que resista ao
estancamento socioeconômico crônico ou ao desenvolvimento socioeconômico
moderado. Todavia, dadas e mantidas essas mesmas condições, a alternativa da
“lógica dos pequenos números” desemboca numa encruzilhada, na qual todos os
privilégios se unificam para a defesa do que garante a existência e a
sobrevivência dos privilégios: a ordem estabelecida. Atrás de uma mudança
aparentemente contínua, profunda e avassaladora, esconde-se a perpetuação do
statu quo ante, porque o que está em jogo não é a negação e a extinção dos
privilégios, mas a sua continuidade sob novas formas.
Isso não significa, naturalmente, que tudo esteja ou permaneça como no
passado. Se não ocorrer um mínimo de mudança institucional e de crescimento
econômico, de modo constante, a própria estrutura ocupacional e de distribuição
da renda, em que se fundam os privilégios econômicos, sociais e educacionais
vigentes, se veria ameaçada. Mas que, dependendo do impulso atual do
crescimento econômico e do ritmo da mudança institucional que resulte da
atuação consciente das élites culturais, a conjugação entre universidade e
desenvolvimento tenderá a estabelecer-se dentro de níveis em que o fundamental
sempre virá a ser resguardar o padrão tradicional de aproveitamento dos
graduados pela sociedade. Se esse panorama não se alterar a partir da própria
estrutura ocupacional e de distribuição da renda, é mais que certo que ele não se
modificará a partir da universidade. Pois ela não dispõe de dinamismos bastante
fortes para romper o terrível isolamento cultural a que se vê relegada, em virtude
dessa mesma estrutura ocupacional e de distribuição da renda, que privilegia os
seus graduados.
UNIVERSIDADE E DESENVOLVIMENTO