Você está na página 1de 2

São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 2002

Cadê nossa diversidade religiosa?

ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI

A torto e a direito, a gente se flagra celebrando, brasileiros que somos, a diversidade cultural de
nosso país. Um pouco mais raramente, mas também com bela frequência, ouvimos intelectuais
brasileiros comentando com agrado nossa diversidade religiosa. Quando o contexto da
conversa, ou da reflexão, é o "entrelugar" da cultura latino-americana, as auto-referências
multiculturais beiram as raias do ufanismo embevecido. Basta, porém, o brasileiro parar um
pouco e olhar à sua volta para quase só ver... cristãos. Outrora quase só se viam católicos, mas
hoje se vêem também, por toda parte, os evangélicos. Cadê os outros? Cadê a alteridade cultural
em matéria de religião?

Cadê nossa badalada diversidade religiosa? O gato comeu. Na tabulação avançada do Censo
Demográfico de 2000, divulgada em maio de 2002, nosso pluralismo religioso aparece bem
desmilinguido: quase binário. Três décadas atrás, os três maiores grupos religiosos eram os
católicos, os protestantes e os espíritas. Hoje, os três maiores contingentes a figurar nas tabelas
de religião do Censo são os católicos, os evangélicos e os sem religião. Se você retira os sem
religião desse pódio, sobram somente aqueles que se declaram ou católicos ou protestantes - ou
seja, os cristãos em sentido estrito.

É com grandes números para os cristãos e reduzidas contas de somar para os outros -quando
não de subtrair- que o Censo vem mostrar que a diversidade religiosa brasileira, hoje, é quase
nada. Apesar de cantada em verso e prosa na imaginária exuberância (neo) amazônica de suas
espécies e subespécies religiosas (formações nativas ou transplantadas, tão antigas essas quanto
as caravelas e os piratas, ou tão recentes quanto a web, recém-chegadas de longe, de perto, de
dentro, por dentro, recém-fundadas umas e repropostas outras, revisitadas, repaginadas que
sejam, sincréticas muitas vezes, mas não todas, antropofagicamente híbridas ou não, neolocais,
substitutas, devolutas, vigorosas ou declinantes), a variedade de religiões no Brasil, no fundo, é
muito rala; bem mais rarefeita e bem menos resistente aos grandes empreendimentos religiosos
pós-estatais do que a gente imagina ou acha que consegue enxergar. Vejamos mais de perto o
que traz o Censo: 73,8% dos brasileiros são católicos, 15,4% são evangélicos e logo a seguir
vêm os sem religião, com 7,3% de autodeclaração. Olhando para a soma de 96,5% que isso dá,
pode-se constatar, não sem algum espanto, onde diabos foi parar aquela fabulosa diversidade
religiosa de nossa religiosíssima população: numa apertada faixa de 3,5%. Todas as outras
modalidades religiosas que não as católicas e evangélicas se acotovelam nessa faixa, que é
estreitíssima. Claro que são muitas as outras religiões citadas pelos entrevistados, e o Censo as
discerne nominalmente, mas nelas se congregam populações muito pequenas, para não dizer
ínfimas. Os espíritas comparecem com apenas 2.337.432 adeptos, ou 1,38% da população.
E estão crescendo. Ao contrário dos kardecistas, as religiões afrobrasileiras estão diminuindo:
no Censo 2000 seus seguidores são só 571.329, ou apenas 0,34% dos brasileiros. Não é
incrível?

Os umbandistas são pouco mais de 430 mil e os candomblecistas não chegam a 140 mil em
todo o país. Não é surpreendente? Os budistas são 245.870 (0,15%) e as outras religiões
orientais (Seicho-No-Iê, Messiânica, Perfect Liberty, Shinto, Bahai...) têm 181.579 seguidores
(0,11%). Os esotéricos são 67.288 (0,04%) e os hinduístas, 2.979 (0,00%). Os de religião
judaica são 101.062 (0,06%) e os muçulmanos, só 18.592 (0,01%). As religiões de origem
brasileira que o IBGE classifica como "tradições religiosas indígenas" -Santo Daime, União do
Vegetal, A Barquinha e outras- possuem pouco mais de 10 mil seguidores declarados (0,01%).
Se lermos a lista de religiões que aparecem no Anexo 1 do Censo 2000, ficaremos com a
certeza de sermos um país não só plural, mas muito sortido em matéria de religião. Só que essa
variedade que consta da lista se acha distribuída entre menos de 6 milhões de uma população
total de 170 milhões de brasileiros.

E se, após conferir suas míseras somas, tornarmos a observar os três grandes grupos no pódio,
por efeito do contraste a ficha vai cair e nos daremos conta de que os católicos ainda são mais
de 124 milhões e os evangélicos, mais de 26 milhões. Ou seja, as duas grandes religiões
representadas no pódio englobam mais de 150 milhões! Dá para comparar com os... "outros"?
Vivemos, na verdade, num país "90% cristão" (89,2%). Isso quer dizer que, do alto de seus
oligopólios e prerrogativas, o espectro do monoteísmo ainda ronda nossos confusos destinos
pesadamente. Eu bem que gostaria, neste fim de ano da transição, de dar a todos a boa notícia
sociológica de que, no Brasil atual, as pessoas têm muito mais chances do que nunca de aderir
às mais diferentes concepções do divino. Oxalá fosse mesmo verdade que no cotidiano das
famílias já fosse menos insustentável a leveza do conviver pós-tradicional de mãe católica
reconvertida pela Renovação Carismática e filha jovem convertida ao budismo ou à União do
Vegetal -encontros culturais que fossem, sem medo, confrontos culturais, fatos novos e densos
que desdobrassem no mundo da vida de muitos mais aquilo que a sociologia contemporânea,
pelo avesso, tem chamado de "destradicionalização". Mas não, nossa diversidade religiosa ainda
é balbuciante. Oxalá nossos corações pudessem ouvi-la, em seus primeiros, pianíssimos
acordes, dizer aos nossos corações que, calma, estamos só no começo de um longo processo de
desfiliação geral que um dia há de dar, se aos deuses em luta aprouver, numa grande,
maravilhosa dispersão.

Você também pode gostar