Edicao 520 Fake News Ambiencia Digital e

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Nº 520 | Ano XVIII | 23/4/2018

Fake news
Ambiência digital e os novos modos de ser

Rafael Zanatta
Sergio Amadeu
Pedro Gilberto Gomes
Ricardo Campos
Antônio Fausto Neto
Anna Bentes
Taís Seibt

Leia também
■ Angélica Massuquetti
■ Osiel Lourenço de Carvalho
■ Bruno Lima Rocha
EDITORIAL

Fake news
Ambiência digital e os novos modos de ser

O
mundo contemporâneo e as sociedades A professora e pesquisadora da Unicamp
hiperconectadas nos jogam diante de Anna Bentes aborda o tema das fake news a
inúmeros desafios. Se por um lado o fe- partir de uma abordagem linguística analisando
nômeno das fake news é efeito desse novo ethos os meandros discursivos.
das sociedades em midiatização, a produção des- Para a doutoranda e pesquisadora na Univer-
se tipo de conteúdo não se restringe a ele. Trata- sidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
se de uma dimensão mais ampla da comunicação Taís Seibt, construir uma cultura que privile-
mediada não somente pelos usuários das redes, gie a verificação das notícias é um dos caminhos
mas por tecnologias de inteligência artificial, so- para enfrentar as crises produzidas pela circula-
fisticados levantamentos de dados e emulações ção de fake news.
do comportamento humano por robôs. Toda essa
ambiência produz um novo modo de ser e estar Complementam a edição a entrevista com An-
no mundo, que exige pensar quais tipos de valo- gélica Massuquetti, professora da Escola de
res estão sendo propostos. Não parece, contudo, Gestão e Negócios da Unisinos, sobre a relação
haver dúvida de que estamos diante da necessi- de combate à pobreza e a concentração de ren-
dade de construirmos uma rede e uma sociedade da. A professora debaterá o tema no Ciclo de
que não sejam entrópicas e que tenham, como debates desigualdades no contexto econômico
horizonte, o respeito à diversidade e a preserva- brasileiro, promovido pelo Instituto Humani-
ção dos valores da pessoa humana. tas Unisinos – IHU, no dia 3 de maio de 2018,
das 17h30min às 19h na Sala Ignacio Ellacuría e
Para pensar essa problemática, a revista IHU
Companheiros, no IHU.
2 On-Line desta semana reúne uma série de pes-
quisadores, de diferentes áreas, para pensar a Bruno Lima Rocha, na Coluna Interna-
emergência das fake news. cional do curso de Relações Internacionais da
Unisinos, discute a atual situação do governo
Rafael A. F. Zanatta, pesquisador em Di-
de Honduras.
reito e Sociedades Digitais com mestrado em
Direito e Economia Política pela International Na seção Publicações, apresentamos o artigo
University College of Turin, defende que deve- de Osiel Lourenço de Carvalho intitulado A
mos aprofundar as diferentes taxonomias do perversão da política moderna: a apropriação
que está por trás das fake news. de conceitos teológicos pela máquina governa-
mental do Ocidente, a partir da perspectiva da
Sérgio Amadeu, doutor em Ciência Política
obra de Giorgio Agamben, publicado por Cader-
pela Universidade de São Paulo - USP, alerta so-
nos IHU ideias nº 269.
bre os riscos de acreditarmos em um “ministé-
rio da verdade”. A todas e a todos uma boa leitura e uma exce-
lente semana!
Segundo o professor, pesquisador e vice-rei-
tor da Unisinos, Pedro Gilberto Gomes, es-
tamos vivendo uma anomia ética que requer a
produção de um novo pacto social.
Pensando a dimensão das fake news a partir
do campo do Direito, Ricardo Campos, da
Goethe Univerität Frankfurt, na Alemanha, afir-
ma que é preciso preservar as instituições caras
à democracia.
Para Antônio Fausto Neto, doutor em Scien-
ces de La Comunication et de L’information -
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, da
França, e professor na Unisinos, investir na apu-
ração das fake news é como tentar remendar um
cano furado. Por isso ele sugere um “processo de
letramento, educar a sociedade para compreen-
der o protocolo de comunicação no qual ela vive”. Foto: Arte IHU

23 DE ABRIL | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Sumário
4 ■ Temas em destaque
6 ■ Agenda
8 ■ Angélica Massuquetti: Concentração de renda é o principal entrave no combate
à extrema pobreza
12 ■ Tema de capa | Rafael Zanatta: Fake news e o triunfo do reducionismo
18 ■ Tema de capa | Sérgio Amadeu: A liberdade contra o “ministério da verdade”
24 ■ Tema de capa | Pedro Gilberto Gomes: Da anomia ética a um novo pacto social
29 ■ Tema de capa | Ricardo Campos: O sonho libertário virou o pesadelo da liberdade
33 ■ Tema de capa | Antônio Fausto Neto: Investir na apuração para enfrentar as fake news
é como remendar um cano furado

41 Tema de capa | Anna Bentes: O texto além do texto
46 ■ Tema de capa | Taís Seibt: Cultura de verificação é um caminho para enfrentar as fake News
52 ■ Crítica internacional | Bruno Lima Rocha: Honduras: governo ilegítimo e regime autoritário civil
54 ■ Publicações | Osiel Lourenço de Carvalho: A perversão da política moderna: a apropriação
de conceitos teológicos pela máquina governamental do Ocidente
55 ■ Outras edições

Diretor de Redação Fachin, Cristina Guerini, Evlyn Zilch,


Inácio Neutzling Anielle Silva, Victor Thiesen, William
(inacio@unisinos.br) Gonçalves, Stefany de Jesus Rocha,
Wagner Fernandes de Azevedo e Éric
Coordenador de Comunicação - IHU Machado.
Ricardo Machado – MTB 15.598/RS
(ricardom@unisinos.br)
Jornalistas
João Vitor Santos – MTB 13.051/RS
(joaovs@unisinos.br)
ISSN 1981-8769 (impresso)
Patricia Fachin – MTB 13.062/RS
ISSN 1981-8793 (on-line) (prfachin@unisinos.br)
Vitor Necchi – MTB 7.466/RS
(vnecchi@unisinos.br)
A IHU On-Line é a revista do Institu-
to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Revisão Instituto Humanitas Unisinos - IHU
publicação pode ser acessada às segun- Carla Bigliardi
das-feiras no sítio www.ihu.unisinos.br e Av. Unisinos, 950 | São Leopoldo / RS
no endereço www.ihuonline.unisinos.br. Projeto Gráfico CEP: 93022-000
Ricardo Machado Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128
e-mail: humanitas@unisinos.br
Editoração
A versão impressa circula às terças-fei- Gustavo Guedes Weber
ras, a partir das 8 horas, na Unisinos. O Diretor: Inácio Neutzling
conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Atualização diária do sítio Gerente Administrativo: Jacinto Schneider
Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia (jacintos@unisinos.br)

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TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última semana.

Os desafios da economia brasileira

“Para crescermos de uma forma sustentável, teremos que pensar no futu-


ro com uma estratégia para a indústria.”
Ricardo Carneiro, mestre e doutor em Ciência Econômica pela Unicamp. Professor aposentado e
professor colaborador da Unicamp.

Expansão de cana-de-açúcar coloca em


xeque serviços ambientais
“Se o próprio setor de biocombustíveis não apoia essa proposta, como
pode-se dizer que ela vai gerar renda e será viável para a região?”
Lucas Ferrante, graduado em Ciências Biológicas pela Unifal, mestre e doutorando em Ecologia
pelo Inpa.

4 As eleições cubanas 50 anos depois de


maio de 68
“A defesa das liberdades democráticas e individuais que teve tanta presença
nos movimentos de 1968 na Europa, com caráter sobretudo de luta antiauto-
ritária, infelizmente teve pouco espaço para o seu desenvolvimento em Cuba.”
Sílvia Cezar Miskulin, graduada em História, mestra e doutora em História Social pela USP. Lecio-
na na Universidade de Mogi das Cruzes.

Anapu - PA, um barril de pólvora minado pelo


latifúndio
“Na região sudeste do Pará, o município de Anapu tem sido muito cobi-
çado pelo latifúndio porque essa é a última fronteira agrícola do Pará.”
Paulo Joanil da Silva, padre dos Missionários Oblatos de Maria Imaculada - OMI, assessor da
Comissão Pastoral da Terra da regional Norte 2.

Capitalismo ‘humano’ de ontem é a fonte do


capitalismo ‘selvagem’ de ontem e de hoje
“Sempre tive claro que eles prenderiam Lula. E não vão parar aí: a ofen-
siva inclui destruir o PT.”
Valter Pomar, graduado em História, mestre e doutor em História Econômica pela USP. Professor
da UFABC e dirigente nacional do PT.

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Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas notícias públicas recentemente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

“A luta é o caminho Fé evangélica Assassinatos no campo


eterno da vida.” abraça as urnas na batem novo recorde e
Entrevista com José América Latina alcançam maior número
Pepe Mujica desde 2003

Pepe Mujica está muito pre- Doutrina se transformou Os assassinatos decorren-


ocupado com o que ocorre no em um ator político deter- tes de conflitos no campo no
Brasil com seu amigo Lula e minante em muitos países transcurso de 2017 bateram
por seu impacto na região. da região, impondo valores recorde e atingiram o maior
Na conversa, não se privou ultraconservadores e fazen- número desde 2003, com 70
de se posicionar sobre todos do retroceder as liberdades, mortes. Um aumento de 15%
os assuntos. escassas em muitos lugares. em relação ao que foi regis-
Entrevista de Gonzalo Arias, publicada Reportagem de Talita Bedinelli, Ana trado em 2016.
por Página/12 em 15-4-2018, disponí- Marcos e Javier La fuente, publicada Reportagem de Joelma Pereira,
vel em https://bit.ly/2HMOe7Q. por El País em 16-4-2018, disponível publicada por Congresso em Foco em
em https://bit.ly/2EYbTPF. 16-4-2018, disponível em https://bit.
ly/2Hcxs0D.

Empresários querem 43% das novas “Deus é um problema


o SUS conveniente aos empresas da “lista suja” também para os crentes”.
seus interesses do trabalho escravo são Entrevista com José
do agronegócio Tolentino Mendonça

Em meio a um cenário de No período entre 2003 Vivemos numa sociedade de


desmonte das políticas so- e 2014, o agronegócio foi satisfação permanente, diz
ciais como um todo, e às campeão absoluto na utili- Tolentino Mendonça. Por isso,
políticas de saúde especifica- zação do trabalho escravo, precisamos de reaprender a
mente, a proposta de cons- com praticamente 80% dos ter sede. O novo livro que reúne
trução de um “Novo Sistema trabalhadores libertados os textos das meditações feitas
Nacional de Saúde”, ainda do trabalho em lavouras, perante o Papa e a Cúria Ro-
mais partindo de uma enti- plantação de cana, desma- mana foi posto à venda. A pro-
dade representativa do setor tamento e pecuária. Só esta pósito dele, o autor de A Noite
empresarial, foi vista como última foi responsável por Abre os Meus Olhos diz que a
um ataque direto ao SUS. 30% dos casos. espiritualidade não se pode
Entrevista com José Sestelo conce- Reportagem de Julia Dolce, publicada “confundir com um conjunto
dida a André Antunes, publicada no por Brasil de Fato em 13-4-2018, dis- de abstracções”. Crer não é “ter
portal EPSJV/Fiocruz em 13-4-2018, ponível em https://bit.ly/2K17aAq. as soluções”, mas é “habitar o
disponível em https://bit.ly/2JaTKk7.
caminho, habitar a tensão, vi-
ver dentro da procura”.
Entrevista publicada por por Público,
15-04-2018, disponível em http://bit.
ly/2HLYEa3.

EDIÇÃO 520
AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

Trabalho e as Reforma trabalhista Prosperidade sem


desigualdades no Vale e o impacto nas crescimento: vida boa
do Sinos Relações de Trabalho em um planeta finito.
no Brasil Obra de Tim Jackson

24/abr 26/abr 26/abr


Horário Horário Horário
14h30min às 17h 17h30min às 19h 19h30min às 22h
Palestrante Conferencista Apresentação
Profa. MS Vanessa de Prof. MS Diego Alberton – Profa. Dra. Clitia Martins –
Souza Batisti – Unisinos Unisinos FEE-RS
Local Local Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU Companheiros – IHU Companheiros – IHU
Campus Unisinos Campus Unisinos Campus Unisinos
São Leopoldo São Leopoldo São Leopoldo

6
Seminário de A produção de Desigualdade no Vale
apresentação de violência e morte dos Sinos
pesquisas e de projetos em larga escala:
sobre Violências, da biopolítica à
Resistências e tanatopolítica
Enfrentamentos
2/mai 2/mai 3/mai
Horário Horário Horário
14h às 18h 19h30min às 22h 17h30min às 19h
Local Conferencista Conferencista
Sala Ignacio Ellacuría e Prof. Dr. Castor Bartolomé Profa. Dra. Angélica
Companheiros – IHU Ruiz – Unisinos Massuquetti – Unisinos
Campus Unisinos
São Leopoldo Local Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU Companheiros – IHU
Campus Unisinos Campus Unisinos
São Leopoldo São Leopoldo

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EDIÇÃO 520
ENTREVISTA

Concentração de renda é o principal


entrave no combate à extrema pobreza
Angélica Massuquetti analisa os índices de desenvolvimento social
do Brasil e indica a emergência na geração de emprego e renda
João Vitor Santos

C
om base na Pesquisa Nacional alcançamos o bem-estar da população
por Amostra de Domicílios - apenas com uma distribuição de ren-
Pnad Contínua, do Instituto Bra- da mais igual, precisamos ampliar as
sileiro de Geografia e Estatística – IBGE, liberdades dos indivíduos com relação
é possível materializar a expansão da às suas capacidades e às oportunidades
pobreza extrema no Brasil nos últimos que estão à sua disposição”.
tempos. Em 2016, eram 13,3 milhões
de pessoas nessas condições; agora, em Angélica Massuquetti possui dou-
2017, o número saltou para 14,8 mi- torado em Desenvolvimento, Agricultu-
lhões. “Ou seja, 7,2% da população do ra e Sociedade pela Universidade Fede-
Brasil encontra-se entre os extrema- ral Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ,
mente pobres, que vivem com menos de com parte da formação na Ecole des
US$ 1,90/dia”, completa a economista e Hautes Etudes en Sciences Sociales –
8 professora Angélica Massuquetti. Paris/França. É mestra em Economia
Rural e graduada em Ciências Econô-
Além desse cenário, ela aponta que, micas pela Universidade Federal do Rio
ainda segundo o IBGE, em 2017, 43,3% Grande do Sul – UFRGS. Atualmente, é
dos rendimentos do Brasil estavam nas professora da Escola de Gestão e Negó-
mãos de 10% da população com maio- cios da Unisinos, onde dedica-se a pro-
res rendimentos, enquanto os 10% com jetos de pesquisa e ao ensino em nível
menores rendimentos alcançavam ape- de Graduação e Pós-Graduação.
nas 0,7% deste total. “A concentração
de renda na economia brasileira, neste A professora ministrará a palestra De-
patamar, impede a erradicação da ex- sigualdade no Vale dos Sinos, dentro
trema pobreza e, consequentemente, do Ciclo de debates desigualdades
da fome no país”, avalia. no contexto econômico brasileiro,
promovido pelo Instituto Humanitas
Na entrevista a seguir, concedida Unisinos – IHU, no dia 3 de maio, às
por e-mail à IHU On-Line, Angélica 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e
aponta que o maior desafio para rever- Companheiros – IHU, Campus São Le-
ter essa realidade “é a geração de em- opoldo da Unisinos. Saiba mais deta-
prego formal, já que dá mais segurança lhes e a programação completa do Ciclo
socioeconômica, com acesso aos direi- em http://bit.ly/2JWwAio.
tos trabalhistas e mais facilidade de ob-
tenção de crédito”. E acrescenta: “não Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que consis- tendência de que as atividades eco- pulação estão desigualmente distri-
te a desigualdade e como se ma- nômicas se concentrem em número buídas e observa-se uma correlação
nifesta na atualidade? relativamente reduzido de locais, entre o grau de urbanização e a ren-
principalmente as atividades que en- da per capita. A aglomeração de pes-
Angélica Massuquetti – Na Eco-
volvem inovação, maior capital hu- soas e de empresas, portanto, torna-
nomia, aprendemos que a atividade
mano e maiores investimentos. se a regra e não a exceção. Como
econômica não está distribuída de
forma aleatória no território. Há uma Assim, atividade econômica e po- consequência, essas aglomerações

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“Não alcançamos o bem-estar


da população apenas com uma
distribuição de renda mais igual”

atraem mais capital físico e humano, IHU On-Line – Como avalia o Norte e Noroeste Colonial, mas todos
reforçando essas assimetrias. Rio Grande do Sul em termos com médio desenvolvimento.
de desenvolvimento socioeco-
Por fim, na área de Saúde, a grande
nômico?
IHU On-Line – Como compre- maioria dos Coredes atingiu o alto
Angélica Massuquetti – Atual- desenvolvimento, com exceção ape-
ender o conceito de desenvol-
mente, o estado do Rio Grande do nas dos Coredes Campanha, Vale do
vimento socioeconômico e em
Sul possui médio desenvolvimento Rio dos Sinos, Jacuí-Centro, Fron-
que medida pode emergir como
de acordo com o Índice de Desenvol- teira Oeste e Sul. Os Centro-Sul e Sul
uma alternativa à lógica do de-
vimento Socioeconômico - Idese de concentram os menores níveis de
senvolvimento econômico?
2015, apresentando o valor de 0,751. desenvolvimento do estado. Dentre
Angélica Massuquetti – O Pro- Entre 2014 e 2015, houve redução do os 28 Coredes do Rio Grande do Sul,
duto Interno Bruto - PIB foi, duran- desenvolvimento no estado em razão o Vale do Rio dos Sinos encontra-se
te décadas, o principal indicador de da queda do índice do bloco Renda, apenas na 17ª posição no Idese geral, 9
desenvolvimento econômico. No que foi de -3,1%. Por outro lado, nos na 8ª em Renda, na 23ª em Educa-
entanto, observou-se a necessidade blocos Saúde e Educação houve desen- ção e na 25ª em Saúde. As dispari-
de se alcançar, além do crescimento volvimento, mas em dimensões reduzi- dades regionais refletem a concen-
econômico, um melhor padrão de das: 0,5% e 0,2%, respectivamente. tração dos investimentos públicos e
vida para a população, uma renda privados em determinadas regiões e
mais equitativa, além da erradica- atividades econômicas.
ção do analfabetismo e de doenças IHU On-Line – Em quais regi-
transmissíveis por falta de condições ões do estado estão os maiores
e os menores índices socioeco- IHU On-Line – É pensando na
mínimas de moradia e de saneamen-
nômicos? Como compreender melhora da qualidade de vida
to, entre outros. Assim, o desenvol-
essas diferenças? das pessoas, logo, melhora nos
vimento deixou de ser estritamente
índices socioeconômicos, que
econômico e passou a ser pensado a Angélica Massuquetti – Ainda as Nações Unidas lançam os
partir da dimensão social. considerando o Idese de 2015, iden- Objetivos para Desenvolvimen-
Mais recentemente, o desenvolvi- tifica-se que o desenvolvimento do to do Milênio - ODM. A meta
mento humano tornou-se a expres- estado do Rio Grande do Sul é con- era erradicar a extrema pobre-
são mais adequada para transmitir a centrado em determinadas regiões de za e a fome até 2015. Pensando
ideia não apenas de desenvolvimen- acordo com a dimensão investigada. na realidade do Brasil e do Rio
to econômico e social, mas também No que se refere ao desenvolvimen- Grande do Sul, quanto se avan-
político e ambiental. Atualmente, to num sentido amplo, os Conselhos çou nesse sentido até 2015?
as políticas públicas são formuladas Regionais de Desenvolvimento - Co-
redes Noroeste Colonial e Serra apre- Angélica Massuquetti – A par-
com o intuito de promover o desen- tir da divulgação dos microdados da
volvimento econômico, a segurança, sentam alto desenvolvimento.
Pesquisa Nacional por Amostra de
a liberdade, a justiça social etc. Não Em relação especificamente à di- Domicílios - Pnad Contínua, pelo
alcançamos o bem-estar da popu- mensão Renda, é possível incluir o Instituto Brasileiro de Geografia e
lação apenas com uma distribuição Corede Metropolitano Delta do Jacuí Estatística - IBGE, identificou-se
de renda mais igual, precisamos neste grupo. Já no que se refere à Edu- que houve uma expansão da pobre-
ampliar as liberdades dos indivídu- cação, nenhum Corede alcançou o alto za extrema no Brasil, que passou de
os com relação às suas capacidades desenvolvimento, e os Conselhos que 13,3 milhões de pessoas, em 2016,
e às oportunidades que estão à sua estão em melhor posição no ranking para 14,8 milhões de pessoas, em
disposição. do estado são Fronteira Noroeste, 2017. Ou seja, 7,2% da população

EDIÇÃO 520
ENTREVISTA

do Brasil encontra-se entre os ex- IHU On-Line – Quais os maio- que se refere ao Rio Grande do Sul,
tremamente pobres, que vivem com res limites das políticas públi- o agronegócio representou 65,1%
menos de US$ 1,90/dia. Esse au- cas do Brasil de hoje na busca do total comercializado pelo estado
mento de 11,2% pode ser reflexo da pela redução das desigualda- e 12,1% do total comercializado pelo
recuperação do mercado de traba- des? E como superá-los? país com o resto do mundo. Assim,
lho puxada pelo emprego informal nota-se a relevância deste setor
Angélica Massuquetti – O maior
e não pelo formal. A região sul, ape- limite das políticas públicas para ação para a economia gaúcha na geração
sar de ser a segunda com o menor efetiva na redução das desigualdades de emprego e de renda.
número de pessoas nesta situação, é o combate à corrupção. A renda, a
também apresentou crescimento educação, a saúde, a segurança públi-
neste período. IHU On-Line – Quais os li-
ca, o saneamento básico, o lazer etc.
mites de uma política econô-
Ainda segundo o IBGE, em 2017, são afetados diretamente pela corrup-
mica voltada para exportação,
43,3% dos rendimentos do Brasil ção. A superação deste limite é alcan-
especialmente de produtos
estavam nas mãos de 10% da po- çada com transparência e regulação.
agrícolas? De que forma essa
pulação com maiores rendimentos. opção pelos mercados inter-
Por outro lado, os 10% com menores IHU On-Line – O Brasil e em nacionais pode impactar os
rendimentos detinham apenas 0,7% especial o Rio Grande do Sul se índices de desenvolvimento
deste total. A concentração de renda destacam pela produção agrí- socioeconômico?
na economia brasileira, neste pata- cola. Em que medida ainda Angélica Massuquetti – As polí-
mar, impede a erradicação da extre- podemos apostar nas riquezas ticas públicas necessárias para a ex-
ma pobreza e, consequentemente, geradas pelo campo para com- pansão das exportações de produtos
da fome no país. bater as desigualdades? agrícolas estão relacionadas à infra-
Angélica Massuquetti – O estrutura logística e energética. Os
IHU On-Line – Ainda sobre agronegócio brasileiro vem aumen- produtores agropecuários são com-
ODM e a realidade brasileira e tando sua importância na economia petitivos, mas o Custo Brasil impede
10 gaúcha, que desafios se confi- nacional desde o início dos anos que os produtos nacionais consigam
guram pós-2015? 2000. A principal razão foi a expan- ser mais competitivos no mercado
são econômica de países emergen- internacional. A literatura tem apon-
Angélica Massuquetti – Os tes, como a China. De acordo com tado que uma das principais razões
maiores desafios para ambos é a dados do Ministério da Indústria, para a recente redução da pobreza
geração de emprego formal, já que Comércio Exterior e Serviços - global é a elevação das taxas de cres-
dá mais segurança socioeconômi- MDIC, em 2017, as exportações do cimento econômico, impulsionada
ca, com acesso aos direitos traba- agronegócio brasileiro representa- pela maior participação das econo-
lhistas e mais facilidade de obten- ram 44,1% do total comercializado mias em desenvolvimento nos fluxos
ção de crédito. pelo país com o resto do mundo. No de comércio internacional.■

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EDIÇÃO 520
TEMA DE CAPA

Fake news e o triunfo do reducionismo


Rafael Zanatta explica que precisamos produzir uma taxonomia da
desinformação para compreendermos a complexidade das
disputas políticas e informacionais contemporâneas
Ricardo Machado

E
m março deste ano o Facebook, universidades podem fazer muito mais.
uma das maiores empresas do Não se trata de apontar o dedo na cara
mundo, viu-se diante de sua de um setor ou de uma pessoa e dizer
maior crise de imagem com o escânda- “você é o responsável” para o problema
lo da Cambridge Analytica. A repercus- da desinformação. É preciso, antes, fazer
são do caso foi tamanha que Mark Zu- um papel muito crítico de autoavaliação
ckerberg teve que ir ao Congresso dos dos múltiplos papéis que nós temos como
Estados Unidos para responder a uma profissionais e cidadãos”, pontua.
sabatina de senadores e deputados. O
Além disso, superar uma visão reducio-
episódio trouxe à tona a manipulação
nista do problema, incapaz de perceber
de dados de 80 milhões de usuários
as nuances desse tipo de guerra infor-
da rede social que foram utilizados na
macional, é primordial. “É importante
campanha eleitoral de Donald Trump.
12 produzir uma taxonomia de diferen-
“Esse caso mostra algo muito impor-
tes formas de desinformação. Ela pode
tante, a interconexão, interdependên-
acontecer não necessariamente com a
cia entre processos de coletas de dados
produção de um conteúdo falso, uma
obscuros e um novo mercado de mani-
notícia falsa, mas, por exemplo, com a
pulação eleitoral que é estruturado a
publicação proposital de uma notícia
partir de técnicas de psicometria. Esse
de quatro anos atrás fora de contexto.
é o resumo que o caso revela. Ele é mui-
Ou mesmo com a mobilização de vários
to maior que o problema das notícias
robôs para reforçar um tipo de discurso
falsas”, avalia Rafael Zanatta em entre-
opinativo, que tem um caráter muito
vista por telefone à IHU On-Line.
agudo, desestabilizador”, complementa.
“O episódio coloca um ponto de interro-
gação para saber o que está acontecendo Rafael A. F. Zanatta, pesquisa-
com os nossos processos de escolha de- dor em Direito e Sociedades Digitais,
mocrática, com os mecanismos eleitorais mestre em Direito e Economia Política
que se tornam muito porosos e muito pela International University College of
influenciáveis pela tecnologia da infor- Turin e mestre em Sociologia Jurídica
mação”, destaca Zanatta. Para o pesqui- pela Universidade de São Paulo - USP,
sador, a solução para este problema é onde foi coordenador do Núcleo de Di-
complexa e exige a mobilização de vários reito, Internet e Sociedade. Graduou-se
atores sociais e políticos. “As ONGs po- em Direito na Universidade Estadual
dem fazer muito mais cartilhas e proje- de Maringá - UEM.
tos de envolvimento com a população, as Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o escân- Rafael A. F. Zanatta – Esse é um do há muito tempo. Um dos prin-
dalo do Facebook com a Cam- caso paradigmático porque explici- cipais problemas é o risco de uma
bridge Analytica trouxe à tona tou uma série de questões que pes- coleta intensiva de dados digitais e
a interferência das tecnologias quisadores da área do direito digital o repasse para uma finalidade que
digitais na política? e da democracia já vinham apontan- não aquela para a qual foi coletada.

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“O episódio coloca um ponto


de interrogação para saber
o que está acontecendo
com os nossos processos
de escolha democrática”

Por exemplo, esse caso do Facebook foi criada por Robert Mercer3, que é de livre mercado, a mensagem che-
com a Cambridge Analytica1 é muito um multimilionário financeiro dos gava mais ou menos assim: “nosso
significativo, porque todo o esquema Estados Unidos, juntamente com governo vai derrubar os acordos da
estava estruturado na pesquisa de Steve Bannon4, o estrategista chefe Organização Mundial do Comércio -
cientistas para um teste de persona- de Donald Trump5 no início de 2016. OMC e vamos ampliar o livre comér-
lidade chamado This is your digital cio longe das amarras dos acordos
life (Esta é sua vida digital, em tra- Cambridge Analytica internacionais”. As várias estraté-
dução livre). Era um teste que cole- gias e mensagens foram criadas para
tava informações que os usuários já Era um grupo que tinha interesses atingir determinados perfis psicoló-
tinham publicado no Facebook e a de manipulação de eleições, chama- gicos e todas as informações foram
tese do professor era a de que, com do por eles de “conquista dos votos coletadas sem as pessoas saberem o
as informações públicas (postagens, indecisos”. Todo esse aparato foi que estava acontecendo.
curtidas, geolocalização) era possí- usado para criar imagens de impacto
que eram destinadas precisamente O episódio demonstrou esta coleta 13
vel atribuir um perfil psicométrico. A
ao perfil psicométrico já predefini- irrestrita e o não controle do Face-
metodologia utilizada era do campo
do de acordo com os dados pesso- book de quem recebia essas infor-
da psicologia comportamental e esse
ais coletados no Facebook. Então mações. O que gerou todo esse caos
estudo era capaz de identificar a pos-
para uma pessoa que seria mais de foi a API do Facebook, a estrutura
sível orientação política do usuário.
esquerda e com preocupações do po- tecnológica de formato aberto que a
O problema particular desse teste der dos grandes bancos financeiros rede social disponibiliza para os de-
é que ele foi desenvolvido com in- na sua vida, as mensagens de Trump senvolvedores. O jornal The Guar-
teresse público. Tratava-se de um chegavam com um viés naciona- dian mostrou agora em março, com
estudo acadêmico que tinha por fi- lista: “vamos retomar a economia, declarações de ex-funcionários da
nalidade demonstrar o quanto as diminuir o poder dos grandes ban- Cambridge Analytica, como Chris-
pessoas estão expostas e quanto é cos e reforçar os comércios locais”. topher Wylie6, o primeiro que de-
possível deduzir informações sobre Para alguém mais orientado à ideia nunciou publicamente, mostrando
uma pessoa que está na rede social. que as ações eram ainda mais bru-
O grande problema é que Aleksandr tais porque a análise não era feita
Kogan2, o investigador da Universi- 3 Robert Mercer (1946): é um cientista da computação somente com quem tinha feito testes
nos Estados Unidos que trabalho com inteligência artificial
dade de Cambridge, vendeu a me- a partir de análises de bancos de dados. A empresa Cam- de personalidade, mas também con-
todologia para uma empresa priva- bridge Analytica é de propriedade de sua família. (Nota seguiam coletar informações, inclu-
da IHU On-Line)
da de consultoria política chamada 4 Steve Bannon (1953): é um assessor político estaduni- sive, dos amigos dessas pessoas. O
dense que serviu como assistente do presidente e estrate-
Cambridge Analytica. Esta empresa gista-chefe da Casa Branca no governo Trump. Como tal,
alcance foi de 80 milhões de usuá-
participou regularmente do Comitê de Diretores do Con- rios, porque aproveitaram o próprio
selho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, entre 28
de janeiro e 5 de abril de 2017, quando foi demitido. Antes efeito em rede do Facebook para ge-
1 Cambridge Analytica: É uma empresa privada que de assumir tal posição da Casa Branca, Bannon foi diretor
combina mineração e análise de dados com comunicação executivo da campanha presidencial de Donald Trump, em
rar essa bomba que foi o escândalo
estratégica para o processo eleitoral. Foi criada em 2013, 2016. (Nota da IHU On-Line) da Cambridge Analytica.
como um desdobramento de sua controladora britânica, 5 Donald Trump (1946): Donald John Trump é um empre-
a SCL Group para participar da política estadunidense. sário, ex-apresentador de reality show e atual presidente
Em 2014, a CA participou de 44 campanhas políticas. A dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump foi eleito
Tudo isso fez com que Zuckerberg
empresa é, em parte, de propriedade da família de Ro- o 45º presidente norte-americano pelo Partido Republi- prestasse depoimento de dois dias
bert Mercer, um estadunidense que gerencia fundos de cano, ao derrotar a candidata democrata Hillary Clinton
cobertura e que apoia muitas causas politicamente con- no número de delegados do colégio eleitoral; no entanto, no Congresso dos Estados Unidos.
servadoras. A empresa mantém escritórios em Nova York, perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras estão o pro-
Washington, DC e Londres. (Nota da IHU On-Line) tecionismo norte-americano, por onde passam questões
Esse caso mostra algo muito impor-
2 Aleksandr Kogan (1985): é um acadêmica da área de econômicas e sociais, como a relação com imigrantes nos
psicologia de dados da Universidade de Cambridge. Foi Estados Unidos. Trump é presidente do conglomerado The
ele quem desenvolveu a metodologia de psicometria Trump Organization e fundador da Trump Entertainment 6 Christopher Wylie (1989): ex-empregado da Cambrid-
dos usuários de redes sociais comprada para Cambridge Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, vida pessoal, ge Analytica que denunciou o escândalo do uso ilegal de
Analytica para a campanha presidencial de Donald Trump. riqueza e modo de se pronunciar contribuíram para torná dados dos usuários do Facebook para manipulação eleito-
(Nota da IHU On-Line) -lo famoso. (Nota da IHU On-Line) ral. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 520
TEMA DE CAPA

tante, a interconexão, interdepen- Isso é diferente do que estávamos mostram um quadro que é dinâmi-
dência entre processos de coletas acostumados a debater na teoria po- co. O próprio fato de Zuckerberg ser
de dados obscuros e um novo mer- lítica dos últimos séculos. Isso sim é enquadrado por dois dias no Con-
cado de manipulação eleitoral que é específico e merece um cuidado mui- gresso, em uma bateria de pergun-
estruturado a partir de técnicas de to grande dos cidadãos para enten- tas de senadores e deputados (com
psicometria. Esse é o resumo que o der o que está acontecendo e para to- perguntas enviadas pela população),
caso revela. Ele é muito maior que mar decisões políticas do que fazer, é importante para registrar isso em
o problema das notícias falsas. Há como remediar e solucionar. ata e ter registros oficiais de que o
toda uma estrutura necessária para Facebook e outras empresas cruza-
que isso aconteça e essa estrutura ram a linha da razoabilidade e que
está fortemente centrada em em- IHU On-Line – Em um mundo algo precisa ser feito. É uma espécie
presas que se tornaram consultorias não somente globalizado, mas de tentativa de controle democrático
políticas a partir da expertise em tec- altamente conectado por tecno- dessa economia de dados que se tor-
nologia de comunicação e processos logias e redes digitais, ainda faz nou perversa.
de coleta de dados que são ilegais e sentido falar em democracia?
O que acontece agora é muito impor-
obscuros. Tudo isso precisa ser dis- Rafael A. F. Zanatta – Acredi- tante para se observar uma nova pos-
cutido e combatido imediatamente, to que ainda faz. A democracia está sibilidade dos movimentos sociais que
especialmente no Brasil, em que es- no corner sendo espancada, em um se voltam para esse problema e con-
tamos na reta final da elaboração de momento de recuo diante da ten- seguem catalisar as organizações civis
uma lei de dados pessoais. dência de crescimento das políticas e os seus representantes na estrutura
autoritárias insuflada por todo esse política existente para pensar, inclusi-
aparato de vigilância e controle que ve, em inovações institucionais. Atu-
IHU On-Line – Parece haver
a Internet e todos os dispositivos almente o que se tem discutido é uma
uma nova ecologia da manipu-
tecnológicos permitem. Há toda adaptação do que foi o painel de catás-
lação política?
uma discussão que acontece no ati- trofes ambientais há 30 anos, falando-
Rafael A. F. Zanatta – Exata- vismo e na academia com a ideia de se, então, de catástrofes digitais com
mente, mas se trata de uma coisa um duplo movimento, de modo que centros de pesquisas no Massachusetts
14
completamente diferente do que a há um conjunto de ameaças massi- Institute of Technology - MIT e na In-
teoria política produziu nos últimos vas, que chamamos de capitalismo glaterra com previsões de cenários ca-
séculos. Por exemplo, se alguém de vigilância, materializada na ca- tastróficos para daqui 50/60 anos. Por
pegar textos de Francis Bacon7, do pacidade de as grandes empresas de exemplo, a expansão irrefreada dos
século XVI/XVII, há um deles que tecnologias transformarem nossos drones com capacidade de reconheci-
disserta sobre boataria e os impactos dados em commodities. Isso produz mento facial das pessoas, possibilidade
políticos, como aqueles para desme- um jogo muito perverso de interes- de imprimir armas com impressoras
recer certas lideranças. Esse é um ses entre corporações e governos, 3D e um barateamento muito grande
problema antigo, muito antigo. que querem manter o controle po- das impressoras, a produção de vídeos
pulacional e estabelecer regimes de falsos de lideranças políticas a partir de
O novo é uma ecologia específica em
verdade. Mas, ao mesmo tempo, há tecnologias muito acessíveis de criação
que se torna possível coletar muitos
um envolvimento de resistências de vídeos na Internet (o que começou
dados que serviriam para uma fina-
que tentam construir a regulação so- com a indústria pornô se transformou
lidade específica, mas cujo pacto é
cial dos mercados. Uma tentativa de em um mercado político, como aquele
quebrado, aliado ao desenvolvimento
reestabelecer a ordem democrática. do Barack Obama anunciando a par-
muito acelerado de técnicas de psico-
Todo o movimento social estrutu- ceria com a Coreia do Sul8). É interes-
metria. Além disso tem a construção
rado em torno da proteção de dados sante observar que há um conjunto de
desses perfis psicológicos voltados
pessoais e da ideia de que é preciso ativistas e lideranças políticas traba-
à orientação política, isso também é
estabelecer uma série de limites e lhando com a perspectiva de prospec-
algo recente no campo da psicologia
controles tenta empoderar a popula- tar os cenários mais catastróficos para
em termos de desenvolvimento teóri-
ção, no sentido de saber como esses já informar a população e pensar em
co. Esses dois fenômenos são novos e
fluxos informacionais acontecem. alternativas de controle democrático
fazem parte desta nova ecologia das
Ainda tem a luta por direitos fortes dessas economias.
notícias falsas, por assim dizer.
de demarcação, de imunidade e das
7 Francis Bacon (1561-1626): político, filósofo, ensaísta limitações de transpor dados de uma Moinho demoníaco
inglês, barão de Verulam e visconde de Saint Alban. É
considerado como o fundador da ciência moderna. Des- plataforma para outra. As empresas No fundo é um retorno ao Karl
de cedo, sua educação orientou-o para a vida política, na não podem reunir minhas escolhas
qual exerceu posições elevadas. Em 1584 foi eleito para a Polanyi9, o grande autor que vai ser
câmara dos comuns. Sucessivamente, durante o reinado e dados pessoais para montar uma
de Jaime I, desempenhou as funções de procurador-geral
(1607), fiscal-geral (1613), guarda do selo (1617) e grande nota de crédito sobre mim. Toda 8 O vídeo pode ser visto no link: https://www.youtube.
chanceler (1618). Como filósofo, destacou-se com uma
obra onde a ciência era exaltada como benéfica para o
essa disputa é muito intensa nos úl- com/watch?v=AmUC4m6w1wo. (Nota da IHU On-Line)
9 Karl Polanyi (1886-1964): economista austríaco. Sua
homem: o Novum Organum. (Nota da IHU On-Line) timos anos e esses novos ativismos obra principal é A Grande Transformação - as origens de

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REVISTA IHU ON-LINE

resgatado para entender o que está formação. É um momento riquíssimo ano passado. Em novembro de 2017,
acontecendo. Um estudioso das para pesquisar, para viver e para atu- no Fórum da Internet do Rio de Ja-
ideias de Marx10 que foi muito além ar politicamente. neiro, questionamos os representan-
dele nas análises de economia de tes do Exército sobre essa parceria e
mercado, explicando que, ao mesmo eles confirmaram a existência. De-
tempo que ocorrem esses processos IHU On-Line – Mas essa rela- pois, quando Gilmar Mendes13, em
de comodificação do nosso trabalho, ção de resgate do Polanyi pare- dezembro de 2017, criou o Conselho
da terra, do dinheiro, há uma ideo- ce ser uma coisa nova... Consultivo de Internet e Eleições, ele
logia de mercado livre (chamado por Rafael A. F. Zanatta – Sim, e a convidou os representantes do Exér-
ele de moinho satânico) que destrói visão de socialismo do Polanyi era cito para essas reuniões. De fato,
o tecido social, acabando com nossas a de regulação social e democrática os militares estão acoplados a essa
esperanças democráticas. dos mercados. Nesse sentido é uma estrutura que eles chamam de mul-
espécie de resgate a uma visão que tissetorial, alegando que colocaram
Há, sim, estratégias novas da socie-
não é a do velho socialismo, o socia- junto a Fundação Getulio Vargas
dade civil, formas de combate e resis-
lismo real como tínhamos referência - FGV, o Ministério Público - MP e
tência. Ainda que seja uma briga de
da experiência soviética. É interes- a Agência Brasileira de Inteligência
Davi e Golias, eu não desmereceria
santíssimo o momento que estamos - Abin. A coalizão de ativistas e aca-
o papel dos pequenos e a capacidade
vivendo, de resgate ao Polanyi, por- dêmicos que lidam com direitos di-
deles de enfrentar esses movimen-
que ele está sendo estudado nos vá- gitais, chamada Direito na Rede, da
tos históricos. Da mesma forma que
rios movimentos sociais e de centros qual faço parte, tem acompanhado
há cinco anos Edward Snowden11
de pesquisa que estão discutindo muito de perto esse processo.
criou um momento muito rico para
se pensar os processos de vigilância tecnologias e sociedades; por exem- O que nós temos de conclusão dis-
massiva e tentar experimentar coisas plo, a Rede Latino-Americana de Es- so tudo? Parece que foi muito mais
novas, para se discutir a privacidade tudos sobre Vigilância, Tecnologia e um jogo de mídia falar que o Exérci-
na esfera internacional, para impul- Sociedade - Lavits, de Campinas. to estava participando para dar uma
sionar novas ONGs que trabalham Há dois anos houve um encontro resposta ao problema que é global
com proteção aos dados pessoais, de ativistas no México e quem par- sobre notícias falsas. Uma tentativa 15
estamos aproveitando esse momen- ticipou foi Shoshana Zuboff12, uma de tentar construir e de dizer que es-
to para construir coisas a mais com o pesquisadora americana que desde tão fazendo algo para lidar com um
caso do Facebook que catalisa muitos 1989 investiga essa nova economia problema que é mundial e que o go-
outros problemas. O episódio coloca política da informação, que trouxe o verno Trump trouxe como caso para
um ponto de interrogação para saber conceito de capitalismo de vigilância ser estudado pelo mundo inteiro nas
o que está acontecendo com os nos- para o debate. Atualmente ela está eleições.
sos processos de escolha democrá- trabalhando em um livro, que deve Em segundo lugar, houve uma
tica, com os mecanismos eleitorais ser lançado em 2018, fazendo uma pressão enorme da sociedade civil e
que se tornam muito porosos e muito aproximação com os movimentos das próprias empresas. É bom lem-
influenciáveis pela tecnologia da in- sociais contemporâneos que têm brar que tanto o Facebook quanto
contornos ainda não muito bem o Twitter são absolutamente contra
nossa época (Rio de Janeiro: Campus, 2000), escrita nos Es-
tados Unidos de 1940 a 1943. Sobre o economista a IHU On
identificados. Trata-se da união dos a parceria entre TSE e Exército na
-Line 147, de 27-06-2005, dedicou o tema de capa A grande pesquisadores com os cidadãos em tentativa de criar monitoramento
transformação. As origens da nossa época. Os 60 anos da
obra clássica de Karl Polanyi, disponível para download em torno de uma pauta comum. on-line, vigilantismo em rede e a
http://bit.ly/ihuon147. (Nota da IHU On-Line)
10 Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista social, econo- eliminação automática de conteúdo.
mista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensa- Suponha que alguém da inteligência
dores que exerceram maior influência sobre o pensamen- IHU On-Line – Do que se trata
to social e sobre os destinos da humanidade no século 20. do Exército identifique um conteúdo
A edição 41 dos Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda a parceria formada pelo Tribu-
Maria Paulani, tem como título A (anti)filosofia de Karl falso, ele teria o poder de notificar a
nal Superior Eleitoral - TSE e o
Marx, disponível em http://bit.ly/173lFhO. Também sobre empresa, que tem a obrigação de re-
o autor, a edição número 278 da revista IHU On-Line, de Exército juntamente com a Po-
20-10-2008, é intitulada A financeirização do mundo e sua mover dado conteúdo em até 24 ho-
crise. Uma leitura a partir de Marx, disponível em https:// lícia Federal para aferir a vera-
goo.gl/7aYkWZ. A entrevista Marx: os homens não são o
ras. As empresas, felizmente, estão
cidade das notícias?
que pensam e desejam, mas o que fazem, concedida por contra isso e defendem a estrutura
Pedro de Alcântara Figueira, foi publicada na edição 327
da IHU On-Line, de 3-5-2010, disponível em http://bit. Rafael A. F. Zanatta – A parce- que existe no Marco Civil, em que é
ly/2p4vpGS. A IHU On-Line preparou uma edição especial
sobre desigualdade inspirada no livro de Thomas Piketty
ria entre o TSE e o Centro de Inteli- necessária a avaliação do judiciário,
O Capital no Século XXI, que retoma o argumento central gência da Informação do Exército foi
de O Capital, obra de Marx, disponível em http://www.
ihuonline.unisinos.br/edicao/449. (Nota da IHU On-Line) anunciada no segundo semestre do
11 Edward Snowden (1983): Analista de sistemas, ex-fun- 13 Gilmar Mendes (1955): Ex-advogado, professor, ma-
cionário da CIA e da NSA, a Agência de Segurança Nacio- gistrado e jurista brasileiro. Atualmente exerce o cargo de
nal dos Estados Unidos. Tornou-se conhecido por revelar 12 Shoshana Zuboff (1951): é professora aposentada pela ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2002.
detalhes do sistema de Vigilância Global norte-americano. Harvard Business School. Uma das primeiras mulheres a Foi indicado pelo então Presidente da República, Fernan-
Sobre o tema, acesse “Abandonar Snowden é uma causa ser professora titular na Harvard Business School, é Ph.D. do Henrique Cardoso, em cujo governo exercera o cargo
indigna”. Entrevista especial com Sérgio Amadeu, no de em psicologia social da Universidade de Harvard e bacha- de Advogado-Geral da União desde janeiro de 2000. É o
19-12-2013, disponível em http://bit.ly/ihusnowden, no rel em filosofia pela Universidade de Chicago. (Nota da atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral ((Nota da
sítio do IHU. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) IHU On-Line)

EDIÇÃO 520
TEMA DE CAPA

por meio de uma denúncia de algum empresas, do governo, da Anatel, do dados são coletados, tratados e di-
aspecto difamatório, claramente Ministério de Ciência e Tecnologia, vulgados, porque toda a indústria
ofensivo ou de discurso de ódio, e se foi um debate muito aberto e plural de fake news se estrutura a partir
remove depois de uma decisão judi- com três dias de discussões sobre as desses processos ilegais de coleta de
cial cautelar. chamadas fake news. dados. É preciso, também, o envol-
vimento dos bibliotecários, das es-
Com essa pressão da sociedade ci- Foi produzida uma carta de re-
colas, para falar abertamente sobre
vil parece que houve um recuo, de comendações a partir do que foi
educação e formação cidadã, que é
modo que eles decidiram não avan- discutido. A primeira delas é que
caixa de ferramentas do cidadão do
çar no assunto. Sempre que eles são devemos abandonar o conceito de século XXI para enfrentar o cenário
perguntados sobre isso, as respos- fake news, pois precisamos traba- que está posto de que existe uma
tas são vagas, dizendo que não tem lhar com a ideia de desinformação. guerra informacional com empresas
nada definido e que estão apenas É importante produzir uma taxono- trabalhando ilegalmente para desin-
participando do comitê consultivo mia de diferentes formas de desin- formar e grupos políticos contratan-
de eleições para acompanhar os des- formação. Ela pode acontecer não do esse serviço. Por fim, é preciso ter
dobramentos da justiça eleitoral. Os necessariamente com a produção um cuidado com as regras já exis-
membros do Ativismo na Rede fica- de um conteúdo falso, uma notícia tentes, especialmente com o Marco
ram bastante preocupados quando falsa, mas, por exemplo, com a pu- Civil da Internet, para que a justiça
isso aconteceu em novembro pas- blicação proposital de uma notícia eleitoral não crie coisas que vão con-
sado, mas agora me parece que foi de quatro anos atrás fora de contex- frontar o modelo de regulação civil
mais um jogo midiático do que algo to. Ou mesmo com a mobilização de da Internet.
estruturado. É provável que a justi- vários robôs para reforçar um tipo
de discurso opinativo, que tem um É interessante também a ideia de
ça eleitoral tenha recuado um pouco que a responsabilização tem que ser
com essa ideia de criar mecanismos caráter muito agudo, desestabiliza-
dor. Há processos de desinformação de todo mundo, as empresas pre-
prévios de verificação e retirada au- cisam fazer muito mais coisas, dar
tomática de conteúdo. que se combinam com crimes, que é
o discurso de ódio. Essas diferentes mais transparência à forma como
16 formas de desinformação merecem os conteúdos são impulsionados,
“Os um tratamento adequado para cada se há utilização de robôs ou não em
suas redes, é preciso apresentar os
mecanismos
uma delas. Mais importante do que
isso, a solução não passa pela via le- fluxos de informação muito inten-
sos de um determinado conteúdo
eleitorais se galista, de crime, de criar novos tipos
penais de criminalização, porque já
que podem demonstrar um ataque
informacional. As ONGs podem fa-
tornam muito existe regulação para crimes de injú-
ria e difamação. O fenômeno novo é
zer muito mais cartilhas e projetos
de envolvimento com a população,
porosos e muito o entendimento de outras formas de
desinformação que passam ao lado
as universidades podem fazer mui-

influenciáveis
to mais. Não se trata de apontar o
do que era tipificado.
dedo na cara de um setor ou de uma

pela tecnologia Estratégias


mento
de enfrenta-
pessoa e dizer “você é o responsá-
vel” para o problema da desinfor-

da informação” Algumas estratégias estão sendo


mação. É preciso, antes, fazer um
papel muito crítico de autoavaliação
recomendadas, como empoderar os dos múltiplos papéis que nós temos
IHU On-Line – De que or- cidadãos e os canais de verificação como profissionais e cidadãos.
dem são os problemas das fake de fatos para que as pessoas sejam Esse aspecto é muito importante
news? Não se trata de algo mais mais ativas na reação ao conteúdo para combater um tipo de resposta
amplo, que rompe as fronteiras que chega via WhatsApp, por exem- como “bala de prata”, capaz de resol-
do teor conteudístico? plo, para que possam verificar se é ver todos os problemas, o que é uma
falso ou não. Uma das ideias é pu- tendência muito grande do Congres-
Rafael A. F. Zanatta – O Co-
blicar cartilhas para que as pessoas so nacional, empolgado com a von-
mitê Gestor da Internet fez um se-
possam verificar se há embasamen- tade de criar leis de combate às no-
minário, na primeira quinzena de
to, fonte, referências. Além disso, é tícias falsas. Ainda tem o fato de que
abril, que foi muito rico na discus-
fundamental ter mais diversidade eles [os congressistas] se beneficiam
são. Foram convidados integrantes
de mídias, pois quanto mais con- com isso, pois minam as críticas e
de Centros de Pesquisas, jornalistas
centrada a mídia, mais problemas as sátiras contra eles e corremos um
da mídia tradicional, jornalistas de
de desinformação. É preciso apro- risco muito grande de silenciar vozes
novas mídias de fact checking, mí- var a lei de dados pessoais e ter um alternativas. Se aprovarmos um mo-
dias alternativas, representantes das controle muito rigoroso de como os delo jurídico que abre a possibilidade

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de retirada do conteúdo sob o risco Existe uma diferença profunda entre e Equidade - ITE, que são centros de
de multa, o Google e o Facebook te- a página do movimento terraplanista pesquisa de direito e tecnologia. Eles
rão um incentivo muito grande para – dos defensores de que a terra é pla- lançaram essa plataforma que iden-
retirar do ar um material que pode na – e uma notícia da Folha de São tifica a probabilidade de um perfil
até mesmo ter sido apurado. Isso é Pedro, dois dias antes das eleições, no Twitter ser um robô, a partir de
praticamente um processo duplo de dizendo que a Marina Silva cheira uma metodologia acadêmica de um
restrição da liberdade e de controle. cocaína. Há uma diferença profun- paper apresentado três anos atrás.
Em suma, os processos de remoção da, porque a Folha de São Pedro Trata-se de uma espécie de barôme-
automática de conteúdo são inviá- tenta fazer a manchete mimetizando tro de robôs usados para manipula-
veis pelas consequências que eles o formato de uma mídia tradicional ção eleitoral. É uma forma de usar
produzem. e gerando uma notícia fraudulenta. os próprios robôs para combater
Há uma intencionalidade específi- robôs de manipulação. Ainda preci-

“Há ca, que é uma reversão monetária


obtendo recursos com cliques e a
samos mensurar para ver se vai dar
certo, inclusive pelo risco de esses
processos de produção de uma guerra informa-
cional para destruir a base votante
robôs pegarem perfis verdadeiros e
identificá-los como falsos. Estamos
desinformação da Marina. Por outro lado, a página
do movimento terraplanista é uma
em um momento muito interessan-
te para experimentar com várias
que se crença não fundamentada cienti-
ficamente. Não dá para colocar as
soluções que não são simplesmente
jurídicas, mas sociotécnicas e edu-
combinam com duas coisas no mesmo balaio. Esta é
a necessidade de separar as coisas e
cacionais, e combater a formação
dessa indústria específica, chamada
crimes, que fazer uma taxonomia. pela revista Science de fake news
outlet. Trata-se, de fato, de indús-
é o discurso Se nós pudéssemos olhar com algu-
mas variáveis, é preciso ver primeiro
trias que foram construídas para
criar notícias fraudulentas e vender
de ódio” a forma, as notícias falsas tentam
emular ou mimetizam a estrutura
esse serviço para consultorias polí-
17
ticas. Isso sim é uma questão a ser
da mídia tradicional; a intenciona-
criminalizada. Esse tipo de empresa
IHU On-Line – Como comba- lidade, o que o agente produtor está
não pode operar, porque o objeto ju-
ter a produção das fake news querendo com isso; e ver qual a di-
rídico da empresa é ilegal, tem que
sem escorregar na censura? mensão do dano que isso causa. Esse
ter, inclusive, um mecanismo de fis-
último ponto é um dos mais difíceis
Rafael A. F. Zanatta – Tem uma calização tributária, de registro e de
de se avaliar atualmente. No mês de
publicação recente chamada de The utilização do nosso direito comercial
março a União Europeia publicou
science of fake news, publicada em já existente para impedir que estas
o relatório do High Level Group of
março na Revista Science, assinada empresas operem. Isso é diferente
Fake News. Estes estudiosos che-
por oito dos principais acadêmicos de criminalizar as condutas e fisca-
garam, justamente, ao problema de
de internet no mundo, incluindo Jo- lizar as redes sociais para ver o que
como dimensionar o dano causado
nathan Zittrain que escreveu The fu- está sendo publicado de verdadeiro
pelos diferentes tipos de desinfor-
ture of Internet (Virginia: Yale Uni- ou falso, o que é inviável, de colocar
mação, fazendo um apelo para que
versity Press, 2008). Mesmo todos na responsabilidade de alguém essa
as universidades e as entidades civis
esses pesquisadores concordam que função de determinar a verdade.
se unam para a criação de metodolo-
a resposta à pergunta é que não há Isso é o que nós temos que evitar. Há
gias de coisas que podem funcionar
respostas de como combater as fake agora um momento de pensar fora
para combater.
news. O ponto principal é a necessi- da caixinha, experimentar soluções
dade de reorientar o discurso para No Brasil temos o exemplo do Pe- com diferentes atores e avaliá-las a
além das fake news reconhecendo gabot, uma plataforma desenvolvida tempo. No caso do Brasil temos pou-
essas várias falas de desinformação pelo Instituto de Tecnologia e Socie- cos meses pela frente para fazer esse
e a intencionalidade dos agentes. dade - ITS e Instituto de Tecnologia exercício coletivo. ■

EDIÇÃO 520
TEMA DE CAPA

A liberdade contra o
“ministério da verdade”
Para Sérgio Amadeu o mais importante é construir valores sociais
que sejam fundamentados no respeito à diversidade e à diferença
como força tensionadora aos grupos hegemônicos
Ricardo Machado e Wagner Fernandes de Azevedo

O
s sistemas de poder se estabili- tais, o professor é enfático ao ressaltar
zam a partir de regimes de ver- que é uma tarefa muito mais ampla do
dade construídos socialmente. que a de definir o que seria uma notícia
Embora não haja nenhuma novidade na falsa ou não. “A checagem de fatos pre-
frase que abre esta entrevista, as socie- cisa ser feita por grupos grandes e cole-
dades tecnocientíficas nos jogam diante tivos, porque isso vai ajudar as pessoas
de um desafio de escalas exponenciais a não ficar tão contaminadas pelo ódio,
no que diz respeito ao enfrentamento o que é muito ruim para a sociedade e
coletivo das fake news. “Nós precisamos desestruturante para a democracia, que
ter muita clareza de que a luta contra as fica fragilizada à medida que é estru-
fake news não pode virar uma ação de turada por calúnias, inverdades e em
censura prévia ou a perseguição de de- discursos completamente descontextu-
terminados grupos não hegemônicos na alizados”, complementa.
18 sociedade”, pontua o professor e pes-
Sérgio Amadeu, doutor em Ciência
quisador Sérgio Amadeu, em entrevista
Política pela Universidade de São Pau-
por telefone à IHU On-Line. “Eu temo
lo - USP, participou da implementação
muito que o governo e órgãos de Esta-
dos Telecentros na América Latina e
dos tentem construir um ‘ministério da
da criação do Comitê de Implementa-
verdade’, porque isso coloca em risco a
ção de Software Livre - CISL. Também
democracia”, acrescenta.
foi presidente do Instituto Nacional de
Some-se a isso um certo modo de ser
Tecnologia da Informação - ITI da Casa
no ambiente web, mas também social-
Civil da Presidência da República. É
mente, que pode ser caraterizado por
professor na Universidade Federal do
aquilo que o entrevistado chama de “ra-
ABC - UFABC. É autor de, entre outros,
zão cínica”, que acaba gerando visões
Exclusão digital: a miséria na era da
impositivas e odiosas. “O importante
informação (São Paulo: Perseu Abra-
era que começássemos a construir va-
mo, 2001); Software Livre: a luta pela
lores baseados na liberdade e na diver-
liberdade do conhecimento (São Paulo:
sidade. Um mundo sem diversidade é
Perseu Abramo, 2004) e Comunicação
pobre e autoritário. Esses valores temos
Digital e a Construção dos Commons:
que tentar construir dioturnamente nas
redes virais, espectro aberto e as novas
redes, no cotidiano, nas famílias, nas
possibilidades de regulação (São Pau-
escolas e onde estivermos”, pondera
lo: Perseu Abramo, 2007).
Amadeu. Sobre a verificação acerca das
informações publicadas nas redes digi- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor Sérgio Amadeu – Primeiro que nos- processos de desinformação, princi-
compreende o problema das sas sociedades são, cada vez mais, hi- palmente a partir das redes sociais,
fake news nas sociedades con- perconectadas, cuja importância da passam a adquirir uma qualidade
temporâneas? comunicação é crescente. Então os diferente do período pré-internet.

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“A desinformação adquiriu
uma velocidade maior e ela se
transformou em parte do jogo
político de nossas sociedades”

A manipulação, desinformação e o precisamos ter muita clareza de que risco de termos um processo de cri-
exagero existem há muito tempo e a luta contra as fake news não pode minalização de discursos contra-he-
eles foram ferramentas políticas em virar uma ação de censura prévia ou gemônicos.
processos que conhecemos desde o a perseguição de determinados gru-
A campanha promovida pelo go-
século XIX. Contudo, a desinforma- pos não hegemônicos na sociedade.
verno Temer a favor da reforma da
ção adquiriu uma velocidade maior
Previdência foi claramente exagera-
e ela se transformou em parte do
jogo político de nossas sociedades. IHU On-Line –O que está por da com o agravante de que foi paga
Esse foi o cenário em 2016 que levou trás do desejo irrefreável do com verbas publicitárias do dinheiro
uma série entidades norte-america- Estado em combater as fake público. O que nós podemos fazer?
nas a declararem que as fake news news? O que prevalece é o inte- Podemos levar esse discurso à jus-
eram o grande novo problema nos resse público ou dos governan- tiça para debater se aquilo era ver-
processos democráticos. Para come- tes em não “manchar” a pró- dadeiro. O próprio governo Temer
ço de conversa esse problema não é pria imagem? dizia que se não houvesse a reforma 19
novo; segundo que, apesar de ser um da Previdência o Brasil iria parar, e o
Sérgio Amadeu – Essa pergunta
problema, ele é totalmente solucio- país não parou, tanto que a proposta
é bastante pertinente no cenário atu-
nável. Eliminar da política o exagero foi recuada. Era efetivamente uma
al. A grande mídia durante muitos
e a desinformação dos processos de campanha exagerada baseada em
processos eleitorais praticou a dis-
embate parece ser uma missão im- inverdades. Contudo, como ela era
torção dos fatos, apoiou empresários
possível. O que nós podemos fazer é, promovida pelo governo Executivo
e cometeu exageros para beneficiar
cada vez mais, buscar a qualidade da ela tinha o status de verdade, mas
certos candidatos. Tentar fazer no
internet também com velocidade, in- evidentemente não é verdadeiro. Eu
momento atual, sobretudo na inter-
tensidade e amplitude para mostrar net que é onde existe um contrapon- temo muito que o governo e órgãos
que uma série de notícias não são to aos grandes meios de comunica- de Estados tentem construir um
procedentes e são mentirosas. ção, uma definição de qual seria o “ministério da verdade”, porque isso
discurso da verdade não é possível (o coloca em risco a democracia.
Recentemente vimos no caso da
Marielle1 grupos caluniando a me- que já foi tentado fazer pela filosofia Nos Estados Unidos, que é uma de-
mória e a imagem da vereadora e pela sociologia). mocracia liberal antiga, nós perce-
que trabalha na defesa dos direitos Nós estamos muito preocupados bemos nas práticas discursivas que
humanos, feminismo e da luta an- que a própria justiça eleitoral tenha a democracia convive com um grau
tirracista. Foi preciso mostrar que sido a proponente de um grupo, de inverdade, que, inclusive, é ele-
muitas daquelas informações eram composto por Polícia Federal, mili- vado. Porém ela não convive com a
mentiras. Não se trata de estabelecer tares do Exército, membros do Mi- censura e a perseguição política por-
padrões sobre o que é a verdade, pois nistério Público, que seria responsá- que isso destrói as bases da cultura
isso é muito mais complicado do que vel por policiar os veículos e definir democrática. Curiosamente a pauta
fazer a checagem do fato e ver se ele o que é e o que não é fake news. Isso das fake news vem para o Brasil dos
foi relatado com exagero ou não. Nós é muito perigoso e nos coloca diante Estados Unidos e é comprada por
de um equívoco, a justiça não deve determinados grupos incrustrados
1 Marielle Francisco da Silva ou Marielle Franco (1979-
2018): foi uma socióloga, feminista, militante dos direitos se comprometer com a definição do na máquina do Estado que passam
humanos e política brasileira. Filiada ao Partido Socialismo que é notícia falsa ou não, porque a dizer que esse é o maior problema
e Liberdade (PSOL), elegeu-se vereadora do Rio de Janeiro
na eleição municipal de 2016, com a quinta maior votação. ela vai julgar o que a sociedade vai nacional. É muito difícil aceitar isso,
Crítica da intervenção federal no Rio de Janeiro e da Polí-
cia Militar, denunciava constantemente abusos de autori- apresentar a ele e não pode, de an- ainda que reconheçamos que há,
dade por parte de policiais contra moradores de comuni- temão, dizer que existe uma verdade sim, a disseminação dos discursos
dades carentes. Em 14 de março de 2018, foi assassinada
a tiros. (Nota da IHU On-Line) perene. Isso é um absurdo e corre o não verdadeiros, exagerados, des-

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TEMA DE CAPA

contextualizados e descabidos. outras redes a checagem dos fatos às dos por uma senadora que é do Rio
mensagens ofensivas a pessoas que Grande do Sul contra outra senado-
Isso tudo existe, mas é tarefa dos
foram atingidas por memes notoria- ra de Curitiba. Veja, aparentemente
jornalistas, dos meios de comunica-
mente mentirosos. A JBS, cujos áu- fazer a filtragem de uma notícia por
ção, dos blogs, dos acadêmicos e até
dios divulgados são de conhecimento meio de um algoritmo pode parecer
mesmo, quando for um caso como
público, apareceu em vários memes fácil, mas ele, por mais inteligente
o relatado da Marielle, do próprio
da internet como sendo propriedade que seja, para qualificar o discurso
Judiciário, incluído aí o Ministério
do ex-presidente Lula2, mas o que vai ter que entender a semântica e
Público, já que ela foi caluniada por
ninguém diz é que ela financiou o entender o que aquela pessoa real-
uma juíza. Esse caso mostra que a
Movimento Brasil Livre - MBL. mente falou para a Al Jazeera, mas
origem da fake news no Brasil está
isso é muito perigoso.
muito vinculada ao discurso de ódio. É preciso que essa ideia do finan-
Os grupos que mais pilham notícias ciamento de postagens nas redes No caso da Marielle, uma série
falsas são aqueles que têm uma iden- sociais seja aberta à sociedade civil de grupos disseminaram que ela
tificação muito grande com ideias para que se tenha acesso a essas in- era casada com Marcinho VP. Para
racistas, homofóbicas, misóginas, formações, de modo que isso per- provar o contrário, as pessoas têm
anticomunistas e preconceito reli- mitiria uma maior transparência de que ir na comunidade que ela mo-
gioso (praticado inclusive por reli- quem está pagando por esse tipo de rava, conversar com a família, ir no
giosos fundamentalistas). disseminação. Alguns pagamentos cartório e fazer uma apuração para
são muito caros, gastam-se milhares descortinar se aquilo é uma mentira.
de reais com isso e a sociedade tem o O algoritmo não sai na rua fazendo
IHU On-Line – Por que a pro- direito de saber quem está pagando. apurações, que é um trabalho muito
paganda paga nas redes sociais, difícil realizado, normalmente, pelo
os famosos impulsionamentos jornalista. O algoritmo precisa da
do Facebook, geram um pro- IHU On-Line – É possível intermediação de alguém que faça a
blema social? produzir um algoritmo capaz checagem dos fatos.
Sérgio Amadeu – Primeiro que de identificar notícias falsas? Há outro fator. Uma vez que os fa-
20 os usuários não percebem que os Quais os riscos implicados nes- tos são checados é possível descobrir
anúncios que aparecem no feed es- tas estratégias? onde aqueles memes que divulgam
tão sendo pagos. É muito comum Sérgio Amadeu – Eu não acho mentiras foram distribuídos. Uma
que nos grupos de WhatsApp se di- possível o algoritmo identificar no- das tarefas que poderiam ser úteis
vulguem informações falsas sob a tícias falsas. Pense em uma notícia para as redes sociais é pegar uma
justificativa de que a pessoa viu no assim: “a senadora ‘X’ falou à Al Ja- notificação e informar a todos que
Facebook. A própria regra eleitoral zeera conclamando grupos terroris- receberam o meme que aquilo foi
não permite a propaganda na inter- tas para apoiar a sua causa”. Esse é checado e é claramente mentiroso.
net, mas admite o impulsionamento um dos memes realmente divulga- Mas mesmo esta estratégia é perigo-
de conteúdo pago, ou seja, privile- sa porque nem toda a notícia pode
giando o poder econômico e a disse- 2 Luiz Inácio Lula da Silva (1945): Trigésimo quinto presi- ser qualificada como verdade ou
dente do Brasil, cargo que exerceu de 2003 a 1º de janeiro mentira, ela tem um grau de exagero
minação de mentiras na rede. Uma de 2011. É co-fundador e presidente de honra do Partido
série de grupos, incluídos aí a JBS, dos Trabalhadores – PT. Em 1990, foi um dos fundadores e e aí é que mora o grande perigo, sim-
organizadores do Foro de São Paulo, que congrega parte
principalmente os ligados às forças dos movimentos políticos de esquerda da América Latina plesmente porque não dá para falar
conservadoras e os sistemas de elei- e do Caribe. Foi candidato a presidente cinco vezes: em
1989 (perdeu para Fernando Collor de Mello), em 1994
que um texto de um colunista é sim-
ção no Brasil se instituíram com o (perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e em 1998 plesmente uma mentira porque se
(novamente perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e
financiamento de empregados. Isso ganhou as eleições de 2002 (derrotando José Serra) e de trata de uma opinião não vinculada
é preocupante na campanha eleito- 2006 (derrotando Geraldo Alckmin). Lula bateu um recor-
de histórico de popularidade durante seu mandato, con-
a fatos. Eu temo muito pelo uso dos
ral. Há uma mediação algorítmica, o forme medido pelo Datafolha. Programas sociais como o algoritmos como solução ao combate
Bolsa Família e Fome Zero são marcas de seu governo,
Facebook ganha com o impulsiona- programa este que teve seu reconhecimento por parte às inverdades.
da Organização das Nações Unidas como um país que
mento, e ele não tem a obrigação de saiu do mapa da fome. Lula teve um papel de destaque
fazer uma checagem se aquele conte- na evolução recente das relações internacionais, incluin-

údo é ou não mentiroso.


do o programa nuclear do Irã e do aquecimento global. IHU On-Line – Até que pon-
É investigado na operação Lava-Jato e foi denunciado em
setembro de 2016 pelo Ministério Público Federal (MPF), to essa economia do escândalo
Deveria ser proibido que partidos apontado como recebedor de vantagens pagas pela em-
político midiatizado é efeito da
preiteira OAS em um triplex do Guarujá. No dia 12 de julho
e candidatos gastassem dinheiro im- de 2017, Lula foi condenado pelo juiz federal Sérgio Moro, crise da democracia represen-
em primeira instância, a nove anos e seis meses de prisão
pulsionando conteúdo na rede social. em regime fechado por crimes de corrupção passiva e la- tativa?
Alguém poderia dizer que os públi- vagem de dinheiro. No dia 24 de janeiro de 2018, por una-

cos apoiadores poderiam fazer essa


midade, os três desembargadores da 8ª Turma do Tribunal
Regional Federal da 4ª Região confirmaram a condenação
Sérgio Amadeu – O Manuel Cas-
disseminação, o que ocorreria sem de Lula, elevando a pena para 12 anos e um mês de prisão. tells3 vincula a política do escândalo
No dia 7 de abril de 2018 Lula, após mandado de prisão
dúvidas, mas aí precisaria haver me- expedido pelo judiciário, entregou-se à Polícia Federal
onde se mantém sob custódia na Superintendência do 3 Manuel Castells (1942): sociólogo espanhol. Entre 1967
canismos de cobrar do Facebook e órgão em Curitiba. (Nota da IHU On-Line) e 1979 lecionou na Universidade de Paris, primeiro no

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com a crise da democracia represen- ver”, criando mecanismos de delibe- do poder político. O Bush7, quando
tativa. Eu agregaria um outro fator a ração mais próximos da sociedade. compartilhava a ideia do aqueci-
isso. O Guy Debord4, em 1968, publi- Como isso não é feito, nós temos um mento global, se escorava em cien-
cou o livro A sociedade do espetáculo processo eleitoral cada vez mais fo- tistas que afirmavam que a Terra
(Rio de Janeiro: Contraponto, 1997) cado na criminalização do discurso aquece normalmente e o crescimen-
e de lá para cá a mercantilização ex- do outro. to das temperaturas não tem nada a
trema, que é a base da sociedade da ver com a queima de combustíveis
Como nada disso é feito, nós temos
espetacularização, avançou sobre o fósseis. Contrariamente há uma sé-
um processo eleitoral cada vez mais
jornalismo transformando o telejor- rie de outros cientistas, a maioria
focado na criminalização do discurso
nalismo em um verdadeiro espetá- inclusive, que demonstravam que
do outro, então não basta que o ini-
culo. Quanto à política, ela passou a era necessário assinar o Protocolo
migo do neoliberal seja uma pessoa
discutir menos seus programas nos de Kyoto8 e reduzir drasticamente os
que defenda a igualdade, ele tem que
horários gratuitos e nos debates para poluentes. Nós temos um grau eleva-
ser apresentado como um criminoso,
se focalizar nos escândalos. A espeta- do de evidências e informações que
um falsário. Por isso não basta atacar
cularização é efeito de uma sociedade o aquecimento se acelerou depois da
as políticas do ex-presidente Lula,
que se volta para o mercado. industrialização, mas há uma dispu-
não basta atacar as ideias de Bolsa
ta sobre o tema. Com isso o poder
Na própria relação de compra e Família ou de renda mínima, citada
político vai fazer determinadas ações
venda de produtos, o refrigerante inclusive por Elon Musk5, do Vale do
construindo aqueles discursos que
não vende um objeto, mas uma ex- Silício. Aqui no Brasil, inclusive por
lhes darão sustentação.
periência fenomenal, um mundo em conta da crise, não basta criticar as
torno dele, vende antes de mais nada políticas do ex-presidente, ele tem Os Estados Unidos “nunca” invadi-
uma estética. A política acompanhou que ser transformado em um falsá- ram um país por interesse econômi-
isso com a completa incapacidade da rio, de modo que o personagem com co, eles sempre invadem em defesa
democracia representativa de re- maior apoio popular em uma eleição de interesses humanitários. Então
solver problemas cruciais das nos- seja retirado da disputa eleitoral. eles armam os guerrilheiros dentro
sas sociedades. A cada quatro anos da Síria contra o Assad9 porque seu
o liberal acredita que se elege um governo é uma ditadura e depois fa- 21
funcionário – essa é a noção do de- IHU On-Line –Que tipo de re- zem operações militares lá porque
putado – para atender os interesses gime de verdade tenta ser pro- “querem implantar a democracia na
da sociedade. O ponto é que esse de- duzido a partir de todo o debate Síria”. O historiador que vai olhar
putado está descolado dos interesses em torno das fake news? friamente a história norte-ameri-
da sociedade e, mesmo estando vin- Sérgio Amadeu – Não há poder, cana vai perceber que nada disso é
culado a uma base, é muito diferente como diria Foucault6, sem o estabe- verdadeiro, porque distante poucos
a tarefa de fiscalizar as votações que lecimento do que seria a verdade. quilômetros dali os Estados Unidos
são cruciais para a vida dela. Não há poder que diga que deter- estão sustentando um governo mui-
minada política será apresentada to tirano, que é o da Arábia Saudita.
Nós tínhamos que fazer valer os
independente de se aquilo proposto Apesar da Arábia Saudita ser sunita
mecanismos da nossa Constituição
se refere a fatos verdadeiros ou não. e fundamentalmente religiosa, ela
Federal de 1988, que é muito avan-
O governo sempre vai apresentar é, efetivamente, aliada dos Estados
çada porque ela mantém o trânsito
uma proposta vinculada à verdade. Unidos. Então o regime de verda-
com uma democracia representativa
Os regimes de verdade dão suporte de da invasão do Iraque, que é para
e amplia a possibilidade de partici-
(no sentido de sustentar) às ações combater o ditador e encontrar ar-
pação da população. Nós deveríamos
ampliar soluções de participação e
envolvimento das pessoas e tornar a 7 George W. Bush (1946): foi o 43º presidente dos Es-
tados Unidos, sucedendo Bill Clinton em 2001. Em 2009,
5 Elon Reeve Musk (1971) é um empreendedor e filan-
política real, e não algo “para inglês tropo sul-africano, envolvido na estruturação de empre- foi sucedido por Barack Obama. Foi governador do Texas
sas como Paypal, SpaceX e Tesla Motors. (Nota da IHU entre 1995 e 2000. (Nota da IHU On-Line)
On-Line) 8 Protocolo de Kyoto ou Protocolo de Quioto:
6 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas consequência de uma série de eventos iniciada com
campus de Nanterre e, em 1970, na “École des Hautes Étu- obras, desde a História da Loucura até a História da sexu- a Toronto Conference on the Changing Atmosphere,
des en Sciences Sociales”. No livro “A sociedade em rede”, alidade (a qual não pôde completar devido a sua morte), no Canadá (outubro de 1988), seguida pelo IPCC’s First
o autor defende o conceito de “capitalismo informacional”. situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Fou- Assessment Report em Sundsvall, Suécia (agosto de 1990)
Foi nomeado em 1979 professor de Sociologia e Planeja- cault trata principalmente do tema do poder, rompendo e que culminou com a Convenção-Quadro das Nações
mento Regional na Universidade de Berkeley, Califórnia. com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, Unidas sobre a Mudança Climática (CQNUMC, ou UNFCCC
Em 2001, tornou-se pesquisador da Universidade Aberta a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição em inglês) na ECO-92 no Rio de Janeiro, Brasil ( junho de
da Catalunha em Barcelona. Em 2003, juntou-se à Univer- 119, de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119; 1992). Também reforça seções da CQNUMC. Constitui-
sidade da Califórnia do Sul, como professor de Comunica- edição 203, de 6-11-2006, disponível em https://goo.gl/ se no protocolo de um tratado internacional com
ção. Segundo o Social Sciences Citation Index Castells foi C2rx2k; edição 364, de 6-6-2011, intitulada ‘História da compromissos mais rígidos para a redução da emissão
o quarto cientista social mais citado no mundo no período loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em dos gases que agravam o efeito estufa, considerados, de
2000-2006 e o mais citado acadêmico da área de comuni- https://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo biopolí- acordo com a maioria das investigações científicas, como
cação, no mesmo período. (Nota da IHU On-Line) tico da vida humana, de 13-9-2010, disponível em https:// causa antropogênica do aquecimento global. (Nota da
4 Guy Debord (1931-1994): filósofo e sociólogo francês, goo.gl/M95yPv, e edição 344, Biopolítica, estado de exce- IHU On-Line)
autor de A sociedade do espetáculo – Comentários sobre ção e vida nua. Um debate, disponível em https://goo.gl/ 9 Bashar Hafez al-Assad (1965): é um político sírio e o
a sociedade do espetáculo (Rio de Janeiro: Contraponto) RX62qN. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU atual presidente de seu país e Secretário Geral do Partido
e fundador da Internacional Situacionista (IS). Sobre ele, em formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel Baath desde 17 de julho de 2000. Sucedeu a seu pai, Hafez
confira ainda a autobiografia Panégyrique (Paris: Éditions Foucault – Sua Contribuição para a Educação, a Política e a al-Assad, que governou a Síria por 30 anos até sua morte,
Gérard Lebovici). (Nota da IHU On-Line) Ética. (Nota da IHU On-Line) no comando do país. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

mas químicas de destruição em mas- militar, dizia “que o Marco Civil que- res de curtidas que ele teve foram de
sa, foi baseado em mentiras. ria tolher a nossa liberdade”. Mas bots, de mecanismos automáticos,
como alguém que defende a dita- para dar impressão que ele teve mais
O regime de verdade é um elemen-
dura é capaz de falar em liberdade? apoio do que de fato ocorreu.
to crucial do poder político. Ele im-
Na verdade, era uma postura para
pulsiona e se coloca na sociedade a O importante era que começásse-
combater uma lei que assegurava
partir dessa legitimação das ações mos a construir valores baseados
alguns direitos na rede, mas usada
que são articuladas como verdade. na liberdade e na diversidade. Um
de maneira cínica. Atualmente, na
mundo sem diversidade é pobre e
internet, a razão cínica prepondera
autoritário. Esses valores temos que
IHU On-Line –Pensando as em muitos grupos. Há um embate
tentar construir dioturnamente nas
fake news somente como a pon- em uma rede que serve à liberdade e
redes, no cotidiano, nas famílias, nas
ao totalitarismo.
ta do iceberg de um processo escolas e onde estivermos.
mais amplo, que valores estão O fascismo hoje não é aquele como
sendo produzidos no interior foi organizado pelo Mussolini11 ou
das redes digitais? pelo Partido Nacional Socialista IHU On-Line – Como comba-
alemão, ele é disseminado pela ló- ter a produção das fake news
Sérgio Amadeu – Essa é uma
gica da supremacia neoliberal em sem escorregar na censura?
pergunta muito difícil de responder.
seus arranjos mais inusitados. Há Sérgio Amadeu – Primeiro isso
A tecnologia da internet é ambiva-
analistas que defendem que a Ama-
lente. Ela tanto é potente para que passa por uma postura individual,
zônia é muito cara para o Brasil
possamos disseminar valores éticos de modo que é preciso desconfiar de
manter e que, portanto, é melhor
e importantes, como as garantias à tudo antes de publicar, mesmo que
ela ser administrada pelos Estados
diversidade cultural, social e de gê- seja muito favorável às ideias que a
Unidos. Os nacionalistas militares
nero (como já é realizado), mas ao pessoa acredita. Eu mesmo recebi
defendem a venda da Embraer para
mesmo tempo tem uma rede distri- postagens dizendo que a Globo era
a Boeing. Então, veja, a defesa de
buída e veloz, e cada vez mais cres- dona da Mapfre, uma empresa de
um nacionalismo mais clássico que
cente, que é capaz de disseminar o previdência privada. Para mim aqui-
22 defende a unidade territorial ou ra-
ódio, a mentira e valores que restrin- lo seria a consolidação do que eu
zões de Estado de viés nacionalista
jam a liberdade. acho ser a reforma da previdência,
aparece de forma completamente
que é ampliar o espaço das empre-
Na época do Marco Civil da Inter- distorcida. É um discurso pelo Bra-
sas privadas, já que em nosso país é
net, um apoiador do deputado Jair sil e pela nacionalidade, mas en-
um mercado pequeno em relação a
Bolsonaro10, que defende a ditadura trega todas as riquezas porque é o
outros. Isso faria todo o sentido, mas
canto da sereia neoliberal que está
era mentira. Ainda bem que eu apu-
10 Jair Bolsonaro (1955): militar da reserva e deputado regendo essas ações.
federal nascido em Campinas (SP). De orientação política rei e não divulguei, pois estaria atre-
de extrema direita, conservadora e nacionalista, cumpre
sua sétima legislatura na Câmara Federal. Em janeiro de
Temos tudo isso na rede, a ponto de lado à divulgação de uma mentira.
2018, anunciou sua filiação ao Partido Social Liberal (PSL), o Jornal Nacional ler uma postagem
o nono partido político de sua carreira. Foi o deputado Boa parte da sociedade não está in-
mais votado do estado do Rio de Janeiro nas eleições ge- no Twitter de um general para man-
rais de 2014. Ficou conhecido pela luta contra os direitos teressada nisso, ao contrário, está in-
dar um recado ao Supremo Tribunal
LGBT, pela defesa da ditadura e da tortura. Seus embates teressada em defender a própria opi-
contra os direitos humanos são constantes. Suas declara- Federal - STF. Mas qual é o recado?
ções controversas já lhe renderam cerca de 30 pedidos de nião com os recursos disponíveis. Mas
cassação e três condenações judiciais, desde que foi eleito Uma ameaça de ruptura institucio-
é preciso que a imprensa, a sociedade
deputado em 1989. Documentos produzidos pelo Exército nal por parte das Forças Armadas.
Brasileiro na década de 1980 mostram que os superiores civil e a academia, o máximo de orga-
de Bolsonaro o avaliaram como dono de uma “excessiva Tudo isso está presente na rede, in-
ambição em realizar-se financeira e economicamente”. Se- nizações possíveis, contribuam com a
gundo o superior de Bolsonaro na época, o coronel Carlos clusive a replicação desta mensagem
Alfredo Pellegrino, “[Bolsonaro] tinha permanentemente do general Villas Boas por robôs, de checagem de fatos para distribuir in-
a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi
sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo modo que grande parte dos milha- formações contra a mentira na rede.
dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, Não acredito que a política agora, por
racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argu-
mentos”. É notório o seu machismo, como evidenciam as casa. Não vai ter um centímetro demarcado para reserva conta da preocupação com a desin-
agressões e ofensas direcionadas a suas colegas parla- indígena ou pra quilombola”. (Nota da IHU On-Line)
11 Benito Mussolini (1883-1945): jornalista e político
formação, vá construir algo positivo,
mentares. Seu desrespeito à condição feminina não pou-
pou nem a filha. Em abril de 2017, em um discurso no Clu- italino, governou a Itália com poderes ditatoriais entre muito menos que será capaz de crimi-
be Hebraica, no Rio de Janeiro, Bolsonaro fez uma menção 1922 e 1943, autodenominando-se Il Duce, que signifi-
à caçula, então com seis 6 anos: “Eu tenho cinco filhos. ca em italiano “o condutor”. Baseando-se numa filosofia nalizar a mentira por meio da própria
Foram quatro homens, aí no quinto eu dei uma fraqueja- política teoricamente socialista, conseguiu a adesão dos política. Não há poder que não cons-
da e veio uma mulher”. Em uma entrevista para a revista militares descontentes e de grande parte da população,
Playboy, em junho de 2011, sua agressividade dirigiu-se alargou os quadros e a dimensão do partido. Após um trua a sua verdade e o problema é que
aos gays: “Seria incapaz de amar um filho homossexual”. período de grandes perturbações políticas e sociais,
Ainda disse preferir que um filho “morra num acidente quando alcançou grande popularidade, guindou-se a quando se constrói a verdade do poder
do que apareça com um bigodudo por aí”. Em abril de chefe do partido, e em 1922 organizou a famosa marcha do Estado e da política, passa-se a de-
2017, durante um discurso no Clube Hebraica, no Rio de sobre Roma, um golpe de propaganda. Usando as suas
Janeiro, afirmou que acabará com todas as terras indíge- milícias para instigar o terror e combater abertamente finir que as outras visões devem ser
nas e comunidades quilombolas do Brasil caso seja eleito os socialistas, conseguiu que os poderes investidos o
presidente em 2018. Também disse que terminará com o nomeassem para formar governo. Foi nomeado Primeiro consideradas não verdadeiras e com-
financiamento público para ONGs: “Pode ter certeza que Ministro pelo rei Vítor Manuel III, alcançando a maioria batidas, inclusive pelo poder judiciá-
se eu chegar lá não vai ter dinheiro pra ONG. Se depender parlamentar e, consequentemente, poderes absolutos.
de mim, todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro de (Nota da IHU On-Line) rio, o que, de novo, é muito perigoso.

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O que eu sugiro é que as pessoas, coletivos, porque isso vai ajudar as por calúnias, inverdades e em dis-
mesmo com suas convicções, procu- pessoas a não ficar tão contamina- cursos completamente descontextu-
rem não reproduzir de pronto aquilo das pelo ódio, o que é muito ruim alizados. Não vejo formula mágica
que seria a explicação de tudo. Por para a sociedade e desestruturante capaz de combater a desinformação
outro lado, a checagem de fatos pre- para a democracia, que fica fragi- na rede, é uma tarefa múltipla e de
cisa ser feita por grupos grandes e lizada à medida que é estruturada muitas organizações da sociedade. ■

Leia mais
– O fim da neutralidade e a transformação da internet numa rede de supermercado. En-
trevista especial com Sérgio Amadeu, publicada nas Notícias do Dia, de 11-1-2018, no sítio
do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em https://bit.ly/2qJNWHy.
– “Uma internet mais cara para quem é mais pobre”. Empresas de telecomunicações
atualizam as desigualdades no Brasil. Entrevista especial com Sérgio Amadeu, publicada
nas Notícias do Dia, de 21-2-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em https://bit.ly/2qN8Wx7.
– ‘Internet no país, elogiada no mundo inteiro, está sob ataque do governo golpista’.
Entrevista especial com Sérgio Amadeu, publicada nas Notícias do Dia, de 22-7-2016, no
sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em https://bit.ly/2HMuXmQ.
– Marco Civil da Internet. “A guerra recém começou.” Entrevista especial com Sérgio
Amadeu, publicada nas Notícias do Dia, de 10-4-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisi-
nos – IHU, disponível em https://bit.ly/1hDi9c4.
– “Abandonar Snowden é uma causa indigna.” Entrevista especial com Sérgio Amadeu,
publicada nas Notícias do Dia, de 19-12-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – 23
IHU, disponível em https://bit.ly/2HGGZR5.
– Marco Civil da Internet: a disputa pela rede. Entrevista especial com Sérgio Amadeu,
publicada nas Notícias do Dia, de 9-1-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em https://bit.ly/2qMI8wU.
– Creative Commons: um bem coletivo. Entrevista especial com Sérgio Amadeu, publica-
da nas Notícias do Dia, de 7-2-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponí-
vel em https://bit.ly/2HCm1TA.

EDIÇÃO 520
TEMA DE CAPA

Da anomia ética a um novo pacto social


Pedro Gilberto Gomes analisa o problema das fake news em perspectiva
com a nova ambiência das sociedades em midiatização
Ricardo Machado

D
o princípio da comunicação hu- diferença, ao diálogo, o respeito à vida,
mana, na pré-história, ao salto o direito à educação, à alimentação, à
quântico comunicacional con- saúde, enfim, o direito de ser respeitado
temporâneo, os desafios éticos relacio- como tal. Aí, nesse tipo de trabalho, é
nados à comunicação foram ganhando que vamos fazer com que a ação de fake
proporções cada vez mais exponenciais. news seja diminuída, porque a censura
“No nosso caso, com toda essa ambiên- não resolve”, pontua Gomes. “É impor-
cia de digitalização, devemos trabalhar tante discutir as fake news, colocar em
e discutir o que é fundamental para a pauta, conversar para ver o que fazer.
existência humana e os tipos de valores A solução não é censurar, mas educar,
que devemos afirmar. Mais do que isso, compreender, articular dentro dos sa-
a questão é como devemos reinterpre- beres, tendo a percepção de que a mi-
tar alguns valores capazes de criar uma diatização das sociedades veio para fi-
24 estrutura para que a ação das pessoas car”, complementa.
seja por elas balizada”, destaca o pro- Pedro Gilberto Gomes é vice-rei-
fessor e pesquisador Pedro Gilberto tor da Universidade do Vale do Rio dos
Gomes, em entrevista concedida pesso- Sinos - Unisinos. Possui graduação em
almente à IHU On-Line. Filosofia pela Pontifícia Universidade
Essa construção de um novo paradig- Católica do Rio Grande do Sul, espe-
ma ético nas novas ambiências digitais cialização em Teologia pela Pontifi-
precisa encontrar sintonia com a multi- cia Universidad Católica de Santiago,
plicidade de nossas sociedades. “O que mestrado e doutorado em Ciências da
deve ser trabalhado são as coisas funda- Comunicação pela Universidade de São
mentais em termos de respeito à dife- Paulo - USP. Atualmente atua, também,
rença, respeito às opções de cada um, à como professor titular da Unisinos. É
dignidade humana, aos direitos huma- autor e organizador de diversos livros,
nos, a questão da sustentabilidade e, a dos quais destacamos 10 Perguntas
partir disso, em comunidade, construir para a produção de conhecimento em
um arcabouço novo de paradigmas que comunicação (São Leopoldo: Editora
nos ajudem a trabalhar essa dimensão Unisinos, 2013), Da Igreja Eletrônica
para que não seja essa anomia ética que à sociedade em midiatização (São Pau-
estamos vivendo”, reitera. lo: Edições Paulinas, 2010) e Filosofia e
“Nós temos que fazer o trabalho nes- ética da comunicação na midiatização
ta dimensão com as pessoas para o de- da sociedade (São Leopoldo: Editora
senvolvimento de princípios universais Unisinos, 2006).
autoescolhidos. Trata-se do respeito à Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como pensar a Pedro Gilberto Gomes – Eviden- o outro. Esse tipo de jornalismo mar-
relação das fake news em pers- temente as fake news são notícias fal- rom sempre existiu. A diferença é que
pectiva com as sociedades em sas, manipulações para levar alguma quando os Estados Unidos estavam
midiatização? vantagem financeira ou para diminuir com o problema do jornalismo mar-

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REVISTA IHU ON-LINE

“Com a sociedade em midiatização em


que as pessoas interagem e, inclusive,
com um celular na mão podendo produzir
conteúdo em rede com o mundo todo, a
dimensão das fake news se agudizou”

rom houve toda uma reformulação nas significa esse salto quântico co- seguinte sentido: a espécie humana
práticas e criou-se a pirâmide invertida municacional? vem em um nível e em determinado
para dar credibilidade ao jornalista. momento faz um salto, subindo de
Pedro Gilberto Gomes – A
Atualmente, com a sociedade em mi- patamar para outra realidade. Este
questão da película pensante, que
diatização em que as pessoas intera- salto tem a característica de ser irre-
McLuhan2 vai trabalhar depois nos
gem e, inclusive, com um celular na versível e, muito embora pareça uma
seus próprios termos, diz respeito à
mão podendo produzir conteúdo em novidade absoluta, ele é consequên-
ideia de que existe uma película que cia do caminho trilhado até então.
rede com o mundo todo, a dimensão
envolve toda a terra. Teilhard vai falar Na história da humanidade houve
das fake news se agudizou. Como es-
tamos em um tempo onde há uma es- que as coisas são cada vez mais com- um momento em que os hominídeos
pécie de anonimato na rede, as pessoas plexas, então quanto mais contraído começaram a desenvolver a lingua-
não têm mais nenhum compromisso está o mundo em uma rede inconsútil, gem, até por conta de sua caracte-
com a verdade, essas pessoas são a re- dirá McLuhan sobre o tema, mais re- rística gregária e pela necessidade
vista na rede. Esse mundo que estamos lativizamos certos paradigmas, como, de defesa comum no ambiente. Em 25
vivendo hoje, de uma ambiência em por exemplo, espaço-tempo, porque outro momento aconteceu o primei-
midiatização, onde as crianças desde posso estar aqui no Brasil e falar com ro salto quântico, que foi a escrita. A
pequenas têm contato com o celular, de alguém na Coreia sem nenhum pro- partir dela a humanidade foi desen-
hiperconectividade, transforma ações blema, rompendo com a interpreta- volvendo vários ciclos de aperfeiço-
que antes eram apenas do mundo do ção linear destas duas dimensões. As amento de comunicação e com isso
jornalismo em algo exponencial de redes sociais são a expressão desta di- teve consequências que o próprio
cada indivíduo, que é anônimo e pode mensão em escala global. McLuhan chamou de destribaliza-
colocar o que quiser. O salto quântico diz respeito à fí- ção. Isto é, de uma vida em tribo e
sica. Mas a analogia que faço é no tradição oral para uma sociedade
Ainda tem a dimensão de que a pes- em que, com a escrita, não se precisa
soa diz coisas na rede que não diria ao mais dos anciãos para contar histó-
nário de sua morte foi lembrado no Simpósio Internacional
vivo, pois baseado no anonimato o que Terra Habitável: um desafio para a humanidade, promovi- rias. No caso dos hieróglifos egípcios,
se diz na rede é muito forte. Hoje a prá- do pelo IHU em 2005. Sobre ele, leia a edição 140 da IHU
que não são outra coisa senão sinais
On-Line, de 9-5-2005, Teilhard de Chardin: cientista e mís-
tica de manipular notícias e buscar es- tico, disponível em http://bit.ly/ihuon140. Veja também a
sagrados, quem podia lê-los eram os
edição 304, de 17-8-2009, O futuro que advém. A evolução
cândalos, que sempre existiu mas tinha e a fé cristã segundo Teilhard de Chardin, em http://bit.ly/ sacerdotes. Então, a humanidade foi
uma certa limitação porque as pessoas ihuon304. Confira, ainda, as entrevistas Chardin revela a
se desenvolvendo e mais tarde criou
cumplicidade entre o espírito e a matéria, na edição 135,
liam e não praticavam, inverteu-se, de de 5-5-2005, em http://bit.ly/ihuon135 e Teilhard de Char-
o alfabeto, que é uma simplificação,
din, Saint-Exupéry, publicada na edição 142, de 23-5-2005,
modo que as pessoas nem leem, ape- em http://bit.ly/ihuon142, ambas com Waldecy Tenório. mas que deu origem à possibilidade
nas compartilham conteúdo manipu- Na edição 143, de 30-5-2005, George Coyne concedeu a
do pensamento lógico.
entrevista Teilhard e a teoria da evolução, disponível para
lado. Resumindo, aquilo que sempre download em http://bit.ly/ihuon143. Leia também a edi-
existiu é potencializado em uma socie- ção 45 dos Caderno IHU ideias A realidade quântica como
base da visão de Teilhard de Chardin e uma nova concepção
No século XV houve a invenção dos
dade hiperconectada. da evolução biológica, disponível em http://bit.ly/1l6IWAC; tipos móveis, que foi o que comple-
a edição 78 dos Cadernos de Teologia Pública, As impli-
cações da evolução científica para a semântica da fé cris- tou esse primeiro salto quântico.
tã, disponível em http://bit.ly/1pvlEG2; e a edição 22 dos
Cadernos de Teologia Pública, Terra Habitável: um desafio
Depois a passagem do vapor para a
IHU On-Line – As redes so- para a teologia e a espiritualidade cristãs, disponível em eletricidade nos levou a outro pata-
http://bit.ly/1pvlJJL. (Nota da IHU On-Line)
ciais parecem ter dado mate- 2 Herbert Marshall McLuhan (1911-1980): sociólo- mar. Foi a eletricidade que permitiu
rialidade à “película pensante” go canadense. Fez, em suas obras, uma crítica global uma série de desenvolvimentos sig-
de nossa cultura, apontando o fim da era do livro, com
de Teilhard de Chardin1. O que o domínio da comunicação audiovisual. Seus principais nificantes, inclusive com os meios
livros são A galáxia de Gutenberg (1962) e O meio é a
mensagem (1967). Confira a edição 357 da IHU On-Line, analógicos, mas com a digitalidade
1 Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955): paleontólogo, de 11-4-2011, intitulada 100 anos de McLuhan: um teórico temos mais um salto quântico. Essa
teólogo, filósofo e jesuíta que rompeu fronteiras entre a de vanguarda, disponível em http://bit.ly/oZJlrh. (Nota da
ciência e a fé com sua teoria evolucionista. O cinquente- IHU On-Line) película pensante é a materialização

EDIÇÃO 520
TEMA DE CAPA

dessa interconectividade e dentro de, o respeito e a responsabilidade, tudo, se a pessoa tem princípios e
do processo de evolução ocorrido isso produz um novo modo de agir e autonomia, ela recua caso as infor-
ela não regressa, do mesmo modo perceber que tipos de valores estão mações que pretende publicar não
como não podemos nos lembrar de sendo construídos, porque certos sejam verdadeiras.
como era quando éramos analfabe- paradigmas que tínhamos no passa-
É curioso, porque existem pesso-
tos. Nós não voltaremos atrás nesta do não funcionam mais hoje.
as que no dia a dia são decentes no
digitalidade, a menos que ocorra um
O que deve ser trabalhado são as trato pessoal e quando se colocam
cataclismo, a tendência é ela se agu-
coisas fundamentais em termos de diante de um computador soltam
dizar. Todo este desenvolvimento,
respeito à diferença, respeito às op- todas as suas amarras, seus com-
segundo Teilhard, está ligado ao de-
ções de cada um, à dignidade huma- plexos e jogam na rede. É isso que
senvolvimento do homem em busca
na, aos direitos humanos, a questão está acontecendo no Brasil do pon-
do ponto ômega, o noético.
da sustentabilidade e, a partir disso, to de vista político. O que disseram
em comunidade, construir um arca- de mentira a respeito, por exemplo,
IHU On-Line – Qual a necessi- bouço novo de paradigmas que nos da Dilma e do Lula ou mesmo do
dade e como estruturar um pro- ajudem a trabalhar essa dimensão Gilmar Mendes, da Cármen Lúcia,
jeto de ética, no sentido de “ma- para que não seja essa anomia ética do Aécio Neves e do Sérgio Moro é
neira de ser”, alinhado com os que estamos vivendo. um absurdo. Inclusive fizeram uma
desafios contemporâneos das matéria dizendo que a ex-mulher do
Dentro de uma visão da humanida-
sociedades tecnocientíficas? Lula, a Marisa, não tinha morrido e
de, ousaria dizer que hoje o grande
que estava na Itália, cortando a foto
Pedro Gilberto Gomes – Um passo a ser dado pelas pessoas que
em que ela aparecia com o papa para
dos capítulos do meu último livro estão trabalhando questões sobre
aparecer somente ela.
– Dos meios à midiatização (São as redes digitais, incluídas aí as fake
Leopoldo: Editora Unisinos, 2017)3 news, é o desenvolvimento de uma Essas coisas ocorrem por causa do
– trata da questão de uma nova consciência moral. Isso porque se- anonimato e esse é o grande proble-
ética, uma nova moral. Como faço quer superamos a fase da anomia, ma pelo qual a humanidade deve
uma distinção entre ética (ética co- quanto mais chegar à heteronomia, passar. Hoje a humanidade, e em
26 de modo que a autonomia é um pon- nosso caso particular o Brasil, pre-
munitária) e a moral social vigente,
explico que nossas sociedades vêm to distante no horizonte. A autono- cisa de um novo pacto social, demo-
num modo de agir, que é o nosso mia entendida como o agir de acordo crático e republicano para podermos
cotidiano, em que apenas reproduzi- com os princípios éticos universais construir um novo país. O nosso
mos sem raciocinar muito. Contudo, autoescolhidos, enquanto a anomia tecido social está esgarçado, as pes-
existe uma dimensão maior e mais é a ação de acordo com as consequ- soas fazem o que querem, e as redes
universal que permanentemente ências imediatas de uma determina- sociais são as grandes possibilitado-
está julgando esse novo modo de es- da ação. ras, pois as pessoas “podem” dizer o
tar no mundo e que pode, por meio que querem.
de uma perspectiva crítica, expres-
sar uma nova maneira de agir, que IHU On-Line – Como as socie-
se transformará em uma nova moral dades em midiatização agen- IHU On-Line – A nova ambiên-
social vigente. ciam um novo modo de ser? cia produzida pelas tecnologias
Até que ponto as fake news digitais de comunicação estão
No nosso caso, com toda essa am- são, também, efeito desse novo produzindo um “humanismo
biência de digitalização, devemos ethos? sem transcendência” ou seria
trabalhar e discutir o que é funda- uma nova ordem de transcen-
mental para a existência humana e Pedro Gilberto Gomes – É efei-
dência manifestada no alarga-
os tipos de valores que devemos afir- to de novo ethos, mas não se trata de
mento da noção de presença?
mar. Mais do que isso, a questão é pensar que foi esse novo ethos que
como devemos reinterpretar alguns criou as fake news. No momento em Pedro Gilberto Gomes – Eu
valores capazes de criar uma estru- que se colocam notícias falsas para não diria que são as redes sociais
tura para que a ação das pessoas seja ganhar algo ou mesmo para desfa- que produzem um humanismo sem
por elas balizada. Por exemplo, no zer o outro que é meu inimigo, há a transcendência. Hoje na Europa,
caso das fake news, se a pessoa tem possibilidade de fazer isso em nossas principalmente na França, há al-
acesso ilimitado à rede e não tem sociedades hipermidiatizadas sem guns filósofos que estão pensando
nenhum compromisso com a verda- depender de ninguém, muito menos em uma religião sem deus. A trans-
de instituições e com o agravante do cendência não é função das redes so-
3 A revista IHU On-Line publicou dois textos acerca des- anonimato. Por exemplo, o sujeito ciais, elas apenas expressam e aco-
se livro. O último na edição 519, de 9-4-2018, intitulado A
transformação do mundo em película pensante, disponível tem um desafeto e tem a chance de lhem todo esse modo de viver. Como
em http://bit.ly/2HUHHYO; e o Dos Meios à Midiatização. colocar uma foto comprometedora os paradigmas antigos não dão mais
Um Conceito em Evolução, na edição 517, de 18-12-2017,
disponível em http://bit.ly/2qTjTNq. (Nota da IHU On-Line) na rede e dizer qualquer coisa. Con- conta do que está acontecendo, esse

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REVISTA IHU ON-LINE

novo modo de ser no mundo da ins- to. Os companheiros dele pergunta- à educação, à alimentação, à saúde,
tantaneidade, da interconexão, está ram como ele poderia ser santo, já enfim, o direito de ser respeitado
fazendo com que as pessoas questio- que era ateu. “Esse é o meu proble- como tal. Aí, nesse tipo de trabalho,
nem uma série de valores que eram ma, como ser santo sem Deus”, era é que vamos fazer com que a ação de
estabelecidos, no que toca à religião a resposta do personagem. Esse é, fake news seja diminuída, porque a
e à transcendência. de novo, o grande questionamento censura não resolve.
No que corresponde ao tipo de so- da humanidade hoje, qual a trans- O que não podemos compactuar
ciedade que criamos, a questão da cendência que será construída, mas é com a impunidade, de modo que
transcendência será sempre um pro- isso, repito, não é criado pelas redes cada um é responsável pelos seus
blema para a humanidade. Porque a sociais. atos. Cada um faz o que quer, mas
transcendência vai dar um referente quem pratica atos ilegais deve ser
para além da história, que, segun-
do acreditamos, oferece uma saída
“Aquilo que responsabilizado. Não censurar não
é sinônimo de impunidade, mas de-
para nossas limitações e finitude. A
transcendência está presente e será
sempre existiu verá ser sempre uma ação por con-
sequência de uma ação anterior.
sempre um ponto de referência, mas
o que pode mudar é a referência à
é potenciali- Hoje, estamos claudicando nessa
tarefa porque queremos que nossos
transcendência. zado em uma direitos sejam respeitados, mas, ao
mesmo tempo, não queremos ser
Até agora, para grande parte da hu-
manidade, trata-se de uma entidade sociedade hi- punidos e nem respeitar os direitos
do outro. Essa é a ideia de uma for-
transcendente que nós tematizamos
como Deus. Hoje, por exemplo, a
perconectada” mação para combater ou minimizar
o problema das fake news.
esquerda é vista como uma religião,
mas não tem transcendência. Por IHU On-Line – Como pensar Com o jornalismo marrom nos Es-
outro lado, tem quem diga que a ver- o enfrentamento às fake news tados Unidos não houve censura,
dadeira religião é o capitalismo, de sem cair na censura? inclusive alguns jornais continuam
novo sem transcendência. Os mar- praticando esse tipo de jornalismo 27
Pedro Gilberto Gomes – [ri-
xistas diziam que o comunismo era até hoje, como no caso da Inglater-
sos seguidos de silêncio] A censura
a etapa final do capitalismo em que a ra, em que há jornais que perseguem
nunca é a melhor solução. O grande
pessoa do campo passava pelo capi- sistematicamente a família real
enfrentamento para a realidade das
talismo, mas ia em direção ao comu- inglesa. Se esses jornais ultrapas-
fake news é, justamente, um proble-
nismo. E o comunismo era colocado sarem os limites, são processados.
ma de educação, do desenvolvimen-
como uma religião, porque a pessoa Mas, voltando aos Estados Unidos,
to de uma consciência moral consti-
estava vivendo em determinado mo- o combate a esse jornalismo foi fei-
tuída em que valores fundamentais to por meio de educação na forma-
mento, mas tinha que acreditar na
promessa que estava sendo feita de da vida sejam explicitados e obser- ção do jornalista, desenvolvendo a
que lá adiante haveria a sociedade vados. Trata-se daquilo que comen- questão da objetividade da notícia, o
perfeita do comunismo, no entanto tei no início, de um novo pacto re- famoso “quem fez o quê como aonde
nós vimos que não aconteceu. Esta publicano em que há coisas que não e por quê” e a redação de notícias em
é uma ideia que está muito presente devemos fazer não porque são legal- pirâmide invertida. Esse tipo de jor-
na vida em sociedade, mas a questão mente proibidas, mas porque temos nalismo causou influências no mun-
é o tipo de transcendência que esta- valores. Assim como existem coisas do todo e a origem foi a emergência
mos construindo, que tipo de visão de proibidas que são feitas em busca de do jornalismo marrom, que causou
transcendência está surgindo hoje na um bem maior. uma relação tremendamente com-
ambiência que estamos vivendo. plicada para o campo porque as pes-
Nós temos que fazer o trabalho nes-
soas o estavam rejeitando. Estamos
Enquanto eu dava esta resposta ta dimensão com as pessoas para o
no mesmo dilema, de modo que ou
lembrei de um personagem de Al- desenvolvimento de princípios uni-
criamos alguma coisa ou as pessoas
bert Camus4, no livro A peste (Rio versais autoescolhidos. Esses prin-
acabarão rejeitando. Essa é a grande
de Janeiro: Record, 1997), que se cípios também deverão ser relidos
discussão da fake news hoje. Daí a
passa na cidade de Orã (na Argélia), e reestruturados a partir dessa nova
necessidade de um novo pacto social
que foi cercada. Dentre os protago- ambiência, porque existe uma dupla e republicano para podermos convi-
nistas, havia um que era ateu e cujo face. Não se trata, simplesmente, ver, que permita sermos pessoas hu-
grande projeto de vida era ser san- de resgatar um princípio do século manas e honestas.
XVIII e fazer valer em nossa realida-
4 Albert Camus (1913-1960): escritor, novelista, ensaísta
e filósofo argelino. Confira a entrevista Camus entre a de, o que as religiões fazem às vezes.
emoção e a graça, concedida por Waldecy Tenório e para
IHU On-Line em 3-2-2010, disponível em http://bit.ly/
Trata-se do respeito à diferença, ao IHU On-Line – No fundo o que
ihu030210. (Nota da IHU On-Line) diálogo, o respeito à vida, o direito está acontecendo é uma reor-

EDIÇÃO 520
TEMA DE CAPA

ganização da economia política começando, mas não temos ideia de o que fazer. A solução não é censu-
da comunicação... como vai terminar. Eu certamente rar, mas educar, compreender, ar-
não verei esse processo na plenitude, ticular dentro dos saberes, tendo a
Pedro Gilberto Gomes – Exata-
talvez os netos das gerações que es- percepção de que a midiatização das
mente. Há toda uma reorganização,
tão entrando na universidade agora sociedades veio para ficar. No fundo,
inclusive ela é uma nova ambiência,
poderão ver. não é uma questão binária de socie-
um novo modo de ser e viver em so-
ciedade. Sabemos como está o ce- É importante discutir as fake news, dade e midiatização, é uma coisa só,
nário? Sabemos somente como está colocar em pauta, conversar para ver está mudando tudo.■

Leia mais
- Um projeto para o nosso tempo. Artigo de Pedro Gilberto Gomes publicado nas Notícias
do Dia, de 19-3-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, disponível em http://bit.
ly/2goQc2V.
- A nova versão do meio como mensagem. Entrevista especial como Pedro Gilberto
Gomes publicada na revista IHU On-Line, nº 357, de 11-4-2011, disponível em http://bit.
ly/2gH9PUq.
- A tecnologia digital está colocando a humanidade num patamar distinto. Entrevista es-
pecial como Pedro Gilberto Gomes publicada na revista IHU On-Line, nº 289, de 13-4-2009,
disponível em http://bit.ly/2gcdLsK.
- O impacto da midiatização na sociedade latino-americana. Entrevista especial com
Pedro Gilberto Gomes publicada nas Notícias do Dia, de 30-8-2008, no sítio do Instituto Hu-
manitas Unisinos - IHU, disponível em http://bit.ly/2fZrhCv.
28
- Processo de midiatização: da sociedade à Igreja. Entrevista especial com Pedro Gilberto
Gomes publicada nas Notícias do Dia, de 18-11-2007, no sítio do Instituto Humanitas Unisi-
nos - IHU, disponível em http://bit.ly/2gtPIG6.
- Processos Midiáticos e Construção de Novas Religiosidades. Cadernos IHU ideias, edi-
ção nº 8, disponível em http://bit.ly/2gtMAdl.
- Teologia e Comunicação: reflexões sobre o tema. Cadernos IHU ideias, edição nº 12,
disponível em http://bit.ly/2gHaTro.

23 DE ABRIL | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

O sonho libertário virou


o pesadelo da liberdade
Para Ricardo Campos, é necessário não deixar de lado
instituições caras à consolidação das democracias
modernas, adaptando-se aos tempos digitais
Ricardo Machado | Edição: Vitor Necchi

U
ma das consequências da dis- ressalva que, da maneira como foi feito,
seminação desenfreada de fake não há perigo de censura.
news são as tentativas de coi- Frente à expansão de fake news, co-
bi-las, mas surgem outros problemas, gita-se a possibilidade de robôs avalia-
como a possibilidade de censura. Na rem conteúdos supostamente falsos.
Alemanha, por exemplo, conforme o
“O grande risco de se gerar conteúdo
professor Ricardo Campos, a lei prevê
falso é de se criar uma esfera pública
que as próprias plataformas excluam o
artificial, que não condiz com a real
conteúdo ilegal em 24 horas, caso con-
expressão da representatividade dos
trário a pena é o pagamento de uma
meios de comunicação ou mesmo da
multa de 50 milhões de euros. “Isso
sociedade”, avalia Campos. “Tornar
acabou por gerar ‘chilling effects’, nos
a esfera pública artificial é um perigo 29
quais as empresas, para evitar dúvidas
para os regimes democráticos, mas
de interpretação posterior, acabam por
pode ser um bom fator de estabilização
excluir muitos conteúdos tidos como
para sociedades que não precisam ou
limítrofes ou mesmo legais”, comenta
não querem lidar com a pluralidade,
em entrevista concedida por e-mail à
como regimes autoritários.”
IHU On-Line.
Ricardo Campos é assistente de
Campos trabalhou na elaboração de
um projeto de regulação de fake news docência na cátedra de Direito Público
no Brasil que deve ser votado no início e Teoria do Direito da Goethe Unive-
do próximo ano. “Terminamos a lei an- rität Frankfurt am Main. É mestre em
tes mesmo dos escândalos atuais, o que Teoria do Direito pela Goethe Uni-
colocou ainda mais a necessidade de versität, Frankfurt am Main. Cursou
uma regulação inteligente no debate”, graduação em Direito na Universida-
afirma. “Colocamos no centro parâme- de Federal de Juiz de Fora, na Goethe
tros mais rígidos para o reconhecimen- Universität Frankfurt am Main e na
to de uma autoridade de autorregula- Universität Passau.
ção a ser criada pelas redes sociais.” Ele Confira a entrevista.

IHU On-Line – Há leis inter- Ricardo Campos – Sim, há pro- ano está em vigor a Netzwerkdur-
nacionais que estabelecem a postas legislativas, como na França e chsetzungsgesetz, a qual visa imple-
retirada de conteúdos falsos no Brasil, e leis concretas, como na mentar padrões de condutas legais
das redes sociais? Quais são? Alemanha. No caso do Brasil e da nas redes sociais.
Que efetividade têm na regula- França, é difícil visualizar qual pro-
ção desses textos, dado que as posta será por fim convertida em lei,
corporações que as propagam, o que apenas aumenta a especulação IHU On-Line – Como comba-
como Facebook e Google, são em torno do tema. Na Alemanha, ter a produção das fake news
globais? por sua vez, desde outubro do último sem escorregar na censura?

EDIÇÃO 520
TEMA DE CAPA

Ricardo Campos – O caminho uma instituição de autorregulação. jurisdição para os casos de remoção
alemão da nova lei de fato dá ensejo a Entretanto, muito tem-se criticado de conteúdo. Ou seja, não há perigo
se questionar sobre o perigo da cen- nos debates sobre a lei alemã espe- de censura nesse projeto em detri-
sura. Mesmo nos debates no parla- cialmente a forma como foi regula- mento de tantos outros que correm
mento alemão durante a tramitação, mentada a hipótese de inserção da no Congresso Nacional atualmente,
esse foi um dos temas colocados em autorregulação. Ela foi prevista para os quais chegam até a ser perigosos
questão, pois a lei alemã prevê que os casos limítrofes, ou seja, em que para a tradição brasileira da liberda-
as próprias plataformas devem ex- não se tem certeza sobre a ilicitude de de expressão.
cluir conteúdo manifestamente ile- ou não do conteúdo veiculado em re-
gal num prazo de 24 horas, sob pena des sociais. À primeira vista, parece
de multa de 50 milhões de euros. uma boa solução. Porém, devido aos IHU On-Line – O Direito, que
Entretanto, até então, a remoção de “chilling effects” decorrentes da pe- parece estar formatado ainda
conteúdo somente era possível por sada multa de 50 milhões de euros, a aos moldes da imprensa de Gu-
sentença judicial, reservados casos previsão regulamentar da autorregu- temberg, organizou sua prática
em que a remoção decorria de viola- lação ficou apenas no plano simbóli- e produziu inúmeros manuais
ção dos termos de uso da rede social, co, visto que as empresas preferem e constituições. Contudo, como
como o de pornografia. Isso acabou remover todo conteúdo antecipada- a dobra do mundo em sua ver-
por gerar “chilling effects”, nos quais mente, a entrar na autorregulação. são digital exige do campo um
as empresas, para evitar dúvidas de Não há incentivos para se entrar na outro tipo de abordagem sobre
interpretação posterior, acabam por autorregulação, pelo contrário. esses desafios? De que ordem
excluir muitos conteúdos tidos como eles são?
limítrofes ou mesmo legais.
Ricardo Campos – Nosso direito
IHU On-Line – O senhor acre-
moderno e a sociedade moderna são
dita que essas experiências po-
produto de duas grandes aquisições
“Aprender deriam ser aplicadas no Brasil?
Ricardo Campos – Sim, com cer-
evolutivas: a impressa e a dimensão
organizacional da sociedade. Se ob-
30 com os erros teza. Aprender com os erros princi- servarmos com cuidado a gramática
palmente e incorporar os acertos de social, grande parte do conhecimen-
principalmente experiências internacionais como a to social vinha sendo gerado e repro-

e incorporar
da Alemanha é de suma importân- duzido dentro de organizações. Nos
cia. Não podemos ser ingênuos em setores alimentício, farmacêutico,

os acertos de achar que inventaremos novamente


a roda, ou que iniciaremos a história
nas universidades, nos hospitais e
também, como grande tema do so-
experiências de um novo marco zero. Trabalhei
num projeto de regulação de fake
ciólogo Max Weber2, a burocracia
estatal. Esse conhecimento social
internacionais news, que devido à janela atual fe-
chada pelas eleições de outubro do
manejado por organizações passa a
ser confrontado com uma nova dinâ-
como a da Congresso Nacional, será submetida
no início do próximo ano. Termina-
mica surgida depois da Internet.

Alemanha mos a lei antes mesmo dos escânda-


los atuais, o que colocou ainda mais
O jornalismo, em especial, tem
sentido isso. Antes, o jornalismo

é de suma a necessidade de uma regulação in-


teligente no debate. Colocamos no
vinculado a organizações, grandes
veículos da democracia de massa,
importância” centro parâmetros mais rígidos para
passa por uma crise profunda depois
da Internet. Se, por um lado, não se
o reconhecimento de uma autori-
dade de autorregulação a ser criada exige mais um vínculo organizacio-
IHU On-Line – Na Alemanha, pelas redes sociais. E tudo isso res- nal para se produzir conteúdo, por
está em desenvolvimento a pro- peitando o art. 19 do Marco Civil da
posta de criação de um marco Internet1, que impõe a reserva de
trai os princípios das consultas públicas. Entrevista especial
com Marcelo Branco, publicada em 13-11-2012, disponível
normativo que obriga as em- em http://bit.ly/W6Z20a; e Por um Marco Civil da Inter-
net. Entrevista especial com Marcel Leonardi, publicada em
presas que produzem conteúdo 1 Marco Civil da Internet: é uma iniciativa legislativa, 15-12-2009, disponível em http://bit.ly/1ch1JY7. (Nota da
à autorregulação. De modo que surgida no final de 2009, para regular o uso da Internet
no Brasil, por meio da previsão de princípios, garantias,
IHU On-Line)
2 Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, considera-
quem não cumprir certos parâ- direitos e deveres de quem usa a rede, e da determinação do um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante e o
de diretrizes para a atuação do Estado. Confira o amplo espírito do capitalismo (São Paulo: Companhia das Letras)
metros, como ter autoria dos material veiculado no sítio do Instituto Humanitas Unisi- é uma das suas mais conhecidas e importantes obras. A
textos, descumpre a lei. Do que nos - IHU sobre o tema. O que está em jogo com o Marco IHU On-Line dedicou-lhe a sua edição 101, de 17-5-2004,
Civil da Internet, artigo de Carmen Carvalho publicado intitulada Max Weber. A ética protestante e o espírito do
se trata essa proposta? em 14-11-2013, disponível em http://bit.ly/1b8A0IP; Mar- capitalismo 100 anos depois, disponível em http://bit.ly/
co Civil da Internet: “PL coloca o Brasil na vanguarda da ihuon101. Sobre Max Weber, o IHU publicou o Cader-
Ricardo Campos – De fato a lei regulação da rede”. Entrevista especial com Carlos Affon-
so Pereira de Souza, publicada em 20-9-2013, disponível
nos IHU em Formação nº 3, de 2005, chamado Max We-
ber – o espírito do capitalismo disponível em http://bit.ly/
alemã prevê o reconhecimento de em http://bit.ly/17OpzaR; Marco Civil da Internet: projeto ihuem03. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

outro não se exige a necessidade do zação do papel das organizações na que a Internet democratizaria e
papel. Isso também ocorre com a sociedade moderna. O conhecimen- tornaria o mundo mais transparen-
economia. A organização banco e a to social passa a ser gerado pela In- te. Os “libertarians” levaram esse
impressão de papel eram o centro. teligência Artificial e por robôs. Essa slogan e até fizeram uma declara-
Novas tecnologias do mundo digi- expressão mediática é ainda somen- ção de uma constituição digital.
tal, como blockchain3, colocam em te a primeira delas. Teremos ainda A Primavera Árabe talvez seja um
xeque esses dois pilares: a geração no âmbito da medicina, temos já os contraexemplo sintomático. Ali a
de confiança não necessita de orga- smart contracts6 e assim por diante. Internet revelou uma face desagre-
nização, e a impressão de papel per- Problemas surgirão, como o da res- gadora de estruturas totalitárias,
de sentido. A máquina de impressão ponsabilidade civil. Quem responde- o que, à primeira vista, é um con-
de Gutenberg4 passa a ser mais uma rá pelos danos causados? Somente traconceito assimétrico no sentido
peça de museu. Como diria Marshall um sistema de securitização? de Koselleck8. Não há como ser
McLuhan5, the medium is the mes- contra, ou seja, não há como não
sage, e a nova mensagem é o mundo ver a virtude dessa faceta. Porém,
digital, e não mais a impressão ou IHU On-Line – Como o se- as redes sociais revelaram também
mesmo a televisão. nhor vê a possibilidade de ro- a pouquíssima capacidade de re-
bôs (bots) avaliarem conteúdos construir instituições democráticas
supostamente falsos? Quais as estáveis. Quase todos os países da
IHU On-Line – Ainda sobre o potencialidades e os riscos? Primavera Árabe mergulharam em
tema do Direito e da Moderni- um estado de anomalia social, em
Ricardo Campos – O grande
dade, radicalmente fundamen- que o pior exemplo é a Síria. Elas
risco de se gerar conteúdo falso é
tados em uma visão antropo- destroem, mas não constroem. So-
de se criar uma esfera pública arti-
cêntrica, quais são os desafios mado a isso, vivemos os escanda-
ficial, que não condiz com a real ex-
para se pensar a regulação losos casos de propaganda falsa di-
pressão da representatividade dos
midiática em um contexto em rigida constatada como fraude dos
meios de comunicação ou mesmo
que os robôs (bots) passam a meios de comunicação pela justiça
da sociedade. E vale lembrar que
assumir certo protagonismo na americana nas eleições de Trump9.
a democracia moderna não surge
circulação de conteúdos (falsos
apenas com a institucionalização Cada vez mais se vê a necessidade 31
ou não)? de não deixar de lado instituições
de um sistema de governo, mas
Ricardo Campos – Esse é outro perpassa a formação de uma esfera caras à consolidação das demo-
problema que surge da descentrali- pública que serve tanto de orienta- cracias modernas, logicamente se
ção quanto de censor dos proble- adaptando aos tempos digitais. O
mas sensíveis de uma sociedade. sonho libertário virou o pesadelo
3 Blockchain: conhecido como “protocolo da confiança”,
trata-se de uma tecnologia que visa a descentralização Tornar a esfera pública artificial da liberdade.
como medida de segurança. São bases de registros e
dados distribuídos e compartilhados que têm a função é um perigo para os regimes de-
de criar um índice global para todas as transações que
ocorrem em um determinado mercado. Funciona como mocráticos, mas pode ser um bom
um livro-razão, só que de forma pública, compartilhada fator de estabilização para socieda- de manifestações, compreendendo o Oriente Médio e o
e universal, que cria consenso e confiança na comunica- Norte da África. Houve revoluções na Tunísia e no Egito,
ção direta entre duas partes, ou seja, sem o intermédio de des que não precisam ou não que- uma guerra civil na Líbia e na Síria; grandes protestos na
terceiros. Está constantemente crescendo à medida que Argélia, em Bahrein, em Djibuti, no Iraque, na Jordânia,
novos blocos completos são adicionados a ela por um
rem lidar com a pluralidade, como em Omã e no Iémen e protestos menores no Kuwait, no
novo conjunto de registros. Os blocos são adicionados à regimes autoritários. Líbano, na Mauritânia, no Marrocos, na Arábia Saudita,
blockchain de modo linear e cronológico. Cada nó – qual- no Sudão e no Saara Ocidental. Nos protestos, ocorriam
quer computador que conectado à essa rede tem a tarefa técnicas de resistência civil em campanhas sustentadas
de validar e repassar transações – obtém uma cópia da envolvendo greves, manifestações, passeatas e comícios,
blockchain após o ingresso na rede. A blockchain possui bem como o uso das mídias sociais, como Facebook, Twit-
informação completa sobre endereços e saldos direta- IHU On-Line – Como o senhor ter e Youtube, para organizar, comunicar e sensibilizar a
mente do bloco gênese até o bloco mais recentemente população e a comunidade internacional em face de ten-
concluído. É vista como a principal inovação tecnológica
caracteriza a chamada esfera tativas de repressão e censura na internet por partes dos
do bitcoin, visto que é a prova de todas as transações na pública digital? Não parece ha- Estados. (Nota da IHU On-Line)
rede. Seu projeto original tem servido de inspiração para o 8 Reinhart Koselleck (1923-2006): um dos mais impor-
surgimento de novas criptomoedas e de bancos de dados ver aí um salto quântico comu- tantes historiadores alemães do pós-guerra, destacan-
distribuídos. (Nota da IHU On-Line)
4 Johannes Gutenberg (1398-1468): inventor e gráfico
nicacional? do-se como um dos fundadores e o principal teórico da
História dos Conceitos. As suas investigações, ensaios e
alemão que introduziu a forma moderna de impressão monografias cobrem um vasto campo temático. No geral,
de livros – a prensa móvel –, que possibilitou a divul- Ricardo Campos – Sim e não. pode-se dizer que a obra de Koselleck gira em torno da
gação e cópia muito mais rápida de livros e jornais. Sua história intelectual da Europa ocidental do século 18 aos
invenção do tipo mecânico móvel para impressão come-
Houve uma crença nas últimas dé- dias atuais. Também é notável o seu interesse pela Teoria
çou a Revolução da Imprensa e é amplamente considera- cadas até a Primavera Árabe7 de da História. (Nota da IHU On-Line)
do o evento mais importante do período moderno. Teve 9 Donald Trump (1946): Donald John Trump é um empre-
um papel fundamental no desenvolvimento da Renas- sário, ex-apresentador de reality show e atual presidente
cença, da Reforma e da Revolução Científica. Lançou as dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump foi eleito
bases materiais para a moderna economia baseada no 6 Smart contracts (contrato inteligente): é um protocolo o 45º presidente norte-americano pelo Partido Republi-
conhecimento e na disseminação da aprendizagem em de computador autoexecutável, criado com a populari- cano, ao derrotar a candidata democrata Hillary Clinton
massa. (Nota da IHU On-Line) zação das criptomoedas, feito para facilitar e reforçar a no número de delegados do colégio eleitoral; no entanto,
5 Marshall McLuhan (1911-1980): sociólogo canadense. negociação ou desempenho de um contrato, proporcio- perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras estão o pro-
Fez, em suas obras, uma crítica global da cultura, apon- nando confiabilidade em transações on-line. O objetivo tecionismo norte-americano, por onde passam questões
tando o fim da era do livro, com o domínio da comuni- principal é permitir que pessoas desconhecidas façam econômicas e sociais, como a relação com imigrantes nos
cação audiovisual. Seus principais livros são A galáxia de negócios de confiança entre si, pela Internet, sem a ne- Estados Unidos. Trump é presidente do conglomerado The
Gutenberg (1962) e O meio é a mensagem (1967). Confira a cessidade de intermédio de uma autoridade central. (Nota Trump Organization e fundador da Trump Entertainment
edição 357 da IHU On-Line, de 11-4-2011, intitulada 100 da IHU On-Line) Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, vida pessoal,
anos de McLuhan: um teórico de vanguarda, disponível em 7 Primavera Árabe: os protestos no mundo árabe ocor- riqueza e modo de se pronunciar contribuíram para torná
http://bit.ly/oZJlrh. (Nota da IHU On-Line) ridos de 2010 a 2012 foram uma onda revolucionária -lo famoso. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 520
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – Ainda faz sen- citado por Heidegger11, onde mora o de grandes princípios de orienta-
tido pensar em democracia em perigo, é lá que também cresce o que ção de conduta social. Essa tradi-
um contexto comunicacional pode salvar. ção da antiga Europa se apresenta
radicalmente impactado pelas atualmente como uma crônica da
tecnologias de comunicação e morte anunciada. Já temos visto
redes digitais? De que ordem é IHU On-Line – Quais os desa- o desastre que a teoria dos princí-
esta democracia? fios de se produzir um projeto de pios tem feito no direito brasilei-
ética alinhado às perspectivas de ro, um direito frágil, barroso, que
Ricardo Campos – Não há como
transformação de nosso tempo? destrói toda a função da dogmáti-
abrir mão da democracia. Especial-
ca jurídica em construir condições
mente em sociedades complexas e Ricardo Campos – Acredito
de decidibilidade frente à crescen-
pós-convencionais, onde consensos muito pouco nessas construções
te complexidade social, orientan-
não mais podem ser pressupostos e
do expectativas sociais de forma
têm um custo muito alto de ser al-
poeta lírico e romancista alemão. Conseguiu sintetizar na mais ou menos estáveis e previsí-
cançado. Estruturar o dissenso das sua obra o espírito da Grécia antiga, os pontos de vista ro-
mânticos sobre a natureza e uma forma não ortodoxa de veis. Assim como surgiu uma tira-
várias pretensões sociais, a plurali- cristianismo, alinhando-se hoje entre os maiores poetas nia dos princípios no direito bra-
dade de visões de mundo, pode ser germânicos. Em 1788, iniciou seus estudos em Teologia
na Universidade de Tübingen, como bolsista. Lá conhe- sileiro, para fazer uma alusão ao
concebido somente dentro de uma ceu Hegel e Schelling, que mais tarde se tornariam seus
amigos. Devido aos recursos limitados da família e de sua livro de Carl Schmitt 12, transplan-
democracia. E num país como o recusa em seguir uma carreira clerical, Hölderlin traba- tar isso para âmbitos tecnológicos
Brasil, onde a população é bem he- lhou como tutor para crianças de famílias ricas. Em 1796,
foi professor particular de Jacó Gontard, um banqueiro como o das redes sociais não faz
terogênea, e com um alto grau de de Frankfurt, cuja esposa, Susette, viria a ser seu grande
sentido. Não se trata de dizer que
regionalização e desigualdade, não amor. Susette serviu de inspiração para a composição de
Diotima, protagonista de seu romance epistolar Hyperion. implementaremos a dignidade da
há alternativa à democracia. Mes- Sobre Holderin, a IHU On-Line publicou a edição número
475, em 19-10-2015, intitulada Hölderlin. O trágico na noi- pessoa humana na Internet. Já es-
mo que isso tenha um alto custo. O te da Modernidade, disponível em http://migre.me/slLPN.
tamos amadurecidos o suficiente
ponto central é estabelecer formas (Nota da IHU On-Line)
11 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo alemão. Sua para vermos que o que precisamos
inteligentes de regulação, em que o obra máxima é O ser e o tempo (1927). A problemática
heideggeriana é ampliada em Que é Metafísica? (1929), são de soluções inovadoras e in-
potencial criativo das empresas não Cartas sobre o humanismo (1947) e Introdução à metafí- teligentes, e não de princípios de
32 seja bloqueado, mas que ao mes- sica (1953). Sobre Heidegger, confira as edições 185, de
19-6-2006, intitulada O século de Heidegger, disponível boas intenções. ■
mo tempo os efeitos danosos das em http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 3-7-2006, intitulada
Ser e tempo. A desconstrução da metafísica, disponível em
tecnologias de comunicação sejam http://bit.ly/ihuon187. Confira, ainda, Cadernos IHU em
combatidos de forma eficaz. Temos Formação nº 12, Martin Heidegger. A desconstrução da me-
tafísica, que pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem12,
grandes estudiosos em todas as áre- e a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da 12 Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo político e
revista IHU On-Line, de 10-5-2010, disponível em https:// professor universitário alemão. É considerado um dos
as, e também uma crise política, que goo.gl/dn3AX1, intitulada O biologismo radical de Nietzs- mais significativos e controversos especialistas em direito
é sempre uma nova chance. Como che não pode ser minimizado, na qual discute ideias de constitucional e internacional da Alemanha do século 20.
sua conferência A crítica de Heidegger ao biologismo de A sua carreira foi manchada pela sua proximidade com o
diz o romancista alemão Hölderlin10 Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do regime nacional-socialista. O seu pensamento era firme-
ciclo de estudos Filosofias da diferença, pré-evento do XI mente enraizado na teologia católica, tendo girado em
Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da torno das questões do poder, da violência, bem como da
10 Johann Christian Friedrich Hölderlin (1770-1843): vida humana. (Nota da IHU On-Line) materialização dos direitos. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

Investir na apuração para enfrentar


as fake news é como remendar
um cano furado
Para Antônio Fausto Neto, é preciso repensar e ressignificar todo
o sistema que gera as notícias falsas e não apenas ficar
pontualmente tentando desmentir o que está em circulação
Ricardo Machado e João Vitor Santos

A
sociedade de hoje é atravessada surgir um “processo de letramento, edu-
pelas lógicas dos processos comu- car a sociedade para compreender o pro-
nicacionais. É o que o jornalista e tocolo de comunicação no qual ela vive,
professor Antônio Fausto Neto compre- desautomatizar a comunicação”. Consis-
ende como sociedade em vias de midia- te numa forma de pensar que coloca o su-
tização. Em linhas gerais, é a mudança jeito como alguém realmente ativo e in-
no tecido social imposta por processos teracional no processo, e não um simples
comunicacionais e catapultados por dis- reprodutor de informações que circulam
positivos tecnológicos, como a internet e pela rede. “Se nós estamos no processo,
as redes sociais. Não há mais um emis- há um convite desse nível pedagógico
sor e um receptor. Somos todos emissor e acadêmico no sentido de desenvolver
e receptor o tempo inteiro e para todo o uma autorreflexão sobre o processo no 33
lado. Não é difícil deduzir que desse ce- qual estamos engajados”, sintetiza. “O
nário podem surgir informações falsas problema não é mais do dispositivo, pois
ou mesmo opiniões impostas como ver- somos nós os atores do dispositivo”.
dade. Como enfrentar?
Antônio Fausto Neto é graduado
Fausto, na entrevista concedida pre- em Jornalismo pela Universidade Fe-
sencialmente à equipe da IHU On-Li- deral de Juiz de Fora, mestre em Comu-
ne, destaca que não há uma forma nicação pela Universidade de Brasília e
definitiva de enfrentamento. Ele pre- doutor em Sciences de La Comunication
fere ir pelo caminho que consiste em Et de L’information - Ecole des Hautes
compreender o processo de midiatiza- Etudes en Sciences Sociales, da França.
ção como um todo e a forma que se Atua como pesquisador e professor do
estabelecem as fake news. É algo mais Programa de Pós-graduação em Ciên-
complexo do que um processo de che- cias da Comunicação da Universidade
cagem, como alguns propõem. “Isso é do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos e
uma ação, mas não uma ação sobre o também como presidente do Centro
sistema. Precisamos pensar e agir so- Internacional de Semiótica e Comuni-
bre o sistema”, pontua. Para o profes- cação - Ciseco. Entre seus livros publi-
sor, “fazer só a checagem seria como cados, destacamos O impeachment da
detectar vazamentos num cano de flu- televisão (1995); Ensinando à TV Esco-
xos de água e colocar um rebite. Não la (2001); Lula Presidente - Televisão e
se está agindo sobre o sistema como política na campanha eleitoral (2003);
um todo. Precisamos pensar de forma e O mundo das mídias (2004).
reflexiva sobre esses processos”.
E é dessa reflexão que imagina que pode Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como as socie- Antônio Fausto Neto – Durante mos chamar de estruturas e seus res-
dades em vias de midiatização muitos séculos, a expressão da socie- pectivos campos operadores, no sen-
produzem um novo modo de dade, de sua organização social, se tido de que passava pelos campos a
ser/estar no mundo? fundou em estruturas, as quais pode- expressão de saberes, de disciplinas,

EDIÇÃO 520
TEMA DE CAPA

de éticas, de conhecimentos. Dentro ção social. Isso ganha uma expres- cimento etc. Ou seja, se instaura um
dessa configuração organizacional, são forte na medida em que temos novo circuito, uma nova condição
a comunicação se constituía um ele- no seu bojo o aparecimento do fenô- de circulação, não mais fundada em
mento co-cooperador. É a ideia da meno internet, que não é uma revo- dois, no polar, mas fundada numa
comunicação como uma atividade lução tecnológica abstrata, mas uma atividade em que as características
simbólica, mas, fundamentalmen- revolução técnica, porque incide so- de emissão e recepção são frágeis e
te, que ganha um nível exponencial bre as relações sociais, apontando essas passam quase a ser caracterís-
quando os meios aprecem como para um novo tipo de relações sócio- ticas mutantes.
lugares que seriam organizadores técnicas, com elos e vínculos sociais
de interações, seriam instâncias de fortemente vigidos por elas. E não é
tematização do que se passava nos só isso: a própria condição do aces- IHU On-Line – E todo esse
outros campos e também num certo so à rede internet e seu consequente contexto, inevitavelmente, al-
âmbito de regulação/gestão da ati- funcionamento é uma revolução. tera as relações sociais entre as
vidade na sociedade. É nesse con- pessoas, instituindo uma nova
texto que aparece essa expressão Revolução e transforma- concepção de sociedade. Cor-
dos meios como o quarto poder, um ções decorrentes dela reto?
poder fiscalizatório, um poder de Antônio Fausto Neto – Sim. É
auxiliar das atividades dos outros E é uma revolução e uma evolução
por isso que dizemos que a midiati-
três poderes. na medida em que reformula o nos-
zação afeta todo os circuitos, criando
so contato com o conhecimento, o
Entretanto, dentro disso, há uma uma nova sociedade, uma nova am-
nosso contato com as instituições e
proeminência desse campo cuja ges- biência. Estamos todos nisso. Não se
o nosso contato com o outro. O fato
tão técnico-simbólica apontava para trata de uma revolução que afetou
de todos podermos ascender a ní-
uma problemática pelo fato de ser apenas a instância comunicacional
veis num processo de interação com
ele um elo de contato com os demais no nível profissional e industrial, é
muito maior velocidade e menos
campos. Isso está na consagrada li- uma mutação que se produz no te-
obstáculos produz uma reformula-
teratura que trata da sociedade dos cido e na própria organização social.
ção na arquitetura comunicacional
Esse fazer em companhia, fundado
34 meios. Tal perspectiva vale por mui- ou na arquitetura dos processos in-
tos anos, porque é uma transição de em elos, é atravessado por essa ló-
teracionais. E isso se dá porque é aí
um momento em que a sociedade gica e a cultura do capitalismo con-
que ganha corpo uma ação intensa
estava configurada por disciplinas, temporâneo, do que chamamos do
de comunicação exponenciada pela
campos, cujas interfaces se passavam capitalismo líquido. E isso tem uma
internet, o que nós vamos chamar de
em respeito às fronteiras respectivas consequência em nossa vida quando
desenvolvimento dos processos de
desses lugares, desses campos. somos convidados a fazer menos pe-
midiatização.
los elos organizacionais, pelos elos
O que acontece num ciclo que é Qual o efeito disso mais imediato? da burocracia, pelos elos das lealda-
muito rápido – afinal, 50 anos não Transformação de grandes polos ge- des comunitárias e fazer por si mes-
são nada em termos históricos – é radores da atividade interacional, mo. É a lógica da cultura autoinstru-
uma transformação dessa organiza- polos industriais tecnológicos, mí- cional, faça por si mesmo, crie por
ção formada em campos, ou numa dias, e o polo societário, a recepção, si mesmo. Isso é uma consequência
atividade interacional de campos a transformação disso de uma rela- sobre o que depois você vai acabar
— como os campos jurídico, econô- ção ‘um para todos’ de ‘todos para chamando de fake news.
mico, científico etc. — para uma ati- todos’. E isso tem muitas consequ-
Assim, a midiatização gera muitos
vidade interacional que passa a ter ências. A mais imediata significa a
efeitos e impactos e, talvez, o mais
como seu protagonismo não mais os quebra dessa bipolaridade, dessa
importante e que damos pouca aten-
meios como lugares organizadores, atividade irradiadora e, com isso, o
ção, porque foi pouco estudado, é a
mas a expressão de lógicas e opera- esmaecimento do trabalho institu-
transformação da circulação, ou as
ções midiáticas como uma espécie cional da comunicação. É a possibi-
transformações das condições de cir-
de referência constituinte de um lidade de fazer em companhia que se
culações de mensagem e de sentidos.
novo modelo de sociedade. Por ou- configura e isso é a possibilidade de
Há um novo cenário que gera muitas
tras palavras: as práticas sociais de transferência do fazer de instituições
consequências do ponto de vista téc-
outros campos continuam a funcio- midiáticas para a sociedade.
nico, ético, jurídico, social e simbó-
nar, mas, agora, altamente permea-
Havia um conhecimento sólido de lico. Esse cenário se caracteriza pela
das por lógicas e operações midiáti-
que os meios eram os geradores de transformação das instituições, pois
cas que atravessam todas as práticas
conhecimentos, segundo suas lógi- todas passam a ser atravessadas com
sociais, ainda que de forma diversa.
cas próprias, para uma situação em preocupações e injunções de cultura
Então, a comunicação que era um que isso tudo se fratura. Dessa fra- midiática, e dos próprios meios de
elo, um elemento, passa a ser uma tura, todos se tornam geradores e uma atividade clássica para uma ati-
referência constituinte da organiza- receptores de informação, de conhe- vidade ultraespecífica ou bastante

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REVISTA IHU ON-LINE

singular, que são as chamadas ins- sequência dessa sociedade em sistema todo de produção de cren-
tituições industriais que se valem de vias de midiatização? ças e sentidos repousava sobre uma
técnicas digitais. É o Facebook, por noção regulatória, verificacionista.
Antônio Fausto Neto – Sim,
exemplo. Mas havia uma condição adversativa
pois os modelos de comunicação
sobre esse fazer, essa oferta comuni-
E aí se cria um novo cenário comu- eram fundados na noção de auto-
cativa. Havia leis que ainda resulta-
nicacional e informacional que se ralidade. Quando se pensar num
vam remanescentes desse processo
complexifica no sentido de seu de- modelo de comunicação, sobretudo
contratual societário.
senvolvimento, mas, também, de seu comunicação massiva, ela é fundada
funcionamento. As ideologias que nas referências de um circuito técni-
fundamentam essa mutação conta- co industrial pesado, nessa noção de IHU On-Line – O que passa de
vam como se estivéssemos criando autoralidade – o sistema de produ- uma coisa para outra? O que
a rede das redes e apontando que ção era repousado numa estrutura provoca essa mudança?
estávamos criando mais uma noção complexa, eram os jornalistas que
de transparência. Mas essas ideolo- faziam –, repousava na ideia de me- Antônio Fausto Neto – Na me-
gias são de engenheiros, de lógicas diação e de certas mediações dos ex- dida em que desaparece a autora-
lineares que supunham que todo o perts, o jornalista, e havia ainda dis- lidade, na medida em que essa au-
processo de mutação de sociedade se positivos regulatórios de retroação. toria, a fonte, ela se embevece dos
dava de um modo linear, que as re- instrumentos e insumos midiáticos
As práticas jornalísticas eram fun- e passa a fazer o trabalho que o jor-
des gerariam isso e aquilo como con-
sequência. Mas o que vemos? Quan- dadas sobretudo nas verdades, suas nalista fazia. Na medida em que a
to mais rede, mais nebulosidade, ideologias, instrumentais, mas per- mediação não só jornalística, mas
mais obscurantismo. Quanto mais passadas também por referências todas as estruturas mediadoras
expansão, mais encolhimento, quan- cujo horizonte apontava que se po- esmaecem a vida social, a tarefa
to mais funcionamento de ações de deria ir só até certo ponto. Isso por- do jornalista, do médico, é cada
mídia, mais a sociedade gera contra- que havia um pacto chamado con- vez mais atravessada pelo auto-
pontos e pontos e estratégias de fuga trato social. As nossas gramáticas diagnóstico, todos os processos de
a esses processos. Quanto mais ofer- são verdadeiras do ponto de vista diagnóstico são atravessados pela
da criação da noticiabilidade, mas 35
ta da modernização, da expansão, emergência de dados, ficam em
das condições de interação, mais cri- elas lidam em oposição com cons- função dos algoritmos. Assim, na
se. Olhe para a crise do Facebook que trangimentos regulatórios. Essa é medida que essa atividade media-
está aí. Isso é uma crise gigantesca, a filosofia, a ideologia do modelo dora é fragilizada – justamente por
não é uma crise de instituiçãozinha. comunicacional industrial que per- essa ideologia do ‘faça você mesmo’
É a crise de um paradigma sobre o passou nossa vida por 30, 40, 100, –, significa que também desapare-
qual nós fizemos repousar muitas 200 anos. Por isso que os meios cem os mecanismos regulatórios
crenças de transparência, circulação eram meios, meios de uma ativida- dessa atividade, que passa a fun-
e interação achando que as redes de. Sendo meios, não significa dizer cionar na mão de todos. Assim,
operariam por si mesmas sem que que trabalhavam também com suas todos são criadores de notícias, to-
as mesmas fossem atravessadas por aporias e com suas falácias – ou seja, dos são criadores de sentido, todos
injunções de interesses de projetos, na noção de notícia repousa por trás somos veiculadores de leitura e de
de estratégias empresariais, políticas a afirmação de que sempre é uma interpretação.
e de vigilância. formação substitutiva.
E desaparece uma noção central
Assim, o que apontávamos como a A essência do jornalismo foi sem- no tecido social, que é a noção de
noção de um novo mundo, resultam pre trabalhar com a reprodução de referência. Então, essa noção refe-
em novas problemáticas. O ciclo alguma coisa que se passou em ou- rencial política, ética etc. desapare-
da comunicação, da midiatização, tro momento e circunstância, cujo ce no funcionamento da ambiência
se torna muito importante porque processo de reprodução passa por e do funcionamento da midiati-
gera muitos feedbacks complexos, e leis internas, a cultura de um modo zação pelo fato de todos fazermos
não lineares, onde de fato a socie- geral, mas, fundamentalmente, as tudo ao mesmo tempo, operando
dade tira proveito disso. Mas tam- ideologias do jornalismo. E como os sentidos. Aquilo que era um
bém gera impasses e inflexões que formações substitutivas compreen- trânsito de sentidos construído
merecem ser trabalhadas. Talvez demos aquilo que trata de represen- em mediações e negociações, em
aí é que se coloque o fenômeno das tar alguma coisa que está ausente. noções de verdades e gramáticas
fake news. E sobre esse processo há muitas específicas, achata-se, isso se dimi-
discussões, onde o jornalismo defor- nui e passa a dar lugar a um circui-
ma, enviesa, onde mente, mas nunca to, numa atividade circulatória em
IHU On-Line – Então, pode- essa noção de falsidade se colocou. que desaparecem esses parâmetros
mos pensar as fake news como Nunca se tratou como notícia falsa de mediação, verificação, regula-
uma espécie de efeito ou con- no sentido formal, porque de fato o ção e referenciação.

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TEMA DE CAPA

IHU On-Line – Dentro dessa terior das redes sociais. É um fenô- almente, mas também passa pelas
lógica de que todos são capa- meno que está borbulhando por aí, atividades das organizações sociais.
zes de gerar conteúdos, não é uma turbulência altíssima na qual Como as instituições estão também
importando o que, há o imen- estamos vivendo. permeadas por essas injunções não
so volume de informação que lógicas e não mais gramáticas, há
Não estou falando que a inexistência
se põe em circulação. E, dessa instituições especializadas em pro-
de fake news resolveria uma questão
lógica, aparecem as fake news. duzir ações exasperadas sobre não
que é cara à Teoria da Comunicação,
Mas por que eu devo ter mais importa ‘o que’ ou ‘quem’ no mundo
que é o fato de que quando nós ope-
“medo” das informações pos- em que vivemos. Observe o para-
ramos em produção de mensagem e
tas em circulação por qualquer doxo: falamos muito em regulação
recepção, ou operávamos nos modos
um, e não tanto “medo” com o hoje, mas por muito tempo nós fize-
clássicos, nós nos baseávamos em
que é posto pelo jornalista, já mos atividade intensa de desregula-
gramáticas, em produção e em recep-
que esse também trabalha com ção do contrato social, das regras do
ção. As notícias seguiam certas pau-
uma construção, uma repre- jogo, dos serviços à sociedade. Des-
tas que tinham essas gramáticas de
sentação que não necessaria- regulamos economia, energia, tele-
produção e circulação como referên-
mente pode ser real? comunicações, aviações e criamos o
cia. Acontece que as gramáticas que
nível terciário, um “pseudonível re-
Antônio Fausto Neto – Não orientavam os processos de recepção
gulatório” de avaliações. E isso não
estou tomando posição de uma coi- de mensagens parecem desaparecer
funcionou. Passamos desse estágio
sa ou de outra, estou propondo um nesse processo de construção de no-
da desregulação para um estágio
exercício de comparação. Quero, tícia hoje, na medida em que cada um
‘faça por você mesmo’, e agora se fala
com isso, destacar que funcionáva- pode dizer isso recorrendo a pautas e
novamente de regulação.
mos num modelo de produção de referências genéricas, empíricas, não
sentido calcado em referências for- profissionais, fundadas em bases di-
Uma outra regulação
necedoras dos elementos que nos versas ou fundadas num opinionismo
possibilitavam, entender, descrever e significando que se as gramáticas O que estão fazendo os países eu-
ou enunciar. Não é que esses fenô- perdem o sentido, perdem a função, ropeus diante dessa crise do Face-
36 menos desapareçam no sentido, significa que você deixa de ter os ins- book? Estão instituindo dispositivos
não é que os sujeitos nem as insti- trumentos com os quais vai gerar o regulatórios que possam corrigir o
tuições deixam de criar sentidos. processo de informatividade na so- funcionamento de um avanço do
Estou dizendo que se transforma a ciedade que vivemos. capitalismo no que diz respeito ao
atividade de produção de sentido ou funcionamento e produção da infor-
de enunciação na sociedade na for- mação. É essa criação de leis que vão
ma ‘de uma para outra’. Fazendo-se A era do ‘tudo vale’ aparecer logo, logo na Alemanha,
esses processos com muito menos França, Itália etc. Volta-se à ideia
constrangimentos e intermediários Nesse contexto, tudo vale. E se toda de que é preciso frenar, administrar,
significa que desaparecem cuidados, a enunciação vale, no sentido de que porque de fato há expansão numa
deliberações que repercutem sobre o não há lógicas de constrangimento, forma para além daquilo que as cul-
processo de nomeação das coisas na significa que esse conceito de fake turas poderiam suportar e projetar.
medida em que nós apelamos cada news é um conceito equivocado. Isso A questão das fake news é um con-
vez menos às mediações referenciais porque parte do pressuposto de que ceito que merece ser debatido por-
que nos ajudam a afirmar, a nomear, tudo que era fake news não era verda- que, senão, vai se automatizar a sua
desmentir etc. de. Só que o processo de produção da compreensão, quando, na verdade,
notícia sempre foi permeado por in- precisa ser estudado, pois abando-
Tens razão ao observar que passa-
junções fortíssimas, mas havia meca- namos um conceito rico na compre-
mos de um estado de mediação, de
nismos verificadores e reguladores na ensão da sociedade humana que foi
referenciação – e não há nenhuma
organização social. Com a circulação o conceito de boato.
sociedade humana sem referencia-
operando em todos os níveis hoje, di-
ção – para um estágio que é carac-
minuem parcialmente essas restrições
terizado informacionalmente por
de verificações, de avaliação, de julga- IHU On-Line – Como o senhor
dois tipos de fenômenos: ou os con-
mento, de deliberação e isso cria uma concebe o conceito de fake
domínios de opinião – os quais se
espécie de plataforma de um correio news? E no que esse fenômeno
dão como uma forma de resistência
imenso de opiniões fundadas em im- se difere das falsas notícias de
dos meios clássicos de comunica-
pressões, onde, se tudo vale, cabe tam- antes, do boato e até fofoca ca-
ção, pois ainda se aquartelam em
bém a exacerbação de pontos de vista luniosa que existe quase desde
unidades, achando que eles podem
dos mais estúpidos e esdrúxulos e que a primeira organização social
construir esse front de defesa da in-
nós estamos chamando de fake news. na terra?
formação e da opinião –, ou pelas
bolhas que se constituem segundo Evidentemente que isso passa não Antônio Fausto Neto – Observe
as mais diferentes estratégias no in- só na cabeça das pessoas individu- que, se você nomeia isso como fal-

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sas notícias, já está revelando um ocupados com a opinião pública, e nião pública que é recalcada no tex-
julgamento de valor cujo funciona- quando fundamos a ideia de opinião to dele como os editores de jornais,
mento do fenômeno trata de dissi- pública, a Sociologia, a Psicologia que são os formadores de opinião,
par e apontar uma outra compreen- Social, nós racionalizamos o concei- que são os que tomam as decisões
são. Ou seja, toda a sociedade que to da fabricação de crenças. Quando no mercado econômico, mas não
nos precedeu foi fundada em narra- estudávamos o processo das ideo- a opinião pública como um tecido
tivas, ideologias, crenças, leis cuja logias, das crenças do modo clássi- muito mais complexo. Porque sobre
explicação se fundava mais com co, como assim pensou a Psicologia isso não há acordo. Opinião pública
normas espirituais, com lógicas de Social, Freud2 e os grandes autores não é um conceito automatizante
uma racionalidade de outra ordem. pensaram a massa com categorias e uniforme, é composto de muitas
Nessa sociedade, havia também ou- muito mais refinadas do que aquilo leis e inquietudes. O máximo que
tros tipos de gatekeepers que não os que a estatística moderna racionali- foi tentado explicar sobre isso, pela
modernos. Eram as pitonisas anti- zou grandes fenômenos coletivos em psicologia, foi por veios muito mais
gas, os narradores antigos de quem mensurações estatísticas. sofisticados como o conceito de ho-
Benjamin1 fala. Era uma sociedade mem ordinário em Freud. É um ho-
A estatística foi uma espécie de re-
que estabelecia uma crença direta mem dotado de uma potência, mas
presentação muito curta de fenôme-
com um poder divino, um poder ele singularizou essa potência, a ex-
nos complexos. E, lá atrás, podemos
superior na medida em que suas plicação da significação, na condição
ver o conceito de boato na literatura
lógicas passavam por uma raciona- do humano, do indivíduo. Toda obra
da Psicologia Social. E emana de lá
lidade mais “cabeça a cabeça”. Não de Freud é atravessada por esse con-
com muito mais força, com uma vi-
havia intermediações, aquilo que ceito do homem ordinário.
rulência explicativa muito mais rica
fugia à explicação e inteligibilidade
do que hoje até então fez a estatística
ganhava um circuito novo de inter- Fake news
social. Quando fundamos a noção de
pretação que poderia ser chamado
opinião pública, nós naturalizamos Do ponto de vista da Teoria da
de falsa notícia ou boato etc. É um
um conceito forte através de uma Comunicação, fake news é um es-
estágio da imaginação humana, é
noção automatizante. A tal ponto tágio que simboliza o resultado da
um estágio do modo de funciona-
que a ideia de opinião pública é uma exasperação desse circuito, onde 37
mento dos imaginários.
noção reideologizada modernamen- saímos do contexto comunicacional
Esse imaginar em voz alta, ou ex- te, nessa perspectiva racional. de fazer em companhia, dos cam-
pressar esse ato de imaginar, ga- pos, dos contatos, das relações, das
Um exemplo disso é o juiz Sérgio
nharia circuitos, mas não tinha essa negociações, para um ‘faça por ti
Moro3. Quando ele fala que quer
exasperação de um deslizamento de mesmo’. Foi um convite dirigido ao
prestar conta do que faz a opinião
uma intensidade promovida e ani- indivíduo a tal ponto que não foi
pública, de que opinião pública está
mada, dinamizada pela lógica in- algo abstrato. A sociedade se orga-
falando? Está falando de uma opi-
dustrial-capitalista-midiatizante. É nizou individualmente para produ-
outra problemática. Pena que tenha- zir, por conta própria, por meio dos
2 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista nascido em
mos abandonado isso e naturalizado Freiberg, Tchecoslováquia. É o fundador da psicanálise. In- atos dos indivíduos, sentidos. A tal
essa transferência automática de teressou-se, inicialmente, pela histeria e, tendo como mé-
ponto que você pode dizer qualquer
todo a hipnose, estudou pessoas que apresentavam esse
uma notícia para outra. É preciso es- quadro. Mais tarde, interessado pelo inconsciente e pelas coisa, não importa o que você diga
pulsões, foi influenciado por Charcot e Leibniz, abandonan-
tudar isso porque muitos autores se do a hipnose em favor da associação livre. Estes elementos hoje, pois você pode refazer amanhã,
preocuparam com isso, mas foi um tornaram-se bases da psicanálise. Desenvolveu a ideia de
pois isso não tem mais uma força de
que as pessoas são movidas pelo inconsciente. Freud, suas
capítulo da sociologia dos coletivos, teorias e o tratamento com seus pacientes foram contro- expressão de verdade, de julgamen-
versos na Viena do século 19 e continuam ainda muito de-
quando nós estávamos ainda pre- batidos. A edição 179 da IHU On-Line, de 8-5-2006, dedi- to, de valoração pública, porque os
cou-lhe o tema de capa sob o título Sigmund Freud. Mestre
da suspeita, disponível em http://bit.ly/ihuon179. A edição
próprios atores políticos de hoje são
207, de 4-12-2006, tem como tema de capa Freud e a reli- portadores desse tipo de comporta-
1 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão. Foi re- gião, disponível em https://goo.gl/wL1FIU. A edição 16 dos
fugiado judeu e, diante da perspectiva de ser capturado Cadernos IHU em formação tem como título Quer entender mento. Observe Trump4. É um típico
pelos nazistas, preferiu o suicídio. Associado à Escola de a modernidade? Freud explica, disponível em http://bit.ly/ operador de fake news nesse sentido
Frankfurt e à Teoria Crítica, foi fortemente inspirado tan- ihuem16. (Nota da IHU On-Line)
to por autores marxistas, como Bertolt Brecht, como pelo 3 Sérgio Fernando Moro [Sérgio Moro] (1972): juiz fe- que estamos dando aqui. Perdeu-se
místico judaico Gershom Scholem. Conhecedor profun- deral brasileiro que ganhou notoriedade por comandar
do da língua e cultura francesas, traduziu para o alemão o julgamento dos crimes identificados na Operação Lava
importantes obras como Quadros parisienses, de Char- Jato. Formou-se em direito pela Universidade Estadual de
les Baudelaire, e Em busca do tempo perdido, de Marcel Maringá em 1995, tornando-se juiz federal em 1996. Tam- 4 Donald Trump (1946): Donald John Trump é um empre-
Proust. O seu trabalho, combinando ideias aparentemente bém cursou o programa para instrução de advogados da sário, ex-apresentador de reality show e atual presidente
antagônicas do idealismo alemão, do materialismo dialé- Harvard Law School em 1998 e participou de programas dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump foi eleito
tico e do misticismo judaico, constitui um contributo origi- de estudos sobre lavagem de dinheiro promovidos pelo o 45º presidente norte-americano pelo Partido Republi-
nal para a teoria estética. Entre as suas obras mais conhe- Departamento de Estado dos Estados Unidos. É mestre e cano, ao derrotar a candidata democrata Hillary Clinton
cidas, estão A obra de arte na era da sua reprodutibilidade doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná. no número de delegados do colégio eleitoral; no entanto,
técnica (1936), Teses sobre o conceito de história (1940) e Além da Operação Lava Jato, também conduziu o caso perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras estão o pro-
a monumental e inacabada Paris, capital do século XIX, Banestado. No caso do Escândalo do Mensalão, a ministra tecionismo norte-americano, por onde passam questões
enquanto A tarefa do tradutor constitui referência incon- do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber convocou o juiz econômicas e sociais, como a relação com imigrantes nos
tornável dos estudos literários. Sobre Benjamin, confira a Sergio Moro para auxiliá-la. Em 2014, Moro foi indicado Estados Unidos. Trump é presidente do conglomerado The
entrevista Walter Benjamin e o império do instante, conce- pela Associação dos Juízes Federais do Brasil para concor- Trump Organization e fundador da Trump Entertainment
dida pelo filósofo espanhol José Antonio Zamora à IHU rer a vaga deixada por Joaquim Barbosa no STF, porém, Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, vida pessoal,
On-Line nº 313, disponível em http://bit.ly/zamora313. em 2015, a vaga foi preenchida por Luiz Fachin. (Nota da riqueza e modo de se pronunciar contribuíram para torná
(Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) -lo famoso. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

valor ao que se diz, dá-se valor ao posições e de intercambialidades só- na qual nos encontramos todos.
poder dizer. cio-linguísticas e políticas. Ora, pas- É desenvolver um concernimento
samos desse estágio do espaço pú- reflexivo sobre isso, é nos desauto-
É tão verdade isso que os curado-
blico habermasiano e estamos num matizar. É complicado, pois temos
res dizem que a sociedade precisa
estágio muito mais complexo de re- como desafio a posição de uma ge-
resolver, precisamos controlar, criar
lação de forças onde cada um diz e o ração que já nasce nessa cognição.
mecanismos de checagem. Mas é a
valor do que se diz não está no que se As crianças já nascem sendo con-
checagem de um circuito que é in-
diz, mas no modo de dizer. vidadas a dar um salto nisso, que
controlável. Saímos dos campos,
nelas é uma potencialidade que é a
fomos para os circuitos, os circuitos
habilidade do movimento, do con-
bifurcam-se e aí ganham níveis de
indeterminação sobre o que não se
pode pensar suas retroações. É um ir
“Se nós tato, do tátil.
Falava-se muito que é preciso edu-
adiante infinito. estamos no car para os meios, desenvolver a
leitura crítica quando se dizia que

IHU On-Line – E qual a solu-


processo, há éramos reféns da comunicação, dos
meios, da televisão, diziam que eles
ção para esse estado? um convite nos alienam. Não é essa a proble-

desse nível
Antônio Fausto Neto – Não existe mática, é de outra ordem, até por-
uma solução normativa para isso. que nós passamos por isso. E pas-
Países europeus estão à beira de
criar normas regulatórias, mas a re-
pedagógico samos pelo fato de reconhecermos
que a midiatização é irreversível,
gulação cabe a escapes e pontos de
desvio, porque é um fenômeno en-
e acadêmico que a midiatização afeta as prá-
ticas sociais, todas, mas de modo
raizado, é a expressão do efeito do
modelo de comunicação. Existem
no sentido de diverso, que a midiatização realiza
sua atividade através de feedbacks

38
alternativas em processo de formu- desenvolver complexos, entre lógicas diferentes,
e é da tentativa de esses feedbacks
lação. Um deles é o processo de le-
tramento, educar a sociedade para uma serem desenvolvidos de forma críti-
ca e analítica que avança nosso pro-
autorreflexão
compreender o protocolo de comu-
nicação no qual ela vive, desauto- cesso de compreensão de nossa vida
comunicacional.
matizar a comunicação ou desauto-
matizar a posição de receptor. Nós sobre o Há uma defasagem estrutural na
éramos agentes que esperávamos a
leitura, esperávamos chegar o jornal, processo no atividade da comunicação. Ainda
que estejamos desenvolvendo uma
o horário do noticiário do rádio e da
TV, mas agora abandonamos esse
qual estamos comunicação face a face, ela está
fundada numa atividade em que
estágio de espera, estamos no pro-
cesso. Se nós estamos no processo,
engajados” não se sabe o que um vai dizer e vi-
ce-versa. Passamos por isso nas in-
há um convite desse nível pedagó- terações dos meios quando lógicas
gico e acadêmico no sentido de de- de produção e recepção fundavam
senvolver uma autorreflexão sobre o IHU On-Line – Uma forma de o contato humano, contatos sociais
processo no qual estamos engajados. enfrentar as fake news sem cair entre mídias e sociedade – por isso
na censura pode se dar por essa que a mídia não tem a capacidade de
É como compreender essa ação co-
via do letramento que o senhor fazer a cabeça do indivíduo – e hoje
municacional que foi proposta num
cita? Isso é ensinar a ler e ob- ingressamos no terceiro nível, que é
nível muito abstrato por Habermas5.
servar a informação nesse novo a interpenetração dessas lógicas.
Quando ele pensou ação comunica-
cional fundada no diálogo, estava ambiente?
pensando numa sociedade com al-
Emergência de reflexão
Antônio Fausto Neto – Sim,
tos níveis de simetria. O diálogo é mas esse ensinar a ler a informação Há uma interpenetração que pre-
possível quando há uma simetria de no novo ambiente é muito mais do cisa ser estudada, pois estamos em
que isso. É desenvolver processos contato muito profundo entre nos-
5 Jürgen Habermas (1929): filósofo alemão, principal
estudioso da segunda geração da Escola de Frankfurt. longos que passem pelas institui- sas práticas com essa oferta comuni-
Herdando as discussões da Escola de Frankfurt, Habermas ções que têm sua força ainda, como cacional ou digital, porque também
aponta a ação comunicativa como superação da razão
iluminista transformada num novo mito, o qual encobre a universidade, a família, e os atores somos autores. O problema é que
a dominação burguesa (razão instrumental). Para ele, o
logos deve se construir pela troca de ideias, opiniões e in- dessas instituições em que vivemos não vivemos compreensivamente o
formações entre os sujeitos históricos, estabelecendo-se o
diálogo. Seus estudos voltam-se para o conhecimento e a
se concernirem compreensivamen- que significa essa interpenetração e
ética. (Nota da IHU On-Line) te e reflexivamente dessa condição já passamos para outro estágio, que

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é do deslizamento. Há mais ditos, ciente em função de um novo lar via WhatsApp informações sobre
mais opinião e não concatenamos supervírus que surgiu. Como o estado de saúde e inferindo dese-
isso por inexistência de um proto- lidar com esses processos? jos de que ela morresse, como uma
colo reflexivo. E isso é muito difícil, forma de castigo. Veja como isso vai
Antônio Fausto Neto – Uma
porque a sociedade vai para frente, passando pelas redes médicas e vai
coisa é ter a clareza de que você
é o ir adiante. E esse ir adiante sem sendo dinamizado, até com as in-
não controla o circuito. Outrora se
obstáculos e constrangimentos é o ferências de que deveriam ter feito
dizia que recebeu como um sujeito
que produz essa exasperação de pon- isso ou aquilo para mata-la dentro
que recebia de algum lugar, que ela
tos de vista. O que se produz quando do hospital. É um exemplo típico de
tinha procedência — um circuito
alguém pensa isso reflexivamente? como operam hoje as mediações, no
fechado. Hoje, você recebeu con-
É a reação da sociedade à frase de circuito dos experts. Eles não só cru-
comitantemente a muitos. Por isso,
Umberto Eco6, que disse algo como zam os braços diante da circulação
controlar o circuito é impossível do
“todos os internautas são imbecis”. desses enunciados, como também
ponto de vista da dinâmica. Agora,
são autores dos enunciados. Aban-
Ele não disse que as pessoas são é possível lutar pela ressignificação
donam a posição de informadores
moralmente imbecis. Disse que do circuito. Seria fazer com que cer-
e intérpretes, ocupando outro lugar
eram imbecis porque não sabiam o tos elos responsáveis por eles tives-
nessa cadeia que é o lugar de pôr
que significavam certas operações sem outra atividade e não atividade
adiante aquilo que é codinamizado
que estavam realizando no interior de se passivizar diante do funcio-
por seus pares e de uma maneira ir-
das redes. Todos nós temos manei- namento do circuito, deixando-o
responsável.
ras de fazer mundo, mas as manei- seguir adiante sem nenhuma inter-
ras de fazer mundos eram pautadas venção interpretativa e que dê a ele Mas, ao mesmo tempo, é preci-
por referências e hoje há um desliza- uma outra valoração. so que se destaque que há a quebra
mento. É como se não houvesse es- da mediação. Quando o especialista
Nesse seu exemplo, ouvimos isso
ses limites interpretativos fundados médico coloca uma informação es-
inclusive atribuído a uma fonte mé-
em certos argumentos de verdade pecífica em circulação, ele o faz sem
dica, mas não ouvimos circular ne-
para um e ideologias para outros, a ação de um mediador jornalista,
nhuma intervenção de segmentos
mas tudo passa a ser a impressão assessor de imprensa ou até o chefe 39
de experts médicos dizendo que isso
como opinião. E nesse bojo todo é da equipe médica. Estamos entre-
é fake news e esclarecendo a ques-
que se situa o fenômeno fake news. gues aos circuitos e como eles são
tão. É como se as coisas pudessem
O que se está chamando de notícia momentâneos, perdem a autorali-
ser naturalizadas e vai se deixando
falsa é aquilo que se oporia ao que dade ou a responsabilidade da auto-
ir adiante. Qual é o problema? Indo
normativamente é dito como verda- ralidade. Qualquer um pode dizer, e
adiante essas informações são atraí-
de, mas que também está impregna- até dizer que aquilo que foi dito por
das pelos indivíduos pelos seus vie-
do de construções e de incertezas. E qualquer um, e a cadeia de signifi-
ses de interpretação, concernimento
nós não nos interrogamos sobre isso, cantes continua em construção. O
e intenção. Aí se constitui a bolha.
porque temos a compreensão disso problema não é mais do dispositivo,
Ou seja, quem fabrica a crença da
automatizada. pois somos nós os atores do disposi-
coisa não é a oferta só, é o nó, enlace
tivo. Esquecemos que a rede se cons-
que se faz nisso. Os mediadores pa-
titui hoje como campo de batalha,
IHU On-Line – Quais os desa- recem ter abandonado essa posição
mas operado por agentes e entidades
fios para lidar diária e objetiva- de ressignificação.
sociais. Somos nós que estamos ba-
mente com as fake news? Por talhando lá dentro.
exemplo, recentemente, circu- Caso Marisa Letícia
lou a notícia em redes de What-
Em outro exemplo: o episódio da
sApp dizendo que a vacina apli-
doença de Marisa Letícia7, esposa do de histórico de popularidade durante seu mandato, con-
cada pela rede pública como forme medido pelo Datafolha. Programas sociais como o
Lula8, em que médicos fizeram circu- Bolsa Família e Fome Zero são marcas de seu governo,
prevenção à gripe não será efi- programa este que teve seu reconhecimento por parte
da Organização das Nações Unidas como um país que
7 Marisa Letícia Lula da Silva (1950 —2017): nascida Ma- saiu do mapa da fome. Lula teve um papel de destaque
risa Letícia Rocco Casa foi uma primeira-dama do Brasil, na evolução recente das relações internacionais, incluin-
6 Umberto Eco (1932 —2016) escritor, filósofo, semiólo- ocupando o posto entre 1º de janeiro de 2003 e 1º de do o programa nuclear do Irã e do aquecimento global.
go, linguista e bibliófilo italiano de fama internacional. Foi janeiro de 2011, período em que o seu marido, Luiz Inácio É investigado na operação Lava-Jato e foi denunciado em
titular da cadeira de Semiótica e diretor da Escola Superior Lula da Silva, exerceu o cargo de presidente da República. setembro de 2016 pelo Ministério Público Federal (MPF),
de ciências humanas na Universidade de Bolonha. Ensinou (Nota IHU On-Line) apontado como recebedor de vantagens pagas pela em-
temporariamente em Yale, na Universidade Columbia, em 8 Luiz Inácio Lula da Silva (1945): Trigésimo quinto presi- preiteira OAS em um triplex do Guarujá. No dia 12 de julho
Harvard, Collège de France e Universidade de Toronto. Co- dente do Brasil, cargo que exerceu de 2003 a 1º de janeiro de 2017, Lula foi condenado pelo juiz federal Sérgio Moro,
laborador em diversos periódicos acadêmicos, dentre eles de 2011. É co-fundador e presidente de honra do Partido em primeira instância, a nove anos e seis meses de prisão
colunista da revista semanal italiana L’Espresso, na qual es- dos Trabalhadores – PT. Em 1990, foi um dos fundadores e em regime fechado por crimes de corrupção passiva e la-
creveu sobre uma infinidade de temas. Eco foi, ainda, no- organizadores do Foro de São Paulo, que congrega parte vagem de dinheiro. No dia 24 de janeiro de 2018, por una-
tório escritor de romances, entre os quais O nome da rosa dos movimentos políticos de esquerda da América Latina midade, os três desembargadores da 8ª Turma do Tribunal
e O pêndulo de Foucault. Junto com o escritor e roteirista e do Caribe. Foi candidato a presidente cinco vezes: em Regional Federal da 4ª Região confirmaram a condenação
Jean-Claude Carrière, lançou em 2010 “N’Espérez pas vous 1989 (perdeu para Fernando Collor de Mello), em 1994 de Lula, elevando a pena para 12 anos e um mês de prisão.
Débarrasser des Livres” (“Não Espere se Livrar dos Livros”, (perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e em 1998 No dia 7 de abril de 2018 Lula, após mandado de prisão
publicado em Portugal com o título “A Obsessão do Fogo” (novamente perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e expedido pelo judiciário, entregou-se à Polícia Federal
no Brasil como “Não contem com o fim do livro”). (Nota ganhou as eleições de 2002 (derrotando José Serra) e de onde se mantém sob custódia na Superintendência do
da IHU On-Line) 2006 (derrotando Geraldo Alckmin). Lula bateu um recor- órgão em Curitiba. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 520
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – É mais do que Antônio Fausto Neto – Um li- rari11 (São Paulo: Companhia das
simplesmente fazer a checa- vro que ajuda a pensar um pouco Letras, 2016), A Cultura do Novo
gem das informações? mais nessa minha perspectiva é Capitalismo (Rio do Janeiro: Re-
Polegarzinha: Uma Nova Forma cord, 2006) e Juntos: os rituais, os
Antônio Fausto Neto – Isso é
de Viver Em Harmonia, de Pensar prazeres e a política da cooperação
uma ação, mas não uma ação sobre
as Instituições, de Ser e de Saber, (Rio de Janeiro: Record, 2012), os
o sistema. Precisamos pensar e agir
de Michel Serres9 (São Paulo: Ber- dois de Richard Sennett12.■
sobre o sistema. Fazer só a checagem
trand Brasil, 2013). E muito do
seria como detectar um vazamento
que falamos por aqui está nas obras tuto Humanitas Unisinos – IHU, com inúmeras publicações
num cano de fluxos de água e colocar e análises sobre o livro. Além disso, Homo Deus foi apre-
Homo Deus10, de Yuval Noah Ha- sentado em evento no IHU, no dia 16-11-2017. O texto
um rebite, fazer um remendo onde e o vídeo da conferência estão disponíveis em http://bit.
ly/2JgOZ8C. (Nota da IHU On-Line)
há vazamento. Não se está agindo 9 Michel Serres (1930): filósofo e historiador das ciências 11 Yuval Noah Harari (1976) professor israelense de His-
sobre o sistema como um todo. Pre- francês. Escreveu entre outras obras “O terceiro instruído” tória e autor do best-seller internacional Sapiens: Uma
e “O contrato natural”. Atuou como professor visitante na breve história da humanidade e também do Homo Deus
cisamos pensar de forma reflexiva USP. Desde 1990 ele ocupa a poltrona 18 da Academia – Uma Breve História do Amanhã. Ele leciona no departa-
Fancesa. Professor da Universidade de Stanford e membro mento de História da Universidade Hebraica de Jerusalém.
sobre esses processos. da Academia Francesa, escreveu inúmeros ensaios filosó- (Nota da IHU On-Line)
ficos e de história das ciências, entre os quais Os cinco 12 Richard Sennett (1943): é um sociólogo e historiador
sentidos, Notícias do mundo, Variações sobre o corpo, O norte-americano, professor da London School of Econo-
incandescente, Hominescências e Júlio Verne: A ciência e mics, do Massachusetts Institute of Technology e da New
IHU On-Line – Deseja acres- o homem contemporâneo, todos títulos lançados no Brasil York University. É também romancista e músico. Casado
pela editora Bertrand Brasil. (Nota da IHU On-Line) com a socióloga Saskia Sassen, sua obra mais conhecida
centar algo? 10 A obra vem sendo amplamente trabalhada pelo Insti- é O declínio do homem público. (Nota da IHU On-Line)

Leia mais
– Um olhar estrangeiro sobre si mesmo. Perfil de Antônio Fausto Neto, publicado na revis-
40 ta IHU On-Line nº 512, de 2-10-2017, disponível em https://bit.ly/2Jcqfyg.
– “O processo de construção do voto religioso é perverso”. Entrevista especial com An-
tônio Fausto Neto, publicada na revista IHU On-Line nº 347, de 18-10-2010, disponível em
https://bit.ly/2J93mvK.
– O Mutirão e a ambiência que nos constitui. Artigo de Antônio Fausto Neto, publicado na
revista IHU On-Line nº 319, de 14-12-2009, disponível em https://bit.ly/2HDL9ch.
– A midiatização e os governos latino-americanos. Entrevista especial com Antônio Faus-
to Neto, publicada nas Notícias do Dia, de 20-9-2009, no sítio do Instituto Humanitas Unisi-
nos – IHU, disponível em https://bit.ly/2vv9hZX.
– “A midiatização produz mais incompletudes do que as completudes pretendidas, e é
bom que seja assim”. Entrevista especial com Antônio Fausto Neto, publicada na revista
IHU On-Line nº 289, de 13-4-2009, disponível em https://bit.ly/2qOEHEZ.
– Descentramento do lugar do jornalismo. Entrevista especial com Antônio Fausto Neto,
publicada na revista IHU On-Line nº 254, de 14-4-2008, disponível em https://bit.ly/2qOcONi.
– As relações entre mídia e política no espaço público contemporâneo. Entrevista es-
pecial com Antônio Fausto Neto, publicada na revista IHU On-Line nº 202, de 30-10-2006,
disponível em https://bit.ly/2HFSAje.

23 DE ABRIL | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

O texto além do texto


Anna Bentes, pesquisadora da área de linguística, analisa
a natureza complexa da produção textual das fake news
Ricardo Machado

D
entre as inúmeras nuances do e divulgando, ‘em primeira mão’, para
fenômeno das fake news, uma os seus familiares, amigos e conhecidos
delas é da ordem de estrutura- do mundo virtual”, descreve a pesqui-
ção dos textos, cuja estrutura das nar- sadora.
rativas é resultado de um trabalho de Nesse contexto, ter uma postura crí-
manipulação e falseamento com dife- tica em relação às intencionalidades de
rentes intencionalidades. Com isso se quem compartilha conteúdos requer
produz o acúmulo de capitais simbólico perceber a própria natureza dos textos.
e financeiro. “O social [simbólico], dado “Eles [os textos] estão sempre sujeitos a
que esses grupos, em geral, vinculam- operações de descontextualização e re-
se a movimentos conservadores e mui- contextualização que envolvem neces-
to poderosos do ponto de vista político sariamente disputas entre os sistemas
e econômico; e o econômico, dado que de valores, de crenças e de referências
a produção de fake news é uma ativida- dos interlocutores envolvidos nos pro-
de altamente rentável, na verdade, um cessos de produção e compreensão tex-
modelo de negócios das plataformas di- 41
tual”, complementa Anna.
gitais”, pondera a professora e pesqui-
sadora Anna Bentes, em entrevista por Anna Christina Bentes é graduada
e-mail à IHU On-Line. em Letras pela Universidade Federal
do Pará - UFPA, realizou mestrado em
Não deixa de ser interessante e con-
Linguística pela Universidade Federal
troverso que o fenômeno das notícias
de Santa Catarina - UFSC e doutorado
falsas é também sintoma de um certo
em Linguística pela Universidade Esta-
empoderamento dos usuários, que per-
dual de Campinas - Unicamp. Fez está-
cebem ser capazes de se tornar fonte
gio pós-doutoral no Departamento de
de “informação” e, com isso, produzir
Antropologia da Universidade da Ca-
certo prestígio social. “A sensação de
lifórnia, em Berkeley, Estados Unidos.
empoderamento experimentada pelos
Atualmente é professora do Departa-
usuários quando percebem que podem
mento de Linguística da Universidade
ser uma fonte relevante de informação,
leva todos a tentarem se mostrar ‘in- Estadual de Campinas.
formados’, sabendo da ‘última’ notícia Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a contri- é bastante heterogêneo e diversifi- primeiro lugar, quando postula con-
buição da linguística para pen- cado. Nele, vamos encontrar teorias textos para a emergência de qual-
sar o fenômeno das fake News? cujas bases serão radicalmente dife- quer texto. No caso das fake news, os
rentes [a esse respeito, recomendo contextos parecem ser o de 1) polari-
Anna Bentes – Acredito que fortemente a leitura do livro Intro- zação de visões de mundo; 2) guerra
as várias áreas da Linguística têm dução à Linguística: fundamentos híbrida e 3) possibilidade de disse-
muito a contribuir para a melhor epistemológicos (São Paulo: Editora minação rápida, via grandes plata-
compreensão desse fenômeno. Mas, Cortez, 2011)]. Pensando em um dos formas (Facebook, Twitter, Whatts
antes de mais nada, é importante di- campos da Linguística, o dos estu- app, Google) de assuntos considera-
zer que o campo dos estudos linguís- dos do texto, posso afirmar que ele dos urgentes, sensacionais e/ou de
ticos, como qualquer outro campo, contribui para essa discussão, em grande interesse (especialmente po-

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TEMA DE CAPA

lítico, cultural, econômico, científico caminhos improváveis, para dizer o “Desconfiada, Dilma tem poucos in-
etc.). Em segundo lugar, é possível mínimo; e o econômico, dado que a terlocutores”. A autora procede a uma
observar que o que é falso nas fake produção de fake news é uma ativida- análise com base em conceitos muito
news resulta de um deliberado tra- de altamente rentável, na verdade, um importantes no campo da Linguística
balho de manipulação e/ou de false- modelo de negócios das plataformas Cognitiva, dos estudos de Linguagem
amento de determinados elementos digitais. Até aqui, enfocamos aspectos em Uso e dos Estudos Críticos do Dis-
estruturadores dos textos com dife- da produção das fake news (intencio- curso. Uma de suas conclusões é o fato
rentes intencionalidades. Cito, en- nalidades, perfil social de seus produ- de que as manchetes desses dois gran-
tão, agora, o psicanalista Christian tores, contexto de produção, caracte- des jornais construíram a seguinte
Dunker, sobre a relação entre as prá- rística geral do trabalho linguístico, “narrativa”: “Aécio era o bom moço,
ticas de produção de fake News e o textual e discursivo performatizado). capaz, preparado, ponderado e per-
surgimento da chamada pós-verda- No entanto, há um último aspecto, o feito para a presidência da república;
de: “Em 2011 a verdade das armas da recepção e da circulação das fake Dilma era a mulher louca, desequi-
químicas que justificaram o ataque news, que pode ser compreendido librada e passional que atacava por
ao Iraque mostrou-se uma ficção. O nos termos do antropólogo e linguis- desespero”. Além disso, em um uni-
fato de que presidentes e agências de ta William Hanks (1996), para quem, verso de 340 manchetes, a autora não
Estado pratiquem mentiras técnicas “as pessoas, para se comunicarem, conseguiu, por exemplo, produzir um
como essa, retóricas (como a ‘guerra devem co-participar de uma comuni- subgrupo de manchetes que fossem
cirúrgica’), jurídicas (como a corrup- dade interpretativa que possua valo- desfavoráveis a Aécio. Esse trabalho
ção dentro da lei), apenas replica a res semelhantes no que diz respeito trata de fake news? Podemos dizer
maquiagem de balanços (que estava ao que vale como expressão e a forma que, em parte, sim. Especialmente se
por trás das bolhas imobiliárias de de compreendê-la”, o que configuraria considerarmos a classificação produ-
2008) e o cinismo como discurso “um tipo de compartilhamento de co- zida pelo relatório recém divulgado do
básico do espaço público e da vida nhecimentos necessariamente parcial, Conselho da Europa sobre a chamada
laboral” 1. perspectivado e socialmente distribu- “desordem informacional”2 que assola
ído”. A formulação de Hanks sobre o mundo. Esse relatório chegou a três
A observação de Dunker nos leva classificações para o fenômeno das
como os atores sociais participam das
42 a pensar em um outro critério im-
comunidades interpretativas, espe- fake news, que abrange diversas nu-
portante: aquele que pode explicar ances de manipulação. Uma delas é a
o aumento do número de fake news cialmente no que diz respeito aos va-
lores assumidos e encenados por de- desinformação (notícias falsas criadas
relativas a uma diversidade de temas e para prejudicar determinados atores
de questões sociais. A meu ver, o fato terminados participantes no contexto
digital, parece embasar a definição de sociais). A outra é a malinformação,
de a mentira, a manipulação, a frau- segundo a qual notícias que apresen-
de, o falseamento constituírem ações fake news dada no Facebook recente-
mente: “Fake news não é para enganar tam uma base real são editadas de
de textualização/discursivização que forma a causar danos. O terceiro tipo
são performatizadas por atores so- ninguém. Fake news é paras pessoas
se sentirem permitidas a acreditar nas é a misinformação que se diferencia
ciais altamente legitimados por vá- das outras classificações porque a in-
rios setores da sociedade, tais como coisas que elas sabem que é mentira”
(Ullisses Mattos). tencionalidade não é causar danos. Se
presidentes da república, políticos considerarmos essas nuances de ma-
em geral, gestores públicos, empre- nipulação, as manchetes dos jornais
sários, líderes de movimentos sociais, analisados pela pesquisadora acima
IHU On-Line – Como as pes-
acaba por legitimar os grupos que referida poderiam ser encaixadas na
quisas no campo da linguística
são responsáveis pela produção des- categoria de malinformação, porque
estão pensando o fenômeno
se gênero, a “notícia falsa”. Participar selecionam e formatam informações
das fake news?
da elaboração de fake news pode se com base nos acontecimentos de for-
constituir em tipo de distinção porque Anna Bentes – Recentemente, Le- ma a produzir uma imagem negativa
possibilita o acúmulo de pelo menos tícia Sallorenzo, orientada pelo Pro- de um determinado candidato. O tí-
dois tipos de capital: o social, dado fessor Dioney Moreira Gomes, defen- tulo ou a manchete de uma matéria
que esses grupos, em geral, vincu- deu uma dissertação de mestrado na é o grande responsável pelo primeiro
lam-se a movimentos conservadores Universidade de Brasília intitulada
e muito poderosos do ponto de vista Gramática e manipulação: análise 2 O relatório do grupo de trabalho criado pela Comissão
político e econômico e dado que se cognitivo-funcional de manchetes de Europeia para combater a disseminação de fake News foi
apresentado em 09 de abril de 2018 e servirá de inspi-
profissionalizam, constituindo assim jornais durante o segundo turno das ração para que a secretária europeia da Economia Digi-
tal Mariya Gabriel apresente novas medidas, visando as
o grupo seleto de experts na produção eleições presidenciais de 2014. Fo- eleições europeias de 2019. Matérias sobre o tema foram
de um determinado gênero textual ram selecionadas as manchetes com publicadas na Folha de São Paulo (https://www1.folha.
uol.com.br/ilustrissima/2018/04/com-avanco-tecnologi-
que “guia” as massas de pessoas por os nomes Aécio e Dilma e, nesse cor- co-fake-news-vao-entrar-em-fase-nova-e-preocupante.
shtml), no Nexo (https://www.nexojornal.com.br/en-
pus, foram analisadas as manchetes saio/2018/Os-desafios-das-fake-news-na-América-Latina
1 Disponível em https://outraspalavras.net/destaques/
para-compreender-a-pos-verdade-e-seu-tempo-politico/
com os verbos “atacar” e “derrotar”, (Nota da entrevistada) e no Observador (https://obser-
vador.pt/2018/03/13/comissao-europeia-apresenta-pro-
(Nota da entrevistada) e estruturas topicalizadas do tipo: postas-para-combater-fake-news/). (Nota da entrevistada)

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REVISTA IHU ON-LINE

impacto do texto no leitor. Dependen- relações. Conforme Luis Mauro Sá pensando basicamente em um tipo
do de como as informações estão dis- Martino, o que interessaria nas re- de divisão dos domínios discursivos
postas, podem levá-lo a experienciar des seria a maneira como um tipo e de seus respectivos temas e forma-
aquele sentido de urgência, tão carac- de interação interfere nas outras tos, a saber, aquele que funciona no
terístico do processo de disseminação interações. Nesse sentido, os textos interior dos meios de comunicação
de fake news. Assim, constituem ele- são os recursos mais fundamentais de massa.
mento estruturador das fake news. para o estabelecimento dos mais
Ainda, se pensarmos que os tex-
Por isso, não é possível dizer que as diversos tipos de interação/rela-
tos que circulam hoje no interior
manchetes são fake news; no entan- ção social. Mais especificamente,
das redes resultam de um trabalho
to, é possível dizer que sua produção são as práticas recorrentes de pro-
de construção por parte de quem os
também pode ser orientada pelos dução, consumo e divulgação de
produz para esses contextos especí-
princípios gerais que edificam o gêne- textos que vão manter ou afrouxar
ficos e que esses mesmos textos de-
ro “notícia falsa”: a seleção e a edição determinados laços, que vão apro-
pendem, mais do que nunca, de um
da informação baseada em fatos reais ximar ou distanciar pessoas e pers-
trabalho de divulgação da parte de
e a intenção de causar dano a um de- pectivas, que vão empurrar para o
seus interlocutores para que os seus
terminado ator social. anonimato ou trazer à cena deter-
efeitos sejam alcançados, é possível
Sendo assim, acredito que os dis- minados atores sociais. dizer que as ações de textualização
positivos dos vários campos da lin- Se pensarmos nos aspectos práticos representam, da maneira mais con-
guística, desenvolvidos para analisar do funcionamento das redes sociais, creta e visível, o trabalho de textua-
diferentes aspectos tanto do siste- estes dependem fundamentalmente lização que contempla tanto a tarefa
ma linguístico como das práticas de da produção, circulação e recepção de estar no mundo, um modo múlti-
linguagem, podem auxiliar na com- ativa de textos preferencialmente plo de conexão, como disse Roberto
preensão do fenômeno, desde que multimodais e/ou escritos. Mais es- de Beaugrande, como também uma
o consideremos não em termos de pecificamente, no caso do Facebook, forma simbólica, uma forma linguís-
uma oposição absoluta entre verda- rede que conta atualmente com mais tico-discursiva de ação, em ação.
de ou mentira, mas fundamental- de 2 bilhões de usuários mensais,
mente buscando perceber as inten- Acredito que as redes sociais po-
uma das práticas mais presentes tencializaram esse trabalho de textu- 43
cionalidades de quem as produz e os está relacionada ao que Manuel Cas-
efeitos alcançados. alização como um modo de estar no
tells3 denomina auto-comunicação, mundo e como uma forma de ação
que seria a capacidade de cada ator em relação a um conjunto amplo de
social fazer as vezes de uma fonte interlocutores e também uma forma
IHU On-Line – Como a com-
de informação. Isso somente pode de interação entre produtores, textos
preensão dos textos para além
de seu sentido primeiro (gra- acontecer se houver ou a produção e os interlocutores.
matical e semântico) ajuda a de textos (curtos ou “textão”, como
dizem os usuários) ou o comparti- Considerando esse contexto mais
não cairmos em armadilhas re-
lhamento/divulgação de textos de geral, a compreensão dos textos é
tóricas?
natureza informativa (notícias, re- altamente contingenciada. Como
Anna Bentes – É por intermédio portagens, documentários), ficcional dissemos antes, ela é sempre parcial,
de condicionamentos “diferenciados (as narrativas de experiência pesso- perspectivada e socialmente distri-
e diferenciadores”, dos quais nos al, depoimentos, histórias de vida, buída. Um dos fatores cruciais para
ocupamos um pouco anteriormen- documentários biográficos), publi- que a disseminação de informações
te, que as práticas de produção, re- citária (gêneros que campanhas go- falsas na rede possa ser reduzida é
cepção e de circulação de textos nas vernamentais, campanhas sociais, o desenvolvimento de uma atitude
redes sociais se dão. Aqui é impor- propaganda comercial) crítica e/ou de maior responsabilidade dos usu-
tante afirmar que compreendemos humorística (memes, charges, co- ários em relação ao que divulgam.
as redes sociais como “um tipo de mentários, tirinhas), artística (po- A sensação de empoderamento ex-
relação entre seres humanos pau- esia, docu-dramas, performances, perimentada pelos usuários quando
tada pela flexibilidade de sua es- vídeo-clipes, etc). No caso, estamos percebem que podem ser uma fonte
trutura e pela dinâmica entre seus relevante de informação e que, con-
participantes”, apresentando “um 3 Manuel Castells (1942): sociólogo espanhol. Entre 1967 sequentemente, podem adquirir al-
e 1979 lecionou na Universidade de Paris, primeiro no gum prestígio social em função dis-
caráter horizontal”, desprovidas de campus de Nanterre e, em 1970, na “École des Hautes Étu-
“uma estrutura rígida”. O caráter des en Sciences Sociales”. No livro “A sociedade em rede”, so, leva todos a tentarem se mostrar
o autor defende o conceito de “capitalismo informacional”.
relacional das redes é fundamen- Foi nomeado em 1979 professor de Sociologia e Planeja- “informados”, sabendo da “última”
tal, dado que são relações entre mento Regional na Universidade de Berkeley, Califórnia.
Em 2001, tornou-se pesquisador da Universidade Aberta
notícia e divulgando, “em primeira
seus participantes que dão o tom da Catalunha em Barcelona. Em 2003, juntou-se à Univer- mão”, para os seus familiares, ami-
sidade da Califórnia do Sul, como professor de Comunica-
de seu funcionamento. Relações ção. Segundo o Social Sciences Citation Index Castells foi gos e conhecidos do mundo virtual.
entre atores (pessoas ou platafor- o quarto cientista social mais citado no mundo no período
2000-2006 e o mais citado acadêmico da área de comuni-
Nesse sentido, os usuários pensam
mas, por exemplo) e relações entre cação, no mesmo período. (Nota da IHU On-Line) estar colaborando com a dissemina-

EDIÇÃO 520
TEMA DE CAPA

ção de informação socialmente re- camente faz uma série de denúncias, res sociais. No entanto, nesse caso, e
levante e não com a desinformação sendo a principal delas a natureza po- em muitos outros, a leitura por nós
estritamente orientada para certos lítica da prisão do ex-presidente Lula4. empreendida do percurso de cons-
fins, mais frequentemente, fins polí- Ao final do vídeo, ela fala: “Convido a trução de fake news envolve um texto
ticos. Lidar com essa boa-fé das pes- todos e a todas a se juntarem conosco primeiro (uma declaração gravada
soas é tarefa para experts. Os textos nessa luta. Lula livre”. Esse enunciado em vídeo para ser publicada no por-
devem ser encarados, então, de uma é reinterpretado de várias maneiras tal de vídeos da TV Al Jazeera feita
forma geral, como construtos que por seus adversários. A senadora Ana pela senadora Gleisi Hoffmann) e as
resultam de trabalho sobre recursos Amélia, em sua primeira fala sobre a suas releituras, tanto por atores mais
linguísticos, textuais e discursivos declaração da senadora Gleisi Hof- legitimados (como é o caso do co-
específicos. fmann à TV Al Jazeera, faz uma série mentário feito em uma das comissões
de críticas ao discurso da senadora do do Senado da senadora Ana Amélia
Partido dos Trabalhadores e, ao final, sobre o citado vídeo), como pelos
IHU On-Line – As fake news afirma: “Eu só espero que essa exorta- produtores das fake news. Para con-
parecem ser, também, efeito de ção feita pela senadora do Partido dos cluir, é importante termos em mente
uma certa incapacidade de lei- Trabalhadores não tenha sido para que os processos de produção de fake
tura. O que de fato é aprender a convocar o Exército Islâmico para vir news, especialmente no campo políti-
ler em um mundo radicalmen- ao Brasil fazer as operações de prote- co, pressupõem práticas violentas de
te saturado de textos (linguísti- ção ao Partido que perdeu o poder e propaganda política com o intuito de
cos, visuais, estéticos)? agora parece ter perdido também a desmoralizar o adversário. Por isso, o
Anna Bentes – Em função do que compostura, o respeito e o apoio po- processo de compreensão do fenôme-
falei antes, o leitor é, de fato, a parte pular”. A recategorização (“exorta- no como fake news está relacionado
mais fraca dessa cadeia toda e é pre- ção”) que a senadora Ana Amélia faz à compreensão da própria natureza
ciso fornecer a ele ferramentas pre- do trecho final da fala da senadora dos textos: eles estão sempre sujeitos
cisas de forma que ele possa se movi- Gleisi Hoffman (que fez um “convi- a operações de descontextualização
mentar nesse contexto de “desordem te”) já indicia que ela vai preencher e recontextualização que envolvem
informacional”. Do lado da produ- todas as lacunas deixadas pelo texto necessariamente disputas entre os
44 ção, temos as grandes plataformas genérico e ao mesmo tempo metafó- sistemas de valores, de crenças e de
que têm interesses mercadológicos rico da senadora Gleisi Hoffmann: as referências dos interlocutores envol-
muito definidos e que têm contri- expressões “todos” e “todas” são rein- vidos nos processos de produção e
buído para o fortalecimento desse terpretadas como “Exército Islâmico” compreensão textual.
contexto de caos informacional. Re- e a ação de se “juntar na luta” (luta por
centemente, no entanto, os Estados Lula livre) é reinterpretada como “vir
IHU On-Line – É possível pen-
individualmente ou Comunidades ao Brasil fazer as operações de prote-
sar o fenômeno das fake news
Internacionais, como a Comunida- ção ao Partido que perdeu o poder”.
como uma espécie de triunfo
de Europeia, têm buscado enfrentar
Essa releitura da fala da senadora (ainda que não hegemônico)
essa questão de forma a proteger
Gleisi Hoffmann imediatamente pa- das contradições lógicas?
seus cidadãos dos impactos dessas
rece ter inspirado a produção de um
práticas massivas de desonestidade Anna Bentes – Como disse an-
conjunto de fake news: “PT apela ao
intelectual. teriormente, assumo que a questão
mundo islâmico”; “Gleisi Islâmica
das fake news está mais relacionada
Os textos podem nos fornecer boas Hoffman faz vídeo para a TV Al Jaze-
a disputas entre sistemas de referên-
pistas sobre essas práticas, mas, se era”; “Gleisi pode ser presa por inci-
cias, de crenças e de valores. Essas
eles resultam, como disse antes, de tação ao terrorismo” etc. A associação
disputas estruturam e organizam as
um trabalho que busca alcançar certos direta entre o “mundo árabe”, men-
diferentes esferas ou campo sociais.
objetivos, é preciso ler os textos - orais cionado pela senadora Gleisi Hof-
Mais especialmente, a disseminação
ou escritos - e os hipertextos de forma fmann em certo momento do vídeo, a
de fake news parece estar bastante
cada vez mais atenta. Um primeiro “terrorismo” foi feita por muitos ato-
vinculada ao campo político. O fun-
aspecto a ser observado é questão da
cionamento desse campo é descrito
confiabilidade das fontes. Mas, mes- 4 Dilma Rousseff (1947): economista e política brasileira,
filiada ao Partido dos Trabalhadores – PT, eleita duas vezes por Pierrre Bourdieu5: “Nas demo-
mo que as fontes sejam confiáveis, presidente do Brasil. Seu primeiro mandato iniciou-se em
2011 e o segundo foi interrompido em 31 de agosto de
é preciso perceber de que perspecti- 2016. Em 12 de maio de 2016, foi afastada de seu cargo 5 Pierre Bourdieu (1930 - 2002) sociólogo francês. De ori-
va elas organizam seus textos. Se as durante o processo de impeachment movido contra ela. gem campesina, filósofo de formação, chegou a docente
No dia 31 de agosto, o Senado Federal, por 61 votos fa- na École de Sociologie du Collège de France, instituição
fontes não são muito conhecidas, a voráveis ao impeachment contra 20, afastou Dilma defini- que o consagrou como um dos maiores intelectuais de
atenção deve ser redobrada. Vejamos tivamente do cargo. O episódio foi amplamente debatido seu tempo. Desenvolveu, ao longo de sua vida, mais de
nas Notícias do Dia no sítio do IHU, como, por exemplo, a trezentos trabalhos abordando a questão da dominação,
o exemplo da recente polêmica em Entrevista do Dia com Rudá Rici intitulada Os pacotes do e é, sem dúvida, um dos autores mais lidos, em todo mun-
Temer alimentarão a esquerda brasileira e ela voltará ao do, nos campos da Antropologia e Sociologia, cuja con-
torno de uma declaração em vídeo da poder, disponível em http://bit.ly/2bLPiHK. Durante o go- tribuição alcança as mais variadas áreas do conhecimento
senadora Gleisi Hoffmann a TV Al Ja- verno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a
chefia do Ministério de Minas e Energia e posteriormente
humano, discutindo em sua obra temas como educação,
cultura, literatura, arte, mídia, lingüística e política. Seu
zeera. Em seu texto, a senadora basi- da Casa Civil. (Nota da IHU On-Line) primeiro livro, Sociologia da Argélia (1958), discute a orga-

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REVISTA IHU ON-LINE

cracias parlamentares, a luta para fenômenos comunicacionais e mentes. Por outro lado, as chama-
conquistar a adesão dos cidadãos (o contemporâneos? das “forças anti-reflexivas”, repre-
seu voto, as suas quotizações, etc.) sentadas particularmente pelo setor
Anna Bentes – A meu ver, essas
é também uma luta para manter ou industrial e pelos movimentos con-
categorias estavam/estão ligadas a
subverter a distribuição do poder servadores, que defendem a ordem
ideia de instâncias mediadoras. A
sobre os poderes públicos. (...) Os capitalista mundial de qualquer crí-
emergência das interações sociais por
agentes por excelência dessa luta são tica, negando a importância de gran-
meio das tecnologias de informação e
os partidos, organizações de comba- des problemas sociais”7 estão mais
de comunicação e as diversas inter-
te especialmente ordenadas em vista do que nunca atuantes e vivas. Estão
pretações de seu papel nas socieda-
a conduzirem esta forma sublimada ocupando lugares de poder muito
des ocidentais conduziram muitos a
de guerra civil, mobilizando de ma- importantes (a presidência de vários
uma compreensão de que essas ins-
neira duradoura, por previsões pres- países do Ocidente, por exemplo) e,
tâncias mediadoras não seriam/são
critíveis, o maior número de agentes infelizmente, encontram “eco” nas
mais necessárias e que, portanto, os
dotados da mesma visão do mundo sociedades, muito em função da des-
indivíduos poderiam acessar direta-
social e do porvir”.6 crença nos atuais sistemas políticos
mente, a partir de seus repertórios e
interesses, conhecimentos e intera- e econômicos.
Se entendermos assim, podemos
pensar que a produção e a circula- ções diversificados. No entanto, isso Há um sentimento difuso de desi-
ção massiva de fake news tem mui- se mostra cada vez menos real. As lusão, desesperança, insegurança.
to a ver com práticas de militância mediações no campo do jornalismo As fake news colaboram para a con-
(defesa de uma causa, de um parti- seriam os jornalistas e sua formação, solidação dessa subjetividade “bai-
do, de uma identidade social etc.) as equipes de trabalho (presenciais xo-astral”, dado que são vetores de
que pressupõem “milícias virtuais”: ou à distância), as empresas jorna- frustração para aqueles que, em um
o que explicaria a velocidade com lísticas, as agências reguladoras das determinado momento, nelas acre-
que se espalhou o conjunto de fake práticas jornalísticas e das práticas ditaram. Se fosse só por isso, já va-
News sobre o vídeo da senadora empresariais, a legislação trabalhista leria a pena combatê-las. Para mim,
Gleisi Hoffmann para a TV Al Ja- e a legislação sobre a liberdade de im- no entanto, a busca pela compre-
zeera se não a existência de grupos prensa. Isso tudo deixa de ser impor- ensão do funcionamento das redes 45
organizados para produzir textos tante, dado que hoje, essas posições sociais está relacionada não apenas
pretensamente noticiosos sobre a profissionais podem ser ocupadas à compreensão dos modos de circu-
senadora enquanto adversária po- por pessoas sem formação jornalís- lação de informação, mas principal-
lítica? Do mesmo modo, a rápida tica e dado que há um enorme es- mente, à compreensão dos modos
proliferação de memes sobre o co- forço, especialmente no Brasil, para como os diversos atores sociais se
mentário da senadora Ana Amélia, deslegitimar as conquistas sociais engajam na produção de textos que
fazendo crer que ela fez associação desses últimos anos. Entendo que es- indiciam posicionamentos políticos
entre Al Jazeera e Al Qaeda, não po- sas categorias foram também muitas em relação aos acontecimentos do
deria acontecer se não houvesse um vezes relacionadas ao compromisso mundo social. Nesse sentido, nada
conjunto organizado de militantes com uma distribuição menos desi- está perdido. A produção de textos
que é crítico à posição dessa sena- gual do conhecimento e do acesso à nas redes sociais exemplifica de ma-
dora. Essa é, a meu ver, uma das informação. No entanto, esse tipo neira bastante concreta como os su-
“lógicas” que orientam a produção e de preocupação também está sendo jeitos do fazer textual buscam “criar
a disseminação desse gênero. fortemente questionada. Por isso, es- uma diferença” em relação a um de-
sas categorias acabam por sucumbir, terminado estado de coisas ou cur-
já que o nosso horizonte de verdade so de eventos pré-existentes. Se as
IHU On-Line – Até que pon- atual inclui a negação de certas for- redes, como os textos, possibilitam
to categorias tipicamente mo- mas de mediação. o estabelecimento de vínculos e tam-
dernas como “verdade”, “im- bém a possibilidade de transições e
parcialidade”, “objetividade”, de mudanças, é importante pensar
mais vinculadas a uma linguís- IHU On-Line – Que tipos de
que as possibilidades de criação de
tica estrutural, são capazes de valores estão sendo construí-
uma cultura participativa, que com-
dar conta da complexidade dos dos nas redes digitais e na cir-
partilhe valores mundializados, uni-
culação de conteúdos (falsos
versalizados, pode estar tanto nas
nização social da sociedade cabila, e em particular, como ou não)?
o sistema colonial interferiu na sociedade cabila, em suas redes como “tecnologia do espírito”,
estruturas e desculturação. Dirigiu, por muitos anos, a re-
vista Actes de la recherche en sciences sociales e presidiu o Anna Bentes – Por um lado, acre- como nos textos, como formas de co-
CISIA (Comitê Internacional de Apoio aos Intelectuais Ar- dito que os valores críticos (aqueles nexão entre nós e de como formas de
gelinos), sempre se posicionado clara e lucidamente con-
tra o liberalismo e a globalização. (Nota da IHU On-Line) que possibilitam o sonho com uma ação sobre o mundo social.■
6 BOURDIEU, P. “A representação política: elementos para
uma teoria do campo político”. In: O poder simbólico. Intro- sociedade outra, melhor, mais justa
dução de Diogo Ramada Curto, Nuno Domingos e Miguel
Bandeira Jerónimo. Lisboa: Edições 70, 2011, p.167-215.
e menos socialmente desigual) es- 7 KOIKE, D.; BENTES, A.C. Tweetstorms e processos de
(des)legitimação social na Administração Trump. CADER-
(Nota da Entrevistada)’ tão vivos e disputando os corações NOS CEDES, Unicamp, no prelo. (Nota da Entrevistada)

EDIÇÃO 520
TEMA DE CAPA

Cultura de verificação é um caminho


para enfrentar as fake news
Para Taís Seibt, o chamado fact-checking tensiona um aprimoramento
da cobertura jornalística e abre caminhos para a necessidade de
reflexão ao invés da reprodução automática de notícias
Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos

A
chamada Revolução 4.0 se po- e, assim, ‘ensinamos’ o algoritmo a pro-
tencializa nas redes e, inevita- pagar tais conteúdos”, aponta.
velmente, impacta também o Na entrevista a seguir, concedida por
campo de produção de conteúdo, espe- e-mail à IHU On-Line, Taís explica
cialmente o jornalismo. No mundo de que “o fact-checking está mais ligado à
hoje, a tecnologia realinha a velha lógica checagem do discurso público em si, ou
comunicacional de emissor e receptor, seja, à veracidade de declarações que
transformando todos no híbrido que influenciam a opinião pública, especial-
une esses polos. E num ambiente em mente no debate político”. Por isso, crê
que todos podem dizer o que quiserem que esse pode ser um caminho para que
e levarem isso a circulação, as fake news se crie uma cultura de verificação que
germinam. Para a jornalista e mestra vá além do jornalismo. “Mas isso é um
em Comunicação Taís Seibt, uma reação processo bastante lento. A maioria das
46 possível a esse fenômeno é o fact-che- iniciativas de checagem mantêm proje-
cking, que não só supera as fake news tos ligados ao que se poderia chamar de
como também confere um outro status ‘alfabetização midiática’”, analisa.
ao produto do jornalismo. “Os proces-
Taís Seibt é jornalista, formada pela
sos de verificação e fact-checking vêm
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
acompanhados de um método jornalís-
- Unisinos e mestra em Comunicação
tico mais transparente, que permite ao
pela mesma instituição. Doutoranda
leitor escrutinar o processo de apuração,
em Comunicação e Informação na Uni-
algo totalmente ausente da notícia em
versidade Federal do Rio Grande do
sua forma clássica”, explica.
Sul - UFRGS, atua como repórter in-
Entretanto, é preciso ter clareza e dependente. Seus estudos se centram
não ver este como um problema estri- na prática de fact-checking (checagem
tamente da tecnologia. Ou seja, não de fatos, em tradução livre) no Brasil.
é a invenção de uma máquina que vai Atuou em assessorias de imprensa e em
resolver os dilemas das fake news. “O redações como as do jornal Zero Hora,
método de verificação é essencialmente Canal Rural, O Estado de S. Paulo e
humano, assim como o mecanismo que BBC Brasil.
aciona a disseminação de informações
falsas: somos nós que compartilhamos Confira a entrevista.

IHU On-Line – As chamadas mente? O que há de novo? trais nesse processo. Se pensarmos
fake news não são nenhuma na Revolução Francesa1, havia em
Taís Seibt – Espalhar boatos para
novidade, afinal estiveram pre- deslegitimar governantes ou opo-
1 Revolução Francesa: nome dado ao conjunto de acon-
sentes nas sociedades, pelo me- nentes políticos é uma estratégia his- tecimentos que, entre 5 de maio de 1789 e 9 de novembro
nos, desde a Roma Antiga. Mas tórica, e em momentos importantes de 1799, alteraram o quadro político e social da França.
Começa com a convocação dos Estados Gerais e a Que-
como poderíamos caracterizar da história da civilização ocidental da da Bastilha e se encerra com o golpe de estado do 18
Brumário, de Napoleão Bonaparte. Em causa estavam o
o fenômeno contemporanea- os jornais foram instrumentos cen- Antigo Regime (Ancien Régime) e a autoridade do clero

23 DE ABRIL | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

“O que diferencia o fenômeno


contemporâneo das fake news não é
tanto o potencial de disseminação dessas
informações, mas sim a possibilidade
de personalização dessas mensagens”

Paris os canards2, jornais de apelo Há um contrato implícito com o sejados por um determinado públi-
bastante popular, recheados de ilus- leitor que pressupõe a credibilidade co, de acordo com suas convicções,
trações, mensagens chamativas e das informações publicadas no jor- medos, expectativas. Isso alimenta
muitos boatos. Historiadores regis- nal, é um “contrato fiduciário”. Se teorias conspiratórias, faz crescer a
tram que esses jornais tiveram um está no jornal, é porque aconteceu, desconfiança pública e pode ter efei-
papel importante para incitar o ódio é verdade. É claro que houve distor- tos sociais muito perversos.
à rainha Maria Antonieta3, que aca- ções na história, e há no presente.
bou executada em 1793. Mas é pre- Mas a verdade é um princípio jor-
nalístico, e um erro de apuração não IHU On-Line – Até que pon-
ciso contextualizar bem esses dois
pode ser confundido com má-fé. Nas to categorias tipicamente mo-
momentos antes de compará-los.
últimas três décadas, com o avan- dernas como “verdade”, “im-
No século XVIII, os jornais eram ço das mídias digitais, houve uma parcialidade”, “objetividade”
instrumentos de luta política. Não forte fragmentação da vida pública, são capazes de dar conta da
havia ainda a noção de notícia como que afetou a credibilidade não só do complexidade dos fenômenos 47
um relato dos acontecimentos, não jornalismo, mas de todas as institui- comunicacionais contempo-
havia o compromisso jornalístico de ções sociais. A globalização e o indi- râneos? Que tipos de valores
buscar a verdade sobre os fatos. Isso vidualismo são polos de um mesmo estão sendo construídos nas
vem com a Modernidade, entre o fi- fenômeno social caracterizado pela redes digitais e na circulação
nal do século XIX e início do século perda do sentido comum e também de conteúdos?
XX, com a consolidação das demo- da noção sobre o que é verdade. É Taís Seibt – A resposta ao fenô-
cracias e a garantia da liberdade de verdade o que me interessa, o que meno contemporâneo passa pela
imprensa. No pós-guerra, quando me convém. recuperação desses valores, porém
se tornam evidentes os abusos da Por isso, o que diferencia o fenô- associados a outro valor: a trans-
propaganda dos exércitos e a mani- meno contemporâneo das fake news parência. O processo jornalístico
pulação de informações sobre o que não é tanto o potencial de dissemi- moderno é tão opaco quanto a pro-
acontecia no front, os jornais assu- nação dessas informações, ou seja, gramação dos algoritmos das plata-
mem de vez o papel de fiscais do po- a ampla e rápida circulação de con- formas digitais: não há clareza sobre
der e de defesa do interesse público. teúdos via redes digitais, mas sim seus critérios e procedimentos. Se
a possibilidade de personalização pensarmos na resposta jornalística
e da nobreza. Foi influenciada pelos ideais do Iluminismo
dessas mensagens. A segmentação às fake news, os processos de verifi-
e da independência estadunidense (1776). Está entre as
maiores revoluções da história da humanidade. A Revo- cação e fact-checking vêm acompa-
é uma característica da Internet, e
lução Francesa é considerada como o acontecimento que nhados de um método jornalístico
deu início à Idade Contemporânea. Aboliu a servidão e os algoritmos das plataformas têm
os direitos feudais e proclamou os princípios universais mais transparente, que permite ao
de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” (Liberté, Egali- sido cada vez mais eficientes nisso.
leitor escrutinar o processo de apu-
té, Fraternité), lema de autoria de Jean-Jacques Rousseau. De início, soava positivo saber exa-
(Nota da IHU On-Line) ração, algo totalmente ausente da
2 O termo designa um relato ou história falsa ou infunda- tamente com que leitor estávamos
da. Na França, foram associados a jornais popularescos que notícia em sua forma clássica. Com
circularam na época da Revolução. (Nota da IHU On-Line) conversando. Mas criou-se um mer-
essa metodologia, recupera-se o sen-
3 Maria Antonieta de Habsburgo (1755-1793): arqui- cado de desinformação em torno
duquesa da Áustria e rainha consorte da França de 1774 tido da verdade e da objetividade no
até a Revolução Francesa, em 1789. Era a filha mais nova disso. Tornou-se lucrativo, tanto co-
de Maria Teresa de Habsburgo e de Francisco I da Áustria, jornalismo.
imperadores daquele país. Exerceu grande influência po- mercialmente quanto politicamente,
lítica sobre seu marido, e, consequentemente, sobre toda
a França; apesar disso, ela pouco sabia sobre a vida dos
criar, literalmente, realidades para Já imparcialidade é um conceito
plebeus franceses e o custo dela. Contam que, uma vez, públicos específicos com objetivos mais delicado. Foi em nome de uma
quando o povo se reuniu em frente ao palácio real reivin-
dicando melhores condições de vida, um dos manifestan- questionáveis. As informações não pretensa imparcialidade que o jor-
tes disse que não tinha pão para comer. Ao saber disso, só são falsas, como são encomenda- nalismo, especialmente na cobertura
disse ela: “Se não têm pão, que comam brioches”. (Nota
da IHU On-Line) das para sustentar os sentidos de- política, ficou cada vez mais “decla-

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TEMA DE CAPA

ratório”. Abre-se aspas e publica-se tícias falsas mais “apelativas” (ou dge Analytica8 jogam luz9 sobre
o que um disse e outro disse, mas sensacionalistas) circulam muito o papel dos algoritmos digitais
quem está dizendo a verdade? Se há mais e se espalham mais rápido do como mediadores sociais de in-
uma fonte falseando a opinião pú- que notícias verdadeiras em geral. formação? Estamos diante de
blica por meio da imprensa, qual o Se comparássemos o número de desafios de que ordem?
papel do jornalismo, afinal? Tenho acessos de notícias sensacionalis-
Taís Seibt – O ex-funcionário
me questionado sobre esses valores tas (verdadeiras) sobre celebrida-
da empresa que vazou as informa-
diante do fenômeno contemporâ- des, por exemplo, com notícias em
ções para a imprensa disse, em uma
neo, e vejo na prática de verificação geral teríamos um resultado pa-
entrevista para o El País10, que o
uma resposta possível. Mas precisa recido, provavelmente. Na minha
Brexit11 não teria acontecido sem a
ser uma verificação com método, e experiência em redação, era notá-
atuação da Cambridge Analytica.
um método transparente. vel que notícias desse tipo ficassem
Isso é muito preocupante. Tenho a
no topo das “mais lidas” e “mais
impressão de que ainda não temos
compartilhadas”. Então, o que faz
IHU On-Line – Muito do de- a real dimensão do impacto que es-
com que uma notícia falsa tenha
bate em torno das fake news, sas plataformas podem ter no debate
um grande poder de viralização é
sobretudo para combatê-las, público e, para além do debate, na
justamente esse apelo exagerado à
é pautado por uma perspec- definição dos rumos da sociedade
sensação – o sensacionalismo.
tiva industrial de jornalismo. propriamente ditos.
De que forma isso revela uma Entretanto, talvez a conclusão
Nessa entrevista, há uma leitura
abordagem antropocêntrica mais importante do estudo seja que
que este ex-funcionário faz sobre o
sobre o fenômeno e como pen- os grandes responsáveis pela pro-
fenômeno que me parece bem con-
sar isso nas sociedades tecno- pagação de fake news são os seres
tundente. Ele fala sobre a criação de
científicas permeadas por Inte- humanos, não os robôs. Então a so-
uma realidade sob medida para as
ligência Artificial, Internet das lução para freá-las também deve ser
convicções de cada um. Como cada
Coisas, learning machine etc? humana. Em uma entrevista para a
timeline é uma bolha, porque o al-
revista Época6, no ano passado, a
Taís Seibt – Quando me consul- goritmo não entende o sentido da
48 matemática estadunidense Catheri-
tam sobre como funciona o fact-che- pluralidade, mostra apenas aquilo
ne O’Neil7 deixou claro que “não te-
cking, vejo que há uma expectativa que nos agrada, as pessoas ficam
mos uma tecnologia de inteligência
de que eu revele alguma ferramenta condicionadas a um tipo de discur-
artificial que identifique verdades e
tecnológica mágica que possibilite so. Quando veem o noticiário na
mentiras” e que a melhor forma de
identificar se uma informação é ver- televisão ou em um site jornalístico
combater fake news nas redes seria
dadeira ou falsa. É claro que existem “criar processos e políticas editoriais
recursos maquínicos que auxiliam transparentes para que profissionais 8 Cambridge Analytica: é uma empresa privada que
nesse processo, inclusive, iniciati- humanos façam a seleção do conte- combina mineração e análise de dados com comunicação
estratégica para o processo eleitoral. Foi criada em 2013,
vas como Aos Fatos4 e Lupa5 estão údo da melhor forma possível”. É como um desdobramento de sua controladora britânica,
desenvolvendo em parceria com claro que há um enorme ponto de a SCL Group para participar da política estadunidense.
Em 2014, a CA participou de 44 campanhas políticas. A
Twitter e Facebook robôs de checa- interrogação aí, porque a capacida- empresa é, em parte, de propriedade da família de Ro-
bert Mercer, um estadunidense que gerencia fundos de
gem para atuar contra fake news já de humana de verificação é infinita- cobertura e que apoia muitas causas politicamente con-
nas próximas eleições. Mas o méto- mente menor do que a programação servadoras. A empresa mantém escritórios em Nova York,
Washington, DC e Londres. (Nota da IHU On-Line)
do de verificação é essencialmente algorítmica (matemática) de disse- 9 O Instituto Humanitas Unisinos - IHU, na seção Notícias
do Dia em seu sítio, publicou diversos textos acerca desse
humano, assim como o mecanismo minar informação. De toda forma, acontecimento. Entre eles Facebook: adeus à ingenuidade,
que aciona a disseminação de infor- uma visão mais antropocêntrica do disponível em http://bit.ly/2HhGmtC; e Facebook admite
que coleta dados de quem não tem conta na plataforma,
mações falsas: somos nós que com- fenômeno tende a ter efeitos sociais disponível em http://bit.ly/2EYtaZ1. Acesse mais em ihu.
partilhamos e, assim, “ensinamos” o unisinos.br/maisnoticias/noticias. (Nota da IHU On-Line)
mais benéficos. A tecnologia não re- 10 Entrevista disponível em http://bit.ly/2qJro91. (Nota da
algoritmo a propagar tais conteúdos. solve tudo. entrevistada)
11 Brexit: a saída do Reino Unido da União Europeia é
apelidada de Brexit, palavra-valise originada na língua in-
Um recente estudo sobre fake glesa resultante da fusão das palavras Britain (Grã-Breta-
news do Instituto de Tecnologia de nha) e exit (saída). A saída do Reino Unido da União Euro-
IHU On-Line – Como o escân- peia tem sido um objetivo político perseguido por vários
Massachusetts - MIT, divulgado na indivíduos, grupos de interesse e partidos políticos, desde
dalo do Facebook e da Cambri- 1973, quando o Reino Unido ingressou na Comunidade
revista Science, versa sobre isso. Econômica Europeia, a precursora da UE. A saída da União
Alguns pesquisadores têm critica- é um direito dos estados-membros segundo o Tratado da
União Europeia. A saída foi aprovada por referendo reali-
do a forma como eles divulgaram 6 A entrevista está disponível em https://glo.bo/2J8yBXK. zado em junho de 2016, no qual 52% dos votos foram a
suas conclusões, pois, na verdade, (Nota da entrevistada)
7 Catherine Helen O’Neil: conhecida como Cathy, é uma
favor de deixar a UE. O Instituto Humanitas Unisinos - IHU,
na seção Notícias do Dia de seu sítio, publicou uma série
o que eles identificaram é que no- matemática americana e autora do blog mathbabe.org, de análises sobre o tema. Entre elas, A alma da Europa
além de vários livros sobre ciência de dados, incluindo depois do Brexit, artigo de Roberto Esposito, publicado no
Weapons of Math Destruction. Foi a ex-diretora do Pro- jornal La Repubblica e reproduzido nas Notícias do Dia de
grama Lede em Práticas de Dados na Escola de Pós-Gra- 1-7-2016, disponível em http://bit.ly/2gazMuF; e O Brexit
4 Saiba mais sobre a iniciativa em https://aosfatos.org/. duação em Jornalismo da Universidade de Columbia, Tow e a globalização, artigo de Luiz Gonzaga Belluzzo, publi-
(Nota da IHU On-Line) Center e foi contratada como Consultora de Ciência de cado por CartaCapital e reproduzido nas Notícias do Dia
5 Saiba mais sobre a iniciativa em http://piaui.folha.uol. Dados na Johnson Research Labs. Ela mora em Nova York de 12-7-2016, disponível em http://bit.ly/2eY4F68. Confira
com.br/lupa/. (Nota da IHU On-Line) e é ativista no movimento Occupy. (Nota da IHU On-Line) mais textos em ihu.unisinos.br. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

convencional e não encontram eco tudo ao contrário? Todo mundo tem política baseada no “ele disse”, “ela
àquele discurso, isso alimenta ideias um grupo da família ou da academia disse”. O fact-checking estabelece
conspiratórias. A perda de credibili- no WhatsApp que é um repositório uma crítica a esse modelo de cober-
dade do jornalismo tradicional nas imenso de fake news. Não faz o me- tura. Nesse sentido, diz mais sobre
últimas décadas passa muito por nor sentido dar mais crédito à infor- como se faz jornalismo do que sobre
isso. Mas quem, afinal, está criando mação de um parente do que a uma como se faz política, porque a men-
(ou falseando) realidades? E com notícia apurada por um jornalista. É tira, a distorção faz parte da estra-
que objetivos? mais uma das distorções do fenôme- tégia política historicamente, como
no contemporâneo que corrói a con- já mencionamos. Mas o jornalismo
fiança social. tem compromisso com a verdade.
IHU On-Line – Existem dados Já nos anos 1990, a imprensa esta-
quantitativos sobre a circula- O fact-checking tenta responder a
dunidense começou a prestar aten-
ção de notícias em aplicativos isso, reposicionando o próprio jor-
ção nas imprecisões do presidente
como WhatsApp? Dado que se nalismo, por meio da verificação.
Ronald Reagan19 em seus pronun-
trata de um ambiente relativa- Correntes de WhatsApp são checa-
ciamentos. O The Washington Post
mente novo de circulação de das frequentemente, porém há uma
passou a publicar barras laterais na
conteúdos, como o fact-che- outra nomenclatura usada para ca-
edição, chamadas de “truth boxes”
cking pode contribuir para re- racterizar essa prática de desbancar
(caixas da verdade), questionando
duzir a problemática em torno boatos: debunking. O método e o
dados do presidente. Na campanha
das fake news? objetivo do debunking é um pouco
eleitoral de 1992, a CNN colocou no
diferente do fact-checking. No Bra-
Taís Seibt – Uma pesquisa12 re- ar um quadro em que Brooks Jack-
sil, temos o Boatos.org15 e o E-far-
cente do Instituto Reuters13 mostra son20 confrontava declarações dos
sas16, que são especialistas nisso. O
um crescimento de 15% no consumo candidatos.
fact-checking está mais ligado à che-
de notícias via WhatsApp e queda de cagem do discurso público em si, ou Isso está documentado no traba-
12% para consumo de notícias via seja, a veracidade de declarações que lho de Lucas Graves21, que escreveu
Facebook. Uma das razões para isso, influenciam a opinião pública, espe- sua tese de doutorado, defendida em
segundo os pesquisadores, é que no cialmente no debate político. Para 2013 na Universidade Columbia, so-
WhatsApp, por ser uma rede priva- 49
isso, há um método de apuração bre fact-checking. Com o crescimen-
da, o usuário se relaciona apenas que segue um código de princípios to da web, essa prática encontrou
com amigos e familiares. Isso redu- compartilhado internacionalmen- espaço para “amadurecer” e hoje já
ziria constrangimentos por compar- te. As iniciativas mais consolidadas conta com uma rede internacional,
tilhar certos conteúdos e aumentaria no Brasil são o Truco17, o Aos Fatos a International Fact-checking Ne-
a confiança do usuário nas mensa- e a Lupa, mas há outras espalhadas twork - IFCN22, que tem um código
gens que recebe, porque ele acredita em veículos de referência ou mídias de princípios compartilhado, realiza
nos amigos e familiares – mais do locais, como o Filtro18, recém criado encontros anuais e promove tanto a
que na mídia. para fazer checagens com foco no prática quanto a reflexão sobre ela.
Se pensarmos na mudança de al- Rio Grande do Sul. Graves considera o fact-checking
goritmo que o Facebook anunciou um movimento de reforma do jor-
no começo do ano (e levou a Fo- nalismo, e uma reforma que parte
IHU On-Line – Como as ini- de um princípio fundamental da ide-
lha14 a sair da rede), a explicação
ciativas de fact-checking ologia profissional: a objetividade.
do Reuters tem lógica. O Facebook
podem contribuir no atual O método de verificação é um mé-
resolveu priorizar informações de
contexto brasileiro, especial- todo para a objetividade do discur-
amigos e desidratar páginas, com a
mente em um ano eleitoral?
justificativa de frear a disseminação
E para o jornalismo, qual sua
de fake news. Não parece que está
contribuição? 19 Ronald Reagan (1911-2004): ator norte-americano
formado em economia e sociologia. Foi eleito governador
da Califórnia em 1966, e se reelegeu em 1970 com uma
12 A pesquisa está disponível em http://bit.ly/2K10Ite.
Taís Seibt – O fact-checking sur- margem de um milhão de votos. Conquistou a indicação à
(Nota da entrevistada) giu nos Estados Unidos como uma presidência pelo Partido Republicano em 1980, e os elei-
13 Instituto Reuters: O Reuters Institute é o centro de tores, incomodados com a inflação e com os americanos
pesquisa da Universidade de Oxford sobre questões que espécie de resposta ao jornalismo mantidos há um ano como reféns no Irã, o conduziram
afetam a mídia global. O Instituto foi fundado no Departa- à Casa Branca. Antes de ocupar a presidência, passou 28
mento de Política e Relações Internacionais da Universida-
“declaratório”. Havia uma insatisfa- anos atuando como ator em 55 filmes que não entraram
de de Oxford em 2006 para conduzir pesquisas acadêmi- ção dos jornalistas com a cobertura para a história, mas que lhe deram fama e popularidade.
cas e profissionais em mídia noticiosa, operar o Programa Sua carreira no cinema terminou em 1964, em “The Kil-
de Bolsas de Estudo de Jornalismo da Thomson Reuters lers”, único filme em que atuou como vilão. (Nota da IHU
e hospedar bolsistas de pesquisa acadêmica. O Instituto On-Line)
Reuters recebe financiamento da Thomson Reuters Fou- 15 Saiba mais sobre a iniciativa em http://www.boatos. 20 Brooks Jackson: jornalista e diretor emérito do site
ndation e fundos adicionais de empresas de mídia, fun- org/. (Nota da IHU On-Line) de fatos políticos FactCheck.org. Ele foi cofundador do
dações e academias científicas em todo o mundo. (Nota 16 Saiba mais sobre a iniciativa em http://www.e-farsas. FactCheck.org com Kathleen Hall Jamieson em 2003 e foi
da IHU On-Line) com/. (Nota da IHU On-Line) o diretor do site até Eugene Kiely assumir em janeiro de
14 Saiba mais sobre esse caso acessando o texto A Folha 17 Saiba mais sobre a iniciativa da Agência Pública em 2013. (Nota da IHU On-Line)
saiu do Facebook. E agora?, publicada nas Notícias do https://apublica.org/checagem/ (Nota da IHU On-Line) 21 Acesse o trabalho em http://bit.ly/2He9Ict. (Nota da
Dia de 15-2-2018, no sítio do Instituto Humanitas Uni- 18 A iniciativa ainda busca captação de recursos. Saiba entrevistada)
sinos - IHU, disponível em http://bit.ly/2J971th. (Nota mais sobre o projeto e como participar em http://bit.ly/ 22 Saiba mais em http://bit.ly/2JXmePk. (Nota da entre-
da IHU On-Line) 2J8OpcQ. (Nota da IHU On-Line) vistada)

EDIÇÃO 520
TEMA DE CAPA

so jornalístico – não do jornalista, comunicação: a economia das pla- negócio dessas empresas, que afinal
são coisas diferentes. Isso já estava taformas digitais. Quando a cir- lucram com o compartilhamento
presente enquanto conceito em ou- culação do conteúdo passa para o de conteúdos, sejam eles falsos ou
tros estudos, como o trabalho de domínio dessas plataformas, toda verdadeiros. Então não há interesse
Bill Kovach23 e Tom Rosenstiel24, Os a dinâmica do mercado de mídia se nessa discussão.
Elementos do Jornalismo, que, no altera. A começar pela destinação
Mas medidas legais também são
início dos anos 2000, já destacava a dos recursos publicitários, principal
delicadas. Se a regulação do que
verificação como um elemento cen- fonte de financiamento da indústria
é verdadeiro ou falso ficar a cargo
tral e diferencial do jornalismo em jornalística durante o século XX.
de um órgão governamental, por
relação a outros discursos, como a Quando essa receita passa a ser ad-
exemplo, quais as possíveis conse-
arte e a própria política. ministrada pelas plataformas e elas
quências disso? Especialmente se
se transformam na principal fonte
O que o fact-checking faz é alçar pensarmos no debate político, isso
de informação dos leitores, o mode-
procedimentos de apuração ao pa- é um problema. Mesmo havendo
lo de negócio da mídia tradicional
tamar de produto final, criando um previsão de sanções legais para o
entra em colapso.
tipo específico de discurso jornalís- compartilhamento de informações
tico, que é complementar à cobertu- A resposta inicial do mercado foi falsas, como um juiz poderá deli-
ra tradicional, ainda que seu méto- apostar nas chamadas matérias berar sobre isso? Com base em que
do possa ser replicado em quaisquer “caça-clique”, o que de alguma ma- elementos? No caso envolvendo a
outros formatos. Para o jornalismo, neira acabou contribuindo para vereadora Marielle Franco, que,
isso é uma oportunidade de recupe- essa cultura apelativa de consumo depois de ser assassinada violen-
rar sua identidade e seu valor nas de informação nas redes, que hoje tamente no Rio de Janeiro, foi ví-
sociedades democráticas. Para a so- repercute na disseminação de fake tima de ataques à sua imagem nas
ciedade, especialmente em ano elei- news. O problema é que essa cultura redes sociais, páginas que dissemi-
toral, isso significa mais informação não se restringe ao entretenimento naram fake news sobre ela foram
qualificada no debate público, ele- e avança cada vez mais profunda- responsabilizadas e até retiradas
mento fundamental para a tomada mente na política. Isso pode ter um do ar. Mas veja só, o conteúdo foi
50 de decisão. Quando escolhemos em impacto perverso nos processos de- desbancado por iniciativas de fact-
quem votar, estamos escolhendo mocráticos. Em tese, informação de checking antes de chegar à Justiça
em quem confiar. É preciso confiar, qualidade ajuda os cidadãos a tomar (os sites Aos Fatos e Boatos.org fi-
primeiro, no que dizem nossos re- melhores decisões, porque permite zeram a verificação).
presentantes. Nesse sentido, vejo um conhecimento mais amplo da re- Diante do desinteresse das plata-
o fact-checking como um benefí- alidade. Quando temos uma visão de formas em assumir compromissos
cio não só para a mídia, mas para mundo restrita, pela contaminação editoriais e dos riscos de uma regu-
o processo democrático de forma do discurso público com conteúdos lação governamental que possa des-
mais ampla. encomendados e que falseiam pro- cambar para a censura, o caminho
positalmente a realidade, é bem pro- que resta ainda é criar uma cultura
vável que nossas decisões não serão de verificação, mas isso é um pro-
IHU On-Line – Como toda as melhores. cesso bastante lento. A maioria das
essa dinâmica das fake news iniciativas de checagem mantêm
produz uma nova economia po- projetos ligados ao que se poderia
lítica da comunicação? De que IHU On-Line – Como comba-
chamar de “alfabetização midiáti-
forma isso impacta nos proces- ter a produção das fake news
ca”. O Truco e o Aos Fatos têm tra-
sos democráticos? sem escorregar na censura?
balhado na tradução de guias sobre
Taís Seibt – Eu não diria que Taís Seibt – A melhor alternativa, verificação e combate a fake news
as fake news produzem uma nova e a que vem sendo há muito tempo produzidos pela IFCN, estão todos
economia política da comunicação, defendida por pesquisadores nos disponíveis on-line. A Lupa man-
mas sim que elas se beneficiam de Estados Unidos, que estão mais pró- tém diversas ações através do Lupa
uma nova economia política da ximos do Vale do Silício, seria as pla- Educação. No Filtro, todas as re-
taformas assumirem compromissos compensas da nossa campanha de
23 Bill Kovach: jornalista americano de ascendência alba- editoriais. Só que elas têm se esqui- financiamento coletivo incluem um
nesa, ex-chefe do Departamento de Washington do The
New York Times, ex-editor do Atlanta Journal-Constitution
vado disso, alegando que são apenas tipo de contrapartida social, com
e coautor do livro Os elementos do jornalismo: o que os jor- um canal de distribuição e, por isso, foco na disseminação de informa-
nalistas devem saber e o público exigir (Geração Editorial,
2004). (Nota da IHU On-Line) não têm responsabilidade sobre os ção contra fake news. A visibilidade
24 Tom Rosenstiel: escritor americano, jornalista, crí- conteúdos. Está cada vez mais cla-
tico de imprensa e diretor executivo do American Press
que o debate sobre esse tema está
Institute. Ele também é membro sênior não residente da ro que não é bem assim, mas não há ganhando é uma oportunidade para
Brookings Institution. Rosenstiel foi fundador e por 16
anos diretor do Projeto para Excelência em Jornalismo uma regulamentação sobre as reais se preencher esses espaços e, quem
(PEJ), uma organização de pesquisa que estuda os meios
de comunicação e faz parte do Pew Research Center em
responsabilidades das plataformas. sabe, impulsionar uma tomada de
Washington. (Nota da IHU On-Line) E isso é benéfico para o modelo de consciência. ■

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EDIÇÃO 520
CRÍTICA INTERNACIONAL

Honduras: governo ilegítimo


e regime autoritário civil
Bruno Lima Rocha

O
presidente ilegítimo JOH aplica de forma integral
o novo modelo de dominação latino-americana:
judicialização da política e fraudes dentro do frágil
sistema de consulta eleitoral. No centro decisório, as me-
tas estratégicas de desmonte das capacidades nacionais e
privatização de áreas estratégicas como setor elétrico, vias
públicas e águas. O regime executa mais de 500 projetos
privatizantes após a fraude eleitoral.
Bruno Lima Rocha é graduado em Jornalismo pela
UFRJ, doutor em Ciência Política pela UFRGS e professor
da Unisinos.
Eis o artigo.

A América Latina está diante de uma nova guinada à direita, em um período quando o me-
52 canismo eleitoral – a frágil soberania popular parcialmente tolerada pela democracia indireta
liberal-burguesa – se vê ameaçado. Até a ilusão de indicar um mandatário em formato quase
plebiscitário está concorrendo contra sutis manipulações (através de algoritmos e fake news) até
fraudes escancaradas e grosseiras, como é o caso atual de Honduras.
Em 26 de novembro de 2017, foram realizadas eleições gerais no país centro-americano que
nos anos 1980 foi base territorial para a chamada “contrarrevolução” da América Central, com
ênfase na presença imperialista contra o regime sandinista na Nicarágua. Durante a aplicação
da “teoria do dominó” na Era Reagan, acompanhada do emprego da guerra de extermínio de
terra arrasada, Honduras foi o país que recebeu maior contingente de contras nicaraguenses e
cujos oficiais de carreira nas forças armadas têm a maior proporção de pessoal militar treinado
nos EUA.
A história das eleições de 2017 tem relação direta com o passado pró-imperialista dos anos
1980. O presidente Juan Orlando Hernández (JOH, eleito em janeiro de 2014, oligarca e pró
-yankee do Partido Conservador) modificou a constituição do país, garantindo o estatuto da
reeleição. Vale lembrar que, em junho de 2009, o então presidente José Manuel Zelaya Rosales
(um oligarca remodelado do Partido Liberal), eleito em 2006, tentou modificar a carta magna
do país (escrita por generais formados na Escola das Américas, liderados pelo ditador-general
Policarpo Paz García, e decretada em janeiro de 1982), e a resposta da Suprema Corte de Jus-
tiça foi autorizar a intervenção militar e empossar a Ricardo Micheletti – cujo governo não foi
reconhecido internacionalmente – até a eleição do conservador Porfírio Lobo (em um pleito em
que Zelaya foi proibido de concorrer) em 2010. Desde então, a presença política do Partido Li-
beral – que em um típico giro latino e centro-americano se torna uma legenda progressista e de
centro-esquerda – vem sendo tolhida pela força do aparelho de Estado e com a cumplicidade de
órgãos internacionais. O próprio Zelaya Rosales retornou ao país após o golpe, ficando protegido
dentro da Embaixada do Brasil em Tegucigalpa por mais de quatro meses, até partir para o exílio
definitivo. Zelaya participou em 2017 da campanha vitoriosa e fraudada pelo Partido Conserva-
dor e hoje coordena a desobediência civil contra o golpe eleitoral.
Não bastasse mudar as regras do jogo com a partida em andamento, JOH concorreu contra
Salvador Nasralla (Partido Liberal e indicado político por Zelaya Rosales) e estava perdendo
na contagem de votos quando houve um mais que suspeito apagão elétrico no país (a conta-

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“Honduras é um país com quase dez


milhões de habitantes convivendo com
um altíssimo índice de extrema pobreza.”

gem de votos é manual, e as cédulas em papel), levando o Tribunal Supremo Eleitoral - TSE de
Honduras a suspender o anúncio do vencedor. Passados 17 dias, a corte eleitoral dominada por
partidários de JOH e apoiadores do golpe de 2009 reconhece a vitória da situação, convertendo
Honduras em uma autêntica ditadura civil.
O fato político, uma fraude eleitoral evidente através de um governo que alterna a Constituição
– permitindo a autorreeleição e não é impedido pela Suprema Corte, o oposto do que ocorrera
em 2009 –, implica em um novo padrão na América Latina. Honduras reproduziu na América
Central uma vergonhosa fraude eleitoral como a ocorrida no pleito presidencial do México em
2006. Na ocasião, Felipe Calderón (concorrendo pelo Partido da Ação Nacional, PAN, de corte
neoliberal e que rompera com mais de 70 anos de domínio priista) ganhou a corrida fraudando
as urnas contra Andrés Manuel López Obrador (do Partido da Revolução Democrática, PRD,
então ex-governador do Distrito Federal de Cidade do México). Novamente a fraude se deu na
contagem eleitoral, levando o país tanto ao impasse como definindo a ilegitimidade do governo
“eleito”. Os votos da cidadania mexicana começaram a ser contados em 6 de julho, e os resulta-
dos só foram confirmados em setembro de 2006. Em Honduras, ocorreu algo muito semelhante,
somado ao requinte de um suspeito acidente de helicóptero onde estava a irmã do presidente
JOH e mais cinco pessoas, mas no momento exato em que o candidato eleito Nasralla estava em
Washington pedindo o apoio – não concedido – do Departamento de Estado e da Organização 53
dos Estados Americanos - OEA.
Para além da coalizão eleitoral que ganhou, mas não levou, se verifica diariamente em Hondu-
ras um contínuo estado de desobediência civil e indignação coletiva iniciados em julho de 2009,
quando do primeiro golpe civil com aval da Suprema Corte. Tal padrão se mantém e ganhou
intensidade na virada do ano de 2017 e agora em 2018. Mais da metade da população sequer
reconhece o governo reeleito através da fraude, e o Poder Executivo “governa” através do frágil
apoio das forças armadas do país e com o aval da Casa Branca.
Como o governo ilegítimo de Juan Orlando Hernandez atua de forma discricionária e assina
uma série de parcerias público-privadas, sistemas de concessões e privatizações de quase toda a
frágil infraestrutura existente no país, já se afirma que o Partido Conservador, em consonância
com os EUA, instalou um regime. Este teria como base um poder autoritário civil, eleições frau-
dadas, frágil legitimidade e, ao mesmo tempo, um consenso de elite local de desmonte das con-
dições básicas de o país aderir ao Sistema de Integração Centro-Americano - SICA e o Mercado
Comum do istmo, mas de forma soberana, sem abrir para a presença do capital transnacional de
forma absurda, sem controle algum e com ausência de soberania.
A grande possibilidade de o povo hondurenho, o país e os países vizinhos alcançarem um de-
senvolvimento baseado em suas próprias necessidades e demandas seria justamente o oposto,
promovendo uma integração horizontal entre os países vizinhos e sempre defendendo os recur-
sos naturais e a infraestrutura já existente.
Honduras se apresenta como o laboratório da distopia neoliberal latino-americana, com o au-
mento do custo de vida e da pobreza, assim como da rebelião permanente.

Expediente
Coordenador do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto
Stumpf Paes Leme
Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

EDIÇÃO 520
PUBLICAÇÕES

A perversão da política moderna:


a apropriação de conceitos
teológicos pela máquina
governamental do Ocidente

E
m sua edição de número 269, o Cadernos IHU Ideias apresenta o arti-
go A perversão da política moderna: a apropriação de conceitos teo-
lógicos pela máquina governamental do Ocidente, de Osiel Lourenço
de Carvalho. O autor cita que Giorgio Agamben, em O Reino e a Glória, faz
uma genealogia teológica do poder. Para ele, o poder assumiu a forma de uma
“economia”. Em sua análise, Agamben discute a oikonomia com pais da Igre-
ja, como Tertuliano, Irineu, Santo Agostinho
e Tomás de Aquino. Nos primeiros séculos,
o cristianismo procurou conciliar o monote-
ísmo com a doutrina da Trindade (Pai, Filho
e Espírito Santo) e, a partir daí, discutiu-se a
oikonomia, a qual está relacionada com o go-
verno dos homens e das coisas. Para Agam-
ben, esse paradigma teológico-econômico se
54 fundiu com a doutrina da providência divi-
na. Esses imaginários teológicos teriam sido
assumidos pela máquina de governo do Oci-
dente, configurando, assim, a concepção de
um Estado-providência. Todavia, esse gover-
no não é apenas poder, mas é também glória.
Desse modo, há marcas teológicas no Estado
moderno. O autor acredita que, ao incorpo-
rar conceitos teológicos secularizados, a má-
quina governamental perverteu a política, e
o resultado desse processo foi a efetivação do
estado de exceção e da biopolítica.
Osiel Lourenço de Carvalho é doutor em Ci-
ências da Religião pela Universidade Meto-
dista de São Paulo, mestre em Teologia pela
Escola Superior de Teologia – EST, bacharel
em Teologia e licenciado em História. É pro-
fessor e pesquisador da Faculdade Refidim
(Joinville).
A versão completa do artigo em PDF está
disponível em https://bit.ly/2K4bija.
Esta e outras edições dos Cadernos IHU ideias também podem ser obtidas
diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no campus São Leo-
poldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço humani-
tas@unisinos.br. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

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Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

Jornalismo pós-industrial. Caminhos para


um pós-jornalismo
Edição 447 – Ano XIV – 30-6-2014

As novas mídias, a tecnologia ubíqua e as redes sociais permitiram a ar-


ticulação de uma sociedade midiatizada e tensionam o jornalismo tradi-
cional em diversas instâncias, num contexto que pesquisadores nomear-
am jornalismo pós-industrial. No entanto, enquanto o termo descreve
bem o futuro no qual já estamos inseridos, seria possível vislumbrar o
que vem em seguida.

Arqueologia da mídia. Um passado presente


55

Edição 375 – Ano XI – 3-10-2011

“Não aceitamos a ideia de que a mídia tenha sido inventada no século


XIX com o advento da fotografia, telefonia e cinematografia, ou seja, que
a mídia seja resultado da industrialização.” Assim o pesquisador alemão
Siegfried Zielinski compreende a arqueologia da mídia, conceito por ele
criado e que inspira o debate desta edição.

Mídia livre? A democratização da


comunicação

Edição 254 – Ano VIII – 14-4-2008

O que é hoje, no Brasil, uma mídia livre ou alternativa? Esta, entre out-
ras, é a questão debatida nesta edição.

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