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Artigo

DOI: 10.18468/pracs.2018v11n1.p39-50

Caminhos do saber Arukwayene nas águas da história: a emergência


da historicidade Palikur em narrativas de memória

Carina Santos Almeida1


Elissandra Barros da Silva2

RESUMO: Os Palikur-Arukwayene são um povo indígena que vivem em ambos os lados


da fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa e, juntamente com Karipuna, Galibi-
Marworno e Galibi-Kalinã, constituem o que a literatura convencionou chamar de po-
vos indígenas de Oiapoque. Este artigo aborda a emergência da “historicidade” deste
povo a partir das narrativas dos sábios Wet e Tebekwe e, ao mesmo tempo, analisa
como estes sábios, de forma singular e distinta, são reconhecidos e referenciados por
esta sociedade. A “latência” de saberes palikur-arukwayene emerge dos estudos e
pesquisas que vem sendo desenvolvidas há alguns anos com o povo e, em decorrência
disso, fomentam a (re)escrita da história a partir das interseções com as narrativas de
vida, relatos de experiências, transmissão e compartilhamento de conhecimentos dos
sábios. Neste percurso, fizemos o registro e documentação de narrativas que possibili-
tam considerar que muitos dos saberes do povo mantem-se vivos e presentes nas
lembranças e reminiscências de memórias dos antigos.
Palavras-chave: Palikur-Arukwayene; História; Memória; Narrativa.

Arukwayene knowledge path in the waters of history: the emergency


of Palikur history in memory narratives
ABSTRACT: The Palikur-Arukwayene are an indigenous group living on both sides of
Brazil and French Guiana and, together with Karipuna, Galibi-Marworno, and Galibi-
Kalinã, constitute what the literature has called the indigenous peoples from Oiapo-
que. This paper addresses the emergence of the “historicity” of this people from the
narratives of the sages Wet and Tebekwe, and at the same time analyzes how these
sages, in a singular and distinct way, are recognized and referenced by this society. The
“latency” of Palikur-Arukayene knowledge emerges from the studies and research that
have been developed a few years ago with the people and, as a result, foster the
(re)writing of history from the intersections with life narratives, experiences, transmis-
sion, and sharing the sages’ knowledge. In this journey, we have recorded and docu-
mented narratives that make it possible to consider that many of the people’s kno-
1
Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Adjunta da Universidade Fede-
ral do Amapá, atuando no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena. Membro do Núcleo Kusuvwi de Estudos Pali-
kur-Arukwayene (NUKEPA) e participante do Saberes Indígenas na Escola com o povo Palikur-Arukwayene (e-mail:
carina_almaid@yahoo.com.br).
2
Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora Adjunta da Universidade Fe-
deral do Amapá, atuando no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena. Membro do Núcleo Kusuvwi de Estudos
Palikur-Arukwayene (NUKEPA) e participante do Saberes Indígenas na Escola com o povo Palikur-Arukwayene (e-
mail: elisbarros22@gmail.com).

PRACS: Revista Eletrônica de Humanidades do Curso de Ciências Sociais da UNIFAP


https://periodicos.unifap.br/index.php/pracs ISSN 1984-4352 Macapá, v. 11, n. 1, p. 39-50, jan./jun. 2018
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wledge remains alive and present in the memories and reminiscences of the memories
of the ancients.
Keywords: Palikur-Arukayene; History; Memory; Narrative.

1 DESCOLONIZANDO CERTEZAS: EMER- latência do saber permanece e consegue,


GÊNCIA DE SABERES A PARTIR DAS ME- por vezes, irromper o silêncio. Nesse senti-
MÓRIAS PALIKUR-ARUKWAYENE do, este artigo visa problematizar a “memó-
ria de velhos” como fator de
São muitas as latências que permanecem (re)conhecimento para a (re)escrita da his-
invisíveis e silenciosas ao longo do tempo tória na sociedade arukwayene. Latência
na trajetória histórica dos povos, na maioria esta que traz consigo, inclusive, a discussão
das vezes, sem nunca serem manifestas e sobre o pertencimento adormecido nos sa-
desveladas. O conceito de latência, como beres, nas lembranças e nas reminiscências
aqui utilizado, foi emprestado de Gumbre- de dois personagens distintos e antagônicos
cht (2014) em suas reflexões sobre o pós- em suas trajetórias de vida, mas que, ao
Segunda Guerra Mundial. O autor destaca a mesmo tempo, são considerados persona-
presença invisível das histórias que nunca gens centrais da história do povo. Os senho-
ouvimos, exemplifica para este conceito res Wet e Tebekwe, também conhecidos
que: como Manuel Antonio dos Santos e Manoel
Labontê, possuem trajetórias de vida muito
“[...] Numa situação de latência, sempre diferentes e que a sociedade arukwayene
que há um passageiro clandestino, senti- passou a reconhecer, seja pela importância
mos que existe alguma coisa (ou alguém) e singularidade do que narram, seja pela
que não conseguimos agarrar ou tocar narração de novos elementos para a com-
[...]. Além do mais, aquilo que está laten- preensão da história do povo.
te sofre transformações durante o tempo
A experiência mnemônica de recordar e
que permanece oculto. Um passageiro
clandestino envelhece, por exemplo. Mais
narrar as histórias aos mais jovens, de gera-
importante: não temos razão – ao menos ção em geração, como elemento que faz
não temos uma razão sistemática – para parte da situação de pertencimento, se
acreditar que o que quer que tenha en- constitui, hoje, um desafio aos Palikur-
trado num estado latente algum dia virá a Arukwayene. Na transmissão geracional
revelar-se, ou se não virá a ser esqueci- muitas destas narrativas se perdem no pas-
do” (2014, p.40). sado histórico e se distanciam do presente
cotidiano, histórias essas pautadas em tem-
Entre os Palikur-Arukwayene, povo que pos cosmológicos; narrativas que se refe-
reside ao longo do curso do rio Urukawá 3, a rem ao saber adormecido nos vínculos xa-
mânicos e nas concepções nativas de com-
3
É importante salientar que hoje este povo também preensão do mundo, não mais recorrente
reside nas cabeceiras do rio Urukawá, nas proximida-
des da BR-156, situação de vigia decorrente do movi-
em boa parte da sociedade palikur-
mento de controle e gestão de seu território, em con- arukwayene. Nas últimas décadas do século
sonância com as políticas indígenas adotadas para a
proteção da Terra Indígena Uaçá quando da instalação,
implantação e atravessamento desta rodovia federal em suas terras.

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XX os novos caminhos religiosos pentecos- Palikur-Arukwayene foram considerados


tais conduziram esta sociedade à adoção de pelos agentes da proteção tutelar do Estado
outras crenças que se manifestaram, em brasileiro como os “índios mais atrasados”
muitos momentos, em descompasso e con- em comparação aos outros povos indíge-
flitantes com a tradição xamânica e cosmo- nas. Contraditoriamente, se há “índios atra-
lógica.4 sados” é porque há, nas palavras de quem
Os Palikur-Arukwayene compartilham a afirma, “índios” que são considerados o
Terra Indígena Uaçá com outros povos, co- inverso disso. Em seu Relatório de Viagem,
mo os Galibi (Marworno) do rio Uaçá e os escrito em julho de 1957, o 1º tenente mé-
Karipuna do rio Curipi. Juntos, foram reco- dico do Exército Brasileiro, o sr. Dr. José
nhecidos ao longo do século XX como “indí- Serur, afirma que visitou a “Vila do Urucau-
genas do Oiapoque” e apresentam seme- á” e registrou que “[...] não tivemos muito o
lhanças circunstanciais, como também es- que ver. São índios atrasados, aliás, os mais
pecificidades socioculturais, decorrentes de atrasados da região”.5
suas experiências no processo histórico re- Atualmente, os estudos sobre protago-
gional. A narrativa de alteridade estabelece nismo indígena, imaginários, mentalidades
certa assimetria social de pertencimento e representações evidenciam que os povos
ameríndio, com discursos que diferenciam indígenas, na trajetória da história do Brasil,
os povos indígenas de Oiapoque alimentan- foram envolvidos pela construção de mito-
do a falsa ideia de critérios de indianidade. grafias, compondo os binômios sociais de
O etnólogo Curt Nimuendajú ao conhe- oposição – como “civilizado versus selva-
cer, em 1925, a região do rio Oiapoque e gem” – dentro do que se convencionou
seus afluentes – como a bacia hidrográfica chamar de processo civilizatório.6 Nesse
do rio Uaçá, que compreende os rios Uru- jogo de sentidos, as categorias que usual-
kawá e Curipi –, caracterizou a população mente são recorrentes pelos agentes go-
indígena do rio Curipi como “brasileiros in- vernamentais da proteção tutelar, bem co-
dianizados” enquanto definiu os Palikur mo pela sociedade circundante, são expres-
como uma sociedade “em parte miscigena- sões como “tribo”, “índio puro”, “mestiço”,
da e creolizada”, mas que “ainda conserva- “civilizado” ou “atrasado”. Tais caracteriza-
va em essência a sua velha cultura” (NIMU- ções evidenciam o desconhecimento acerca
ENDAJÚ, 2001 [1927], p. 194). Transcorri-
dos quase um século entre Nimuendajú e o 5
Ver Almeida, Oliveira e Oliveira, 2016, p.48.
6
presente, nos indagamos sobre o significa- Nos referimos aqui aos binômios ocidentais que envol-
do de suas palavras nas primeiras décadas veram os ameríndios e que foram consagrados pela his-
toriografia tradicional brasileira, desde o século XIX até
do século XX sobre as definições de socie- boa parte do século XX, como: “selvagens” versus “civi-
dade “indianizada”, “miscigenada” e “creo- lizados”, “bravios” versus “mansos”, “aliados” versus
lizada” e, sobretudo, as assimetrias sociais “inimigos”. Alguns pesquisadores discutem na historio-
grafia o papel destes povos ameríndios na história do
que estas palavras expressam. Brasil, desconstruindo essa visão maniqueísta dos an-
Sob diversas perspectivas, quando con- tagonismos. Neste conjunto de escrita da nova história
veniente, ao longo dos anos novecentos os indígena podemos destacar obras importantes como as
de John M. Monteiro (1994 e 2001), Maria Regina Ce-
lestino de Almeida (2013), Rachel Soihet (2009), João
4
Ver Capiberibe (2007). Pacheco de Oliveira (2011 e 2016), entre outros.

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da diversidade ameríndia regional, a com- regional, como as relações pretéritas de


pleta incompreensão e desconsideração contatos e conflitos que transcorreram por
quanto aos aspectos socioculturais das so- séculos entre os Palikur e outros povos,
ciedades, denominações simplistas que cor- como galibi, portugueses, franceses, holan-
roboram para justificar a intervenção insti- deses, ingleses e, posteriormente, com os
tucional da “proteção”, “assistência” e “na- ditos brasileiros.
cionalização”. Nos tempos hodiernos, as sociedades in-
A proteção tutelar ganhou contornos dígenas e não indígenas vivenciam a ambi-
mais definidos com a instalação de dois valente existência da memória como ele-
postos indígenas de atendimento aos povos mento de esquecimento, muito embora a
do Oiapoque pelo Serviço de Proteção aos contemporânea obsessão comemorativa
Índios (SPI) em 1941 e 1942: o Posto Indí- para eternizar os lugares de memória, que
gena de Fronteira e Vigilância Luiz Horta e o surge nas últimas décadas do século XX,
Posto Indígena de Educação e Nacionaliza- nem sempre seja condizente com a latência
ção Uaçá, respectivamente. A despeito da do saber adormecido nas sociedades.7 As-
intervenção das políticas indigenistas brasi- sim como Alves de Seixas (2004, p.17),
leiras engajarem-se para “nacionalizar” os compreendemos que existam “poros e cica-
povos do Oiapoque, os Palikur-Arukwayene, trizes sociais” que transpiram nas memórias
falantes da língua Parikwaki, família linguís- palikur-arukwayene. Nessa perspectiva, e
tica Arawak, mantiveram sua língua mater- de forma ambivalente, irrompe na condição
na. Esse povo, que vive na contemporanei- de latência pelo menos duas condicionan-
dade tanto no lado brasileiro como na Gui- tes. A primeira consiste no esquecimento
ana Francesa, nutria, desde tempos imemo- tão habitual nas sociedades, enquanto que
riais, uma intensa rede de relações, princi- a segunda assenta-se no silêncio que se faz
palmente com os franceses, combatidos no conveniente e necessário para todos os po-
passado colonial pelos portugueses. Desde vos. Porém, tanto as memórias, como o es-
a década de 1940, aparecem em diversos quecimento e o silêncio são de cunho in-
documentos do SPI manifestações gover- tencional e/ou involuntário. É no ato de
namentais de descontentamento. O “inspe- recordar e narrar que as memórias deixam
tor de índios” da “ajudância de Oiapoque”, 7
Essa Expressão “lugares de memórias” está calcada na
ligada a 2ª Inspetoria Regional do SPI, Euri-
discussão de Pierre Nora entre o que é história e o que
co de Melo Cardoso Fernandes, admitiu a é memória: “[...] A memória é um absoluto e a história
dificuldade que tinha em estabelecer rela- só conhece o relativo”, com isso a “[...] memória pen-
ções com os Palikur em virtude das aproxi- dura-se em lugares, como a história em acontecimen-
tos” (NORA, 1993, p. 09; p. 24 e 25). A despeito disso,
mações históricas destes com os franceses. existe uma considerável discussão sobre tais aborda-
De “índios atrasados” os Palikur passaram a gens postuladas por Pierre Nora. Não pretendemos dis-
ser vulgarmente conhecidos na região como correr nessa discussão, mas consideramos sua perti-
nência nas sociedades hodiernas que estão imbuídas
os “índios puros”, sobretudo em virtude da de atos de “rememoração”, bem como na construção
manutenção de sua própria língua. As cate- de lugares de memória; entendemos, por outro lado,
gorias “índios atrasados” ou “índios puros” que esse movimento pode ser contraditório, uma vez
que desvela intencionalmente certos “elementos” da
servem para deslegitimar a autonomia a-
memória e história enquanto obscurece ou não opor-
meríndia e obscurecer aspectos da história tuniza o irromper da latência.

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a condição de latência e passam a ser pro- desaparecem dos documentos e narrativas


tagonistas das histórias do povo. A emer- coloniais luso-brasileiros, apresentando-se
gência das reminiscências e lembranças nas outros povos nativos e suas vicissitudes, a
memórias dos mais velhos desafia a história partir de então, contra os invasores. Mas
dos palikur-arukwayene, uma vez que, co- esse “desaparecimento” nos documentos
mo latência, tais memórias passam muitas não significou finitude étnica do povo pali-
vezes despercebidas para as novas gera- kur, como ocorreu com tantas sociedades
ções, como facetas incompreensíveis de sua indígenas. Pelo contrário, a territorialidade
história. e a territorialização do povo na região de
A emergência dos saberes nas memórias Oiapoque foram tecidas pelas redes de re-
de dois sábios palikur-arukwayene contribui lações decorrentes dos (re)ordenamentos
para a desconstrução de certezas históricas. espaciais, dos movimentos migratórios e
O povo fora nominado pela literatura como das diásporas que se sucederam neste terri-
“Palikur”, contudo, uma questão latente tório, hoje Amapá.
emergiu no atual processo de pertencimen- Mas a afirmação do etnônimo ocorreu,
to que estão vivenciando, que é o recente de fato, no século XX, quando o SPI contri-
ressurgimento do etnônimo “Arukwayene”, buiu para consolidar, no âmbito do indige-
desvelado pelo povo e problematizado pela nismo brasileiro, o etnônimo “Palikur” ou
linguista Barros da Silva (2016, p.33 - 36). “Parikur(a)”,9 no conjunto de povos indíge-
Desde o século XVI existem registros docu- nas brasileiros, possivelmente influenciado
mentais que atestam a existência da “Pro- por um dos apoiadores da agência, Nimu-
víncia Paricura”, “Costa de Paricuria”, refe- endajú, que em 1925 empreendeu, por
rente ao povo “paricora” ou “paricura”, nas quase cinco meses, uma excursão pelo rio
proximidades do que se convencionou Uaçá, no baixo curso da bacia do rio Oiapo-
chamar, posteriormente, de terras do Cabo que, circulando e vivendo entre os povos
do Norte, Guiana (Francesa) e, recentemen- indígenas regionais, sobretudo, entre os
te, costa amapaense (Guiana luso- “Palikur” (NIMUENDAJÚ, 1926). Em decor-
brasileira). rência das consecutivas diásporas estimula-
Conforme destaca o recorrente registro das pelas relações conflituosas dos apresa-
quinhentista do companheiro de esquadra mentos, descimentos, resgates e escravis-
de Colombo, Vicent Pinzón, estes “paricora” mo impostas pelos portugueses e demais
se estendiam no período de sua viagem pe- europeus aos diversos povos que viviam
la margem esquerda da foz do rio Maria Del entre a foz do Amazonas e o Cabo Orange,
Mar Dulce, o rio Amazonas.8 Contudo, com os Palikur-Arukwayene vieram a se situar,
a gradativa presença dos portugueses nas restrita e especificamente, no curso do rio
cercanias da embocadura do Amazonas, e Urukawá, no lado brasileiro, e em certas
com os emergentes conflitos decorrentes localidades da Guiana Francesa, como Trois
das relações de colonialismo, os “paricora” Paletuviers, às margens do rio Oiapoque e
Macouria, ambas no território francês.
8
“Il a découvert la mer douce ou l’eau douce, qui va sur
9
une longueur de quarante miles dans la mer; il a éga- Os documentos do SPI, a partir da década de 1940 em
lement découvert la province qui s’appelle Paricura” diante, apresentam várias grafias para o nome do povo,
(PINZÓN [1513] apud NIMUENDAJÚ, 1926, p.35). como paricur ou parikur(a), pariukur(a), entre outros.

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Ainda que os registros nas carteiras de mentos, ideias, recordações, lembranças e


identidade evidenciem que tanto Wet como memórias são tudo aquilo que procuramos,
Tebekwe nasceram na década de 1930, os já que o passado, por si, está noutro tempo
sábios palikur-arukwayene carregam consi- e espaço, por certo, intangível. Desde que
go muito mais que o peso da idade, trazem passamos a documentar as narrativas, os
a experiência de mais de oitenta anos de horizontes de finitude dos estudos acerca
vida repleta de suas latências. Nas narrati- da “pretensa história” parecem se distanci-
vas de Wet e Tebekwe existe a memória ar. Há algum tempo percorremos as águas
voluntária, àquela que emerge da uniformi- escuras do Urukawá para adentrar nas á-
dade histórica, mais corriqueira e superfici- guas turvas da história do povo. Estamos
al, ligada a experiência imediata e, de certa registrando as narrativas que os antigos
forma, consciente; como também existe a contam, ou, as memórias de Wet e Tebek-
memória involuntária, que reside na espon- we, dois personagens reconhecidos como
taneidade do momento, independente da homens que “sabem” e conhecem o passa-
vontade de lembrar. Essa memória é mais do palikur-arukwayene.
elevada, real e espontânea, se traduz em O percurso da pesquisa iniciou-se ainda
imagens que aparecem e desaparecem, em em 2010, com os trabalhos de documenta-
lampejos bruscos que batem com o passado ção, são desse período as primeiras narrati-
sem se ter feito um esforço consciente para vas coletadas. Ao longo dos anos a pesquisa
isso.10 Ambos os narradores recorrem a foi se tornando mais profunda, regular e
memória voluntária, mas os momentos abrangente, focando, além da documenta-
mais significativos para a desconstrução de ção, transcrição e tradução das narrativas,
certezas históricas na trajetória e cosmolo- na realização de estudos, oficinas e
gia do povo reside na emergência das me- (res)significações, durante as quais os Pali-
mórias espontâneas e involuntárias que kur-Arukwayene têm desconstruído certe-
irrompem da latência. Quando conversam, zas no âmbito da história do povo e no con-
os narradores parecem esquecer os equi- texto de pertencimento. Cada um desses
pamentos audiovisuais, gesticulam, cantam, narradores, embora detentores de uma
marejam os olhos, silenciam em determi- tradição comum, também carregam sua
nadas falas e sorriem como se estivessem própria subjetividade, sua própria experiên-
diante do passado, sempre narrando na cia.
língua de seus ancestrais. Tebekwe e Wet são personalidades sin-
O passado tem seus caminhos que jamais gulares, o primeiro tem reconhecimento
serão conhecidos pelas sociedades, mas o social, suas origens e história de vida se a-
passado deixa suas reminiscências. Senti- comodam com as instâncias de pertenci-
mento étnico. A história de vida de Wet
10
seguiu outros caminhos, de um pertenci-
A historiadora Jacy Alves de Seixas esclarece que a
memória é “[...] algo que ‘atravessa’, que ‘vence obstá-
mento à margem da história, mas que o
culos’, que ‘emerge’, irrompe: os sentimentos associa- conduziu ao reconhecimento de seu povo.
dos a este percurso são ambíguos, mas estão sempre Inspirando-nos em Benjamim (1987, p.198-
presentes.”, portanto, a memória voluntária deixa es-
199) podemos dizer que Tebekwe é o nar-
capar a dimensão “[...] afetiva e descontínua da vida e
das ações dos homens.” (2004, p. 47). rador que viaja e tem muito a contar, admi-

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rado pelo seu povo como alguém que tran- Dessa forma Tebekwe tem sido, ao longo
sita entre o perto e o longe; por outro lado, dos anos, um reconhecido interlocutor de
Wet se parece com o homem “que ganhou diversos estudos sobre os Palikur, pois, ao
honestamente sua vida” sem nunca ter saí- contrário da grande maioria de seu povo,
do do seu lugar e que “conhece suas histó- domina tanto as línguas regionais quanto as
rias e tradições”. Essas duas figuras de nar- ambiguidades do mundo que o cerca. Como
rador, “representantes arcaicos”, equili- intermediador e “interprete” das histórias,
bram-se na significação de seus relatos. memórias e saberes ao mundo não indíge-
Nessa perspectiva benjaminiana, esses rela- na, sua trajetória é repleta de intercultura-
tos a que recorre os narradores são oriun- lidade e protagonismo.
dos da experiência “que passa de pessoa a Manoel nasceu, possivelmente, em 1930,
pessoa”. Estas trajetórias de vida, apesar de entre os Palikur de Saint Louis, portanto, é
muito distintas, representam as múltiplas considerado cidadão francês, tendo sido
faces do que vivenciaram os Palikur- registrado como Claude. Enquanto Claude,
Arukwaynene no decorrer do século XX. As costumava acompanhar seu pai no comér-
sinuosidades destes personagens indígenas cio e extração de produtos regionais diver-
serão o fio condutor para a compreensão sos e cobiçados pelos franceses, como pau
da emergência de latências e da reescrita rosa ou “bois du rose” e as peles/couros de
da história deste povo. jacaré-açú. Em função do decréscimo co-
mercial francês, Claude foi viver com a famí-
2 MANOEL LABONTÊ: A HISTÓRIA COMO lia no rio Urukawá, onde passou a ser co-
FATOR DE PERTENCIMENTO nhecido por Tebekwe. Era jovem quando
algumas epidemias começaram a assolar a
Manoel Labontê ou Tebekwe é apontado vida dos Palikur na região e, por isso, deci-
por muitos indí- diu residir, sozinho, entre os Karipuna da
genas e não indí- Aldeia Santa Isabel, no rio Curipi, os quais o
genas como um chamavam de Manoel.
homem de con- Claude/Tebekwe/Manoel chegou a co-
siderável conhe- nhecer os antigos agentes e chefes do indi-
cimento, princi- genismo que atuaram na região do Oiapo-
palmente em que. Também viveu e trabalhou no Encruzo,
decorrência do local onde se situou, por algum tempo, a
domínio e facili- sede do Posto Indígena Uaçá, na confluên-
dade de se ex- cia do rio Curipi com Uaçá. Neste local o SPI
pressar tanto em construiu uma estrutura produtiva para a
parikwaki quanto promoção dos pressupostos do indigenismo
nas línguas brasileiro, com atração, assistência e nacio-
11
Imagem 1: Retrato do sábio
kheuól , portu- nalização de comunidades indígenas em
Tebekwe guês e francês. situação de fronteira. Manoel frequentou
11
uma das escolas implementadas pela prote-
Língua crioula falada pelos Karipuna e Galibi-
ção tutelar, na Aldeia Santa Isabel, onde,
Marworno. Muitos Palikur-Arukwayene, principalmen-
te os idosos, possuem domínio desta língua. junto com outros indígenas, era obrigado a

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escrever e a falar, fluentemente, o portu- estudar e compreender o universo palikur.


guês. Foi assim com Lux Vidal, Artionka Capiberi-
Nas sociedades indígenas aquele que be, Marlui Miranda, Eduardo Góes Neves,
narra sob diversas perspectivas a(s) histó- David Green, Eneida Corrêa de Assis, María
ria(s) de seu povo adquire considerável res- del Pilar Miguez Fernández, Nicanor Rebol-
peitabilidade, sendo reconhecido como ledo Recendiz, entre outros. Nessa perspec-
“historiador” ou pessoa que narra histó- tiva, sua história de vida se mistura com as
rias.12 Ao contrário do mundo ocidental ho- noções de alteridade, identidade e perten-
dierno, a narrativa histórica ameríndia se cimento, pois Manoel, além de ter reconhe-
sustenta na oralidade das reminiscências cimento social e étnico entre os seus, pos-
mnemônicas, não sendo desafiada ou des- sui considerável prestígio e uma forte rede
considerada por não estar escrita, ainda de relações externas.
que, felizmente, muitos indígenas pesqui- É importante ressaltar na história de vida
sadores e/ou professores estejam regis- de Tebekwe que sua genealogia já lhe res-
trando na forma de documento escrito e guarda, entre seu povo, a condição de per-
audiovisual a historicidade de suas trajetó- tencimento: o narrador é filho de mãe e,
rias. sobretudo, de pai palikur, portanto, Tebek-
Entre os Palikur-Arukwayene o ato de we é, reconhecidamente, Palikur. Para este
narrar o passado, costumeiramente, se des- povo a origem e o clã são transmitidos de
tina àquelas pessoas mais velhas da aldeia forma hereditária, através da patrilineari-
ou àquelas com significativa respeitabilida- dade, ou seja, para ser considerado Palikur
de social. O lugar de fala não é questionado é necessário ser filho de pai palikur.
e sustenta a narrativa, delegando-lhe vera-
cidade e verossimilhança. Uma característi- 3 WET: PERTENCIMENTO À MARGEM DA
ca comum deste povo é que estes se furtam HISTÓRIA
de adotar a postura de narrador, sempre
indicando um grupo seleto de homens13 Em 2016, Wet realizou em sua Aldeia
que seriam os “detentores” de seus conhe- Mawihri a Kayka Aramtem, um ritual em
cimentos e saberes. Manoel está entre eles! homenagem ao kayg (lua), e que havia sido
Inegavelmente, isso ocorre porque, além de eclipsado, pois não era celebrado há quase
“historiador”, com uma memória “singular”, quatro décadas.14 Os preparativos torna-
ele tem facilidade em se expressar em di- ram-se momentos de aprendizagem para os
versas línguas, o que facilita sua interlocu- Palikur-Arukwayene, pois Wet preocupou-
ção com os pesquisadores que intentam se em ensinar todas as etapas necessárias
para a festa, preocupado com a continuida-
12
A palavra “historiador” empregada aqui não é equiva-
14
lente ao conceito contemporâneo que a palavra adqui- Esse “esquecimento” é relativo, poderíamos pensar
riu com o desenvolvimento da ciência História, do fazer que ocorreu um processo de “silenciamento” acerca
e saber histórico e historiográfico. das manifestações socioculturais do povo com a ado-
13
As mulheres palikur não costumam ser identificadas ção de novas crenças religiosas, de base pentecostal. A
como “historiadoras”, ainda que suas memórias te- Kayka Aramtem não foi esquecida pelos mais velhos,
nham vivacidade e apresentem elementos e sinuosida- bastando que a latência irrompa para que os elemen-
des do mundo feminino que as memórias dos homens tos desta festa ressurjam, inclusive, com maior vitali-
jamais alcançariam. dade.

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Caminhos do saber Arukwayene nas águas da história: a emergência da historicidade Palikur em narrativas de memória 47

de da transmissão dos conhecimentos tra- precoce de sua mãe. Assim, conviveu e a-


dicionais de seu prendeu muito com seu avô, Kiyomni La-
povo. Ninguém bontê, que era xamã, e quem lhe atribuiu o
pôs em dúvida o nome de um pequeno pássaro, chamado
saber de Wet, Wet.
muito menos sua A história pessoal de Wet conforma-se
autonomia e au- com as vicissitudes enfrentadas por seu po-
toridade para a vo em boa parte do século XX. Os Palikur
realização de tão experienciaram epidemias, mortes, casti-
importante ritual. gos, intimidação e medo, além de desen-
Por isso mesmo, tendimentos e cenas mais austeras e con-
foi com muita traditórias da atuação do SPI. Wet viveu
surpresa que ou- duras lições de vida, tendo sido obrigado a
vimos, durante os “trabalhar” para o SPI no Encruzo (PI Uaçá),
Imagem 2: Retrato do sábio preparativos, uma durante um exílio compulsório de dois anos.
Wet
frase proferida A cultura imaterial arukwayene se mate-
por um dos parentes próximos deste sábio: rializa com o saber-fazer deste sábio, atra-
– Wet não é Palikur! vés de significativas expressões: as formas
Aquela negativa quanto ao pertencimen- em madeira que esculpe e as histórias-
to do sábio Wet nos causou estranhamento. memórias que narra. Wet narra – pois não
Aos olhos de um leigo pode parecer incom- sabe escrever – para romper o esquecimen-
preensível, para não dizer contraditório, to, objetiva que as ações de seu povo não
que um homem detentor de significativa se percam ou, ainda pior, que não sejam
sabedoria e narrador minucioso de inúme- desconhecidas às novas gerações.
ras histórias do seu povo tenha sido consi- Há tantas “histórias” a se considerar co-
derado entre os seus, em boa parte da vida, mo há tantos narradores envolvidos por
como um “parnah15”. Foi o que ocorreu suas próprias formas de “historicizar”. Nes-
com Wet! Contudo, é preciso problematizar se sentido, Veyne (2014, p.27) explica que
que a patrilinearidade é um elemento fun- Heródoto se divertia relatando as diferen-
damental no ethos de pertencimento e alte- tes tradições contraditórias, enquanto Tucí-
ridade dos Palikur-Arukwayene. dides procurava relatar aquela história que
Wet foi registrado como Manoel Antonio considerava verdadeira. No livro “Os gregos
dos Santos. Nasceu na década de 1930, acreditavam em seus mitos” o historiador
numa pequena ilha localizada no rio Uru- mostra, no mínimo, que os distintos povos
kawá, sua trajetória de vida apresenta sinu- têm formas próprias e autônomas de contar
osidades e episódios de luta e autodetermi- e narrar suas histórias, que podem ser re-
nação. Filho de uma Palikur com um par- sumidas pelos mais desatentos como “mito-
nah, foi criado pela família materna, tendo logia”: “Os gregos têm uma maneira própria
ficado aos cuidados dos avós após a morte de acreditar em sua mitologia ou de ser cé-
ticos, e essa maneira aparece apenas falsa-
15 mente com a nossa. Eles têm também sua
Este é o termo utilizado pelos Palikur-Arukwayene para
se referir aos não-indígenas. maneira de escrever a história, que não é a

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nossa [...]” (2014, p.16). quisar e contar a trajetória histórica de seu


Assim como os gregos tem maneiras povo, o que, obrigatoriamente, perpassa
próprias de contar e escrever a história, os pela memória dos mais velhos. Nosso mes-
Palikur-Arukwayene também as têm. As tre, o “sábio das estrelas”, cumpriu sua mis-
“histórias” que Wet compartilha parecem são entre nós em junho desse ano. Wet
“incompreensíveis” fora do contexto mito- subiu no Kusuvwi e hoje está no céu, aju-
lógico e cosmológico, desafiam a racionali- dando a jogar água pela terra, enchendo o
dade histórica à evocar suas latências, seus Urukawá de vida e esperança.
esquecimentos, seus silêncios e silencia-
mentos, por certo, suas memórias e remi- 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
niscências. Ao contrário de Tebekwe, Wet
não se expressa em português, seus pen- A latência e o esquecimento, sejam eles
samentos e palavras são sempre em parik- voluntários ou não, são duas faces da soci-
waki ou kiapunka, a “língua dos antigos”, edade arukwayene. Os sábios Tebekwe e
como os Palikur-Arukwayene costumam Wet representam instâncias diacrônicas da
explicar. Dessa forma, acessar e compreen- história. Suas memórias-narrativas distintas
der o universo das narrativas de Wet exige e, por vezes, antagônicas, equilibram, de
de seus interlocutores um amplo conheci- uma ponta a outra, a diversidade e a com-
mento linguístico e também sociocultural, plexidade da sociedade palikur-
que possibilite submergir no mundo do nar- arukwayene. Da necessidade de falar, con-
rador, além de um considerável domínio do dição de quem tem muito a dizer, esses dois
português, que permita traduzir nesta lín- narradores se preocupam em compartilhar
gua os complexos sentidos do discurso de e perpetuar suas memórias com os seus,
Wet. com as novas gerações e com os “outros”,
Entre ser ou não considerado um Palikur, “re-escrevendo” a história do povo. Tebek-
Wet passou a receber reconhecimento e we e Wet estão imbuídos pelo devir da his-
respeitabilidade pelo conhecimento que tória!
externa de suas memórias e histórias. As Certos elementos socioculturais que fun-
memórias de Wet revelam um mundo a- damentam o pertencimento, como a patri-
rukwayene que estava submerso nas pro- linearidade, ainda influenciam a organiza-
fundezas da experiência de alteridade dos ção da sociedade palikur-arukwayene. Esses
Palikur e, nesse sentido, evidenciam a e- elementos ressaltam a continuidade dos
mergência e a lucidez da historicidade des- vínculos identitários, que quando não estão
colonizadora. Da condição de pertencimen- em descompasso com o processo de reno-
to à margem da história do povo, o sábio vação religiosa, permanecem e indicam que
Wet passou, nos últimos anos, a ser reco- tudo que se relaciona com a cosmologia e o
nhecido como o “google” dos Palikur- xamanismo passou a ser reservado ao silên-
Arukwayene. Essa mudança de reconheci- cio, resguardado ao estado de latência, po-
mento não tem sido simples, nem fácil, nem dendo emergir e deflagrar situações de con-
imediata, mas é consequência, também, do flitos ou não.
acesso que os Palikur-Arukwayene tem tido Inegavelmente, os Arukwayene foram
à Universidade, onde são instigados a pes- impactados pelo processo missionário pen-

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tecostal da segunda metade do século XX, nas de Oiapoque. IN: BRITO, A. U.; DALMÁ-
sem embargo, quando boa parte da socie- CIO, C. E. da C.; SIMÕES, H. C. G. (Org.). Ci-
dade regional e dos pesquisadores acredi- ências Humanas: resultados dos projetos de
tavam que as camadas de esquecimento iniciação científica da Universidade Federal
haviam obscurecido a história do povo, eis do Amapá/UNIFAP. Macapá: Ed. UNIFAP,
que as memórias dos sábios arukwayene 2016. p.41 – 66.
desvelam a todos a presença do “ser”. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Me-
As trajetórias ameríndias envoltas por tamorfoses indígenas. Identidade e cultura
águas turvas e nebulosas da “história colo- nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. 2ª
nizadora” foram, em grande parte, descon- Ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2013.
sideradas no processo de construção geo- BARROS DA SILVA, Elissandra. A língua Pa-
política dos territórios latino-americanos. A rikwaki (Palikur, Arawak): situação socio-
emergência do protagonismo ameríndio, linguística, fonética e fonologia. Tese de
como elemento de autonomia e de diversi- Doutorado, Programa de Pós-Graduação
dade nas narrativas discursivas da história em Linguística da Universidade Federal do
latino-americana, consiste num fenômeno Rio de Janeiro (UFRJ), 2016.
recente, que percorre outros caminhos in- BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de
terpretativos para a compreensão dos história. In: ____. Magia e técnica, arte e
mundos indígenas e não indígenas, envolvi- política. v.1. 5 ed. São Paulo: Brasiliense,
dos na tessitura do que se convencionou 1993.
chamar de “América”. CAPIBERIBE, Artionka. Batismo de fogo: os
Paulatinamente, muitos povos rompem Palikur e o cristianismo. São Paulo: Anna-
com esse pensamento ocidental e desvelam blume; Fapesp; Nuti, 2007.
narrativas de história a partir de suas pró- GUMBRECHT, Hans Ulrich. Depois de 1945.
prias categorias de saber, presentes em la- Latência como origem do presente. São
tentes experiências de memória dos sábios Paulo: EDUNESP, 2014.
indígenas. Os Arukwayene vivenciaram, ao MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra:
longo de séculos, forte pressão sociopolítica índios e bandeirantes nas origens de São
e territorial. É nesse sentido que a emer- Paulo. São Paulo: Companhia das Letras,
gência da historicidade nas memórias de 1994.
seus sábios possibilita adentrar no universo MONTEIRO, John. Tupis, Tapuias e os histo-
complexo de seu mundo. Assim, marcados riadores: Estudos de História Indígena e do
pelas singularidades atribuídas aos povos Indigenismo. Tese Apresentada para o Con-
de tradição Arawak, os caminhos do saber curso de Livre Docência Área de Etnologia,
arukwayene se apresentam nas narrativas Subárea História Indígena e do Indigenismo.
de memórias dos mais velhos. Campinas, 2001. Disponível em: <http://
www.ifch.unicamp.br/ihb/estudos/TupiTap
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ALMEIDA, Carina S. de.; OLIVEIRA, Leonia nia, 1927. Revista de Antropologia, São
R.; OLIVEIRA, Lilia R. Atuação do Serviço de Paulo, USP, 2001, v. 44, n. 1, pp. 189 – 200.
Proteção aos Índios entre os Povos Indíge- NIMUENDAJÚ, Curt [1926]. Les Indiens Pa-

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50 Almeida e Silva

likur et leus voisins. Présentacion et notes


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OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento
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SEIXAS, Jacy Alves. Percursos de memórias
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(Org.) Memória e (re)sentimento. Indaga-
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SOIHET, Rachel. et al. Mitos, projetos e prá-
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Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
VEYNE, Paulo. Os gregos acreditavam em
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constituinte. São Paulo: Editora Unesp,
2014.

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