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O imperativo de se adotar um novo marco normativo de- qual circulam os valores da sociedade. E se essa sociedade foi
corre também do efeito de inércia provocado pelas instru- ou continua sendo discriminatória, tal exclusão está marcada
ções gramaticais. Estas indicam, por exemplo, que havendo na língua, nos nomes e até nos pronomes. No estado da Flóri-
dois termos associados, um no feminino, outro no masculi- da, nos EUA, foi aprovada uma instrução para revisar todas as
no, o plural será feito no masculino. Assim sendo, se, em leis existentes, para delas expurgar qualquer caráter discrimi-
uma sala de aula de 40 pessoas, houver 35 do sexo feminino natório. Após migrar para o meio eletromagnético todas as
e 5 do sexo masculino, o plural será alunos. normas editadas entre 1822 e 1997, foi feita uma pesquisa para
Além disso, ao discorrer sobre a formação dos gêneros em localizar a presença de marcadores de exclusão das mulheres.
língua portuguesa, as gramáticas fazem afirmações como a que Foram encontradas 4.389 ocorrências para his (pronome pos-
se segue, de autoria do renomado Celso Cunha (Nova Gramá- sessivo masculino), e nenhuma ocorrência para hers (pronome
tica do Português Contemporâneo, 1985): O masculino é o possessivo feminino), como constata o artigo de Pamela Mar-
termo não marcado; o feminino, o termo marcado. tin e James Mckee, intitulado Gender Neutralizing State Laws
O que representa essa afirmação para aqueles que escre- (http://www.ncsl.org/programs/legman/legalsrv/vol13No1.htm.)
vem as leis e os regulamentos, inclusive os nomes dos cargos Ao manter a nomenclatura dos cargos no masculino, o Esta-
públicos? Que eles poderiam sempre listar os cargos pelo mas- do cria, reforça e pereniza uma visão obsoleta da sociedade, quan-
culino. Mas qual a conseqüência disso para o imaginário que do apenas homens tinham acesso a esses cargos públicos. Mas as
se constitui na sociedade em torno das carreiras do serviço mulheres já conquistaram, ao longo dos últimos cem anos, diver-
público? Que existem apenas procuradores, auditores, consul- sas posições no cenário da educação e da Administração Públi-
tores, capitães, médicos, advogados, juízes...e assim por dian- ca, sem que isso se refletisse nos nomes dos cargos: em 1874,
te, sempre no masculino, quando, na verdade, existem, tam- ganharam o direito de freqüentar universidades; em 1932, o de
bém, procuradoras, auditoras, capitãs, médicas, advogadas, votar e ser votadas; em 1980, de ingressar nas Forças Armadas.
juízas... Por isso, o art. 5º do projeto de lei da Senadora Serys Neste momento em que são irreversíveis as conquistas fe-
propõe que, ao lançar mão das instruções contidas em estu- mininas em todos os campos, seria um anacronismo inaceitá-
dos, tratados ou descrições da língua portuguesa, far-se-á sem- vel que o Estado brasileiro continuasse a reforçá-la, por inter-
pre com a observância dos princípios da linguagem inclusiva, médio de suas leis e regulamentos do serviço público. Lembre-
com menção aos gêneros feminino e masculino, obrigatoria- mo-nos, para levantar um argumento final, que a nossa Lei Maior
mente, mesmo nos casos de pluralização. manda promover o bem de todos, sem preconceitos de ori-
Essa providência se faz tanto mais necessária ao observar- gem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de dis-
mos que a norma já existente sobre o tema, a Lei nº 2.749, de 2 criminação (art. 3º, inciso IV).
de abril de 1956, remete aos tradicionais preceitos pertinentes
ao assunto consagrados na lexeologia do idioma. Por isso, mes-
mo ao determinar que o gênero gramatical do nome do cargo
deva acompanhar o sexo do funcionário a quem se refira, ao
remeter aos preceitos tradicionais, abre a possibilidade de se
empregarem regras que guardam conotação discriminatória. Por
isso mesmo, o projeto de lei propõe revogar explicitamente tal
norma, como proposto no art. 6º do projeto de lei da senadora.
As resistências à adoção de uma linguagem inclusiva, não
sexista, vêm da crença de que tais nomes são da natureza da
língua,, e que, portanto, seria artificial tentar alterar tal situa-
ção por intermédio de uma lei. Contra esse argumento é ne-
cessário lembrar que a língua é, sim, um construto que depen-
João Bosco Bezerra Bonfim é consultor legis-
de da intervenção da sociedade, dos falantes; e que varia se-
lativo do Senado Federal, mestre e doutorando
gundo o tempo e o espaço, e até mesmo segundo a geração de
usuários dessa língua. em Ligüística pela UnB.
Se é verdade que a língua não é a causadora da discrimina-
ção contra as mulheres, também é certo que ela é o meio pelo