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Continuação da Entrevista com

Kepler:
A Descoberta da Terceira Lei do Movimento Planetário
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

R
ogério: E então Kepler, você já períodos de revolução dos planetas.
Alexandre Medeiros
descansou o bastante. Por fa- Mas parece que o Criador não havia
Departamento de Física – Universidade
vor, explique, agora, como foi escolhido aquele tipo de harmonia. Federal Rural de Pernambuco
que você chegou, mesmo, à sua ter- Tentei encontrar aquelas razões ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

ceira lei. harmônicas experimentando os cál-


Kepler: Ok! Como vocês se lem- culos entre o que me pareciam serem
bram, no Mysterium Cosmographicum, os volumes dos planetas. Mas, tam-
de 1596, escrito ainda em Graz, eu bém não deu certo. Tentei, então,
havia tentado construir o Universo ajustar as menores e maiores distân-
baseado nos cinco sólidos platônicos, cias de cada planeta ao Sol e calcular
mas como aquilo não se mostrara as suas razões.
frutífero, eu decidi perseguir uma Galamba: E foi aí que você deu
abordagem pitagórica ainda mais com a solução.
fundamental, ou seja, tentei construir Kepler: Não! Isso, também não
o Universo a partir das harmonias deu certo.
musicais da escala pitagórica. Jomar: Puxa. E quanto tempo
Pedro: Sim, isso nós já sabemos você passou em todas essas tenta-
em linhas gerais, mas como você tivas?
chegou na 3a lei, mesmo? Kepler: Muito, muito tempo, anos
Kepler: Calma, eu chego lá. Eu a fio, até 1618, quando encontrei a
buscava encontrar as razões harmô- solução e a publiquei no ano seguinte.
nicas que eu supunha existirem no Contando desde a publicação do meu
movimento planetário, mas elas insis- Astronomia Nova, de 1609, que con-
tiam em permanecer ocultas. Lendo tinha as minhas duas primeiras leis,
o meu Harmonici Mundi, você verá co- foram mais nove anos de trabalho
mo eu descrevi todo o processo de extenuante. Inclusive essa minha de-
descoberta da terceira lei em detalhes. mora, que para mim sempre foi um
Rogério: Pois conte logo como foi sinal de persistência, de obstinação
cara, até eu já estou impaciente em religiosa, foi muito mal compreen- Kepler já velho
saber. dida. Mesmo após resolver a questão,
Kepler: Você não quer ler o meu alguns tripudiaram dizendo-se admi-
livro? rados de que eu houvesse demorado
Pedro: Depois a gente dá uma lida, todos aqueles anos para resolver o
conte logo e depressa, por favor. Você problema do movimento planetário.
é muito demorado, enrola muito, des- Amélia: E qual foi a sua resposta
culpe lhe dizer isso, com todo o res- para essas críticas?
peito. Kepler: Eu afirmei, em um tom
Kepler: Você percebeu isso agora? certamente irônico, que havia solucio-
Eu sempre fui demorado, sempre fiz nado naqueles anos o que a humani-
esses raciocínios meio tortuosos e dade não havia solucionado em
acho que deve ter sido por isso que milênios.
muitos não me entenderam ou não Amélia: Isso é que é resposta!
gostaram do que eu escrevia. Eu sei Galamba: Bonito, mas um tanto
Este artigo apresenta a continuação da bem
que eu era meio confuso, mas a coisa presunçoso, não? humorada conversa entre Kepler e um grupo
era mesmo complicada e eu não dis- Kepler: E você, mocinho, quanto de professores em descanso tranqüilo no sítio
punha das melhores ferramentas ma- tempo passa insistindo em resolver de um deles, à beira de um pacote de amendoim.
A primeira parte deste texto teve ótima reper-
temáticas necessárias para enquadrar um problema quando não acerta logo
cussão junto aos leitores e sua continuação vem
o problema. A princípio eu tentei en- de cara? Na Ciência não basta apenas enfatizar a possibilidade de se unir Física a uma
contrar as razões harmônicas nos talento, estalo de gênio. Aliás, esse atividade lúdica como o teatro.

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estalo de gênio é muitas vezes o fruto riações de velocidade angular, sem me mesmo, mas que se mostrava quase
de muita perseverança, como foi no importar com as distâncias, quando exausto ao atuar sobre os planetas
meu caso. vistas do Sol. mais distantes, porque a distância
Jomar: Você está coberto de razão Galamba: Já sei, e aí não deu cer- enfraquecia a sua força. Eu me per-
Kepler, eu digo sempre isso aos meus to, novamente. guntei que tipo de força motora pode-
alunos, mas, por favor, conte o resto Kepler: Não, absolutamente. ria distorcer as trajetórias circulares
da história. Como você chegou à sua Dessa vez eu senti que havia encon- convertendo-as em elipses. Supus,
terceira lei? Já estamos todos enten- trado algo de muito fundamental. Foi, então, que existia uma força entre o
dendo como você não chegou, só está justamente, aí que eu descobri a ter- planeta e o Sol, que era atrativa du-
faltando compreender como é que ceira lei. rante metade da órbita e repulsiva na
você chegou lá. Rogério: Espera aí. A sua terceira outra metade. Uma força com essas
Kepler: Mas, meu caro, esse é o lei, da forma como a ensino, estabelece características era, sem dúvida, a força
ponto central da minha heurística, uma proporcionalidade entre o qua- magnética. Eu já sabia que a própria
uma heurística do erro. É preciso apre- drado dos períodos das órbitas plane- Terra era um imã, como expliquei
ciar as minhas muitas tentativas para tárias e o cubo das distâncias médias antes, pois a bússola era um indício
poder saborear o acerto que finalmen- destes até o Sol, certo? Como é que disso. Imaginei, então, que os planetas
te consegui obter. Porque esse acerto você veio a pensar em tentar esse possuíam pólos magnéticos também.
foi, sobretudo, fruto de uma constan- quociente? Como lhe veio à mente essa Como o eixo da Terra em sua trajetó-
te correção de rumo. E o que me levou idéia? Porque, para mim, essa relação ria em torno do Sol sempre aponta
a corrigir o rumo? não é daquelas que a gente começaria para uma mesma direção, acarretava
Pedro: Sim, o que foi que lhe levou logo testando. Eu sei que você não tes- que parte do ano um dos seus pólos
a corrigir o rumo? tou logo essa relação, mas o que fez estava mais próximo do Sol e na outra
Kepler: Bem, eu tentei encontrar você, finalmente, testá-la? parte do ano essa situação se invertia.
as razões harmônicas estudando as Kepler: Bem, eu não testei essa Isso deveria acontecer com os outros
velocidades extremas dos planetas. relação diretamente. planetas, também. Supus, também,
Amélia: E, então, graças a Deus, Nairon: Agora sou eu que não que o Sol tivesse um único pólo
você, finalmente, encontrou a solução estou mais entendendo. Você não tes- magnético e assim estariam explica-
desejada. tou essa relação? E como chegou a ela? das a atração e a repulsão dos plane-
Kepler: Ainda não! Kepler: Eu não expressei a minha tas. Era uma teoria engenhosa, não?
Galamba: Eu já teria desistido. terceira lei, inicialmente, nessa lingua- Pedro: Engenhosa, mas errada. O
Kepler: Disso eu tenho certeza. gem dos livros didáticos de vocês, do Sol tem dois pólos magnéticos e, além
Galamba: Epa, rapaz, agora fui eu mesmo modo que o Newton não disse disso, a força magnética é muito pe-
que não gostei. O que você quer dizer que F = ma, vocês sabem. quena para influenciar naquela escala
com isso? Pedro: Do caso do Newton eu sa- de distâncias.
Kepler: Nada. Eu, então, tentei bia, mas da sua terceira lei, não. E Kepler: Mas eu não sabia disso. De
encontrar as razões harmônicas como foi, então? De onde nasceu a sua toda forma, aquilo me serviu de ins-
calculando as variações de tempo ne- idéia de estudar as velocidades angu- piração para reconsiderar o problema
cessárias para o planeta percorrer lares e como chegou à terceira lei, de como os planetas varriam o espaço.
uma unidade de comprimento de sua mesmo? Galamba: Que idéia mais doida,
órbita. Aquela me pareceu uma solu- Kepler: Eu já falei que estava cara.
ção bastante engenhosa. preocupado em construir uma dinâ- Kepler: Doida para você que está
Amélia: E então? mica do movimento planetário, para acostumado a pensar em termos dife-
Kepler: Também não deu certo. usar a linguagem de vocês. Foi aí que rentes, mas, entretanto, aquilo era
Galamba: A gente não vai sair da- abandonei aquela idéia de espíritos uma clara tentativa de buscar as cau-
qui hoje. Eu duvido que essa entre- conduzindo os planetas e pensei em sas dos movimentos. Ainda que essas
vista não seja cortada. termos de uma força magnética que causas fossem os tais espíritos ou o
Kepler: Foi, então, que resolvi exa- emanasse do Sol como tentáculos e espírito único vindo do Sol. Mas foi,
minar a posição do observador locali- que arrastasse os planetas, varrendo- então, que eu mudei o meu esquema
zado no centro do Universo, no Sol, os pelo espaço. para as forças magnéticas, abando-
quero dizer. Rogério: E como era o mecanismo nando os tais espíritos. Eu saquei que
Pedro: Mas o Sol é o centro do de atuação dessa força magnética? eles não precisavam existir e afirmei
Universo? Kepler: Bem, de início eu imagi- que deveríamos substituir a palavra
Kepler: Para mim era. Lembre-se: nava que os espíritos que moviam os espírito pela palavra força. E, assim,
eu era um pitagórico e aquele negócio planetas eram menos ativos quando nós podemos obter o princípio subja-
do fogo central do Filolau era tão os planetas estavam distantes do Sol cente aos movimentos planetários, a
importante para mim quanto havia ou, então, que havia apenas um único Física dos Céus. Eu passei a acreditar,
sido para o Copérnico. E ao fazer essa espírito localizado no Sol e que movia firmemente, que a força motriz não
mudança, ocorreu-me estudar as va- os planetas vigorosamente perto do era um espírito ao comparar a

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diminuição que a ação desse espírito se importar com as distâncias, quan- planetários. Foi, por isso, que adotei
sofria com a distância ao Sol, que me do vistas do Sol. Disse que foi daí que a nova Matemática dos ritmos, a ma-
parecia muito semelhante a da luz que nasceu a terceira lei. E ainda disse que temática das razões, a nova Matemá-
também diminuía com a distância. Eu ela não foi expressa, inicialmente, do tica que simplificava os cálculos
estava emergindo de conceitos antigos modo como estamos acostumados a astronômicos: os logaritmos.
e medievais e construindo uma trilha formulá-la, não foi? Rogério: Não entendi.
que seria seguida posteriormente pelo Kepler: Foi. Jomar: Nem eu. Onde os logarit-
Newton. Para mim, aquela força de- Pedro: E então, onde é que o mag- mos entram nessa história?
veria ser algo substancial, não no sen- netismo entra nessa história? E como Nairon: Logaritmos e escalas mu-
tido literal da palavra, mas do mesmo você expressou a terceira lei? Ainda sicais são primos irmãos. A própria
modo em que a luz é algo substancial, estou sem entender como chegou a percepção auditiva obedece a uma es-
significando que era algo que emana- ela. cala logarítmica. Agora estou come-
va de um corpo. Eu fui, a duras penas, Galamba: Eu já estou voando faz çando a perceber onde quer chegar.
enquadrando os meus próprios mitos tempo. Jomar: Então explique para nós.
em um crescente padrão de racionali- Kepler: Você, agora, vai entender. Nairon: Não, deixe o Kepler expli-
dade, sem jamais, entretanto, ter dei- Vou juntar todas essas peças. car, ele é que é o pai da criança.
xado de lado a minha visão mística. Amélia: Graças a Deus! Kepler: Eu estava motivado pela
Como disse no início, eu sempre fui Kepler: Foi o fato de haver conside- idéia de que as órbitas planetárias de-
um místico, mas não um místico no rado uma força magnética emanando veriam satisfazer um conjunto de
sentido de adotar, exclusivamente, um do Sol, que às vezes repelia e às vezes relações matemáticas simples que os
pensamento especulativo. Eu sempre atraia os planetas, que me levou a re- pitagóricos haviam descoberto e des-
tentei, crescentemente, enquadrar as considerar as varreduras em termos crito como a escala musical. Aquelas
minhas próprias convicções místicas das variações de velocidade angular, razões numéricas entre tons harmo-
em um padrão de racionalidade mate- sem me importar com as distâncias, niosos formavam os ritmos musicais.
mática. Meu objetivo voltou-se para quando vistas do Sol. Foi então que Ao estudar os períodos dos planetas e
um mecanicismo em desenvolvimen- passei a contemplar, realmente, a bele- as suas distâncias médias, eu encon-
to e o meu intento passou a ser cada za da música celestial. Saturno, por trei que as razões entre os logaritmos
vez mais mostrar que existia algo co- exemplo, quando está no afélio, o daquelas quantidades formavam uma
mo uma máquina celeste e que essa ponto mais distante da órbita, move- proporção de 3 para 2. Esse foi o
máquina não era apenas divina, mas se a uma velocidade angular de 106 enunciado original da minha terceira
era, igualmente, um certo tipo de reló- segundos de arco por dia. Entretanto, lei, que é equivalente a esse que vocês
gio muito complexo, construído pelo quando está no periélio, a distância usam em suas aulas. Pode parecer
maior de todos os relojoeiros: Deus. E mais próxima do Sol, sua velocidade pouco ter demorado tanto para per-
para mim, os movimentos desse angular é de 135 segundos de arco por ceber essa relação tão simples, mas eu
magnífico relógio eram causados por dia. A razão entre essas quantidades não dispunha da Geometria Analítica
forças magnéticas, de modo seme- 106/135 difere em apenas dois segun- e muito menos desses seus maravi-
lhante àquele como o peso movia as dos de 4/5 que é a terça maior da es- lhosos computadores ou mesmo de
peças de um relógio. Restava expressar cala musical pitagórica. Comparando, papéis log-log e mono-log que permi-
essas causas em termos matemáticos. de modo semelhante, os movimentos tem linearizar curvas de modo tão
Amélia: Esse é um caminho que de Júpiter no afélio e no periélio eu simples. Eu acho que essa coisa das
leva direto ao Newton, essa mistura encontrei uma terça menor. Para Mar- linearizações é algo que todos os estu-
de misticismo com enquadramento te eu encontrei uma quinta e assim dantes de Física deveriam estudar com
racional conduzindo a um mecanicis- por diante. O meu espanto aumentou muito carinho. No meu tempo isso
mo em desenvolvimento. quando resolvi comparar os dados das
Kepler: Creio que sim. Mas eu evo- velocidades angulares extremas de
luí até essa postura, eu não comecei pares de diferentes planetas. Foi aí que
adotando-a. O Newton, entretanto, já a harmonia dos mundos saltou à mi-
parece haver partido dessa mescla de nha vista. Eu pude ouvir, através da
atitudes. Não somos exatamente a Matemática, a música celestial. Os
continuação um do outro, mas temos valores extremos daquelas velocidades
muitos pontos de contato, talvez mais davam os intervalos da escala com-
que aqueles, porventura existentes pleta. Havia, efetivamente, um ritmo
entre o Newton e o Galileu. Este era naquelas razões. Assim me pareceu.
bem mais cético. Jomar: Isso me parece bonito, po-
Pedro: Mas você estava falando de rém confuso. Onde estava a sua ter-
como havia chegado à sua terceira lei. ceira lei, afinal?
Havia falado que resolvera estudar as Kepler: Estava oculta naquelas ra-
variações de velocidade angular, sem zões, estava presente naqueles ritmos Caderno de cálculos de Kepler.

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não existia. capacidades descritivas da Natureza. dizer que
Jomar: Dá para explicar melhor A referência aos movimentos é, por-
essa coisa dos logaritmos? tanto, muito apropriada. Napier,
Kepler: É simples. No fundo o que originalmente, concebeu os logarit- ou seja,
eu estava fazendo, falando em termos mos como “números artificiais” e, de-
mais modernos, era estudar a relação pois, renomeou-os como logaritmos,
entre os logaritmos dos períodos e dos que quer dizer números provenientes
raios orbitais médios. Atualmente isso das razões, dos ritmos. O sufixo “rit- Isso valia para quaisquer planetas
se faz com gráficos log-log, não? Mas mo” não é nenhuma coincidência. p1 e p2, ou seja:
as escalas logarítmicas do Napier só Uma tábua de logaritmos é, neste sen-
apareceram em 1614 e eu cheguei tido, uma tabela que nos permite
àquela idéia, mais ou menos, simulta- obter um conhecimento geométrico Assim sendo,
neamente e de modo independente. Só de todas as dimensões e movimentos
depois tive contato com as idéias do no espaço.
Napier. Eu escrevi um livro sobre o Jomar: Eu ainda não entendi a
assunto em 1621. Eu, portanto, des- equivalência que você falou entre essa Isso acarreta que
crevi, inicialmente, a minha terceira sua forma de expressar sua terceira
lei em termos da razão 1,5, do mesmo lei em termos de logaritmos e a nossa
modo que apareceria se eu houvesse maneira usual de apresentá-la.
utilizado um papel log-log para cons- Kepler: Veja lá: eu acho que todo E note, portanto, que eu ainda es-
truir, em termos modernos, um grá- estudante questionador ao ver a mi- tou tomando uma razão referente aos
fico daquelas variáveis. Eu não falei, nha terceira lei pela primeira vez deve parâmetros de um certo planeta e
inicialmente, nos termos mais fami- sentir nela algo de diferente das comparando-a com uma razão seme-
liares, que vocês conhecem bem, das outras, de mais difícil. Isso porque da lhante tomada para um outro plane-
relações entre os quadrados dos perío- forma como ela veio a se tornar mais ta. Só, então, eu mudo a ordem,
dos e os cubos das distâncias médias. conhecida, ela diz que a razão entre cruzando os dados e chegando na
Para mim, a terceira lei era a pura ex- os quadrados dos períodos de dois pla- relação mais conhecida como sendo a
pressão da harmonia logarítmica, netas quaisquer é igual à razão entre minha 3a lei:
assim como na música. Os logaritmos os cubos das distâncias médias desses
me influenciaram na formulação da mesmos planetas ao Sol, não é isso?
terceira lei na mesma medida em que, E além de falar nessa relação esquisita
por exemplo, as cônicas de Apolônio entre quadrados e cubos, ela ainda en- Sacou?
haviam me influenciado antes na volve, simultaneamente, dois planetas Pedro: Agora, sim! Mas você não
formulação da primeira lei. Hoje, per- diferentes. escreveu exatamente desse jeito, não
cebo que os logaritmos exerceram Pedro: É, isso é mesmo muito foi?
sobre mim um papel semelhante ao complicado, mas a sua explicação em Kepler: Isso mesmo! O raciocínio
que a Análise Tensorial e a Geometria termos dos logaritmos não ajudou que acabei de explicar é algo como
Riemanniana exerceu, muito depois, muito até agora. uma tradução do modo como eu pen-
no desenvolvimento das equações de Kepler: Pois bem, vou colocar as sava, porque, certamente, se eu fosse
Campo na Relatividade Geral pelo coisas em termos mais modernos para falar com vocês neste momento, do
Einstein. que vocês compreendam a linha do mesmo modo que eu falava à minha
Rogério: Como assim? meu pensamento. Eu não comecei tes- época, sem traduzir, vocês dificilmente
Kepler: Em cada um desses casos tando razões entre parâmetros de pla- compreenderiam aquilo eu queria
é lícito perguntar se foi a estrutura netas distintos, mas de um mesmo dizer. Eu sempre falei e escrevi em ter-
matemática que forneceu a ferramen- planeta. A comparação cruzada veio mos acentuadamente metafóricos.
ta com a qual tanto eu quanto o Eins- logo depois. Eu, de início, percebi, após Jomar: Explica melhor esses tais
tein pudemos descrever nossas teorias muitas tentativas baseadas na busca termos metafóricos e essa necessidade
dos fenômenos em causa ou se foi a das harmonias, que a razão entre os de tradução.
estrutura matemática efetivamente logaritmos do período e da distância Kepler: Veja lá! Quando eu final-
que selecionou um certo aspecto da- média ao Sol para um determinado mente cheguei à minha 3a lei, que
queles fenômenos a ser considerado. planeta estava na razão de 3/2. Ou espero já tenham compreendido, eu
Nairon: Dá para falar um pouco seja, em termos simbólicos modernos, disse, exatamente, o seguinte: “Tendo
mais dos logaritmos e da sua conjun- que percebido o primeiro lampejo da au-
ção com a música e com as razões as- rora há dezoito meses, a luz do dia há
tronômicas que você buscava? três meses, e só há alguns dias o Sol
Kepler: Certamente! Como você de maravilhosíssima visão, nada me
ou seja, que aquela razão era 1,5, co-
deve saber, o próprio Napier inventou deterá. Sim, entrego-me ao santo
mo disse antes. Isso era o mesmo que
os logaritmos tendo em mente suas delírio”. Entenderam?

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Amélia: Mais ou menos! Você são à espera de Deus por seis mil anos Mensageiro Sideral. Foi aí que eu intro-
estava se aproximando gradativa- parece ser uma menção bíblica à cria- duzi o termo “satélite”.
mente da solução, não é isso? Mas que ção do mundo. E a testemunha, com Pedro: O que mais você tratava no
santo delírio é esse? certeza, é você mesmo. Isso é muito Dioptrice, além de explicar o funcio-
Kepler: São os acordes harmônicos bonito, mas seria bom você voltar a namento do telescópio?
da música celestial que eu passei a per- falar do nosso modo, senão o revisor Kepler: Eu fui o primeiro no Oci-
ceber, expressos na beleza da minha da revista vai pedir para reescrever dente a explicar a formação das ima-
3a lei. Aquelas razões logarítmicas essas suas partes. gens real, virtual, direita, invertida e
eram, para mim, uma pura música Amélia: Mas, como foi a intro- a ampliação das imagens. Os árabes
celestial. E eu ainda acrescentei o dução dos logaritmos na Astronomia? já haviam explicado boa parte da Ópti-
seguinte: “Zombeteiramente desafio Kepler: Não foi tão tranqüila ca Geométrica, mas creio que o fiz de
todos os mortais com essa confissão quanto possa imaginar. À primeira forma mais sistemática. Eu também
franca: roubei os vasos de ouro dos vista, os logaritmos foram vistos, expliquei o fenômeno da reflexão
egípcios para deles fazer um taberná- como muitos, infelizmente, ainda os interna total. No meu livro sobre o
culo para o meu Deus, longe das vêm hoje em dia, como um mero arti- Cálculo, o Stereometrica Doliorum,
fronteiras do Egito”. Entenderam? fício para encurtar os cálculos. Poucos também de 1611, eu me ocupei das
Galamba: Está meio complicado, entenderam como essa idéia está en- marés como um fenômeno causado
você falava de um modo muito es- raizada na estrutura da própria Na- pela Lua. O Newton desenvolveu pos-
tranho, mas deu para entender que tureza. A história dos logaritmos é teriormente essa minha idéia, mas na
você admitiu que era mesmo ladrão. algo de uma beleza indescritível. Eles época que eu a lancei o encardido do
Se não roubou os dados do Tycho, co- não são, absolutamente, um mero Galileu foi enfaticamente contra. Isso
mo disse antes, admitiu agora que artifício de cálculo. Mas até o Maestlin poucos dizem. Eu também utilizei a
roubou os vasos de ouro de uns certos não compreendeu essa dimensão mais paralaxe para tentar medir as distân-
egípcios. Eu bem que desconfiei de profunda dos logaritmos por consi- cias das estrelas e, além disso, expli-
você, desde o início. derá-los puro artifício, e sugeriu enfa- quei como a nossa percepção tridi-
Kepler: Não foi nada disso, meu ticamente, condenou mesmo, os mensional de profundidade decorria
jovem! Você entendeu tudo de modo astrônomos que os utilizavam a refa- do fato da nossa visão ser binocular.
muito direto, como se estivesse assis- zer os cálculos. E eu estava no meio Isso, conjuntamente, deu origem ao
tindo ao Big Brother. Eu falei de um desses “condenados”. que hoje vocês chamam de Astrome-
modo metafórico, que necessita de Galamba: Não é possível que vá tria.
uma interpretação mais aprimorada, começar a se lamentar novamente. Amélia: Você fez tudo isso em Pra-
que vá aos significados mais profun- Kepler: Olha, é difícil explicar me- ga?
dos do meu discurso, ou seja, uma lhor essas coisas todas de música, Kepler: Não. Em 1612 o impera-
hermêneutica. O “ouro dos egípcios” magnetismo, logaritmos em um tem- dor Rodolfo II foi deposto e eu saí da
significa o conhecimento pitagórico po tão curto de uma entrevista. Acon- cidade. Mudei-me para Linz, na Áus-
das harmonias musicais que eu sem- selho que consultem a bibliografia ao tria, deixando o posto de matemático
pre acreditei que o Pitágoras havia final desta entrevista. imperial para ser matemático distrital.
aprendido de sacerdotes egípcios mui- Rogério: Ok! Vamos passar adian- Coisas da vida.
to antigos, como o Hermes Trisme- te. Alexandre: Como foi aquela his-
gisto. E eu utilizei aquela inspiração Galamba: Graças a Deus. Pode ser tória do ano do nascimento de Cristo?
pagã para honrar ao meu Deus, para que agora eu aterrisse novamente. Kepler: Bem, isso foi em 1614. Eu
compreender o seu plano matemático Amélia: Deixando um pouco de estudei o calendário em profundidade
do Universo, para ouvir os acordes lado suas três leis, fale mais das suas e escrevi um livro que em português
matemáticos da sua sinfonia celestial. outras obras e do restante de sua vida. seria algo como O Verdadeiro Ano em
Nairon: Muito bonito, mas como Kepler: Vou abreviar, pois as três que o Filho de Deus nasceu no Útero da
concluiu sua mensagem? leis são, realmente, o ponto principal. Virgem Maria. Nele eu mostrava que
Kepler: Eu afirmei que: “Se me Eu desenvolvi muitos trabalhos como havia um erro de quatro anos no
perdoardes, rejubilar-me-ei. Se vos subprodutos da minha busca pelas calendário cristão e que Jesus havia
zangardes, suporta-lo-ei. Olhai, lancei três leis. Por exemplo, em 1611 eu es- nascido em 4 a.C., uma conclusão
os meus dados, e estou escrevendo pa- crevi o meu Dioptrice onde explicava aceita até hoje.
ra os meus contemporâneos ou para o funcionamento do telescópio. Aqui- Pedro: Para mim isso era novi-
a posteridade. É o mesmo para mim. lo foi feito sob a clara influência dos dade.
Bem pode esperar cem anos por um trabalhos do Galileu. Aliás, eu, no ano Kepler: Pois é! E então, entre 1616
leitor, uma vez que Deus também es- anterior, havia escrito um livro sobre a 1620 eu me ocupei bastante com o
perou seis mil anos por uma teste- as descobertas astronômicas do Ga- fato da minha mãe ser processada pelo
munha”. Entenderam? lileu intitulado Dissertatio cum Nun- Santo Ofício por atos de bruxaria. Em
Pedro: Certamente! Essa sua alu- cio Sidereo, ou seja, Dissertação sobre o um sentido metafórico, ela era mesmo

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uma bruxa. Então eu tive de defendê- cursor da Ficção Científica: Somnium. deveria haver ao meu respeito. Agora
la e fiz muitas viagens que me toma- Nele eu descrevia uma viagem à Lua. vocês têm esta entrevista (risos). E vale
ram muito tempo. Isso também atra- Galamba: Era você mesmo viajan- a pena ainda assinalar que neste
sou o meu trabalho sobre a terceira lei. do para a terra dos pés juntos, com- preciso ano de 2003 um professor
Galamba: Por favor, não fale mais panheiro. defendeu uma tese belíssima no de-
nessa lei que já não agüento mais. Eu Cleide: Que crueldade, Galamba! partamento de Filosofia da USP sobre
vou até pedir para o Rogério trocar as Kepler: Deixe para lá; certas coisas o meu trabalho, sobre a minha forma
minhas aulas de Mecânica por outras que alguns professores de Física fazem particular de encarar a produção do
de Termologia (risos). que me deixam bem mais triste. conhecimento. O autor da tese foi o
Kepler: Pois bem. Em 1618 o início Pedro: O que, por exemplo? Claudemir Roque Tossato e o título é
da Guerra dos Trinta Anos acirrou a Kepler: Essa mania que alguns de Força e Harmonia na Astronomia Física
tensão entre protestantes e católicos. vocês têm de se referirem à minha de Johannes Kepler, um trabalho real-
Em 1621 eu publiquei a Epitome obra como a cinemática planetária e mente muito bonito.
Astronomia, o meu trabalho mais apenas às concepções gravitacionais Alexandre: Eu consegui uma có-
completo sobre a Astronomia helio- do Newton como sendo uma Física pia no dia seguinte ao da defesa, em
cêntrica. Publiquei ainda as Tabelas planetária. Isso me deixa revoltado. março deste ano. É realmente um
Rodolfinas, que substituíram edições Aquilo para mim não era mera cine- estudo profundo e digno de ser lido
mais antigas de obras semelhantes, mática, era pura Física. Uma Física, com toda a atenção.
mas baseadas no geocentrismo. Eu aí certamente, diferente da de vocês, mas Jomar: Eu sei que você já contou
já usava extensivamente os logarit- ainda assim uma Física. Então, jogam a sua história até a sua morte, mas
mos. Em 1626 mudei-me de Linz de- fora a minha Física e se apossam das eu ainda queria que você falasse um
vido a perseguições religiosas, e no minhas leis. Entender dessa maneira pouco mais do seu interesse pelo Mag-
ano seguinte me fixei na pequena ci- é tomar uma visão divorciada da netismo. Eu estou ensinando isso e...
dade de Sagan, onde fui prestar meus História da Ciência. Eu vi algo assim, Carriço: Pois é, eu me interesso
serviços de astrólogo ao general Wal- um dia desses, num desses livros muito por Magnetismo. Lá na UFRN
lenstein, meu último senhor. Em 1629 didáticos que vocês usam. Fiquei uma eu tenho pesquisado sobre isso há bas-
cheguei a ser convidado para traba- fera! Quase mando uns livros de His- tante tempo e...
lhar na Universidade de Rostock, mas tória da Ciência de presente para Pedro: Gente, o Carriço acordou,
não fui para lá. No ano seguinte esta- aquele distinto. Se vocês quiserem me o Kepler foi embora.
va fazendo uma viagem de Sagan a fazer alguma justiça, por favor, não Carriço: O Kepler esteve aqui? E
Nuremberg no lombo de um velho digam mais isso. como eu não vi?
cavalo, para cobrar um antigo débito, Cleide: E o que de bom você reco- Amélia: Você era ele…
mas não cheguei ao meu destino. Parei mendaria para que os professores de Carriço: O que, menina? Que
muito doente em Regensburg, que em Física lessem a seu respeito, a respeito brincadeira é essa? Eu vim aqui para
português chama-se Ratisbona. Entrei das suas idéias? ouvir o Kepler falar.
em coma, talvez devido às pústulas fe- Kepler: Olha, em outras línguas Alexandre: Pois o jeito vai ser ler
bris, não sei ao certo qual a minha do- encontramos muitos textos excelen- a entrevista dele (risos).
ença. Talvez fosse uma afecção do tes, como, por exemplo, o do Max Rogério: Mas valeu, o cara é com-
pulmão. O certo é que morri em 15 de Caspar. Outros estão apontados na plicadinho todo, mas valeu. E agora,
novembro de 1630. Mas também dei bibliografia dessa entrevista. quem é que nós vamos entrevistar?
várias contribuições técnicas que aqui Rogério: Mas e em português? O Alexandre: Calma, deixa ver an-
não vou mencionar e ainda deixei um que você recomendaria? tes o que os nossos colegas acham des-
pequeno livro de que foi publicado Kepler: Infelizmente, há bem me- se papo para lá de heterodoxo do Ke-
postumamente e é considerado um pre- nos trabalhos de boa qualidade do que pler.

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York: Johnson Reprint, 1965. Press, 1967.
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24 Entrevista com Kepler Física na Escola, v. 4, n. 1, 2003

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