Você está na página 1de 4

https://diplomatique.org.

br/um-supersoldado-saido-dos-laboratorios/
Um supersoldado saído dos laboratórios
por Ioana Puscas
agosto 31, 2017
Diante de armas cada vez mais aperfeiçoadas, o soldado “se torna o elo mais fraco”
dos sistemas defensivos. Essa constatação da Agência Norte-Americana para os Projetos de
Pesquisa Avançada da Defesa (Darpa), formulada num relatório não confidencial datado de
2002,1 faz pensar em outra: ainda que os robôs tomem o campo de batalha, o Exército não
pode funcionar sem soldados. A agência, portanto, mobilizou o know-how disponível para
melhorar o corpo e a mente dos combatentes, e produzir um “soldado aumentado”.
Desde os anos 1990, a Darpa começou a se interessar pela biologia com a intenção
de transformar o corpo humano e prepará-lo para a guerra. Em 2014, ela reuniu profissionais
das ciências da vida e físicos no Escritório das Tecnologias Biológicas (Biological
Technologies Office). “A partir deste dia”, anunciou a agência, “a biologia se junta às ciências
fundamentais, que representam o futuro das tecnologias de defesa.” A iniciativa visa
sobretudo desenvolver os procedimentos destinados a “otimizar as capacidades de
combate”2 do soldado. Se os Estados Unidos dominam, e de longe, a corrida dos
investimentos nesse campo, os montantes permanecem obscuros. Em 2017, a Darpa dispõe
de um orçamento de US$ 2,97 bilhões. Mas a pesquisa e o desenvolvimento do
supersoldado são financiados por meio de um emaranhado complexo de projetos conduzidos
pela agência. Por exemplo, o programa Análise e Adaptação da Resiliência Humana, com
uma dotação de US$ 18 milhões a fim de “otimizar a saúde do combatente”, encontra-se
num subconjunto chamado Ciências Médicas Operacionais de Base.3
Outros países, como a Rússia e a China, interessam-se bastante por essas questões,
mas se mostram mais avaros em informações confiáveis. A provável proliferação das
técnicas de otimização biológica numa estrutura militar ao longo das décadas que estão por
vir convida a se debruçar sobre as questões éticas e jurídicas, e, antes de tudo, a definir
“homem aumentado”. A expressão designa um conjunto de tecnologias destinadas a
melhorar o corpo humano para além de seus parâmetros naturais. Por exemplo, se medimos
a visão humana numa escala de 1 a 10, qualquer medida tomada para corrigir uma vista
inferior a 10 corresponde a um “tratamento”, enquanto uma melhora da vista para além
desse valor indica “aumento”. O termo não inclui os dispositivos externos que não implicam
alteração biológica, como os exoesqueletos, os óculos de visão noturna e os equipamentos
que permitem aos soldados escalar superfícies verticais como se fossem lagartos..
Eliminar as emoções?
O Exército busca “aumentar” seus soldados não apenas para melhorar o desempenho
deles, mas também para reduzir custos: um pequeno número deles poderia, assim, realizar
as mesmas missões que grandes unidades “normais”, o que criaria menos ex-combatentes
para cuidar. Enfim, numa época em que a opinião pública vê com maus olhos o envio de
tropas de solo, esses soldados de infantaria aperfeiçoados limitariam as perdas humanas. No
entanto, especialistas em ética se colocam na defensiva em relação às dificuldades a longo
prazo de sua reintegração na vida civil.
Vários projetos de aumento das capacidades físicas se concentram na engenharia
metabólica, na vigília prolongada, na resistência à perda de sangue e nas terapias genéticas
(sobretudo para suprimir a dor). O programa que visa criar um “soldado com metabolismo
superior” coloca ênfase na otimização das funções fisiológicas, como “modificações
nutricionais” que permitem aos soldados sobreviver por longo tempo sem se alimentar. A
Darpa igualmente financiou pesquisas universitárias sobre bactérias que ajudariam os
humanos a digerir e a tirar nutrientes de substâncias habitualmente não comestíveis. À
medida que a genética avança, as possibilidades de aperfeiçoar os processos
neurofisiológicos também se multiplicam.
Essa obsessão não é nova. O Exército sempre tentou melhorar o desempenho de
seus soldados, com métodos que, vistos em retrospecto, parecem rudimentares. Na Batalha
de Austerlitz, em 1805, duas divisões de infantaria napoleônicas, encarregadas de tomar o
Planalto de Pratzen, receberam uma “ração tripla de licor”, o que despertou um “surto de
entusiasmo” nas tropas. Quando combatiam contra os britânicos, no século XIX, os zulus da
África do Sul recebiam de seus xamãs uma variedade de uma erva semelhante à Cannabis
sativa que os ajudava a lutar com “fanatismo, dedicação e fúria”.4 Os psicoestimulantes,
especialmente as metanfetaminas, que permitem lutar contra a fadiga, foram administrados
maciçamente aos soldados nazistas e japoneses durante a Segunda Guerra Mundial. Em
altas doses, eles podem provocar reações negativas, como excitação ou pânico. Durante a
Guerra do Vietnã, o recurso maciço às anfetaminas, apelidadas de go pills, provocou uma
onda de vício no Exército. Ao longo das últimas décadas, a pesquisa produziu soluções mais
seguras, como a Ritalina e o Modafinil (vendido sob a marca Provigil). O Ministério da Defesa
britânico encomendou 5 mil comprimidos em 2001, ano em que as forças aliadas lançaram
sua ofensiva no Afeganistão, e 4 mil no ano seguinte, antes da invasão do Iraque.5
Os avanços da neurologia e das técnicas que dela decorrem poderiam muito bem
apressar a data de validade dessas pílulas. Desde abril de 2013, a Darpa se associou ao
gigantesco projeto de pesquisa sobre o cérebro por meio de técnicas avançadas inovadoras
(Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologies, Brain) lançado pelo ex-
presidente Barack Obama. As neurociências constam hoje de seus principais centros de
interesse. A agência explora a neuroestimulação, que consiste em estimular o cérebro dos
soldados com eletricidade a fim de facilitar a tomada de decisão, a assunção de risco e a
disposição para enganar um interlocutor – uma faculdade útil para prisioneiros interrogados
pelo inimigo. Outro programa trata das intervenções cognitivas, comportamentais e
farmacológicas suscetíveis a “prevenir os efeitos deletérios do estresse dos combatentes”.6
Mais resistente, mais animado, menos estressado: o soldado sonhado deve também
aumentar suas capacidades intelectuais. Trabalhos sobre a neuroplasticidade almejam
acelerar o processo de aprendizagem ativando nervos periféricos de forma indolor. Isso
reduziria o tempo e o dinheiro consagrados ao treinamento dos soldados, os quais poderiam,
assim, aprender uma língua estrangeira, guardar as instruções ou memorizar mapas das
zonas de posicionamento muito mais rapidamente. Como explicam com prazer seus líderes,
esse programa “não se contenta em recuperar funções perdidas: ele tende a desenvolver
nossas capacidades para além do padrão”.7 Esse é igualmente o caso do sistema de
engenharia neural (Neural Engineering System Design) promovido pela agência. Trata-se, no
caso, de conceber uma interface que permita a transferência de dados entre o cérebro e
aparelhos eletrônicos. Uma vez implantado, esse “dispositivo biocompatível” sem fio e com 1
centímetro cúbico “serviria de tradutor entre a linguagem eletroquímica dos neurônios e a
linguagem informática”.8
Mas como justificar, num plano ético, o desenvolvimento de um soldado aumentado?
Como regra geral, os pesquisadores militares apresentam a melhora dos desempenhos
humanos como servindo a fins morais: uma menor presença humana no campo de batalha e,
portanto, menos perdas; uma melhor tomada de decisão, em especial para o pessoal que
trabalha por longas horas a fio. Mas, para além dessas considerações, os motivos de
preocupação são muitos.
O primeiro tem a ver com o direito internacional humanitário. A Convenção de
Genebra e seus protocolos adicionais exigem que os Estados submetam a um exame
jurídico todas as novas armas e métodos de guerra. Ora, na maior parte dos casos, os
aumentos alteram apenas o corpo dos soldados e não entram na categoria “armas”. Mas as
dificuldades vão surgir quando certas tecnologias de aumento comportarem uma capacidade
ofensiva – por exemplo, uma interface cérebro-computador que comanda drones –, fazendo
do soldado aumentado cujo corpo abriga esse aparelho um alvo legítimo para o inimigo.9
Do ponto de vista da doutrina da “guerra justa”, que impõe o respeito às regras de
combate, o aumento da capacidade humana contém em si consequências nefastas. O
especialista em ética militar Ned Dobos se pergunta sobre as repercussões de uma
eliminação das emoções, com frequência acusadas de provocar “crimes de raiva”. Os
esforços dos farmacologistas para conceber betabloqueadores que impeçam a formação de
lembranças traumatizantes colocariam os soldados num estado de “morte emocional” que os
tornaria insensíveis ao assassinato?10
A própria noção de tortura poderia evoluir com um corpo de soldado modificado para
suportar um patamar de dor mais elevado. Em teoria, a tortura se define pela intenção do
torturador; mas os processos judiciários se mostram complexos se o combatente que é
vítima dela não guarda lembranças precisas a respeito, com nenhuma ou quase nenhuma
dor física estando associada a ela. O oficial da Força Aérea australiana, Ian Henderson se
preocupa com o tratamento reservado a um prisioneiro de guerra dotado de uma visão
superdesenvolvida e de uma audição que integre, por exemplo, um receptor de rádio.11
As noções de consentimento esclarecido e de respeito aos direitos humanos suscitam
também um debate que acabará por ser tema da competência dos tribunais nacionais. Nos
Estados Unidos, por exemplo, um soldado que se recuse a ser vacinado incorre em sanções
em virtude do código de justiça militar. Esse texto proíbe também desobedecer aos
superiores e às ordens militares. Se a lei colocasse o aumento da capacidade no mesmo
plano dos cuidados médicos, os soldados dificilmente poderiam escapar a ele. É bem
verdade que se alistar no Exército implica renunciar a uma parte de sua autonomia; mas no
futuro poderia ser instaurado um direito de concordar ou não com as intervenções
irreversíveis que afetariam de maneira adversa a “liberdade cognitiva” do soldado.12
No entanto, permitir aos militares recusar os processos de aperfeiçoamento daria
ensejo a outras complicações. As tropas fisiologicamente modificadas combateriam ao lado
das outras? Como essa diferença repercutiria na solidariedade e na coesão necessárias no
Exército? Em 1997, um grupo de militares defendia o uso de psicoestimulantes para as
operações aéreas, reafirmando o princípio segundo o qual “a utilização de drogas para
melhorar o desempenho esportivo é talvez ‘imoral’, mas a guerra não é um evento
esportivo”.13 Esse ponto de vista, no entanto, subestima a importância do sentimento de
igualdade no seio de um mesmo contingente.
O Ministério da Defesa dos Estados Unidos considera a honra e a lealdade como os
princípios fundamentais do direito da guerra: “um certo respeito mútuo entre as forças
antagonistas” e o reconhecimento do fato de que os combatentes pertencem à mesma
profissão”.14 Um soldado modificado seria condecorado se sua coragem resultasse de
intervenções neurais? Se não tomarmos cuidado, o aumento corre o risco de perturbar
valores militares essenciais.
Mais fundamentalmente, ele reforçará as assimetrias tecnológicas mundiais, já
agravadas pelos drones. Numa entrevista concedida em 2013, o general da reserva Stanley
McChrystal admitiu que o uso dessas máquinas no Afeganistão tinha deixado uma impressão
desastrosa. Além de suas inúmeras vítimas, elas dão origem a um ódio visceral contra os
Estados Unidos.15 O posicionamento de soldados aumentados poderia aprofundar ainda
mais essa desigualdade e exacerbar a violência.
*Ioana Puscas é pesquisadora do Centro de Política de Segurança de Genebra.
1 Noah Shachtman, “Be more than you can be” [Seja mais do que você pode ser], Wired,
San Francisco, mar. 2007.
2 “Darpa launches biological technologies office” [Darpa lança escritório de tecnologias
biológicas], 1º abr. 2014. Disponível em: <www.darpa.mil>.
3 “Department of Defense Fiscal Year 2017” [Departamento de Defesa Ano Fiscal 2017],
“President’s Budget Submission” [Apresentação do orçamento pelo presidente], fev. 2014.
Disponível em: <www.darpa.mil>.
4 Lukasz Kamienski, Shooting Up: A Short History of Drugs and War [Indo às alturas: uma
breve história de drogas e guerra], Oxford University Press, Nova York, 2016. Ler também
Christophe Lucand, “Le ‘pinard’ ou le sang des poilus” [O “vinho barato” e o sangue do
soldado francês], Le Monde Diplomatique, ago. 2016.
5 Ian Sample e Rob Evans, “MoD bought thousands of stay awake pills in advance of war in
Iraq” [Antes da Guerra do Iraque, o Ministério da Defesa comprou milhares de pílulas para
manter soldados despertos], The Guardian, Londres, 29 jul. 2004.
6 “Enabling stress resistance” [Ativando a resistência ao estresse]. Disponível em:
<www.darpa.mil>.
7 “Boosting synaptic plasticity to accelerate learning” [Impulsionando a plasticidade sináptica
para acelerar a aprendizagem], 16 mar. 2016. Disponível em: <www.darpa.mil>.
8 Elizabeth Strychalski, “Neural Engineering System Design” [Sistema de Engenharia
Neural]. Disponível em: <www.darpa.mil>.
9 Heather Harrison Dinniss e Jann Kleffner, “Soldier 2.0: Military human enhancement and
international law” [Soldado 2.0: aperfeiçoamento humano militar e direito internacional],
International Law Studies, v.92, Stockton (Califórnia), 2016.
10 “Soldier enhancement: New technologies and the future battlefield” [Aperfeiçoamento do
soldado: novas tecnologias e o futuro campo de batalha], conferência organizada pelo
Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Melbourne, 27 maio 2014.
11 Ibidem.
12 Lauren Robbins, “Refusing to be all that you can be: Regulating against forced cognitive
enhancement in the military” [Recusando-as a ser tudo que você pode ser: regulamentação
contra o aperfeiçoamento cognitivo forçado entre os militares]. In: Michael Gross e Don
Carrick (orgs.), Military Medical Ethics for the 21st Century [Ética médica militar no século
XXI], Routledge, Abingdon-on-Thames, 2016.
13 Rhonda Cornum, John Caldwell e Kory Cornum, “Stimulant use in extended flight
operations” [Uso de estimulantes em operações de voo estendidas], Airpower Journal,
primavera de 1997.
14 “Law of War Manual” [Manual da Lei de Guerra], Departamento da Defesa, Washington,
jun. 2015.
15 “Retired general cautions against overuse of ‘hated’ drones” [Preocupações de general
aposentado contra o uso excessivo de drones “odiados”], Reuters, 7 jan. 2013.

Você também pode gostar