Você está na página 1de 4

Revista de História, 3, 1 (2011), p.

125-127
http://www.revistahistoria.ufba.br/2011_1/r01.pdf

Durval Muniz de Albuquerque Jr.. Nordestino: uma invenção do falo — uma história
do gênero masculino (Nordeste — 1920/1940). Maceió, Catavento, 2003. 256 p.
ISBN 85-7545-054-9.

Marc Bloch, um dos historiadores mais ser enrijecido na aparência, fala e


importantes do século XX, dizia que a gestos, brutalizado na linguagem e
História, enquanto ciência, não tinha pensamento, ser de pele queimada,
como ponto de partida o passado: a fruto das horas de trabalho agrário, ser
motivação para se escrever um livro de que não admite nenhuma desonra
História não era fornecida primeira- moral, que cumpre sua palavra, que vela
mente pelo passado, como se este fosse pela dominação, que se preocupa em
uma espécie de fantasma que vinha passar uma imagem de homem forte,
perturbar o sono do historiador para bruto, trabalhador e “sem frescura”,
que empreendesse uma pesquisa histó- homem valentão, “membrudo”, “cabra-
rica. De fato, para toda uma tradição de macho” — eis algumas das facetas do
historiadores do século XX, a motivação homem nordestino, as quais aparecem
da história vem do próprio presente: é em uma série de discursos (científicos,
observando a atualidade, nos seus mais populares, artísticos e outros).
diversos aspectos, que a centelha da
pesquisa histórica se acende — este é Nordestino: uma invenção do falo —
um dos ensinamentos dos “Annales” que uma história do gênero masculino
permanece vivo na comunidade dos (Nordeste — 1920/1940) é uma história
historiadores. O livro que ora apresenta- arqueológica, tal como proposta por
mos, oriundo dos trópicos brasileiros, Michel Foucault, ou seja, um
constitui um exemplo ímpar dessa empreendimento histórico que visa
postura. encontrar, não as “solenidades de
origens” ou as raízes, mas sim as condi-
Durval Muniz de Albuquerque Junior, ções de possibilidade da emergência de
professor da Universidade Federal do um dado saber ou prática. Durval Muniz
Rio Grande do Norte, atual presidente de Albuquerque Jr. escava uma série de
da Associação Nacional de História práticas discursivas e não discursivas
(ANPUH) e autor dos livros A invenção que possibilitaram a emergência do tipo
do Nordeste e outras artes (Cortez, regional nordestino, em um dado
Massangana, 1999), História: a arte de momento histórico, e a partir da inicia-
inventar o passado (Edusc, 2007) e Nos tiva de um dado grupo social. Sua
destinos de fronteira (Bagaço, 2008), ao missão é:
observar a tradicional representação do
nordestino, pergunta-se: “como histori-
camente se produziu essa figura que entender o porquê de ter emergido,
tem hoje extrema importância nos nesse momento, essa figura e o
embates políticos e regionais no país?” porquê de sua elaboração como uma
(p. 20). Diante dessa questão, o autor figura masculina. É acompanhar as
começa por traçar a figura que veio a práticas discursivas e não discursivas
ser identificada como a do nordestino: que produziram esse ser nordestino,
atribuindo a ele uma essência e uma
identidade. (p. 20)
Para melhor delinear essa ideia aristo-
crática da feminização da sociedade, o
126
autor sai à procura dos elementos que,
O método de pesquisa foucaultiano reluz para a elite tradicional nordestina,
fortemente ao longo das páginas. atestavam o amolecimento da socie-
dade, e aí se destaca a reflexão sobre os
Cobrindo um recorte temporal que vai costumes, a família, a política e o espaço
de cerca de 1870 a cerca de 1940, a urbano. Um dos temas mais empolgan-
pesquisa contempla diversos tipos de tes é o da cidade, vista pela elite nordes-
fonte, de livros historiográficos a literá- tina como um espaço não familiar, no
rios, passando por escritos jornalísticos qual haveria uma separação entre
e memoriais — o que inclui autores homem e natureza, e a predominância
como Gilberto Freyre, Euclides da do tipo social “almofadinha”, da “cultura
Cunha, Câmara Cascudo, José Lins do bacharelesca” e de “padres molengas”.
Rego e Rachel de Queiroz, entre outros. O que parece estar em questão nessa
primeira parte é mapear o contexto
A obra é composta de duas partes: “A histórico-cultural no qual a figura do
feminização da sociedade” e “A inven- nordestino emergiu como questão — não
ção de um macho”. Na primeira parte, o uma mera descrição ou retrato do
autor investiga a percepção da elite ambiente histórico, mas antes a afirma-
tradicional nordestina acerca das ção de que a invenção do nordestino
mudanças advindas com o processo de esteve intimamente ligada a um
modernização na região conhecida hoje ambiente histórico-cultural, sem o qual
como Nordeste. Trata-se de inquirir ela não teria sido possível (ou, em
sobre a maneira pela qual homens como outras palavras, a reconstrução das
Gilberto Freyre, Julio Bello, José Lins do condições de possibilidade dessa fabri-
Rego, Câmara Cascudo e outros, isto é, cação, em função de um conjunto de
os representantes de uma elite aristo- circunstâncias, e de acordo com deter-
crática nordestina, entenderam as trans- minadas características).
formações que os assolavam. Albuquer-
que Jr. demonstra que tal grupo social O capítulo intitulado “A invenção do
produziu uma série de discursos nos patriarcalismo”, na primeira parte,
quais estava presente a ideia de que as merece referência: aqui Durval Muniz
mudanças ocorridas no Brasil, desde de Albuquerque Jr. nos apresenta sua
pelo menos a década de 70 do século singular habilidade e competência como
XIX, estariam feminizando a sociedade. historiador, na medida em que faz uma
Eventos como a abolição da escravidão, instigante discussão historiográfica na
a proclamação da República, a industri- qual figuram historiadores da estirpe de
alização e o feminismo, entre outros, Caio Prado Junior, Sergio Buarque de
eram vistos como parte de um processo Holanda, Ronaldo Vainfas e E. P.
cuja pretensão era não só nivelar a Thompson. Segundo o autor, boa parte
sociedade, mas, sobretudo, “desvirili- das críticas posteriores à aplicação ao
zá-la” — fato este que, segundo esses Brasil do conceito de patriarcalismo, tal
mesmos discursos, solapariam a ordem como difundido por Gilberto Freyre, tem
social brasileira, instaurando o caos. como base a questão da realidade —

Revista de História, 3, 1 (2011), p. 125-127


criticam Freyre por usar um conceito
que, do ponto de vista empírico, se
ênfase se assenta no sujeito nordestino,
cujos atributos foram definidos, sobre-
127
apresenta como frágil; patriarcalismo tudo, por um grupo de intelectuais
seria, pois, um termo não muito condi- ligados ao movimento tradicional-regio-
zente com a realidade histórica brasi- nalista, que teve grande influência no
leira. Porém, para Albuquerque Jr. país, principalmente no Nordeste. O
nenhum conceito é capaz de espelhar a autor traça a visão de mundo de seus
realidade; as fissuras, as exceções membros, os quais eram, em sua
sempre existirão. Em vista disso, um maioria, estudantes da Faculdade de
conceito não deve ser criticado por não Direito de Recife. Esses acadêmicos
reproduzir a realidade de modo fiel, foram responsáveis por uma gama de
uma vez que é sempre um produto produções (teses, artigos, festas,
abstrato, subjetivo, embora referencian- poesias, músicas etc.) que procuravam
do-se em certa empiria. O que interessa significar o Nordeste e o nordestino,
ver no conceito é sua historicidade, sua tornando-os inteligíveis para a época.
relação com uma série de outros
elementos. A partir daí, o autor passa a Albuquerque Jr. apresenta ainda outras
descrever a problemática historiográfica categorias de discursos que moldaram,
em torno do conceito de patriarcalismo, na época, a figura do nordestino. Trata-
para o que são propostos novos termos, se, em sua maioria, de discursos preten-
novas perguntas e novos interesses. samente científicos, uma vez que o
pensamento científico que aportava
De acordo com Durval Muniz, mais que nessa época no Brasil gozava de imenso
um conceito, tal termo constitui-se em prestígio. Determinismos de bases
uma espécie de metáfora da ordem eugenistas e geográficas, somadas ao
social predominante no Brasil até o discurso culturalista, foram imprimindo
inicio do século XX: ao usar o termo, diversas características no tipo regional
Freyre pretendia resumir a história do nordestino, de modo que, ao tempo da
Brasil até então. Trata-se, assim, de uma consolidação da figura do nordestino,
chave interpretativa que cobre toda uma percebem-se nele elementos de várias
realidade histórica, de forma matrizes teóricas. Assim, seu caráter
semelhante às Filosofias da História do resistente e corajoso se explicaria tanto
século XIX. Para o autor, não interessa por seu habitat natural ser bastante
saber se esta era uma visão realista da inóspito (determinismo geográfico)
sociedade ou apenas uma visão de uma quanto por sua história de sofrimento e
classe social dominante. O que importa abandono (culturalismo). Do mesmo
é a historicidade, sua relação com uma modo, sua virilidade se explicaria tanto
trama histórica e social. É assim que se por sua descendência mista negra e
fecha a primeira parte do livro. aristocrática (determinismo biológico)
quanto por sua vivência em uma socie-
A segunda e última parte, “A invenção dade violenta e negligenciada (cultura-
de um macho”, detém-se na figura do lismo). Dessa forma, o livro encerra
nordestino, tal como a conhecemos hoje. mostrando que a subjetividade do
O objetivo é esquadrinhar essa figura, nordestino foi atravessada por uma
tentando perceber suas características, variedade de discursos, por vezes
metáforas, tramas, bem como os discur- antagônicos. Saberes científicos e
sos e as práticas que o engendraram. A populares foram vitais tanto na invenção

Revista de História, 3, 1 (2011), p. 125-127


quanto na legitimação do tipo regional
nordestino.
feito com um excelente uso da teoria. Ao
lê-lo, não ficamos com a imagem do
128
historiador como alguém que só entende
Acreditamos que o livro de Durval de documentos, datas e causas — como
Muniz de Albuquerque Jr. nos convida, pensam muitos — mas sim, de alguém
também, para pensar sobre o uso da que, além de manejar bem essas compe-
teoria nos trabalhos históricos. A histori- tências, domina igualmente os conceitos
adora Maria Izilda S. Matos, que faz o e as teorias. Diríamos que este livro de
prefácio do livro, insiste nesse ponto: Durval Muniz é como aqueles livros que,
Nordestino: uma invenção do falo nos quanto mais pensamos conhecê-los,
ensina que um livro de História pode ser mais se revelam novos e inesperados.

Diego José Fernandes Freire


Graduando em História
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Revista de História, 3, 1 (2011), p. 125-127

Você também pode gostar