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FOTOGRAFIA, HISTÓRIA e CULTURA VISUAL:

PESQUISAS RECENTES
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FOTOGRAFIA, HISTÓRIA e CULTURA VISUAL:


PESQUISAS RECENTES

Série Mundo Contemporâneo 2

Porto Alegre, 2012


© EDIPUCRS, 2012
– Fotografia e Criação: Patricia Camera

– Diagramação: Rodrigo Valls

Fernanda Lisboa

Rodrigo Valls

F761 Fotografia, história e cultura visual: pesquisas recentes


[recurso eletrônico] / Charles Monteiro (Org.). – Dados
eletrônicos. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2012.
132 p. - (Série Mundo Contemporâneo)

ISBN 978-85-397-0154-4

Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader


Modo de Acesso: <http://www.pucrs.br/edipucrs>

1. Fotografia - História. 2. Cultura Visual. 3. Fotografia - Brasil . 4. Antro-


pologia Cultural. I. Monteiro, Charles.

CDD 770.981

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos,
fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra
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(arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ....................................................................................06
Ana Maria Mauad

PARTE I – FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E IMPRENSA

Capítulo 1 - Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950: a elaboração


de um novo padrão de visualidade urbana nas fotorreportagens da
Revista do Globo .........................................................................................09
Charles Monteiro

Capítulo 2 - A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de


Sioma Breitman na fotografia porto-alegrense dos anos 1950 ......50
Rodrigo Massia

Capítulo 3 - Por trás das lentes, uma história: a percepção de fotógrafos


sobre as imagens da mídia impressa ......................................................72
Maria Cláudia Quinto

PARTE II: FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E ARTE

Capítulo 4 - História da fotografia moderna brasileira: experimentações


de Geraldo de Barros e José Oiticica Filho (1950-1964) .....................90
Carolina Etcheverry

Capítulo 5 - A dimensão histórica em “Mujeres Presas”: aproximações


teóricas entre fotografia-expressão e ator social ...................................117
Patricia Camera
APRESENTAÇÃO

Ana Maria Mauad

Não é de hoje que os estudos históricos ultrapassaram os limites documentais


de uma escritura feita exclusivamente com documentos verbais. A iniciativa de
renovação da oficina da história, defendida pelos pais fundadores do Annales,
que conclamaram seus pares a saírem de seus gabinetes e a aprenderem a “ler” a
demarcação dos campos, ou os rituais da cavalaria medieval, foi amplificada pela
revolução documental que a história serial dos anos 1970, implementaram com a
introdução das séries, da quantificação e do dado numérico, como fundamentais
para a produção do conhecimento histórico de natureza total. A história dos eventos
foi substituída pela história das estruturas na longa duração, sendo a revolução
documental, a expressão mais evidente de uma outra revolução, essa mais profunda,
a da consciência historiográfica.1
Dos anos 1970 em diante, com as publicações-manifesto da Nova História
Francesa, novos objetos, novos problemas e abordagens começaram a fazer parte
da reflexão historiográfica; na sequência as manifestações da micro-história
italiana ajudaram a compor um panorama onde racionalidade histórica e expressão
subjetiva se encontravam na escrita de uma outra história, chegando à definitiva
renovação da historiografia brasileira com a consolidação dos programas de pós-
graduação, uma nova revolução reorientou a delimitação das fronteiras da História
em rumo definitivo a uma perspectiva transdisciplinar. Assim, o corolário da
revolução documental, da ampliação dos tipos de fontes e registros considerados
aptos à produção do texto historiográfico orientou o pesquisador a buscar novas
possibilidades de interpretação.
Os estudos sobre cultura visual em história são um bom exemplo para
considerarmos esse tipo de renovação. De fato, como esclarece o historiador
Paulo Knauss, é possível se fazer uma história com imagens, que abandone uma
epistemologia da prova, rumo à construção de uma leitura histórica que valorize
o processo contínuo de produção de representações pelas sociedades humanas.2
A essa reflexão, um outro historiador, Ulpiano Meneses, agrega problemas
e questões que nos levariam rumo a uma História Visual, que considera as
imagens não como efeitos, ou sintomas, mas a própria visualidade como princípio
cognitivo de caráter indefectivelmente histórico.3 Aliás, em outro texto, uma
1
Le Goff, Jacques. Documento/Monumento. Enciclopédia Einaudi, Vol.1, Lisboa: Imprensa nacional/Casa da
Moeda, 1985.
2
Knauss, Paulo, O desafio de fazer História com imagens: arte e cultura visual, ArtCultura, Uberlândia, vol.8,
n.12, jan-jun. 2006, p.97-115.
3
Meneses, Ulpiano T. Bezerra de. “Fontes visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas
7

apresentação como esta, Meneses já afirmava serem as imagens fotográficas


suportes de relações sociais.4
Neste sentido, os ensaios aqui reunidos pelas temáticas da história, fotografia
e cultura visual prescrevem um itinerário no qual são apontados caminhos para a
compreensão da fotografia como expressão estética, percepção subjetiva, produção
autoral, leitura do mundo visível, tramas de ver e registrar visualmente a história,
como processo e problema.
Há muito venho trabalhando com fotografia, em aulas, textos e pesquisa. Esse
trabalho me possibilitou encontros inesquecíveis com produtores e suas imagens,
com sujeitos e suas lembranças, com trajetórias e seus projetos.5 Ainda assim, me
surpreendo com a infindável riqueza que a reflexão sobre a prática e a experiência
fotográfica pode revelar. Boa leitura.

cautelares”, Revista Brasileira de História, vol. 23, n° 45, julho de 2003.


4
Meneses, Ulpiano T. Bezerra de. Apresentação. In: Lima, Solange F.; Carvalho, Vania Carneiro de. Fotografia e
Cidade: da razão urbana à lógica do consumo, álbuns de São Paulo (1887-1950). São Paulo: Mercado das Letras, 1997.
5
MAUAD, Ana Maria. Poses e Flagrantes: ensaios sobre história e fotografias. Niterói: Eduff, 2008.
PARTE I – FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E IMPRENSA
Capítulo 1

IMAGENS DA CIDADE DE PORTO ALEGRE NOS ANOS


1950: A ELABORAÇÃO DE UM NOVO PADRÃO DE
VISUALIDADE URBANA NAS FOTORREPORTAGENS
DA REVISTA DO GLOBO 1
Charles Monteiro2

A pesquisa problematiza a elaboração de uma nova visualidade da cidade


brasileira na imprensa nos anos 1950, através de um estudo de caso sobre Porto
Alegre, no contexto de mudanças na cultura visual. Trata-se de compreender a
produção e a veiculação de imagens fotográficas da cidade de Porto Alegre nos anos
1950, na Revista do Globo, no contexto de modernização da imprensa ilustrada
brasileira. Busca-se discutir os temas, as formas de fotografar a cidade e os sujeitos
urbanos, bem como o processo de editoração dessas imagens fotográficas em
fotorreportagens nas páginas da revista, visando a compreender a nova visualidade
urbana e as representações de cidade elaboradas em um contexto de crescimento
populacional, expansão do perímetro urbano e verticalização da área central.
Os estudos sobre cultura visual problematizam a forma como os diversos
tipos de imagens perpassam a vida cotidiana, relacionando as técnicas de produção
e circulação das imagens à forma como são vistos os diferentes grupos e espaços
sociais, entre o visível e o invisível, propondo um olhar sobre o mundo, mediando a
nossa compreensão da realidade e inspirando modelos de ação social.3

1
A pesquisa foi apresentada no Minissimpósio Temático História, Imagem e Cultura Visual, no XXIV Simpósio
Nacional de História da ANPUH, realizado de 15 a 20 de julho de 2007, na UNISINOS (São Leopoldo/RS/Brasil),
e coordenado pelos Professores Doutores Iara Lis Franco Schiavinatto (UNICAMP) e Charles Monteiro (PUCRS),
bem como no VII Congresso Internacional de Estudos Ibero-Americanos, realizado de 21 a 23 de outubro de
2008, na PUCRS (Porto Alegre/RS/Brasil). Versões parciais foram publicadas em: MONTEIRO, Charles. Imagens
sedutoras da modernidade urbana: reflexões sobre a construção de um novo padrão de visualidade urbana nas
revistas ilustradas na década de 1950. Revista Brasileira de História, 2007, Vol. 27, n. 53, p. 159-176; MONTEIRO,
Charles. A construção da imagem dos “outros” sujeitos urbanos na elaboração da nova visualidade urbana de Porto
Alegre nos anos 1950. Urbana, 2007, ano 2, n. 2, p. 1-21.
2
Doutor em História Social (PUCSP/Lyon 2), Professor Adjunto de História do Programa de Pós-Graduação em
História (PPGH) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Brasil/RS/Porto Alegre). Desenvolve
pesquisas na área de História, Fotografia e Cultura Visual; ministra Seminário “História, Fotografia e Cultura
Visual: Imagens das cidades brasileiras séc. XIX e XX” no PPGH da PUCRS; orientou cinco dissertações sobre
História e Fotografia; publicou vários artigos em revistas nacionais e papers em anais de congressos nacionais e
internacionais sobre o tema; coordenou organizou simpósios temáticos em congressos; organizou dossiês sobre
História e Fotografia; faz parte do Grupo de Pesquisa interinstitucional do CNPQ Imagem, Cultura Visual e História.
Endereço: PPGH/PUCRS Av. Ipiranga, 6681, Prédio 3, Sl. 303 – Porto Alegre – Brasil – CEP. 90619-900. E-mail:
monteiro@pucrs.br.
3
Sobre Cultura Visual, História e Fotografia, cf. MENESES (2003, 2005); KNAUS (2006); sobre fotografia e
imprensa ilustrada, cf. MAUAD (2004, 2005); sobre fotografia e cidade, cf. LIMA e CARVALHO (1997).
10 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

Reflexões sobre História, Fotografia e Cultura Visual

Nos anos 1990, desenvolveu-se, nos Estados Unidos, um campo novo de


pesquisa chamado de Estudos Visuais, ligando departamentos de artes, comunicação,
antropologia, história e sociologia. As pesquisas apresentavam uma clara perspectiva
multidisciplinar e procuravam problematizar a centralidade das imagens e a
importância do olhar na sociedade ocidental contemporânea. Alguns autores chegam
mesmo a diagnosticar que estaríamos vivendo um pictorial turn ou um visual turn,
dado o papel do visual e da visualização no contexto atual marcado pelas imagens
digitais e virtuais presentes na televisão, em filmes, em games, na internet (o second
life é um sintoma), em celulares, em i-phones etc.
Os estudos sobre cultura visual problematizam a forma como os diversos
tipos de imagens perpassam a vida social cotidiana (a visualidade de uma época),
relacionando as técnicas de produção e circulação das imagens à forma como são
vistos os diferentes grupos e espaços sociais (os padrões de visualidade), propondo
um olhar sobre o mundo (a visão), mediando a nossa compreensão da realidade e
inspirando modelos de ação social (os regimes de visualidade).
Segundo Knauss,4 existem duas grandes perspectivas de estudo da cultura
visual, uma mais restrita, que procura tratar da experiência visual da sociedade
ocidental na atualidade (marcada pela imagem digital e virtual), e outra mais
abrangente, que permite pensar diferentes experiências visuais ao longo da história
em diversos tempos e sociedades.
Este texto constitui-se de uma série de notas sobre a relação entre história,
fotografia e cultura visual, sem a pretenção de ser exaustivo na revisão bibliográfica,
visando dar certas orientações e pistas para pensar o lugar da fotografia no contexto
mais amplo dos estudos sobre a imagem.
As imagens acompanham o processo de hominização e de socialização do
homem desde a pré-história, elas perpassam a vida e a organização social, ordenando a
relação entre os homens e desses com o visível e o invisível. A confecção de máscaras
mortuárias e a produção de lápides, desde a Antiguidade, apontam para a relação entre
imagem e morte, bem como para a necessidade do homem de afirmar e de prolongar
a vida frente a perspectiva de sua finitude. Régis Debray5 aponta para a função social
da imagem ligada à produção de um duplo do morto visando à preservação de sua
memória. Os usos políticos da imagem também estão presentes desde os tempos mais
remotos, pois de seu controle dependia a legitimidade do exercício do poder.

4
KNAUSS (2006, p. 108-110).
5
DEBRAY (1994, p. 22-30).
11 Charles Monteiro

Segundo Kern,6 desde seu início a imagem esteve relacionada à representação


e à noção de imitação do real. A imagem emerge de uma troca simbólica e de um
simulacro fabricado para enfrentar a destruição provocada pela passagem do tempo,
agenciar a memória, manter a coesão social e, também, exercer o controle político.
Funções sociais que não abolem a dimensão artístico-criativa do ato de criação da
imagem no tempo. A imagem situava-se entre a mimese, pela produção de uma cópia
do real através da semelhança, e a representação, ao buscar tornar presente uma
ausência e conferir-lhe significados sociais precisos e controlados.
A partir do século XIX, a fotografia vai tomar o seu lugar nesse mundo das
imagens, ao qual vem alterar de forma radical no contexto da Revolução Industrial
ou Revolução Técnico-Científica. Por um lado, a fotografia veio responder a uma
demanda crescente de imagens e de autorrepresentação da burguesia em ascensão,
buscando uma forma de fabricar imagens de forma rápida e consideradas fiéis aos seu
referente. De outro lado, o dramático processo de urbanização criou a necessidade de
controlar e disciplinar um contingente divesificado de sujeitos em uma sociedade de
massas, criando a foto de identificação.
Segundo Santaella,7 esse mundo das imagens pode ser divido, em termos
de diferentes formas de produção, circuitos de circulação, formas de recepção e de
estatuto das imagens no tempo, em três paradigmas: pré-fotográfico; fotográfico
e pós-fotográfico. O paradigma pré-fotográfico está relacionado ao conjunto das
imagens produzidas de forma artesanal pela mão do homem, dependendo de sua
habilidade e imaginação para plasmar o visível. Tratam-se de imagens produzidas
pela mão do artista, que guardam a sua marca e a aura de objetos únicos. Elas têm
uma circulação restrita, sobretudo feitas para serem expostas em galerias e museus.
O paradigma fotográfico diz respeito às imagens produzidas por conexão dinâmica
e captação física de fragmentos do mundo visível com a mediação de um aparato
ótico-mecânico: a câmera fotográfica (a caixa-preta), de vídeo ou de TV. São imagens
produzidas com o auxílio de um aparelho mecânico, visando sua reprodução em série.
Perdem a sua aura de objeto único e passam a circular em diferentes meios sociais,
sobretudo, em jornais, revistas, outdoors publicitários etc. Finalmente, o paradigma
pós-fotográfico que se refere às imagens sintéticas e infográficas (virtuais), pré-
modelizadas e matematicamente elaboradas através do computador. Percebe-se a
importância da fotografia nessa interpretação à medida que ela é o parâmetro para a
existência de um pré-fotográfico e um pós-fotográfico.
O paradigma fotográfico é herdeiro da câmara obscura, utilizada desde o
Renascimento. O dispositivo foi sendo aperfeiçoado e tornou-se capaz de capturar
uma imagem latente em suporte sensível à luz, desencadeando a fotografia. A máquina
6
KERN (2005, p. 7)
7
SANTAELLA (2005, p. 295-307).
12 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

fotográfica (o dispositivo técnico) media o enfrentamento entre o olhar de um sujeito (o


fotógrafo) e um referente (a realidade), que é observado e tem sua luz (fluxo fotônico)
capturada através de uma lente em uma superfície sensível. O ato fotográfico é o fruto
de um corte, tanto no campo visual (espaço) quanto na duração (tempo), constituindo-
se em um fragmento separado e embalsamado do mundo para a posteridade. O que
nos interessa reter dessa proposta é a particularidade material da imagem fotográfica
frente às imagens manuais e as infográficas. Embora a fotografia não inaugure a era
da reprodutividade das imagens (precedidade por outras técnicas como a xilografia,
litografia etc.), ela inaugura a era da reprodutividade técnica das imagens, permite que
essa reprodução seja muito mais rápida, barata e em massa, bem como considerada
mais fiel do que aquelas obtidas pelas tecnologias anteriores. A fotografia respondeu
às demandas econômico-industriais e estéticas (realismo) da sociedade europeia da
segunda metade do século XIX, que lhe confere o estatuto de atestação, de duplo do
real e de documento. Isso leva a refletir sobre a questão do realismo na fotografia e da
forma como ela foi pensada pelos críticos e teóricos no ocidente.
Segundo Dubois,8 essse percurso pode ser pensado em três tempos: 1) a
fotografia do real (o discurso da mimese); 2) a fotografia como transformação do real
(o discurso do código e da desconstrução); 3) a fotografia como um traço do real (o
discurso do índice e da referência).
O primeiro corresponde à euforia que se segue à sua invenção e divulgação
na França, Inglaterra e nos Estados Unidos, onde seus atributos de precisão, rapidez e
suas inúmeras possibilidades de utilização foram amplamente louvadas. A fotografia
foi apresentada como um auxiliar precioso para a ciência e para as artes em geral. O
potencial da fotografia de repertoriar os recantos mais distantes do mundo auxiliando
as expedições científicas, bem como de reproduzir as obras de arte antigas visando ao
seu estudo, conferiu-lhe o estatuto de espelho do real. O que se devia, por um lado, à
semelhança entre a imagem e seu referente e, por outro, à valorização da sociedade
europeia dos princípios técnico-científicos envolvidos na operação fotográfica, que
lhe garantiriam ser uma reprodução fiel do mundo.
O segundo momento é caracterizado pela denúncia da fotografia como
transformação do real. Entre o final do século XIX e início do século XX,
apontaram-se a falsa neutralidade e a redução do real produzida pela fotografia.
Primeiramente, ela produzia um corte no fluxo do tempo, o congelamento de um
instante separado da sucessão dos acontecimentos. Em segundo lugar, ela era um
fragmento escolhido pelo fotógrafo através da seleção do tema, dos sujeitos, do
entorno, do enquadramento, do sentido, da luminosidade etc. Em terceiro lugar,
a fotografia transformava o tridimensional em bidimensional, reduzindo a gama
de cores e simulando a profundidade do campo de visão. Além de tudo isso, ela
8
DUBOIS (1993, p. 23-56).
13 Charles Monteiro

também era uma convenção do olhar herdada do Renascimento e da pintura, que


seria necessário apreender para poder “ver”. Ou seja, questionavam-se a exatidão,
o realismo e a universalidade desse tipo de imagem.
Segundo Dubois,9 a fotografia se distingue de outros sistemas de
representação como a pintura e o desenho (dos ícones), bem como dos sistemas
propriamente linguísticos (dos símbolos) enquanto se aparenta muito com o dos
signos como a fumaça (índice do fogo), a sombra (alcance), a poeira (depósito do
tempo), a cicatriz (marca de um ferimento) e as ruínas (vestígios de algo que esteve
ali). Para Dubois, a fotografia seria um índice, pois guardaria um elo físico com o
seu referente. Ela seria uma marca deixada pelo rastro de luz emitido ou refletido por
um corpo físico (pessoa ou objeto) sobre uma superfície sensível (filme, papel etc.).
Essa posição foi questionada, recentemente, por autores como André
Rouillé10 e Mario Costa,11 que apontam para a importância do processo mecânico e
da produção de uma memória da máquina ou dos materiais (película, papel) e não de
uma projeção do referente na superfície sensível.
Segundo Roland Barthes, em A mensagem fotográfica,12 a fotografia é uma
imagem híbrida, pois construída em parte por um aparelho técnico, que captaria um
real puro, e em parte por uma mensagem com conteúdo histórico, social e cultural.
A fotografia é uma convenção do olhar e uma linguagem de representação
e expressão de um olhar sobre o mundo. Nesse sentido, as imagens são ambíguas
(por sua natureza técnica) e passíveis de múltiplas interpretações (em relação ao
meio através do qual elas circulam e do olhar que as contempla). Por isso, para
a sua interpretação, são necessárias a compreensão e a desconstrução desse olhar
fotográfico, através de uma discussão teórico-metodológica, que permita formular
problemas históricos e visuais, no sentido de que a dimensão propriamente visual do
real possa ser integrada à pesquisa histórica.
Assim sendo, passo a inventariar alguns trabalhos que vêm contribuindo para
essa discussão teórico-metodológica, que visam incorporar os documentos visuais à
pesquisa histórica.
Em Fotografia e História,13 Kossoy aponta para a necessidade de pensar
a tríade sujeito (fotógrafo), técnica (equipamento) e assunto (a história do tema
abordado). Primeiramente, o historiador deveria procurar informações sobre a
atuação profissional do fotógrafo, se possuía um ateliê, qual era a sua clientela, se
trabalhava por encomenda para uma empresa ou administração, a classe social a
que pertencia, os seus gostos e os preços cobrados. Deveriam se levar em conta
9
DUBOIS (1993, p. 61).
10
ROUILLÉ (2005, p. 288-304).
11
COSTA, Mario (2006, p. 179-192).
12
BARTHES (1982, p. 11-25).
13
KOSSOY (1989).
14 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

ainda os filtros culturais e ideológicos de classe do fotógrafo e de sua época. Outra


variável diria respeito aos equipamentos e às técnicas empregadas: o tipo de câmara,
o tipo de negativo, as lentes, a forma de revelação, os formatos das fotografias etc.
Finalmente, o assunto deve ser colocado no seu tempo e gênero específico: retrato,
vistas urbanas, cartão-postal, álbum de família, último retrato ou fotorreportagem.
Para esse autor, o assunto tem uma lógica própria que extrapola os quadros
da imagem fotográfica, sendo necessário, para discutir um determinado tipo de
fotografia, compreender o percurso histórico do assunto: seja o das formas de
representação do poder da classe dominante, do jogo político ou da cidade. O
autor também chama atenção de que a fotografia tem uma primeira realidade
ligada ao momento de produção da imagem pelo fotógrafo, e uma segunda
realidade ligada à circulação e aos usos posteriores da imagem em contextos
sob formas que não foram previstas pelo fotógrafo no momento de produção da
imagem. Ou seja, a fotografia em uma fototeca ou acervo iconográfico tem usos
e significados muito diversos daqueles para os quais foi produzida pelo fotógrafo
no passado, bem como a reutilização de imagens na imprensa, em manuais ou em
livros de história agregam ou transformam os significados das imagens a partir
de outro contexto de recepção.
Essa proposta metodológica de Kossoy é, posteriormente, ampliada no livro
Entre realidades e ficções da trama fotográfica,14 no qual o autor analisa os usos
da fotografia em cartões-postais e álbuns de vistas como forma de construção do
nacional na fotografia brasileira no século XIX, como no álbum Le Brésil, produzido
sob os auspícios do Império para fazer propaganda do país na Exposição Universal
de Paris de 1889.
O seu trabalho precursor foi e continua sendo importante sobre os pioneiros
da fotografia no Brasil e as questões relacionadas à utilização, à conservação,
à gestão e à interpretação desses acervos fotográficos do século XIX e XX. No
entanto, a partir da tradução e publicação no Brasil, nos anos 1980, de autores como
Roland Barthes, Susan Sontag, Philippe Dubois, Jean-Marie Schaeffer e Rosalind
Krauss entre outros, surge novo contexto de pesquisa histórica, impulsionando
investigações a partir da renovação da matriz teórica e da elaboração de novos
problemas de pesquisa relativos ao campo visual: história visual, cultura visual e
regimes de visualidade.15
Nos anos 1990, multiplicaram-se as investigações sobre a fotografia e cidade,
para refletir sobre o acelerado processo de transformação da paisagem e da sociedade
urbana brasileira no século XX.

14
KOSSOY (2002).
15
MENESES (2003, 2005).
15 Charles Monteiro

A pesquisa de Ana Maria Mauad16 representa uma nova fase dos estudos
sobre cidade e fotografia, pesquisando a construção da visualidade urbana do Rio de
Janeiro em revistas ilustradas na primeira metade do século XX. Seu trabalho, além
de tratar dos usos privados da fotografia pelo grupo familiar, abordou a fotografia
de imprensa a partir das revistas Careta e O Cruzeiro, tendo sido esta última a mais
importante e inovadora revista ilustrada brasileira entre as décadas de 1930 e 60.
Uma das principais contribuições desse estudo é o tratamento da problemática
do espaço na construção de códigos de representação fotográfica do comportamento
da sociedade burguesa carioca entre 1900 e 1950. Mauad17 estabeleceu para sua
análise das imagens fotográficas cinco categorias espaciais que abrangem tanto o
plano do conteúdo quanto o da expressão: o espaço fotográfico, o espaço geográfico,
o espaço do objeto, o espaço da figuração e o espaço da vivência.
Mauad relacionou e cruzou os padrões técnicos envolvidos na forma de
expressão das imagens com os padrões de conteúdo para elaborar a sua interpretação
dos códigos de representação social da classe dominante carioca. Esse trabalho
sugere uma série de questões sobre a predominância de certas imagens (urbanas,
de determinadas zonas da cidade, de determinados grupos sociais, em determinados
espaços urbanos, de um gênero sobre outro, de certos objetos a eles associados, as
ordenações dos grupos, as poses e os tipos de performances etc.) em detrimento
de outras que ficam fora do quadro fotográfico, bem como da forma de fotografar
proporcionada por uma técnica e de publicar essas imagens nas páginas das revistas,
criando séries e narrativas que enfatizam determinados códigos de representação
social de certos grupos urbanos excluindo outros.
O livro Fotografia e Cidade,18 de Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro
de Carvalho, deu uma contribuição significativa aos estudos sobre o tema ao propor
uma metodologia própria para a análise icônica e formal das imagens de cidade, no
caso de São Paulo, em álbuns de fotografias produzidos entre 1887-1919 e 1951-
1954. A importância desse estudo está no fato de construir uma metodologia voltada
para a interpretação dos padrões visuais de representação da cidade, remetendo à
análise dos modos específicos de tratamento fotográfico do espaço urbano.
Os descritores icônicos (relativos aos conteúdos e espaços das fotografias)
são agrupados a partir de um vocabulário controlado em: tipologias do espaço;
localização; tipologia urbana; abrangência espacial; acidentes naturais/vegetação;
infraestrutura/processos/serviços; infraestrutura/comunicações; infraestrutura/
mobiliário urbano; infraestrutura/paisagismo; estrutura/funções arquitetônicas;
elementos móveis/ gênero/idade; elementos móveis/personagem/categoria;
16
MAUAD (1990, 2004, 2005, 2006, 2008).
17
MAUAD (2004, p. 19-36).
18
LIMA e CARVALHO (1997).
16 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

elementos móveis/personagens; elementos móveis/transportes; atividade agrícola;


atividade urbana; temporalidade.
Os descritores formais (relativos à técnica, à forma e aos códigos de
expressão) são agrupados a partir das categorias: enquadramento; arranjo; articulação
dos planos; efeitos; e estrutura.
O cruzamento dos percentuais de recorrência das imagens fotográficas
enquadradas nos descritores icônicos confrontadas com a recorrência dos descritores
formais permitiu às autoras estabelecerem uma tipologia de oito padrões fotográficos
predominantes nesses álbuns: retrato; circulação urbana; figurista; diversidade;
coexistência; intensidade; mudança; e paisagístico.
As autoras puderam chegar a uma série de conclusões a partir da verificação
da maior incidência de determinados padrões em cada um dos períodos, como a
predominância do padrão “circulação” na virada do século XIX para o XX, relacionada
à racionalização do espaço urbano, e o padrão “retrato” nos anos 1950, relacionado
à tipificação do trabalho e à mercantilização do espaço urbano, bem como refletir
a partir das imagens sobre a construção da diferenciação/indiferenciação social na
metrópole capitalista. Esse trabalho permite problematizar a forma como foram
construídos os padrões de visualidade urbana nas imagens fotográficas dos álbuns da
cidade de São Paulo nos anos de 1887-1919 e 1951-1954.
Mais recentemente, no texto “Rumo a uma ‘História Visual’”, Meneses
propõe que o estudo desse campo se realize a partir da reflexão sobre três domínios
complementares: o visual, o visível e a visão.19 O domínio do visual compreenderia
os sistemas de comunicação visual e os ambientes visuais, bem como “os suportes
institucionais dos sistemas visuais, as condições técnicas, sociais e culturais de
produção, circulação, consumo e ação dos recursos e produtos visuais”, para poder
circunscrever “a iconosfera, isto é, o conjunto de imagens-guia de um grupo social
ou de uma sociedade num dado momento e com o qual ela interage”.20
Para o autor, o domínio do visível e do invisível situa-se na esfera do poder e do
controle social, do ver e ser visto, do dar-se a ver ou não dar-se a ver, da visibilidade e
da invisibilidade. Já a visão “compreende os instrumentos e técnicas de observação, o
observador e seus papéis, os modelos e modalidades do olhar” de uma época.21
A pesquisa em tela orientou-se pelas questões teóricas mais amplas propostas
por Meneses sobre a relação entre visual, visível/invisível e visão e serviu-se das
propostas metodológicas de Mauad e Lima & Carneiro para interpretar as fotografias
na elaboração do novo padrão de visualidade urbano nos anos de 1950, a partir do
estudo de caso de Porto Alegre.
19
MENESES (2005, p. 33-56).
20
Idem, Ib. p. 36.
21
Idem, Ib. p. 38.
17 Charles Monteiro

Fotografia e Cultura Visual em Porto Alegre entre 1940 e 1960

No Brasil, a partir dos anos 1940, a fotografia passa por um processo


de difusão e expansão através do aperfeiçoamento das técnicas de edição e de
reprodução de imagens fotográficas, bem como de modernização através do trabalho
de experimentação nos fotocineclubes de São Paulo, Recife e Porto Alegre, entre
outros. Durante a Segunda Guerra Mundial, a fotografia se tornou uma forma
importante de informar e mobilizar a população através de sua veiculação em jornais
e revistas ilustradas. Os fotógrafos passam a se organizar em associações e sindicatos
visando ao reconhecimento e à valorização do seu trabalho.
Câmaras mais portáteis como a Rolleiflex, com negativos de 120 mm e
6 x 6 cm, e a Leica, com filmes de 35 mm, com películas mais sensíveis, além
de objetivas e flash permitiram o avanço da foto instantânea (sobretudo no
fotojornalismo) e a presença mais dinâmica do fotógrafo no espaço público,
para documentar e informar a modernização dos espaços urbanos, das formas de
sociabilidade e os movimentos políticos.
A tradição de edição de álbuns fotográficos com vistas da cidade inaugurada
no século XIX prolonga-se no século XX visando fixar a memória da velha Porto
Alegre frente às rápidas mudanças em curso na paisagem urbana, decorrentes do
processo de modernização e verticalização da cidade. Em 1941, um ano após as
comemorações dos 200 anos de colonização de Porto Alegre, foi editada a obra
comemorativa Porto Alegre: Biografia da Cidade. O livro, de grandes proporções
(37 x 27 cm e 664 páginas) e ricamente ilustrado, apresenta duas séries de fotografias
com histórias visuais sobre o passado (1890-1910) e presente (final dos anos 1930
e 1940) da cidade. A seção A vida na velha Porto Alegre: Reminiscências Gráficas,
referente ao século XIX, apresenta imagens de Calegari e outros fotógrafos,
destacando as formas de sociabilidade das elites e camadas médias (footing,
carnaval, exposições), o trabalho (através de tipos populares como o aguateiro e
os acendedores de lampião), as formas de transporte ao longo do tempo e certos
aspectos pitorescos da velha cidade. A seção Excursão caleidoscópica através
da cidade apresenta imagens de grande formato dos principais prédios públicos,
igrejas e praças da cidade, apontando para uma visão oficial, turística, higienista e
pitoresca da cidade. O livro tinha o duplo objetivo de legitimar a gestão do Prefeito
Loureiro da Silva e projetar suas realizações para o futuro, construindo a memória
de uma cidade que se modernizava a passos rápidos.
Como nos jornais e nas revistas ilustradas, fotos destacavam as novas
práticas políticas do Estado Novo com os seus desfiles cívicos, educação cívica e
eventos esportivos, que visavam à educação do corpo para o trabalho, preparação
para a guerra e purificação da nação.
18 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

O fotojornalismo conheceu o seu auge nos anos 1950 com novas narrativas
fotográficas – série de imagens de tamanhos variados que contam uma história visual
– ocupando cada vez mais lugar nas páginas dos jornais e revistas. A Revista do Globo,
os jornais A Hora e Última Hora estão na vanguarda desse processo no âmbito local.
No plano formal, multiplicam-se as fotos aéreas, a fotorreportagem, a foto
de publicidade e as fotos instantâneas de grandes manifestações políticas, bem
como inovações na composição e no uso da luz. A cultura visual está marcada pela
introdução da televisão no final da década de 1950 e pelo período áureo dos filmes
hollywoodianos, apresentados no formato cinemascope nas grandes salas de cinemas
de calçada do centro da cidade e nos bairros.
Os fotógrafos passam a ser mais valorizados nas revistas ilustradas e a
terem seus nomes mencionados como autores das imagens. Em Porto Alegre,
Leo Guerreiro, Pedro Flores e Sioma Breitman se destacam no fotojornalismo, na
fotografia de publicidade e na produção de retratos em estúdio. Leo Guerreiro é autor
de famosas vistas aéreas da cidade, que acompanham o processo de modernização
e verticalização da área central. Muitas dessas fotos também eram ampliadas,
tornando-se painéis e comercializadas para decorar escritórios e casas comerciais.
O fotojornalismo vai privilegiar a mobilização política envolvendo o
processo de discussão sobre nacionalização do subsolo, a estatização de empresas de
energia e transporte públicos. Nesse período ocorreu a irrupção das massas na cena
urbana, ora como ator ora como coadjuvante dos processos políticos.
Em 24 de agosto de 1954, a morte de Getúlio Vargas constitui-se em um
momento significativo de mobilização e utilização da rua como espaço político. A
fotografia de imprensa perpetuou os conflitos e as depredações no centro da cidade
de Porto Alegre.
As fotos desse período, produzidas pela Assessoria de Imprensa do Palácio
Piratini (Acervo do Setor de Fotografia do Museu de Comunicação Social Hipólito
José da Costa), representam os governadores em plena ação, visitando e inaugurando
obras, recebendo delegações de políticos ou lideranças dos movimentos sociais. O
populismo transformou algumas fotografias em imagens de culto ao poder político.
Na segunda metade dos anos 1950, a Assessoria de Imprensa e o serviço
fotográfico do Palácio Piratini crescem em importância e ocorre um salto no
número de fotografias e na forma de documentação das ações dos governadores e
secretários de Estado. Alguns fotojornalistas trabalhavam simultaneamente para a
Revista do Globo e para repartições públicas (Secretaria de Educação e Secretaria de
Agricultura), como nos casos de Pedro Flores e Léo Guerreiro.
No início da década de 1960, foram as imagens da Campanha da Legalidade
que marcaram uma nova postura através do uso consciente e maciço dos meios de
19 Charles Monteiro

comunicação (jornal e rádio) na mobilização popular. O Palácio do Governo do


Estado do Rio Grande do Sul foi transformado em quartel-general da resistência e
centro de difusão de notícias.
Por um lado, acelera-se a migração do campo para a cidade, e surgem as
vilas populares. Começam a aparecer as imagens da desigualdade social através da
documentação da remoção de vilas populares como a Vila Dique. Por outro lado,
o processo de modernização urbana ganhava visibilidade através das imagens de
grandes obras públicas (Ponte do Guaíba, Aeroporto Salgado Filho) e da abertura
de novas avenidas, bem como da construção de escolas (como as chamadas
“brizoletas”, em madeira). A realização de um levantamento fotográfico aéreo e
terrestre aponta tanto para o processo de expansão da malha urbana em direção
ao sul e ao norte da cidade quanto para o uso da imagem fotográfica para gestão
do espaço urbano (aterros, expansão da malha urbana, crescimento de vilas etc.).

A modernização da grande imprensa nos anos 1950


O período também foi marcado pela modernização da grande imprensa22
nos principais centros urbanos (especialmente nas capitais), dominada por alguns
grupos proprietários de jornais e rádios, que passaram a monopolizar o setor de
comunicação. Observa-se, por um lado, a expansão nesses periódicos do espaço
destinado à publicidade e aos classificados, bem como a ampliação do número de
leitores, que favoreceu uma série de inovações na editoração e na diagramação,
o que permitiu a utilização cada vez maior de fotografias. Por outro lado, esses
veículos não estavam totalmente livres do jogo político-partidário e da dependência
da propaganda institucional de governos estaduais e do federal.
As revistas ilustradas formavam um segmento diferenciado visando a um
público de maior poder aquisitivo, construindo as matérias sob um ângulo novo,
da tomada de opinião e não exatamente do imediato. Elas desempenham toda
uma nova pedagogia social sobre as elites vindas do campo, as camadas médias
provenientes das pequenas cidades do interior e para os próprios habitantes das
capitais em processo de expansão e transformação do espaço urbano. A revista
O Cruzeiro, Revista do Globo e a Manchete se destacam como os veículos de
comunicação impressos mais modernos, no sentido de construírem um novo tipo
de reportagem e de narrativa baseada no uso da fotografia.23
As revistas buscavam assuntos polêmicos para mobilizar a atenção do
público leitor. Eram meios híbridos que mesclavam uma variedade de temas –
22
Cf. RIBEIRO (2003), GRANDI (2005).
23
MUNTEAL e GRANDI (2005, p. 90-95).
20 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

desde política internacional, política nacional, artes, vida social, cotidiano, esportes,
variedades e publicidade – buscando equilibrar informação, formação de opinião
e entretenimento.24 As revistas trabalhavam com polaridades como “nós” e os
“outros”,25 “presente e passado”, “tradição e modernidade” etc., seguidamente
propondo uma abordagem sensacionalista dos acontecimentos. Através de imagens
e palavras, as revistas construíram representações sociais, agregando novidade e
promovendo consenso sobre determinados significados sociais. Quanto menor a
competência na decifração dos códigos verbais, maior a importância das imagens
fotográficas que ocupavam a maior parte do espaço das páginas.
As fotorreportagens construíram uma imagem da cidade em processo de
mudança para o consumo das elites e das camadas médias, bem como uma imagem
dos novos sujeitos urbanos que chegam à cidade: os “outros”. Uma cidade cada vez
maior e difícil de abarcar pelo olhar humano, que necessitava da mediação dos meios
de comunicação para promover a compreensão e a legitimação das mudanças na
paisagem urbana em um tempo cada vez mais acelerado. Ao congelar fragmentos de
temporalidade, a fotografia permitiu condensar e recriar a nova imagem das cidades
brasileiras em processo de mutação: a destruição de espaços tradicionais e a criação
de espaços modernos submetidos à lógica da sociedade de consumo.
Ou seja, a fotografia nas revistas ilustradas e, em especial, as fotorreportagens
“davam a ver a cidade”, promovendo uma reeducação do olhar, sintetizando e
ressignificando esse processo de expansão horizontal e vertical urbana. Permitiram,
também, a difusão de toda uma nova cultura urbana, com novos parâmetros de
sociabilidade, de civilidade e de consumo, que passariam ser almejados e buscados
pelos leitores desses periódicos, ávidos em participar da modernidade urbana.
O estatuto da imagem fotográfica que predominava nas revistas ilustradas
era o da cópia da realidade e de documento verídico, que procurava apresentar como
objetiva e verdadeira a interpretação dos fatos abordados. As revistas ilustradas,
através das fotorreportagens, visavam ensinar uma nova maneira de ver, que
tanto entretinha e deleitava quanto cumpria a tarefa de informar e difundir uma
nova imagem moderna da cidade e da cultura urbana entre as camadas médias da
população brasileira.
Segundo Costa, “a fotorreportagem é uma narrativa que resulta da conjugação
de texto e imagem, ou seja, de duas estruturas narrativas totalmente distintas e
independentes, dentro de uma armação própria realizada pela edição”.26
De forma geral, as fotorreportagens iniciavam-se com uma fotografia de
página inteira ou página dupla, uma “imagem síntese” do tema, que visava mobilizar
24
COSTA (1992, p. 53-68).
25
BAITZ (2003).
26
COSTA (1992, p. 58), SOUSA (2004).
21 Charles Monteiro

emocionalmente o leitor acerca da matéria. Compreender a relação entre imagem e


texto é importante no sentido de compreender como este disciplina a leitura daquela.
O título e uma legenda sobreposta à fotografia de grande formato completavam o
apelo à atenção do leitor. Seguia-se uma sequência de cerca de 8 a 12 fotos, formando
uma narrativa ao redor do tema principal. Pequenos textos e subtítulo auxiliavam na
urdidura da trama e na construção dessa narrativa visual, direcionando a atenção do
leitor para determinados aspectos da realidade abordada nas fotos.
A Revista do Globo foi o periódico ilustrado quinzenal mais duradouro
e de maior tiragem produzido no Rio Grande do Sul, entre 1930 e 1960. Tendo
sido criada em 1929, torna-se um veículo de comunicação influente na imprensa
regional, com um projeto gráfico e editorial arrojado para o período. Nos anos
1950, a Revista do Globo disputava espaço com outras revistas de tiragem
nacional como O Cruzeiro e Manchete. Todas elas se inspiravam de alguma
forma no modelo americano fornecido pela Life, publicando fotorreportagens com
tom sensacionalista, misturadas a artigos de entretenimento, resenhas de obras
literárias, publicação de contos, de poesias e notas sobre a vida social das elites
da capital e das principais cidades do estado. De forma geral, uma edição possuía
cerca de 100 páginas e estava dividida entre as seções: “Reportagens”, “Assuntos
Gerais”, “Literatura”, “Cinema” e “Passatempo”. As “Reportagens” abordavam
assuntos internacionais, nacionais e locais, entremeados de publicidade e crônica
social, visando dar maior leveza à leitura da revista.
As fotorreportagens da Revista do Globo iniciavam-se geralmente com uma
fotografia de página inteira ou página dupla, que era uma “imagem síntese” do tema e
visava mobilizar emocionalmente a atenção do leitor sobre a matéria.27 Compreender
a relação entre imagem e texto é importante no sentido de compreender como este
disciplina a leitura daquela. O título e uma legenda sobrepostos à fotografia de grande
formato procuravam capturar a atenção do leitor. Seguia-se uma sequência de cerca
de 6 a 12 fotos formando uma narrativa ao redor do tema principal. Pequenos textos
e subtítulo auxiliavam na construção dessa narrativa visual.
Na Revista do Globo, três fotógrafos contratados produziram o maior número
das fotorreportagens dos anos 1950: Pedro Flores, Léo Guerreiro e Thales de Farias.
Os nomes desses fotógrafos começaram a aparecer abaixo do título como coautores
dessas fotorreportagens. O trabalho deles era complementado por outros fotógrafos
free lancers e por imagens compradas de agências de informação e de outras revistas.
Entre as 256 edições da Revista do Globo publicadas entre 1950 e 1960, foi
possível identificar 184 fotorreportagens que tratavam da cidade de Porto Alegre
pelo levantamento realizado. Essas fotorreportagens abordavam questões relativas
ao processo de modernização do espaço urbano (verticalização, obras públicas e
27
COSTA (1992, p. 53-68).
22 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

privadas), as novas formas de sociabilidade públicas (muitas dessas ligadas aos novos
padrões de consumo), os novos equipamentos culturais, problemas de segurança
pública, de habitação, de transportes e, também, de política municipal. A revista
valorizava o processo de modernização e também abordava alguns dos “problemas
urbanos” de Porto Alegre.
Pode-se dividir a década de 1950 em duas metades. Na primeira metade,
observa-se a formulação dessa nova visualidade urbana moderna, mas ainda com
a presença de imagens das contradições sociais e dos problemas urbanos: a falta
de habitações, de energia, de água tratada, de esgotos, de hospitais, bem como os
vendedores ambulantes (camelôs), os acidentes de automóveis, as filas de ônibus
etc. Na segunda metade dos anos 1950, a revista se engaja no projeto e discurso
desenvolvimentista da administração do Presidente Juscelino Kubitschek (1956-
1960), de realizar “50 anos em 5”, e passou a privilegiar o processo de transformação
e modernização da sociedade e do espaço urbano, deixando em segundo plano as
críticas e as contradições que acompanhavam esse processo. Passa-se, então, à análise
de algumas das fotorreportagens sobre a elaboração da nova visualidade urbana.

A construção de uma nova visualidade urbana moderna de


Porto Alegre

A fotorreportagem “Marco Inicial”,28 de 3 de fevereiro de 1951, trata da


construção, pelo Instituto de Assistência e Aposentadorias do Comerciários (IAPC),
de um conjunto de 250 casas que formariam a Vila dos Comerciários na zona sul
de Porto Alegre (bairro Tristeza). A fotorreportagem tem quatro páginas e oito
fotografias; o formato predominante é o retângulo horizontal (seis fotografias) e
de tamanho médio (quatro fotografias); sendo cinco fotos internas e apenas três
externas; cinco fotos posadas e três instantâneos; cinco fotos pontuais e três parciais.
As linhas são bem definidas e há boa iluminação tanto nas fotos externas quanto nas
internas, realçando o efeito de realismo das fotos.

28
Marco Inicial, Revista do Globo, n. 527, 2/3/1951, p. 61-63, 79.
23 Charles Monteiro

Fonte: “Marco inicial”, Revista do Globo, n. 527, 1951, p. 61 (esquerda), 62 (centro), 63 (direita.).

A fotorreportagem se inicia com uma foto instantânea de grande formato


(1/2 página), com a imagem enquadrando, em primeiro plano, o quintal de uma
casa com terra, materiais de construção e um muro; em segundo plano, um grupo
grande de pessoas em fila (a comitiva do Governador do Estado do Rio Grande do
Sul, Walter Só Jobim, e do Presidente do IAPC, Remy Archer); em terceiro plano,
observa-se a rua que se estende em diagonal, um automóvel, uma calçada e um
conjunto de casas (algumas ainda em construção). O efeito de dinamismo é dado
pelas pessoas em movimento (a maioria homens em idade produtiva, entre os 30 e
50 anos), a casa em construção e a linha diagonal formada pelo muro, pela rua, pelos
postes e pelas casas.
A narrativa segue com uma foto posada de tamanho pequeno, de formato
quadrado, representando o ato solene de inauguração com a presença do Prefeito,
do Governador e do Bispo Metropolitano. Seguem-se, nas duas páginas seguintes
(p. 61, 62), seis fotos que completam a narrativa a partir dessa fotomanchete. Três
delas apresentam os novos equipamentos de atendimento médico, fisioterápico e
odontológico do IPAC. Fotos de interior e planos pontuais que não permitem localizar
o local no espaço urbano. Pela leitura do texto, descobre-se que esses equipamentos
se encontram em outro local, no centro da cidade.
24 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

Em foto de tamanho médio (p. 61), apresentam-se as prováveis pessoas


beneficiadas pela construção das casas e pelos serviços médicos: funcionárias do
comércio de Porto Alegre. Trata-se de uma foto posada do interior de uma residência,
destacam-se a elegância da roupa das mulheres (vestidos e adornos) e a decoração da
casa (com cortinas e abajur de pé). Apesar de o texto referir-se à “classe trabalhadora”,
observa-se que o grupo retratado pertence às camadas médias urbanas.
Na página seguinte, mais uma fotografia com o Governador em primeiro
plano e uma casa recém-construída em segundo plano, mais ao alto. Ou seja, as
fotografias editadas associam a construção das casas às autoridades públicas e
apresentam os trabalhadores do comércio que iriam usufruir de casas modernas, com
todo o conforto, em um bairro novo e moderno, além de atendimento médico.
A última imagem da fotorreportagem constrói a oposição ao enquadrar
em primeiro plano uma mulher que lava roupa ao ar livre ao lado de um forno a
lenha de campanha – representando o antigo, o rural e o tradicional – e, em segundo
plano, o conjunto de casas recém-construídas e em construção da nova Vila dos
Comerciários, que se perdem na linha do horizonte – representando o presente, o
urbano e o moderno.
Observa-se a construção da imagem de um governo que se associa aos
Institutos de Previdência para enfrentar o problema da falta de habitação, através
da construção de 250 casas das 2.100 previstas, que atenderiam cerca de 15.000
pessoas. Essa reportagem deve ser relacionada, por um lado, a outras que abordam
a construção da Vila do Instituto de Aposentadoria e Previdência dos Industriários
(IAPI) e de edifícios por empresas de engenharia e construção, entre 1950 e 1954,
e, por outro, às reportagens que tratam do problema da habitação em Porto Alegre
e do surgimento de vilas irregulares de casas autoconstruídas. Ou seja, ao longo da
década, a Revista do Globo aborda problemas urbanos e também coloca em destaque
a ação das autoridades e administrações na resolução desses problemas.
A dramaticidade e a amplitude do problema da habitação estão associadas
às migrações decorrentes da aceleração do movimento do campo para a cidade, à
expansão territorial urbana sobre antigos espaços rurais e semirrurais (com a ocupação
ilegal de terrenos ou loteamento de chácaras, saneamento de várzeas e realização de
aterros ao redor da cidade) e à abertura de novas avenidas de ligação entre os bairros.
Daí também a ênfase das reportagens sobre o processo de verticalização do centro da
cidade, através da construção de edifícios de alto gabarito (de 10 andares ou mais).
Esse é o caso da fotorreportagem “Porto Alegre cresce para o céu e para
o rio”, com fotos de Thales Farias. O processo de modernização é o tema central
29

abordado, a partir de fotos de grande formato, com tomadas fechadas do centro da


CARNEIRO, Flávio; FARIAS, Thales. “Porto Alegre cresce para o céu e para o rio”. Revista do Globo, 1958, nº
29

722, p. 38-42.
25 Charles Monteiro

cidade, colocando em destaque os novos edifícios (verticalização), as grandes obras


públicas da Avenida Beira-Rio (expansão do perímetro urbano) e da Ponte sobre
o Guaíba (nova escala de construções e ligação entre o sul rural e o norte urbano
do estado). O que é enfatizado pelo título e pelo subtítulo da fotorreportagem:
“Construções civis: recorde no Brasil e duas obras grandiosas”. São 10 fotos de meia
página, com o predomínio do formato retangular vertical. As três primeiras fotos que
abrem a fotorreportagem apontam para a verticalização, a expansão da área urbana e
a monumentalização das construções e obras públicas no espaço urbano. Enfatiza-se
a imagem de uma cidade em construção, em movimento, afirmando o significado
dinâmico do trabalho e da circulação pelas novas avenidas. A presença do leito de ruas
ou avenidas em primeiro plano, em quatro fotografias, orienta o caminho do olhar e
constrói o significado de circulação urbana associado ao movimento de automóveis e
pessoas. Em seis das oito fotos são representadas construções inacabadas, entre elas
duas fotos de prédios recém-construídos. Linhas bem definidas, contrastes de tons,
a luminosidade direta e fotos tiradas no sentido ascensional enfatizam os efeitos de
verticalização e monumentalidade desses prédios de alto gabarito em construção.

Fonte: CARNEIRO, Flávio; FARIAS, Thales. “Porto Alegre cresce para o céu e para o rio”.
Revista do Globo, 1958, nº 722, p. 38-39.
26 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

A legenda da terceira página afirmava: “Porto Alegre, 1958: recorde brasileiro


de construções”. O texto ensaia uma explicação para essa “febre de construções”:
“o aumento vertiginoso nada tem de influências políticas, mas é tão somente a
ação de capitais particulares, pois, com a desvalorização constante do cruzeiro, o
negócio mais rendoso e seguro ainda continua sendo o imobiliário”. O dinamismo
do processo de transformação do espaço urbano é atribuído ao empreendedorismo de
investidores privados e à especulação imobiliária.
Mas talvez o melhor exemplo desse engajamento da Revista do Globo em dar
publicidade a esse projeto de modernidade urbana seja a fotorreportagem “Porto Alegre
via aérea, 1959”,30 de sete páginas, com fotos de Thales Farias. Ela está composta
por seis fotos, quatro delas de grande formato retangular e duas de ¼ de página. Ela
começa com uma foto aérea parcial do centro da cidade ocupando duas páginas. O
sentido diagonal sugerido ao olhar pela foto enfatizava o processo de verticalização
do centro e como que a passagem do passado (representado pelos prédios baixos em
primeiro plano) para o presente (representado pelos edifícios de grande gabarito, em
segundo plano e destacados pela luminosidade natural). Na página seguinte, outra foto
aérea do centro da cidade com a legenda “dentro de alguns anos, a cidade não terá mais
prédios velhos” sugere percurso semelhante para o olhar visando ao mesmo efeito.

Fonte: CARNEIRO, Flávio; FARIAS, T. “Porto Alegre via aérea, 1959”. Revista do Globo, 1959, nº 742, p. 10-11.
30
CARNEIRO, Flávio; FARIAS, T. “Porto Alegre via aérea, 1959”. Revista do Globo, 1959, nº 742, p. 10-16.
27 Charles Monteiro

Percebe-se que estava claramente engajada no projeto político das elites


dirigentes de modernização social. A forma como a Revista do Globo publicava
fotografias panorâmicas do centro da cidade, com planos fechados sobre as áreas
mais centrais de Porto Alegre, visava exaltar o ideário de modernidade. Enquanto
os textos difundiam todo um conjunto de ideias e valores que visavam educar as
camadas médias urbanas, que eram as principais consumidoras da Revista para
a concretização da utopia da cidade moderna numa verdadeira pedagogia social,
as imagens elaboravam esse processo de mudanças e desenraizamento social de
uma forma positiva.
Mas não há somente publicidade da modernização ou a venda de uma
imagem da cidade para consumo dos leitores de classe média na Revista do Globo.
Ela também cumpria o papel de apontar os dilemas que a cidade enfrentava e
deveria mobilizar a opinião pública e a vontade das administrações, municipal e
estadual, para a sua resolução.

As imagens dos problemas urbanos da cidade moderna:


descontextualização, despolitização e busca da superação
através da denúncia
A fotorreportagem “Bairro sem rua nem terra nem destino”31 aborda
a transformação da antiga Doca dos Laranjeiros, na zona norte da cidade. Ela
possui quatro páginas e 10 fotos. As laterais das páginas são ocupadas por
publicidade. As fotos são todas externas, diurnas e com iluminação natural; linhas
e contornos bem definidos; sendo uma de tamanho grande, duas de tamanho
médio e seis pequenas; seis de formato quadrado e quatro de formato retangular;
oito instantâneas e duas posadas; quatro fotos com abrangência parcial, tendo
como referência o Guaíba, e seis pontuais, nas quais não é possível reconhecer
o espaço urbano.

31
“Bairro sem rua nem terra nem destino”, Revista do Globo, 30/9/1950, p. 54-57.
28 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

Fonte: “Bairro sem rua nem terra nem destino”, Revista do Globo, 30/9/1950, p.54-55.

A primeira foto da reportagem de tamanho grande coloca, em primeiro plano,


tábuas, laranjas e lixo espalhados pelo chão, varais de roupa secando. Em segundo
plano, uma mulher adulta parece trabalhar (talvez ela seja uma lavadeira) em frente a
um barraco de madeira. Na sequência, mais quatro fotos pequenas aprofundam o tema:
uma criança tirando uma rede de um barco, tendo ao lado um porco comendo; uma
mulher cortando lenha com um grande machado, com um varal de roupas e uma casa
em segundo plano; crianças mexendo com madeiras, tendo um barco e um telhado ao
fundo; um homem com roupas esfarrapadas carregando um saco nas costas. Todas as
imagens apontam para a desordem, a sujeira e a precariedade do local e das condições
de vida de seus moradores (material das habitações, roupas, convívio entre crianças e
animais etc.). Apesar de visualizarmos água em uma das imagens, os enquadramentos
mais fechados não permitem localizar de forma segura esse lugar no espaço urbano,
promovendo a fragmentação e a segregação do lugar e de seus habitantes do conjunto
da cidade. É o texto e as legendas que precisam ao leitor tratar-se das margens do
Guaíba na zona norte da cidade. O texto também faz uma comparação entre a paisagem
bucólica da praia de areias brancas, onde no passado passeavam os namorados e alguns
barcos descarregavam laranjas, e o presente, caracterizado pelos cortiços, pelas casas
flutuantes e pela população miserável que mora no local. O poder público não teria
conseguido impedir a formação de outro bairro clandestino entre tantas vilas de lama
29 Charles Monteiro

na cidade. Porém, o texto também alerta que o bairro estava com os dias contatos diante
do projeto de aterro e construção do novo cais da zona norte (Bairro Navegantes).
Essa é uma das poucas reportagens que apontam para o problema da expulsão
dos moradores de uma área em decorrência da realização de grandes obras urbanas
pelo poder público. Entretanto, o texto e as fotografias da reportagem promovem a
estigmatização e a segregação desses sujeitos – chamados de “curiosa mistura de
trabalhadores, mendigos e malandros” – associando-os à sujeira, à degradação e a um
estado primitivo de vida social (falta de saneamento, escola, assistência médica etc.).
Tudo o que aqui falta reaparece no ano seguinte nos projetos habitacionais da Vila
dos Comerciários e na Vila IAPI, visando dar aos trabalhadores todos os confortos e
as comodidades da vida em habitações higiênicas e modernas com aluguéis módicos.
A fotorreportagem “Amarelou o sorriso da cidade”,32 com texto de Joseph
Zukauska e fotos de Pedro Flores e Wilson Cavalheiro, amplia o elenco dos
problemas urbanos – falta de água, de luz, de transporte e de moradia – através
de uma série de 15 fotos, a maioria de pequeno formato. As fotografias que
acompanham o texto apontam para a contradição entre os altos e modernos edifícios
do centro da cidade e as malocas
nas vilas populares da periferia
de Porto Alegre. Porém, o sentido
das fotos, sugerido pela leitura
da esquerda para a direita, parece
sugerir a sua superação por obras
que estavam em curso na cidade.

Fonte: ZUKAUSKA, Joseph; FLORES, Pedro, CAVALHEIRO, Wilson. “Amarelou o sorriso da cidade”.
Revista do Globo, 1954, nº 607, pp. 48-55.

ZUKAUSKA, Joseph; FLORES, Pedro, CAVALHEIRO, Wilson. Amarelou o sorriso da cidade. Revista do Globo,
32

1954, nº 607, pp. 48-55.


30 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

As razões arroladas para essa crise seriam a modernização no campo e a


falta de amparo ao trabalhador rural, que agiriam como fatores de expulsão do
homem do campo. De outro lado, os motivos de atração de migrantes para a capital
seriam a busca de trabalho na indústria, melhores salários, direitos trabalhistas,
serviço de saúde e educação para os filhos. Nessa fotorreportagem, na página 50,
a revista coloca lado a lado um alto edifício em construção e a casa de madeira de
uma vila à beira do Guaíba. O subtítulo acima da página afirma: “Uma cidade de
zinco e trapos dentro da outra”, e na legenda afirma-se: “De 51 a 53, a população
marginal duplicou, por que não só quem casa quer casa. Os que vêm do interior
para trabalhar na capital, também dela necessitam. A metade da população de
uma vila de malocas é dada como catarinense” (idem, p. 50). Logo, a culpa dos
problemas urbanos era atribuída aos migrantes e aos sujeitos que vêm de fora
da cidade, às vezes, até mesmo de fora do estado. Ou seja, a culpa era dos não
cidadãos, dos próprios excluídos e não da falta de planejamento e de políticas
públicas adequadas.
No que se refere às representações da cidade nas revistas ilustradas nos anos
de 1950, observa-se que os recortes do espaço, dos temas e das formas de construir a
narrativa apontam para um processo de construção de determinados sentidos, através
de uma nova visualidade urbana. As fotos são diurnas, com luminosidade natural,
e com uma definição clara de linhas. Algumas fotografias apresentam três planos e
uma grande profundidade de campo.
O espaço geográfico destacado é o espaço urbano, o centro, que passa a
representar muitas vezes toda a cidade (como uma metonímia, ou seja, a parte pelo
todo), excluindo do quadro fotográfico as vilas e periferias da cidade. Por sua vez, as
imagens do centro da cidade privilegiam os espaços públicos com ângulos abertos
sobre as principais ruas e avenidas, por vezes no sentido ascensional, destacando
o processo de verticalização da cidade através da construção de prédios de alto
gabarito e, noutras, descensional (áreas) através de fotos panorâmicas que davam a
ver a expansão da área central.
O que se destaca no espaço dos objetos são os prédios de alto gabarito,
com mais 10 andares, os principais edifícios públicos e privados (comerciais e
residenciais) do centro da cidade e as grandes obras públicas (federais e estaduais),
que ajudavam a construir a percepção de uma nova escala monumental de
crescimento, de verticalização e os significados de produtividade urbana. Mas
também os automóveis, que ajudam a dar uma noção da escala dos edifícios e a
construir significados de modernidade urbana.
O espaço de figuração é monopolizado pela circulação de carros, ônibus
e pessoas no centro, principalmente de homens adultos em idade produtiva, que
31 Charles Monteiro

coloca em destaque os significados sociais relativos ao trabalho e ao consumo de


bens e serviços urbanos. As pessoas são representadas em vistas parciais do centro,
de longe, não permitindo sua identificação individual, em movimento, circulando,
trabalhando e comprando. Apontando assim para o transeunte anônimo, produtor e
consumidor dos espaços, produtos e serviços urbanos. Os prédios de alto gabarito
são enquadrados em segundo plano, indicando que essas pessoas vivem, trabalham
ou consomem produtos nesses prédios modernos. O espaço de vivência é o espaço
urbano ordenado, planificado, racionalizado e produtivo da cidade moderna, com
seus fluxos incessantes de trabalho e consumo, com uma nova temporalidade urbana
caracterizada pela velocidade acelerada de circulação de pessoas e automóveis no
centro da cidade.
Passa-se a refletir sobre a construção da imagem dos “outros” sujeitos
urbanos, aqui particularmente representados pelos jovens e pelas crianças em
situação de rua. Esses “outros” não eram considerados como cidadãos-construtores
da cidade moderna e constituíam o avesso da nova ordem no processo de elaboração
de um novo padrão de visualidade do espaço urbano nas fotorreportagens sobre a
cidade de Porto Alegre na Revista do Globo nos anos de 1950.
As fotografias participavam do projeto de construção da visualidade urbana
e do processo de inclusão e legitimação da ação de certos atores e grupos sociais,
bem como da exclusão e estigmatização da ação e presença de outros sujeitos e
grupos sociais no espaço urbano em processo de modernização. As fotografias
ajudavam a dar visibilidade, davam a ver certos grupos e práticas sociais, bem como
construíam hierarquias e diferenças sociais. O processo de construção de identidades
ou de identificações sociais, bem como do seu oposto, a alteridade e a exclusão,
aparece ora de forma camuflada ora de forma clara e plasmada em certos sujeitos e
grupos sociais. Conforme Woodward, os “discursos e os sistemas de representação
constroem lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos
quais podem falar”.33

A elaboração da imagem dos “outros” sujeitos urbanos na


cidade moderna: estigmatização, segregação e sua integração
forçada na sociedade urbana moderna
Passa-se agora a analisar uma série de três fotorreportagens que elaboram a
representação social dos outros sujeitos urbanos na Revista do Globo nos anos 1950. O
estatuto destas imagens fotográficas lembra as fotografias de identificação do projeto
de modernização e ordenação social do final do século XIX, paralelo à ascensão da
33
WOODWARD (2000, p. 17).
32 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

burguesia, que elaboraria seus retratos em estúdios na forma de romances.34


A primeira delas é “Porto Alegre: uma cidade entregue aos ladrões”, de 21
de fevereiro de 1953,35 com três páginas e oito fotografias em P&B. A fotografia de
abertura da fotorreportagem é de grande formato, no sentido horizontal, e ocupa a
metade da primeira página.

Fonte: TAJES, T.; FLORES, P.; CAVALHEIRO, W. “Porto Alegre: Uma cidade entregue aos ladrões”.
Revista do Globo, 1953, n. 580, p. 60, 61.

Nessa primeira imagem são representadas seis crianças descalças e sentadas


sobre os paralelepípedos da rua (um trilho de bonde é visível no canto direito) em
uma roda. Três delas encontram-se de costas e usam chapéus, uma delas está de
perfil e outras duas de frente para a câmara, mas não podemos ver seus rostos. Três
delas são negras e uma delas tem cabelo claro.
34
Sobre esse tema, ver os excelentes trabalhos de FABRIS (2004, p. 21-55); bem como o estudo sobre o mesmo
processo de identificação dos criminosos e prostitutas no México de DEBROISE (2005, p. 69-79); além de
dois ensaios sobre o nascimento da fotografia de documentação social em Leeds na Inglaterra no séc. XIX e no
Administration Secutity Farm nos Estados Unidos dos anos 1930 em TAGG (2005, p.153-198; 199-236).
35
TAJES, T.; FLORES, P.; CAVALHEIRO, W. “Porto Alegre: Uma cidade entregue aos ladrões”. Revista do Globo,
1953, n. 580, p. 60, 61, 66.
33 Charles Monteiro

Elas parecem conversar ou jogar, pois estão todas olhando para o centro
da roda. A fotografia em P&B, tirada de cima para baixo, ao nível dos olhos de
um adulto, com luz forte do meio dia, salienta os contornos e os volumes. Ao pé
da página, três pequenas fotografias no estilo retrato de meio-corpo e de formato
retangular vertical apresentam três homens de terno e gravata, sentados em fotos de
interior. O primeiro deles está sentado, com apenas ¾ de seu corpo aparecendo na
foto; o segundo está de perfil, sentado, falando ao telefone. O terceiro está de frente,
tendo ao fundo uma parede neutra.
Em uma delas, a fotografia central, é possível identificar que o local é um
escritório, pois o homem está sentado atrás de uma escrivaninha e fala ao telefone. A
análise da diagramação das fotografias na página da revista aponta para uma oposição/
tensão entre a fotografia dos meninos descalços representados acima da página e
as fotografias dos três homens de terno e gravata na parte de baixo da página. Essa
oposição é construída também no plano formal, pois a primeira fotografia é externa
e enquadra um pequeno grupo na rua, enquanto as três fotografias abaixo enquadram
planos fechados do interior de um escritório. A primeira é tirada de cima para baixo
apontando uma hierarquia do olhar (superioridade do fotógrafo/repórter/adulto que tira
a foto) e cortada no formato retângulo horizontal salientando o chão, no qual as crianças
encontram-se sentadas, já as outras três fotografias são tomadas da mesma altura dos
olhos dos homens de terno e são cortadas em um retângulo vertical (ascensão).
Na página seguinte, outras quatro fotos de formato pequeno e retangular
vertical completam a fotorreportagem. As legendas dessas fotos ampliam essa
contradição e aprofundam a tensão social entre esses dois grupos. Sobre o primeiro
grupo se projeta um olhar externo, que é um ser visto pelo outro, ou seja, a objetiva
do repórter fotográfico, e no segundo há um “dar-se a ver” da autoridade policial que
olha para a câmera do fotógrafo.
A legenda da primeira foto afirma que “sessenta por cento dos larápios que
agem em Porto Alegre são menores” e completa que “não é de estranhar, pois a
qualquer momento, em qualquer parte da capital, podem-se ver grupos de garotos
na malandragem, sem lar, sem escola, sem assistência”.36 As legendas das seis fotos
menores de homens de terno e gravata indicam que se trata do delegado Homero
Schneider, do delegado-adjunto Miranda Meira, do inspetor-chefe Osmar Barreto,
dos inspetores Osvaldo Scherer e Alfredo Vitorino Vargas e do depositário Agostinho
F. Pena. Todos individualizados ao serem retratados de perto em seu ambiente
de trabalho, no exercício de suas funções e identificados pelo nome, sobrenome
e respectivos cargos na polícia. A ordem policial é representada pelos policiais e
objetos relacionados ao seu trabalho (telefone, livros, cofre).
TAJES, T.; FLORES, P.; CAVALHEIRO, W. “Porto Alegre: Uma cidade entregue aos ladrões”. Revista do Globo,
36

1953, n. 580, p. 60.


34 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

A análise do texto da fotorreportagem aponta para o aprofundamento dos


binômios delinquentes versus polícia e desordem versus ordem policial, o que reforça
esse processo de hierarquização e estigmatização das crianças de rua através do
tom sensacionalista que caracterizava as revistas ilustradas do período. O subtítulo
afirma: “Desaparelhada de gente e de material, a Delegacia Especial de atentados à
propriedade na capital gaúcha tem contra si um adversário cem vezes mais numeroso:
os menores delinquentes e os fugitivos”.37 A Revista também dá a palavra aos policiais,
enquanto se apropria da fala de um dos jovens para construir dele uma imagem de
perigoso contraventor: “O pobre rapazinho confessou ainda que sua maior aspiração
era ser chefe de uma quadrilha, ter automóvel e metralhadora”.38 A estigmatização
social desses jovens pela revista se completa ao final da fotorreportagem:

O que de melhor se poderia esperar de uma geração criada


na maloca, analfabeta e acostumada desde criança a disputar
com os porcos a própria alimentação. Procurem-se as fichas
dos recém-entrados na Casa de Correção. Noventa por cento
analfabetos! É o que prolifera em nossas vilas de marginais, fruto
da desagregação dos costumes, da dissolução das famílias.39

Acerca da imagem pública dessas crianças e jovens, a revista sentencia: “A


maior desgraça para eles é a lei que não permite à imprensa publicar fotografias ou
o nome dos menores”,40 o que explica o fato de as fotografias não mostrarem nem os
rostos e nem os olhos dos jovens. Isso evidencia o desejo social de visibilidade do
poder (da polícia), de identificação e de controle desses jovens em uma cidade em
processo acelerado de crescimento e diversificação social.
A campanha de moralização e controle social do espaço urbano fica
clara quando a revista dá a palavra ao inspetor Schneider: “Sessenta por cento
dos furtos praticados em Porto Alegre são de autoria de menores. Ache-se um
estabelecimento adequado e tire-se de circulação cinquenta meninos delinquentes
e a estatística baixará”.41
Ou seja, o ideal policial seria o seu isolamento e a sua vigilância em instituições
corretivas para crianças e adolescentes. O que nos leva a outra fotorreportagem da
Revista do Globo, de 10 de julho de 1954, intitulada “Não é doce nem é lar”, com
texto de Dionísio Toledo e fotos de Pedro Flores, exatamente sobre esse assunto.42

37
Id., Ib., p. 60.
38
Id., Ib., p. 60.
39
Id., Ib., p. 61.
40
Id., Ib., p. 61.
41
Id., Ib., p. 61.
42
TOLEDO, D.; FLORES, P. Não é doce nem é lar. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 48-50, 56.
35 Charles Monteiro

Fonte: TOLEDO, D.; FLORES, P. “Não é doce nem é lar”. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 48-49.

A fotorreportagem tem três páginas com cinco fotografias, iniciando-se


com página dupla com duas fotos de formato grande (com mais de ½ página) e
continuando na terceira página com três fotos de formato pequeno com menos de ¼
de página. Nas primeiras duas páginas, na abertura da fotorreportagem, apresentam-
se fotografias de grande formato com tom sensacionalista visando causar impacto e
despertar a atenção do leitor.
A primeira foto no formato retangular vertical apresenta em primeiro plano
um jovem negro de costas, enrolado em um cobertor, descalço e caminhando sobre as
pedras irregulares de um pátio e ao fundo, em segundo plano, uma fileira de jovens
sentados no chão (com tarjas pretas cobrindo os olhos) diante de uma casa térrea de
madeira com beiral. Ao lado, a segunda foto apresenta em primeiro plano um pátio
com chão de pedras, sobre o qual se projeta uma larga sombra, no qual se encontra
um grupo de jovens sentados no chão lado a lado em fila (dois deles se destacam por
estarem em pé) em frente a uma casa de madeira e de telhado baixo com três aberturas
de onde pendem cobertores. Veem-se, ainda, ao fundo, um fragmento de céu, a parede
de outra casa e a copa de uma árvore que projeta sua sombra sobre o pátio, onde quatro
36 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

jovens se encontram sentados contra a parede. Observa-se, por um fragmento do


cobertor nas costas do jovem da primeira fotografia que aparece na segunda fotografia,
que se trata do mesmo lugar e que essas se complementam enfocando os dois lados do
mesmo pátio. O que permite ver a casa ao fundo e um grande grupo de jovens sentados
no chão do pátio ora mais de perto ora mais de longe em seu conjunto.
Na página seguinte, três fotografias de formato pequeno complementam e
detalham alguns aspectos das duas imagens anteriores. No alto da página, a terceira
foto apresenta uma parede rústica com uma prateleira, onde se observa uma fileira
de latas, abaixo dela um banco de tábuas e em cima dele um tacho de leite vazio
virado. Na quarta foto, quatro jovens dormem amontoados no chão no canto de uma
peça enrolados em panos. No plano do conteúdo, observa-se a repetição da ideia de
empilhamento dos jovens sentados no chão, dormindo num canto de peça, dos panos
sobre um cavalete e das latas. Os significados de rusticidade do chão de pedras, da
casa de madeira, das paredes rugosas da pilha de panos e latas. A casa térrea de uma
água que lembra o espaço rural e o passado colonial em oposição à casa burguesa
e aos prédios de apartamentos que dominam a representação da cidade em outras
fotorreportagens. Os significados de abandono e a anomia são explorados através da
apresentação dos jovens sentados contra a parede ou deitados no chão, bem como a
pobreza das suas vestes e do lugar que se encontram.

Fonte: TOLEDO, D.; FLORES, P. Não é doce nem é lar. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 50, 56.
37 Charles Monteiro

A análise formal das imagens aponta para escolhas de enquadramento e


luminosidade que ampliam esses significados de pobreza, rusticidade e abandono.
Nas duas primeiras fotos de grande formato, a câmera baixa (próxima ao chão)
coloca em primeiro plano o piso do pátio de pedras irregulares, sobre o qual se
projetam largas sombras, focando os pés descalços dos jovens. A sequência narrativa
das fotos começa no exterior e penetra no interior rústico da habitação apresentando
detalhes que complementam os significados de pobreza, rusticidade e abandono.
Estamos na esfera do visível dos dispositivos do olhar do poder, da visão
policial, que esquadrinha e dá a ver o outro, que torna o visível para reificá-lo, que
o transforma em objeto, em coisa. A revista dá a ver o outro – o jovem, negro,
pobre, condenado pela justiça – na sua miséria e na sua diferença em relação ao
padrão burguês de habitação e consumo da cidade moderna. Desvalorizando-o e
estigmatizando-o em relação às esferas do trabalho e do ordenamento social que
caracterizam as representações da cidade moderna e das classes alinhadas com esse
projeto de modernização.
Os títulos, as legendas e os textos ampliam essa representação e colaboram
para construir uma imagem de alteridade negativa destes jovens relacionado a
certos espaços da cidade. Observe-se o subtítulo da fotorreportagem: “É na Colônia
Africana, um antro miserável, que Porto Alegre procura ‘recuperar’ seus menores
delinquentes”.43 Nesse subtítulo, associa-se a representação desses jovens com os
significados de colônia, de africana, de miserável e de delinquência, localizados em
determinado espaço urbano e que se opõe ao conjunto da cidade de Porto Alegre.
A fotorreportagem adquire tom de fotonovela pela forma como a narrativa
é conduzida em primeira pessoa, seguindo os passos do repórter que procura
desvendar o problema do jovem e criança de rua em Porto Alegre. O texto começa
com uma caminhada da personagem-repórter pelo centro da cidade a deparar-se com
as manchetes dos jornais a noticiar o arrombamento de seis prédios. Depois, em
um fluxo de consciência, a personagem pensa na possibilidade de sua residência
ser arrombada e na sua vontade de ver os responsáveis na cadeia. Na sequência
depara-se com uma criança oferecendo-se para engraxar os seus sapatos, aceita e
passa a pensar no problema dos jovens delinquentes da cidade. O fato o leva a querer
investigar o assunto. Ele se dirige à autoridade competente do Juizado de Menores,
que lhe fala do problema da escassez de verbas e se oferece para conduzi-lo a um
passeio visando conhecer uma instituição que abriga jovens e crianças na Colônia
Africana. Cabe salientar que essa forma de narrativa (próxima ao antigo folhetim e
à fotonovela) visa despertar o interesse dos leitores e colocá-los ao lado do repórter
em sua “pesquisa”. A descrição da instituição pela personagem-repórter é bastante
forte e entremeada de qualificativos:
43
TOLEDO, D.; FLORES, P. Não é doce nem é lar. Revista do Globo, 1953, n. 616, p. 48-49.
38 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

Dirigimo-nos para lá, entramos em seu recinto, e... que horror!


Duas celas, duas jaulas. Cinquenta menores, uns sobre os outros,
o que nos faz pensar nas promiscuidades que devem se suceder
entre eles. Um cheiro insuportável das instalações sanitárias
junto às celas sem porta. Não há uma cama sequer, sacos servem
de cobertores. Uma massa humana agrupada atrás das grades a
pedir cigarros. Então a nosso pedido, são todos eles retirados das
“grades”, colocados em uma fileira, se deixam fotografar com
uma passividade de bestas.44

Descobre-se, então, que a fotografia foi armada, e os jovens posaram para


ela segundo a lógica da fotografia policial de identificação do criminoso, do outro, do
excluído. A avaliação da revista é tanto estética quanto moral sobre o lugar e as pessoas
que lá se encontram. “Lá” na Colônia Africana, tudo se opõe à moral, à estética e
aos padrões sociais civilizados que o repórter e os leitores defendem na “cidade”.
Mais adiante, o repórter-personagem completa o processo de estigmatização desse
“outro”: “Todos esses garotos que podiam ser de utilidade social em verdade não
passam de autênticas bestas humanas”.45
Apesar de certo humanismo que leva o repórter a associar aqueles jovens
ao engraxate que encontrou no centro e da vontade “de que seja nosso próprio filho,
que o levemos para casa...”,46 a reportagem defende um conjunto de medidas de
caráter preventivo das autoridades que permitissem identificar, avaliar, encaminhar
e tratar esses jovens visando a sua recuperação e reintegração no convívio social.
Para tanto, poder-se-ia utilizar o regime semiaberto, sob vigilância discreta, mas
constante. O que remete à próxima fotorreportagem sobre uma nova instituição para
o recolhimento e reeducação de jovens infratores.
A fotorreportagem “O lar para o pequeno marginal”,47 de 24 de agosto de
1957, com texto de Antônio Goulart e fotografias de Léo Guerreiro, é composta
de seis páginas e sete fotos P&B: duas fotos grandes com formato de retângulo
horizontal, três fotos de tamanho médio (uma no formato retângulo vertical e outras
duas no formato retângulo horizontal) e duas fotos pequenas no formato quadrado.

44
Id., Ib., p. 50.
45
Id., Ib., p. 50.
46
Id., Ib., p. 50.
47
GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 36-41.
39 Charles Monteiro

Fonte: GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo,
1957, n. 697, p. 36,37.

Ela começa em página dupla com uma fotografia retangular na vertical um


pouco menor do que meia página. Nela se podem observar dois rapazes no fundo
de um longo corredor. Em primeiro plano, destaca-se o piso de ladrilhos de duas
cores em “L”; em segundo plano, um jovem de costas caminha em direção ao fundo
do corredor e caminha em frente a três portas abertas de onde se projeta uma luz
sobre a parede contrária cheia de portas de armários fechadas; um pouco à frente e
à esquerda, outro rapaz procura algo dentro de um armário com a porta aberta. No
teto de cor clara, como as paredes laterais, observam-se duas luminárias. Não se
observam objetos no chão ou nas paredes.
No plano formal, a foto tirada em ângulo de 90 graus com o chão, que
ocupa o primeiro plano e com os jovens ao fundo em segundo plano, destaca a
profundidade e a amplidão do corredor; a sequência de portas de armários e de portas
abertas dá ritmo, ordenação e equilíbrio à imagem. A fotografia constrói significados
de ordem, limpeza e amplitude do espaço. O que é reafirmado pela legenda “Ao lado
do dormitório, num longo e claro corredor, cada um deles possui o seu armário para
40 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

roupa”.48 A segunda foto é uma vista parcial que, em primeiro plano, apresenta uma
grande árvore e, em segundo plano, em toda a sua extensão um longo edifício de dois
andares, em terceiro plano, o céu ocupa boa parte do espaço da fotografia.
No plano formal, observa-se que o fotógrafo construiu uma foto tirada a
distância para enquadrar a árvore alta que se sobrepõe e projeta a sua sombra sobre
o longo prédio de dois andares com uma generosa porção de céu ao fundo. A árvore
alta parece proteger o edifício novo ao projetar sua sombra sobre ele. A tomada a
distância enfatiza o tamanho do prédio e sua integração com a natureza (árvore e
céu) construindo significados de salubridade e amplidão. O que também é destacado
na legenda e no início do texto da fotorreportagem: “Num amplo descampado, atrás
de uma colina, ergue-se o moderno edifício do Novo Lar de Menores”.49 O adjetivo
moderno coloca-o em sintonia com os objetivos reiterados da revista de ser porta-
voz do homem e da mulher moderna. No terceiro parágrafo descreve-se o Novo Lar:

A casa apresenta-se com simplicidade, dentro de um estilo


funcional e linhas modernas. Tem capacidade para 50 ou mais
pessoas. Tudo muito amplo, aberto, não oferecendo aos meninos
o mínimo aspecto de prisão. Bem perto se alarga um campo de
esportes, mais abaixo uma horta.50

As fotografias e o texto complementam-se na apresentação das instalações e


das atividades que se desenvolvem na instituição. Nesse sentido as fotos têm o papel
de testemunhar e certificar a veracidade e a exatidão da descrição, como se observa
na sequência de cinco fotos que complementam a fotorreportagem, testemunhando e
detalhando atividades de trabalho e de lazer dos meninos na instituição. Na segunda
página, a terceira foto enquadra em primeiro plano um menino de costas no gol
observando três outros garotos disputando a bola a alguns metros à frente, no segundo
plano. Num terceiro plano, apresenta-se a amplidão de um campo aberto e morros
ao fundo, muito além dos limites do campo de futebol onde os meninos jogam bola.
Na foto abaixo dessa, apresentam-se em primeiro plano dois meninos carregando
enxadas, em segundo plano, mais à frente dois homens também carregando
ferramentas (o primeiro deles de roupa preta, que aparenta ser um padre de batina)
e, mais além, observam-se o prédio da instituição e a amplidão do céu. No plano
icônico de conteúdo, as duas fotos apresentam a união de lazer e trabalho, ambas as
atividades desenvolvidas ao ar livre e em contato com a natureza (campo, árvores,
céu). Por isso, muito saudáveis e apropriadas a esses jovens. O que é complementado
pelo subtítulo ao lado “Apreciam esporte e trabalho”.51
48
GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 36.
49
GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 37.
50
Id., Ib., p. 37.
51
Id., Ib., p. 38.
41 Charles Monteiro

No formal da expressão, estas vistas parciais da instituição com grande


profundidade de campo e enquadramento do céu (representa entre ⅓ e ½ das
fotografias respectivamente) apontam para a vida em contato com a natureza,
liberdade, salubridade, num ambiente com harmonia e paz ideal para o
desenvolvimento dos jovens.

Fonte: GOULART, A.; GUERREIRO, L. “O novo lar para o pequeno marginal”. Revista do Globo,
1957, n. 697, p. 38-39.

Outras três imagens complementam esses significados nas duas páginas


seguintes que concluem a reportagem.52 Nestas páginas, as fotos, o subtítulo e as
legendas concorrem com as publicidades que ocupam a metade externa dessas
páginas. A quinta fotografia apresenta um grupo de jovens/meninos ao redor de uma
mesa em um ambiente amplo. Em primeiro plano, um menino está se levantando na
ponta da mesa e outro está de pé no lado esquerdo, um homem de pé parece ser um
padre usando batina preta, outros três meninos estão sentados e outros dois mais ao
fundo parecem estar de pé atrás da mesa. Em um segundo plano, ao fundo da sala
ampla há armários na parede e uma porta aberta para outro aposento. A legenda
52
GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal. Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 40-41.
42 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

esclarece: “No refeitório este grupo, sem nenhuma cerimônia, mistura no café da
tarde conversa e risadas gostosas”. A foto é um instantâneo, a análise icônica sugere
o binômio formado pela amplidão da sala e a unidade do grupo ao redor da mesa para
a refeição. A descontração do grupo é vigiada e controlada pelo padre ao fundo, que
representa a autoridade e a ordem na instituição. O grupo que está bem centralizado
e em foco é núcleo significante da imagem. O contraste entre a luminosidade clara
da sala e os tons mais escuros das roupas dos meninos do grupo ao redor da mesa
complementa esse significado de unidade do grupo.

Fonte: GOULART, A.; GUERREIRO, L. O novo lar para o pequeno marginal.


Revista do Globo, 1957, n. 697, p. 40-41.

Ao lado dessa fotografia, outra apresenta dois meninos em um dormitório


arrumando as suas camas. As roupas de cama parecem bem brancas, e uma
luminosidade forte entra através das duas janelas abertas sobre as camas. É um
instantâneo ou foto posada? Não se pode saber ao certo, mas tudo indica a pose.
Novamente, a análise do conteúdo aponta para a construção de significados de
responsabilidade, disciplina, ordem, higiene e bem-estar dos meninos na instituição.
43 Charles Monteiro

Embaixo, na mesma página, uma fotografia média em formato retangular


horizontal representa dois jovens e um menino operando máquinas sobre bancadas
de ferro e madeira num ambiente que parece ser uma oficina. Em primeiro plano à
direita, observa-se um jovem de frente para a câmera (porém seu rosto foi borrado,
provavelmente no negativo antes da ampliação, para preservar a sua identidade)
operando uma ferramenta elétrica com a mão esquerda e pousando a mão direita
sobre outra em cima da bancada. Em segundo plano, outro jovem de costas opera
uma máquina sobre uma bancada. A legenda esclarece tratar-se de uma oficina de
marcenaria onde se fabricam móveis.
No plano do conteúdo, essa imagem encerra a fotorreportagem com os
significados do trabalho, da operosidade, da produtividade com complemento e ponto
culminante do trabalho de reabilitação e ressocialização dos “pequenos marginais”
(sic). A narrativa visual ordenada nos leva a um passeio pela instituição: começamos
a distância contemplando o terreno, a modernidade e o tamanho do prédio, bem como
sua localização favorável em meio à natureza; depois passamos ao campo de futebol;
e ainda a volta do trabalho da horta; no interior observamos o refeitório, os quartos
e a oficina. Tudo muito limpo, espaçoso, ordenado e iluminado para a reabilitação
dos meninos e jovens sobre o olhar atento e vigilante do padre e seu assistente. Há
um processo de acumulação e de reforço dos significados das imagens anteriores
de forma bastante pedagógica para o leitor da revista, visando apresentar-lhes os
benefícios da reclusão, do trabalho, da disciplina e do trabalho para a reabilitação e
reinserção social desses jovens e meninos.
Essas reportagens encerram todo um percurso e uma discussão sobre o
lugar da criança e do jovem de rua na cidade moderna. Na primeira reportagem o
leitor é informado da sua periculosidade e dos inúmeros roubos por eles cometidos,
fazendo-os figurar como ameaça número um à propriedade. Na segunda reportagem,
a revista focaliza os jovens vivendo quase como animais em um antro na periferia
da cidade: a Colônia Africana. Finalmente, a última reportagem apresenta a solução
do problema com o distanciamento desses jovens e meninos da cidade grande para
as áreas saudáveis em contato com a natureza de Viamão no “Novo Lar do Menor”.
Nesse ambiente saudável, limpo, arejado e disciplinado, isolado dos maus da cidade,
eles aprenderão a trabalhar na horta, na oficina e receberão cama, comida, roupas e
educação profissional para se tornarem indivíduos úteis e prontos para se reinserirem
na sociedade moderna.
Logo, a todo um processo de estigmatização desses jovens e crianças de
rua, exigindo seu afastamento dos antros das periferias (verdadeiras escolas do
crime) e sua segregação em espaços afastados da cidade, em meio à natureza,
visando a seu disciplinamento, recuperação e futura reinserção na sociedade
através do mundo do trabalho.
44 Imagens da cidade de Porto Alegre nos anos 1950

Através dessas fotorreportagens, a revista se engajou no projeto de


modernidade e de modernização da cidade através da construção de uma nova
visualidade. Essa nova visualidade urbana jogou tanto com significados sociais
de inclusão e legitimação da ação de certos atores e grupos sociais no espaço
urbano quanto de estigmatização e exclusão de outros sujeitos e grupos sociais
na cidade em processo de modernização. Este é o caso dos jovens e das crianças
de rua, infratoras ou não, que passavam a ser identificadas como uma ameaça à
propriedade e à ordem social.
As fotografias ajudavam a dar visibilidade à ação da polícia no combate ao
crime e a construir uma imagem negativa desses jovens e dos espaços urbanos a eles
associados na cidade: as vilas periféricas. Elas construíam hierarquias e diferenças
sociais, produzindo a segregação desses sujeitos no espaço urbano. Elas terminavam
reforçando e legitimando o processo de afastamento desses grupos para áreas distantes
dos espaços centrais onde imperaria a lógica da modernidade, da sociedade de consumo e
da especulação imobiliária. O processo de construção de identidades ou de identificações
sociais passa pela definição de práticas modernas e seu avesso, constituindo a alteridade.
A necessidade de exclusão e de disciplinamento dos jovens de rua aparece de forma clara
nas páginas das fotorreportagens, sendo construída pelas falas das autoridades policiais e
pela forma como a revista alçada à condição de porta-voz da sociedade porto-alegrense
construía a sua imagem. A imagem destes jovens e crianças em situação de rua fazia
estilhaçar o espelho onde se projetava a nova imagem de cidade em construção no espaço
urbano e em elaboração nas páginas da Revista do Globo. Logo, essa imagem exigia uma
elaboração e um tratamento para que não ferisse a nova sensibilidade ou o novo padrão
visual de cidade moderna consumida pelas elites e camadas médias. A nova visualidade
urbana construída na revista permite uma série de recursos (editoração, paginação,
narrativa etc.) para elaborar e disciplinar essa imagem do outro e fazê-la reforçar os
significados sociais ligados à modernidade: visibilidade e ordenamento entre outros.
Nesse sentido, a análise dessas fotorreportagens permite problematizar a
construção de um padrão de visualidade urbana e o discurso de modernidade social
das revistas ilustradas. Elas fazem pensar sobre a forma excludente e hierárquica
como é construída a imagem dos “outros” sujeitos sociais, que terminam sendo apenas
objetos do olhar disciplinador das elites que os coisifica, tornando-os alvo de políticas
públicas e não sujeitos sociais com direitos civis e demandas políticas no processo de
construção social do espaço urbano. Por outro lado, ajudam a legitimar o processo de
mercantilização e monopolização do espaço urbano através da especulação imobiliária
e a verticalização da área central da cidade através da construção de edifícios de
alto gabarito, bem como da difusão de novas formas de sociabilidade e formas de
consumo através das publicidades associadas às reportagens no contexto do processo
de diagramação e edição das fotografias nas páginas da revista.
45 Charles Monteiro

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Capítulo 2

A Técnica de João Alberto Fonseca da Silva


e a arte de Sioma Breitman na fotografia
porto-alegrense dos anos 1950
Rodrigo Massia1

Sioma Breitman fotografou do ano de 1921 até 1970, quando decidiu se


aposentar. João Alberto Fonseca da Silva começou a tomar contato com a fotografia
a partir do trabalho de laboratorista no Serviço Histórico Geográfico do Exército, no
ano de 1939. Fotografou profissionalmente até os anos 1990. Ao valer-se da biografia
destes dois sujeitos, pretende-se problematizar em que medida estas duas trajetórias
permitem compreender parte do circuito social da fotografia em Porto Alegre na
década de 1950.
Como se trata de um tema ainda pouco explorado pela pesquisa histórica,
essa investigação utiliza depoimentos orais. A reflexão sobre este tipo de fonte
necessariamente implica uma problemática da memória, que se relaciona aqui
com a textualidade de Sioma e a oralidade de João Alberto. Outrossim, estes dois
fotógrafos possuem trajetórias distintas, o que se cristaliza no modo como falam de
sua atividade e de sua relação com os demais colegas de profissão.
Sioma Breitman escreveu um livro2 contendo 166 páginas no qual narra
trechos de sua trajetória. João Alberto concedeu dois depoimentos3 ao Museu de
Comunicação Social Hipólito José da Costa. O primeiro depoimento data de 1978,
e o segundo foi realizado no ano de 2006. Há um intervalo de 28 anos entre uma
entrevista e outra. Sioma Breitman tem sua memória bastante consolidada, pois sua
atividade conta com maior reconhecimento do estado. Há um logradouro com o
seu nome e a fototeca homônima do Museu Municipal Joaquim José Felizardo. A
doação de parte de seu acervo fotográfico foi concedida ao Museu em função desse
reconhecimento.4 João Alberto considera-se um homem de sorte por ter parte de seu
trabalho reconhecido como algo que deve ser preservado, pois se constitui em parte
da memória arquitetônica da cidade.
As fontes sobre os dois fotógrafos são de tipos distintos e exigem formas de
leitura crítica diferenciadas pelo historiador. O livro escrito por Sioma Breitman faz
parte do acervo público do fotógrafo e se encontra no Museu Joaquim José Felizardo.

1
Mestre em História pela PUCRS. E-mail: rodrigo.massia@gmail.com.
2
BREITMAN (1976.).
3
SILVA (1978, 2006.).
4
Cf. POSSAMAI (1998, p. 95).
51 Rodrigo Massia

Trata-se de uma fonte textual na qual o escritor teve a oportunidade de escrever, corrigir
e enfatizar momentos de sua trajetória, bem como relegar outros ao esquecimento. O
processo de escrita permite maior controle sobre a edição e a escolha das palavras. A
motivação para a elaboração do livro teria sido de ordem pessoal, ou seja, responderia,
segundo Sioma Breitman, a uma demanda de memória familiar.
No caso de João Alberto, as entrevistas realizadas não obedeceram a um
roteiro estabelecido por esta pesquisa. Foram produzidas para registrar a trajetória
do fotógrafo, de modo que abarcasse a totalidade de sua atividade profissional.5 As
entrevistas, ocorridas em tempos distintos, não contaram com a presença ou com
qualquer sugestão de pauta para este trabalho. O contato com a fonte foi feito a
partir do áudio e da transcrição das falas do fotógrafo registradas nas fitas cassete.
Apesar de o autor não exercer o papel de entrevistador, a pesquisa contribuiu para
um momento decisivo do acervo oral: quando ele se torna um documento textual. O
material foi digitalizado e entregue ao Museu, que agora conta com o arquivo textual
e sonoro em formato digital.
Dentre os diferentes tipos de enfoque da História oral, este trabalho
caracteriza-se como uma história oral temática.6 Nessa abordagem o pesquisador
faz um uso direcionado da fonte, pois ela conduz as entrevistas ou as utiliza em
função de um tema que tem relação com a história de vida do entrevistado. Não
se mensurou aqui a tradição oral, mas os aspectos da memória individual de João
Alberto. Entende-se aqui a memória individual como “uma reconstrução psíquica e
intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado
que nunca é aquele do indivíduo somente, mas do indivíduo inserido num contexto
familiar, social, nacional”. A concepção teórica sobre a memória visa pensar em que
medida estas fontes podem auxiliar a pensar no circuito social da fotografia em Porto
Alegre nas décadas de 1940 e 1950.

João Alberto Fonseca da Silva: o olhar do migrante, o olhar


técnico

João Alberto Fonseca da Silva é natural de Quaraí, cidade localizada


próxima à fronteira com o Uruguai e a Argentina. Quando chegou à idade de servir
ao exército veio a Porto Alegre, para tentar melhores condições de vida. Foi quando
teve a oportunidade de trabalhar como laboratorista do Serviço Geográfico do
Exército, no qual aprendeu as técnicas de revelação e de composição de cartas em
5
O tratamento das fontes orais orientou-se, em linhas gerais, pelas propostas de: VOLDMAN In: AMADO;
FERREIRA (1996, p. 33-41.).
6
ROUSSO In: AMADO; FERREIRA (1996, p. 93-101.).
52 A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman

aerofotogrametria. A aerofotogrametria é uma técnica que permite o levantamento


de extensas áreas, que são fotografadas e posteriormente transformadas em cartas
topográficas, equivalentes a mapas que indicam as condições do terreno: formações
naturais, localização de cidades, curso dos rios etc.
Com o aprendizado obtido nesta tipologia de processo técnico em fotografia
e com as amizades que fez em sua passagem pelo exército, João Alberto ingressou
na Secretaria Estadual de Obras Públicas. Em suas memórias, João Alberto lembra
que ingressou no Serviço Geográfico em 1939 e que trabalhou nas Obras Públicas
no período em que o governador era Walter Jobim, portanto, entre os anos de
1947 e 1951. Na secretaria, João Alberto relata que os órgãos públicos passaram
a fazer uso corrente de fotografias, notadamente a Secretaria de Obras Públicas.
Dentro desta havia a Diretoria de Saneamento e Urbanismo, subseção na qual
João Alberto era encarregado de fotografar as inaugurações das obras públicas do
Estado, acompanhando o secretário, e fazer levantamento fotográfico das áreas que
receberiam melhoramentos no abastecimento de água e tratamento de esgoto.
Cabe aqui salientar o lugar que esse tipo de imagem ocupa na história da
fotografia. A partir da segunda metade do século XIX, com a complexificação e
centralização da máquina estatal, a fotografia começou a ser utilizada como uma
importante ferramenta auxiliar no planejamento de obras públicas e no controle do
espaço urbano.7 No Brasil, foi no contexto do Estado Novo que a fotografia ganhou
maior espaço com essas atribuições. Em níveis federais destaca-se a contratação de
fotógrafos para o Departamento de Imprensa e Propaganda, Serviços de Proteção
ao índio e ao Instituto do Patrimônio Histórico Cultural, todos estes executados
por fotógrafos estrangeiros.8 Em finais dos anos 1940 o IBGE também passou a
trabalhar com fotógrafos profissionais, com vistas a documentar a geografia humana
das regiões periféricas do Brasil.9
Junto ao trabalho no Setor de Obras Públicas João Alberto começou a
produzir outros tipos de fotografia. Como o cargo de fotógrafo do departamento
passou a ser desempenhado em meio turno, João buscou alternativas para aumentar
seus rendimentos e aprender outras possibilidades do ofício. Fotografou casamentos,
confeccionou lembranças de aniversário e atuou como artista-fotógrafo, fazendo
fotografias de criança. Segundo o fotógrafo, esta era a melhor alternativa para um
iniciante, porque as crianças têm a pele quase sem imperfeições, sendo a melhor
maneira de chegar aos cânones de beleza que vigoravam na sua época.10 Outras duas
áreas de extrema importância nos trabalhos de João Alberto foram a publicidade e
7
Sobre este tema em uma perspectiva internacional ver: TAGG (2005, p.199-235).
8
Cf. COELHO (2006, p.79-99). MAUAD (2005, p.43-75).
9
Foram três fotógrafos contratados, todos eles imigrantes húngaros. Cf. ABRANTES (2007, p.1-8).
10
Esta concepção estética encontra correspondência com a corrente europeia do pictorialismo na fotografia. Para
saber mais ver: MELLO (1998, p. 43-46.).
53 Rodrigo Massia

a arquitetura. Os trabalhos para os escritórios de arquitetura tornaram-se a “marca”


do fotógrafo. Quando, em meados dos anos 1990, houve a transformação das suas
imagens de documento para monumento,11 suas fotografias de arquitetura foram as
escolhidas como as mais relevantes de sua produção.
Através do aperfeiçoamento das técnicas de ampliação e redução foi possível
fazer da publicidade algo corrente dentro da imprensa. Logotipos e imagens podiam ser
justapostos e diagramados. Como se sabe, este é um ramo da fotografia na qual se exige
do fotógrafo o contato com o que há de mais moderno em termos técnicos.12 Porém,
mais do que aparato técnico, João Alberto destaca o aprimoramento do próprio olhar
como característica principal. O serviço em publicidade surgiu em decorrência de sua
experiência na produção dos aerolevantamentos. O chamado trabalho de traço13* fez
da fotografia um desafio ao olhar de João Alberto: enxergar com exatidão e simetria.
Essas características apontam para um tipo de “olhar da época”, que encontrava espaço
em áreas como a publicidade, o design gráfico, a arquitetura e as artes plásticas.
Na arquitetura utilizou-se de inovações como a fotomontagem14 e realizou
serviços de redução. Mais uma vez valendo-se de seu saber técnico – aqui sempre
mencionado como oposição ao saber artístico na opinião do depoente – João Alberto
foi desafiado a fazer a inserção de maquetes de prédios no espaço urbano da cidade.
O fotógrafo observava o local de construção do prédio e fotomontava a maquete
no espaço da cidade, de modo que a imagem se constituía em um documento no
qual era possível visualizar a presença da futura construção no espaço urbano. As
fotografias de arquitetura obedeciam a padrões simétricos, de proporções calculadas,
exploração dos efeitos de tridimensionalidade, equilíbrio e nitidez.15 Em síntese, a
fotografia de arquitetura pretendia ser um espelho da realidade futura, com a inserção
dos prédios no espaço urbano como forma de analisar suas condições estéticas no
conjunto da cidade. Na apresentação dos projetos arquitetônicos, os dossiês eram
elaborados com a presença de plantas das edificações, fotografadas e reduzidas, para
serem visualizadas em sua integralidade no corpo da apresentação da obra. Mais um
recurso visual que conta com o desenvolvimento de um saber técnico baseado na
precisão e no realismo como efeitos fundamentais.
Nas fotomontagens João Alberto valeu-se de seus conhecimentos, porém a
influência do desenho arquitetônico na fotografia de cidade era uma forte recorrência

11
Cf. MAUAD; KNAUSS (2007, p. 9).
12
Cf. COELHO (Opus cit., p. 95).
13 *
O trabalho de traço era a técnica que tornava possível o encaixe de uma fotografia aérea na outra. Essa técnica
era desenvolvida com o auxílio de aparelhos que aumentavam o foco das fotografias, para que o encaixe fosse o
mais exato possível.
14
Fala-se de inovação aqui em termos locais. A fotomontagem foi bastante utilizada na “nova arte” da Revolução Russa
e ainda timidamente na arte modernista e fotografia moderna brasileira. Sobre estes assuntos ver respectivamente:
FABRIS (2005, p.99-132.) e CHIARELLI (2003, p. 67-81).
15
Cf. LIMA; CARVALHO (1997, p. 99-100).
54 A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman

nos anos de 1950. Este tipo de imagem respondia bem à demanda por realismo
e equilíbrio de proporções. Essas fotografias buscavam a exatidão em termos de
simetria que, em última análise, era produzida a partir do olhar humano.16 Nesse caso
aqui a presença do observador que visualiza a cena in loco era condição necessária
para a produção da fotomontagem.
Cabe ressaltar aqui que estes efeitos de realismo tendem a migrar, da imagem
para a cidade.17 Esse tipo de imagem tinha uma circulação bastante ampla e cumpria
funções técnicas e estéticas. As fotografias de arquitetura também exerceram forte
influência no fotojornalismo em ascensão nos anos 1940 e 1950. Essas imagens
fotográficas tinham um forte apelo de veracidade ao apresentar a modernização e
o crescimento urbano das cidades brasileiras e eram muito utilizadas pelas revistas
ilustradas.18 Além das revistas, é possível citar o uso desse tipo de fotografia pelo
fotoclubismo19 e pelos álbuns fotográficos. Em Porto Alegre também identificou-se
essa influência na produção de painéis fotográficos, que eram imagens de grande
formato produzidas a partir de fotografias. João Alberto fez parte do grupo de
fotógrafos pioneiros nesse tipo de fotografia.
Como é possível observar, a trajetória de João Alberto se confunde com a
própria história da fotografia. Muitas vezes o fotógrafo teve que achar suas próprias
soluções para as ideias apresentadas, como no caso de sua primeira fotomontagem,
que será abordada mais adiante. Do ponto de vista da estética sua obra não se
encontra isolada. Porém, mais importante do que localizar a imagem do ponto de
vista da estética, seria conhecer as condições sociais de produção da obra.20 A busca
de compreensão a partir desse enfoque aproxima-se de uma História da fotografia em
Porto Alegre. O depoimento de João Alberto permite que a compreensão de algumas
de suas imagens extrapole o campo estético.
A fotomontagem do edifício Formac na área central de Porto Alegre foi feita
sob encomenda de um arquiteto carioca que sugeriu ao fotógrafo João Alberto que
fizesse a montagem do prédio, ainda inexistente. A fotomontagem causou impacto
ao ser exposta na Casa Comercial Herrmann situada na esquina da Rua dos Andradas
com a Uruguai. Esse fato data de 1953 ou 1954, conforme o relato do fotógrafo. A
casa em questão vendia materiais fotográficos, relógios e joias. João Alberto, pelas
suas relações de amizade com o dono do estabelecimento, deixou a fotomontagem
exposta na vitrine da loja. O fotógrafo relata sobre os comentários que ocorriam
entre os transeuntes. Uma das falas que ficou marcada na memória de João Alberto
16
Cf. MENESES (2005).
17
Cf. LIMA; CARVALHO (Opus cit., p. 99-104).
18
Cf. MONTEIRO (2007, p. 159-176).
19
Notadamente os de São Paulo e Recife. Cf. LIMA; CARVALHO (Opus cit.), COSTA; SILVA (2004) e SILVA (2005).
20
Cf. BOURDIEU (1996, p. 11-16).
55 Rodrigo Massia

foi que a cidade na imagem não deveria ser Porto Alegre e muito menos que tivesse
sido feita por um fotógrafo local. Conforme o relato do fotógrafo:

(...) surgiu a famosa fotomontagem, que tinha um arquiteto


que gostava muito de novidade, era muito ilustrado que era um
arquiteto formado no Rio. Mendonça, o Mendonça, Carlos Alberto
Mendonça, de Orlando Mendonça. O Mendonça quis fazer uma
fotomontagem de um edifício, chegou, deixou a maquete na
minha casa, com um bilhetinho: “Fazer fotografia da maquete
e fazer uma fotomontagem da maquete” em tal lugar assim.
Esse foi o edifício Formac. Aí eu ri, eu nunca disse que fazia
fotomontagem. Mas depois tava tomando meu chimarrãozinho
em casa depois do banho e fiquei pensando, mas digo, eu não
disse que fazia, mas podia ir lá olhar né. Aí vinha eu, olhei o
local e bati uma foto. E acabei montando a fotomontagem e foi
a minha primeira fotomontagem foi do edifício Formac. É que
deu bastante curiosidade, como o Mendonça era muito noveleiro
como a gente chamava, gostava de novidade, ele quis fazer uma
ampliação grande. Então eu fiz uma ampliação, se não me engano,
era noventa por sessenta do trabalho dele já fotomontando. E
porque eu andava muito na Casa Hermann, botamos na vitrine
da casa Hermann (...), na esquina da rua Uruguai com a rua dos
Andradas. E aí até foi curioso. Pena que eu não tinha gravador
como vocês têm agora [risos do depoente] porque o que se ouvia
de coisas engraçadas daquele público que olhava ali, na época já
era novidade uma ampliação grande. Então não era feito em Porto
Alegre. (...) Mas o importante da história é que se comentava, a
fotografia daquele tamanho já tinha vindo dos Estados Unidos,
pra começar. E o Braga que era da Casa Hermann mandou um
dia escutar, e eu fui escutar, fiquei no meio do povo ali escutando
e se comentavam coisas engraçadas, entre elas que o edifício não
era em Nova York, que era em tal cidade, que tinha um sabido
lá. Porque o edifício aqui em Porto Alegre não tinha um edifício,
parece que são vinte e poucos andares (...).21

A questão mais importante do trecho acima é que o depoente tem a


oportunidade de relatar situações não só sobre a circulação da obra, mas de sua
recepção. A fotomontagem servia muito bem ao processo de planejamento urbano
e sabe-se de seu uso pelo corpo técnico do Estado.22 Ao inserir a maquete do prédio
em plena área central da cidade, ainda predominantemente horizontal, o fotógrafo
21
SILVA (2006.).
22
Há algumas fotografias que fazem parte do acervo do Museu Hipólito José da Costa que levam o carimbo da
Secretaria de Planejamento Urbano. Não se pode perder de vista que no ano de 1959 foi elaborado o primeiro plano
diretor da cidade.
56 A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman

causou um choque visual, pois uma imagem tida como reflexo da realidade estava ali
criando ficções, conforme é possível observar em seu produto final.

Figura 1: João Alberto Fonseca da Silva. Espaço de inserção da maquete e construção do prédio. In: CANEZ, p. 129.

Figura 2: João Alberto Fonseca da Silva. Fotomontagem do edifício Formac no espaço urbano de Porto Alegre,
1953. In: CANEZ (Idem).
57 Rodrigo Massia

Nos dias atuais é pertinente a tentativa de compreensão sobre tantos comentários.


A foto hoje não causa o mesmo choque. A sociedade atual já saturou o olhar com
relação a essas imagens urbanas assépticas. É necessário somente visualizar, já que
a imagem tem o poder de substituir o acontecimento.23 Ao pensar na visualidade da
época não se pode esquecer que as principais referências em termos de modernização
urbana eram as grandes cidades dos Estados Unidos. A ideia de uma cidade tomada
por edifícios de alto gabarito era uma clara referência a Nova York, e o conhecimento
que grande parte da população tinha das metrópoles estrangeiras era oriundo da visão
de cartões-postais e das fotografias impressas em revistas ilustradas.
Certamente não seria possível mensurar o grau de amplitude da fotografia, no
caso de um exemplar, sem o relato oral. A fotografia de cidade é um tema constante
que perpassa diversas instâncias de produção, circulação e consumo: ela está nas
revistas ilustradas, nos interiores de prédios públicos e no planejamento da cidade.
Trata-se de um tema de forte recorrência no período, que foi representado sob as
mais diversas formas, desde o utilitário até a expressão artística de vanguarda.24
Partindo desse contexto local para o mais geral, o olhar fotográfico moderno
materializava a ideia de um Brasil urbano, cosmopolita e vertical. O período dos
anos 1950 é marcante nesse sentido, pois é um contexto no qual a ideia do urbano
é vista como a inserção definitiva do Brasil na modernidade e um “alinhar o passo”
com as cidades europeias e estadunidenses. Se em períodos anteriores a modernidade
era vista como algo a ser alcançado no futuro, na década de 1950 havia a sensação
de que este futuro havia chegado definitivamente.25 Exatamente nestas ocasiões em
que aparecem tensões como, por exemplo, uma espécie de nostalgia sobre um tempo
que se encontra no passado rural. Um sintoma dessa conjuntura de transformações
na cidade foi o tradicionalismo, movimento urbano surgido em 1947 que cultivava a
tradição rural e elegia a figura do gaúcho como elemento síntese de comportamento.
João Alberto foi um desses jovens do período que optou pelo uso da bombacha em
oposição à invasão das lambretas e calças jeans.26
Diante deste contexto, o fotógrafo João Alberto responde de forma
ambígua às duas questões mais gerais sobre a influência desse olhar técnico, que
responde aos imperativos de uma modernização econômica e de um olhar voltado
para as resistências locais. João Alberto é um fotógrafo que cultiva as práticas do
tradicionalismo gaúcho que exerceu forte influência sobre a juventude gaúcha dos
anos 1950. Quando o destino das imagens é a fruição estética João Alberto optou
23
No caso da fotomontagem de João Alberto, pode-se se dizer que a imagem é o acontecimento, já que não há
um referente externo. Sobre este tipo de análise ver o introito teórico do artigo de: KERN (2007, p. 138-140.) e
MENESES (2003, p. 138-149.).
24
Ver o caso dos fotógrafos Roberto Yoshida e Gertrudes Altschul em: COSTA; SILVA (Op. cit., p. 54-56).
25
OLIVEIRA. In: MIRANDA (2002, p. 35).
26
Sobre a influência estadunidense no comportamento da juventude porto-alegrense ver: Revista do Globo
(1959, p. 30-33).
58 A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman

pelo tema regional para concorrer ao I Salão Internacional de Fotografia em Porto


Alegre. Fotografou um carreiro em Quaraí, imagem que intitulou de “Aguardando
o frete”. Na ocasião João Alberto comenta que Sioma Breitman viu essa foto de sua
autoria e o convidou para expô-la no salão supracitado, caso contrário não teria feito,
pois não se considerava um artista.27
Não se pode perder de vista o papel da fotografia como dispositivo
que mediava a questão do crescimento urbano, exercia papel fundamental no
planejamento de ações futuras e apresentava a cidade como um índice concreto da
modernização do país. A fotografia era um espelho do real,28 no qual o corpo técnico
via o futuro, os habitantes conformavam uma ideia de cidade que se representava
sob forte efeito de realismo, ao mesmo tempo em que se apresentava como objeto de
apelo estético. Essa mediação era feita por fotógrafos, trabalhadores responsáveis
pela produção de imagens.
Uma questão bastante importante contida nos depoimentos de João Alberto e
Sioma Breitman diz respeito ao mercado da fotografia em Porto Alegre, principalmente
na relação entre os fotógrafos. Os dois chegam a diagnósticos similares quando o tema
é a organização da atividade: a falta de um espaço de formação estética e aprendizado
das técnicas, onde o fotógrafo receba uma formação que lhe dê legitimidade para
atuar profissionalmente. João Alberto, porém, apresenta-se como um fotógrafo sem
as características de liderança, fundamental para um grupo de profissionais ainda
em fase de organização. A autoridade ainda se encontrava nas mãos dos fotógrafos
mais tradicionais como Olavo Dutra e Sioma Breitman, os dois grandes fotógrafos
de sua geração, herdeiros do talento dos grandes artistas-fotógrafos do século XIX.
Para João Alberto ficava o espaço de alguém que, mesmo sem a formação humanista
destes grandes fotógrafos, conseguiu exercer seu ofício com êxito graças ao que o
fotógrafo chama de visão técnica.
O olhar de João Alberto desafia a exatidão, a simetria e o equilíbrio. Sua
inserção na fotografia deu-se de acordo com os imperativos do mercado e pela
oportunidade recebida em uma fase de instabilidade. João acabava de chegar do
interior do estado à capital e em primeiro lugar buscava um trabalho e uma profissão.
É lícito dizer que a trajetória do fotógrafo foi construída a partir dos desafios que lhe
foram lançados em termos visuais. O êxito se deu pela insistência e pelo treinamento
do olhar, de acordo com uma visão tecnicista, que predominava na arquitetura.

27
Cf. SILVA (2006).
28
Cf. DUBOIS (1993).
59 Rodrigo Massia

Sioma Breitman: olhar do imigrante, olhar da tradição

Sioma Breitman foi um dos fotógrafos mais destacados entre as décadas de


1930 e 1960 no estado do Rio Grande do Sul. De origem ucraniana, teve que deixar
seu país devido à Revolução Socialista na Rússia, que perseguiu de forma severa
os judeus da região. Após deixar a Europa, partiu para a América, separando-se de
sua família e estabelecendo-se em Buenos Aires, onde conseguiu emprego em um
estúdio fotográfico. Pouco tempo depois, veio para Porto Alegre, onde sua família
havia se fixado. Em meados dos anos 1920, Sioma e sua família passaram a produzir
as fotografias da comunidade judaica estabelecida no bairro Bom Fim. Entre os anos
de 1920 e 1950, montou estúdios nas cidades por onde passou: Cachoeira do Sul,
Santa Maria e Porto Alegre. Ao sair dessas cidades, Sioma deixava os estúdios para
os seus irmãos, que também eram fotógrafos. Seu pai, Nathan Breitman era o dono
do estúdio onde Sioma trabalhava com seus cinco irmãos, tendo se notabilizado pela
edição de negativos, tarefa denominada de retocador.
Sioma fez parte de uma segunda leva de fotógrafos estrangeiros, se
forem considerados os “pioneiros” do século XIX. Esses novos fotógrafos foram
responsáveis por mudanças importantes, tanto no Rio Grande do Sul quanto nos
demais estados do Brasil. Aqui em Porto Alegre tem-se registro de Ed Keffel, de
origem alemã, que teve grande contribuição nas mudanças ocorridas no campo do
fotojornalismo na Revista do Globo.29 No Rio de Janeiro, fotógrafos como Jean
Manzon, Marcel Gautherot,30 Harald Schultz, Heinz Foerthmann, Pierre Verger31
e Hildegard Rosenthal foram responsáveis por alterações importantes no campo
profissional da fotografia. Trabalharam para diversos órgãos do Estado e consolidaram
novas práticas no fotojornalismo.32
Sioma aborda com senso de humor em suas memórias os procedimentos
de seu ofício de retocador. A tarefa consistia em manipulações diversas feitas tanto
nos negativos como nos positivos. Esse tipo de prática era oriunda de uma postura
na qual a fotografia era um produto bruto onde fotógrafos contavam com a parceria
de um pintor,33 que dava um toque artístico às fotografias, notadamente os retratos
e as vistas urbanas. Segundo Sioma: “Acredite se quiser, até chapéus eram tirados
e o penteado desenhado de acordo com as indicações dadas pelos clientes. (...) Ao

29
MASSIA (2008).
30
Sobre Marcel Gautherot ver: ANGIOTTI-SALGUEIRO (2007).
31
Sobre Pierre Verger ver: LÜHNING (2002).
32
Cf. COELHO (Op. cit.).
33
Essa prática fazia parte dos grandes estúdios do século XIX e início do XX. A citação do nome desses artistas que
trabalhavam com os fotógrafos era recorrente nos anúncios publicitários dos estúdios, pois conferia ao mesmo o
status de espaço de produção de arte. Cf. LIMA (1991, p. 59-82).
60 A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman

perguntar o ‘grosso’ cliente como era o penteado do falecido que figurava no retrato,
a resposta era: ‘Quando você tirar o chapéu, verá – não vale rir...”.34
Em meados dos anos 1960 o fotógrafo já havia trabalhado em uma gama
enorme de atividades como, por exemplo, estúdios de retrato,35 as vistas urbanas, as
festas e os casamentos da elite porto-alegrense, fotografia para as peças teatrais que
passavam pela cidade, publicação de álbuns e os concursos de arte fotográfica que
lhe renderam inúmeros títulos e distinções em nível nacional e internacional. Além
de participar com trabalhos fotográficos, Sioma foi membro ativo na organização
das exposições de arte fotográfica em Porto Alegre, captando recursos e firmando
parcerias com empresas distribuidoras de material fotográfico. Ministrou cursos de
fotografia e aulas de russo. Viajou para fora do país com a Exposição: Rio Grande
do Sul através da fotografia e Arte Fotográfica, no ano de 1958. Percorreu Portugal,
Espanha, França, Alemanha, Itália e Israel. No ano de 1959, com patrocínio da Varig,
expôs estes mesmos trabalhos em Nova York.
Depois de mais de 40 anos dedicados ao ofício da fotografia, grande parte
dele exercido em Porto Alegre, Sioma escreveu um livro de memórias sobre sua
trajetória profissional, o qual fala das suas atividades, da sua condição judaica, relata
histórias sobre alguns de seus registros fotográficos, os lugares por onde passou, as
premiações, os colegas de trabalho, a fundação da associação. O livro, intitulado
Respingos de Revelador e Rabiscos, foi editado por seu filho, Irineu Breitman. A
obra não contou com a parceria de nenhuma editora, sendo seu acesso ainda feito em
uma edição caseira, com as folhas batidas à máquina e as fotografias fotocopiadas
ao longo do livro, utilizadas como ilustração dos temas abordados pelo fotógrafo.
No início da obra, Sioma revela que o objetivo do livro era contar sua
trajetória aos netos e bisnetos, como forma de relatar parte da saga da família, que
partiu de uma Europa em guerra e com muito trabalho conseguiu êxito no Brasil,
superando as dificuldades naturais do choque entre culturas distintas. Contudo é
inegável que se trata de uma obra na qual o autor imaginou outras possibilidades
de circulação. As evidências de um texto que se aproxima do histórico são latentes.
Muitas vezes o autor se coloca quase que como uma terceira pessoa, outras vezes
relata experiências pessoais. O texto alterna momentos de narração de estórias com
relatos de memórias afetivas, ao mesmo tempo em que apresenta trechos de elevada
erudição, com referências literárias e análises de cunho histórico e antropológico.
Os textos e imagens de Sioma Breitman são itinerários possíveis para
percorrer parte do universo da fotografia em Porto Alegre entre os anos de 1930 e
1960. A sua atuação constitui-se em um conjunto amplo de possibilidades da prática
34
BREITMAN (Op. cit., p. 32).
35
Sioma montou cinco estúdios fotográficos. Quatro deles tinham o nome de Aurora e ficaram sob a gerência de seus
irmãos. O mais importante deles foi montado em 1937 e levava o seu nome: Sioma. Cf. BREITMAN (Ibdem, p. 28.).
61 Rodrigo Massia

fotográfica. Muitas delas se caracterizam por ser uma novidade para o período. São
elementos que se referem à própria expansão da atividade fotográfica, por inovações
de ordem técnica e social. Não se pode perder de vista que a fotografia é uma
invenção moderna, que surgiu em plena vigência da segunda revolução científico-
tecnológica, de forte influência da filosofia positivista. A própria ideia de progresso
material, tão em voga no período, fez da fotografia elemento estratégico da demanda
social por realismo e objetividade. Cabe aqui avaliar essa dimensão da fotografia,
pois é justamente esse o caminho de abertura – o fotojornalismo, a publicidade e os
eventos sociais – que melhor responderam a esse tipo de demanda que só a imagem
técnica era capaz de proporcionar no período a um público amplo e variado.
Apesar de todas as inovações advindas das máquinas portáteis e das
possibilidades de trabalho fora dos estúdios fotográficos, esses ainda constituíam-se
no espaço por excelência da produção fotográfica. O retratista mantinha seu status
de artista-fotógrafo, qualidade atribuída a quem atingia algo próximo do sublime em
fotografia: captar a personalidade do retratado e fixá-la em uma imagem fotográfica.
Os estúdios fotográficos do centro da cidade ainda mantinham seu status de espaços
consagrados à nobre arte do retrato. O estúdio Sioma era um deles,36 no qual as grandes
personalidades políticas e artísticas confeccionavam seus retratos. Localizado na rua
dos Andradas, na área central da cidade, o estúdio era um catalisador de atividades
fotográficas. Além dos tradicionais retratos, se confeccionavam ampliações,
revelações, lembranças de aniversário e casamento. O estúdio era também um
espaço de sociabilidade, onde fotógrafos se reuniam. A vitrine, onde Sioma expunha
seus retratos, fazia publicidade do retrato artístico, como uma capacidade de que
poucos fotógrafos eram dotados, conforme afirmava seu material publicitário:
“Para o melhor retrato procure Sioma. Um retrato artístico... sempre Sioma”.37 O
retrato artístico foi o modo de representação do indivíduo burguês, como forma de
construção da sua distinção social.38
No estúdio Sioma foram produzidos os retratos oficiais de personalidades
políticas como Getúlio Vargas, Flores da Cunha, Cordeiro de Farias, diversos
funcionários do alto escalão do estado,39 do escritor Erico Verissimo, do ator e produtor
36
O estúdio Sioma mantinha a tradição dos grandes estúdios de retrato, tributários do séc. XIX, no qual a localização
se constitui em uma evidência de distinção, frente a um contexto de vulgarização, tanto dos estúdios como da
produção de retratos. Cabe lembrar aqui que a área central ainda era o espaço de maior valorização, tanto econômico
quanto social, da cidade. Cf. POSSAMAI (2005.) e SANTOS (1997.).
37
BREITMAN (Opus cit., p. 148.).
38
Para saber mais sobre a historicidade da relação entre o retrato e o modo de vida burguês ver em especial
FREUND (1999.).
39
Em uma edição da Revista do Globo alusiva aos feitos do Estado Novo e as comemorações do bicentenário de
Porto Alegre, foi feita uma extensa reportagem sobre o crescimento do Estado, no qual grande parte dos retratos
dos prefeitos das cidades em destaque foi produzida por Sioma Breitman. É interessante notar que a assinatura do
fotógrafo assume destaque na imagem, pelas dimensões, localizada logo abaixo do rosto, na parte inferior à direita.
Cf. Revista do Globo (1940, p. 72-160.).
62 A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman

Procópio Ferreira e de diversas personalidades do high society porto-alegrense, já que


foi responsável pela produção fotográfica dos casamentos da alta sociedade.40
Além das fotografias produzidas no ateliê, os irmãos de Sioma que trabalhavam
com ele praticavam uma função que o fotógrafo chamava de angariador,41 que
consistia em percorrer o interior do estado para conseguir encomendas de ampliações
fotográficas. Uma das práticas correntes em fotografia era pendurar as fotos dos
familiares nucleares nas paredes das casas, com molduras, retoques, colorizações
etc. O fotógrafo chegou até o interior do sul de Santa Catarina recolhendo retratos
para futuras ampliações.
Mantendo-se autônomo Sioma Breitman apresenta em suas memórias um
cenário bastante diversificado sobre o ofício da fotografia em Porto Alegre e nas
principais cidades do interior do estado. O fotógrafo trabalhava muitas vezes nos
três turnos: ao longo do dia no estúdio e à noite em eventos sociais, o que evidencia
o extenso tempo de trabalho do fotógrafo.
Sioma parece ter assimilado desde cedo uma das características principais
de um bom fotógrafo, que é manter-se neutro em relação a conflitos ideológicos
ou de grupos rivais. Sioma fala do exemplo de seu pai que, em plena perseguição
aos judeus no leste europeu nos anos 1910 conseguiu manter boas relações com
o Estado que lhe perseguia para poder exercer o seu ofício. Apesar de assumir
sua condição étnica judaica, o fotógrafo parece ter mantido sempre uma relação
harmoniosa com a elite luso-brasileira e teuto-brasileira. Tendo se firmado como
fotógrafo primeiro em torno da comunidade judaica, posteriormente se projetou
como o principal fotógrafo das elites políticas e dos eventos sociais. Como
lidava com um equipamento ainda pesado e pouco discreto (principalmente pelo
uso do flash), o fotógrafo comenta que sempre pedia permissão para fotografar
as pessoas nos eventos sociais, para não causar nenhum tipo de desconforto aos
seus fotografados. Sua competência fazia com que raramente perdesse as chapas
que batia. Por esses motivos, Sioma sempre contou com apreço das principais
personalidades políticas e culturais do estado.
Na AFPRGS Sioma cumpria as funções de relações públicas para arrecadar
fundos para as exposições de arte fotográfica e auxiliava na organização. Sioma
também expunha seus trabalhos em diversos concursos de fotografia, tanto no Brasil
como no exterior, acumulando cerca de 400 trabalhos. Foi um dos responsáveis
pela montagem da AFPRGS no ano de 1946. Os principais objetivos da associação
eram manter cursos de capacitação no exercício da fotografia, congregar os
40
Cf. POSSAMAI (1998, p. 98-99.).
41
Fala dessa atividade como prática corrente nos anos 1920 e 1930, mas que certamente não desapareceu. Uma
evidência disso é a similaridade do trabalho de Chico Pintor, que ganhava vida como fotógrafo nos anos 1960 e
1970 fazendo ampliações e colorizações de fotografias, principalmente nas cidades do interior. Para saber mais ver:
SILVA (1998, p.66-68.).
63 Rodrigo Massia

fotógrafos da cidade em torno de uma organização e regularização jurídica do


ofício em atividade profissional.
Entre os anos de 1946 e meados de 1954, período em que funcionou a
associação, foram realizados três salões de fotografia (1948, 1951 e 1952), sendo o
último deles de abrangência internacional (1952). Ainda na associação funcionava,
além dos salões e cursos de aperfeiçoamento – no qual Sioma ministrava justamente
o retoque de negativos, a publicação da Associação chamada O Fotógrafo, que
funcionou entre os anos de 1947-1952 com apenas três edições. Sioma afirma que
a associação sempre passou por dificuldades de ordem financeira devido aos custos
de infraestrutura, que ainda era precária.42 Dentro da associação, o fotoamadorismo
era desenvolvido como uma espécie de subseção da qual surgiu no ano de 1951 o
Foto Cine Clube Gaúcho. O deslocamento evidencia o caminho da especialização
e fragmentação dos ramos da atividade fotográfica, que teve seu início nesse
contexto. Como o foco da AFPRGS era na formação de um grupo de profissionais
da fotografia, o FCCG aglutinou os fotógrafos que exerciam a atividade sem fins
profissionais, seguindo a tradição dos Fotoclubes de início do século XX. Contudo
isso não impediu que fotógrafos profissionais obtivessem formação técnica nesse
espaço, a princípio destinados aos amadores.
Além de suas atividades exercidas com fins lucrativos, Sioma foi um
fotógrafo que incentivou o exercício da fotografia como forma de expressão artística.
Consagrado entre seus pares como artista-fotógrafo, considerado pela imprensa como
a continuação de uma linhagem de artistas-fotógrafos locais como Otto Schönwald,
Virgílio Calegari e os Irmãos Ferrari, Sioma teve extensa produção voltada para este
ramo da fotografia. Ganhou inúmeros títulos, dentre os quais, considerava como o
mais importante o reconhecimento, em 1957, da Federation Internationale de L’art
Photographique (FIAP), com sede em Berna na Suíça.43 A titulação, com direito
a certificado, era exibida como prova de sua competência e como publicidade da
qualidade de seus trabalhos. Esse status conferia distinção às suas fotografias. Sioma
fez uso de suas qualidades artísticas na produção do “retrato clássico”.44 O fotógrafo
era conhecido pela sua capacidade de dar um “sopro de vida” ao retratado.
Como artista-fotógrafo Sioma contabilizou mais 400 trabalhos de sua autoria
que participaram em salões de arte fotográfica, que aconteceram em diversas partes
do mundo, inclusive no Japão. A maioria de seus trabalhos fotográficos foi produzida
entre os anos de 1946 e 1958. Em sua obra textual, o autor sinaliza o ano de 1946 como
42
Cf. BREITMAN (Opus cit., p.114.).
43
Segundo Sioma, a indicação partiu do Foto Cine Clube Bandeirante de São Paulo, o que demonstra o reconhecimento
da vanguarda da arte fotográfica no Brasil. Cf. BREITMAN (Ibdem, p. 102.).
44
O retrato clássico obedece a cânones bastante definidos: controle de abrangência do espaço, posição do rosto,
expressão, incidência de luz, relação do retratado com o segundo plano. Neste contexto, dominar estes normativos
técnicos e estéticos permitia ao fotógrafo considerar-se um artista de fato e de direito. Para ver mais sobre o gênero
do retrato ver: FABRIS (2004, p. 91-114) e CASTANO (s.d.).
64 A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman

um marco significativo em sua percepção das potencialidades da fotografia. Começou


a tomar contato com publicações estrangeiras e ter notícias sobre a existência de
associações de fotógrafos e de salões de arte fotográfica. Mais do que isso, Sioma
observava o ano de 1946 como o início de uma conjuntura geopolítica de mudanças
internacionais. O fim da segunda guerra mundial era visto por Sioma como uma nova
etapa das relações humanas, na qual o aprendizado da guerra traria novas perspectivas
para os tempos de paz. Imbuído deste espírito, o fotógrafo percebeu que sua atividade
profissional não possuía qualquer tipo de organização e regulamentação jurídica.
Sioma faz apenas uma alusão ao contexto paulista, embora seja plausível
afirmar que o fotógrafo tinha conhecimentos sobre contexto de exposições nacionais
e internacionais. Estes eventos aconteciam no Foto Cine Clube Bandeirante desde a
sua fundação, em 1939.45 Em 1947 foi lançada a Revista Íris, primeiro periódico sobre
fotografia de caráter comercial. No ano de 1948, quando foi realizado o primeiro salão
de arte fotográfica de Porto Alegre, em São Paulo, o FCCB já estava na 7ª edição de
seu salão internacional.46 Em 1950 o nível de organização da atividade amadora em
São Paulo era bastante satisfatório. Foi realizada a I Convenção Brasileira de Arte
fotográfica, que resultou na fundação da Confederação Brasileira de Fotografia e
Cinema. Esta entidade era a representante brasileira na FIAP.47 Quando a AFPRGS
organizou seu primeiro e único salão internacional, o FCCB já estava com o mesmo
evento em sua décima primeira edição.
Sioma entendia que a fotografia era uma atividade que estava para além
das possibilidades que oferecia o mercado, onde a prática se dava no nível de
uma fotografia corrente, na qual os eventos familiares eram a tônica das imagens
produzidas pelos estúdios. Conforme Sioma: “As condições eram difíceis. As
exigências gerais não permitiam afastar-se nem um pouco da linha classica do oficio,
e do provimento de recursos para a existencia (sic)”.48 Nesse sentido o fotógrafo
se aproxima da interpretação de Bourdieu sobre os devotos e transgressores na
fotografia. Para o autor, a atividade fotográfica que se afasta da prática corrente surge
como forma de oposição a esta e constitui-se na tônica da fotografia praticada no
âmbito dos fotoclubes. A atitude devota caracteriza-se pela repetição das ocasiões
(turismo, aniversários, casamentos, formaturas) e padrões (identificação imediata
do local fotografado, gestual definido) da fotografia corrente. O transgressor é
justamente aquele que, ao negar as ocasiões e expressões correntes, busca novas
situações de prática fotográfica, aproximando-se da expressão artística. A fotografia
é uma forma de ingresso no mundo das artes justamente para os sujeitos das camadas
médias, pois estes não têm livre acesso aos modelos já consagrados de arte como a
45
Cf. COSTA; SILVA (Opus cit., p. 37-44).
46
Ibidem, p.39.
47
Ibidem, p.48.
48
BREITMAN (Opus cit., p.101.).
65 Rodrigo Massia

música erudita, a pintura. Fazer da fotografia uma forma de arte é, conforme aponta
Bourdieu, uma atitude transgressora.49
Sioma Breitman observa que a prática corrente impede que novas formas
de expressão em fotografia sejam desenvolvidas, o que também obstaculiza a
constituição de espaços de formação e aperfeiçoamento da atividade fotográfica.
Sioma evidencia em seu discurso uma visão tradicional, legado pela fotografia
pictorialista,50 na qual o fotógrafo deve ser um sujeito versado nas artes e na
literatura. Sua bagagem cultural deve lhe permitir a obtenção de uma fotografia que
fuja à prática corrente e aos imperativos do mercado. Para que tal realidade fosse
possível em Porto Alegre, fazia-se necessário a organização de uma associação
que promovesse salões de arte fotográfica e oferecesse cursos de fotografia,
concebendo-a como forma de expressão artística.
O fotógrafo também comenta sobre o contexto de produção de algumas de suas
fotografias premiadas, o que permite compreender a apropriação de certas concepções
e práticas fotográficas que vigoravam no período. A ideia de uma fotografia cândida,51
na qual o fotógrafo é uma testemunha silenciosa e discreta do acontecido é uma
postura, que surge em decorrência das novas possibilidades técnicas (máquinas de
pequeno formato que independem do uso do flash), que foi utilizada no fotojornalismo.
No campo da arte fotográfica, esse tipo de fotografia exigia do sujeito a sensibilidade
de observar uma cena fugidia e lançar um olhar poético sobre a realidade exterior.
Fotos posadas eram práticas associadas à fotografia corrente, produzida em eventos
sociais, como casamentos, festas, aniversários e demais eventos de cunho familiar. A
arte fotográfica praticada entre os anos 1940 e 1960 procurou se afastar deste tipo de
fotografia. A máquina fotográfica era entendida como uma espécie de arma silenciosa,
na mira de um instante decisivo, único. Esta concepção encontra tradução nas palavras
do fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson, quando este diz que a fotografia é um
momento de cruzamento entre o “cérebro, olho e o coração”.52 A partir da narrativa
de Sioma, é possível entender um pouco mais das motivações pessoais e as soluções
encontradas por ele para fotografar o cenário, de acordo com a sua ideia. A discussão
recairá sobre a fotografia intitulada por ele de “Súplica”.
49
BOURDIEU (Opus cit., p.80-87.). O autor faz aqui uma divisão entre o que ele caracteriza por uma fotografia
corrente e uma fotografia exigente. Estas duas tipologias são analisadas dentro da perspectiva de uma fotografia
amadora. Outra ressalva importante é que o autor faz suas considerações sobre o contexto francês dos anos 1960.
50
Ver em linhas gerais e sob uma perspectiva nacional e internacional, respectivamente: MELLO, (Opus cit.) e
NEWHALL, (2002, p.141-166.).
51
A fotografia cândida, conforme refere o adjetivo, constitui-se em uma imagem na qual a presença do fotógrafo não
foi percebida pelos retratados. Esta prática só se tornou possível pela existência das máquinas portáteis como a Leica,
a Ermanox e a Rolleiflex, para citar as mais conhecidas. Esse tipo de fotografia passou a ser praticada principalmente
pelo fotojornalismo alemão dos anos 1920, tendo como principal referência o fotógrafo Erich Salomon. Na arte
fotográfica brasileira dos anos 1950 identifica-se essa mesma postura, só que para fins diferentes. Ver por ordem das
referências abordadas: FREUND, (Opus cit., p. 99-123) e COSTA; SILVA, (Opus cit., p.63-70.).
52
CARTIER-BRESSON (2004.).
66 A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman

Sioma conta que certa vez uma de suas inúmeras clientes que solicitavam
seu trabalho nos casamentos foi ao seu Estúdio para retirar as fotografias. Na ocasião
estava com luvas de couro e as tirou para manusear suas fotos. A cliente teria ficado
tão satisfeita com o resultado do trabalho que ao sair esqueceu-se de seu par de
luvas, o que prontamente despertou o interesse do fotógrafo. Ao ver que as luvas,
pela maciez do couro ainda mantinham a forma das mãos com suas rugosidades
o fotógrafo começou a pensar em um projeto fotográfico com o objeto. A luva
clara sob um fundo escuro com os efeitos de luz artificial sugeriu uma imagem de
um gestual de súplica, de conotação fortemente religiosa. De tão satisfeito com o
resultado, Sioma decidiu inserir esta imagem em sua Exposição de 1958, chamada
“Arte Fotográfica”, que percorreu diversos países da Europa e América.

Figura 3: “Súplica”, por Sioma Breitman. BREITMAN, (Opus cit., p.135).


67 Rodrigo Massia

Em seu livro, o fotógrafo chegou a inserir alguns comentários sobre esta


imagem, quando a expôs a bordo do navio que o levou para a Europa. Chamou-
lhe a atenção o fato de uma mesma pessoa ter postado dois comentários, o
que demonstra o retorno e o impacto que tal imagem causou, algo que traduz
os verdadeiros propósitos do fotógrafo, como pode ser observado na citação a
seguir: “Há tanta originalidade, tanto sentimento, tanto extro (sic) artístico, tanta
inspiração, que chega-se a passar em segundo plano a técnica portanto insuperável,
somente tomando em consideração e apreciando o artista, o verdadeiro puro artista,
que sente, que vive, que cria sua composição”.53
Ao falar de suas imagens, Sioma Breitman constantemente abordava a questão
da fotografia como caça (o retratado como “alvo”, a máquina como “metralhadora” e o
click como um “tiro”). Essa analogia é possível não só pela presença de uma máquina
portátil, mas da mudança de postura, assumida na prática fotográfica como expressão
artística. Seus conteúdos são pensados a partir de um enquadramento estético que
o fotógrafo caracteriza por ser agradável, ou seja, respondem aos imperativos
de harmonia, condições de luminosidade e de casualidade. O conteúdo, quando
predominantemente corriqueiro e banal, consome mais as possibilidades estéticas, no
caso de Sioma, a questão da luz. Tanto em página social como em súplica identifica-
se o uso da luminosidade como recurso estético primordial, que faz da fotografia uma
expressão artística. No caso de preço da independência, a fotografia é enfatizada mais
pelo seu conteúdo, pois guarda fortes relações com a memória afetiva do fotógrafo.
Mais do que grandes revelações sobre o enigma da fotografia, a
interpretação recai aqui sobre as condições de produção. A ideia de expressão
artística contida na fotografia é tema de uma extensa discussão. Muitas vezes é
atribuída a uma obra artística questões que são da ordem do inefável. Sobre este
tema, Bourdieu argumenta:

Porque se faz tanta questão de conferir à obra de arte – e ao


conhecimento que ela reclama – essa condição de exceção,
senão para atingir por um descrédito prévio as tentativas
(necessariamente laboriosas e imperfeitas) daqueles que
pretendem submeter esses produtos da ação humana ao
tratamento ordinário da ciência ordinária, e para afirmar a
transcendência (espiritual) daqueles que sabem reconhecer-
lhe a transcendência? (...) É legítimo valer-se da experiência
do inefável, que é sem dúvida consubstancial à experiência
amorosa, para fazer do amor como abandono maravilhado à obra
apreendida em sua singularidade inexprimível a única forma de
conhecimento que convém à obra de arte?54
53
ZAPPI apud BREITMAN (Op. cit., p. 136.).
54
BOURDIEU (Opus cit. p.12-13.).
68 A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman

Ao observar esta resistência a uma análise que qualifique a ação humana


como racional, que faz parte da produção da obra de arte, Bourdieu chama a atenção
para as bases da crítica de arte, ainda presa às categorias de gênio e dom natural. O
entendimento da obra de arte nessa acepção seria algo que escapa ao conhecimento
científico. No caso da arte fotográfica de Sioma observa-se que há um contexto de
produção da obra na qual esta experiência da ordem do sublime não acontece a partir
de um dom genial, mas fruto de investigação, de estudo das condições de luz, da
sorte, da casualidade, da relação com o tema. A arte, como fruto da ação humana
muitas vezes recorre à casualidade, como no caso da produção da fotografia com as
luvas, que recebeu elogios que qualificam o autor da obra nos termos criticados por
Bourdieu, ainda que não seja proveniente de uma crítica especializada.
Ao pensar a trajetória de Sioma Breitman partindo do contexto local e
inserindo-o em níveis de análise nacionais e internacionais, identifica-se que seu
olhar constitui-se em uma apropriação das possibilidades existentes. O domínio do
que é possível em termos de fotografia no período lhe permite transitar, tanto de
um olhar tradicional, lançado sobre os retratos da elite dirigente e aos casamentos
quanto de um olhar moderno, onde o fotógrafo é uma testemunha silenciosa,
observadora, aos moldes de um caçador. A prática devota lhe permite prover o seu
sustento, enquanto a transgressora faz dele um fotógrafo engajado na constituição de
um campo de produção da arte fotográfica. Contudo, suas fotografias são “apenas”
um entre tantos outros possíveis olhares, lançados sobre o mundo, ora bisbilhoteiro
e comovido, ora moralizante e tradicional. Sem a sua assinatura em destaque nas
fotografias certamente não seria possível inferir com certeza de que se trata de uma
foto sua, pois não há a possibilidade de identificar uma marca pessoal. Retomando
as ideias de Mario Costa:

A partir da fotografia isso deixa de ser possível porque, ao


anular em si a própria noção de ‘estilo’, ela é a primeira a
recusar toda ‘marca’ e a constituir-se como uma multidão
de coisas desobjetivadas cuja ‘obstinada estranheza’ não
pode ser recuperada de forma alguma. E passamos, assim, da
automatização à autonomização da imagem.55

Sioma construiu a sua História ao narrar suas memórias. Mais do que


informar, o fotógrafo, mesmo com uma vasta coleção de imagens, recorreu às
palavras para sacramentar uma vida dedicada ao ofício da fotografia. Será que o
fotógrafo tinha em mente a ausência da categoria texto nas imagens? A autoria
55
Cf. COSTA In: KERN;FABRIS (2006, p.190-191.). A questão da impossibilidade de estilos pessoais na fotografia
é debatida a partir da estética hegeliana na qual a expressão artística é forma de transformar a realidade exterior, pois
nela é impressa a marca do artista.
69 Rodrigo Massia

da expressão artística contida na foto seria perdida com o tempo, fazendo de suas
fotografias expressões mudas, completando o caminho de uma imagem automática
para uma imagem autônoma.56 Os propósitos de Sioma ao fazer seus registros seriam
perdidos sem o recurso das palavras. Mesmo para um homem que viveu imerso
no mundo das imagens, o recurso da palavra se constitui em algo definitivo, que
revelaria e estabilizaria a “verdade” da cena retratada?

Referências

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56
Idem.
70 A técnica de João Alberto Fonseca da Silva e a arte de Sioma Breitman

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71 Rodrigo Massia

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Capítulo 3

Por trás das lentes, uma história: a


percepção de fotógrafos sobre as
imagens da mídia impressa
Maria Cláudia Quinto1
O mais importante na comunicação [...] é a
sociedade que há por trás dessa palavra.
Dominique Wolton

As questões sobre a publicação de imagens têm sido cada vez mais discutidas
e analisadas pelos diversos saberes em estudos que abordam desde a análise de
imagens até entrevistas com o público receptor. Segundo o historiador Peter Burke
(2004, p. 24), “deve-se aconselhar alguém que planeje utilizar o testemunho de
imagens para que se inicie estudando os diferentes propósitos dos realizadores dessas
imagens”. Tais propósitos, às vezes, se distanciam do resultado final – a imagem
publicada – e o processo que existe por trás das imagens nos informa muito sobre a
lógica dessas publicações.
A fotografia, surgida em 1839, de acordo com Susan Sontag (2004, p. 13),
atua como uma ponte entre o mundo e nós, tornando próximo o que está distante,
informando outras realidades e outros tempos. Como aponta Ivan Lima (1989,
p. 9), a fotografia “mudou a visão das massas. Até então o homem comum só
visualizava os acontecimentos que ocorriam ao seu lado, na rua, em sua cidade”.
Hoje, temos acesso a uma gama enorme de situações, dos grandes feitos dos homens
às catástrofes que mobilizam o público. Os acontecimentos são congelados pela
lente do fotógrafo, pois “a fotografia jornalística fixa um acontecimento e as suas
impressões. O fotógrafo é o relator desse acontecimento: o intermediário visual entre
a notícia e o público”, como indica Lima (1989, p. 35). Por ser um intermediário
visual, o profissional também filtra e altera a realidade a ser mostrada, no sentido
de que escolhe o quê, como e quando fotografar. Os primeiros periódicos no Brasil
possuíam poucas imagens e, no século XIX, o acesso a essas fotos era restrito. Dessa
forma, as imagens causavam grande impacto nas pessoas, como afirmam Marco
Morel e Mariana Barros (2003). De acordo com os autores, as primeiras imagens na
mídia impressa, no Brasil, tinham a guerra – do Paraguai e de Canudos, por exemplo
– como principal tema. Já com relação à revista, o jornalista Eugênio Bucci (2000, p.
1
Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O presente artigo é parcialmente
baseado na Dissertação de Mestrado em Psicologia intitulada “Imagens de morte na mídia impressa: o olhar do
fotógrafo”, defendida em 2007, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, sob orientação da Dra.
Monique Augras.
73 Maria Cláudia Quinto

109) aponta que “a fórmula da revista semanal de informação” foi criada pela revista
Time na década de 1920.
No Brasil, Lima (1989, p. 71) indica que “o ciclo das revistas semanais de
informação com a fotografia em cores surgiu no final dos anos 1960, e teve início
com a revista Veja e Leia”. Segundo o autor (p. 71), a revista Veja surgiu em 1968,
e em março de 1976 foi lançada a revista Isto É. Sobre esta última, Lima (1989, p.
74) afirma que “o surgimento da revista Isto É foi fundamental para o surgimento
de grupos de fotógrafos independentes e para a posterior criação de agências de
fotógrafos”. Finalmente, de acordo com Lima (1989, p. 74), em 25 de maio de 1977,
na edição 22, a revista Isto É viria a publicar “a sua primeira grande reportagem
fotográfica. Na época, foram mostrados, em várias fotografias, os conflitos da Polícia
com estudantes universitários”.
A partir desse momento, informar passou a significar mostrar, como indica
Muniz Sodré (1972, p. 52), e essa regra parece persistir até hoje, até porque a
fotografia é compreendida de maneira mais direta e rápida do que o texto. Como
ressalta Lima (1989, p. 10), “a facilidade do entendimento e a força da imagem é
que colocaram a imagem produzida pela fotografia na vanguarda da transmissão
da informação nos meios impressos”. De acordo com o autor (p. 39), “a notícia
vinculada com a fotografia em um jornal é sempre mais lida”.
Para abordar sobre o tema fotografia é preciso, inicialmente, registrar que
as primeiras máquinas fotográficas surgiram na França e na Inglaterra, no início da
década de 1840, de acordo com Susan Sontag (2004, p. 18), e “só contavam com os
inventores e os aficcionados para operá-las”. Conforme a obra citada, a fotografia,
nessa época, “não tinha nenhuma utilidade social clara” (p. 18), sendo que sua
importância, como registro da realidade, foi reconhecida somente mais tarde. Em
termos de estrutura, a fotografia de imprensa – e, dentro dela, o fotojornalismo -
é considerada como uma vertente da fotografia documental, de acordo com Lima
(1989, p. 11). O valor da fotografia documental é inquestionável, no sentido de
mostrar e denunciar realidades às quais não teríamos acesso de outras maneiras.
As primeiras guerras “registradas por fotógrafos” foram a Guerra da Crimeia
(1854-56) e a Guerra Civil Espanhola (1936-39), de acordo com Sontag (2003, p.
21). A autora comenta que “até a Primeira Guerra Mundial, o combate propriamente
dito esteve fora do alcance das câmeras” e que as imagens da guerra “publicadas
entre 1914 e 1918, quase todas anônimas, eram, em geral [...] de estilo épico” (p.
21-22). A filósofa cita o exemplo da Guerra Civil Espanhola, como sendo “a primeira
guerra testemunhada (‘coberta’) no sentido moderno: por um corpo de fotógrafos
profissionais nas linhas de frente e nas cidades sob bombardeio” (p. 22). Em relação
à fotografia de guerra, Sontag (2004, p. 51) oferece um interessante relato:
74 Por trás das lentes, uma história

Embora a fotografia, normalmente, seja uma visão onipotente e


a distância, existe uma situação em que as pessoas são mortas,
de verdade, por tirar fotos: quando fotografam pessoas matando-
se mutuamente. Só a fotografia de guerra combina voyeurismo
e perigo. Fotógrafos de combate não podem deixar de participar
da atividade letal que registram, até vestem uniformes militares,
ainda que sem insígnias de patente. (2004, p. 51)

Atualmente, podemos transpor essa ideia, por exemplo, à realidade dos


fotojornalistas do Rio de Janeiro, que entram em comunidades acompanhando as
operações da Polícia. Podem não estar do outro lado do mundo registrando guerras,
mas vivenciam o mesmo estresse semelhante, correndo riscos durante a prática. Em
algumas vezes, os fotógrafos permanecem horas à espreita, em locais considerados
perigosos, à procura da fotografia perfeita. A fotografia “Execução em uma rua de
Benfica”, da fotógrafa Wania Corredo, vencedora do Prêmio Esso de Fotografia,
exemplifica essa questão. Assim, podemos observar que, guardadas as devidas
proporções, os repórteres fotográficos de hoje se assemelham aos fotógrafos de
guerra. Sobre o surgimento dos fotógrafos na imprensa brasileira, Lima (1989, p. 26)
observa que estes sugiram na década de 1920 “através dos contínuos ou amigos dos
donos de jornais”, sendo que os amigos dos donos tinham “maior tempo livre” e “uma
câmera na mão”, e os contínuos desejavam “subir de categoria”. O fotojornalismo só
começou a ser reconhecido por volta de 1940, em “tempo de guerra”, como afirma
Sontag (2003, p. 32).
No fotojornalismo tem-se a preocupação de informar a maior quantidade de
dados em uma única imagem. A imagem deve resumir a notícia e mostrar o essencial
da reportagem. Segundo Lima (1989, p. 35), “a reportagem é um acontecimento
dinâmico, do qual o fotógrafo tem que extrair uma imagem que exprima o momento
visual significativo daquele acontecimento”. O autor ressalta que “tudo tem que
estar no mesmo quadro: os personagens e as suas relações com o espaço e com a
circunstância” (p. 35). Portanto, informar pode, também, significar mostrar, mas
não basta mostrar de qualquer maneira, pois a foto deve chamar a atenção e ter
qualidade. O fotógrafo também deseja ter o seu trabalho reconhecido no meio da
Comunicação. Burke (2004, p. 24) afirma que

seria imprudente atribuir a esses artistas fotógrafos um ‘olhar


inocente’ no sentido de um olhar que fosse totalmente objetivo,
livre de expectativas ou preconceitos de qualquer tipo. Tanto
literalmente quanto metaforicamente, esses esboços [...]
registram ‘um ponto de vista’.
75 Maria Cláudia Quinto

O pesquisador Fernando de Tacca (2004, p. 5-6) afirma que “será na


foto-choque que encontramos a representação crua da violência, da morte e do
sofrimento. O trágico traz a dor alheia de forma explícita, impactante e cruel”. É
comum vermos relatos nos quais se afirma que, atualmente, há uma proliferação
de imagens chocantes e violentas. No entanto, não podemos dizer que este é um
fenômeno recente. Imagens chocantes sempre tiveram espaço nas revistas e jornais,
como vimos, anteriormente, e como podemos observar no relato, feito em 1860, pelo
poeta francês Charles Baudelaire, citado por Sontag (2003, p. 89-90):

É impossível passar os olhos por qualquer jornal, de qualquer


dia, mês ou ano, sem descobrir em todas as linhas os traços
mais pavorosos da perversidade humana [...]. Qualquer jornal,
da primeira à última linha, nada mais é do que um tecido de
horrores. Guerras, crimes, roubos, linchamentos, torturas, as
façanhas malignas dos príncipes, das nações, de indivíduos
particulares; uma orgia de atrocidades universal. E é com este
aperitivo abominável que o homem civilizado diariamente rega
o seu repasto matinal.

A descrição de Baudelaire sobre os jornais de 1860 não está tão longe da


descrição de nossos veículos de comunicação atuais, sendo que hoje se tem muito mais
imagens nos jornais do que na época do poeta. A imagem fotografada deve ser digna de
ser publicada, como Lima (1989, p. 27) aponta: “se a notícia não for quente ou a foto
não for boa o seu trabalho pode não ser publicado”. O autor (p. 67) ainda comenta que
“os redatores e fotógrafos apreciam, particularmente, as fotos ditas ‘sensacionalistas’,
pelas condições excepcionais nas quais elas foram realizadas”. Pode existir, em
alguns casos, uma maior valorização da imagem registrada em contingências de risco.
Segundo Lima (1989, p. 67), “o risco enorme que o fotógrafo corre é recompensado
pelo seu prestígio na redação. São poucas as fotografias de catástrofes que tem um
grande valor informativo. Elas são apreciadas pela sua força emocional”.
Durante a produção da imagem é preciso considerar o elemento de
subjetividade do fotógrafo, o mundo visto através da lente da máquina fotográfica
já se mostra transformado por uma série de razões: a escolha do melhor ângulo,
o objeto a ser fotografado. Sobre isso, Boris Kossoy (2000, p. 30) afirma que “as
possibilidades do fotógrafo interferir na imagem – e portanto na configuração do
assunto no contexto da realidade – existem desde a invenção da fotografia”. O fato
fotografado é congelado na imagem e reproduzido.
Sobre esse assunto, Roland Barthes (1984, p. 15) afirma que “o que a
fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que
nunca mais poderá repetir-se existencialmente”. A escolha do que fotografar inclui,
76 Por trás das lentes, uma história

também, o perfil do veículo de comunicação, permeado por motivações diversas,


sensacionalistas ou não. Algumas publicações, mais sensacionalistas, são capazes
de publicar imagens grotescas de determinadas situações, imagens que, talvez, o
público não tenha interesse de ver, e nem mesmo o fotógrafo. Conforme Barthes
(1984, p. 57),

o fotógrafo, como um acrobata, deve desafiar as leis do provável


ou mesmo do possível; em última instância, deve desafiar as do
interessante: a foto se torna ‘surpreendente’ a partir do momento
em que não se sabe por que ela foi tirada. [...] Em um primeiro
tempo, a Fotografia, para surpreender, fotografa o notável; mas
logo, por uma inversão conhecida, ela decreta notável aquilo
que ela fotografa.

Nesse processo, a imagem mostrada se torna superestimada e pode adquirir


um status de realidade. Conforme afirma Sontag (2003, p. 22), “algo se torna
real – para quem está longe, acompanhando o fato em forma de ‘notícia’ – ao ser
fotografado”. Sontag (2003, p. 23) revela ainda que

o fluxo incessante de imagens (televisão, vídeo, cinema) constitui


o nosso meio circundante, mas quando se trata de recordar, a
fotografia fere mais fundo. A memória congela o quadro; sua
unidade básica é a imagem isolada. Numa era sobrecarregada de
informação, a fotografia oferece um modo rápido de apreender
algo e uma forma compacta de memorizá-lo. A foto é como uma
citação ou uma máxima ou provérbio. Cada um estoca, na mente,
centenas de fotos, que podem ser recuperadas instantaneamente.

A imagem memorizada serve como um banco de registro de todos os


conteúdos a que somos expostos diariamente. Tais conteúdos se tornam parte de quem
somos. Em virtude disso, a delicada discussão sobre a veracidade e autenticidade das
imagens se torna necessária. O sociólogo Michel Maffesoli (1995, p. 92) afirma
que “a imagem ou o fenômeno não pretende a exatidão [...] Em suma, a imagem
é relativa, no sentido de não pretender o absoluto. [...] É esse mesmo relativismo
que a torna suspeita”. Nesse aspecto, um ponto importante a ser refletido é o uso do
argumento da relativização da imagem para legitimar certas publicações, questão
que deve ser avaliada através de um exercício crítico do olhar.
Outro ponto interessante para se pensar é a questão das cores das imagens e
seus impactos. Sobre esse aspecto, Lima (1989, p. 82) ressalta que devemos questionar
77 Maria Cláudia Quinto

se a forma de leitura de uma fotografia muda quando essa foto é


em cores. Sem dúvida que sim. [...] As cores primárias (vermelho,
amarelo e azul) são perceptíveis antes das cores secundárias
(laranja, violeta e verde) e quanto mais puras forem essas cores,
mais elas se destacam em relação às não puras. Da mesma forma,
os componentes de cor vermelha dominam em relação ao amarelo
e ao azul. O vermelho do sangue de um acidente ou crime acentua
indevidamente a questão emocional da mensagem.

Um interessante estudo feito por Luciano Guimarães (2000) mostra


que, desde o surgimento da revista Veja, a cor mais utilizada em suas capas é o
vermelho. Com a transformação da imagem impressa pelos meios de comunicação,
passando da fotografia preto e branco para a colorida, as imagens violentas
passaram a chamar ainda mais a atenção do público. Quanto mais chocante for a
imagem, obviamente, mais intensa poderá ser a emoção que ela irá provocar. Com
as transformações tecnológicas, as formas de produção, consumo e repercussão
dessas imagens também se alteram.
Como aponta Vilém Flusser (2002, p. 57), “o receptor pode recorrer ao artigo
do jornal que acompanha a fotografia para dar nome ao que está vendo. Mas, ao ler o
artigo, está sob influência do fascínio mágico da fotografia”. Um exemplo do impacto
da fotografia é o caso de uma foto tirada pelo fotógrafo Severino Silva, em 1992,
para o jornal O Povo, do Rio de Janeiro, analisada no trabalho de Denise Camargo
(2005). A foto mostra um grupo de crianças jogando futebol, próximo a um corpo
esquartejado. O fotógrafo optou por registrar a cena utilizando uma perspectiva de
forma que a cabeça do cadáver parecia estar no lugar da bola de futebol das crianças.
Obviamente, criou-se uma polêmica em torno de tal foto, pois a primeira impressão,
ao olhar a foto, era a de que as crianças estavam jogando com a cabeça humana. Após
um olhar atento, era possível perceber a bola atrás. Em casos como esse, parecem ser
comuns os debates que envolvem, de um lado, argumentos sobre o valor documental
da imagem e, do outro lado, comentários sobre os impactos emocionais que fortes
imagens podem provocar no público, sendo necessário lançar um olhar atento aos
vários argumentos e discursos dos atores envolvidos no debate.
Tal exemplo também ilustra a acalorada discussão sobre os impactos das
imagens e questões éticas das publicações. No ano de 2007, entrou em vigor o novo
Código de Ética da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), que substituiu o
antigo Código, de 1987. Em comparação com o anterior, o novo código traz sutis
alterações em vários artigos: a nova versão do Artigo 2, do capítulo I, registra, agora,
que a liberdade de imprensa “implica um compromisso com a responsabilidade social
inerente à profissão”. No artigo 11, a versão antiga dizia que “o jornalista deve evitar
a divulgação de fatos de caráter mórbido e contrários aos valores humanos”. A versão
78 Por trás das lentes, uma história

atual afirma que “o jornalista não pode divulgar informações [...] de caráter mórbido,
sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de
crimes e acidentes”. O artigo 12 informa que o jornalista deve “rejeitar alterações
nas imagens captadas que deturpem a realidade, sempre informando ao público o
eventual uso de recursos de fotomontagem, edição de imagem, reconstituição de
áudio ou quaisquer outras manipulações”. Esses são alguns exemplos da atual
preocupação da Comunicação com as questões de ordem ética.
As questões sobre a ética na Comunicação também dividem os profissionais
do meio, e, como ressalta Eugênio Bucci (2000, p. 11), “o jornalismo é conflito,
e quando não há conflito, um alarme deve soar. Aliás, a ética só existe porque a
Comunicação Social é lugar de conflito”. O jornalista (p. 10) comenta, ainda, que

o jornalismo como o conhecemos, isto é, o jornalismo como


instituição da cidadania, e como as democracias procuram
preservá-lo, é uma vitória da ética, que buscava o bem comum
para todos, que almejava a emancipação que pretendia construir
uma cidadania, que acreditava na verdade e nas leis justas.

Contudo, mesmo sendo o jornalismo, historicamente, uma vitória da ética, se


um leitor se sentir agredido pelo conteúdo de determinadas imagens, poderá passar
a ter uma série de questionamentos sobre a atuação dos veículos de comunicação.
Sobre a ética jornalística, Bucci (2000, p. 12) ressalta que esta “encarna valores
que só fazem sentido se forem seguidos tanto por empregados da mídia como
por empregadores – e se tiverem como seus vigilantes os cidadãos do público”.
É necessário considerar a especificidade dos casos isolados e evitar generalizar as
conclusões ao tratar desse assunto. A vigilância do público só é possível na medida
em que o mesmo acredita que suas ações e contestações farão, de fato, diferença e
trarão resultados.
De acordo com Raquel Paiva (2002, p. 37), “com a responsabilidade
de propiciar um sentimento de espaço público por onde circulem as falas e as
contradições, ergue-se o jornalismo”. No entanto, através de um rápido olhar nas
seções de cartas de leitores de jornais e revistas, é possível observar a grande incidência
de mensagens que apenas elogiam as matérias. Há depoimentos que consideram as
reportagens esclarecedoras, bem escritas e com belas imagens. É compreensível que
se procure legitimar o conteúdo das matérias através da publicação seletiva de cartas
positivas, mas também é preciso ver além do que está exposto e saber perceber o que
as ausências são capazes de mostrar.
O fotógrafo se preocupa em mostrar os fatos, em fazer da sua imagem um
documento a ser levado a sério. Nesse processo, muitas vezes não há tempo para
79 Maria Cláudia Quinto

maiores abstrações. Após a publicação de uma foto, uma nova pauta é recebida,
e uma nova imagem deve ser feita. A dinâmica da velocidade na imprensa acaba
por servir de justificativa para o não pensar a reação do público. E dessa forma
os dias se passam, pauta após pauta, com profissionais despejando imagens às
vezes impensadas sobre um público consumidor que pode querer dedicar tempo a
essas imagens. O receptor pode se tornar consciente de tais imagens, nutrindo uma
autoridade no assunto que o emissor nem sempre parece ter, por estar algumas vezes
mais envolvido com a velocidade da informação do que com o conteúdo. Nesse
caso, a posse da imagem pode passar do emissor distraído ao receptor mais atento,
que dispõe de tempo para analisar e absorver a imagem. Durante todo o processo,
a imagem interage mais com o receptor do que com o emissor, que está focado,
naturalmente, com a pauta do dia seguinte.
Sobre o conteúdo da mensagem, despertar a emoção no público parece
significar que, assim, a comunicação é humanista. É possível perceber isso pelo
relato de Bucci (2000, p. 95) ao dizer que “banir a emoção da informação é banir a
humanidade do jornalismo. E é banir o público. Os leitores, internautas, ouvintes e
telespectadores reagem emocionalmente [...] aos acontecimentos”. Será que podemos
afirmar que reagir ao acontecimento significa que a comunicação é humanista?
Despertar emoção significa necessariamente que a comunicação é humanista, se o
sentimento gerado for negativo e angustiante para seus consumidores?
Para Dominique Wolton (2002a, p. 64), doutor em Sociologia, “a comunicação
torna-se um setor explosivo se, ao lado da técnica e da economia, não se incluem
orientações humanistas”. A comunicação, segundo Wolton, “é um grande desafio
científico e político do século XXI” (2002b, p. 1). Para o autor, através dela “joga-se
em definitivo a relação de cada um de nós com o mundo” (p. 3). Wolton (2005, p.
12-13) indica, ainda, que “o essencial da comunicação é o respeito ao outro, diálogo
entre as culturas, construção da tolerância. E é sobre isso que a comunicação é
certamente responsável”. Dessa forma, Wolton (2003b, p. 42) salienta quatro pontos
a serem considerados sobre as imagens: (1) “valorizar a importância do contexto,
da história”; (2) “reconhecer a dimensão crítica do receptor”; (3) “jamais pensar a
imagem ‘em si’” (independente do seu público-alvo, considerando-o como um “ser
universal, sem identidade”) e (4) “não há imagem sem imaginário” (o imaginário
do produtor da imagem pode ser diferente do receptor). Refletir sobre essas quatro
dimensões é fundamental para aquele que deseja pesquisar sobre imagens publicadas
na mídia. Ainda hoje, a capacidade crítica do receptor nem sempre parece ser
valorizada como deveria e o público é frequentemente visto como um ser universal –
é comum supor o que o público gosta ou deseja e usar tais argumentos para legitimar
as formas como as notícias são produzidas.
80 Por trás das lentes, uma história

Na outra ponta da discussão está o fotógrafo com as suas questões e seus


pontos de vista. Conforme Fernando de Tacca (2004, p. 7), “o fotógrafo sempre foi
um indivíduo livre, um viajante, flâneur, [...] que almejava não viver enclausurado
em normas produtivas rígidas”. O fotógrafo, que antes vagava pelas ruas à procura da
imagem ideal, agora se vê restrito às amarras das regras do campo das comunicações.
Tacca (2004, p. 7) aponta que

o olhar livre do fotógrafo percorre os labirintos da sociedade


para nos informar visualmente aquilo que não está nos meios
tradicionais de comunicação de massa. Seriam então todas essas
imagens que permearam nosso imaginário e nossa cultura visual
retiradas à força do cotidiano das pessoas e tornadas públicas
por um ato antiético?

O autor conclui que cabe ao fotógrafo não aceitar as “camisas de força ao


olhar”, lutando para continuar sendo um “indivíduo livre das amarras institucionais”
(TACCA, 2004, p. 9), e que a lógica da ética não pode ser regida pela punição a
priori e sim pelo uso que se faz dessas imagens. Veremos, adiante, um pouco mais
sobre a percepção dos fotógrafos sobre a publicação de imagens na mídia impressa.

Relato de Pesquisa

O relato a seguir se baseia na Dissertação de Mestrado intitulada “Imagens


de morte da mídia impressa: o olhar do fotógrafo” (170 p.), sob orientação da Dra.
Monique Augras, no Mestrado em Psicologia da Pós-Graduação de Psicologia da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), entre os anos de 2005
e 2006, e defendida em 2007. O tema da Dissertação manteve o foco em questões
sobre imagens violentas (de mortes) na mídia impressa.
Ao todo foram entrevistados dez fotógrafos profissionais, com o tempo de
atuação que varia entre nove até 38 anos de prática, com passagem pelos principais
jornais e revistas do Brasil. A fundamentação teórica da Dissertação foi baseada em
autores da Sociologia francesa (Michel Maffesoli e Dominique Wolton) e em teorias
sobre a fotografia e imagem (Sontag, Flusser, Barthes, Ivan Lima), e as entrevistas
foram analisadas com base na Análise do Discurso.
As questões abordadas nas entrevistas se referiam à prática do fotógrafo
no momento de produção das imagens, sua opinião sobre a prática de fotografar
para diferentes tipos de jornais ou revistas, sobre manipulação e edição de imagens,
sobre a visão que se tem do público, critérios, normas e restrições de publicação,
localização das imagens, percepção sobre vendas e consumo do material. Alguns
81 Maria Cláudia Quinto

tópicos abordados nas entrevistas foram selecionados a seguir para exemplificar e


refletir sobre as questões que este artigo aborda.
Sobre a questão da produção da imagem, alguns fotógrafos entrevistados
enfatizaram a responsabilidade do fotógrafo nesse processo e o desejo por uma
fotografia mais autoral, o que às vezes esbarra em limitações institucionais. A
questão da distância entre o fato em si e a imagem produzida também é relatada nas
entrevistas, sendo que a consciência dessa distância pode nem sempre estar presente
nos consumidores das imagens. Alguns relatos apontam para a visão da imagem
enquanto representação e não como realidades explícitas, e que caberia ao leitor a
autonomia de decidir o que deseja comprar ou não.
No que diz respeito ao conteúdo das imagens, os relatos apontam para a ênfase
de que as imagens registradas não são mais impactantes do que a própria realidade
moderna e que a violência estaria presente no dia a dia, não havendo diferença se
essa violência está nos fatos ou na capa de um jornal. De qualquer forma, a questão
da banalização da violência e da anestesia diante das imagens foram pontos citados
por alguns profissionais entrevistados, juntamente com a percepção de que o público
costuma não memorizar as imagens recebidas.
Sobre a possibilidade da alteração das imagens, a manipulação tende a ser
vista como uma ferramenta que sempre existiu na fotografia, tendo em vista as antigas
práticas de laboratório, sendo, porém, mais aceita quando se tratam de imagens
publicitárias, pois vários entrevistados enfatizaram o caráter documental da fotografia
no fotojornalismo. A questão que se coloca nesse ponto seria o argumento de alguns
consumidores sobre os seus direitos de verem uma imagem fiel ao acontecimento.
Assim, alguns relatos apontam que, ao aceitar um trabalho, o fotógrafo precisaria
estar consciente das questões que envolvem a prática. Além disso, relatos apontam
que as questões que mobilizam os fotógrafos são, muitas vezes, detalhes prioritários
sobre as técnicas utilizadas para a imagem a ser produzida, e que essa, sim, seria
a função do fotógrafo. Há também a questão de se produzir o máximo possível
de imagens durante o acontecimento, para depois escolher; portanto, o elemento
temporal é preciso ser levado em consideração.
Os relatos sobre a concentração e o foco, no momento do registro, são
frequentemente citados pelos entrevistados, assim como a percepção de que o público
percebe as imagens como realidade. Os relatos apontam para a importância de a
imagem ser contextualizada, sendo necessário haver uma razão para determinada
fotografia estar publicada em algum veículo ou em determinada posição.
Com relação aos reguladores da publicação das imagens, ou seja, o que
ou quem ditaria ou deveria ditar essa veiculação, os entrevistados não pareceram
chegar a um acordo. Alguns pensam que, na hora de decidir se uma imagem deve
82 Por trás das lentes, uma história

ser publicada ou não, o que deve contar é o bom-senso. Outros acreditam que, nesse
momento, o respeito às pessoas deve ser a prioridade, assim como a reação do
público. Sobre a aprovação do público, os relatos enfatizaram a importância de estar-
se atento à forma como esse reage diante da publicação de imagens violentas, através
de contatos feitos com a redação do jornal ou revista. Vários fotógrafos entrevistados
relataram preocupação em não expor imagens violentas. Outra preocupação relatada
foi no sentido de produzir fotos de qualidade, resgatando um aspecto artístico e
valorizando o fotojornalismo perante o campo da Fotografia.
Durante as entrevistas, apareceram, também, elementos importantes sobre a
subjetividade e emotividade dos profissionais, alguns relataram sobre dificuldades
encontradas em situações nas quais se depararam com notícias tristes sobre pessoas
conhecidas ou sobre o medo que sentiram em situações de risco na cobertura de certas
matérias, enfatizando a dicotomia entre a procura da beleza nas situações e a possibilidade
real de estar exposto a riscos. Em algumas situações relatadas, a preocupação em
captar o instante parece se sobressair ao cuidado com a própria segurança: o fotógrafo
deseja conseguir tal foto e ser reconhecido por isso, inclusive, pelo risco ao qual se
submeteu. Lima (1989, p. 37) observa que “o fotógrafo também não pode ser um
espectador passivo nem se envolver emocionalmente com o acontecimento”. Porém, a
busca desse equilíbrio parece fácil em teoria, mas difícil de ser aplicada no momento
em que cenas chocantes acontecem diante dos olhos do fotógrafo.
Sobre as imagens selecionadas para as capas de revistas, vários entrevistados
lembraram-se de imagens de situações difíceis, mas que foram captadas de maneira
bela e sensível por outros fotógrafos, enfatizando a importância da sensibilidade do
profissional e também da identificação que certas imagens são capazes de produzir
nas pessoas. O importante é que sejam consideradas as diferenças nos imaginários
dos consumidores e dos produtores das imagens. Nesse aspecto, Wolton (2003b, p.
42) sinaliza que “entre a intenção dos autores e a dos receptores não operam somente
os diferentes sistemas de interpretação, de codificação e de seleção, mas igualmente
todos os imaginários”.
Como vimos, a discussão sobre as imagens publicadas na mídia impressa
abarca uma série de questões sobre variadas práticas. O processo precisa ser
compreendido cada vez mais a partir de um olhar múlti e interdisciplinar, que possa
compreender e respeitar os diversos campos de atuação, mas que também possa
lançar um olhar crítico sobre os fenômenos contemporâneos que nos cercam. A
proliferação das imagens abre margem a uma espécie de anestesia social na qual o
risco da banalização está intrínseco no processo. Cada vez mais, parece ser necessário
despertar para essas questões, lançar um olhar atento às imagens, às subjetividades
envolvidas nos processos e à própria necessidade de se consumirem tantas imagens.
83 Maria Cláudia Quinto

Diante da proliferação das imagens na modernidade e da importância atribuída


às mesmas, finalizamos este artigo com o interessante prognóstico de Dominique
Wolton (2002a, p. 60) sobre o futuro das imagens:

Estamos numa sociedade na qual a imagem desempenha


um papel muito mais importante do que há 50 anos. Mas o
espetáculo não transforma tudo, não dirige a sociedade. [...]
Haverá um retorno a outros valores, pois o indivíduo não pode
viver somente na imagem.

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PARTE II: FOTOGRAFIA, HISTÓRIA E ARTE
Capítulo 4

História da fotografia moderna brasileira:


experimentações de Geraldo de Barros e
José Oiticica Filho (1950-1964)
Carolina Martins Etcheverry1

Muito já foi escrito sobre a história da fotografia oitocentista no Brasil.2


Entretanto, a história da fotografia moderna brasileira do século XX, ainda está,
em grande parte, por ser escrita. Tem-se um determinado número de autores,
entre eles Helouise Costa,3 Tadeu Chiarelli4 e Rubens Fernandes Júnior,5 que
trouxeram importantes contribuições para aqueles que desejam estudar este tema
tão interessante.
É comum, principalmente devido ao livro A fotografia moderna no
Brasil, de Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva, estabelecer como marco
temporal a década de 1940 para o início desta prática fotográfica. Segundo eles,
foi no seio do Foto Cine Clube Bandeirante que a fotografia moderna nasceu. De
acordo com os autores,

A fotografia moderna no Brasil surgiu e se desenvolveu no


Foto Cine Clube Bandeirante. Os fotógrafos bandeirantes
concretizaram uma transformação que abalou a tradição
pictorialista e acadêmica do movimento amador. Embora haja
notícias de especulações modernas esparsas fora do ambiente
fotoclubista, a documentação até agora levantada aponta que
essa prática só se realizou sistematicamente e como experiência
de grupo no Foto Cine Clube Bandeirante.6

Pode-se perceber que o critério utilizado pelos autores para definir o que
seria a fotografia moderna e onde ela se posicionaria dentro do panorama geral da
fotografia está baseado na sua inserção em um meio legitimador – o Foto Cine Clube
Bandeirante. As contribuições esparsas, ainda que relevantes, são colocadas em
segundo plano por não se inserirem nesta categorização.
1
Mestre em História, Teoria e Crítica da Arte e Doutoranda em História do PPGH/PUCRS. E-mail: etchev@gmail.com.
2
Cf.: Kossoy (1998, 2002 a, 2002 b, 1983), Fabris (1998, 2007, 2008), Pedro Karp Vasquez (1985, 2002, 2003),
Solange Ferraz de Lima (1997), Vânia Carneiro de Carvalho (1997), Zita Possamai (2005).
3
Cf. Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva (2004).
4
Cf. Tadeu Chiarelli (2003).
5
Cf. Rubens Fernandes Júnior (2006).
6
Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva (2004, p. 36). As especulações a que os autores referem-se dizem
respeito às imagens de Jorge de Lima, Athos Bulcão e Fernando Lemos, os dois primeiros ligados à fotomontagem,
em textos escritos por Paulo Herkenhoff, Annateresa Fabris, Fernando Cocchiarale e Ricardo Mendes.
91 Carolina Etcheverry

Também Rubens Fernandes Júnior contribui para o pensamento sobre a


fotografia moderna brasileira, porém sob um ângulo um pouco diferente, pois não
a relaciona diretamente ao advento do Foto Cine Clube Bandeirante, mas sim à
conjuntura histórica do período. Segundo ele,

Podemos afirmar, contudo, que a fotografia moderna brasileira


começa no final dos anos 40, após os primeiros investimentos
de capitais estrangeiros no país e as primeiras iniciativas para
alavancar o desenvolvimento industrial.7

No livro Labirinto de identidades, do qual tiramos a citação anterior, o autor


procura sistematizar uma história da fotografia moderna e contemporânea, traçando
um panorama da fotografia brasileira de 1946 a 1998. Para tanto, Rubens Fernandes
Júnior estabelece três momentos principais: as décadas de 1940 e 1950 (com destaque
para Geraldo de Barros, Thomaz Farkas, José Medeiros e Pierre Verger – documental
e experimental juntos); as décadas de 1960 e 1970 (destacando Maureen Bisilliat,
Walter Firmo e Luis Humberto – representação da identidade nacional a partir de
manifestações populares); os fotógrafos da década de 1980, atuantes até hoje (Juca
Martins, Nair Benedicto, Mario Cravo Neto, Antonio Saggese, Miguel Rio Branco,
Araquém Alcântara, Pedro Vasquez, entre outros) e, por fim, os fotógrafos da década
de 1990, tais como Ed Viggiani, Rubens Mano, Elza Lima, Cássio Vasconcellos,
Luiz Braga, Eustáquio Neves, entre outros.
Interessante também para o estudo da fotografia moderna e contemporânea
brasileira é o livro de Antonio Fatorelli, intitulado Fotografia e viagem.8 Em seu
último capítulo, o autor aborda a fotografia de José Oiticica Filho, bem como a de
Antonio Saggese, buscando, assim, traçar uma relação entre a prática moderna e a
contemporânea. A historiadora da arte Annateresa Fabris9 igualmente contribuiu para
a construção do campo historiográfico da fotografia, ao escrever sobre temas que vão
desde a fotografia do século XIX até as relações entre fotografia e artes visuais.
Nosso objetivo é oferecer ao leitor um panorama geral a respeito do estudo
das fotografias de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho, como forma de
pesquisar a história da fotografia moderna brasileira. Através destes fotógrafos, é
possível compreender o sistema da fotografia no Brasil, bem como suas relações com
as artes visuais, e perceber as principais contribuições destes autores para o campo
da fotografia. Na primeira parte, fazemos um apanhado geral sobre os fotógrafos e
suas imagens; a seguir, há um debate teórico sobre os conceitos usados para definir
suas fotografias; na terceira parte, fazemos um levantamento historiográfico acerca
7
Rubens Fernandes Júnior (2003, p. 144).
8
Antonio Fatorelli (2003).
9
Cf. Annateresa Fabris (1998, 2007, 2008).
92 História da fotografia moderna brasileira

dos principais textos escritos sobre Geraldo de Barros e José Oiticica Filho; a quarta
parte deste texto é dedicada à inserção das fotografias no contexto geral da História
da Fotografia brasileira e, por fim, a quinta parte dedica-se a analisar as imagens dos
fotógrafos dentro do contexto nacional das Artes Visuais. Com isto buscamos abarcar as
principais questões relacionadas às fotografias de Geraldo de Barros e de José Oiticica
Filho, fornecendo um panorama de sua obra, procurando facilitar estudos posteriores.

Sobre Geraldo de Barros e José Oiticica Filho

Geraldo de Barros e José Oiticica Filho foram dois importantes fotógrafos


brasileiros, que atuaram entre o final da década de 1940 e a década de 1960. Em
comum, compartilham o apreço pela experimentação na fotografia, a participação
no movimento fotoclubista e no movimento concretista brasileiro. Além disso,
ambos tinham na fotografia uma paixão, mas suas atividades profissionais principais
giravam em torno de outros assuntos. Geraldo de Barros era bancário, funcionário do
Banco do Brasil, e José Oiticica Filho era professor de entomologia.
Barros iniciou na fotografia no final da década de 1940. Artista plástico,
gravador, designer, além de fotógrafo e bancário, Barros usava a fotografia como
modo de expressar suas ideias plásticas, subvertendo, muitas vezes, o uso “comum”
feito pelos demais fotógrafos. Utilizava diversas técnicas experimentais nos seus
trabalhos fotográficos. Fazia uso de sobreposições de negativos e intervenções com
ponta-seca em nanquim na película. Com isso ele conseguia quebrar com a ideia
de mimese do real. Suas imagens apontam para um profundo questionamento da
natureza fotográfica, bem como expandem o campo da fotografia tradicional.
Em 1950, Barros montou a exposição Fotoforma, no Masp. Nela havia um
conjunto de imagens elaboradas, aproximadamente entre 1948 e 1950, dentre as
quais figuravam fotografias geométricas que se alinham à arte concreta e desenhos
livres sobre o suporte fotográfico. Todos estão dentro da ideia de campo expandido
da fotografia, ao mostrarem experimentações de diversas ordens. Suas fotografias
abstratas, como veremos, alinham-se aos ideais da arte concreta, apoiadas em noções
matemáticas geométricas.
José Oiticica Filho teve uma trajetória um pouco diferente de Barros. Ele foi
entomologista no Museu Nacional desde 1942, onde fotografava insetos. Foi a partir
desta necessidade de documentar seu estudo que surgiu o interesse pela fotografia.
Segundo Hélio Oiticica, “ao aperfeiçoar-se na microfotografia de Lepidoptera
(e outras ordens de insetos também), foi-lhe, aos poucos, nascendo o sentido da
fotografia como uma expressão de arte”.10
10
Oiticica (1983, p. 7).
93 Carolina Etcheverry

Oiticica Filho passou, então, a pesquisar no campo da fotografia. Produziu


vários artigos sobre a prática fotográfica, publicados em jornais e boletins fotográficos.
Sua produção fotográfica foi dividida por ele próprio em várias categorias, que dão
título às imagens: forma, ouropretense, abstração, derivação e recriação. Com títulos
diversos, estão as fotografias da sua fase pictorialista. Segundo Paulo Herkenhoff,
em texto escrito para o catálogo da exposição do fotógrafo em 1983, ele passou por
quatro fases em sua trajetória artística:

Há quatro fotógrafos em José Oiticica Filho: o utilitário, o


fotoclubista, o abstrato e o construtivo. Por vezes, algumas
dessas linhas se identificaram ou tiveram um desenvolvimento
simultâneo e paralelo. No entanto, o fotógrafo construtivo seria
um radical que negaria a validade estética dos demais.11

Este fotógrafo foi bastante fecundo, investindo nas experiências fotográficas


de expansão do campo. Para ele, como fica bastante claro em entrevista intitulada
“Fotografia se faz no laboratório”, concedida a Ferreira Gullar em 1958, a parte mais
importante do processo fotográfico se dá no laboratório:

FG – Pela nossa conversa, concluo que para você a máquina


fotográfica mesma tem um papel relativo no que chama de
fotografia.
OF – Para mim a câmera fotográfica, como os demais meios
técnicos que entram no processo fotográfico, tem o mesmo
papel que o pincel, a tinta e a tela para o pintor. O que interessa
é o resultado.
FG – Estou de acordo.
OF – E o papel da máquina fotográfica ainda é bem menos
importante do que vem depois. Se o fotógrafo bate a chapa,
revela e manda copiar, ele entrega a fase mais importante do
trabalho de criação fotográfica. Quanta coisa se pode fazer ao
copiar uma foto. É nessa hora quando se graduam os cinzas,
as luzes, o corte, que a fotografia a bem dizer nasce. Mas os
fotógrafos neorrealistas batem as fotos e mandam copiar. É até
um crime uma pessoa assinar como sua uma foto que outro
copiou. Mas esses equívocos estão hoje em moda. Acabo de
comprar o último número da revista de arte “XXème Siècle”,
dedicada ao grafismo, onde aparece uma reportagem sobre o
fotógrafo Brassai, que fotografou garatujas feitas por crianças
nas paredes de Paris. As garatujas são às vezes bonitas, mas
o fotógrafo apenas as fotografou, isto é, fez uma reportagem
11
Herkenhoff (1983, p. 11).
94 História da fotografia moderna brasileira

sobre as garatujas. No entanto é apresentado pela revista como


grande artista.12

Paulo Herkenhoff, em conclusão ao texto do catálogo, escreveu a respeito


de José Oiticica Filho que “sua produção, precedida das Fotoformas de Geraldo
de Barros, representa o momento em que a fotografia esteve mais sintonizada e
integrada a um projeto geral da cultura no país”.13 O projeto geral de cultura no país,
segundo Gershmann,14 passava pela criação dos museus de arte (Masp e MAM) e
pela arte construtiva. Estes estariam de acordo com o ideal desenvolvimentista, que
objetivava a atualização do país em todos os setores.

Debate teórico-conceitual sobre as imagens

Neste ponto é preciso fazer uma digressão para entendermos de que modo as
fotografias de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho podem ser entendidas em
termos conceituais, visto que os vários autores que pensaram a respeito de tais imagens
(e não apenas as destes artistas) as denominam de modos bastante diferentes. É preciso
definir estes modos, a fim de melhor entender as implicações de cada um deles.
As fotografias de Geraldo de Barros e José Oiticica Filho podem ser inseridas
na ideia de “campo expandido” da fotografia. Segundo Rubens Fernandes Júnior,
criador da ideia,

A fotografia expandida existe graças ao arrojo dos artistas mais


inquietos, que desde as vanguardas históricas, deram início a esse
percurso de superação dos paradigmas fortemente impostos pelos
fabricantes de equipamentos e materiais, para, aos poucos, fazer
surgir exuberante uma outra fotografia, que não só questionava os
padrões impostos pelos sistemas de produção fotográficos, como
também transgredia a gramática do fazer fotográfico.15

Rubens Fernandes Júnior, influenciado por Flusser, apresenta uma


ideia geral de transgressão do fazer fotográfico tal como foi concebido desde
o surgimento do aparelho fotográfico, utilizado amplamente pelos fotógrafos
documentais, como Atget, Bresson ou Salgado. Assim, as experimentações feitas
por Geraldo de Barros e José Oiticica Filho estariam incluídas nesta concepção,
visto que elas alargam o campo de atuação da fotografia, aproximando-o do campo
artístico, por exemplo. Mas as práticas fotográficas constituintes deste “campo
12
Oiticica: “fotografia se faz no laboratório”, Jornal do Brasil, 24/08/1958, suplemento dominical de artes plásticas.
13
Herkenhoff (1984, p. 19).
14
Gershmann (1992).
15
Rubens Fernandes Júnior (2006, p. 11).
95 Carolina Etcheverry

expandido”, principalmente na contemporaneidade, são muitas, o que torna este


um termo de aplicação operacional genérica.
Em catálogo publicado em 1936, pelo Museu de Arte Moderna de Nova
Iorque, Alfred Barr,16 curador da exposição Cubism and abstract art, cunha o
termo “fotografia abstrata”. Usando como exemplo os artistas Man Ray (com suas
rayografias), Moholy-Nagy e Bruguiere, Barr descreve em poucas linhas o que ele
acredita ser a fotografia abstrata. Assim, no texto do catálogo, Barr explica:

Man Ray foi também um pioneiro na fotografia abstrata.


Ele foi provavelmente o primeiro a fazer uso da técnica
rayográfica para fazer composições abstratas. Ao fazer uma
rayografia, nenhuma câmera é usada; objetos são colocados
diretamente sobre o papel sensível que então é revelado. Com
objetos como um matador de moscas, um ovo de cerzir, anéis
de metal e um cacho de cabelo, Man Ray obteve composições
de grande sutileza (fig. 186, 187). Elas foram aclamadas
pelos companheiros dadaístas de Man Ray pela sua técnica
“antiartística” e aparentemente casual, mas muitas delas são,
de fato, trabalhos de arte completos diretamente relacionados
com a pintura abstrata e não ultrapassados no seu medium.
O húngaro Moholy-Nagy, antigo professor da Bauhaus de
Dessau, foi, até sua recente mudança para Londres, um dos mais
inventivos e originais mestres do fotograma (fig. 188), outro
nome do rayograma.
Francis Bruguiere, um americano morando em Londres, usa a
câmera na feitura de fotografias abstratas de luz caindo em papel
branco dobrado ou amassado.17

Nota-se que o autor, nestas poucas linhas, tenta organizar o conhecimento a


respeito destas fotografias que fogem aos padrões normais do que seria uma fotografia
– cópia do real, mimética por natureza. Utiliza-se do termo usado nas artes que
estão, neste momento, recém se consolidando, e o aplica para o caso da fotografia
feita por artistas. Não por acaso, acreditamos, Barr deixa alguns fotógrafos de fora,
como Alvin Langdon Coburn, que neste momento também fazia experimentações no
campo expandido da fotografia. Se optasse por incluir Coburn, que atua apenas como
fotógrafo, talvez tivesse que rever a ligação estabelecida com a pintura abstrata.
Coburn, segundo Helmut Gernshein,18 foi o primeiro a fazer fotografias
abstratas. Este fotógrafo acreditava que as possibilidades da câmera fotográfica
ainda não haviam sido exploradas completamente, e, por isso, iniciou uma série de
16
Alfred Barr (1974).
17
Ibidem, p. 170, tradução nossa.
18
Helmut Gernsheim (1990).
96 História da fotografia moderna brasileira

experimentos que culminariam na série Vorticism (na qual ele se utiliza de prismas
para criar a imagem). Também foi o responsável pela organização de uma exposição
de fotografia abstrata, na qual buscava a “apreciação do extraordinário”. Entretanto,
no caso de Gernsheim – conhecido fotógrafo e historiador da fotografia – o termo
“fotografia abstrata” não tem um uso crítico, apenas operatório.
Na esteira desta terminologia, Paulo Herkenhoff, em 1983, escreve para o
catálogo da exposição de fotografias de José Oiticica Filho aquilo que entende por
fotografia abstrata. Segundo o autor,

É preciso demarcar o significado do termo fotografia abstrata,


com o qual se pretende operar este texto. Inicialmente, opõe-
se ao figurativo: é a emergência de imagens fotográficas não
identificáveis com objetos naturais e artificiais, é um não
verismo. (...) imagens não figurativas (informais ou geométricas),
produzidas conforme os processos tradicionais (registro e cópia)
e os cânones codificados para a arte fotográfica – sem exclusão
de alguns de menor uso, como o fotograma, a solarização,
a fotomontagem, já então consagrados na história da arte
(introduzidos por Man Ray, Moholy-Nagy, Rodchenko, Grosz,
Heartfield, Haussman, El Lissitzky, Ernst, Dali, e outros).19

Assim, Herkenhoff acompanha Barr em sua terminologia e exemplo de artistas


abstratos, ainda que sua explicação seja um pouco mais complexa. A fotografia abstrata
é colocada em oposição à fotografia figurativa, reproduzindo uma dicotomia oriunda
das artes plásticas. É também colocada em condição de suspeita, já que é definida como
uma imagem fotográfica não identificável com objetos naturais e artificiais. Deixa-se
de lado outras possibilidades de abordagem, como o caráter narrativo ou descritivo da
fotografia, que é inexistente em Barros e Oiticica. Nesse caso, talvez fosse interessante
considerar termos como fotografia não narrativa ou fotografia não denotativa, como
alternativas para essa crise de conceituação de tais imagens.
Filiberto Menna,20 em texto de 1975, intitulado La opción analítica en el arte
moderno, dedica-se ao que chama de fotografia analítica, bem como elabora o termo
antifotografia. Segundo este autor, a prática analítica da arte assumiu a tarefa de
desmascarar a pretensão da fotografia de figurar como equivalente da visão natural.
Esta concepção revela a natureza convencional, histórico-cultural que permeou
as ideias sobre a fotografia desde o seu início. Entretanto, Menna, em sua análise,
desarticula este postulado, ao considerar especialmente os fotogramas, dentro do que
Moholy-Nagy afirmou sobre estes:

19
Paulo Herkenhoff (1983, p. 13).
20
Filiberto Menna (1977, p. 50-52, tradução nossa).
97 Carolina Etcheverry

A concreção do fenômeno da luz é peculiar no processo


fotográfico e a nenhuma outra invenção técnica. A fotografia
sem câmera (a construção de fotogramas) se embasa nisto.
O fotograma é uma realização de tensão espacial em branco-
preto-cinza (...). Embora careça de conteúdo representativo, o
fotograma é capaz de evocar uma experiência ótica imediata,
baseada na nossa organização visual psicobiológica.21

Assim, o fotograma traduz o objeto em motivo luminoso não figurativo,


criando uma relação ótica elementar, parecida com a pintura construtivista. O autor
não menciona o termo fotografia abstrata, mas elabora uma série de técnicas de
détournement, tais como fotomontagem, solarização, negativo, uso de objetivas
especiais e lentes deformadoras, que definiriam a elaboração de “antifotografias”:

Em definitivo, se trata de verdadeiras “antifotografias”, que


pulverizam as expectativas do espectador, destroem a confiança
nas qualidades reprodutivas do medio, em suma, provocam uma
espécie de “ginástica mental” que desloca a atenção do referente
ao signo linguístico.22

Estas antifotografias colocam em discussão o que Menna chama de “iconismo


fotográfico”, que vem a ser a importância da representação figurativa na fotografia.
As fotografias nas quais não há elementos denotativos, tais como os fotogramas,
as múltiplas exposições, e todas as outras imagens produzidas sem que o referente
seja identificado pelo espectador, podem ser enquadradas como antifotografias, pois
criam um sentimento de suspeita, contribuindo para a complexidade da imagem.
Em 1977, Rosalind Krauss escreveu o texto Photography and abstraction, no
qual desenvolveu uma análise bastante filosófica e semiótica a respeito da possível
existência de fotografias abstratas, contrapondo-se à concepção de Barr. A autora
inicia o artigo analisando uma fotografia de um exercício sobre luz e superfície,
realizado na Escola da Bauhaus, que consistia em dobrar uma folha de papel
formando pregas ritmadas, para, ao receber uma forte luz rasante, se tornar um jogo
de puro desenho, formas visuais puras. Este jogo abstrato de relações e inversões de
figura e fundo para nós é uma fotografia. Krauss afirma que

Esta fotografia não é a demonstração das condições abstratas


da visão. Ela o é de algo, é a marca documental daquela coisa
que foi registrada fotoquimicamente na película, a imagem de
uma folha de papel recortada e dobrada. Não pode livrar-se desta
condição. Lissitzky, Moholy-Nagy, Man Ray, Brugière, Berenice
21
László Moholy-Nagy apud Filiberto Menna (1977, p. 50, tradução nossa).
22
Filiberto Menna (1977, p. 51, tradução nossa).
98 História da fotografia moderna brasileira

Abbott, Imogen Cunningham... nenhum deles a defendeu, ainda


que tenham experimentado com a “fotografia abstrata”.23

Assim, o conceito de fotografia abstrata começa a ser questionado, trazendo


um problema para o desenvolvimento da pesquisa sobre Geraldo de Barros e José
Oiticica Filho. Percebe-se que foi um termo operativo cunhado por críticos, e não
pelos próprios artistas e fotógrafos. As fotografias feitas por Geraldo de Barros a
partir de cartões perfurados não seriam, dentro da lógica de Krauss, uma abstração.
Sabemos que aqueles são cartões perfurados, mas o modo como o autor os fotografa
abre uma dúvida, ou uma suspeita, a respeito de sua identificação. É por esse motivo
que o termo, também de certo modo genérico, fotografia sem referente claramente
identificável, parece, em alguns casos, mais apropriado.
Rosalind Krauss vai além em sua análise, e, ao chegar no punctum barthesiano,
a autora afirma que “esta ferida infligida pela fotografia existe em função da maneira
como a foto entrega o real de seus conteúdos, marcando-lhes não apenas com o ser
– “isto é” –, mas de forma irrevogável com o tempo: “isto foi”.24 A autora coloca,
assim, a questão da relação da fotografia com o passado e com o acontecimento. O
que, segundo ela, ocorre no caso de fotografias supostamente abstratas – para isso
ela utiliza fotografias de James Welling – é uma queda na “incerteza” e no “silêncio”.
“Vemos o referente, mas não o reconhecemos. Perdemos o encontro.”25
O trabalho de Welling é baseado em um diário escrito por sua tataravó
em 1840. As fotografias do diário criaram um marco para o que o artista buscava:
“uma fotografia que não entregara o presente (fotografia de rua, do cotidiano, do
instante decisivo), mas que, ao apresentar uma distorção temporal, colocou a ele e
aos espectadores em contato com um passado que se encontrou demasiado tarde”.26
Por isso a perda do encontro.
Torna-se tarde para reconhecer o objeto fotografado. Krauss, para explicar
esta ideia, apropria-se do termo tuché, usado por Lacan e transformado por Barthes
no punctum. Esta palavra indica “a realidade perdida, a realidade que já não pode
produzir a si mesma a não ser repetindo-se incessantemente em um despertar jamais
alcançado”.27 Assim também o punctum faz com que o real seja tanto aquilo que eu
perdi como o que estarei obrigado a reproduzir a partir de então por repetição. É por
isso que Welling refotografa os lugares por onde sua tataravó passou, sobrepondo-
as às páginas do diário escrito por ela, obtendo assim uma imagem obscura, não
claramente identificável, “abstrata”.
23
Rosalind Krauss (2004, p. 231, tradução nossa).
24
Ibidem, p. 233.
25
Ibidem, p. 235.
26
Rosalind Krauss, loc. cit.
27
Rosalind Krauss, loc. cit.
99 Carolina Etcheverry

Por fim, em texto de 1984, intitulado A ilusão especular, Arlindo Machado


mostra-se negativo em relação à própria possibilidade de existência de fotografia
abstrata, devido, justamente, às suas características formativas. Segundo ele:

É curioso constatar que as fotografias ditas “artísticas” sejam,


no geral, bem pouco severas em relação à ilusão especular
e permaneçam, apesar de tudo, figurativas, por mais que
tentem disfarçar essa condição com arranjos harmônicos e
composições “musicais”. (...) Daí o equívoco fundamental
de José Oiticica Filho ao supor que poderia, numa certa fase
de sua obra, construir uma fotografia “abstrata”, debruçando-
se sobre motivos informais, como traçados de tinta sobre
vidro rugoso. O momento de abstração nas fotos de Oiticica
é anterior à fotografia propriamente dita: por essa razão, tais
fotos “abstratas” não são nem um pouco menos figurativas que
qualquer pimentão hiper-realista de Edward Weston. É que,
em quaisquer circunstâncias, a câmera e a película gelatinosa
foram concebidas para possibilitar a emergência da figura,
sem deixar brechas para qualquer outra exploração que não o
ilusionismo de “real”.28

Nota-se que o que parece ser fácil – encontrar um termo justo para referir-se a
determinadas fotografias – mostra-se, em realidade, uma reflexão bastante profícua.
Percebe-se que o termo “fotografia abstrata” não explica por si só as imagens
fotográficas de Barros, Oiticica Filho e muitos outros. Ela apenas refere-se ao fato
de que o objeto da fotografia não se faz claro aos nossos olhos, mostra-se à nós
de maneira “abstrata”. Mas se a fotografia é o registro de luz emanada por objetos
reais em uma superfície fotossensível, é possível pensar em abstração, em oposição
à existência de uma figura? Não seria mais apropriado buscar outros modos de
referir-se a determinadas imagens, sem engessá-las em uma terminologia demasiado
genérica e, por vezes, inapropriada? Em alguns casos, fotografia não narrativa
basta, em outros é preciso ir além, identificando-a como fotografia construtiva, de
composição geométrica, com referente não identificável, não denotativa – o que
melhor se aplicar à fotografia que se tem à frente.
O debate dos críticos: uma revisão historiográfica
Sobre Geraldo de Barros e José Oiticica Filho, foram escritos alguns textos,
de pesquisadores e críticos de renome, que servem como baliza para uma primeira
aproximação à pesquisa sobre tais personagens. Ao revisar tais textos, pretendemos
reafirmar a importância que tiveram na divulgação e na valorização do trabalho destes
fotógrafos no contexto da fotografia nacional. Assim, trataremos de textos de Pietro
28
Arlindo Machado (1984, p. 155).
100 História da fotografia moderna brasileira

Maria Bardi, Radhá Abramo, Annateresa Fabris, Maria Teresa Bandeira de Mello,
Antonio Fatorelli, Helouise Costa, Paulo Herkenhoff, Heloísa Espada Lima e Paulo
Henrique Camargo Batista. Entre artigos, ensaios, capítulos de livros e dissertações
de mestrado, pretendemos mostrar como estes fotógrafos foram construídos enquanto
objeto de estudos pelos mais diversos autores, preocupados em sistematizar o estudo
a respeito das obras de Geraldo de Barros e José Oiticica Filho.
Procurando manter uma ordem cronológica na abordagem dos textos, de
modo que fique visível a tentativa de reconstrução crítica da historiografia a respeito
destes fotógrafos, parece-nos conveniente iniciar este percurso pensando sobre dois
pequenos ensaios, escritos por Pietro Maria Bardi, em 1950, para o catálogo da
exposição de Geraldo de Barros, Fotoformas, e por Radhá Abramo, em 1977, para o
catálogo da exposição Geraldo de Barros: 12 anos de pintura 1964 a 1976, realizada
no MAM-SP, em 1977.29 Bardi inicia este ensaio para o catálogo da exposição
Fotoformas afirmando que Barros tinha a composição como um dever, transformando
segmentos lineares em harmonias formais agradáveis. Para o autor, o fotógrafo
utiliza a fotografia como meio de fugir dos verismos da pintura, pois, ainda que a
fotografia seja um meio verista por excelência, ela também “se presta a transformar
a sensação numa expressão sem “artisticidade”, pura derivação de sombras e por
isso mais ligada à abstração”.30 Bardi encerra a apresentação às fotografias de
Geraldo de Barros anunciando sua viagem de estudos a Paris, da qual ele voltaria,
certamente, muito enriquecido. O texto de Radhá Abramo busca apresentar o artista
e sua criação, por ocasião de sua exposição de pinturas. A autora não aborda tanto as
fotografias quanto suas pinturas, que são caracterizadas por ela como “ambíguas”.31
Entretanto, ao traçar a biografia de Barros, Abramo acaba por pincelar sua pesquisa
fotográfica, elencando seu papel na organização do Laboratório de Fotografia do
Masp, em 1949, e sua participação em inúmeras exposições fotográficas, nas quais é
inclusive fotógrafo premiado.
Paulo Herkenhoff32 escreveu três textos importantes para o tema em estudo.
O primeiro deles, de 1983, é sobre José Oiticica Filho, e os dois últimos, de 1987 e
1989, são sobre Geraldo de Barros. O texto A trajetória: da fotografia acadêmica
ao projeto construtivo busca traçar um panorama da obra de José Oiticica Filho,
enumerando as quatro fases pelas quais o fotógrafo teria passado: o utilitário, o
fotoclubista, o abstrato e o construtivo. Segundo Herkenhoff,

A obra de José Oiticica Filho representa uma experiência


radical de ruptura na história da fotografia brasileira. O seu
29
Estes dois ensaios encontram-se no livro de Geraldo de Barros (2006, p. 137-138).
30
Pietro Maria Bardi apud Geraldo de Barros (2006, p. 137).
31
Radhá Abramo apud Barros (2006, p. 138).
32
Paulo Herkenhoff é um dos principais críticos de arte e curadores do Brasil.
101 Carolina Etcheverry

percurso, desde a participação no movimento fotoclubístico


até o engajamento com o projeto construtivo, testemunha um
equilíbrio entre o rigor técnico e uma inquietação intelectual
questionadora.33

Desse modo, Herkenhoff estabelece categorias e relações para as diferentes


imagens produzidas por Oiticica Filho, buscando também precedentes, paralelos,
contatos e, por fim, a atualidade do fotógrafo no momento da arte brasileira
contemporânea. Este é, com certeza, um dos mais importantes e completos textos
produzidos sobre José Oiticica Filho até o momento. E já se passam mais de 20 anos.
No texto A imagem do processo, de 1987, Paulo Herkenhoff contextualiza
Geraldo de Barros como fotógrafo que busca a ruptura com a ordem vigente.
Segundo ele,

É como fotógrafo que Geraldo de Barros fará sua inserção


radical no processo cultural brasileiro, no momento da criação
dos museus no Rio de Janeiro e São Paulo, da Bienal e sobretudo
das discussões sobre o abstracionismo e a formulação do
processo construtivo.34

O autor continua sua análise abordando o que chama de “projeto atualizador


do fotoclubismo”, ao qual Barros propõe uma ruptura, visto que suas fotografias
operam no campo da percepção visual como construção abstrata, bem ao contrário
dos postulados pictorialistas vigentes até então no ambiente fotoclubista. Geraldo de
Barros, assim como José Oiticica Filho, vive um impasse entre a busca do abstrato
e a permanência da figuração, sendo que a “abstração”, para ele, é uma oposição à
fotografia realista.35 Segundo Herkenhoff, a importância da obra de Barros está na
construção do signo e na fundação de uma outra fotografia. Ele estabeleceu uma
nova lógica do olhar, com a ruptura das antigas certezas abalizadas pela fotografia.36
O autor encerra o artigo afirmando que Geraldo de Barros, assim como José Oiticica
Filho, a quem ele nunca conheceu, é desarticulador da fotografia, corrompendo os
cânones fotoclubistas, que eram, até então, as únicas alternativas para uma fotografia
artística. Além de desarticulador de processos, imagens e mecanismos lógicos da
fotografia, Barros também desarticula o tempo da imagem, ao não associá-la a um
momento decisivo, mas a um processo construtivo.37
33
Paulo Herkenhoff (1983, p. 10).
34
Paulo Herkenhoff apud Barros (2006, p. 147). Este texto foi publicado originalmente no jornal Folha de São
Paulo, em 23 de outubro de 1987.
35
Ibidem, p. 148.
36
Ibidem, p. 149.
37
Ibidem, p. 150.
102 História da fotografia moderna brasileira

No texto Geraldo de Barros: a renovação e a constância, de 1989, Herkenhoff


segue afirmando a importância do fotógrafo enquanto agente da dessacralização
da fotografia no Brasil da década de 1950. Destaque deste artigo, e diferencial em
relação ao anterior, é a ênfase do autor no processo de desenvolvimentismo que se
instaura no Brasil nesta época. Depois de contextualizar amplamente o ambiente
favorável à cultura nos anos 1950, passando, desde o próprio desenvolvimentismo
até a poesia e a crítica de arte, Herkenhoff coloca Barros dentro do movimento
concretista paulista, do qual o fotógrafo faz parte com suas pinturas e como um dos
signatários do Manifesto Ruptura. Assim, o autor afirma que

As linguagens construtivas na América Latina, florescentes


desde a década de 1940 até os anos 1960, na Argentina, Uruguai,
Brasil, Colômbia e Venezuela, estão em relação com os planos
de uma cultura organizada nos sonhos de modernização e
desenvolvimento.38

Na mesma linha, o autor encerra o artigo afirmando que, nos anos 50, a
arte concreta podia ser relacionada com a utopia do desenvolvimento nacional.
Do mesmo modo, as fotografias de Geraldo de Barros podem ser entendidas como
pertencentes a este ideal, em razão do rigor compositivo. Todos os textos de Paulo
Herkenhoff têm como mérito o fato de terem realizado um apanhado crítico da obra
destes fotógrafos, alçando-os a um outro patamar de reconhecimento pelo público e
pelos estudiosos acadêmicos.
Merece destaque também o livro A fotografia moderna no Brasil, publicado em
1995, com reedição em 2004, escrito por Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva.
Este livro pioneiro tem a importância de trazer à tona a formação de uma fotografia
moderna brasileira, gestada no Foto Cine Clube Bandeirante (FCCB), em São Paulo.
No que tange Geraldo de Barros e José Oiticica Filho, os autores os colocam como a
expressão máxima da fotografia moderna no Brasil. Geraldo de Barros ganha destaque
por ser o primeiro fotógrafo moderno, membro do FCCB a intervir no processo clássico
de produção da fotografia – fotografar, revelar, ampliar –, “dando corpo a um profundo
questionamento dos limites da linguagem fotográfica”.39 Esta liberdade a que Barros
se permitia ao criar suas imagens o manteve ao largo das atividades do fotoclube, que,
na época, não se encontrava aberto aos seus experimentos fotográficos. Entretanto, o
fotógrafo, como já mencionado anteriormente, teve profunda influência nas relações
entre o FCCB e a Bienal de São Paulo.

38
Paulo Herkenhoff apud Geraldo de Barros (2006, p. 157). Este texto foi publicado originalmente em 1989, para o
catálogo da exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
39
Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva (2004, p. 43).
103 Carolina Etcheverry

Os autores destacam José Oiticica Filho como tendo grande importância no


ambiente fotoclubista carioca, sendo um dos principais divulgadores da sensibilidade
moderna. E acrescentam:

No entanto, enquanto o bandeirante lançava-se à experiência


renovadora com a atuação dos pioneiros, José Oiticica Filho
continuava preso ao academismo, sendo um defensor ardoroso
dessa estética.40 Somente a partir da segunda metade da década
de 1950 ele implementou mudanças em sua produção, o que
determinou o seu afastamento do fotoclubismo carioca e uma
maior aproximação do Foto Cine Clube Bandeirante, onde seu
trabalho de características modernas pôde ser divulgado.41

No FCCB, Oiticica Filho é visto como “um dos mais destacados mestres do
abstracionismo fotográfico com suas derivações e recriações”.42 Com esta análise,
Costa e Silva reafirmam a importância do trabalho do fotógrafo, e mostram como
este passou pelas diversas fases da fotografia, como apresentado por Herkenhoff.
Na edição de 1995 do livro, os autores encerram a parte dedicada à Oiticica Filho
situando-o não como pioneiro da fotografia moderna, mas como pertencente à fase
de diluição desta experiência. Já na edição de 2004 há uma reformulação desta
posição, como é possível perceber no seguinte excerto:

Por fim, é importante ressaltar que no contexto da fotografia


brasileira a produção de caráter abstracionista de José Oiticica
Filho constitui um segundo momento, cabendo situá-lo como
precursor em relação ao ambiente carioca. De fato, ele foi um
fotógrafo que atuou de modo mais sistemático na ampliação das
possibilidades dessa estética. Assim, o trabalho do artista deve
ser localizado a partir de sua aguçada sensibilidade plástica,
materializada em uma pesquisa de grande potencial reformulador
no universo mais amplo das artes plásticas no Brasil.43

Com isto podemos perceber que houve, por parte dos autores, uma percepção
de que José Oiticica Filho extrapola o ambiente fotoclubista, sendo considerado um
artista que explora seu potencial poético através da fotografia, em consonância com
o panorama das artes visuais brasileiras.

40
Neste sentido José Oiticica Filho tem uma série de artigos publicados a respeito das principais técnicas pictorialistas
de fotografar.
41
Ibidem, p. 72.
42
Ibidem, p. 73.
43
Ibidem, p. 75. Ver também a edição de 2005 da obra: Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva. A fotografia
moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte/IPHAN/Editora UFRJ, 2005.
104 História da fotografia moderna brasileira

O texto de Annateresa Fabris, A fotografia além da fotografia: José Oiticica


Filho (1947-1995),44 dialoga, em termos de ideias, com o que Maria Teresa Bandeira
de Mello45 escreve a respeito de suas fotografias em texto do mesmo ano. Ambas
enfatizam o caráter pictorialista da obra de Oiticica Filho, que teria se mantido
mesmo nas fases posteriores do fotógrafo. Para Fabris, “José Oiticica Filho afirma-se
aos olhos do público como mais um adepto do fotopictorialismo”.46 Ainda segundo
a autora, mesmo suas fotografias da fase utilitária não podem ser dissociadas de seu
interesse pelo pictorialismo. Para Fabris,

Se, de fato, luz e superfície são questões fundamentais para


o Oiticica pós-pictorialista, o que não se pode deixar de levar
em conta – e é isso o que o distancia da atitude dos fotógrafos
evocados por Herkenhoff – é que sua visão de fotografia
continua a ser informada pelos postulados da estética que ia
abandonando.47

Os fotógrafos evocados por Herkenhoff são Moholy-Nagy e Rodchenko,


que pretendiam, através da fotografia, atingir uma “nova visão”. A autora, neste
caso, afirma que os princípios norteadores de José Oiticica Filho ainda são os do
pictorialismo. Segundo ela, “Oiticica supervaloriza o papel da técnica, detectando o
nascimento da fotografia no trabalho de laboratório, ‘quanto se graduam os cinzas,
as luzes, o corte’”.48 Fabris refere-se à célebre entrevista concedida pelo fotógrafo a
Ferreira Gullar, em 1958, no qual ele afirma a importância do trabalho em laboratório
na criação das fotografias.49 Maria Teresa Bandeira de Mello, na mesma linha de
Annateresa Fabris, afirma o seguinte a respeito das obras de Oiticica Filho: “É
curioso observar que, mesmo depois de se libertar dos cânones fotoclubistas e de se
entregar a experimentações modernizadoras, ainda podem ser encontradas em suas
obras semelhanças com a concepção de fotografia pictorialista”.50
A seguir, Fabris analisa duas fotografias que, para ela, são o marco da
transição de Oiticica, do pictorialismo para a abstração: Triângulos semelhantes e
Um que passa, ambas de 1953. Segundo ela,

Em duas composições de 1953, Triângulos semelhantes e Um que


passa, as preocupações geometrizantes do fotógrafo emergem
de imediato, enfatizadas pelo contraponto definido pela presença
44
Annateresa Fabris (1998).
45
Maria Teresa Bandeira de Mello (1998).
46
Annateresa Fabris (1998, p. 69).
47
Ibidem, p. 71.
48
Ibidem, p. 74.
49
Cf. Oiticica: “fotografia se faz no laboratório”, Jornal do Brasil, 24/08/1958, suplemento dominical de artes plásticas.
50
Maria Teresa Bandeira de Mello (1998, p. 120).
105 Carolina Etcheverry

da figura humana. A luz adquire uma conotação construtora ao


contrário do efeito dramático que desempenhava no momento
pictorialista. (...) O mesmo contraste entre abstração e presença
do referente preside também Composição óbvia (1954-55), na
qual Oiticica aprofunda mais a procura do campo bidimensional
e a definição da fotografia em termos requintadamente tonais.51

Logo a seguir, apoiando-se em excertos da entrevista de Oiticica Filho


de 1958, a autora conclui que o afastamento cada vez maior do referente é uma
estratégia do fotógrafo para produzir obras de arte, visto que ele acreditava mais no
resultado que se consegue obter no laboratório do que na produção da fotografia em
si. Seguindo seu percurso de análise, a autora chega às Derivações e Recriações,
as quais “exibem, por vezes, parentesco com a abstração informal dos anos 50”.52
Analisando a série seguinte de suas obras, as Formas, Fabris afirma que “ao mesmo
tempo em que está engajado na exploração da abstração informal, na estruturação de
campos matéricos, de relações sutilmente tensionadas, Oiticica busca também uma
linguagem de caráter construtivo que se resolve, de início, na série Formas”.53
Annateresa Fabris, por fim, enfatiza que José Oiticica Filho estava preocupado
em pesquisar as “possibilidades da fotografia para além da fotografia”, com isso
querendo dizer que todas as manipulações por ele feitas nas imagens tinham como
objetivo colocar tais imagens mais próximas da arte do que da própria fotografia,
negando o específico fotográfico. O cerne da análise da autora pode ser resumido na
seguinte citação:

O que se detecta no Oiticica construtivo é, no fundo, um paradoxo.


A constituição de formas novas, a saída do código acadêmico
que regia a experiência fotoclubista brasileira estruturam-se
através da reedição da ideologia que guiava o fotopictorialismo,
disposto a parecer tudo menos fotografia.
Ao dizermos isso, não queremos negar a contribuição de Oiticica
à constituição de uma linguagem plástica renovada. Se ela é
fundamental, é impossível, no entanto, não perceber que Oiticica
foge, as mais das vezes, da questão do específico fotográfico
para postular uma fotografia que negue a fotografia, sem parecer
dar-se conta de que mesmo o recurso ao simulacro não o livrava
do enfrentamento com o instante. Por mais que seus modelos
fossem previamente elaborados, por mais que a imagem final
fosse o produto dos tempos longos do laboratório, por mais
que o negativo possuísse potencialidades próprias, existia a
51
Annateresa Fabris (1998, p. 75).
52
Ibidem, p. 76.
53
Fabris, op. cit.
106 História da fotografia moderna brasileira

intermediação do aparelho e, portanto, o momento do disparo no


qual o objeto se apresenta em sua conotação estrutural. Ao tentar
negar isso, Oiticica reatualiza a ideologia do fotopictorialismo,
não importa se em sentido abstrato e concreto.54

É, portanto, de suma importância a análise exaustiva realizada por Fabris, no


intuito de situar a obra de José Oiticica Filho dentro dos parâmetros tanto da história da
fotografia quanto da história da arte. Análise atenta, crítica, que vem a complementar,
por vezes deles discordando, os textos de Paulo Herkenhoff e Arlindo Machado.
Antonio Fatorelli, no texto José Oiticica Filho e o avatar da fotografia
brasileira,55 é mais positivo em relação ao trânsito de estilos do fotógrafo. Para ele,
este movimento é decorrente de um espírito investigativo, que buscava diferentes
soluções plásticas para determinados problemas. A análise de Fatorelli busca
inserir a obra fotográfica de Oiticica Filho dentro do panorama maior da história
da fotografia e do embate que esta trava entre o estatuto de realidade e a prática de
experimentações. Para este autor,

De modo condensado, e sem dispensar o brilho que acompanha


as poéticas modernas, Oiticica refez, ao longo de sua trajetória
de fotógrafo, o percurso realizado pelos principais movimentos
fotográficos precedentes, apresentando e posteriormente superando,
sucessivamente, os princípios da fotografia científica, da prática
pictorialista e da estética purista moderna. Além de atualizar estes
movimentos, a contribuição de Oiticica – particularmente de suas
imagens da década de 50, identificadas com as propostas estéticas
do movimento concretista – estende-se projetivamente às décadas
de 60, 70 e 80, prenunciando o trabalho de vários artistas plásticos
e fotógrafos, como Hélio Oiticica e Lygia Clark.56

Com isto, podemos perceber que Fatorelli busca contextualizar as pesquisas


de Oiticica Filho no campo fotográfico e também artístico, relacionando-o com
os diversos ambientes pelos quais o fotógrafo passou – fotoclubes e artístico,
especialmente – e com os quais promoveu intercâmbios criativos. O autor aponta,
também, a importância que este fotógrafo teve para a emergência da fotografia-
matéria ou pós-fotografia, na década de 1980, movimento do qual participam
fotógrafos como Rosângela Rennó e Antonio Sagesse.

54
Annateresa Fabris (1998, p. 77-8).
55
Antonio Fatorelli (2000). Fatorelli expande suas ideias sobre as diversas fases da história da fotografia, culminando
com uma expansão do campo fotográfico, um apagamento das fronteiras entre fotografia e artes visuais, através da
ideia de suspeita na fotografia, presentes neste artigo sobre José Oiticica Filho, no seu livro intitulado Fotografia e
Viagem. Ver Antonio Fatorelli (2003).
56
Antonio Fatorelli (2000, p. 141).
107 Carolina Etcheverry

Por fim, é importante situar a produção acadêmica a respeito de Geraldo de


Barros. Existem duas dissertações de mestrado, ambas de 2006, acerca do fotógrafo.
Heloísa Espada Lima escreveu a dissertação intitulada Fotoformas: a máquina
lúdica de Geraldo de Barros,57 na qual busca traçar um amplo panorama sobre a
produção das fotografias de mesmo título. A autora busca relacionar as fotografias de
Barros ao movimento construtivista e às vanguardas históricas ligadas à fotografia,
bem como investigar a participação do fotógrafo em diversos grupos e ambientes
artísticos, procurando com isso perceber possíveis influências. Também em seu
trabalho há um estudo sobre a relação de Geraldo de Barros com o crítico Mário
Pedrosa e um mapeamento do contexto cultural paulistano, no qual suas fotografias
foram gestadas. Sua dissertação constitui leitura obrigatória para todos aqueles
interessados em estudar o trabalho de Geraldo de Barros.
Da mesma forma, a dissertação de Paulo Henrique Camargo Batista,
intitulada Fotoformas: a poética do processo interventor de Geraldo de Barros na
práxis fotográfica,58 busca apresentar o trabalho de Barros a partir do ponto de vista
tecnológico, buscando entender o rompimento que o fotógrafo produz ao intervir
no processo de constituição da fotografia. O autor parte da ideia de intervenção no
processo fotográfico e do rompimento com a programação da câmera, tendo como
referencial teórico Vilém Flusser e Arlindo Machado. O ponto de vista de Batista é
o de que Geraldo de Barros é um exemplo do rompimento conceitual e estético com
o programa operatório da câmera fotográfica. Com um ponto de vista diferente do
de Heloísa Espada Lima, este também é um trabalho enriquecedor para os estudos
sobre Geraldo de Barros.

As imagens de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho


dentro do contexto da História da Fotografia brasileira
As fotografias de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho relacionam-se, em
muitos aspectos, tanto com a questão da experimentação, como com outras questões
pertinentes à história da fotografia brasileira. Para tanto, é importante abordarmos
em linhas gerais algumas dessas questões, dando uma visão panorâmica do ambiente
no qual os fotógrafos estavam inseridos, e do qual tinham amplo conhecimento.
É importante observar, em primeiro lugar, que suas imagens discutem de
modo incisivo as funções da fotografia, seu estatuto em relação à realidade.59 Este
debate sobre o estatuto da fotografia não é privilégio de Barros ou de Oiticica Filho,
bem como não se inicia no século XX. Entretanto, é interessante notar que, ao
experimentarem com diferentes formas de fotografar, obtendo resultados que não
57
Heloísa Espada Lima (2006).
58
Paulo Henrique Camargo Batista (2006).
59
Sobre este tema, ler Philippe Dubois (2003) e Maria Teresa Bandeira de Mello (1998).
108 História da fotografia moderna brasileira

privilegiam a mimese do real, estes fotógrafos estão, de certo modo, subvertendo


o estatuto “principal” da fotografia, que seria o de reproduzir fielmente a realidade
que se encontra na frente do fotógrafo. Este seria apenas um observador apto a
registrar fielmente aquilo que vê, contribuindo para um inventário neutro e realista
do mundo. O que podemos depreender das imagens dos fotógrafos em estudo é uma
necessidade de criação a partir da fotografia, e não de simples reprodução. Assim,
a câmera fotográfica, ou os meios de impressão fotográfica, permitem a eles criar
diferentes formas visuais, que desafiam o olhar do espectador.
Este debate pode ser percebido, por exemplo, ao analisarmos as diferentes
experiências fotoclubísticas, tanto nacionais quanto internacionais. Os primeiros
fotoclubes foram marcados pela presença do pictorialismo, que procurava aproximar
a fotografia da arte utilizando recursos “artísticos”, ou que faziam com que o
resultado final parecesse artístico, através de diferentes técnicas. Segundo Maria
Teresa Bandeira de Mello,

O movimento pictorialista não mantém com a pintura uma


relação de mera imitação. Ao contrário, estabelece uma
correspondência entre ambas que impulsiona a fotografia a
elevar-se ao nível da pintura, e, nesta situação de igualdade,
reivindicar o estatuto de arte.60

Devemos ter em mente a diferença entre pictorialismo e experimentação na


fotografia. O segundo procura reivindicar o estatuto de arte para a fotografia a partir
da exploração do potencial artístico intrínseco ao meio fotográfico. É na expansão da
fotografia que ela se torna artística, dialogando com as artes visuais do período. Já o
pictorialismo buscava inserir diversas técnicas no processo fotográfico, a fim de que
o resultado final parecesse artístico.
Se nos mantivermos apenas no caso brasileiro, para facilitar nossa análise,
podemos perceber que, com os anos, a experiência fotoclubística vai se alterando,
caminhando do fotoclube voltado ao pictorialismo àquele voltado à fotografia moderna.
José Oiticica Filho pode ser considerado um exemplo desta trajetória. Primeiramente
membro do Photo Club Brasileiro,61 do Rio de Janeiro, marco maior do pictorialismo
no Brasil, passou a ser membro do Foto Cine Clube Bandeirante, considerado, por sua
vez, marco da fotografia moderna brasileira. Suas fotografias refletem esta trajetória,
visto que, no início, temos fotografias como Um que passa, de 1949, para, quase dez
anos depois, em 1958, nos depararmos com as fotografias intituladas Recriações.

Maria Teresa Bandeira de Mello (1998, p. 16).


60

O Photo Club Brasileiro foi fundado em 1923. O primeiro fotoclube de que se tem notícias no Brasil foi o Sploro
61

Photo Club, fundado em 1903, em Porto Alegre. Este foi seguido pelo Photo Club do Rio de Janeiro, de 1910 e pelo
Photo Club Hélios, em 1916, em Porto Alegre.
109 Carolina Etcheverry

À parte do movimento fotoclubista, temos a presença das fotomontagens no


cenário da história da fotografia brasileira. Os principais nomes são Jorge de Lima e
Athos Bulcão.62 Conforme Tadeu Chiarelli,

Excetuando esses exemplos bastante frágeis para configurar


um corpus de real significação, o uso da fotografia por
artistas e intelectuais modernistas ficou confinado, até muito
recentemente, a duas contribuições muito específicas, ligadas à
fotomontagem. Refiro-me às fotomontagens do poeta e pintor
Jorge de Lima, realizadas entre os anos 30 e 40, e àquelas do
artista plástico Athos Bulcão, cujas produções remontam à
primeira metade dos anos 50.
Mais recentemente, tornou-se público que Alberto da Veiga
Guignard – respeitado como um dos principais pintores modernistas
–, igualmente ocupou-se da fotografia, mais especificamente, da
fotomontagem. Dentro dessa escassez de produções fotográficas
de âmbito modernista, parece-me no mínimo curioso o fato de
as produções daqueles modernistas que mais se dedicaram à
fotografia gravitarem em torno da fotomontagem. Em torno de uma
fotomontagem, diga-se, fortemente vinculada ao surrealismo (...).63

Com este breve panorama, que certamente deixa de lado algumas nuances da
história da fotografia brasileira,64 como, por exemplo, a importante participação da
fotografia nas revistas ilustradas e nos jornais, pretendemos mostrar que a fotografia
começou a ganhar espaço na cultura brasileira. A história da cultura visual não pode
deixar de lado estes aspectos aqui abordados.

As imagens de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho


dentro do contexto das Artes Visuais

Dentro do contexto das artes visuais, é possível relacionar Geraldo de


Barros e José Oiticica Filho com o movimento concretista e neoconcretista, que
dominaram a cena artística nacional dos anos 1940 aos anos 1960, pelo menos. Suas
fotografias são marcadas pelo diálogo constante com as artes visuais de sua época,
estabelecendo, portanto, uma visualidade bastante específica.
No final da década de 1940, com intervalo de apenas um ano, surgem em São
Paulo dois museus de arte, decorrentes da iniciativa privada de grandes empresários.
62
Sobre eles, ler Tadeu Chiarelli (2003).
63
Tadeu Chiarelli (2003, p. 70).
64
Escolhemos deixar o fotojornalismo de lado não por este não ser importante, mas por não estar tão diretamente
ligado à fotografia voltada para as artes visuais.
110 História da fotografia moderna brasileira

Em 1947, Assis Chateaubriand, diretor dos Diários Associados e fundador da TV


Tupi, criou o Museu de Arte de São Paulo, o Masp. No ano seguinte, Francisco
Matarazzo, dirigente de um grande complexo industrial, criou o Museu de Arte
Moderna de São Paulo, o MAM.
Segundo Míriam Gershmann,65 estes museus nascem dentro do ideal
desenvolvimentista, que objetivava a atualização do país nos mais diversos setores,
inclusive no setor cultural. De acordo com Francisco Alambert e Polyana Canhête,

as ações e mutações promovidas pelo capital privado na esfera


da cultura na cidade de São Paulo irão instalar uma nova etapa no
processo de formação, transmissão e recepção da arte moderna:
a “era dos museus” (...).66

Conforme Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger,67 o surgimento dos


primeiros núcleos de artistas abstratos no Rio e em São Paulo ocorre entre 1948 e
1949, criando uma oposição entre os artistas brasileiros. Artistas como Di Cavalcanti
e Portinari mostram-se contrários a essa vertente não figurativa, pois seria uma arte
que se afasta da realidade, “a abolição da ‘figura’ isola a obra do artista de uma
visualidade reconhecível, e, o que é mais grave, da realidade social de seu povo”.68
A arte abstrata se afastaria dos ideais de nacionalidade que permearam os trabalhos
dos artistas da Semana de 22.69
Ao mesmo tempo em que este debate ocorria, José Oiticica Filho estava
fazendo fotografias dentro do ideal pictorialista dos fotoclubes – sua segunda fase
– e Geraldo de Barros já estava iniciando suas precursoras experiências envolvendo
a fotografia e suas possibilidades plásticas. Em 1949 ele foi convidado, junto com
Thomaz Farkas e German Lorca, a montar o laboratório fotográfico do recém-criado
Museu de Arte de São Paulo (Masp). Segundo Helouise Costa,70 foi assim que Barros
teve acesso a um espaço fora do Foto Cine Clube Bandeirante para realizar suas
fotografias no campo da abstração. E isso é marcante para estabelecer sua relação
com as artes visuais do período.
Para a formação dos artistas brasileiros no campo da abstração, a Bienal
de São Paulo foi de suma importância. Marcada pela presença de importantes
artistas abstratos, como Max Bill (que introduz ideias concretistas no país), na
Primeira Bienal,71
65
Miriam Gershmann (1992).
66
Francisco Alambert e Polyana Canhête (2004, p. 26).
67
Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger (1987).
68
Idem, p. 11.
69
É importante observar que na Semana de 22 não houve espaço para a fotografia ou o cinema. Os “novos” meios
mecânicos não foram incluídos como arte moderna. Sobre isso, ver Ricardo Mendes (2003).
70
Helouise Costa e Renato R. da Silva (2004).
71
Na I Bienal, em 1951, Max Bill e Ivan Serpa ganharam prêmios com trabalhos em abstração.
111 Carolina Etcheverry

as primeiras edições da Bienal foram profundamente cortadas


por polêmicas calorosas (e por vezes maniqueístas), sobretudo
entre os críticos que atacavam os “formalismos modernos”,
responsabilizando-os por esvaziar o valor social e militante da
arte, contra os defensores das “novas formas” de intervenção e
corte (...), do abstracionismo, tanto geométrico quanto formal –
que, aliás, também estavam em confronto uns com os outros.72

Assim, é possível ver que estava em jogo um debate não apenas entre
figuração e abstração, mas também entre os diferentes tipos de abstração. Este debate
ocorre também na fotografia, ainda que de forma marginal. Marcada pela homologia
com o real, a fotografia sempre foi figurativa, sendo este, justamente, seu grande
atrativo. Ao entrar na abstração a partir do contato dos fotógrafos com este ambiente
artístico experimental e inovador, a fotografia altera seu estatuto, ingressando de
modo mais direto no campo das artes plásticas.
Mário Pedrosa, importante crítico e defensor da arte abstrata, escreveu a
respeito dos trabalhos fotográficos de Geraldo de Barros, no texto “A Bienal cá e
lá”, de 1970,

(...) foi o primeiro a fazer da fotografia dita de arte não esse


enlanguescimento pictórico do gosto convencional, mas uma
experiência viril de imagens instantâneas ou fixadas, simultâneas
ou dissolvidas em signos da vida e do espaço urbanístico.73

Com este excerto de Pedrosa é possível perceber como os trabalhos fotográficos


experimentais de Barros inseriam-se neste novo momento da arte brasileira, marcado
pela presença da arte abstrata e pelo Movimento Concretista, do qual ele fazia parte.
Ainda que suas fotografias tenham sido feitas antes do seu engajamento no Grupo
Ruptura,74 em 1952, é possível pensar que as questões norteadoras do concretismo –
hierarquia de forma, cor e fundo, junto com geometrizações das figuras – podem ser
vistas em suas imagens. Entretanto, assim como nas fotografias de José Oiticica Filho,
algumas delas são abstrações informais, demonstrando o alto grau de proficuidade
de seu trabalho.
José Oiticica Filho dentro deste contexto do concretismo brasileiro se mostra
um artista bastante variado. Além de fotografias abstratas geométricas, em que há
72
Francisco Alambert e Polyana Canhête (2004, p. 45).
73
Mario Pedrosa (1995, p. 258).
74
O Grupo Ruptura era formado por Lothar Charoux, Waldemar Cordeiro (seu principal teórico), Geraldo de
Barros, Kazmer Fejer, Leopoldo Haar, Luis Sacilotto e Anatol Wladyslaw. Eles propõem uma ruptura com questões
plástico-formais, com todo um passado que as vanguardas europeias tinham cortado desde o Impressionismo.
Cf. BANDEIRA, João. Arte concreta paulista: documentos. São Paulo: Cosac Naify, Centro Universitário Maria
Antonia da USP, 2002.
112 História da fotografia moderna brasileira

uma preocupação com a cor e ausência de meios-tons, ele também realiza, com a
série Ouropretenses, fotografias abstratas informais, na qual há uma ligação com o
sentimento, mais do que com a razão.
A fotografia concreta de Oiticica Filho foi chamada, por ele próprio, de
Recriações, pois, como explica Herkenhoff:

Oiticica prepara as formas iniciais que são fotografadas. O


negativo (isto é, a transparência) é ampliado para produzir um
positivo transparente, que copiado produz nova transparência
negativa, que copiada... e assim sucessivamente podem ser
criadas diversas transparências positivas e negativas, as quais
são usadas isoladamente ou combinadas entre si (positivo com
positivo, negativo com negativo, positivo com negativo) para a
obtenção da imagem.75

Nas fotografias ditas concretistas, é possível perceber a ausência de meios-


tons, característica da arte concreta.76 O próprio José Oiticica Filho define seu
entendimento acerca das Recriações, em entrevista a Ferreira Gullar, em 1958:

Há quem não considere como fotografia minhas “recriações”,


porque não uso cinzas, próprios da fotografia tal como ela
é entendida pela maioria. Acham que é desenho, porque as
formas se imprimem em preto e branco. Minhas “recriações”
são fotografias, pois nascem de um processo fotográfico
legítimo como outro qualquer. Se não uso cinzas é porque o
que me interessa é a forma e a dinâmica do plano, que só se
pode conseguir pela impressão, sem meias-luzes, do preto sobre
o branco. Não tenho culpa de que, por usar preto e branco,
confundam minhas “recriações” com desenhos que em geral são
em preto e branco também.77

Desse modo, o fotógrafo insere seu trabalho como fotografia e explica o que
interessa a ele no momento de feitura da imagem: a forma e a dinâmica do plano.

75
Paulo Herkenhoff (1983, p. 15).
76
“A proposta de uma cor pura, abstrata, seria encontrável, segundo ele [Mondrian], “na cor primária claramente
definida”, chapada, sem meios-tons, matérias ou texturas.” (COCCHIARALE, GEIGER, 1987, p. 16). É importante
mencionar, a este respeito, que José Oiticica Filho é pai de Hélio Oiticica, importante artista brasileiro, vinculado
ao concretismo e neoconcretismo. Com isto podemos depreender que o fotógrafo tinha trânsito entre as artes visuais
e a fotografia.
77
Oiticica: “fotografia se faz no laboratório”, Jornal do Brasil, 24/08/1958, suplemento dominical de artes plásticas.
113 Carolina Etcheverry

Consideração final: por que estudá-los?

Este texto procurou mostrar a complexidade do estudo em torno da fotografia


moderna brasileira, bem como buscou trazer à tona diversas possibilidades de estudos.
A partir de Geraldo de Barros e de José Oiticica Filho, considerados precursores
nas técnicas de experimentação para criação de imagens fotográficas impactantes,
foi possível perceber como o campo fotográfico expande-se na segunda metade
do século XX. A importância de estudá-los reside no fato de que tais fotógrafos
ainda são muito atuais, pautando diversos trabalhos fotográficos contemporâneos.
Por isso, é preciso que eles sejam estudados a fundo, para que possamos construir
uma história da cultura visual deste período, buscando elementos para entender tais
imagens. Uma leitura informada é sempre mais instigante do que aquela marcada
apenas pelo sentimento que a imagem traz ao seu leitor.

Referências

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Capítulo 5

A dimensão histórica em “Mujeres presas”: aproximações


teóricas entre fotografia-expressão e ator social
Patricia Camera1

Este texto analisa o ensaio “Mujeres presas”,2 realizado pela fotógrafa


argentina Adriana Lestido,3 durante junho de 1991 e junho de 1992, na prisão número
8 de Los Hornos, em La Plata, Argentina. O resultado desta produção, que contou
com o apoio da Hasselblad Foundation, foi exposto na II Bienal de Artes Visuais do
Mercosul (1999 – Porto Alegre, Brasil) e deu origem à publicação do catálogo4 de
mesmo título, compondo a Colección Fotografos Argentinos.
No prefácio, “Lestido: el oficio de narrar”,5 o escritor Guillermo Saccomanno
comunica:

Mujeres presas no es un libro de fotos convencional, ese


objeto a mitad de camino entre la mezquindad coleccionista y
el regalo elegante de shopping. Si me gusta pensarlo como un
trabajo narrativo es porque explica más de la realidad social
que cualquier argumentación política. Lo que no quita que las
fotos de Lestido entreveren, tensándolas, las relaciones entre
arte e ideologia.

Nesta linha de pensamento, o presente estudo desenvolve-se com o objetivo


de discutir a fotografia contemporânea de Adriana Lestido como forma de narrativa
visual elaborada por atores sociais. Para isso, apresentam-se algumas especificidades
do gênero fotográfico e algumas reflexões sobre sujeito, razão e identidade com
referência aos estudos de Alain Touraine.
A proposta é aproximar alguns aspectos deste ensaio fotográfico às
problemáticas levantadas por Touraine no contexto da sociedade cultural6 (pós-
1
Fotógrafa, Mestre em Tecnologia (UTFPR), Doutoranda do PPGH/PUCRS. E-mail: camera.patricia@gmail.com.
2
O ensaio fotográfico Mujeres presas está disponível no web-site da fotógrafa (www.adrianalestido.com.ar) e no
livro Mujeres Presas, LESTIDO (2007).
3
Adriana Lestido nasceu em 1955 na cidade de Buenos Aires. Estudou na Escuela de Arte Fotográfico y Técnicas
Visuales de Avellaneda. Trabalhou como repórter fotográfica entre 1982 e 1995 em La Voz, agência DyN e o diário
Página 12. Em seguida, passou a lecionar fotografia e a dedicar-se aos trabalhos pessoais.
4
Lestido (2007).
5
Lestido (2007, p. 2).
6
De forma resumida pode-se dizer que Touraine (2007, 2008) compreende a sociedade atual como uma sociedade
fragmentada: a empresa e o consumo numa esfera e o sujeito e a Nação em outra esfera. Nesta decomposição
Touraine explora a noção de subjetividade (desejo, individualidade, identidade, alteridade) e afirma a importância
da democracia. Por fim, valoriza o conceito de sujeito identificando-o neste contexto como ator social que inaugura
outro paradigma social que é denominado por ele como sociedade cultural.
118 A dimensão histórica em “Mujeres Presas”

social). Desta forma, o presente texto busca comunicar o valor histórico da expressão
artística de “Mujeres Presas”, elaborada por Lestido.

Apontamentos sobre o entendimento de André Rouillé sobre


fotografia-documento e fotografia-expressão

Para iniciar-se o estudo sobre o ensaio fotográfico de Lestido, tem-se em
vista refletir sobre a crise da fotografia conforme comunicado na obra A fotografia:
entre documento e arte.7 Neste livro, o pesquisador André Rouillé procura
esclarecer que a fotografia-documento baseia-se na crença de que a fotografia é
uma “marca” direta da realidade, e a fotografia-expressão assume caráter indireto
para com a “realidade”.

Do documento à expressão, consolidam-se os principais


rejeitados da ideologia documental: a imagem, com suas formas
e sua escrita; o autor, com sua subjetividade; e o Outro, enquanto
dialogicamente no processo fotográfico.
Essa passagem do documento à expressão se traduz em profundas
mudanças nos procedimentos e nas produções fotográficas, bem
como no critério de verdade, pois a verdade do documento não
é a verdade da expressão. Historicamente, tal transição funciona
quando a fotografia-documento começa a perder contato com o
mundo que, no final do século XX, se tornou muito complexo
para ela; mas, sobretudo, quando esse mesmo mundo é objeto
de uma larga desconfiança, quando se começa a não acreditar
mais nele.8

Para contextualizar as duas “práticas” fotográficas (fotografia-documento


e fotografia-expressão), Rouillé comenta que o auge da fotografia-documento
ocorreu em 1952 com o lançamento do álbum fotográfico de Henri Cartier-Bresson,
contendo 126 fotografias tiradas ao longo dos últimos vinte anos. Esta obra pode ser
considerada como uma das referências para o entendimento da fotografia-documento,
uma vez que além de ser uma coleção fotográfica extensa, também contém o prefácio
explicativo “O instante decisivo”9 (1952) escrito pelo próprio fotógrafo.
7
Rouillé (2009).
8
Rouillé (2009, p. 19).
9
Pierre Assouline (2008) explica na biografia de Cartier-Bresson que o título pretendido para o álbum fotográfico
foi Imagens a la sauvette (Imagens furtivas). Porém, o título “O instante decisivo” do prefácio escrito por Cartier-
Bresson e a epígrafe (“Não há nada nesse mundo que não tenha um instante decisivo”) apropriada das palavras do
cardeal de Kerzt motivaram o editor responsável pela publicação nos EUA a solicitar ao fotógrafo a mudança do
título deste álbum fotográfico para Decisive Moment.
119 Patricia Camera

Neste pequeno texto, Cartier-Brresson analisa a fotografia através de seu


pensamento a respeito da reportagem, do tema, da técnica e dos clientes.

Nossa tarefa consiste em observar a realidade com a ajuda deste


bloco de esboços que é a nossa máquina fotográfica, e fixá-la,
mas sem manipulá-la nem durante a tomada, nem no laboratório
através de pequenas manobras.10
[...] Um tema não consiste numa coleção de fatos, pois os
fatos em si não têm interesse algum. O importante é escolher
entre eles; captar o fato verdadeiro em relação à realidade mais
profunda. Em fotografia a menor coisa pode ser um grande tema,
e o pequeno detalhe humano pode se tornar um leitmotiv....11
[...] Uma fotografia é para mim o reconhecimento simultâneo,
numa fração de segundo, por um lado, da significação de um
fato, e por outro, da organização rigorosa das formas percebidas
visualmente que exprimem o fato.12

Nota-se, nas declarações de Cartier-Bresson, que sua práxis fotográfica


se dá na valorização do instante fotográfico e como consequência na produção da
fotografia única, ou seja, parece que a intenção do fotógrafo era montar ao longo
de sua trajetória de vida uma “coleção de instantes” da realidade. Disto, pode-se
observar que o culto à “magia” da tecnologia fotográfica está presente na poética
fotográfica de Cartier-Bresson. Em sua biografia, Assouline menciona: “Imagens a
la sauvette, catálogos desses instantes de eternidade, não diminui em nada o mistério
de sua criação”.13
Com essas considerações, interessa recordar que desde a invenção da
fotografia (em torno de 1835) até meados da década de 1980 – quando do lançamento
do livro A Câmara Clara,14 de Roland Barthes – a orientação prática e filosófica
esteve fortemente atrelada à especificidade documental.
Essa interpretação sobre a possibilidade de reproduzir de forma automática
o mundo visível fez com que algumas pessoas entendessem que o operador humano
tivesse somente um papel administrativo.15 Sobre essa questão, Fabris lembra que
no discurso feito por Talbot, no livro The pencil of nature,16 ele tenta “demonstrar
o aspecto científico do calótipo, depreciando o papel da mão e a inteligência do
fotógrafo em favor da objetividade da máquina”.17 Depois de mais de um século e
10
Cartier-Bresson (2004, p. 19).
11
Cartier-Bresson (1952) apud Assouline (2008, p. 211).
12
Cartier-Bresson (2004, p. 29).
13
Assouline (2008, p. 211).
14
Barthes (1984).
15
Machado (1984).
16
Primeiro livro ilustrado com fotografias (entre 1844 e 1846).
17
Fabris (1998, p. 179).
120 A dimensão histórica em “Mujeres Presas”

meio Barthes escreve em 1980 o livro A Câmara Clara,18 defendendo a mesma linha
de pensamento, isto é, que o referente adere à imagem.
Em oposição à defesa da fotografia como espelho do real, Machado19
comenta:

A realidade não é essa coisa que nos é dada pronta e predestinada,


impressa de forma imutável nos objetos do mundo: é uma
verdade que advém e como tal precisa ser intuída, analisada e
produzida. Nós seríamos incapazes de registrar uma realidade se
não pudéssemos ao mesmo tempo criá-la, destruí-la, deformá-la,
modificá-la: a ação humana é ativa e por isso as nossas formas
tomam reflexo e refração. A fotografia, portanto, não pode ser
o registro puro e simples de uma imanência do objeto: como
produto humano, ela cria também com esses dados luminosos
uma realidade que não existe fora dela, nem antes dela, mas
precisamente nela.

Apesar de alguns pensadores, artistas e fotógrafos se posicionarem contrários


à defesa da fotografia como “espelho da realidade”,20 a técnica fotográfica parece
ter solapado qualquer operação do fotógrafo, como que este fosse somente capaz
de apertar o botão. Conforme mencionado, tal pensamento tramitou em diferentes
esferas da sociedade, como, por exemplo, na mensagem publicitária da Kodak:
“Você aperta o botão e nós fazemos o resto”,21 quando do lançamento em 1888 da
câmera fotográfica com filme de rolo.
Considerando as citações anteriores, pode-se compreender que o click
fotográfico afirmou a fotografia como o resultado de um simples ato que
“registra” o “isso foi”. Sendo assim, a fotografia esteve inicialmente associada
mais à ideia de captação ou recorte da realidade do que à noção de representação
ou construção do real.
Atualmente, interessa ainda à indústria, aos meios de comunicação e ao
mercado das artes a discussão sobre diversas abordagens relativas ao automatismo
fotográfico e à condição de verossimilhança ou desconstrução do referente fotográfico.
Nessa busca, o universo artístico e da comunicação concentraram-se em compreender
a gênese automática da técnica fotográfica, levantando questões relativas à atividade
humana (subjetividade) e à “veracidade” da mensagem fotográfica.

18
Barthes (1984).
19
Machado (1984, p. 40).
20
No livro O ato fotográfico (DUBOIS, 1999), o pesquisador aborda essa problemática citando diferentes
pensadores da área com principal atenção à análise dos conceitos “ícone”, “índice” e “símbolo” junto ao
entendimento do ato fotográfico.
21
“You press the button, we do the rest” (Frizot, 1998).
121 Patricia Camera

Conforme mencionado no livro, A Câmara Clara,22 Roland Barthes sustenta


a defesa da aderência do referente na fotografia, tomando como base a percepção
sensível do espectador e do fotografado: “Eu tinha à minha disposição apenas duas
experiências: a do sujeito olhado e a do sujeito que olha”.23
Apesar dos esforços de Barthes em compreender o noema “isso foi” –
fortalecendo o entendimento do estado indiciário da fotografia – seu estudo é frágil
por apresentar o fotógrafo como funcionário da câmera fotográfica:24 “[...] o órgão
do fotógrafo não é o olho (ele me terrifica), é o dedo o que está ligado ao disparador
da objetiva, ao deslizar metálico das placas (quando a máquina ainda as tem)”.25 No
entanto, Barthes foi sensível por trazer à tona a discussão da aderência do referente
fotográfico num momento em que a sociedade conferia o status de verdade à fotografia
no contexto do mundo cada vez mais atrelado às tecnologias da informação.
Com respeito à problemática sobre o entendimento da “fotografia-verdade”,
Rouillé menciona na obra citada26 que os fotógrafos Robert Doisneau e Henri Cartier-
Bresson são referências na história da fotografia quando o conceito de veracidade
fotográfica é analisado a partir dos anos de 1930.
No outro extremo, Rouillé apresenta e discute o ensaio “The Americans”,27
do suíço Robert Frank, para compreender o rompimento do paradigma da
fotografia-documento.

Com Robert Frank, o “eu” ganha em humanidade e em


subjetividade. É um “eu” fotográfico disposto de maneira
plenamente assumida, com uma vivência pessoal, sentimental,
até mesmo íntima. Em 1983, Frank escreve: “Gostaria de fazer
um filme que misturasse minha vida, naquilo que ela tem de
privado, e meu trabalho, que é público, por definição; um filme
que mostrasse como os dois polos dessa dicotomia se juntam, se
entrecruzam, se contradizem, lutam um contra o outro, visto que
se completam, segundo os momentos”. O “eu” de Frank parece
o estado ideal de total liberdade, quase de imponderabilidade.
Livre em seus movimentos e em suas inspirações, sem nenhuma
imposição, nem econômica nem social nem, evidentemente,
estética. Essa liberdade abre a imagem para todas as
possibilidades, neste caso, para o aparecimento de um novo
22
Barthes (1984).
23
Barthes (1984, p. 21-22).
24
No livro Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia, Flusser (2002) discute a
práxis fotográfica defendendo que o fotógrafo não deve estar em função do equipamento. Ou seja, o fotógrafo
deve se posicionar de forma autônoma frente às técnicas e aos parâmetros tecnológicos existentes na estrutura
do equipamento.
25
Barthes (1984, p. 30).
26
Rouillé (2009).
27
Este trabalho fotográfico foi desenvolvido entre 1955-1956 ao longo das estradas dos EUA com auxílio da John
Simon Guggenheim Memorial Foundation.
122 A dimensão histórica em “Mujeres Presas”

regime de enunciados fotográficos, exatamente os da fotografia-


expressão. Mas tal liberdade priva, simultaneamente, a imagem
de sua ancoragem no real e de sua amarração à representação,
que garantiam sua unidade e sua uniformidade internas. Frank
não mostra, ele se mostra. O sujeito, o autor prevalecem, a partir
daí, sobre o real. Este advento intempestivo da subjetividade
embute o da fotografia-expressão nos escombros dos principais
paradigmas da fotografia-documento.28
[...] Se as fotos de Frank rompem com a estética documental,
é porque elas não representam (alguma coisa que foi), mas
apresentam (alguma coisa que aconteceu); é porque não remetem
às coisas, mas aos acontecimentos; é porque eles quebram a
lógica binária da aderência direta com as coisas pela afirmação
de uma individualidade.29

Esta percepção sobre a dimensão subjetiva na práxis de Robert Frank


interessa para localizar os projetos pessoais da fotógrafa Lestido: “Hospital Infanto
Juvenil” (1986-1989), “Casa Cuna”, de La Plata (1989), “Mujeres presas” (1991-
1992), “Madres adolescentes” (1989-1990), “Madres e hijas” (1995-1999).
Especificamente no livro Mujeres Presas,30 a fotógrafa relata no prólogo
desta obra sobre um breve período de sua vida:

Construí asi mi camino y mi trabajo porque nadie me regalo


nada, más allá de que hubo muchos que me ayudaron. Pero, por
outro lado, mi origen (la nena más pobre de uma escuela pobre
de Mataderos, la infancia en uma pieza con una madre sensible
pero iracunda, padre preso), todo eso me hace a veces tambalear.

Esta experiência subjetiva de Lestido frente ao mundo social e a constante


investigação em seus ensaios sobre a condição da mulher na sociedade contemporânea
permitem avançar o presente estudo sobre o ensaio “Mujeres Presas” com foco no
sujeito como questão.
Desta forma, deve-se mencionar que este estudo entende que as fotografias
que compõem o catálogo Mujeres Presas inserem-se no campo da fotografia-
expressão. Isto significa que o posicionamento de Lestido frente ao seu trabalho
fotográfico localiza o “eu” (sua subjetividade) entre o referente e a imagem. Em
outras palavras, as fotografias elaboradas por Lestido são entendidas como uma
“representação” social da condição de um grupo específico de mulheres que foram
28
Rouillé (2009, p. 172).
29
Rouillé (2009, p. 173).
30
Lestido (2007, p. 1).
123 Patricia Camera

fotografadas segundo o “olhar” de Lestido. Contudo, esta condição subjetiva não


impossibilita reconhecer estas fotografias como meio de investigação histórica.
Sendo assim, deve-se não apenas valorizar as imagens como fenômenos positivos,
mas também como uma fonte não trivial, por apontar, através do elogio à forma, da
valorização à individualidade do fotógrafo e da prática do dialogismo entre fotógrafa
e fotografadas, informações sobre a escrita, o autor e o outro num sistema visual que
traz à tona questões sobre o sujeito (mulher) na sociedade cultural.

O ator social: razão e subjetividade

Partindo do princípio de que as fotografias presentes no álbum Mujeres


presas são resultados de uma práxis atual que valoriza o dialogismo entre fotógrafa
e fotografadas e que nesta prática trabalha-se tanto a subjetividade de Lestido como
a self-identity das presidiárias, tais especificidades podem então ser relacionadas ao
estudo de Alain Touraine com principal atenção às obras Crítica da Modernidade31 e
Um novo paradigma para Compreender o Mundo de Hoje.32
No primeiro livro mencionado, interessa destacar o questionamento de
Touraine sobre o projeto e o desenvolvimento da ideia de modernidade, lembrando
que ambos repousaram fundamentalmente na defesa da razão, uma vez que é no
entendimento da própria modernidade que se instaurou o desejo de associar a ação
humana com a ordem do mundo em prol do devir. Ainda com referência nesta obra,
deseja-se apresentar a discussão de Touriane sobre a negação do devir frente à
existência do Ser contemporâneo (antimoderno) que busca em sua subjetividade e
reflexividade ações e posicionamentos que contribuam para uma vida mais estável
e equilibrada, próximo ao desejo inicial da modernidade clássica (baseado no
pensamento iluminista).
Do segundo livro, pretende-se apontar algumas reflexões sobre sujeito
e identidade para apresentar o novo paradigma das representações sociais,
particularmente atreladas à perspectiva do desejo e da ação (subjetiva e coletiva) do
sujeito social.
Desta forma, as problemáticas levantadas por Touraine sobre sujeito,
razão e identidade presentes no contexto da sociedade atual, denominada por ele
como sociedade pós-social ou cultural, servirão como fundamento teórico para
compreender sobre a visualidade do ensaio executado por Lestido.
Vale ressaltar que as duas obras de Alain Touraine são complementares. Isto
é, em Crítica da Modernidade,33 o ator social aparece junto à proposta da redefinição
31
Touraine (2008).
32
Touraine (2007).
33
Touraine (2008).
124 A dimensão histórica em “Mujeres Presas”

da modernidade levando em consideração o desejo do sujeito no contexto da


democracia do mundo globalizado. No livro seguinte, Um novo paradigma,34 o
sociólogo comunica que, na atualidade, observa-se o enfraquecimento do paradigma
econômico e social, defendendo que no presente momento a sociedade passa pela
transformação de outro paradigma – denominado paradigma cultural – onde o sujeito
busca os direitos coletivos e individuais, considerando fundamentalmente a relação
de si consigo mesmo (self-identity). Isto é, a última obra dá continuidade às discussões
presentes na primeira, com a intenção de destacar a mudança de paradigma. Com
isso, Touraine tenta entender essa corrente transformação da decomposição dos
quadros sociais a partir da definição do que descreve a sociedade na atualidade.
Em Crítica da Modernidade,35 Touraine analisa o projeto da modernidade
e seus resultados para apontar alguns equívocos que ocorreram ao longo de seu
desenvolvimento. Compreende que este projeto “mal orientado” resultou em
primeira instância na negação do sujeito, mas que, segundo sua análise, refletiu na
atualidade para a emergência do ator social. Em Um novo paradigma,36 Touraine
explica que este ator faz parte do processo de transformação social. Lembra que
a história da sociedade foi descrita e analisada em termos políticos (sociedade
política), depois segundo a organização econômica e social (sociedade social)
e, atualmente, é pensada sobre sua transformação com foco no sujeito reflexivo,
denominando-a de sociedade cultural.
Sendo esta teoria complexa e abrangente, optou-se por compreendê-la a
partir da discussão da razão e suas relações com o sujeito, tendo como motivação
inicial a citação de Touraine: “A modernidade não repousa sobre um princípio único
e menos ainda sobre a simples distribuição dos obstáculos ao reinado da razão; ela é
feita do diálogo entre Razão e Sujeito. Sem Razão, o Sujeito se fecha na obsessão da
sua identidade; sem o Sujeito, a Razão se torna o instrumento do poder”.37
A última parte desta expressão “[...] sem o Sujeito, a Razão se torna
instrumento do poder” (idem) é singular, pois nos faz refletir sobre dois aspectos: 1)
o entendimento equivocado da razão – quando exercida como razão instrumental;
2) a interpretação de alguns intelectuais38 sobre a contribuição da razão instrumental
para a “morte” do sujeito na sociedade.
Touraine contextualiza esta problemática escrevendo:

os intelectuais tinham animado o movimento de racionalização,


associando aos progressos da ciência a crítica das instituições e

34
Touraine (2007).
35
Touraine (2008).
36
Touraine (2008, p. 119).
37
Touraine (2008, p. 14).
38
Principal exemplo: estudiosos que compõem a Escola de Frankfurt.
125 Patricia Camera

das crenças passadas. [...] Após séculos de modernismo, porém,


as relações entre os intelectuais e a história desarranjaram-se no
século XX.39

O pesquisador observa que o pensamento moderno ocidental privilegiou a


racionalidade instrumental, passando a produção e o consumo de massa a compor a
“sociedade programada” pela indústria cultural (educação, saúde, entretenimento).
Isto privilegiou o desenvolvimento da associação entre empresa e consumo, fortalecida
pela lógica da economia global que se sobrepôs ao próprio Estado, culminando para
o desfalecimento do sujeito40 e da Nação. Tal descompasso é descrito por Touraine
em Crítica da Modernidade41 como explosão ou decomposição da modernidade.
Touraine menciona nesta mesma obra sobre a tentativa que houve na história
em superar o regime moderno em prol da igualdade. Porém, alerta que tal projeto
se mostrou inadequado quando da emergência de regimes comunistas ou totalitários
que acabaram por anular a individualidade do sujeito.

Por muito tempo lutamos contra os antigos regimes e suas


heranças, mas no século XX lutamos contra os novos regimes,
contra a nova sociedade e o novo homem que quiseram criar
tantos regimes autoritários, que fazem ouvir os apelos dramáticos
à libertação, fazem revoluções dirigidas contra as revoluções
e os regimes que delas nasceram. [...] agora procuramos nos
desprender da multidão, da poluição e da propaganda.42

Com essas duas citações, observa-se que das posturas intelectuais referentes
à “morte” do sujeito, Touraine não compartilha integralmente porque o objeto central
de sua discussão é o sujeito. Sendo assim, não poderia concordar nem com a “morte”
deste, como também com o conceito de “humanidade” – quando pensado a partir da
ideia de homogeneização presente na clássica teoria desenvolvida por Comte na obra
O sistema de política positiva (1851-1854).
Sendo o sujeito o foco central da pesquisa, Touraine parte para problematizá-
lo levando em conta uma série de análises sobre o Ser. Para isso, considera
diversas situações históricas, sociais e econômicas para entender o sujeito de modo
simultâneo às mudanças filosóficas que orientam a defesa ou não deste sujeito
como ator social. Desloca o clássico objeto de estudo das ciências sociais, ou seja,

39
Touraine (2008, p. 159).
40
Touraine entende que este contexto contribuiu para o fortalecimento do sujeito (self-identity). Assim, Touraine vai
ao encontro de Anthony Giddens (2002) quando estuda sobre a necessidade e a busca do sujeito em refletir sobre sua
condição pessoal (Touraine, 2007, p. 119-120).
41
Touraine (2008, p. 99)
42
Touraine (2008, p. 99-100).
126 A dimensão histórica em “Mujeres Presas”

a sociedade,43 para centrar-se no estudo do ser “personalizado” e suas ações, tendo


como principal respaldo a ideia inicial da modernidade clássica pautada no sujeito
e no pensamento racional.
Para defender sua tese sobre o sujeito como ator social, Touraine entende que
o ser humano busca seus desejos pessoais. Isto é, o indivíduo projeta de modo (in)
consciente a definição e a conquista de seus diferentes referenciais culturais, que são
subjetivos, pessoais e cambiáveis.
A fundamentação de Touraine parte da história do pensamento, selecionando
algumas concepções e interpretações sobre o Ser na filosofia moderna, com principal
atenção às teorias de Nietzsche e Freud. A partir daí, Touraine tenta compreender a
dualidade razão-sujeito considerando inicialmente a afirmação “Penso, logo existo”
feita por Descartes.

[...] O Eu do “Eu penso” não coincidia, no Cogito, com o Eu


do seu “Eu sou”. A formação do sujeito não é somente um
distanciamento do indivíduo e uma identificação com o grupo e
com as categorias da ação racional; ela está ligada a um desejo
de si ao mesmo tempo que a um desejo do outro.
O que nós aprendemos de Freud é que a desconfiança com
respeito à “vida interior” repleta de identificações alienantes
e de modelos sociais inculcados, que nos obriga a procurar
o Eu fora do Ego, na recusa da correspondência entre o
indivíduo e a sociedade, a ligar sua defesa à revolta contra a
ordem estabelecida.44

Isto é, o pensamento iluminista de Descartes liberta o sujeito da relação
subordinada ao Deus, tornando-o sujeito consciente. Mas esta análise não é suficiente
para Touraine. Sendo assim, desmonta esta dualidade com base nas teorias de Freud.
Touraine entende que a razão extrapola do inconsciente o desejo de liberdade.
A partir desta observação, acrescenta em sua análise o sentimento irracional,
associando-o à noção de sujeito como ator social. Apresenta esta especificidade
junto à figura de Dionísio.

Nós matamos Deus e nossa culpa alimenta nossa sede de


submissão e de redenção. Então é preciso ir além desse
assassinato, além do bem e do mal, encontrar ou criar uma
experiência natural liberada de todos os ascetismos, de todas as
alienações, graças a um esforço que é ao mesmo tempo desejo
43
Comte procura a unidade da história humana numa sociedade científica e industrial. Acredita que “só há um tipo de
sociedade absolutamente válido, toda a humanidade deverá, segundo sua filosofia, chegar a esse tipo de sociedade”
(Aron, 2000, p. 65).
44
Touraine (2008, p. 132).
127 Patricia Camera

e razão, dominação e controle de si, que é, ao contrário de uma


interiorização, uma libertação de si, um retorno a Dioniso.45

Para completar, Touraine observa: “Nietzsche é, ao mesmo tempo, aquele


que denunciou primeiro a ilusão modernista, a ideia de correspondência entre o
desenvolvimento pessoal e a integração social, e aquele que empenhou uma parte
do pensamento europeu em uma nostalgia do Ser que frequentemente conduziu à
exaltação de um ser nacional e cultural particular.46 Adiante introduz as teorias de
Freud sobre a intensa relação da formação do Eu referindo-se ao Id, Superego e
Ego, informando:

O que nós aprendemos de Freud é que a desconfiança com


respeito à “vida interior” repleta de identificações alienantes
e de modelos sociais inculcados, que nos obriga a procurar o
Eu fora do Ego, na recusa da correspondência entre o indivíduo
e a sociedade, a ligar sua defesa à revolta contra a ordem
estabelecida.47

No entanto, para Touraine, a discussão sobre sujeito e razão é tão complexa


a ponto de escrever em Um novo paradigma:48 “não situo minha reflexão no
universo da identidade, e esta palavra desperta a mim mais medo do que atração”.
Então, esforça-se para analisar o que seria este sujeito sem nomear qualquer
“identidade fixa”:

[...] sou levado a dizer que o sujeito é a convicção que anima um


movimento social e a referência às instituições que protegem as
liberdades. [...] eu defino o sujeito em sua resistência ao mundo
impessoal do consumo, ou ao da violência e da guerra.
[...] O sujeito é um chamamento a si mesmo, uma vontade
de retorno a si mesmo, em sentido contrário à vida ordinária.
Para mim, a ideia de sujeito evoca uma luta social como a de
consciência de classe ou a de nação em sociedades anteriores,
mas com um conteúdo diferente, privado de toda exteriorização,
voltado totalmente para si mesmo – embora permanecendo
profundamente conflituoso. É por isso que as primeiras imagens
que me vieram à mente para ilustrar a ideia de sujeito foram as
de resistentes, de combates pela liberdade.49

45
Touraine (2008, p. 119).
46
Touraine (2008, p. 123)
47
Touraine (2008, p. 132).
48
Touraine (2007, p. 120-121).
49
Touraine (2007, p. 120-121).
128 A dimensão histórica em “Mujeres Presas”

A partir destes trechos e das colocações apresentadas até o presente


momento deste trabalho, observa-se que Touraine tem postura crítica e interpretação
otimista. Entende que desta tensão entre sujeito, razão e sociedade veio o declínio
da modernidade tradicional (ideal do pensamento iluminista). Pressupõe que a
democracia social não se limita às garantias institucionais e neste sentido a própria
democracia é também o lócus das lutas dos sujeitos sociais.
Assim, segundo a teoria de Touraine, a importância da democracia pode ser
compreendida quando explica a decomposição da modernidade e quando mostra suas
associações. Isto é, neste contexto contemporâneo, tem-se por um lado a empresa e
o consumo e por outro lado o sujeito e a Nação. Sendo que o primeiro grupo está
ligado principalmente ao racionalismo instrumental que tenta organizar a economia
global, sobrepondo-se ao sujeito e ao próprio Estado. O segundo grupo está focado
no Ser, ou seja, nos atores sociais que tentam obter espaços que o valorizem a partir
de seus desejos, de suas subjetividades internas e coletivas.
Então, é no conflito entre as duas esferas mencionadas anteriormente que
Touraine acredita que o sujeito se impõe. Com base nos estudos de Freud e Nietzsche,
este pesquisador entende que a atitude do sujeito reflexivo se dá na procura do
eterno retorno do Ser, representado pelas figuras mitológicas gregas Apolo (razão)
e Dionísio (sentimento/emoção), somada à vontade de “poder”, representado pela
figura do “super-homem”. Segundo estas concepções, o retorno ao Ser está associado
à busca da vida equilibrada e estável, negando a ideia moderna do devir.
De forma geral, a proposta de Touraine nos faz entender que a busca do
Eu através da constante (des)combinação entre a tensão interna (desejo) versus
tensão externa (mundo repressivo) é uma das condições que faz emergir no contexto
democrático o sujeito como ator social. Assim, defende-se no presente trabalho que o
sujeito soma o desejo (íntimo e de consumo) com esta subjetivação (ação reflexiva de
self-identity), desestabilizando ou alterando a ordem de produção de bens materiais e
culturais; exigindo a mudança dos direitos sociais e políticos em prol da alteridade.
Neste caso, pode-se destacar a organização destes sujeitos para uma
possível sustentabilidade dos diferentes grupos culturais montados sob alicerces
particulares (minorias, etnia, raça etc.) voltados mais à defesa de seus princípios
culturais (língua, religião, território, gênero, ecologia) do que a princípios gerais
frequentemente relacionados à lógica que rege a política do Estado e principalmente
a economia globalizante.
Nesta estrutura fragmentada, tem-se a cultura da informação que junto às
novas tecnologias desterritorializou-se. Por exemplo, as notícias e as imagens sobre
os protestos contra os resultados das eleições presidenciais no Irã em junho de 2009
foram censuradas pelo governo local. Porém, algumas pessoas que presenciaram as
129 Patricia Camera

manifestações conseguiram fotografá-las e filmá-las. Alguns dos resultados foram


veiculados no ciberespaço.
De forma mais local, outras atitudes vêm surgindo recentemente. Dentre elas
estão os eventos internacionais (Bienal de Artes de Veneza, Documenta de Kassel
etc.) de artes que expõem os diferentes posicionamentos de artistas com relação a
realidade, imaginário, busca de alteridade etc.
No caso do Brasil, a Bienal de Artes de São Paulo e a Bienal de Artes
Visuais do Mercosul (BAVM) são destaques. Especificamente, a Bienal de Artes
Visuais do Mercosul iniciou sua atividade em 1997, atrelada intensamente à
questão mencionada neste trabalho: busca da alteridade do sujeito, representado
na BAVM pelas nações que compõem o Mercosul. Nesta perspectiva o ensaio
“Mujeres presas”, exibido na II Bienal de Artes Visuais (Porto Alegre, 1999),
destaca a problemática discutida por Touraine.

Sobre a reflexão pessoal em “Mujeres presas”

A produção fotográfica de Lestido é um trabalho contemporâneo que se


fundamenta na expressão pessoal (subjetiva) da fotógrafa e das fotografadas. Nos
ensaios “Madres Adolescentes” (1989-1990), “Mujeres Presas” (1991-1993) e
“Madres e Hijas” (1995-1999), percebe-se que a temática está centrada no afeto/
desafeto entre mães e filhos, vivenciado num momento histórico denominado
particularmente na teoria de Alain Touraine como sociedade cultural.
No presente trabalho, interessa comunicar que as fotografias realizadas por
Lestido problematizam o sujeito, sobretudo sua condição de cidadão compreendida
junto às divergências subjetivas encontradas na interioridade (self-identity) da mulher
e às problemáticas coletivas de grupos específicos do gênero feminino.
Desta forma, o trabalho de Lestido é antes de tudo uma narrativa visual
sobre a passagem de uma sociedade que se compreendia anteriormente em termos
socioeconômicos, mas que na atualidade percebe-se como uma sociedade que organiza
suas representações e ações voltadas à questão cultural.50 O valor histórico de sua
expressão artística sustenta-se na reflexão do sujeito e sobre o sujeito que vivencia a
decomposição dos quadros sociais (empresa e consumo versus sujeito e Nação).
No caso específico do ensaio fotográfico “Mujeres Presas” a visualidade
da self-identity é singular na poética fotográfica por mostrar a “individualização”
do sujeito em situação extrema. Isto porque a locação das cenas fotográficas se dá
unicamente na prisão: sozinhas nas celas ou isoladas em algum setor do presídio.

50
Touraine (2007, p. 215) explica: “[...] nossa experiência já não é mais transtornada pela sociedade de massa apenas
na ordem de produção, mas também na ordem do consumo e da comunicação”.
130 A dimensão histórica em “Mujeres Presas”

Essa visualidade do retrato da mulher isolada exibe pontualmente a


apresentação do ser “personificado” por duas formas dominantes: corpo e lócus. No
corpo das presidiárias encontram-se declarações inscritas no braço como “André te
amo”; ou no próprio braço de uma das filhas fotografadas: “Cláudio” (provavelmente
o nome de seu pai). Nas celas veem-se alguns elementos pessoais que integram o
ambiente da cena: história em quadrinhos, pôster e carteiras de cigarros coladas nas
paredes, retrato de família que preenchem o vazio da escrivaninha.
Quando se analisa a práxis fotográfica de Lestido, deve-se observar que se
deu com experiências próximas às presidiárias pelo fato da fotógrafa visitá-las uma
vez por semana na prisão, ao longo de um ano. Esta metodologia fez Lestido perceber
que a situação de isolamento das mulheres excedia o feito de algumas das mães
estarem juntas com seus filhos. Isso lhe fez indagar: “Quem é filho de quem?”.51
Esta aproximação de Lestido junto às detentas também tem seu valor por
ter possibilitado o desenvolvimento das cenas posadas ou em movimento que foram
tiradas no cotidiano e até mesmo em momentos especiais: retrato do casamento de
uma das presidiárias ocorrido no pátio central do presídio e retrato de uma presidiária
saindo abraçada junto a duas mulheres e uma criança, declarando: “Me siento tan
perdida como mi primer dia en cana”.52
Este sentimento levanta a seguinte questão: Esta desorientação pessoal seria
parecida à vivida por Lestido e sua mãe quando da ausência de seu pai durante a
infância por este ter vivido numa prisão? Provavelmente esta situação familiar tenha
contribuído para o desenvolvimento dos diferentes ensaios de Lestido que tem como
objeto central expor a mulher como questão pessoal e social.

Referências

ARON, Raymond.   As etapas do pensamento sociológico. 5.ª ed. São


Paulo: Martins Fontes, 2000.
ASSOULINE, Pierrre. Cartier-Bresson – O Olhar Do Século. Porto Alegre:
L&PM Editores, 2008.
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1984.
CARTIER-BRESSON, Henri. O Imaginário segundo a natureza. Trad.
Renato Aguiar. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2004.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. 3. ed. Campinas, SP:
Prós, 1999.
51
Disponível em: <http://www.adrianalestido.com.br>. Acesso em: jul. 2009.
52
Lestido (2007).
131 Patricia Camera

FABRIS, Annateresa. A fotografia e o sistema de artes plásticas. In:


Fotografia: Usos e Funções no Século XIX. (Org.) Fabris, Annateresa. São
Paulo Edusp, 1998.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura
filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
FRIZOT, Michael. A new history of photography. Köln: Könemann, 1998. 
GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. DP&A Editora, 2002.
LESTIDO, Adriana. Mujeres Presas. 1a Ed. Buenos Aires: Dilan Editores, 2007.
MACHADO, Arlindo. A ilusão especular. São Paulo: Brasiliense, 1984.
ROUILLÉ, ANDRÉ. A fotografia: entre documento e arte contemporânea.
Tradução Constancia Egrejas – São Paulo: Editora SENAC. São Paulo, 2009.
TOURAINE, Alain. Crítica da Modernidade. 8ª edição. Petrópolis, RJ: Ed.
Vozes, 2008.
______. Um novo paradigma para se compreender o mundo hoje. 3ª edição.
Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2007.
ADRIANA LESTIDO. Disponível em: <http://www.adrianalestido.com.
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