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Por vezes, cineastas mais experientes dizem apenas: "Vocês podem fazer esses filmes
colaborativos e à margem da indústria agora, mas logo terão que entrar no sistema." Em
Tiradentes, este ano, Cacá Diegues dizia: "A economia no cinema é muito frágil, de
repente tudo pode acabar." Algo parece estranho nesses dois momentos. Por uma lado
esse cinema existe, se renova ano a ano, circula, conta com centenas de técnicos,
público, tem boas críticas e reconhecimento em festivais nacionais e internacionais. Por
outro, há um discurso que atravessa o debate, para o qual isso é insuficiente: eles
precisam da indústria. Para entender essa esquizofrenia que diz que o que existe deve
deixar de ser como é para existir, é preciso algumas palavras sobre o capitalismo, sobre
o que foi a indústria no século XX e o que significa falar em indústria hoje.
A era industrial
Dentro da lógica industrial, a organização dos sujeitos em classe estava dada por uma
posição econômica, claro, mas também simbólica, ou seja: que lugar o sujeito tem na
ordem estética, que lugar ele tem na indústria? Em outros termos: que direito e que
possibilidades de experiências sensíveis e subjetivas o sujeito tem nesse processo de
transformação da matéria-prima em bens industriais, em produtos? Assim, na indústria
há dois lugares claros a serem ocupados: aqueles que são proprietários dos meios de
produção e aqueles que operam sem os meios - os trabalhadores. Enquanto, na ponta da
cadeia produtiva, o dono do capital opera mimetizando o próprio capital - desgarrado,
em fluxo, sem lugar definido - o trabalhador vive no espaço fechado, no salário
definido, no gesto repetitivo, no cartão de ponto. Não é só a falta de dinheiro que o
afasta do capital, mas todo o campo simbólico. Assim, mais do que um sistema de
produção, a indústria é um regime discursivo e estético que opera no sensível, no dizível
e no visível.
Resumindo: na era industrial o trabalhador não opera criativamente, está distante dos
meios de produção e deve ser colocado em uma linha marcada pela previsibilidade do
processo. Os meios de produção são marcados pela escassez e as classes são
organizadas pelas possibilidades econômicas e sensíveis.
A era pós-indústrial
Nike, Facebook, Google, franquias comerciais; são exemplos desse novo capitalismo
em que o problema é achar meios de gerir e funcionalizar aquilo que escapa, o
conhecimento, as potências de vida e criação. Mais do que criar objetos, é preciso criar
mundos que esses objetos habitem. O problema do capitalismo passa a ser, então, não
mais como organizar a massa em uma linha previsível, mas como capitalizar a produção
gratuita e infinita das vidas mesmo; a inteligência e a criatividade da população que,
quanto mais conectada, mais matéria-prima imaterial e gratuita produz. Nesse caso, é
preciso liberar para produzir valor. Desregrar para adiante regular. Na indústria, os
sujeitos são organizados no tempo e no espaço para trabalharem no roteiro da linha de
montagem; na era pós-industrial, trata-se de gerir o descontrole (Agamben).
O Facebook é um ótimo exemplo. Quanto mais acesso, quanto mais fluxo de pessoas,
mais valor se produz. Mais outdoors podem ser colocados, mais dados podem ser
negociados, mais a rede pode valer na bolsa. Na indústria, o valor está no produto - se
um possui, o outro não. O valor está na restrição ao acesso. Na era pós-industrial, o
valor se multiplica por compartilhamento; quanto mais circulação, quanto mais pessoas
envolvidas e invenção, mais conhecimento e mais valor.
O cinema pós-industrial
1 - Abundância X Escassez
Ouvimos hoje, quase como um mantra, uma forte defesa da noção de indústrias
culturais e indústrias criativas. Tais perspectivas mantêm a ordem estética e política da
indústria e do produto. Uma organização excludente e proprietária. Nosso desafio é
pensar em uma outra natureza da mercadoria em um contexto pós-industrial. O cinema
industrial era pautado pela escassez, o pós-industrial pela abundância. O que temos
visto em todo o país é uma produção que vem fazendo uso de uma capacidade material
instalada em que a escassez não pauta mais as relações de produção.
Assim, a declaração de Cacá Diegues (foto cedida pela Universo Produção) na última
Mostra de Tiradentes, de que "a economia no cinema é muito frágil e de repente tudo
pode acabar" faz pleno sentido na era industrial, mas não é uma verdade hoje. Na
indústria, poucos detêm os meios, muitos se despem de suas potências criativas e a
massa consome. O que acontece hoje é que essa multidão que é consumidora e
produtora, dispersa e incontrolável, não pode e não deve ter a indústria como norte. Ou
seja, o que ela produz e consome ganha valor na circulação e no acesso abundante em
um ambiente em que os meios técnicos, criativos e de acesso estão disponíveis. Sem
uma política de estado, ela pode diminuir, mas não é destrutível, como o cinema foi um
dia. Sem uma política de estado, alguns serão levados à indústria e funcionalizados,
como se uma outra presença social do cinema não fosse possível.
2 - A distribuição
Nesse novo cenário de abundância de meios, a distribuição digital e acentrada ganha
protagonismo, haja visto a importância que os festivais, cineclubes e mostras tem hoje.
A abundância está ainda na facilidade das trocas de arquivos e cópias. Os festivais de
cinema e os cineclubes hoje têm grande dificuldade em oficializar o número de
espectadores dos filmes, assim, a carreira de um filme que foi visto em 500 cineclubes e
50 festivais, centenas de Pontos de Cultura, salas de aula e baixado 10 mil vezes é igual
a zero. Nada melhor para aqueles que pregam que as verbas públicas devem ir apenas
para os filmes em sala, frequentemente com menos público que aqueles que passam ao
largo das salas de shopping.
O mesmo acontece com as produtoras que organizam seminários para discutir cinema,
estética e política, fazendo a pesquisa e a realização caminharem juntas. Em diversas
partes do país existem coletivos que estão constantemente inventando formas de
desierarquizar a produção, seja pelo embaralhamento das equipes, seja na relação
mesmo que estabelecem com atores e personagens, em filmes como Os monstros (Guto
Parente, Pedro Diógenes, Ricardo e Luiz Pretti), O céu sobre os Ombros (Sérgio
Borges), Os Residentes (Tiago Mata Machado), Avenida Brasilia Formosa (Gabriel
Mascaro), Morro do Céu (Gustavo Spolidoro), Pacific (Marcelo Pedroso), Estrada
Para Ythaca (Guto Parente, Pedro Diógenes, Ricardo e Luiz Pretti), entre muitos outros.
Explicitando, nas escrituras cinematográficas, uma importante crise de um modelo.
O desconforto com o modelo industrial é algo que está nos filmes, na organização dos
sets, na dimensão processual das obras que com frequência têm rejeitado a ideia de
continuidade entre projeto e produto, como na lógica industrial. Se pensarmos em
alguns importantes cineastas contemporâneos, como Pedro Costa, Abbas Kiarostami,
Eduardo Coutinho, Miguel Gomes, Apichatpong Weerasethakul, Jia-Zhange-ke, todos
eles teriam sérios problemas para aprovar projetos e terem suas contas aceitas na grande
maioria dos editais brasileiros, uma vez que trabalham o filme dentro de um processo de
construção em que o projeto é composto de intenções, encontros, performances,
compartilhamentos - e não de roteiro e realização, como prevê a lógica industrial.
É certo que muitos desses realizadores são fortemente vinculados à tradição do cinema
moderno, assim como grande parte do que temos visto no cinema contemporâneo
brasileiro; entretanto, a produção atual parece não ter a indústria ou o chamado cinema
comercial como um oponente. Trata-se, antes, de uma intensidade que atravessa todas
as frentes - produção, distribuição e escrituras - e que se forja distante do modelo
industrial. Todas as tentativas de trazê-lo para dentro do modelo vigente - aquele em
que o filme deve ser uma realização do roteiro e o diretor deve fazer, entre outras coisas,
uma exposição oral do projeto diante de uma banca para captar recursos - são, antes de
tudo, formas para se destruir uma parte da potência do que existe hoje. Formas de
aprisionar um sistema de invenção e criação adaptado às novas condições materiais e
simbólicas do mundo.
4 - O papel da Universidade
5 - Mercado
A existência desse cinema pós-industrial significa que ele estará sempre separado do
mercado ou dos meios convencionais de distribuição e produção? De forma alguma;
toda a política de inserção dessas obras no mercado nacional e internacional não pode
ser deixada de lado. Pós-industrial não é pós-mercado. Trata-se de uma outra
engenharia de produção. Um filme que ganha o Festival de Brasília, como O Céu Sobre
os Ombros (foto), de Sérgio Borges, ou um filme que está no importante festival de
Rotterdam, ambos estão também no mercado. Mais do que isso: não ser industrial não
significa não ter possibilidades comercias, mesmo que no tradicional comércio das salas
de shopping.
É certo que muitos desses filmes não alcançam seus públicos por falta de uma política
que democratize o acesso às salas, uma briga histórica, importante e que continuará a
ser feita. Trata-se de uma tensão no interior do mercado formal ao qual muitas dessas
obras podem e devem ser incorporadas. Entretanto, não são esses espaços tradicionais
que trarão valor e legitimidade para as obras. É evidente ainda que estamos diante da
"obsolescência da clivagem centro-periferia típica da era fordista" (Cocco, p.73). Assim
como, nesse cinema, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Belo
Horizonte são partes de um mesmo processo, é o próprio país que tem diante de si as
condições dadas para uma presença internacional em que o Brasil não se coloca mais
como mão de obra ou fornecedor de matéria-prima apenas, mas como potência da
multidão que se materializa nessas obras.
6 - A presença do estado
Muito mais do que apontar soluções, coisa que os cineastas e coletivos certamente
saberão fazer com mais propriedade, o que pretendemos aqui é assinalar a existência de
uma produção cinematográfica, que continuará a existir independente das ações estatais,
mas que pode ser potencializada com esforços que diferem daqueles tradicionalmente
coerentes com as práticas industrias. A preocupação principal com esses processos é
como potencializar o que existe sem que se ofereça mais do mesmo, como potencializar
uma produção que soube se inventar em meio a condições novas, longe da lógica
industrial. O papel do estado hoje é potencializar o descontrole.
Fevereiro de 2011