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País Lusófono – Timor Leste

Autor: Luís Cardoso


Género: Romance (pequeno trecho)
Ano: primeira publicação 1997
Tempo de leitura:
Quira Lopes

Díli ainda era uma cidade apagada de luz elétrica quando fomos despejados na praia de
Lecidere, próxima do Paço Episcopal. Dirigimo-nos à residência do bispo, o então D. Jaime
Garcia Goulart, que nos abençoou, ainda hoje não sei se com pena da minha família ou se
abençoava a dura tarefa do desterrado pela profissão. Na praia, a minha mãe, angustiada,
acendeu o petromax e percorreu toda a extensão do areal para iluminar o mar em busca do beiro
que nos haveria de transportar para a ilha de Ataúro, a qual, no breu da noite, se dobrava sobre
si mesma como uma tartaruga gigante feita terra para se eternizar. Tive medo que a embarcação
pudesse perder a rota, navegando durante a noite, seguindo outra estrela, empurrada pelos
ventos arbitrários e correntes contrárias, e tomasse outro rumo e destino.
Pouco depois, a solidão familiar foi engrossada com a companhia dum cipaio africano,
descendente de antigos deportados moçambicanos, os célebres landins, utilizados como cães de
guerra e pacificadores das revoltas nativas. Só pude ver os seus dentes brancos e ouvir a sua voz
grossa dando gargalhadas sonoras e ordens de embarque a um prisioneiro, político ou de delito
comum, que na altura eram a mesma coisa, como todos os que iam na embarcação, uma vez que
tinham o mesmo destino.
Já dentro do beiro, vi-o de perto pela primeira vez. Parecia minúsculo em terra, mas no
mar era ele a entidade. Era o sokão, o comandante da embarcação. Vestia apenas um langotim
ou hakfolik, uma reduzida peça de vestuário própria de quem navega entre o mar e o céu.
Sentou-se na ré, levantou um cipu, uma concha branca, ao mesmo tempo que as luzes da cidade
se acendiam. Colocou a concha na boca e levantou-a como se quisesse engolir o tua-akar
depositado para adocicar travessias amargas. Fez um sopro e saiu um som lânguido e contínuo
clamando pela ajuda de algum ente sobrenatural que descarregasse sobre as velas da esteira um
vento razoável com a direção da ilha. Os marinheiros entoavam cânticos ao mesmo tempo que
remavam:
– Héan ró, ró berabera
Bá ne’e bé, bá Manukoko
O cipaio, de seu nome Aldroaldo, depois de se desforrar com a espuma branca do tua-
akar e rasgado o peixe seco com os dentes, pôs as mãos na água com a intenção de as lavar e
também para se certificar que o mar era uma barreira tão sólida como as paredes da prisão.
Sacudiu os pingos de água, envolveu-se com uma lipa e antes de adormecer perguntou:
– Quando chegamos?
– Amanhã – respondeu o sokão.

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