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ISSN 1809-8827

n.3
jul./set.
2020
BOLETIM OPSA
ISSN 1809-8827

O Boletim OPSA reúne análises sobre acontecimentos de destaque


na conjuntura política da América do Sul e tem periodicidade trimes-
tral. A publicação é composta por editorial e textos dirigidos a leitores
que querem ter acesso rápido a informações de qualidade sobre
temas contemporâneos. As fontes utilizadas para sua confecção são
resumos elaborados pelos pesquisadores do OPSA com base nos
jornais de maior circulação em cada um dos países e documentos
de autoria de pesquisadores ou agências independentes que com-
plementam as informações divulgadas pela imprensa.

A publicação é vinculada ao Programa de Pós-Graduação do Institu-


to de Estudos Sociais e Políticos da UERJ (IESP/UERJ).

É permitida a reprodução deste boletim e dos dados nele contidos, desde que
citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.

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Marianna Albuquerque

Editora Adjunta
Giovana Esther Zucatto

Conselho Editorial
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Marianna Albuquerque
Leticia Pinheiro

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Amanda Silvestre da Silva
André Pimentel Ferreira Leão
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Diogo Ives de Quadros
Fernanda Cristina Nanci Izidro Gonçalves
Ghaio Nicodemos Barbosa
Giovana Esther Zucatto
Leandro Wolpert dos Santos
Marianna Albuquerque
Marília Bernades Closs
Murilo Gomes da Costa
Thaís Jesinski Batista
Instituto de Estudos Sociais e Políticos
Univesidade do Estado do Rio de Janeiro
Rua da Matriz, 82 - Botafogo
Observatório Político Sul-Americano Rio de Janeiro – RJ
opsa.com.br (21) 2266-8300
Sumário

EDITORIAL

REGIÕES E REGIÕES.........................................................................................PÁGINA 04

ARTIGOS

O tripé da Política Externa Brasileira no governo


Bolsonaro.......................................................................................................PÁGINA 06

Trajetória recente do Banco Interamericano de


Desenvolvimento e o regionalismo nas Américas ..................PÁGINA 16

20 anos da Resolução 1325: Implementação e desafios à Agenda


Mulheres, Paz e Segurança na América do Sul........................... PÁGINA 24
Boletim OPSA • I S S N 1809-8827 • N. 3• Jul./Set. • 2020

Editorial plano de recuperação e a criação de um fundo


regional em resposta à Covid. Se a resposta
não está na institucionalização, este caso
Regiões e regiões demonstrou que fatores culturais e simbólicos
comuns, que incluem desde uma visão
comunitária, no sentido de pertencimento
A Covid-19 revelou - e pode mesmo coletivo e do papel do Estado, pré-existente
ter acelerado - vários fenômenos e processos à criação de foros de cooperação regional,
correntes. Como toda a população foi fizeram com que fosse possível articular
afetada, ainda que desigualmente, a uma resposta coletiva comum, adespeito da
pandemia é um fenômeno sistêmico, que diversidade de países que compõem a ASEAN.
atinge simultaneamente várias dimensões No caso da África Austral, ressaltou-se o
nacionais e internacionais como a cooperação papel da África do Sul na coordenação das
internacional, as disputas geopolíticas, a respostas nacionais, por via da Comunidade
saúde global, as mudanças climáticas, a de Desenvolvimento da África Austral
cooperação regional, os direitos humanos os (SADC), para ações de mitigação dos efeitos
processos políticos domésticos e a política da crise sanitária, coordenação logística
externa, por exemplo. e adequação dos custos de operação em
Se na comparação entre estas situações de emergência.
diferentes áreas encontramos distintas Mais evidente, no caso da América do
respostas coletivas, isto significa que fatores Sul, foi a falta de respostas coletivas. Nesta
pré-existentes, nos respectivos contextos, região, as instituições pré-existentes, como
atuam no sentido de torná-las diferenciadas a Unasul, e toda a estrutura institucional
entre si. É o caso das respostas das regiões prévia de cooperação regional, que poderiam
à pandemia. Estas últimas revelaram produzir uma iniciativa coletiva, já havia
o quanto as regiões possuem inúmeras sido desmontada pelos governos de direita e
particularidades, algo mais ou menos óbvio. extrema direita que chegaram ao poder depois
O que não é óbvio é porque as regiões são de 2015, em especial o brasileiro e o peruano.
diferentes. Esta é uma pergunta para uma O Grupo de Lima, criado pelo último, apenas
análise comparada das trajetórias regionais, demonstrou que é apenas um simulacro da
que não vamos aqui proceder. Nos interessa ideia de cooperação regional e nada fez.
apenas um breve exame descritivo de como Na verdade, ocorreu o contrário: os
as regiões responderam a este fenômeno controles fronteiriços foram acionados, em
sistêmico. especial com respeito ao Brasil, percebido por
Na Europa, a região mais seus vizinhos como o epicentro da pandemia
institucionalizada de todas, na medida em que no continente e principal ameaça de contágio
constitui uma comunidade com instituições na região. A fragmentação política prévia da
e procedimentos comuns, ainda que tenha região desestimulou uma resposta coletiva
havido diferenças nacionais na gestão da eficiente, e as reações de proteção mútuas
pandemia, o que ressaltou foi a forte resposta impulsionaram a fragmentação e impediram
coletiva. Por meio de fatores como a liderança a coordenação coletiva. Ao fim e ao cabo,
da Alemanha e da França, e a coordenação alguns comentaristas já falam do fim da
entre a Comissão Europeia e o Parlamento região como um projeto político e o retorno
Europeu, o continente vivenciou a produção do conceito de América Latina como uma
de respostas coletivas com respeito à entidade geopolítica, com pouca expressão
pandemia, sendo a mais importante a criação internacional.
de um fundo de recuperação econômica, o Apesar de considerarmos inescapável
Next Generation EU. pensar as respostas regionais à pandemia
O grau de institucionalização do como uma chave de leitura importante
regionalismo não parece, contudo, ter tido para analisarmos o papel da América do
efeitos ponderáveis nas respostas regionais. Sul, os artigos deste Boletim trazem temas
A Ásia, por exemplo, possui instrumentos diversos que ampliam a agenda temática
de integração informais, flexíveis e pouco aqui delineada. A edição é iniciada com o
institucionalizados, sobretudo se em texto de dois autores convidados, Monica
comparação com a Europa. Entretanto, a Ásia Hirst e Tadeu Morato Maciel, no qual é feito
não apenas foi a região mais bem sucedida um mapeamento sobre os principais pilares
na gestão sanitária como, por via da ASEAN, da política externa do governo Bolsonaro
também articulou o compromisso com um no Brasil. Entre valores conservadores e

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má gestão na pandemia, fica evidente o


inexistente espaço prioritário conferido ao
relacionamento com o entorno estratégico.
O afastamento da região também é
exemplificado no segundo artigo, de autoria
do pesquisador Ghaio Nicodemos, que analisa
a última eleição para a direção do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Rompendo a tradição história de apontar um
representante latino-americano para o cargo,
o Brasil apoiou a indicação estadunidense.
Para além da análise conjuntural, o texto faz
um panorama histórico sobre a instituição,
sua atuação, funcionamento e desafios.
O terceiro artigo desta edição do
Boletim, escrito pela pesquisadora Giovana
Zucatto, propõe uma integração entre o
regional e o multilateralismo universal, ao
refletir sobre a implementação, na América
do Sul, da agenda de Mulheres, Paz e
Segurança, estabelecida pelo Conselho de
Segurança das Nações Unidas. Criada em
2000, por meio da Resolução 1325, podemos
concluir que, no aniversário de 20 anos do
documento, não temos muitos motivos para
comemorar. As altas taxas de feminicídio e a
baixa integração de mulheres em postos de
comando são, infelizmente, uma realidade na
região.
Por fim, gostaríamos de dedicar essa
edição aos familiares das vítimas da Covid-19,
aos profissionais de saúde e aos acadêmicos
que seguem, incansavelmente e a despeito
das condições políticas do país, lutando pela
população brasileira e pelo progresso da
ciência.

Rio de Janeiro, novembro de 2020

Maria Regina Soares de Lima


Coordenadora do OPSA

Marianna Albuquerque
Coordenadora do OPSA

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global é um complô marxista, somam-se


várias decisões que indicam a obstinação
O tripé da Política Externa Brasileira por transfigurar o perfil internacional do
no governo Bolsonaro 1 Brasil. Algumas análises recentes tendem
a interpretar o sentido ideológico de tal
Mônica Hirst2 impulso como uma reação aos conteúdos
politizados das orientações seguidas durante
Tadeu Morato Maciel3 os anos do governo Lula (VEIGA; RIOS,
2020). O argumento desenvolvido neste texto,
Introdução entretanto, é de que as ações levadas a cabo
com propósito destrutivo extrapolam lógicas
Desde o início do governo de Jair políticas reativas quando respondem a um
Bolsonaro, foi recorrente a desqualificação de conjunto de estímulos no qual se combinam:
políticas que dão esteio institucional à vida pró-ativismos personalizados, influências
republicana do Brasil. Tal impulso demolidor intelectuais ideologizadas e alianças externas
reverberou de forma imediata no Ministério com contrapartes da extrema-direita
das Relações Exteriores (MRE), um território internacional.
de reconhecido profissionalismo da burocracia Este texto representa uma primeira
de Estado brasileira. A chegada do diplomata busca de racionalidade para compreender
Ernesto Araújo à chefia do MRE trouxe no a política externa do governo Bolsonaro
bojo não apenas a tentativa de implementar como parte do projeto de poder vigente no
uma guinada radical e sem precedentes nas Brasil. Com tal propósito, são identificados
diretrizes da Política Externa Brasileira e brevemente caracterizados os três pilares
(PEB), como também apontou para uma ampla sobre os quais essa política se sustenta. O
reestruturação interna. A incorporação das primeiro pilar da política externa corresponde
teses da renovada extrema-direita mundial ao “núcleo político ideológico”, que revela a
indicou a carga ideológica dessa guinada sintonia do projeto com o ideário da extrema
(WELD, 2020). direita internacional; o segundo da “política
Na esteira do discurso que defende os econômica liberal-conservadora”, que
riscos do chamado “globalismo”, o ceticismo contempla a faceta externa da sua economia
em relação a instituições multilaterais, como política; o terceiro corresponde ao complexo
a ONU, e a convicção de que o aquecimento de “segurança e defesa”, relacionado às
sintonias externas da militarização do Estado
1Uma versão ampliada deste texto será pub- brasileiro. Cada pilar cumpre um conjunto
licada no livro Gobernanza democrática y re- de funções que se articulam e se projetam
gionalismo en América Latina: ¿en crisis o re- nacional, regional e internacionalmente.
configuración?, editado por Juan Cruz Olmeda, O prisma analítico que orienta essa
Guadalupe González e Jean Francois Prud’hom- caracterização supõe a política externa como
uma política pública, que envolve um arco
me (México, El Colegio de México, 2021).
abrangente de atores e interesses (HILL,
2 Doutora em Estudos Estratégicos pela Univer- 2003; MILANI, 2015). Tal arco implica
sidade Federal do Rio Grande do Sul (2011). Pro- uma coabitação de cooperação e competição
fessora no Mestrado de Estudos Internacionais da entre os segmentos sociais, políticos e
Universidade Torcuato di Tella (Argentina). At- econômicos que nutrem a agenda externa
ualmente é bolsista (pesquisadora sênior) no In- do governo Bolsonaro. Ao mesmo tempo, a
stituto de Estudos Sociais e Políticos da Univer- rejeição e demolição de construções político-
sidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). institucionais prévias, movidas por princípios
3 Doutor em Ciências Humanas e Sociais (2018) pela de intolerância e discriminação, adquire tanta
importância quanto a prevalência de grupos
Universidade Federal do ABC (UFABC). Pós-dou-
aliados e afins que protegem o seu projeto de
torando (bolsista PNPD/CAPES) no Programa de poder.
Pós-Graduação em Estudos Estratégicos da Defesa Os três pilares da atual política externa
e Segurança da Universidade Federal Fluminense são resumidos no quadro sinótico a seguir.
(PPGEST/UFF). Pesquisador do Laboratório de
Estudos sobre Política Externa Brasileira (LEPEB/
UFF) e coordenador do laboratório de pesquisa
NEXUS: segurança e desenvolvimento na políti-
ca global (UFF), vinculado ao SeDeAMÉRICAS.

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Pilares da PolÍtica EXterna do governo Bolsonaro


ÂMBITO
DomÉSTICO Internacional regional
Pilares
Insumo narrati-
vo do projeto de
poder nacional; Ativismo anti-glo-
aprofundamento DesconstruÇÃo
balista, alinha-
dos vÍnculos de das iniciativas,
mento ao governo
NÚcleo polÍtico atores internos projetos e com-
Trump e aproXima-
ideolÓgico com governos promissos do pro-
ÇÃo ao cÍrculo de
e organizaÇÕes gressismo latino
identificados com paÍses com regimes -americano
de eXtrema direita
o ideário da eXtre-
ma direita inter-
nacional
AtraÇÃo de in- PreservaÇÃo
Aprofundamen- vestimentos in- dos mercados
to da agenda de ternacionais, sul-americanos,
reformas econÔ- reconfiguraÇÃo
PolÍtica EconÔmi- minimizando com-
micas de cunho da presenÇa brasi-
ca liberal-conser- liberal, promissos de reci-
fortaleci- leira na economia
vadora procidade, institu-
mento do agrone- internacional e cionalidade e de
gÓcio e defesa do preservaÇÃo dos responsabilidades
capital financeiro vÍnculos econÔmi- compartilhadas
cos com a China
Controle militar
de cargos ministe-
riais de primeiro
escalÃo, ampla
presenÇa corpora- CooperaÇÃo mili-
tiva na administra- Fortalecimento tar e de inteligÊn-
ÇÃo pÚblica fede- da relaÇÃo com os cia com regimes
ral; redefiniÇÃo EUA (Comando Sul), conservadores;
de parâmetros da reconhecimento militarizaÇÃo de
PolÍtica Nacional como aliado eX- controles meio
CompleXo de Segu- de Defesa; Contro- tra-OTAN, e coo- -ambientais e de
ranÇa e Defesa le militar de car- peraÇÃo militar e monitoramento
gos ministeriais em seguranÇa com de fronteiras na
de primeiro esca- governos afins - regiÃo amazÔnica,
lÃo, ampla presen- como Israel, Emi- com foco nas divi-
Ça corporativa rados Árabes e sas com a Venezue-
na administraÇÃo Índia la
pÚblica federal;
redefiniÇÃo de
parâmetros da Po-
lÍtica Nacional de
Defesa;

Nas próximas seções, será brevemente diplomática brasileira por longas décadas.
analisada esta tripla sustentação, indicando Incluía-se a ação diplomática no elenco de
as ações que vão dando forma e conteúdo a políticas públicas a serem transfiguradas,
cada pilar nos planos doméstico, internacional em sintonia com a desconstrução do aparato
e regional. estatal voltado à promoção de bens públicos,
em áreas como a saúde, a educação e o
O pilar político-ideológico meio ambiente. A política externa se tornou
uma caixa de ressonância dos parâmetros
Desde janeiro de 2019, a política morais defendidos pelo novo governo, em
externa do Brasil esteve guiada por consonância com o ideário da extrema
premissas de forte teor ideológico, que logo se direita internacional. Confeccionou-se um
traduziram em orientações norteadoras dos ensamblaje entre prioridades da inserção
posicionamentos internacionais do país. Um internacional, visões de mundo e princípios
conjunto de novas prescrições significaram morais.
um descarte sistemático de posturas e As ramificações domésticas da política
princípios que haviam norteado a ação exterior do atual governo brasileiro estiveram

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sustentadas por um pró-ativismo neofascista liberal. Ao mesmo tempo que se observa


e personalista do presidente Bolsonaro e um alinhamento incondicional do Planalto
de seu Chanceler, apoiado por um corpo à Casa Branca, tornam-se contundentes as
diplomático silenciado que passou a priorizar críticas às agendas valorizadas por atores e
os critérios técnico-administrativos de suas organizações da governança mundial, com
funções. Sublinha-se o contraste entre a praxis especial menção aos direitos humanos, às
diplomática profissionalizada, marcada por mudanças climáticas e à própria noção de
seus atributos de conhecimento, capacidade bem público global. Estes posicionamentos
negociadora, senso de oportunidade e implicaram em crescente isolamento junto à
desenvoltura cultural ao longo da história comunidade internacional.
brasileira, e o cotidiano empobrecido de Neste ponto, pode ser interessante
funções burocratizadas, praticadas em lançar mão das reflexões de Deon Geldentruys,
Brasília e nas diferentes representações no autor sul-africano que analisa a política
exterior . Neste contexto, tornou-se frequente exterior do apartheid. Geldentruys descreve
por parte dos representantes diplomáticos a opção de um auto-isolamento voluntário, o
a função de contenção de danos, buscando- qual se vincularia a uma visão nacionalista
se atenuar a possibilidade de incidentes e a percepções conservadoras, antiliberais
causados por declarações do presidente e anticomunistas do mundo. Sem negar as
Bolsonaro, seus filhos e parte dos Ministros especificidades do caso, uma interpretação
de Estado. semelhante pode ser aplicada ao caminho
Desde o ponto de vista de seus escolhido pelo atual governo brasileiro.
conteúdos, a política externa substitui Não obstante, é importante ressaltar que
premissas universais ativamente presentes a pesquisa feita por Geldentruys (1984)
em sua atuação internacional por bandeiras não identifica o auto-isolamento como uma
pontuais ideologizadas. A alteração drástica confrontação com as políticas dos países que
nas práticas e princípios da PEB nutriu- representam as democracias liberais, algo
se de uma narrativa de extrema direita, que pode ser identificado no caso do governo
dinamizada e legitimada pela polarização Bolsonaro.
político-ideológica, em especial, com o Partido Sublinha-se a aproximação do
dos Trabalhadores (PT). Tal postura envolve atual governo à Polônia e Hungria, onde
a demonização dos movimentos e partidos ganharam força projetos de poder que
de esquerda e a condenação das políticas defendem posicionamentos anti-comunistas
progressistas nos campos sociais e econômicos. e anti-integração regional. Ambos países
Ressalta-se, ainda, um forte componente conformam o Grupo Visegrado, em conjunto
religioso e moral, associado a um processo de com a República Checa e Eslováquia, que
“internacionalismo evangelista”, coadunado representa a ascensão da direita nacionalista
no plano doméstico com a exaltação dos na Europa do leste. Brasil, Polônia e Hungria
valores pátrios por via da mobilização popular integram a Aliança pela Liberdade Religiosa,
e a comunicação através de redes sociais. lançada em 2020 pelo Secretário de Estado
Aproveitando-se do fato da política externa norte-americano, Mike Pompeo, visando
no Brasil ser um tema bastante centrado a fortalecer o círculo de países geridos por
no Poder Executivo, em que a necessidade líderes de direita nacionalista.
de composição de forças com o Congresso é Outro relacionamento valorizado
matizada, Bolsonaro passou a utilizar a PEB pela política externa bolsonarista se deu
como um espaço de políticas declaratórias, com Israel. Neste caso, não se articulam
no intuito de fidelizar a parcela mais radical apenas os interesses convergentes com os
do seu eleitorado (LIMA; ALBUQUERQUE, EUA, relacionados à geopolítica do Oriente
2019). Médio; observa-se um diálogo inter-religioso,
Desde seus primeiros meses, o entre o cristianismo evangélico e as posições
governo Bolsonaro conclamou uma política radicais do sionismo. Um dos pontos de
internacional que integrasse o Brasil ao encontro se dá na defesa do reconhecimento
círculo de países governados por líderes e de Jerusalém como capital do Estado
ideais da extrema direita, destacando-se israelense, embora Bolsonaro tenha recuado
insistente busca por uma relação privilegiada desse posicionamento, ao anunciar apenas
com Donald Trump e seus ideólogos. Esta a abertura de um escritório em Jerusalém
aproximação congraça uma visão comum para a promoção do comércio, investimento,
de antagonismo ao multilateralismo e aos tecnologia e inovação. A lógica contrapartida
princípios normativos do internacionalismo do fortalecimento de vínculos com Israel foi

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o abandono de posicionamentos e ações de escassas iniciativas de coordenação e


solidariedade do governo brasileiro com o cooperação multilateral – especialmente
Estado Palestino (SCHUTTE et. al., 2019). na Organização Mundial da Saúde (OMS)
O governo Bolsonaro assumiu e na Organização Pan-Americana da Saúde
posições controversas no campo da proteção (OPAS), em específico –, deixando flagrante
ambiental no Brasil – com imediata o isolamento normativo e político do governo
ressonância na comunidade internacional. brasileiro.
Esta temática sofreu dramáticos reveses Em consonância com o negacionismo
na agenda pública brasileira. Menciona-se de Bolsonaro, o Itamaraty tem se distanciado
a negligência presidencial aos impactos de do seu papel inovador para propostas
grandes desastres ambientais: o rompimento normativas e possibilidades de colaboração
da barragem da mineradora Vale na cidade nos âmbitos Norte-Sul e Sul-Sul, passando
de Brumadinho, o vazamento de óleo por a mero defensor de ideologias obscurantistas
um extenso trecho do litoral brasileiro e o sobre o papel da ciência na política. Esta
aumento dos focos de incêndio e grilagem na postura foi explicitada no contexto da veloz
Amazônia e no Pantanal. expansão da pandemia de Covid-19 no Brasil.
Frente a estas e outras situações as Fizeram-se públicas as críticas do Ministro
avaliações científicas foram desqualificadas Araújo à atuação da OMS, em consonância
por autoridades do governo. Foi com o posicionamento dos EUA, que se
questionada a veracidade dos dados de retiraram da organização durante os avanços
desmatamento divulgados pelo Instituto da pandemia. Nessa mesma direção, o
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) Chanceler Araújo descreveu a Covid-19 como
e desprezados os relatórios científicos do um “comunavírus”, culpabilizando Pequim
Painel Intergovernamental de Mudança do pelo avanço do vírus – o que abriu novo
Clima (IPCC, da sigla em inglês). Segundo capítulo de desencontros diplomáticos com o
o chanceler Araújo, o Brasil estaria sendo governo chinês.
vítima de análises ideologizadas sobre o meio No que tange à dimensão regional,
ambiente, o que, segundo ele, caracteriza- deve-se frisar que o governo Bolsonaro
se como um “climatismo”, sendo esse um não dispõe de um projeto propriamente
dos corolários ameaçadores do “globalismo” dito para a América Latina (ou América do
(TEIXEIRA, 2019). Como consequência, se Sul, em específico). Primeiramente, deu-se
deu o rompimento de contratos do Fundo continuidade ao processo de desconstrução,
Amazônia e indisposições públicas com já em curso no governo Temer, das
diversos países, destacando-se a França e a iniciativas, projetos e compromissos com o
Irlanda, que declararam se opor ao acordo progressismo latino-americano. Ao mesmo
de livre comércio entre a União Europeia e tempo, observou-se, sobre essa região, um
o Mercosul. Ademais, chama-se atenção para efeito de transbordamento (spill-over effect)
as tentativas de fragilização da legislação da articulação entre os projetos doméstico e
ambiental, por iniciativa do Ministro do Meio internacional. Em seus primeiros meses de
Ambiente, Ricardo Salles. gestão, Bolsonaro buscou uma aproximação
Ao longo de 2020, o negacionismo do com seus pares conservadores na região,
presidente frente à pandemia de coronavírus especialmente com Sebastián Piñera, no
aprofundou ainda mais o isolamento Chile, Iván Duque, na Colômbia, e Mauricio
internacional do Brasil. Em agosto de 2020, Macri, na Argentina. Os três países
o Brasil era o segundo país do mundo mais atuaram como uma espécie de trampolim de
afetado pela Covid-19, com mais de 100 lançamento para aproximar o novo governo
mil mortes. Dentre as motivações para aos posicionamentos compartilhados com os
essa situação, destaca-se o negacionismo EUA.
do presidente quanto aos riscos da doença Neste caso, articulou-se a confrontação
e a persistente confusão transmitida pelas com o governo venezuelano de Nicolás
autoridades públicas à população sobre Maduro, sustentada pelo Grupo de Lima,
recomendações oficiais, de âmbito coletivo e com a hostilização ao governo cubano e ao
individual. Logo, constatou-se a irrelevância grupo da Aliança Bolivariana das Américas
do Itamaraty e seu papel contraproducente (ALBA). Estas coincidências não foram
em ajudar o Brasil a obter produtos e convertidas em tijolos de edificação de um
equipamentos médico-hospitalares essenciais projeto de liderança nem motivaram a
para lidar com a pandemia. Como corolário, diplomacia brasileira a apoiar a promoção
as ações da PEB têm sido marcadas por de um novo espaço político regional, como o

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Foro para o Progresso e Desenvolvimento da obedecem essencialmente aos interesses e


América do Sul (Prosul). Rapidamente, ficou prescrições dos EUA e à parceria comercial
evidente o desdém do projeto de Bolsonaro com a China, especialmente protegida
pelo regionalismo latino ou sul-americano, pelo Ministério da Agricultura. Todavia, o
ganhando importância as diferenças políticas atendimento de tais interesses encontra-
intra-regionais de projetos de governo, com se prejudicado, devido às dificuldades de
marcado impacto sobre o relacionamento o governo mostrar bons resultados com
com a Argentina, a partir da posse de Alberto seu projeto liberal-conservador. Em 2019,
Fernández. o Ministro da Economia, Paulo Guedes,
Tal postura pode ser percebida durante afirmou que sua agenda liberal, pautada nas
a pandemia de coronavírus, visto que, diante privatizações e nas reformas para redução do
de um contexto dramático para a América gasto público, proporcionaria um crescimento
Latina, as ações erráticas e contraditórias de 3% a 3,5% no ano. Após o primeiro ano
do Brasil apenas demonstram a erosão de dessa gestão, o Produto Interno Bruto (PIB)
sua capacidade de liderança regional. Não cresceu 1,1% em relação ao ano anterior,
por acaso, o presidente Bolsonaro foi o único mantendo a tendência de baixo crescimento
chefe de Estado ausente na videoconferência desde 2017 (ROUBICEK, 2020).
de alto nível do Prosul, convocada para A busca de equilíbrio no terreno da
discutir a pandemia. Este distanciamento economia política entre necessidades internas
político foi logo respondido com o fechamento e pressões norte-americanas e chinesas
de fronteiras de seus vizinhos, que passaram vem exigindo crescente destreza por parte
a perceber a expansão da Covid-19 no do governo Bolsonaro. Ao mesmo tempo em
Brasil como uma ameaça sanitária regional. que intensifica seus projetos geoeconômicos
Portanto, a crise da pandemia explicitou na Ásia e na África, a exemplo da Belt and
a falta de concertação regional e o efeito do Road Initiative, a China tem ampliado seus
isolamento produzido pelo negacionismo do investimentos na América Latina, com grande
governo brasileiro. interesse no Brasil. Como forma de barrar
o avanço chinês, os EUA têm intensificado
O pilar econômico liberal-conservador seu empenho diplomático para que o Brasil
aceite ser parte do plano Clean Network,
O segundo pilar do projeto de inserção o qual excluiria a presença da empresa
internacional do governo Bolsonaro se chinesa Huawei na infraestrutura de redes
relaciona à condução econômica liberal- de tecnologia 5G no país. Ceder à proposta
conservadora, e à sua funcionalidade para uma dos EUA implicaria em arcar com custos
sinalização externa que pretende motorizar materiais – em vista dos investimentos já
um novo impulso à presença brasileira na realizados – e políticos, uma vez que a China,
economia internacional. A importância um importante parceiro no grupo BRICS,
atribuída às reformas econômicas internas tornou-se uma compradora estratégica para
está imbricada com um processo, de médio o agronegócio brasileiro. Ao mesmo tempo,
prazo, de ampla desestatização da economia a necessidade da manutenção dos mercados
brasileira. O Programa de Parcerias de árabes para as exportações de commodities
Investimentos (PPI), organizado pelo Banco levou o presidente Bolsonaro a incluir em
Nacional de Desenvolvimento Econômico e um de seus primeiros périplos internacionais
Social (BNDES), em 2019, para privatizar uma visita às monarquias conservadoras da
empresas públicas federais, indica o propósito península arábica, as quais operam como
de desconstrução de 70 anos de política aliadas dos EUA, em função de interesses
econômica brasileira. Nesse sentido, a mútuos com Israel.
orientação anti-estatista da gestão econômica O relacionamento com os EUA mostrou-
do governo Bolsonaro é um elemento central se pouco efetivo quando enquadrado num jogo
do atual desenho da política externa, de reciprocidades tangíveis. Por exemplo, na
fazendo desaparecer o binômio autonomia e esteira da tentativa de garantir o apoio norte-
desenvolvimento, que outorgou fundamento americano à entrada do Brasil na Organização
por décadas às ações diplomáticas brasileiras. para a Cooperação e Desenvolvimento
O pilar econômico traduz uma dimensão Econômico (OCDE), o governo Bolsonaro
pragmática ao projeto de inserção externa do liberou a entrada de uma cota anual de 750 mil
bolsonarismo. Busca-se um equilíbrio entre toneladas de trigo americano com tarifa zero,
os compromissos mantidos com o sistema prorrogou por mais um ano a importação de
financeiro e monetário internacional, que etanol americano isenta de uma tarifa de 20%

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(assim como elevou a cota de isenção dos 600 concomitante, o governo brasileiro desistiu
milhões de litros para 750 milhões de litros) e de sediar, em 2019, a Conferência das Nações
abdicou do status de país em desenvolvimento Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-
nas negociações junto à Organização Mundial 25), alegando dificuldades de orçamento.
do Comércio (OMC) (BBC NEWS, 2020). Rompia-se, assim, o posicionamento anterior
Caracterizando-se como um alinhamento do Brasil de utilizar seus recursos ambientais
de voo cego, a estreita colaboração com como um instrumento de poder brando. O
Washington se converteu numa via de mão fato de concentrar a maior biodiversidade
única. Esta lógica foi perceptível com o do mundo, com destaque para a região
gesto aquiescente de Brasília de retirar a amazônica, permitiu ao país, em décadas
candidatura própria e endossar a decisão dos anteriores, assumir um papel de liderança
norte-americanos de pleitear a presidência do em importantes âmbitos da governança
Banco Interamericano de Desenvolvimento global. Como consequência, a delegação
(BID). Com a eleição de Mauricio Claver- brasileira era consultada e seguida nas
Caron, os EUA romperam com um consenso principais decisões internacionais por países
político interamericano mantido desde a em desenvolvimento, especialmente por
criação da instituição, o que de facto abriria representantes sul-americanos e africanos
o caminho para uma reedição da Doutrina (FRAZÃO, 2020).
Monroe (TOKATLIAN, 2020). Prontamente, A perda dessa autoridade ocorre em
o governo brasileiro emitiu um comunicado paralelo à alta no desmatamento e nas
afirmando que recebia “positivamente” a queimadas nas regiões Norte e Centro-Oeste
candidatura dos Estados Unidos, além de ter do país, o que ganhou grande visibilidade no
comemorado a vitória do novo presidente. exterior e colocou o Brasil em rota de colisão
Além disso, o governo Bolsonaro com países europeus, como França, Irlanda,
tem buscado preservar mercados com os Alemanha e Noruega, que suspenderam
países latino-americanos (especialmente repasses para o Fundo Amazônia por
sul-americanos), com a menor dose possível divergências com Bolsonaro sobre a gestão
de compromissos de reciprocidade, de dos recursos. De fato, a atividade diplomática
institucionalidade e de responsabilidades. A brasileira na área ambiental tem caminhado
perspectiva vigente busca minimizar tanto na contramão dos esforços de contrair
os compromissos com a região quanto as recursos, sendo alvo de ameaças de perda
necessidades de negociação e diálogo com de investimentos externos e bloqueio de
os países que a compõem. Durante a cúpula exportações. No vácuo deixado pelo Brasil,
dos presidentes do bloco, em julho de 2020, a Colômbia tem assumido um papel de
o governante brasileiro moderou o discurso articulação regional, promovendo, por
prévio de que o Brasil sairia do Mercosul, exemplo, um encontro com líderes de países
afirmando que o bloco seria “o melhor veículo” vizinhos em pleno auge das queimadas no
para a inserção internacional do país e que Brasil. Com apoio da Alemanha, a Colômbia
contribuiria para a agenda de reformas do seu sediou o Dia Mundial do Meio Ambiente, em
governo (MOLINA, 2020). Essa orientação 2020, está envolvida na próxima COP 15 de
implica lidar com o bloco sub-regional como Biodiversidade e recebeu US$ 360 milhões
um instrumento e não um fim, com o propósito de países como Alemanha, Noruega e Reino
principal de evitar prejuízos ao acordo com a Unido para investimento na área ambiental
União Europeia. (FRAZÃO, 2020).
Ressalta-se aqui o lugar central do
agronegócio enquanto balizador da política O complexo da segurança e defesa
econômica externa do governo Bolsonaro.
Em consonância com os interesses do As políticas no campo da segurança e
agronegócio, o Itamaraty tem deixado de defesa sustentam o terceiro pilar do projeto de
participar de negociações multilaterais em inserção internacional do governo Bolsonaro.
torno de questões ambientais, reduzindo a O nexo interno-externo que sinaliza a
prévia importância da diplomacia brasileira importância desse pilar está refletido na
neste tabuleiro da governança global. Logo extensa presença de militares no Poder
no início de sua gestão, o chanceler Araújo Executivo, que retoma uma prática comum
reduziu a equipe dedicada a temas ambientais dos anos de autoritarismo no Brasil. Além
e rebaixou a chefia do setor na estrutura do do cargo de Vice-Presidente e do comando
MRE, em prol do que ele denominou de “luta de 9 dos 22 Ministérios, representantes das
contra o ambientalismo ideológico”. De forma Forças Armadas ocupam posições destacadas

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do segundo escalão do governo Bolsonaro. Enquanto são preservadas linhas de diálogo


Em julho de 2020, os militares da ativa e com a China no campo satelital, ganham
da reserva ocupavam 6.157 cargos civis, impulso os entendimentos em segurança
mais que o dobro do que havia em 2018, no cibernética: com a Índia, em defesa civil;
governo Temer (2.765). O total de militares segurança e inteligência artificial com Israel;
da ativa cedidos ao Executivo federal cresceu e em sistemas de vigilância e satélites, com
13,7% nos primeiros seis meses do governo os Emirados Árabes. Cabe atentar para a
Bolsonaro, na comparação com 2018 (LIS, sintonia entre esta aproximação do Brasil
2020). Vale notar que a presença de militares com Israel e os Emirados Árabes e a aliança
na administração pública ganhou especial recente entre os dois países para fortalecer
visibilidade a partir da decisão presidencial posições de antagonismo ao Irã e ao elo
de nomeação de Eduardo Pazuello como Turquia-Catar.
ministro da Saúde, em meio à pandemia de No âmbito regional, abandonou-se a
coronavírus. Até meados de maio de 2020, perspectiva da cooperação sul-americana
44 representantes na ativa ou na reserva no campo da defesa, tornando letra morta o
das Forças Armadas foram nomeados para envolvimento do Brasil no extinto Conselho
desempenho de funções no segundo escalão de Defesa da Unasul. Por outro lado, há a
desta pasta, em nome de suas aptidões no tentativa de alinhamento com as perspectivas
terreno logístico, o que aponta para um dos EUA sobre as questões de segurança
processo de crescente securitização da saúde na América Latina, havendo maior grau de
pública brasileira (REIS, 2020). permissibilidade à presença de militares
A articulação entre segurança pública norte-americanos na região. A vizinhança
e políticas de defesa, já evidenciada durante norte da América do Sul vem se tornando
o governo Temer, ganhou novos contornos um espaço para o aprimoramento de uma
na gestão Bolsonaro. O protagonismo dos presença militar dissuasiva, articulada com
Ministros militares do “Grupo do Haiti”, percepções defensivas frente a governos,
conformado por oficiais que atuaram em organizações e movimentos vistos como
posições de comando na missão de paz da ONU ameaças político-ideológicas. Verifica-se a
naquele país (MINUSTAH), foi indicativo militarização crescente da região amazônica,
de um novo tipo de nexo interno-externo. tanto por conta da crise com a Venezuela e
Interpretações recentes sugerem a hipótese os processos migratórios resultantes, como
de que a experiência militar brasileira em solo também em relação ao combate de focos
haitiano foi mais importante como terreno de incêndio na região desde 2019. Essa
de experimentação para ações de segurança dinâmica tem gerado um fortalecimento da
pública do que para o fortalecimento de agenda de fronteiras, associado ao processo
valores comprometidos com o Estado de de securitização da ajuda humanitária, que
Direito (RODRIGUES; MACIEL, 2019). já em 2018 conduziu à Operação Acolhida no
O complexo segurança e defesa estado de Roraima (HIRST; MACIEL, 2019).
do governo Bolsonaro se vincula com as O conteúdo da Política Nacional de Defesa
premissas ideológicas de sua política (PND) e da Estratégia Nacional de Defesa
externa, convertendo-se num instrumento de (END), divulgados em meados de 2020,
fortalecimento de suas prioridades. Menciona- foram reveladores. Dentre as mudanças em
se o aprofundamento da vinculação com o relação às versões anteriores, sublinha-se a
governo norte-americano no plano global, identificação de “tensões e crises” em países
selado pelo empenho da Casa Branca para do “entorno estratégico” brasileiro. Constam
que o Brasil se tornasse aliado preferencial menções explícitas à ameaça relacionada
extra-OTAN, e no âmbito regional, com o à presença de potências extrarregionais
estreitamento da colaboração com o Comando no entorno brasileiro. Embora não haja
Sul. referência expressa a algum país, tais
Além do adensamento dos programas documentos aludem à projeção estratégica da
de cooperação militar, percebe-se o propósito China e da Rússia no espaço sul-americano,
de ampliar o intercâmbio em áreas de o que remeteria à presença militar russa
importância estratégica, como a espacial na Venezuela. A END também reforça a
e nuclear . Em ambos os casos, avançam necessidade de ampliar o controle nacional
rapidamente as ações bilaterais sintonizadas sobre as tecnologias voltadas ao setor de
com a política bolsonarista de desestatização segurança e defesa. Por fim, tais documentos
e maior abertura à presença tecnológica demonstram a preocupação com as disputas
internacional (SPEKTOR et. al., 2019). e articulações entre grupos de crime

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organizado através das fronteiras norte compreendermos a política externa enquanto


do país (tais como o Comando Vermelho, o política pública, devemos atentar, portanto, ao
Primeiro Comando da Capital e o Exército de fato de que sua formulação e implementação
Libertação Nacional). Na PND e na END, o advém das escolhas de governo, as quais
foco posto em possíveis tensões na região foi resultam de alianças, barganhas e conflitos
utilizado como argumento para justificar a entre representantes de interesses diversos,
nova expansão de recursos orçamentários na que expressam a própria dinâmica da política
área de defesa. (MILANI; PINHEIRO, 2013).
De fato, desde o início do governo O cenário da pandemia de Covid-19
Bolsonaro, os investimentos federais na área potencializou uma política externa que
de defesa cresceram 33%, alcançando R$ 16,5 combina isolamento com um mimetismo
bilhões em 2019, correspondendo a cerca de ideológico associado a outras experiências
29% de todo o orçamento de investimentos de governo, comprometidas com a visão de
federais no período (LUPION, 2020). Soma- mundo da extrema direita internacional.
se o fato de que a gestão Bolsonaro ampliou A articulação entre o negacionismo e o
a contratação das Forças Armadas como isolacionismo latentes robustece o perfil anti-
executora de grandes obras, tais como a regionalista da política externa de Bolsonaro.
ampliação de rodovias federais e a construção A diplomacia brasileira tem produzido
da Ferrovia de Integração Oeste-Leste . É uma política de “má-vizinhança”, a qual
perceptível o nexo entre o empreendedorismo abre mão de variáveis brandas de poder e
demonstrado pelas carteiras militares impõe uma presença dissuasiva, que se faz
para a condução de projetos nas áreas de acompanhar por laços econômicos com baixa
infraestrutura e comunicações em todo o institucionalização e um diálogo político de
território nacional e o apoio econômico prestado monossílabos, sem pretensões de ocupar
aos programas de cunho estratégicos, como os espaços em instituições multilaterais de nível
nuclear, satelital, espacial e cibernético. regional e/ou global.
Ao mesmo tempo, ao defender um
Considerações finais alinhamento incondicional com as posições
internacionais do governo Trump, (re)
Observa-se, no Brasil, uma expansão instala-se a centralidade do vínculo com
de interpretações e análises críticas que os EUA na PEB. Este relacionamento
buscam cunhar um marco conceitual para constitui um relevante elo que articula os
definir e explicar o governo Bolsonaro. O pilares político-ideológico, sua economia
tema da política externa ganhou especial política e o complexo de segurança e defesa.
atenção neste esforço em vista da importância Consideramos aqui crucial retomar a reflexão
atribuida pelo Planalto à sua articulação sobre o sentido da aquiescência de Brasília
com o projeto de poder em curso. O discurso à Washington. De um lado, a preeminência
presidencial recentemente proferido na norte-americana obedece ao que Hélio
sessão de abertura da 75º Assembléia Geral Jaguaribe conceituou como uma lógica
da ONU foi expressão contundente de que tal intra-imperialista etnocêntrica, uma opção
necessidade esteja plenamente incorporada às preferente do conservadorismo republicano,
falácias da narrativa oficial do bolsonarismo. que se manifesta pela maximização dos
Nosso empenho aqui foi o de desenhar interesses, a projeção da superioridade da
um arcabouço multidimensional de sua força e uma estreita concepção étnica do
política externa, com base na identificação de próprio centro (JAGUARIBE, 1979). Do
suas três bases de sustentação. Partimos do lado brasileiro, a proposição pareceria estar
suposto que estes pilares operam articulados mais próxima do atual modelo colombiano de
ao projeto de poder do atual governo. Cabe cooperação associada, no qual a subordinação
esclarecer, entretanto, que esta articulação representa a outra face de um ato de
não implica uma plena harmonia no interior renúncia de autonomia, do que um revival
do tripé, já que os atores e interesses em de um alinhamento motorizado por cálculos
cada caso revelam um vínculo específico pragmáticos, já praticado pelo país em tempos
com a liderança deste projeto. O sentido anteriores (HIRST, 2006).
de complementariedade entre os vetores As premissas atuais desta política
político-ideológicos das ações externas, os expressam, igualmente, a contestação dos
seus fundamentos econômicos e o peso de ideais e projetos associados à governança
seu componente militar não exclui choques democrática global. A literatura internacional,
e contrariedades entre as três searas. Ao particularmente Ocidental, destaca que a nível

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global vivemos um momento de crise, retração Brasil-EUA: aliança, alinhamento,


e volatilidade da governança democrática, do autonomia, ajustamento e afirmação. In:
multilateralismo e dos valores supostamente ALTEMANI, Henrique; LESSA, Antônio
progressistas que conformam as políticas Carlos. Relações Internacionais do Brasil:
ambientais e de proteção aos direitos temas e agendas. São Paulo: Saraiva, 2006.
humanos (APPADURAI, 2019). Assim, torna-
se premente aprofundar a análise sobre a JAGUARIBE, Helio. Autonomia, periferia y
PEB em um momento de ampliação das hegemonia céntrica. Estudios Internacionales,
contestações a diversas práticas democráticas vol. 12, n. 46, Santiago, 1979, pp. 91-130.
a nível global. Parece evidente a sobreposição Disponível em: <https: //revistaei.uchile.cl/
deste processo com o estreitamento do espaço index.php/REI/article/view/16458>. Acesso
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ações construtivas de mediação e diálogo
que busquem encaminhamentos normativos LIMA, Maria Regina Soares de;
e práticos com sentido plural e inclusivo. A ALBUQUERQUE, Marianna R. O Estilo
rápida reversão do legado da presença do Bolsonaro de Governar e a Política
Brasil como um referente progressista que Externa. Boletim OPSA, n. 1, Jan./Mar.,
perseguia tal espaço, nos contextos regional 2019. Disponível em: <http://opsa.com.
e global, impele-nos a buscar explicações br/wp-content/uploads/2017/01/Boletim_
sobre a recente vinculação entre o quadro de OPSA_2019_n1-jan-mar.pdf>. Acesso em: 15
transformações da realidade brasileira e a jan. 2020.
mudança de época no cenário internacional.
Como diria J. L. Borges (2002), “a esperança LIS, Laís. Governo Bolsonaro mais que
é a memória do futuro” . dobra número de militares em cargos
civis, aponta TCU. Portal G1, 17 jul. 2020.
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Boletim OPSA • I S S N 1809-8827 • N. 3 • Jul./Set. • 2020

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TOKATLIAN, Juan Gabriel. ¿Por qué la

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Boletim OPSA • I S S N 1809-8827 • N. 3• Jul./Set. • 2020

Trajetória recente do Banco da tentativa de afrouxamento das restrições


o país na gestão Obama, surge enquanto li-
Interamericano de Desenvolvimento e derança política representando os interesses
o regionalismo nas Américas dos EUA na região. O BID, responsável por fi-
nanciar políticas públicas de desenvolvimen-
Ghaio Nicodemos Barbosa to social, se tornou peça chave na estratégia
Pesquisador do OPSA estadunidense de pressão ao governo de Ma-
duro, e aos demais governos não alinhados a
Introdução Washington. A apresentação de uma candi-
datura estadunidense para a presidência do
A recente eleição para o cargo de presi- banco segue como mais um passo para o for-
dente do Banco Interamericano de Desenvol- talecimento da estratégia regional dos EUA.
vimento (BID), ocorrida em setembro de 2020, Este artigo, focará nos antecedentes do Ban-
aumentou o peso e a influência dos Estados co Interamericano de Desenvolvimento, apre-
Unidos nas instituições regionais do sistema sentando brevemente a história de origem
interamericano. A postura da política exter- do banco, suas regras explicitas e acordos in-
na estadunidense, conduzida pelo presidente formais. Na sequência, apresenta uma breve
Donald Trump, a nível global vem apresen- avaliação dos antecessores do recém empos-
tando um desprezo ao multilateralismo e sado presidente do banco, em busca de pistas
desprestigiando as principais organizações para avaliar a postura estadunidense frente o
multilaterais do sistema internacional, cons- organismo. Por fim, destaca-se a recente elei-
truídas em boa parte com a colaboração dos ção para a presidência do banco, ocorrida em
EUA. Instituições como a Organização das setembro de 2020, contando com a candida-
Nações Unidas (ONU), a Organização Mun- tura de Mauricio Claver-Carone, as críticas
dial de Saúde (OMS), a Organização Mundial ao candidato estadunidense e dificuldade de
do Comércio (OMC), e mesmo tratados de se- construir um concorrente viável.
gurança coletiva como a Organização do Tra-
tado do Atlântico Norte (OTAN) viram um Antecedentes
enfraquecimento da presença estadunidense.
Apesar disso, a presença dos EUA vem rece- A fundação do BID, em 1959, contou
bendo um forte reforço no continente ameri- com a participação fundamental do Brasil,
cano, em instituições regionais como o Banco então governado por Juscelino Kubitschek.
Interamericano de Desenvolvimento (BID), a No âmbito da Organização dos Estados Ame-
Organização dos Estados Americanos (OEA) e ricanos o país reivindicava para a região um
o Tratado Interamericano de Assistência Re- plano de desenvolvimento econômico nos mol-
cíproca (TIAR), organizações que vem sendo des do Plano Marshall (Europa Ocidental) e
utilizadas sistematicamente para preservar a do Plano Colombo (focado no Japão e depois
hegemonia estadunidense nas Américas. Nes- expandido para o Sudeste Asiático) para pro-
sas mesmas instituições multilaterais, EUA e mover a industrialização e o desenvolvimen-
aliados continentais se opõem tanto aos paí- to econômico na América Latina. A gestão
ses do continente que divergem das diretrizes estadunidense de Dwight Eisenhower, en-
dos EUA (independentemente de estarem ou tretanto, se mantinha distante do continente
não nas organizações, como é o caso de Cuba), americano, focada no conflito Leste-Oeste da
como buscam limitar a incidência de potên- Guerra Fria, o que fortaleceu movimentos po-
cias extrarregionais, sobretudo a China. líticos anti-EUA na região.
A forte atuação contra o regime vene- Dialogando com o pensamento da Co-
zuelano de Nicolás Maduro, líder que veio missão Econômica para a América Latina e
paulatinamente se retirando dos organismos Caribe (CEPAL), que defendia a identificação
multilaterais da região, vem encontrando de gargalos nas economias latino-america-
respaldo no esforço de substituir o reconheci- nas, foi possível uma confluência de países
mento do governo Maduro pela identificação do continente entorno da bandeira do desen-
de Juan Guaidó como representante legiti- volvimento, que seria expressa na proposta
mo do estado venezuelano. Mauricio Claver- da Operação Panamericana (OPA) .Uma das
Carone, que atuou como alto conselheiro na principais justificativas da Operação Pana-
gestão Trump e serviu como figura chave na mericana, lançada em 1958 pelo líder bra-
estratégia estadunidense de embate contra a sileiro, era a construção de um sistema de
Venezuela de Nicolás Maduro e na retoma- cooperação para o desenvolvimento e de uma
da de políticas restritivas contra Cuba depois área de livre-comércio na América Latina,

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que buscaria superar a condição de subde- O capital ordinário inicial do banco, de


senvolvimento econômico e promover a pros- 850 milhões de dólares, foi revisto e amplia-
peridade. Em um contexto de bipolaridade, a do na medida em que novos membros (mutu-
proposta apresentava uma ameaça implícita ários e não mutuários) se uniram à organi-
de que, a ausência de uma maior cooperação zação, ou conforme interesse da maioria dos
dos EUA na região, acarretaria a aproxima- países membros, ao qual se somava mais 150
ção comercial dos países ao bloco socialista. milhões de dólares para o Fundo de Opera-
A Revolução Cubana acabaria reforçando a ções especiais. Em 2016, na nona e mais re-
ameaça de uma possível guinada no conti- cente expansão de capital, o banco passou a
nente para uma agenda econômica socialista contar com o capital de 170,9 bilhões de dóla-
O banco foi fundado no final de 1959 , com o res.
apoio de 18 países, que ratificaram o convenio Com sede definida para a cidade de
de associação. Washington, capital dos EUA, o banco tem
A iniciativa da Operação Panameri- suas decisões políticas decididas pela Assem-
cana esboçava ainda uma mudança do olhar bleia de Governadores, órgão que agremia os
preferencial para a cooperação com os EUA representantes nomeados pelos sócios do ban-
para uma aliança multilateral continental e a co e com poder de voto proporcional ao capital
busca pela autonomia regional. O continente investido. Uma das principais preocupações
já contava com um acordo de segurança cole- dos sócios mutuários, aqueles com poder de
tiva multilateral, o Tratado Interamericano voto no conselho do banco e que podem soli-
de Assistência Recíproca (TIAR), assinado citar financiamento de projetos em seus paí-
em 1947; assim como com uma organiza- ses, era que devido ao estatuto conferir voto
ção política regional, a Organização dos Es- proporcional ao capital investido no banco,
tados Americanos (OEA), fundada em 1948. que os Estados Unidos, que naquele momen-
No seio da Organização das Nações Unidas to detinha 42,05% dos votos, monopolizassem
(ONU) se estabeleceu a Comissão Econômica as decisões executivas do banco, algo que já
para a América Latina e Caribe, com sede em acontecia nas instituições de Bretton Woods.
Santiago, Chile, também fundada em 1948, A ideia, para evitar a prevalência estaduni-
que seria responsável por boa parte do pen- dense, foi resolvida com a definição de que os
samento desenvolvimentista que moveu di- países mutuários fossem, somados, os deten-
versos governos nos anos seguintes. Faltava, tores e responsáveis pela maioria simples do
entretanto, uma organização financeira ca- capital do banco e, consequentemente, do po-
paz de financiar projetos de desenvolvimen- der de voto na Assembleia de Governadores.
to alinhados com os objetivos dos governos Segundo o estatuto (Artigo VII, Seção Qua-
no continente, e havia a expectativa de que tro) que fundou o banco, o poder de voto dos
do mesmo modo que havia acontecido com sócios mutuários não pode cair para menos de
o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o 50,005%.
Banco Mundial, fundados após a Conferência Com a adesão de novos sócios não-mu-
de Bretton Woods em 1944, os EUA aportas- tuários, essa preocupação se intensificou, vis-
sem recursos financeiros à nova instituição. to que uma das principais intenções dos paí-
Com a fundação consolidada em 30 de dezem- ses latino-americanos junto ao BID era que o
bro de 1959, onde seria integralizado o capital banco levasse em consideração os interesses
necessário para a operação financeira e colhi- de desenvolvimento dos estados nacionais to-
das as assinaturas dos sócios mutuários e não madores de empréstimo e não ficasse subor-
mutuários, teria início a trajetória deste que dinado aos interesses dos financiadores. Em
figuraria como primeiro banco regional de todas as expansões de capital do banco foi
desenvolvimento. Subscreveram enquanto garantido que mais de 50% dos votos corres-
sócios, dezenove países latino-americanos e pondessem aos sócios-mutuários.
caribenhos como membros mutuários mais os Como regra adicional, que também
Estados Unidos enquanto membro não-mu- tem o papel de evitar que dentre os sócios
tuário. Para participar enquanto membro mutuários aqueles com a maior porcentagem
mutuário, é necessário ser membro ativo na de votos assegurada pelas cotas de capital
OEA, e para figurar enquanto não mutuário prevalecessem sobre os demais, é exigido que
extrarregional é preciso ser membro do FMI. para vencer a eleição para a presidência do
Essa é uma das razões para que Cuba, que banco mais da metade dos países americanos
não ratificou o Convênio e deixou de ser asso- votem no candidato vitorioso. Atualmente os
ciada a OEA, só poderia ser admitida após a oito maiores sócios do continente (dois, EUA e
readmissão naquela organização. Canadá, são não-mutuários) acumulam jun-

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tos cerca de 73% dos votos e os vinte países gional.


restantes, somados, detêm apenas 11% dos Seu sucessor, Antonio Ortiz Mena, foi
votos. É exigido, desta maneira, que dos 28 responsável pela grande expansão de capi-
sócios regionais (mutuários e não-mutuários) tal do banco, para 40 bilhões de dólares, bem
pelo menos 15 votem no candidato vencedor. como pela entrada de países extrarregionais
Outro elemento crucial na constituição do como financiadores e sócios não-mutuários,
BID e de fortalecimento dos países mutuários aumento de 23 para 44 sócios, em um dos mo-
na correlação de forças do banco, diz respeito mentos mais críticos da região, no auge dos
a um acordo tácito onde os EUA se compro- regimes militares e da crise internacional do
metem a não apresentar a candidatura de petróleo. A frente do banco por 18 anos, entre
um cidadão de seu país para a presidência do 1971 e 1988, renunciou ao cargo por conta
banco, o que acabou em um acordo onde o in- das fortes pressões do presidente estaduni-
dicado pelo governo estadunidense ocuparia dense Ronald Reagan, liderou o banco em um
a vice-presidência executiva desta institui- momento onde o consenso hemisférico entor-
ção. Até as eleições de 2020, quando essa re- no da agenda de desenvolvimento já havia
gra tácita foi quebrada, os quatro presidentes sido desfeito e os EUA não mais orientavam
foram indicados sucessivamente por Chile, a atenção para o hemisfério . Nessa gestão,
México, Uruguai e Colômbia.Com mandatos em 1985, seria criado o BID Invest, filial do
de cinco anos, e possibilidade de reeleição, o banco orientada para o investimento no setor
presidente do BID é responsável por conduzir privado, aportando recursos para emprésti-
as atividades diárias do banco. mo para empresas da América Latina.
Ademais, uma regra do convênio cons- O terceiro presidente do banco, que
titutivo apresenta a necessidade de que todas permaneceu no cargo até 2005, também esta-
as decisões vitais do banco, como a adesão va fortemente alinhado às visões da CEPAL.
de novos sócios, aumento do capital, altera- O uruguaio Enrique Iglesias Garcia, que já
ções estatutárias, criação ou extinção de di- havia servido como Ministro de Relações Ex-
retorias executivas, sejam votadas por pelo teriores do Uruguai e Secretário Executivo
menos 75% dos sócios. Caso mais de 25% dos da CEPAL. Durante esta gestão, foram feitas
votos não estejam presentes em uma decisão dois novos aumentos no capital do banco, que
que exige votação na Assembleia de Gover- com a fase de redemocratização no hemisfério
nadores se ausente de uma votação, o que in- ocidental, assumiu de novo o papel de auxiliar
clui a escolha do presidente do banco, o tema nos processos de integração regional, abertu-
não pode ser votado, e deve ser adiado. Esta ra econômica, promoção do livre-comércio e
regra coloca os EUA, que inicialmente tinha reformas institucionais. Em um momento de
42,05% dos votos e atualmente ainda pre- forte liberalização econômica, reforma do es-
serva 30,01%, na posição de ator individual tado e principalmente de constituição de no-
com poder de veto. Outras estruturas de veto vos arranjos econômicos e produtivos, a presi-
institucional só são possíveis com a formação dência BID equilibrava uma visão orientada
de uma coalizão dos sócios. A seguir, faremos para o desenvolvimento regional e as deman-
uma breve apresentação dos ex-presidentes das de desenvolvimento econômico.
do BID e o seu papel no fortalecimento do
sistema interamericano durante as últimas A aproximação da presidência do BID com
quatro décadas do século XX e a aproximação Washington no século XXI
com a agenda de política externa dos EUA a
partir de 2005. Com o início do século XXI, sobretudo
no final da década de 2000, a América Lati-
A identidade latino-americana e multilateral na vivenciou um dos momentos em que mais
nas presidências do BID no século XX mandatários do continente, eleitos democra-
ticamente, comandavam as principais econo-
Felipe Herrera, primeiro presidente mias da região, fenômeno que foi denominado
da instituição entre 1960 e 1970, após ter Maré Rosa (Pink Tide ou Marea Roja). O mo-
servido como representante chileno Banco mento, marcado por uma exaustão do modelo
Mundial e no Fundo Monetário Internacio- econômico neoliberal aplicado na década an-
nal, era fortemente vinculado a uma visão la- terior, não impediu, no entanto, a candidatu-
tino-americanista e veemente na reprodução ra bem sucedida de Luis Alberto Moreno, em-
do pensamento cepalino, o que fez com que a presário e ex-ministro colombiano que serviu
primeira década do BID tivesse um caráter como embaixador da Colômbia em Washin-
bem marcado de proposição da integração re- gton, em um momento de forte alinhamento

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entre os EUA e o país do candidato, devido ao toral, fortaleceu a nova conjuntura, onde os
Plano Colômbia. poucos governos progressistas, alinhados aos
Em 2005, Luis Alberto Moreno concor- valores latino-americanistas e multilaterais
reu com o candidato brasileiro João Sayad que fundaram o banco, não tivessem capaci-
, recebendo o voto de 15 dos 28 países ame- dade de lançar uma candidatura concorrente.
ricanos na organização, e 26 votos no total. Ao mesmo tempo, a subordinação brasileira
Nascido nos EUA e naturalizado colombiano, aos EUA, sob o governo de Jair Bolsonaro,
Moreno foi indicado pelo governo colombiano acabou sendo fundamental nesta nova injun-
e contou com apoio forte apoio do governo dos ção. O governo brasileiro, até pouco antes do
EUA. O presidente George W. Bush buscava lançamento de candidaturas para a presidên-
fortalecer diretrizes conservadoras nas rela- cia do BID tinha expectativas de que Trump
ções exteriores estadunidenses, o que incluiu apoiaria um candidato indicado pelo Brasil, o
um reforço da visão neoliberal nas institui- que não ocorreu, como veremos adiante.
ções financeiras internacionais. Reeleito Um dos eventos mais marcantes no
duas vezes, em 2010 e 2015, Moreno não tabuleiro de xadrez interamericano foi a dis-
enfrentou forte oposição dos governantes da cussão sobre uma possível suspensão da Ve-
Maré Rosa, tendo obtido votação quase unâ- nezuela em todos os tratados multilaterais da
nime no último pleito, contando com a ausên- região, com a intenção de evitar que o governo
cia da Venezuela. de Maduro tenha voz nos organismos regio-
Este contexto, de redirecionamento nais. Com a impossibilidade dos organismos
ideológico e incremento de poder de uma co- multilaterais da região chegarem a um posi-
alizão favorável ao projeto regional estaduni- cionamento comum, as tensões frente à crise
dense, serviria como campo fecundo para que política venezuelana vieram a se intensificar,
nos anos seguintes, já sob a administração de quando as instituições regionais decidiram
Donald Trump, fosse possível que os EUA suspender a participação do país. Dois movi-
apresentassem candidatura própria e rom- mentos foram marcantes no tratamento dado
pesse com a tradição não-escrita de que um a Venezuela, a expulsão do representante do
representante daquele país não iria presidir país indicado pelo presidente Nicolás Maduro
a instituição. e a aceitação do indicado por Juán Guaidó,
em março de 2019, o que tornou o banco de
Os EUA reforçam a posição em um “novo re- desenvolvimento a primeira instituição mul-
gionalismo” tilateral a reconhecer o presidente autodecla-
rado.
Desde a eleição de Donald Trump para Outro passo importante na estratégia
a presidência dos EUA, vemos também uma de Trump para a pressionar a saída de Madu-
reversão da maré progressista nas eleições ro do governo da Venezuela foi dado no mes-
dos países e uma ascensão de governos conser- mo período, dessa vez na OEA, organismo
vadores alinhados a Washington. Ademais, a onde até então o governo venezuelano estava
gestão estadunidense iniciada em 2017 tem suspenso, contando com um forte aliado na
como novos alvos a contenção do regime vene- presidência da organização, o uruguaio Luiz
zuelano de Nicolás Maduro, ao qual faz ame- Almagro . Eleito em 2015 e reeleito em mar-
aças abertas. Trump também pretende impe- ço deste ano, o ex-chanceler uruguaio saiu da
dir a possibilidade de que Cuba se reinsira ao posição de diplomata progressista para a de
sistema interamericano. Graças a Resolução defensor da nova onda conservadora. Atuan-
2438/2009, da Assembleia Geral da OEA, é do de forma contundente contra os governos
possível que Cuba reivindique a reintegra- de esquerda na região, como o fim do governo
ção na organização, condição necessária para de Evo Morales, na Bolívia, linha dura com o
que o país seja também admitido como sócio governo de Maduro na Venezuela e antipático
mutuário do BID e seja apto a requerer em- às reformas constitucionais em Cuba.
préstimos, dado que o país assinou a carta de Após o pedido do autodeclarado presi-
fundação do banco. De Washington, onde se dente venezuelano de readmissão do país na
localizam as sedes do BID e da OEA, Trump OEA, feito em fevereiro de 2019 e atendido
reforça a posição da capital estadunidense em abril do mesmo ano, foi designada uma
também enquanto capital do sistema intera- representação do país em desalinho com o go-
mericano. verno de Maduro. Com o reconhecimento da
A gradativa substituição dos governos legitimidade em indicar a representação di-
da Maré Rosa por governos conservadores plomática, o que oficializou o papel de Guiadó
alinhados a Washington no atual ciclo elei- enquanto representante interino do governo

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venezuelano, ficou entendido, que no sistema na com a China, onde somados, estes devem
interamericano, Juan Guaidó atuaria até que cerca de 140 bilhões de dólares aquele país ,
sejam realizadas novas eleições na Venezuela algo que vem sendo mobilizado pela política
. Com isso foi possível que a coalizão formada externa estadunidense como uma armadilha
por EUA, Brasil, Colômbia e a representação que tornaria a região dependente e presa à
de Juan Guiadó acionasse o TIAR contra o go- esfera de influência chinesa. .
verno venezuelano de Maduro, em setembro
de 2019. Na mesma ocasião foi aprovada na A candidatura e a eleição de Claver-Carone
OEA a estruturação de uma rede para identi- em 2020
ficar e punir membros do governo venezuela-
no de Maduro por atividades ilícitas nas fron- É nesse contexto que será apresenta-
teiras do país e no exterior. da a candidatura do estadunidense Mauricio
A recente pandemia de Covid-19, refor- Claver-Carone, que reivindica suas raízes
çou a posição cubana dentro de outras orga- cubanas, para se legitimar enquanto latino-a-
nizações multilaterais do sistema interame- mericano e se firmar como legítimo candida-
ricano, como a Organização Pan-Americana to da gestão Trump para o BID. Antes de se
de Saúde (OPAS), por sua cooperação na área vincular a administração de Donald Trump,
de saúde. Nesse contexto, o governo estadu- o candidato teve atuação importante no lobby
nidense pressionou a organização com o cor- contra o governo cubano e a favor do embargo
te no aporte de recursos, com a finalidade de ao país enquanto este mantiver o atual regi-
provocar uma investigação contra o governo me político. Claver-Carone acumulou diver-
cubano e constranger o país em outros espa- sos cargos na gestão do atual presidente esta-
ços multilaterais. No mês de maio, a adminis- dunidense, onde atuou como parte da equipe
tração Trump colocou o governo cubano no- do Departamento de Tesouro (2017) e repre-
vamente na lista de países que não cooperam sentante estadunidense para o FMI (2018).
com o combate ao terrorismo, justificada pela O maior destaque na trajetória do can-
não-extradição de guerrilheiros colombianos didato estadunidense ao BID deve ser dado
vinculados ao ELN. Nessa lista ainda consta para a sua posição enquanto Assistente Es-
a Venezuela de Maduro. Ademais, como par- pecial da Presidência e Diretor Sênior para
te da sua estratégia para a reeleição, Donald Operações do Hemisfério Ocidental no Con-
Trump faz acenos fortes para a comunidade selho Nacional de Segurança, cargo que ocu-
cubana do país e anunciou no mês de setem- pou entre setembro de 2018 até a nomeação
bro o endurecimento das sanções (outrora como presidente do BID. Foi neste cargo, que
afrouxadas pela administração Obama) con- Carone atuou ativamente na estratégia esta-
tra a ilha, limitando a aquisição de mercado- dunidense contra os regimes de esquerda no
rias locais e o turismo. continente e fez promessas para os países da
Outro elemento fortemente presen- região em relação ao fortalecimento do BID
te no comportamento dos EUA é a cada vez enquanto substituto da China no provimento
maior presença da China na região, que fi- de empréstimos para o continente. Promete
gura enquanto parceira comercial da maioria ainda que, caso as empresas estadunidenses
dos países do continente e vem ampliando saiam da China , o BID pode ser fundamental
seus investimentos diretos no mesmo. Em para que estas se estabeleçam no continente.
2010, os empréstimos chineses para a re- A candidatura estadunidense não foi bem
gião ultrapassavam 37 bilhões de dólares, recebida por políticos estadunidenses e lati-
valor superior aos 30 bilhões de dólares em no-americanos, muitos desses, bastante im-
empréstimos feitos pelos EUA, BID e Banco portantes na trajetória recente do continente.
Mundial, somados no mesmo ano. Entretan- Sob a acusação de tentar consertar aquilo que
to, desde o fim do superciclo das commodities, não estava quebrado , polarizar e politizar o
a participação chinesa no financiamento para BID e outras instituições multilaterais, a
a América Latina reduziu substancialmente, apresentação da candidatura estaduniden-
para 1,1 bilhão de dólares oferecidos pelos se pela gestão de Donald Trump não foi bem
principais bancos do país. Apesar dessa forte recebida por ex-burocratas dos governos de-
redução, onde a China hoje representar uma mocratas e republicanos que antecederam a
parcela ínfima do capital do BID (0,004%), atual gestão nas últimas quatro décadas. Da
existem elementos que motivam restringir a mesma forma, ex-líderes latino-americanos
ação do país e assegurar a redução da presen- manifestaram desapreço pela quebra do acor-
ça chinesa na região. O primeiro, diz respeito do tácito por parte dos EUA, que apresenta-
ao endividamento de países da América Lati- ram carta, que repercutiu nas redes sociais

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dos ex-mandatários ,reivindicando respeito O Brasil, inicialmente pretendia apre-


aos acordos históricos firmados no continen- sentar a candidatura do economista Rodrigo
te, relembrando a 1ªSessão da Assembleia de Xavier, indicado pelo Ministro da Economia
Governadores do BID, ainda em 1960, onde brasileiro que em comunicação oficial costu-
se firmou o compromisso na fórmula de um rava o apoio de países caribenhos. Entretan-
presidente latino-americano e um vice-presi- to, a estratégia de alinhamento automático
dente estadunidense. do presidente Jair Bolsonaro fez com que o
Os ex-presidentes signatários do do- país apoiasse a candidatura estadunidense,
cumento destacaram ainda a importância na expectativa, sem acordo prévio, de que as-
da Covid-19 no atual momento, onde o conti- sim que fosse eleito Claver-Carone indicasse
nente figura como a região mais afetada pela um brasileiro para a vice-presidência do ban-
pandemia. Reivindicaram também o adia- co, que habitualmente é dada a um cidadão
mento das eleições para março de 2021, e cri- dos EUA. Após a eleição, o governo brasileiro
ticaram que uma coalizão formada por quatro agora negocia a indicação de Carlos da Costa
países (EUA, Brasil, Colômbia e a represen- para a presidência do BID Invest, braço de
tação venezuelana de Juan Guiadó) acumula financiamento privado do banco.
quase 49% dos votos. Observou-se a manifes- Na condição de sócios mutuários, Ar-
tação do Grupo de Puebla, que elaborou car- gentina, México, Chile e Costa Rica esboça-
ta semelhante , assinada por 27 políticos da ram oposição a candidatura estadunidense,
região, reforçando a proposta de adiar as elei- porém não concordaram em uma estratégia
ções para março de 2021. O movimento que comum para se opor aos EUA na Assembleia
pode ser interpretado como uma aposta nos de Governadores, o que atraiu a atenção dos
resultados das eleições estadunidenses de sócios não-mutuários da União Europeia,
2020, que podem não reeleger Donald Trump, também descontentes. Os governos argentino
e uma tentativa de ganhar tempo. e costa-riquenho, que inicialmente lançaram
Como forma de ganhar tempo e legiti- as candidaturas de Gustavo Béliz e Laura
mar a própria candidatura, Mauricio Claver- Chinchilla, articularam apoio ao candidato
Carone reforçou em entrevistas a sua condi- próprio, algo que em pouco tempo se mostrou
ção enquanto latino-americano e de família insuficiente para barrar a eleição de Claver-
cubana sobrepondo essas identidades ao sta- Carone. Chinchilla, candidata e ex-presiden-
tus de cidadão estadunidense. Além disso, te costarriquenha, se alinhou aqueles que en-
como representante do governo Trump, refor- tendiam que o melhor cenário seria propor o
çou a demografia de origem latino-americana adiamento das eleições para março de 2021, e
na população dos EUA, algo que foge a pos- no início de setembro retirou a sua candida-
tura do país nas relações exteriores, sobre- tura.
tudo após as recentes políticas de extradição Diante da incapacidade de fortalecer
de imigrantes do continente, acenando para apoio a própria candidatura, o governo ar-
a população latina com cidadania estaduni- gentino também retirou seu candidato, a dois
dense, sobretudo os expatriados e dissidentes dias da eleição, enquanto articulava o veto
do regime cubano radicados na Flórida, que a eleição, tentando convencer a oposição ao
aprovam o embargo a Cuba. candidato estadunidense se ausentar da elei-
Em entrevista, Carone apontou que ção e impedir que o quórum mínimo de 75%
não seria o primeiro presidente do banco com dos votantes fosse atingido. Apesar de a opo-
cidadania estadunidense ou extrarregional, sição somar mais de 25% do capital do banco,
algo que já aconteceu com Enrique Iglesias não havia consenso sobre ser esta a melhor
(nascido na Espanha) e com seu antecessor estratégia, o que rendeu críticas ao governo
Luis Alberto Moreno, que apesar de ter ado- de Alberto Fernandez. Claver-Carone acu-
tado a cidadania colombiana dos pais, nasceu sou a Argentina de “sequestrar a eleição” e
no estado da Filadélfia e, desde 1998,conta fortaleceu, tanto entre aliados quanto oposi-
com dupla-cidadania estadunidense. Como tores, a ideia de que a obstrução é negativa,
forma de reforçar sua legitimidade enquan- ideia que acabou sendo vista por muitos como
to candidato, Carone apontou que sua can- capaz de provocar a paralisia da instituição.
didatura não foi lançada apenas pelos EUA, Não restando mais estratégias para impedir
mas por um representante de cada uma das a candidatura dos EUA, a única estratégia
regiões do continente, contando também com que sobrou foi a de se abster e não votar na-
a apresentação de El Salvado (América Cen- quela que se tornou a candidatura única para
tral), Guiana (América do Sul) e Haiti (Cari- a presidência do banco.
be). Em 12 de setembro, Claver-Carone foi

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eleito com 30 dos 46 votos, totalizando 66,8% organismos multilaterais da região parece
do capital do banco. Os outros 16 países, que atingir uma nova fase, onde o BID poderá
representam cerca de 31,2% dos votos, opta- ajudar Juan Guaidó a conquistar a Venezue-
ram pela abstenção. No dia 1º de outubro, o la um passo de cada vez. Um exemplo disso
estadunidense foi empossado como presiden- é a recente doação, feita no apagar das luzes
te do BID que já elabora a nova estratégia do da gestão de Luis Alberto Moreno, no valor
banco para região. de 200 mil dólares para o auxílio na região
de Aragua , onde Juan Guaidó, juntamente
Gestão Claver-Carone: prólogo ou introdução com os membros da Assembleia Legislativa
de um novo regionalismo coordenado pelos que presidia antes de se autoproclamar presi-
EUA? dente interino do país, ficaram responsáveis
pela administração dos recursos. Se cumprir
Como vimos anteriormente, dois gran- a promessa feita nas eleições para a presidên-
des fatores favoreceram a eleição bem suce- cia do banco, podemos esperar novos aportes
dida de Claver-Carone: o apadrinhamento de de recursos a Juan Guaidó, que poderá a par-
Donald Trump, circunscrito a uma estratégia tir dos mesmos implementar políticas públi-
de projeção de poder do governo estaduniden- cas concorrentes.
se para todo o continente americano; e a fraca Fazendo dupla com o reeleito presi-
capacidade de articulação dos governos pro- dente da OEA, Luis Almagro , a eleição de
gressistas da região, que hoje são minoria e Claver-Carone na direção de uma das princi-
não conseguem agregar os governos em uma pais instituições do sistema interamericano,
coalizão pragmática e regionalista. A estra- consolida um forte alinhamento com os EUA
tégia de contenção aos governos de esquerda pelos próximos cinco anos e reforça pelos pró-
também possibilitou que os governos conser- ximos cinco anos a coalizão regional de gover-
vadores na região etiquetassem a oposição nos de direita, mesmo no caso de Trump não
aos EUA, por parte de governos democráticos ser reeleito.
progressistas, como antidemocrática e ali-
nhada a regimes autoritários e ilegítimos. Referências
As eleições estadunidenses, no entan-
to, não parecem reservar uma modificação BANCO INTERAMERICANO DE DESEN-
significativa na correlação de forças na re- VOLVIMENTO. Regulamento Geral do Ban-
gião. A candidatura do democrata Joe Biden co Interamericano de Desenvolvimento. Do-
aponta que não haverá recuo da presença es- cumentos Básicos. Disponível em: https://
tadunidense na região, e reforça a oposição da www.iadb.org/pt/legal-resource-center/docu-
presença chinesa na região. Ainda que Biden mentos-basicos. Acesso em: 10/10/2020.
acene de maneira crítica e negativa a aliados
chave de Donald Trump, como o presidente BANCO INTERAMERICANO DE DESEN-
Jair Bolsonaro, as principais diretrizes para VOLVIMENTO. CAPITAL E FUNDOS AD-
o continente, como o reconhecimento de Juan MINISTRADOS. Site institucional do BID.
Guiadó enquanto presidente da Venezuela, Ver: https://www.iadb.org/pt/bid-financas/
persistiriam. Mesmo que sugira a possibilida- capi https://www.iadb.org/pt/bid-financas/
de de revisar sanções econômicas mais duras capital-e-fundos-administrados##~~text=-
aos regimes cubano e venezuelano, o candida- Ap%C3%B3s%20a%20aprova%-
to democrata parece discordar da forma, mas C3%A7%C3%A3o%20do%20Nono,9%20
concordar com o conteúdo da atual política bilh%C3%B5es%20de%20capital%20resga-
externa estadunidense. Independentemente t%C3%A1vel. Acesso em: 05/10/2020.
da eleição, que ocorrerá em 3 de novembro,
a presença estadunidense no sistema intera- BATISTA, Thaís Jesinski. Dois presiden-
mericano deixa claro que veio para ficar, seja tes e três assembleias: a cise na Venezuela
com Trump ou Biden na Casa Branca. se aprofunda. Boletim OPSA, n.1, jan-mar
O Banco Interamericano de Desenvol- 2020, p. 26-30. Disponível em:http://opsa.
vimento, sob Mauricio Claver-Carone, per- com.br/wp-content/uploads/2017/01/Boletim_
manece como peça chave do regionalismo in- OPSA_2020_n1_jan-mar-2.pdf.Acesso em:
teramericano, e não é desprezível que as suas 10/10/2020.
orientações políticas podem reforçar ainda
mais o atual ciclo político conservador no con- ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICA-
tinente. O isolamento da Venezuela de Madu- NOS. AG/RES. 2438 (Resolução sobre Cuba).
ro, excluída de representação nos principais Site institucional da OEA. Disponível em:

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20 anos da Resolução 1325:


A Agenda Mulheres, Paz e Segurança da
Implementação e desafios à Agenda ONU
Mulheres, Paz e Segurança na América
Em 1945, ao fim da Segunda Guerra
do Sul Mundial, foi criada a Organização das
Nações Unidas (ONU), fundamentalmente
Giovana Esther Zucatto baseada em um ideário voltado para evitar
Pesquisadora OPSA que um conflito daquelas proporções voltasse
a acontecer. A Carta de fundação da ONU
Introdução apresenta em seu preâmbulo a igualdade
entre homens e mulheres como um dos
Em 31 de outubro de 2000, o Conselho seus princípios - tal preceito foi incluído no
de Segurança das Nações Unidas (CSNU) documento por iniciativa de um grupo de
adotou, por unanimidade, a Resolução diplomatas liderado pela brasileira Bertha
1325 (S/RES/1325). Na resolução, as partes Lutz. No entanto, preocupações mais
reivindicam que os países-membros promovam específicas sobre o local da mulher na guerra
maior representação feminina nas diferentes e na construção da paz só foram aparecer na
instâncias políticas e nos mais variados níveis pauta da ONU a partir da década de 1990,
de tomada de decisão, assim como o aumento impulsionadas, de um lado, pelas denúncias
da participação das mulheres na prevenção, de abusos e tráfico sexual nas Missões de
na gestão dos conflitos e na construção da Paz da Organização, e, de maneira mais
paz. Foi a primeira vez que o CSNU aprovou específica, na Conferência Mundial sobre
uma resolução específica e abrangente sobre a Mulher de Pequim em 1995, que teve
a temática de gênero. A Resolução 1325 como tema central “Ação para a Igualdade,
incluiu, de maneira permanente, a temática o Desenvolvimento e a Paz”. Em ambos, há
“Mulheres, Paz e Segurança” (MPS) na um papel fundamental de organizações da
agenda da Organização das Nações Unidas sociedade civil, principalmente aquelas de
(ONU), resultando no que se convencionou mulheres e de direitos humanos.
chamar de Agenda MPS. Nos seus 20 anos, A Plataforma de Ação adotada em
analisaremos aqui seus desdobramentos na Pequim trouxe como um de seus 12 eixos
América do Sul. temáticos “A mulher e o conflito armado”. Foi
A primeira parte deste artigo é volta a primeira vez que o tema da guerra apareceu
para o quadro histórico de conformação de maneira explícita na agenda de gênero da
da Agenda MPS no escopo da ONU. Na organização. De maneira mais específica, há a
segunda parte, abordaremos como as vinculação entre a paz e a igualdade de gênero
questões previstas pela Agenda MPS se como indissociáveis e o reconhecimento dos
desenvolveram nos países da América do efeitos diferenciados do conflito armado sobre
Sul. Primeiro, sobre a questão de equilíbrio homens e mulheres. Daí derivam objetivos
de gênero, trataremos da representatividade estratégicos traçados na Conferência, que
de mulheres nos parlamentos e gabinetes incluem aumentar a participação de mulheres
ministeriais dos países sul-americanos. na tomada de decisão para soluções dos
Depois, nos debruçaremos brevemente sobre conflitos, proteger as mulheres em zonas de
o Acordo de Paz na Colômbia e as tratativas guerra e promover a contribuição da mulher
de transversalização de gênero e inclusão de para o desenvolvimento de uma cultura que
mulheres na mesa de negociação. Finalmente, favoreça a paz (ONU, 1995).
traremos os casos dos quatro países que Em outubro de 2000, o Conselho de
desenvolveram PNAs na região: Argentina, Segurança da ONU (CSNU) aprovou
Brasil, Chile e Paraguai, com atenção por unanimidade a Resolução 1325, que
especial para o caso brasileiro. O objetivo é demarcou a institucionalização da ideia
que este artigo seja uma tratativa inicial de de transversalização de gênero (gender
se pensar os impactos, avanços e desafios nos mainstreaming) dentro das preocupações
20 anos da Agenda MPS na região a partir de paz e segurança das Nações Unidas,
de alguns exemplos. É importante ressaltar, e reconheceu as mulheres como agentes
já de saída, que aqui foram selecionados tanto na guerra quanto na paz. De maneira
apenas alguns casos, mas a abrangência da mais específica, prevê-se a inclusão da
Agenda MPS é ampla e suas possibilidades perspectiva de gênero no planejamento do
de implementação são variadas.

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desarmamento, desmobilização e reintegração (sustaining peace). O arcabouço provido pelas


de ex-combatentes (artigo 13) e a inclusão resoluções prevê, entre outras medidas, “a
mandatória de mulheres nos componentes promoção do desenvolvimento sustentável;
militares e civis das Missões de Paz (artigo a erradicação da pobreza; a reconciliação
15) (S/RES/1325). nacional e o diálogo inclusivo; o acesso à
Desde então, os esforços levados a justiça; a promoção da igualdade de gênero;
cabo no âmbito da instituição, no que diz e a mobilização de forma coordenada dos
respeito à gestão de conflitos e construção diversos órgãos e entidades do Sistema ONU”
da paz, procuraram adotar estratégias de (BRASIL, [2016]) como forma de garantir
transversalização de gênero, ou seja, colocar uma sustentação da paz no longo prazo.
as perspectivas e preocupações de gênero Essas medidas seriam trabalhadas não só no
como parte central dessas iniciativas. Isso se pós-conflito, mas também teriam natureza
traduziu em discursos fortemente normativos preventiva. Em consonância, a ideia de “paz
que associam uma maior igualdade de gênero sustentável” reforça a associação normativa
- pelo menos em termos de representação entre igualdade de gênero e construção da
- à possibilidade de garantir a paz de paz característica da Agenda Mulheres, Paz
forma duradoura. Isso aparece na forma de e Segurança.
concepções positivas de paz que priorizam a
igualdade de gênero, considerações sobre as O cenário Sul-Americano
vítimas da violência - ou seja, a guerra em
seu aspecto individual - e justiça social no Como exposto acima, a Agenda
pós-guerra (KARIM e BEARDSLEY, 2016). Mulheres, Paz e Segurança prevê a
De certa forma, os ideais do liberalismo construção de uma paz sustentável para além
clássico e a concepção da paz democrática que de simplesmente um cenário de ausência
permeiam o ideário da ONU desde sua criação de conflito. Significa, assim, que ela prevê
são atualizados para incluir uma variável de uma série de áreas em que os governos – e
gênero. também a sociedade civil – devem atuar.
Desde a Res. 1325, o CSNU já teve oito De forma geral, a estratégia da ONU
novas resoluções relativas à esta temática: para adotar uma aproximação de gênero é
Res. 1820/2008; Res. 1888/2009; Res. baseada nos conceitos de equilíbrio de gênero
1889/2009; Res. 1960/2010; Res. 2106/2013; e transversalização de gênero (GIANINNI;
Resolução 2122/2013; Res. 2242/2015 e Res. VERMEIJ, 2014), que significa paridade
2467/2019. Sem entrar em pormenores, essas entre homens e mulheres nas diferentes
resoluções buscaram aprofundar a discussão instâncias e que seus esforços securitários
sobre gênero e paz no interior da organização, serão sempre atravessados por preocupações
assim como pautar ações mais específicas para com questões de gênero. De forma geral, o
o avanço da agenda. Ainda, a partir de 2014, principal mecanismo que a organização tem
um dos principais pontos de convergência incentivado seus países-membros a adotarem
dos processos de revisão da arquitetura de é a elaboração de Planos Nacionais de Ação
paz e segurança da ONU – o Painel de Alto (PNA), com planejamentos para que a Agenda
Nível Independente sobre Operações de seja levada a cabo internamente.
Paz, o Grupo Consultivo de Peritos sobre a Quanto à questão de equilíbrio de
Revisão da Arquitetura de Consolidação da gênero, os esforços são voltados para uma
Paz e o Estudo Global sobre a Implementação representação mais balanceada de mulheres
da Resolução 1325 (2000) do CSNU – é o em diferentes esferas. Ainda que a atenção
apontamento da necessidade da “inserção da imediata seja por um maior número de
perspectiva de gênero em todos os aspectos mulheres em missões de paz e nas mesas
relacionados à promoção e à manutenção da de negociação, a Agenda MPS também tem
paz e da segurança internacionais” (BRASIL, como uma preocupação fundamental a maior
2017). participação política feminina. Em relação à
Cabe citar ainda a Res. 2282 de 2016 participação de mulheres nos parlamentos e
do CSNU e a Res. 70/262 do mesmo ano gabinetes ministeriais, o quadro é bastante
da Assembleia Geral das Nações Unidas diverso na região. Como mostra a Tabela 14
(AGNU), que ainda que não estejam abaixo, há países como a Bolívia, que possui
diretamente cobertas sob o guarda-chuva da 4 Elaborada a partir da base de dados da UN Wom-
Agenda, trazem uma importante inovação
en. Disponível em: https://data.unwomen.org/da-
que é o conceito de “paz sustentável”
ta-portal . Acesso em 14 out 2020

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uma das maiores taxas de ocupação feminina


no legislativo no mundo, e países como o
Brasil, que apresentam uma baixíssima
representação de mulheres em suas câmaras
parlamentais; o mesmo vale para os gabinetes
ministeriais.

Tabela 1: Representação feminina nos parlamentos e gabinetes ministeriais na América do


Sul (2019)
% mulheres em
% mulheres no
PaÍs posiÇÕes ministe-
Parlamento riais
Argentina 38,8 25
BolÍvia 53,1 14,3
Brasil 15 9,1
Chile 22,6 34,8
ColÔmbia 18,7 52,9
Equador 38 22,2
Guiana 31,9 22,2
Paraguai 15 21,4
Peru 30 27,8
Suriname 29,4 29,4
Uruguai 22,2 42,9
Venezuela 22,2 29,4

Por que é importante, no contexto diferentes formas, promoção da autonomia


da implementação da Agenda MPS, que e independência econômica das mulheres,
mulheres ocupem cadeiras no legislativo acesso à educação, entre outras. Uma maior
e nos gabinetes ministeriais? Como dito presença de mulheres nesses dois espaços
anteriormente, uma das bases da Agenda está seria uma forma de garantir um interesse
na ideia de balança de gênero e sua relação estatal em promover esse tipo de política. De
com a construção de uma paz duradoura. De fato, o que a experiência tem demonstrado
um lado, isso está ancorado na ideia – que é que mulheres tendem a se envolver mais
funciona quase que como uma norma – vigente diretamente em desenvolver políticas que
no arcabouço dos documentos e missões da versem sobre direitos femininos e de crianças.
ONU, que a paz tende a ser mais sustentável Promover a maior participação de mulheres
quando construída com a participação de seria, assim, uma forma de induzir a criação
mulheres, como será abordado adiante no de políticas públicas eficientes e duradouras
caso da Colômbia. Além disso, existe uma visando à igualdade de gênero.
certa atualização da ideia de paz democrática É preciso ressaltar que os dados da
kantiana, de que democracias com mais Tabela 1 são dos mandatos correntes em 2019.
mulheres em seus quadros políticos tendem Nesse intermeio, movimentos importantes
a ser mais pacíficos – o que acaba soando aconteceram na região. No caso da Argentina,
bastante essencialista. por exemplo, Alberto Fernández foi eleito
Porém, a questão a ser ressaltada presidente, e hoje o gabinete ministerial conta
é que a Agenda MPS traz uma série com maior presença de mulheres. Além disso,
de previsões do que os países devem das 22 pastas ministeriais, 6 alcançaram a
implementar internamente, mesmo aqueles paridade (50% mulheres) ou a maioria (+ 50%
que não estejam em situação de conflito, mulheres), enquanto outras 5 ultrapassaram
para construir sociedades mais pacíficas, 40% mulheres em seus quadros ocupacionais.
seguras e igualitárias. Entre elas, políticas de Os ministérios que estão acima dessa média
enfrentamento à violência de gênero – em suas são o da Mulher, Gêneros e Diversidade, com

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100% de seu quadro composto por mulheres, excluiu menções a gênero, pobreza e tortura,
seguido pela Segurança, com 61,54% e e incluiu a defesa das estruturas familiares
53,33% dos cargos de chefia no Ministério como aspecto central de sua atuação no órgão.
da Educação. Turismo e Esporte, Cultura, Esse avanço conservador também
Meio Ambiente, Desenvolvimento Territorial pode ser notado na Colômbia, especialmente
e Habitat, Justiça e Direitos Humanos e a partir de 2012, e com maior força no
Desenvolvimento Social também se destacam período de debate dobre o acordo de paz
nessa área . O governo argentino lançou, com as Forças Armadas Revolucionárias
recentemente, uma Campanha Nacional de da Colômbia – Exército do Povo (FARC-
Prevenção contra as Violências por Motivos de EP). Em novembro de 2016, formalizou-se
Gênero, que pretende atuar de forma integral o histórico acordo de paz entre o governo
contra formas de violência direcionadas a colombiano e as FARC-EP. O diálogo entre o
mulheres e à população LGBTI+. governo de Juan Manuel Santos e as FARC-
Por outro lado, podemos tomar os casos EP iniciou em 2012 e contou com a mediação
de Bolívia e Brasil como exemplos negativos. de Cuba, Venezuela e Noruega e foi firmado
O golpe que empossou Jeanine Añez pode ter inicialmente em setembro de 2016. Em
significado que uma mulher tenha chegado outubro, o acordo foi submetido a plebiscito
à presidência do país, mas isso não teve popular, que o rejeitou por 50,02% dos votos
nenhuma influência positiva sobre a situação em processo político complexo e polarizado. A
das mulheres no país; ao contrário, significou partir disto, o governo e as FARC voltaram à
a chegada à institucionalidade plurinacional mesa de diálogo de Havana para incorporar
de um campo político que tem em seu cerne demandas ao texto. Com a atualização, o texto
a oposição às políticas de paridade de gênero foi submetido ao Congresso e oficialmente
e de diversidade racial que o governo do aprovado no dia 24 de novembro de 2016,
Movimiento al Socialismo (MAS) tinha como com início implementação prevista para 1º
pilar. No caso do Brasil, há um movimento de novembro do mesmo ano. Os acordos de
mais longo de contestação aos direitos de paz tiveram principais eixos: reforma rural
grupos minoritários políticos, que já em e agrária, modelo de participação política-
2015, ainda no governo da presidenta Dilma institucional e partidária das FARC, o fim
Rousseff, resultou na unificação das pastas do conflito e a desmobilização da guerrilha,
dos Direitos Humanos com as secretarias de acordos sobre as vítimas e reparação e
Políticas de Promoção da Igualdade Racial mecanismos de implementação, verificação e
e de Políticas para as Mulheres formando o referendação dos termos estabelecidos.
Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial É preciso chamar a atenção para o fato
e dos Direitos Humanos. Este ministério de que o processo de paz colombiano é um
passou a se chamar, no governo de Jair dos casos mais emblemáticos de integração
Bolsonaro, Ministério da Mulher, da Família da Agenda MPS nas negociações de paz
e dos Direitos Humanos, sob o comando, e representa uma importante passagem
desde o ano passado, da pastora evangélica do paradigma baseado na mulher como
Damares Alves. vítima do conflito para mulher enquanto
Um caso paradigmático, nesse sentido, participante do processo de paz. Quando as
é a virada de posição da diplomacia brasileira negociações começaram em 2012, nenhuma
quanto aos debates sobre gênero e mulheres das equipes de negociação (guerrilha e
nos órgãos internacionais, principalmente governo) tinha mulheres. Em 2013, as
na Organização das Nações Unidas (ONU). partes assinaram um acordo com 15 pontos
Se, tradicionalmente, o Brasil adotava uma de representação política, um dos quais
postura bastante progressista e de avanço estabelecia que todo o conteúdo do acordo
dessas agendas no âmbito internacional, seria implementado com “uma perspectiva
no novo governo, as diretivas do Itamaraty de gênero e garantindo a participação das
são para que os diplomatas brasileiros mulheres”. No entanto, foi em 7 de setembro
defendam o entendimento de gênero como de 2014 quando as partes concordaram em
sexo biológico. Ainda, o Brasil tem adotado criar um mecanismo inclusivo e inovador,
uma posição contrária a menções a temas como o Subcomitê de Gênero. De fato, graças
como saúde sexual e reprodutiva, autonomia ao Subcomitê de Gênero, as organizações de
de escolha feminina e educação sexual. Em mulheres colombianas estiveram diretamente
sua candidatura à reeleição ao Conselho representadas e participaram ativamente
de Direitos Humanos da ONU, o governo tanto da mesa de paz em Havana quanto das
brasileiro apresentou uma plataforma que consultas nacionais e regionais realizadas em

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todo o país. Embora não seja a primeira vez revisão.


que se cria uma subcomissão de gênero em No nosso caso, em 2017, o governo
um processo de paz, no caso da Colômbia a brasileiro lançou o Plano Nacional de
Subcomissão de Gênero esteve muito presente Ação sobre Mulheres, Paz e Segurança,
em todo o processo. As mulheres constituíram que vinha sendo construído desde 2015,
até um terço dos participantes à mesa, quando a representação do Brasil na ONU
aproximadamente metade dos participantes anunciou a intenção de, à semelhança de
nas consultas e mais de 60 por cento das outros países membros que já haviam feito
vítimas e especialistas que visitaram a mesa o mesmo, construir um plano nacional que
de negociações de paz. (CASANOVA, 2017, p. possibilitasse avanços na implementação da
15, tradução nossa) Agenda no país. Naquele momento, o Brasil
Cabe ressaltar que, no plebiscito sobre se tornou o quarto país da América do Sul
o Acordo, as forças de direita e conservadoras a dispor de um plano nacional, seguido os
aglutinaram-se em torno do “não”, movendo exemplos do Chile, em 2009, e Argentina
uma campanha pautada no medo de uma e Paraguai, em 2015. O processo de sua
possível “venezualização” da Colômbia, elaboração se deu por meio de um grupo de
assim como em um suposto plano das trabalho interinstitucional liderado pelo
FARC de impor uma “ideologia de gênero” Ministério das Relações Exteriores, que
voltada a destruir a família e subverter os contou, ainda, com o Ministério da Defesa, o
valores sociais tradicionais. Um dos lemas Ministério da Justiça e Segurança Pública, e
utilizados era “voto não ao plebiscito: defendo o Ministério dos Direitos Humanos, além da
a família”. Estar contra o acordo de paz ONU Mulheres e do Instituto Igarapé, que
era, assim, estar contra a desintegração atuou como representante da sociedade civil
da família - especialmente pela questão do (DRUMOND; REBELO, 2018).
casamento homoafetivo -, contra o aborto
e contra o “ateísmo comunista” das FARC. “Destaca-se o contexto político brasileiro
O Acordo de Paz colombiano traz, em seu que prejudicou o engajamento continuado
texto, um compromisso com uma “abordagem de algumas dessas instituições. Durante o
abrangente e de gênero, baseada nos princípios processo, a Secretaria de Política Especial
de equidade e realização progressiva. para Mulheres deixou de existir. O órgão
chegou a ser parte do Ministério de Justiça
As partes se comprometem a abordar a
e Cidadania, e, ao fim do processo, estava
desigualdade histórica e vulnerabilidades de no Ministério dos Direitos Humanos. O
mulheres e meninas, a população lésbica, gay, Ministério da Justiça teve ao menos três
bissexual, transgênero e intersex (LGTBI) e ministros distintos no mesmo período e a
minorias religiosas “ . Outro ponto que chama então presidente, Dilma Roussef, sofreu
a atenção é o fato de que o Acordo de Paz impeachment. Tal contexto político afetou
exclui qualquer possibilidade de anistia ou o engajamento dos ministérios e órgãos
perdão por crimes de violência sexual, aspecto relacionados com o alcance de resultados
que é consequência direta da participação das para efetivamente implementar o PNA
mulheres nas negociações de paz por meio do brasileiro. Além disso, a participação
Subcomitê de Gênero (CASANOVA, 2017). da sociedade civil no GT, elemento
Finalmente, em relação ao principal considerado crucial na elaboração de
planos nacionais de ação eficazes, ficou
instrumento de promoção e implementação
restrita à participação direta de uma
da Agenda MPS no âmbito local, quatro países única organização e sem a realização
sul-americanos possuem PNAs: Argentina, de consultas, comissionadas pelo GT,
que adotou seu PNA em 2015, o qual teve com organizações de mulheres locais”.
validade até 2018, e acabou não sendo mais (DRUMOND; REBELO, 2018, p. 8)
revisado ou renovado; Brasil, que lançou o
seu PNA em 2017, e no ano passado estendeu O Plano Nacional de Ação brasileiro
o mandato do mesmo por mais dois anos; está estruturado em quatro pilares: (1)
Chile, que foi pioneiro na matéria na região, Participação, (2) Prevenção e proteção,
adotando o primeiro PNA em 2009, durante (3) Consolidação da Paz e Cooperação
o mandato de Michelle Bachelet, e fez um Humanitária e (4) Sensibilização,
novo plano revisado em 2015, que esteve em Engajamento e Aprofundamento.
vigor até 2018; e, finalmente, o Paraguai, que
lançou seu PNA em 2015, que segue válido “[A]s atividades propostas pelo plano
até hoje, mas nunca passou por nenhuma são voltadas fundamentalmente

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para as áreas de defesa e política tanto diplomaticamente no avanço da agenda


externa, realçando iniciativas voltadas nos fóruns internacionais, na mediação de
às operações de paz, processos de conflitos e na atuação em Missões de Paz.
mediação e resoluções de conflito, e Nos dois casos, a atuação brasileira vem
contextos de reconstrução e emergência
regredindo de maneira dramática.
humanitária. Especificamente quanto
aos objetivos gerais, o plano reconhece
a sub-representação de mulheres em Considerações Finais
iniciativas de paz e segurança, e assume
o compromisso de ampliar e qualificar Nos 20 anos da Resolução 1325, é
a inclusão de brasileiras e locais em possível perceber uma série de avanços no
situações de conflito e pós-conflito. ainda âmbito da Agenda MPS na América do Sul.
é conferido destaque à necessidade de o No entanto, mais numerosos parecem ser os
país se engajar com medidas de proteção desafios à sua implementação – e de maneira
contra a violência baseada no gênero, geral, à construção de sociedades mais
assumindo que o empoderamento de inclusivas e igualitárias. De um lado, a falta
mulheres e meninas é um passo na busca de planejamento, especialmente em relação
deste objetivo. Igualmente importante
à alocação de recursos, tem relegado as
é a atenção do plano à disseminação
de conhecimento sobre a agenda MPS
iniciativas referentes à Agenda MPS somente
na sociedade brasileira, dando ênfase ao plano das ideias. Da mesma forma, percebe-
às iniciativas de sensibilização e ao se um grande descompasso regional nas mais
reconhecimento do papel da sociedade diferentes áreas, desde a representatividade
civil.” (DRUMOND; REBELO, 2018, p. política até a criação de PNAs. Chama a
11) atenção, nesse sentido, que mesmo no ápice
dos processos integracionistas, nunca houve
Ainda, uma importante inovação no alguma forma de articulação regional mais
Plano Nacional de Ação brasileiro está na institucionalizada em matéria de mulheres,
inclusão dos direitos de pessoas refugiadas paz e segurança. Nos últimos anos, no entanto,
e solicitantes de refúgio no Brasil sob um o grande obstáculo à Agenda MPS na região
prisma de gênero, dentro do pilar 2, referente tem sido o avanço dos regimes conservadores,
à prevenção e proteção (DRUMOND, por vias democráticas ou não, que também
REBELO, 2018). Inicialmente, o mandato significaram um retrocesso na diplomacia
do Plano estava previsto para o biênio 2017- das organizações internacionais.
2018, com uma revisão ao fim desse período,
mas, em março de 2019, o governo brasileiro Referências
anunciou a extensão do mandato do Plano
para mais quatro anos. BRASIL. Ministério das Relações Exteriores.
O PNA brasileiro abarca a necessidade (2017) Plano Nacional de Ação sobre Mulheres,
de se ampliar a presença de mulheres Paz e Segurança. Brasília : FUNAG.
nas Missões de Paz, porém não apresenta
diretivas mais tangíveis para impulsionar CASANOVA, Millán Requena. (2017)
esse processo, da mesma forma que não traz La aplicación de la Agenda Mujeres, paz
reflexões sobre os obstáculos e gargalos à y seguridad en los procesos de paz: la
entrada e progressão feminina dentro de suas participación de mujeres em la prevención y
instituições. Isso é representativo não só de resolución de conflictos. Revista Electrónica
uma das principais dificuldades do Plano em de Estudios Internacionales. n. 34, p. 1-37.
si, mas do engajamento do Brasil na Agenda DOI: 10.17103/reei.34.04
Mulheres, Paz e Segurança de maneira mais
ampla, que é construir o entendimento de que CONSELHO DE SEGURANÇA DA ONU.
os esforços de equilíbrio e tranversalização Resolução 1325. Index: S/RES/1325. 31 de
de gênero na prevenção de conflitos e na outubro de 2000. Disponível em: https://
construção da paz não podem estar localizados undocs.org
apenas na arena internacional ou dentro do
escopo de ação da ONU. Trata-se, na verdade, DRUMOND, Paula; REBELO; Tamya. (2018)
de um contínuo, que vai da esfera nacional, Implementando a agenda sobre “Mulheres,
perpassando políticas de promoção da Paz e Segurança” no Brasil: uma revisão do
igualdade e do combate à violência de gênero Plano Nacional de Ação. Publicações Igarapé,
internamente, até a atuação internacional, artigo estratégico 31, mar, 36p.

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GIANNINE, Renata; VERMEIJ, Lotte.


(2014) Women, Peace and Security: Gender
Challenges within UN Peacekeeping
Missions. Policy Brief, v. 5. Norwegian
Institute of International Affairs. P.1-5

KARIM, S.; BEARSDLEY, K. (2016).


Explaining sexual exploitation and
abuse in peacekeeping missions. Journal
of Peace Research, 53(1), 100–115.
doi:10.1177/0022343315615506

ONU. Organização das Nações Unidas.


(1995) Declaração e plataforma de ação da
IV Conferência Mundial sobre a Mulher.
Pequim.

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