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ISSN 1808-8880

teologia
para
vida
Volume II - nº 2 - Julho - Dezembro 2006
6 | TEOLOGIA PA R A VIDA – VOLUME II – NÚMERO 2
| 1

v o l u m e I I – n ú m e r o 2

TEOLOGIA
PARA
VIDA
|
J2unta de Educação Teológica: Pb. Francisco
T e o lSoolano
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a eto u m e II ),
o lresidente – nRev
úm . ePraulo
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Roberto Batista Anglada (Vice-presidente), Pb. Gilson Alberto Novaes (Secretário),
Pb. Eli dos Santos Medeiros (Tesoureiro), Rev. Jaime Marcelino de Jesus, Rev. Ashbel
Simonton Redua, Rev. Wilson Emerick de Souza.

Junta Regional de Educação Teológica: Rev. Daniel Fogaça (Presidente), Rev. Pb. Roberto Tambelini
(Vice-presidente), Pb. Ronaldo Brisola (Secretário), Rev. Nelson Duilio Bordini Marino.

Diretoria da Fundação Educacional Rev. José Manoel da Conceição: Pb. Dante Venturini de
Barros (Presidente), Rev. Roberto Brasileiro Silva (Vice-presidente), Rev. Fernando de
Almeida (Secretário), Pb. Valdnei Alves de Oliveira (Tesoureiro).

Congregação do Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição: Rev. Ageu
Cirilo de Magalhães Jr. (Diretor), Rev. Onezio Figueiredo (Capelão), Rev. Leandro Antônio
de Lima, Rev. George Alberto Canêlhas, Rev. Alderi Souza de Matos, Rev. Dario de Araújo
Cardoso, Rev. Cláudio Antônio Batista Marra, Maestro Parcival Módolo, Rev. Elieser Fer-
reira, Rev. Gildásio Jesus Barbosa dos Reis, Sem. Francisco Alexandre Ferreira Nascimento.

Conselho Editorial: Rev. Ageu Cirilo de Magalhães Jr., Rev. Leandro Antônio de Lima, Rev.
George Alberto Canêlhas, Rev. Alderi Souza de Matos, Rev. Dario de Araújo Cardoso,
Rev. Cláudio Antônio Batista Marra, Maestro Parcival Módolo.

Editor: Rev. Cláudio Antônio Batista Marra


Versão para o inglês: Alceu Lourenço de Souza Junior.
Revisão: Alceu Lourenço de Souza Junior.
Capa e Projeto Gráfico: Idéia Dois Design.
Gravura da capa: Entretien de Robert Olivétan avec le jeune Calvin [Robert Olivetan em conversa com
o jovem Calvino] de H. Van Muyden. As outras gravuras da obra são do mesmo artista.

Teologia Para Vida / Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel


da Conceição. — São Paulo: Vol. 2, n. 2 (jul./dez.2009) — Seminário
JMC, 2009 —
Semestral
issn 1808-8880
1. Teologia Reformada. 2. Igreja Presbiteriana do Brasil – História. 3. In-
terpretação bíblica. I. Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel
da Conceição.
cdd 21 ed. – 230.0462
285.181

Endereço para correspondência


Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição
Rua Pascal, 1165, Campo Belo, São Paulo, SP, cep 04616-004
Telefone: 5543-3534 – Fax: 5542-5676
Site: www.seminariojmc.br
E-mail: seminariojmc@seminariojmc.br
Os artigos da revista são escritos pelos membros do Conselho Editorial, professores e alunos do
Seminário. Ex-professores e ex-alunos poderão escrever, quando convidados pelo Conselho.
A revista Teologia para Vida é uma publicação semestral do Seminário Teológico Presbiteriano
Rev. José Manoel da Conceição. Permite-se a reprodução desde que citados fonte e autor.

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Sumário

Ed i t o r i a l ..................................................................................................................... 05

A r t i g o s

Salmo 130 – Um testemunho de esperança em Yahweh (Parte I)


Rev. Dario de Araújo Cardoso . .......................................................................... 09

Calvino e Aquino (Parte final)


Rev. Donizete Rodrigues Ladeia ....................................................................... 29

As fontes do coral luterano


Maestro Parcival Módolo . .................................................................................49

Relatório pastoral do Rev. George W. Chamberlain


(Edição Diplomática)
Rev. Wilson Santana Silva ................................................................................. 73

Anotações sobre a hermenêutica de Calvino (Parte I)


Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa . .......................................................... 87

Uma filosofia bíblica de ministério


Rev. Gildásio Jesus Barbosa dos Reis . ......................................................... 123

Re s e n h a

Conselheiro capaz
Fernando Jorge Maia Abraão ......................................................................... 143

A r t i g o s e s e r m õ e s d o s a l u n o s

O compromisso social e a Palavra de Deus


Lic. César Augusto Paiva ................................................................................. 151

As leis alimentares e a nossa santificação – Levítico 11


Lic. Alceu Lourenço de Souza Jr. .................................................................... 165

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Esta edição só foi possível pela visão e apoio de:

Fundação Educacional Rev. José Manoel da Conceição


Igreja Presbiteriana da Vila Maria - SP
Igreja Presbiteriana de Osasco - SP
Igreja Presbiteriana de São Bernardo do Campo - SP
Igreja Presbiteriana do Jardim Ipê - SP
Igreja Presbiteriana do Centenário - SP
Igreja Presbiteriana de Santo Amaro - SP
Igreja Presbiteriana da Lapa - SP
Igreja Presbiteriana de Brasilândia - SP
Igreja Presbiteriana de Icaraí-Niterói - RJ
Igreja Presbiteriana de Casa Verde - SP
Igreja Presbiteriana de Vila Guarani - SP
Igreja Presbiteriana Betel - SP
Igreja Presbiteriana do Parque São Domingos - SP

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Editorial

A publicação deste número significa a superação de dificuldades e


uma importante vitória. A Revista Teologia para Vida passou por
um recesso de produção devido a questões administrativas, mas
retorna e retoma temas de interesse para a formação e edificação de
seus leitores. Agradecemos aos professores que, além de inúmeras
tarefas, dedicam-se também a contribuir aqui. Seu esforço explica,
sob o prisma humano, a posição de destaque ocupada pelo Seminário
Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição na IPB atualmente.
O estudo de Salmo 130 – Um testemunho de esperança em
Yahweh (Rev. Dario de Araújo Cardoso) nos conduzirá na con-
templação dos ricos tesouros desse salmo, que fala tanto de nossa
miséria quanto de nossa esperança e redenção. Pastores e mestres da
Palavra serão ajudados, porque o estudo exegético pode nos auxiliar
no levantamento de temas concernentes ao texto e sua interpretação,
tanto no aspecto acadêmico quanto pastoral.
O Rev. Donizete Rodrigues Ladeia sustenta que a fé é o ponto de
contato entre Calvino e Aquino, os dois defenderam o cristianismo
conforme compreendido por meio das Escrituras Sagradas em suas
respectivas épocas. Mas os diferentes contextos intelectuais em que
viveram, a escolástica para Aquino e o humanismo para Calvino,
influenciaram grandemente seus métodos de interpretação bíblica,
que foram determinantes para a história da igreja cristã. Nesta
parte final do artigo, o autor apresenta a avaliação dos princípios
da hermenêutica dos dois importantes teólogos.
O Maestro Parcival Módolo nos instrui com seu artigo As fontes
do coral luterano. Lutero deu grande atenção à música sacra como
meio de adoração a Deus e doutrinação dos fiéis e aqui o Maestro
Parcival analisa as fontes utilizadas por aquele Reformador. Este
trabalho será concluído com As fontes do salmo calvinista (próxima
edição).

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Na Edição Diplomática, o Rev. Wilson Santana Silva traz um


retrato vivo dos tempos pioneiros com o relatório pastoral do Rev.
George Whitehill Chamberlain, parte da “Coleção Carvalhosa”,
conjunto de documentos primários reunidos e compilados pelo
Rev. Modesto Perestrello Barros de Carvalhosa e encontrados no
Arquivo Histórico da IPB.
O Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa inicia nesta edição
uma série que exporá os princípios e a importância do método de
interpretação bíblica desenvolvido por João Calvino. Nesta primeira
parte de Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino Compreensão
a serviço da piedade e do ensino, o autor traça um breve panorama
biográfico do reformador, destacando sua formação intelectual e
sua relação com os valores humanistas que floresciam em sua época.
Em Uma Filosofia Bíblica de Ministério – Pilares inegociáveis do
ministério reformado, o Rev. Gildásio Jesus Barbosa dos Reis defende
a necessidade de uma filosofia ministerial segundo as Escrituras,
fundamentada, portanto, numa correta compreensão de Deus, do
homem, da Palavra de Deus, da igreja e da liderança eclesiástica.
A edição se encerra com a excelente resenha de O Conselheiro
Capaz, de Jay Adams, preparada por Fernando Jorge Maia Abraão
Artigos e com sermões O Compromisso Social e a Palavra de Deus,
de César Augusto Paiva e As leis alimentares e a nossa santificação,
de Alceu Lourenço de Souza Jr.

Boa reflexão!

Rev. Cláudio Antônio Batista Marra


Editor da Revista Teologia Para Vida

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A rtigos
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Departamento de Teologia
bíblica e exegética

Salmo 130 – Um testemunho


de esperança em yahweh

Parte I

Rev. Dario de Araújo Cardoso

Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico


Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição.
Mestre em Teologia e Exegese do Antigo Testamento
pelo Centro de Pós-graduação Andrew Jumper.
Pastor da Igreja Presbiteriana da Casa Verde.

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Salmo 130 – Um testemunho


de esperança em yahweh

Parte I

Resumo
O Salmo 130 tem importante presença na história do cristia-
nismo. Homens como Lutero e John Wesley foram tocados
por seu ensino e deram testemunho de seu valor. O presente
estudo nos conduzirá na contemplação dos ricos tesouros
desse salmo, que fala tanto de nossa miséria quanto de nossa
esperança e redenção. Poderemos também observar como o
estudo exegético pode nos auxiliar no levantamento de temas
concernentes ao texto e sua interpretação, tanto no aspecto
acadêmico quanto pastoral. Ferramentas de interpretação
como o estudo dos gêneros literários, a pesquisa estrutural e
a pesquisa de termos-chaves serão utilizadas sob a perspectiva
exegética reformada e corroboradas pela citação de diversos
comentaristas bíblicos da atualidade.

Palavras-chave
Salmos Penitenciais; Confissão; Interpretação Bíblica; Crítica
Literária; Crítica da Redação.

Abstract
The Psalm 130 has an important presence in the history of the
Christianity. Men as Luther and John Wesley were touched
by its teaching and gave testimony of its value. The present
study will drive us in the contemplation of the rich treasures
of that psalm, that speaks as much of our poverty as about
our hope and redemption. We will also be able to observe
how the exegetical study can help us in stressing the themes

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regarding to the text and its interpretation, in the academic


aspects as much as in the pastoral ones. Interpretation tools
like the study of the literary genre, the structural research and
the research of key-words will be used under the reformed
exegetical perspective and corroborated by several biblical
commentators’ works.

Keywords
Penitential psalms; Confession; Biblical interpretation; Lite-
rary criticism; Redaction criticism.

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S a l m o 130 – U m t e st e m u n h o d e e s p e r a n ç a e m yahweh | 13

Cântico dos degraus

Das profundezas clamo a ti, Yahweh


Meu senhor escuta a minha voz
[Sejam] Atentos os teus ouvidos às minhas súplicas
Se iniqüidades observares Yah[weh]
Meu senhor, quem permanecerá?
Pois contigo [é] o perdão a fim de que temam
Aguardo Yahweh, minha alma aguarda
Eu espero pela sua palavra
A minha alma pelo meu senhor
mais do que os guardas pela manhã,
do que os guardas pela manhã
Espera, Israel, por Yahweh
pois com Yahweh [é] a misericórdia
e com ele a muita redenção
E ele redime a Israel de todas as suas iniqüidades

Introdução
A história do Salmo 130 nos oferece alguns fatos interessantes
e dignos de nota. O De profundis, como ficou conhecido devido à
sua expressão inicial na versão latina, é um dos 15 hamma´aloth, ou
cânticos dos degraus. Consta na liturgia católico-romana como o
sexto dos sete salmos penitenciais (6, 32, 38, 51, 102, 130, 143).1 
Também era grandemente valorizado por Lutero. Quando ques-
tionado sobre os melhores salmos, o reformador o citou como um
dos salmos paulinos2  e o chamava de “um digno mestre e doutor

1
DAHOOD, Mitchell. Psalms:101-150. New York: Doubleday, 1970, v. III, p. 234. Catholic Encyclo-
pedia, “Psalms” < http://www.newadvent.org/cathen/12533a.htm> acessado em 29/11/2004.
MOLL, Carl Bernhard. The Psalms. In: LANGE, John Peter, SCHRÖEDER, Wilhem Julius (eds.).
A commentary on the Holy Scriptures: critical, doctrinal and homiletical, with special reference to
ministers and students. Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1971, p. 624. SCHÖKEL,
Luís Alonso. Salmos: tradução, introdução e comentário. São Paulo: Paulus, 1998, v. II, p. 1512.
 2
Os outros salmos chamados de paulinos por Lutero são o 32, o 51 e o 143. cf. LOCKYER, Herbert.
Psalms: a devotional commentary. Grand Rapids: Kregel Publications, 1992, p. 667. PEROWNE,
J. J. Stewart. Commentary on the Psalms. Grand Rapids: Kregel Publications, 1989, v. II, p. 402.

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das Escrituras”, querendo dizer com isso que o salmo ensina a ver-
dade básica do evangelho; encontra-se “nele a expressão da graça
imerecida e perdão que são o coração do evangelho”.3  John Wesley
ouviu o cântico desse salmo na tarde do dia 24 de maio de 1738 na
Catedral de Saint Paul e “o salmo certamente foi um dos fatores que
direcionaram o seu coração para receber a certeza da salvação pela
fé. Na noite daquele dia ele visitou um encontro de santos numa sala
da Rua Aldersgate, onde seu coração foi estranhamente aquecido”.4 
Estudar o Salmo 130 fará com que adentremos esse maravilhoso
mundo da graça e do perdão, e nos ensinará a buscar e confiar em
Deus tendo em vista nossa miserável condição de seres corrompidos
e pecadores.
Começaremos nosso estudo atentando para o aspecto literário
e estrutural, buscando definir, pela sua forma, o melhor modo de
abordarmos a mensagem do salmo. Feito isso, passaremos ao estudo
do conteúdo desse salmo procurando entendê-lo em suas partes
para, finalmente, compreendê-lo como um todo.

1. Classificação e estrutura

No estudo do aspecto formal, nossa primeira tarefa é classificar


o salmo quanto ao seu gênero literário. Seguindo Gunkel,5  Mays o
classifica como uma oração individual por ajuda.6  Westermann se
refere a ele como um salmo de lamento individual.7  Schökel o define
como uma súplica individual que se abre à participação coletiva.8 
Leslie Allen, porém, levanta uma questão digna de nota; ele afir-
ma que há duas grandes dificuldades para classificar esse salmo: a

 3
MILLER, Patrick D.. “Psalm 130” em: Interpretation 33.02, Abr. 1979, p. 176 <http://63.136.1.23/
pls/ eli/eli_bg.superframe?pid=n0020-9643_033_02_0176&artid=ATLA0000770843> acessado
em 18/11/2004.
 4
LOCKYER, op. cit., p. 667; MAYS, James L.. Psalms interpretation: A Bible commentary for teaching
and preaching. Louisville: John Knox Press, 1994, p. 405.
 5
GUNKEL, Hermann; BEGRICH, Joachim. Introduction to Psalms: the genres of the religious lyric
of Israel. Macon: Mercer University Press, 1998, p. 140.
 6
MAYS, op. cit., p. 405.
 7
WESTERMANN, Claus. Psalms: the structure, content and message. Minneapolis: Augsburg
Press, 1980, p. 53.
 8
SCHÖKEL, op. cit., p. 1512.

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S a l m o 130 – U m t e st e m u n h o d e e s p e r a n ç a e m yahweh | 15

ambivalência temporal dos verbos no perfeito nos versos 1b9  e 5; e o


papel dos versos 7 e 8.10  No primeiro caso, sua argumentação é que
se interpretar-se ytiar”q. (qera’thi) e ytil.x”wh (hohalthi), dos versos 1b
e 5, no passado (“eu clamei”; “eu esperei”), eles pertencerão a uma
ação de graças, como no Salmo 66.17 e Jonas 2.2 para o primeiro
verbo, e Salmo 40.1 para o segundo. Dessa forma, o v.1b introduziria
a recordação da queixa feita previamente, citada nos versos 2-4. Os
versos 5 e 6 seriam o testemunho dirigido à comunidade religiosa.
E os versos 7 e 8 podem ser interpretados como uma exortação,
associada à ação de graças, para fortalecer a fé da comunidade.11 
Deve-se notar, contudo, a ausência da referência à libertação de
Deus que é característica dos salmos de ação de graças.
O próprio Allen, embora considere tal classificação uma possibi-
lidade, argumenta que há também diversos elementos que apontam
para a classificação do salmo como um lamento, pois os verbos acima
também podem ser interpretados no presente.12  Perowne argumen-
ta que a expressão marca uma longa experiência continuada até o
presente momento.13  Barnes assim descreve o salmo:

Não há necessidade, afinal de contas, de supor que ele se refere à


nação como tal. Pode ser a linguagem de um indivíduo, lamentan-
do sobre seus pecados e suplicando por misericórdia, expressando
profunda convicção de pecado e uma humilde confiança em Deus
como a única fonte de esperança para um convicto, condenado e
penitente pecador. Como tal, ele representa o que tem ocorrido em
milhares de casos quando pecadores têm sido trazidos à convicção
de pecados, e têm clamado por misericórdia.14 

Conforme descritos por Westermann e Brueggmann, os salmos


de lamento têm as seguintes características básicas, que dependendo
da situação estarão mais em evidência ou serão omitidas:

 9
Para numeração dos versos e cláusulas seguiremos o texto da BHS.
 10
ALLEN, Leslie C. Psalms: 101 - 150. Waco: Word Books Publishers, 1983, p. 192.
 11
Cf. ibid., p. 192.
 12
Cf. ibid., p. 193.
 13
PEROWNE, op. cit., p. 403.
 14
BARNES, Albert. Notes on the Old Testament: Psalms. Grand Rapids: BakerBooks, 1870, 1998
reimp., vol. III, p. 258.

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- Pedido:
- Endereçamento ou invocação. Um vocativo dirigido a Yahweh.
- Queixa. A exposição da situação desesperadora.
- Petição. Um pedido para que Deus aja decisivamente.
- Motivações. Apresenta as razões porque Deus deve agir.
- “Imprecação”. Uma afirmação de que Deus, em sua justiça,
punirá o ímpio.
- Louvor:
- Garantia de ser ouvido. Afirmação de certeza de ter sido ouvido.
- Pagamento de votos. O compromisso de servir a Deus conforme
prometido.
- Doxologia e louvor. O reconhecimento de que Deus é fiel e
salvador15 

Se tomarmos os versos 1b e 2 como uma unidade, como veremos


adiante ser a indicação da estrutura do salmo, então teremos que
considerar a aflição como algo presente, tornando-se assim uma in-
vocação e petição introdutória, características dos lamentos.16 
Encontramos paralelos desse tipo de construção em:

Salmo 17.6 – Eu te invoco [perfeito], ó Deus, pois tu me respon-


des [imperfeito]; inclina-me [imperativo] os ouvidos e acode
[imperativo] às minhas palavras.
Salmo 141.1 – Senhor, a ti clamo [perfeito], dá-te pressa em me
acudir [imperativo].

Entretanto, neste salmo, ao invés de um pedido por ajuda, te-


mos, implícitos, uma confissão de pecados e um pedido de perdão
(versos 3-4). Sua situação desesperadora pode ser percebida pela
expressão ~yqim[
; m] m; i (“das profundezas”) e pela questão apresentada:
“Se observares, Yahweh, iniqüidades, quem, Senhor, subsistirá?”.
Essa questão também deve ser considerada, juntamente com o v. 4,
como a argumentação do salmista para que Deus o atenda.

 15
Cf. WESTERMANN, op. cit., p. 60-61; BRUEGGMANN, Walter. The message of the Psalms: a
theological commentary. Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1984, p. 54-56.
 16
Cf. Westermann, ibid., p. 193. BRUEGGMANN, ibid., p. 104.

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S a l m o 130 – U m t e st e m u n h o d e e s p e r a n ç a e m yahweh | 17

Os versos 5 e 6 formam a expressão de confiança em Yahweh. O


uso da terceira pessoa indica que não se trata mais da oração, mas
de uma proclamação feita como um testemunho de fé.17 
Chega-se, então, aos versos 7 e 8 que são interpretados de várias
maneiras. O problema central é que suas expressões estão mais de
acordo com um cântico coletivo do que individual. Kraus sugere ser
o acréscimo de uma exortação sacerdotal à comunidade a quem o sal-
mista está falando.18  Westermann, seguindo Mowinckel, vê apenas
o louvor à graça redentora de Yahweh como original, e considera a
expressão “espere Israel em Yahweh” e o verso 8 como uma aplicação
posterior do salmo à comunidade, adaptando-o para fazer parte da
coleção dos Salmos 120-134.19  Cornelius Houk afirma a natureza
redacional dos versos 7 e 8 demonstrando através de análise esta-
tística diferenças entre os versos 1-6 e 7-8. Estes últimos possuem
mais semelhança com o Salmo 131.1-3 do que com os versos 1-6.
Assim, sua sugestão é que os versos 7 e 8 sejam uma adição feita
pelo autor do Salmo 131.20 
Todas essas avaliações têm como quadro de referência os pressu-
postos da crítica da redação e a tentativa de estabelecer qual teria
sido a redação original do salmo. Do ponto de vista gramático-
histórico, bem como da crítica dos gêneros literários, tal pesquisa
não é relevante uma vez que nossa preocupação é o estudo do salmo
tal como ele foi registrado no saltério e em função da sua utilidade
para a comunidade de Israel. Ainda assim, faz-se necessária uma
discussão sobre a unidade do salmo, visto que isso influenciará em
sua classificação e que há diversos fatores que atestam a unidade
do Salmo 130.
Dahood aponta para a unidade do salmo quando argumenta
que nos versos 1-4 o salmista se dirige a Deus, e em 5-8, a Israel.21 

 17
Cf. DAHOOD, op. cit., p. 235.
 18
KRAUS, H.-J., Psalmen, p. 1048, 1050-51, apud: ALLEN, op. cit., p. 193.
 19
WESTERMANN, C., “Psalm 130” in: Herr, tue meine Lippen auf, v. 5, p. 609, apud: ALLEN, ibid.,
p. 193.
 20
HOUK, Cornelius B., “Syllables and Psalms: a statistical linguistic analysis”. Journal for the study
of the Old Testament, 14.01 [1979], p. 58. < http://63.136.1.23/pls/eli/eli_bg.superframe?PID=
n0309-0892_014_01_0055&artid=ATLA0000775689 >
 21
Cf. DAHOOD, op. cit., p. 235.

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18 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

Dessa forma, as referências a Israel nos versos 7 e 8 não poderiam


ser consideradas acréscimos, mas fazem parte da mensagem que o
salmista quis registrar.
Um argumento mais relevante nos é oferecido por Anthony R.
Ceresko, quando aponta um quiasmo ABBA formado pelos versos
5-7:22 

.ytil.x/h /rb;d.liw. e pela sua palavra eu esperarei
rq,bol; ~yrim.Vomi minha alma pelo meu Senhor
yn;doal; yvip.n; mais do que os guardas pela manhã
.rq,bol; ~yrim.vo guardas pela manhã

hw;hy.Äla, laer;f.yi lxey; Espera Israel por Yahweh

Onde o verbo lxy é usado na primeira e última linhas, e nas


linhas centrais a expressão figurativa rq,bl
o ; ~yrimv. . Que não deve ser
considerada uma ditografia, mas o centro de um quiasmo formado
pelos versos 3-8. Onde aparecem repetições nos versos 3,8 (tAnwO[,
“iniqüidades”), e em 4,7 (~[iÄyki, “pois com”).23 
Dessa forma, temos os versos 1 e 2 como uma introdução a um
quiasmo formado pelos versos 3 a 8. E, assim, temos forte base estru-
tural para defender os versos 7 e 8 como integrantes da composição
original do salmo.24  Na estrutura dos salmos de lamento, o v. 7 serve
como a afirmação da certeza de ser ouvido, e o v. 8 como doxologia.
Do exposto acima, podemos descrever a estrutura do salmo sob
três pontos de vista:25 
a) temático. Temos quatro grupos de linhas, dispostas em pares,
intimamente relacionadas: 1b-2, 3-4, 5-6, 7-8;

 22
CERESKO. Anthony R.. “The chiastic word pattern in hebrew”. Catholic biblical quarterly, 38.03
[1976], p. 308. < http://63.136.1.23/pls/eli/eli_bg.superframe?pid=n0008-7912_038_03_
0303&artid=ATLA0000756766 > acessado em 1/12/2004.
 23
Cf. ALLEN, op. cit., p. 194.
 24
ALDEN, Robert L. “Chiastic Psalms III: a study in the mechanics of semitic poetry in Psalms
101-150”. Journal of the Evangelical Theological Society, 21.03 [1978], p. 210. < http://63.136.1.23/
pls/eli/ eli_bg.superframe?PID=n0360-8808_021_03_cov1> acessado em 18/11/2004.
 25
Cf. ALLEN, ibid., p. 194-195.

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b) estrutural. Nos versos 1b-2 temos o pedido do salmista ende-


reçado a Yahweh e um quiasmo descrevendo sua confiança e
esperança na resposta a este pedido nos versos 3-8.
c) interlocutório. Nos versos 1b-4 o salmista fala com Yahweh e
nos versos 5-8 ao povo sobre Deus.

2. Exposição
Passemos ao estudo do conteúdo do Salmo 130. Seguiremos,
para isso, o enfoque temático.

2.1 O clamor (v. 1b-2)


2.1.1 O endereçamento
O salmo começa com uma sintética, mas profunda nota de
angústia: ~yqim;[]m;m (“das profundezas”). A preposição !mi iindica o
“local”, a origem ou procedência do clamor do salmista. A colocação
enfática serve como indicação da angústia sofrida pelo escritor.26 
Não sabemos quais eram os seus sofrimentos, mas seu sentimento
era de estar lançado às profundezas.
A palavra ~yqim;[]m; é rara e ocorre apenas 5 vezes no Texto He-
braico.27  Apenas aqui ela não acompanha um substantivo, forman-
do um construto e servindo como locução adjetiva. Vejamos essas
ocorrências.
Em Isaías 51.10, ela acompanha o substantivo “mar” e designa o
seu fundo, numa referência ao caminho que Deus fez para o povo de
Israel através do Mar Vermelho. É importante lembrar que foi ali que
pereceu o exército de faraó que perseguia o povo (cf. Êx 14.28-29).
Em Ezequiel 27.34, ela faz parte da lamentação profética sobre
Tiro e acompanha o substantivo “águas” e implica o perecimento
dos negócios e da multidão de Tiro.
Nos salmos, ela aparece apenas nos versos 2 e 14 do Salmo 69,28 
também uma lamentação e também acompanhando o substantivo

 26
Cf. SCHÖKEL, op. cit., p. 1513.
 27
Salmo 69.2,14; Salmo 130.1; Isaías 51.10 e Ezequiel 27.34.
 28
Almeida Revista e Atualizada.

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“águas”. Mas ali, como no Salmo 130, não são os ímpios e perversos
egípcios ou fenícios que estão nas profundezas, mas o crente que
clama a Deus. Ali, a expressão “profundezas das águas” indica a
condição de grande dificuldade e aflição em que o salmista se en-
contrava por causa da perseguição dos seus inimigos. No Salmo 69,
o poeta pede para que Deus o tire das profundezas, ou seja, não o
deixe sucumbir diante de seus inimigos. Eles eram numerosos e po-
derosos, e o cercavam por todos os lados como se estivesse submerso
em profundas águas. Era certamente uma situação desesperadora
da qual somente o Senhor poderia livrá-lo.
Mesmo aparecendo isolada no Salmo 130, podemos atribuir à
expressão essa mesma descrição de sofrimento, de estar sendo en-
coberto pelas águas do mar. Certamente uma tremenda angústia,
apropriada para os que se opõem a Deus, mas insuportável para o
fiel. Por isso o seu clamor e a desnecessidade de uma mais acurada
descrição da angústia enfrentada.

A profundeza não é para os hebreus um fator positivo como para


nós... Os hebreus relacionavam-na com o inacessível, incompreensí-
vel, inescrutável, com as profundezas do oceano, da terra, do xeol. O
salmo parte de situação pouco menos que desesperada. Referem-na
ao mar Is 51.10; Ez 27.34 e Sl 69.3,15. O salmo não menciona a
água; contudo, devemos imaginar o orante em abismo sem saída:
só sua voz pode sair e elevar-se.29 

Contudo, é preciso reparar na distinção, sugerida por Allen, de


que o que está na mente do salmista é mais a realidade de seus
problemas do que o sentimento de desespero que eles poderiam
causar. Embora, à primeira vista isto não pareça fazer diferença,
o estudo dos versos 5 e 6 adiante, sugere que mesmo estando
completamente carente, o salmista não está desesperado. Allen
escreve: “Para o leitor moderno ‘profundezas’ sugere desespero;
em seu ambiente cultural o termo evoca o mar de problemas em

 29
SCHÖKEL, op. cit., 1514.

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que o orador está engolfado, é uma situação mortal de separação


do Deus vivo”.30 
Levanta-se, então, a voz do salmista dizendo hwhy $ytiar”q (“clamo
a ti, Yahweh”). Temos aqui uma clara manifestação da atividade
pactual. A pressão sofrida leva o salmista a buscar o auxílio do Deus
com quem tem uma aliança. Sua angústia o impulsiona a buscar o
auxílio do seu Senhor (v. 2), o que implica a pressuposição de que
este agiria em seu favor. A invocação é clara, simples e direta.

2.1.2 A petição
Temos uma das mais básicas petições: yliAqb. h[‘m.vi (“escuta a
minha voz”, v. 2). O salmista deseja ser ouvido. Quer que Yahweh
disponha seus ouvidos para lhe escutar o clamor.31  Sua condição
de lançado às profundezas tem obstruído sua relação pactual. A
tremenda distância entre as moradas do Altíssimo e as profundezas
do salmista tem causado enorme angústia ao salmista, a terrível
sensação de não estar sendo ouvido. O salmista não pede por cura
ou livramento dos inimigos, por vitória nas batalhas ou sustento
diário. Embora pudesse necessitar de uma ou de todas essas coisas,
ser ouvido pelo seu Senhor, e assim, ter restabelecida a comunicação
com ele, é tudo o que o escritor requer para alívio da sua angústia
e elevação da sua alma.
A expressão tAbVuq; ^yn<z>a’ (“teus ouvidos atentos”) só é encontra-
da aqui e no contexto da dedicação do templo. No final dela em 2
Crônicas 6.40, Salomão diz: “Agora, pois, ó meu Deus, estejam os
teus olhos abertos, e os teus ouvidos atentos à oração que se fizer
deste lugar”. E na resposta dada em seguida por Deus em 2 Crônicas
7.15: “Estarão abertos os meus olhos e atentos os meus ouvidos à
oração que se fizer neste lugar”.32 
Mas o que dava ao salmista a sensação de não estar sendo ou-
vido? Qual era o problema que afligia o salmista? Os versos 3 e 4
nos dão um indício.

 30
ALLEN, op. cit., p. 195.
 31
Cf. BARNES, op. cit., p. 258-259.
 32
Cf. ibid., 1514.

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2.2. Os motivos (versos 3-4)


Após fazer seu pedido, o salmista passa a argumentar em favor
do atendimento de duas formas: uma pergunta e uma afirmação
dela decorrente.

2.2.1 Uma pergunta com óbvia resposta


Temos no verso 3 aquilo que podemos chamar de pergunta
retórica:

dmo[]y: ymi yn”doa] Hy”-rm’v.Ti tAnwO[]-~ai: “Se iniqüidades observares


Yah, meu senhor, quem permanecerá?”

A posição no início e a repetição no v. 8, o espelho no quiasmo,


coloca em evidência a palavra tAnwO[ (“iniqüidades”).
Sobre esse termo Henry McKeasting escreve:

[...] ‘awonth em hebraico, é [uma palavra] um pouco ambígua. Nossas


versões padrão inglesas traduzem nesse ponto por ‘iniqüidades’, mas
há numerosos textos em que a palavra exige a tradução ‘punições’.
Isto quer dizer que ela pode se referir não somente ao pecado, mas
aos sofrimentos que são o resultado do pecado. Não é impossível
que algum sentido dessa natureza tenha estado na mente do escritor
quando ele a usou em Sl 130.33 

Embora haja essa possibilidade em relação ao verso 8, no v. 3 a


palavra tem, mais naturalmente, o sentido de pecados. Colocado
como argumento fica ainda mais claro o que aflige o salmista. O
relacionamento do homem com Yahweh se quebra quando aquele
peca e se desvia do caminho da justiça. Sobejamente vemos nos
salmos que Deus abençoa e socorre o justo e pune com destruição
o pecador (p. ex., Salmo 1).

 33
MCKEATING, Henry, “Divine Forgiveness in the Psalms”. Scottish Journal of Theology, vol. 18, n.
1 Março 1975, p. 73-74. E.g., em Gênesis 4.23, a Edição Almeida Revista e Atualizada traduz o
termo por “punição”.

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Seria simples assim, se o salmista não nos colocasse diante de sua


questão: que justo há que não peque? Quem é o homem que pode
apresentar-se isento de iniqüidades diante do Senhor? Que homem
tem cumprido com plenitude sua parte na aliança com Yahweh? E
a resposta sempre será: ninguém, nenhum.34 

[...] as temerosas profundezas de que o clamor sobe a Deus não são


a ameaça de forças externas ou hostis, mas a mental, emocional, e
espiritual noite escura da alma que encontra-se mergulhada no pecado
e na culpa, o relacionamento quebrado com Deus e seu próximo, e
sua falta de capacidade para libertar-se dessa grave situação.35 

Aqui, Deus não é o protetor como no Salmo 121, mas o guardião


atento a qualquer infração.36  Barnes escreve: “A idéia é: se Deus usasse
seu olhar escrutinador, se ele tentasse ver tudo o que ele pode ver; se
ele não permitisse que nada escapasse à sua observação, se ele lidasse
conosco exatamente como nós somos...”.37  Perowne sugere o sentido
de guardar na memória com o objetivo de punir.38  Jó, em sua luta
por justiça, se deparou com essa questão. Em Jó 13.23-28 lemos:

Quantas culpas e pecados tenho eu? Notifica-me a minha trans-


gressão e o meu pecado. Por que escondes o rosto e me tens por teu
inimigo? Queres aterrorizar uma folha arrebatada pelo vento? E
perseguirás a palha seca? Pois decretas contra mim coisas amargas
e me atribuis as culpas da minha mocidade. Também pões os meus
pés no tronco, observas todos os meus caminhos e traças limites à
planta dos meus pés, apesar de eu ser como uma coisa podre que se
consome e como a roupa que é comida da traça.

Pouco antes (Jó 7.19-21) ele havia dito:

Até quando não apartarás de mim a tua vista? Até quando não me
darás tempo de engolir a minha saliva? Se pequei, que mal te fiz a

 34
Cf. ibid., 1515.
 35
MILLER, op. cit., p. 177.
 36
Cf. ibid., p. 1513.
 37
BARNES, op. cit., p. 259.

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ti, ó Espreitador dos homens? Por que fizeste de mim um alvo para
ti, para que a mim mesmo me seja pesado? Por que não perdoas a
minha transgressão e não tiras a minha iniqüidade? Pois agora me
deitarei no pó; e, se me buscas, já não serei.

Se estas fossem as exigências, o salmista sabe que não seria


ouvido, sua situação estaria além de toda esperança.39  “Em seu
relacionamento [pactual] ele tem se mostrado um servo inútil e o
ônus de mantê-lo pode recair apenas sobre o Senhor. Seu sofrimento
presente, como ocorre freqüentemente no AT, é reconhecido ser
devido ao seu mau procedimento pessoal.”40 
O salmista sabe que não teria o direito de ser ouvido. Mas seu
argumento é: ninguém teria. “O erro é entender o Senhor como
um deus cujo principal trato com os seres humanos é procurar por
iniqüidades. Se este fosse o caso, não haveria esperança para nin-
guém. Mesmo aqueles que são reconhecidos como justos por causa
da fé e fidelidade seriam pegos”.41 
“O orador reconhece que ele é desqualificado para se aproximar
do trono. Isto não é contestado, mas que a desqualificação é equi-
parada e superada pela afirmação do verso 4”.42 
Ficaria Deus alienado de todos os seus servos? Yahweh rejeitaria
todo o seu povo? É baseado nessas impossibilidades que o salmista,
mesmo tendo falhado em guardar a aliança, se anima a buscar a
presença de Yahweh. “O salmista ousa lembrar a Deus que ele deseja
não a morte de um pecador, mas a restauração à vida (cf. Ez 18.32;
33.11) – para a sua maior glória”.43  Lemos algo muito semelhante
em Amós 7.2: “Senhor Deus, perdoa, rogo-te; como subsistirá Jacó?
Pois ele é pequeno”.

 38
Cf. PEROWNE, op. cit., p. 403.
 39
Cf. PHILLIPS, Exploring the Psalms. Neptune, New Jersey: Loizeaux Brothers, 1988, vol. II, p. 515.
 40
ALLEN, op. cit., p. 195.
 41
MAYS, op. cit., p. 406.
 42
BRUEGGMANN, op. cit., p. 104.
 43
ALLEN, op. cit., p. 195-6.

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2.2.2 A afirmação decorrente44 


Há clara evidência de que Deus anda com o seu povo e que
mantém relação pactual com homens que o temem, embora eles
sejam pecadores. Isso é possível porque Deus traz consigo (um uso
incomum e sugestivo da preposição que se repetirá no verso 7)45 o
perdão (hx’yliS.h;).
Ao contrário do que possa parecer, essa é uma palavra rara. Como
substantivo só aparece aqui, em Neemias 9.17 e em Daniel 9.9. Como
verbo encontra-se distribuído em lugares estratégicos:46 

• Êxodo 34.9. Onde aparece junto com !wo[‘ (iniqüidade). E


expressa o pedido de Moisés para que Deus continue com o
povo, mesmo após este ter pecado construindo e adorando
o bezerro de ouro.
• Números 14.19-20. Novamente associada a !wo[‘. Usada no
pedido para que Deus não destruísse o povo quando se re-
voltou recusando-se entrar na terra de Canaã.
• 1 Reis 8.30,34,36,39,50. Na oração de Salomão para a de-
dicação do templo.
• Isaías 55.7. Como uma exortação por arrependimento ao
perverso e ao iníquo.
• Jeremias 31.34 e 33.8. Anúncio da nova aliança e da restau-
ração de Israel. Associada a !wo[‘.
• No Salmo 25.11, onde o salmista pede perdão por suas ini-
qüidades, e no 103.3, onde afirma que Deus as perdoa.

Seu argumento é que perdão é um ato que acompanha o Deus


da aliança. É ele mesmo, o Senhor, que torna possível a relação
entre um Deus santo e um homem pecador. “[...] o salmista per-
cebe que a justiça divina é governada, controlada e dominada pela
graça [...] em seu reconhecimento de que a natureza de Deus não
é marcar ou guardar iniqüidades, mas perdoá-las”.47  O salmista

 44
Cf. PEROWNE, op. cit., p. 403.
 45
Cf. MILLER, op. cit., p. 179.
 46
Cf. SCHÖKEL, op. cit., 1514.
 47
MILLER, op. cit., p. 179.

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quer desfrutar desse tratamento que Deus concede a seus servos e,


assim sendo, ser ouvido.
Miller aponta esse fato como a questão central do salmo. Ele
escreve:

O salmo fala da paradoxal, mas bem real e humana experiência de


encontrar com Deus, que é a fonte do desespero nas profundezas
e ao mesmo tempo a única saída. Porque há um ser transcendente
cujo reto caminho não tem sido observado e cuja ordenação chama
para prestar contas aqueles que não observam aquele caminho, o sal-
mista encontra-se em uma angústia de mente e coração que é quase
a morte. Mas este justo e transcendente Deus é a única esperança e
fonte de resgate das profundezas, de modo que a resposta de alguém
atolado nas profundezas não é fugir de Deus, que conhece suas ini-
qüidades, mas um clamor a Deus por libertação. O ser humano que
fala em, por meio de, e com esse salmo é um lamentador, um fato
que significa uma realidade dupla: Ele ou ela está nas profundezas,
mas também é alguém que ora.48 

A presença do perdão não torna Deus desprezível, antes leva os


homens a temê-lo, a reverenciá-lo, a obedecê-lo por amor. Schökel
assim escreve: “Porque o homem pecador depende totalmente de
Deus para o perdão, há de respeitar a Deus; o perdão é competência
de Deus, por isso o homem pecador deve recorrer a ele com humilde
reverência”.49 
São igualmente dignas de nota as observações de Lockyer: “Gra-
tidão pelo perdão produz muito mais temor e reverência a Deus
do que todo o medo que é inspirado pela punição”;50  de Perowne:
“Deus livremente perdoa pecados, isso não quer dizer que os homem
possam pensar amenamente acerca do pecado, mas que eles devem
magnificar sua graça e misericórdia em perdoar, e assim dar a ele o

 48
Ibid., p. 177.
 49
SCHÖKEL, op. cit., p. 1515
 50
LOCKYER, op. cit., p. 670.

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temor e a honra que são devidos ao seu nome”,51  e de Barnes, que


diz: “O ofensor assim perdoado está disposto a adorar e honrar a
Deus; pois Deus revelou-se como alguém que perdoa pecados, de
maneira que o pecador possa encorajar-se a vir a ele e ser seu ver-
dadeiro adorador”.52 
No próximo número, veremos como o salmista passa do clamor
à esperança e adoração.

 51
PEROWNE, op. cit., p. 404.
 52
BARNES, op. cit., p. 259.

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Departamento de Teologia e Cultura

Calvino e Aquino

p a r t e fi n a l

Rev. Donizete Rodrigues Ladeia

Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico


Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição

Licenciatura Plena em Filosofia, História e Psicologia


pelas Faculdades Associadas Ipiranga
Mestre em Ciências da Religião pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie
Pastor auxiliar da 1ª Igreja Presbiteriana de
São Bernardo do Campo

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Calvino e Aquino
p a r t e fi n a l

Resumo
O autor sustenta que a fé é o ponto de contato entre Cal-
vino e Aquino, os dois defendem o cristianismo conforme
compreendido por meio das Escrituras Sagradas em suas
respectivas épocas. Mas os diferentes contextos intelectuais
em que viveram, a escolástica para Aquino e o humanismo
para Calvino, influenciaram grandemente seus métodos de
interpretação bíblica, que foram determinantes para a história
da igreja cristã. Nesta parte final do artigo, o autor apresenta
a avaliação dos princípios da hermenêutica dos dois impor-
tantes teólogos.

Palavras-chave
Hermenêutica, Tomás de Aquino, João Calvino, Dogmas
católicos romanos; Escolástica.

Abstract
The author defends the faith as the point of contact between
Calvin and Aquinas, both of them defending Christianity as
understood through the Holy Scriptures in their respective
times. But the different intellectual contexts in that they li-
ved, the scholastic for Aquinas and the humanism for Calvin,
influenced largely their methods of biblical interpretation,
which became decisive for the history of the Christian chur-
ch. In this final part of the article, the author presents the
evaluation of the hermeneutical principles of both important
theologians.

Keywords
Hermeneutics; Thomas Aquinas; John Calvin; Roman Ca-
tholic Dogmas; Scholastic.

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Calvino e Aquino | 33

4. A Hermenêutica de Aquino
Ao estudar a história da hermenêutica, do ponto de vista da
história do cristianismo, nos deparamos com dois períodos funda-
mentais, que direcionam os caminhos tomados pela igreja desde sua
formação. São eles o período Medieval e o período da Reforma. Fica
claro que dois rumos estão estabelecidos a partir dos dois momentos.
O primeiro, influenciado por aquilo que se chama de regula fidei, “que
significa uma afirmação compendiada da fé da igreja”;1  ou seja, a
infalibilidade da igreja ao traçar normas de conduta. Já o segundo,
um período totalmente influenciado pela Renascença, que tem na
busca pelos originais – a Bíblia – a autoridade suprema; isto é, contra
a infalibilidade da igreja abraçou-se a infalibilidade das Escrituras.2 

4.1. Na busca de compreensão do ser, teólogos e filósofos se


aproximam do mesmo conhecimento
Na tentativa de conciliar a ciência e a teologia, Tomás de Aqui-
no ressalta que, ou as filosofias se enganam, ou elas acreditam de
forma irracional, ou seja, no final, a ultima resposta deve ser dada
pela fé. Por isso, a revelação, ou seja, a Escritura, terá a função
de armazenadora de conhecimento acerca do que Deus é. Para
Tomás isso é fundamental, tendo em vista que é a compreensão
do ser, do sumo bem; por isso, os filósofos também alcançaram,
em alguma medida, a compreensão do ser, de Deus – daí, duas
teologias: uma natural, que a razão elabora; outra revelada, que
parte do dogma.3 
Tomás de Aquino indica que a Suma Teológica deve ter em
seus leitores o mesmo poder de lucidez que tem a Escritura, pois,

 1
BERKHOF, Louis. Princípios de interpretação bíblica, p. 24.
 2
Ibidem, p. 29.
 3
Vd. GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média, p. 656-657. Com isso observamos o quanto
é séria a consideração de Tomás de Aquino com a revelação natural, pois para ele os filósofos
atingiram um padrão digno de compreensão quanto ao ser de Deus; parece que isso deu margem
para uma supervalorização da Filosofia a ponto de a Escritura ficar em alguns casos submissa ao
pensamento filosófico. Mas, historicamente, sabemos que o que aconteceu foi que os ditames da
igreja ajudaram a conter tal problema; porém, a supervalorização de Aquino mais adiante levará
a Teologia ser analisada pela Filosofia e, como sabemos, isso traria grandes prejuízos para a igreja.

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segundo ele, é isto que exige a doutrina sagrada.4  Isto ele escreve
antes de abordar uma das principais argumentações da Suma: Do
que é e do que abrange a doutrina sagrada, no seu prólogo. Num
período tão ligado à elitização da cultura, este tipo de pensamento
é revolucionário, e Aquino foi tão querido por muitos devido à
acessibilidade de suas obras.5 
Aquino compreendeu que a doutrina sagrada, além das outras
doutrinas – e por outras doutrinas aqui se entende aquelas da
Filosofia, racionalmente obtidas6  –, é necessária para a salvação.
Esta doutrina sagrada também é ciência, pois deriva-se de princí-
pios conhecidos à luz da revelação, que para Aquino é uma ciência
superior.7  Contudo, é ciência, segundo ele, mais especulativa que
prática, “por conhecer antes as coisas divinas que os atos humanos,
tratando destes, enquanto o homem por eles se ordena ao conheci-
mento perfeito de Deus, essência de felicidade eterna”.8  A doutrina
sagrada é mais digna do que outras ciências, pois as outras estão
limitadas pelo erro humano, porém a sagrada está na segurança da
perfeição de Deus.9 

4.2. Aquino: seriedade e valor providencial


Até aqui verificamos um homem sério em busca da verdade, e
que, por meio das Escrituras – a seu modo e de acordo com o seu
tempo – evidencia na Filosofia o ponto de contato com a Teolo-

 4
AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. 1, VII, p. 1.
 5
Lembrando que, como vimos na primeira parte do artigo, a educação estava voltada aos nobres e
não ao povo, e se assim não fosse, talvez a linguagem de Aquino ficasse inacessível.
 6
AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. 1, VII, p. 2-3.
 7
AQUINO, Idem, p.4.
 8
Ibidem, p.5.
 9
Apesar de não reconhecer em Aquino um grande filósofo, chegando a dizer que “há pouco do
verdadeiro espírito filosófico em Aquino”, Russell, por outro lado, faz elogios a Tomás de Aquino
como sistematizador, principalmente pela clareza com que distingue os argumentos derivados da
razão e os derivados da revelação. Como diz: “Foi ainda mais notável pela sistematização que
pela originalidade. Mesmo que cada uma de suas doutrinas fosse errônea, a Summa permaneceria
como imponente edifício intelectual. Quando deseja refutar alguma doutrina, ele a expõe primeiro,
às vezes com grande força e, quase sempre, procurando ser justo. A penetração e a clareza com
que distingue os argumentos derivados da razão e os argumentos derivados da revelação são ad-
miráveis.” Cf. RUSSELL, Bertrand. História da Filosofia ocidental. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1957. v. 1, p. 182-183.

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Calvino e Aquino | 35

gia.10  Outro ponto que ressalta a importância de Aquino é a forma


como ele superou os filósofos árabes,11  que muito influenciaram o
pensamento europeu; sua defesa do pensamento cristão por meio
da Filosofia ajudou a derrocada destes filósofos. Somos levados a
imaginar o que seria do cristianismo com uma vitória dos mouros
no mundo intelectual; talvez nós estaríamos sofrendo as discrimi-
nações, ou até mesmo as perseguições do radicalismo islâmico. Mas,
por hora, o que nos importa é verificar a sua forma de interpretação
do livro sagrado.

4.3. Aspectos hermeneuticos


Na sua obra Suma Teológica, temos mais subsídios para com-
preender sua Hermenêutica. Aquino defende que a doutrina é
argumentativa:

[...] a doutrina sagrada, por não ter nenhuma superior, disputa


contra quem lhe nega os princípios, com argumentos, se o adver-
sário conceder algum ponto revelado; e assim, com as autoridades
da doutrina sagrada, discutimos contra os hereges e, por um artigo
da fé, contra os negadores de outro. Se, porém, o adversário não
acredita em algum ponto da revelação divina, já não há meio para
lhe provar com razões os artigos de fé, mas, sim, para lhe refutar as
objeções contra esta, porventura, assacadas.12 

 10
A história da filosofia cristã dos séculos 13 e 14 é essencialmente um debate vivo e intenso em
torno das várias formas da filosofia aristotélica. De início predominam, ainda, certos elementos
neoplatônicos; paulatinamente, porém, estes elementos vão cedendo terreno, sem contudo desa-
parecer completamente. Várias sínteses emergem do vigoroso processo de fermentação que então
se inicia. Na segunda metade do século 13 observa-se uma nítida delimitação de fronteiras. S.
Alberto, S. Boaventura e, mais tarde, Henrique de Gand, representam o ponto culminante de
uma corrente predominantemente neoplatonizante, e por esta razão mais próxima a Agostinho.
A síntese levada a termo por S. Tomás tende a assimilar o mais fielmente possível o aristotelismo
puro. Em Duns Escoto manifesta-se uma tendência intermédia. Com ele inicia-se também a crítica.
Começa o período de seleção e discriminação, o qual irá culminar na obra de Guilherme Ockham.
Em Mestre Eckhart, finalmente, as tendências místicas do neoplatonismo recebem sua expressão
clássica. Cf. GILSON, Etienne; BOEHNER, Philotheus. História da filosofia cristã. Petrópolis: Vozes,
1982. p. 361,362.
 11
Dois filósofos desta época, Avicena (980-1037) e Averróis (1138-1198), foram os responsáveis pelo
contato do Aristotelismo com a teologia cristã na Idade Média. Esta filosofia chegou ao Ocidente
por meio das invasões árabes na Espanha, Sicília, Nápoles e Portugal. Desta forma os séculos 11
e 12 presenciaram as lutas bélicas e ideológicas que gerariam no século 13 o total acolhimento da
filosofia de Aristóteles. Cf. Ibidem, p. 361,362.
 12
AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. I, VIII, p. 10.

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36 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

A Escritura ganha o devido destaque, é a base estrutural do


pensamento da igreja. Contudo, qual é a visão da Hermenêutica
propriamente dita do “doutor angélico”? Na Suma teológica ele usa
a tão conhecida visão da Idade Média, o uso quádruplo do sentido
da Escritura. A Bíblia era vista como um livro cheio de mistérios,
que só podia ser entendido misticamente. Suas bases interpretativas
eram o modo literal, o tropológico, o alegórico e o analógico,13  como
segue sua explicação:

O autor da Sagrada Escritura é Deus, em cujo poder está dar signi-


ficação não só às palavras, o que também o homem pode fazer, mas
ainda, às próprias cousas. Por isso, além do que se dá com todas as
ciências, nas quais as palavras têm significação, esta ciência tem de
próprio, que as cousas mesmas significadas pelas palavras, por sua
vez, também significam. Ora, a primeira significação, pelas quais as
palavras exprimem as cousas, é a do primeiro sentido, que é o histórico
ou literal. E a significação pela qual as cousas expressas pelas palavras
têm ainda outras significações, chama-se sentido espiritual, que se funda
no literal e o supõe. Mas, este sentido espiritual tem três subdivisões.
Pois, como diz o Apóstolo, a lei antiga é figura da nova e esta, por
sua vez, como diz Dionísio, o é da glória futura; e, demais, na lei
nova, as cousas feitas pelo chefe são sinais das que nós devemos fazer.
Ora, quando as cousas da lei antiga significam as da nova, o sentido é
alegórico; quando as realizadas em Cristo, ou no que significam, são
sinais das que devemos fazer, o sentido é moral; e quando significam
as cousas da glória eterna, o sentido é anagógico.14 

Desta forma, observamos que Tomás não rompe com o sistema
de interpretação que foi tão comum na Idade Média, ou seja, o
método quádruplo. Berkhof chega a dizer que Tomás de Aquino

 13
BERKHOF, Louis, Princípios de interpretação bíblica. p. 26-27.
 14
AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. I, X, p. 13 (Grifos meus). Augustus Nicodemus, tratando deste
assunto, escreve que Tomás de Aquino não abandonou o método alegórico, mesmo evidenciando
o método literal. Cf. LOPES, Augustus Nicodemus. A Bíblia e seus intérpretes: uma breve história
da interpretação. p. 156.

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Calvino e Aquino | 37

compreendeu vagamente certa incongruência no ponto de vista


dominante da época, mas identifica que o mesmo alegorizou
constantemente.15 
Conforme verificamos em sua grande obra, “Suma teológica”,
Tomás de Aquino, pelo menos em teoria, valorizava o sentido literal
como um fundamento necessário, ou seja, primário, para a exposição
das Escrituras. Sobre o assunto diz:

Mas, como o sentido literal é o que o autor tem em vista, e o autor


da Sagrada Escritura é Deus, cuja inteligência tudo compreende
simultaneamente, não há inconveniente, como diz Agostinho, se,
mesmo no sentido literal, uma expressão da Sagrada Escritura tem
vários sentidos. [...] É conveniente à Sagrada Escritura transmitir
as coisas divinas e espirituais por comparações metafóricas com
as corpóreas. Pois, provendo Deus a todos, segundo a natureza de
cada um, e sendo natural ao homem chegar, pelos sensíveis, aos
inteligíveis – pois todo o nosso conhecimento começa pelos sentidos
– convenientemente, a Sagrada Escritura nos transmite as cousas
espirituais por comparações metafóricas com as corpóreas.16 

Em outro lugar, escreve de tal forma que sentimos que de fato
defende o método literal:

Quando o evangelista diz “No princípio era o Verbo”, sem dúvida se


refere à Palavra divina e não à palavra humana ou angélica, ambas
criadas, pois certamente a palavra não pode preceder àquele que
a profere e o homem e o anjo também foram criados: têm causa e
princípio em seu ser e em seu agir. Ora, a Palavra, e o Verbo a que
João se refere, não só não foi criado, como também “tudo por ele foi
criado”. Trata-se, pois, necessariamente do Verbo divino.17 

 15
BERKHOF, Louis, Princípios de interpretação bíblica. p. 27.
 16
AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. I, VIII, p. 10.
 17
AQUINO, Tomás. Verdade e conhecimento. Tradução, estudos introdutórios e notas de: Luiz Jean
LAUAND e Mario Bruno SPROVIERO. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 291.

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38 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

Na verdade temos aqui um ponto de dificuldade quanto à


hermenêutica de Aquino, pois em determinados momentos perce-
bermos a incoerência da argumentação a favor do entendimento
literal, logo seguida por outros nos quais ele aborda o sentido
quádruplo:

A história, a etiologia, a analogia pertencem a um mesmo sentido


literal. Pois, como expôs o próprio Agostinho, a história propõe algo
puro e simplesmente; a etiologia assinala a causa de uma expressão,
como quando Moisés deu licença de repudiar as mulheres, isto é,
pela dureza do coração dos hebreus; a analogia mostra que a verdade
de um passo da Escritura não repugna a de outro. Ora, dentre as
quatro divisões propostas, só a alegoria, abrange os três sentidos
espirituais [...].18 

De forma geral, percebemos que a grande dificuldade era aban-


donar o método vigente da época, o quádruplo; por outro lado,
essa possível e aparente confusão no método de interpretação nos
faz vislumbrar um movimento de saída do alegórico para o literal.
Tanto Berkhof como Virkler apontam que foi Nicolau de Cusa19 
quem admitiu apenas dois sentidos no texto, o literal e o místico,
fundamentando o místico no literal; esse método influenciou pro-
fundamente Lutero, e conseqüentemente a Reforma.20  Por isso os
teólogos da Reforma tenderam a recomendar o silêncio em partes
que não podemos explicar, como o próprio Calvino que declarou
que onde a Bíblia se cala não podemos ir adiante.

 18
AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. I, X, p. 10.
 19
Nicolau de Cusa (1401-1464) estudou com os Irmãos da Vida Comum em Deventer, e nas Uni-
versidades de Heidelberg e Pádua, onde conheceu o cardeal Giuliano Cesarani, seu futuro amigo
e protetor. A princípio se interessou principalmente pela ciência do Direito, mas estudou também
com grande fervor as ciências naturais. Seu método, que tem por base o sentido socrático e místico,
é meramente aproximativo das coisas intramundanas e supramundanas; desta forma, entende-se
que a realidade última permanece inacessível aos nossos conceitos.
 20
BERKHOF, Louis. Princípios de interpretação bíblica. p. 27. Ver também: VIRKLER, Henry A..
Hermenêutica: princípios e processos de interpretação bíblica. p. 47.

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Calvino e Aquino | 39

5. A Hermenêutica de Calvino
Seguem agora alguns pontos que evidenciam a hermenêutica
de Calvino.21 
1º Calvino não aceitava a supremacia do subjetivo sobre o obje-
tivo, pois a Bíblia autentica a própria Bíblia;22  o que a Igreja
Católica Romana fizera em tantas ocasiões fora errado, pois
é da Bíblia que se deriva a igreja e, pela fidelidade para com
a Bíblia que a igreja de Cristo é reconhecida.23 
2º Antes da razão, por si mesma, temos o testemunho interno do
Espírito Santo. Calvino escreve: “Devemos reconhecer, pois,
que o evangelho não pode ser adequadamente conhecido a
não ser através da iluminação do Espírito; e, conhecendo-o
dessa forma, somos afastados deste mundo e elevados até ao
céu; e ao percebermos a benevolência de Deus, descansamos
em sua Palavra”.24 
3º Mais que a visão especulativa filosófica, Calvino buscava a
autoridade interna da Bíblia. No seu comentário sobre a Carta
aos Hebreus ele ressalta isso: “Sempre que o Senhor se nos
acerca com sua Palavra, ele está tratando conosco da forma
mais séria, com o fim de mover todos os nossos sentidos mais
profundos. Portanto, não há parte de nossa alma que não
receba sua influência”.25  Seria, na verdade, submeter todo o
nosso entendimento às verdades de Deus.
4º Lição importantíssima, a Escritura deve ser estudada à luz da
Escritura. Com essa premissa, Calvino tem um identificador
de verdade e falsidade diferente de Aquino; o ponto de in-
terpretação não é a dialética entre filosofia e teologia, mas a

 21
O que segue é uma reflexão sobre as aulas do Rev. Hermisten M. P. Costa no curso do Mestrado
em Ciências da Religião.
 22
Esta expressão é apresentada por Costa ao ressaltar o posicionamento da Igreja Romana quanto
à sua forma de interpretação das Escrituras, mostrando a autoridade da interpretação à luz da
compreensão da igreja. Cf. COSTA, Hermisten M. P. Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino.
Texto apresentado em sala de aula, no curso da Faculdade Mackenzie 1ª semestre de 2005, p. 27.
 23
CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana. Buenos Aires: Nueva Creación, 1967. p. 606.
 24
CALVINO, João. Hebreus. São Paulo: Edições Paracletos, 1997, p. 153.
 25
Ibidem, p. 108.

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40 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

verdade registrada na Palavra de Deus que é interpretada à luz


da própria Escritura. Como mostra Hermisten ao falar sobre
esse assunto: “[...] portanto, o trabalho do teólogo é procurar
ouvir a voz de Deus e proclamá-la com fidelidade”.26  Com
isso, a Teologia passa a ser um comentário das Escrituras.27 

Diante disso, não nos surpreendemos com o fato de Calvino


receber o título de “exegeta da Reforma”; seu método se evidencia
nestes pontos:

1. Não se deve usar alegorias;


2. Deve-se entender o sentido da palavra;
3. Deve-se entender o contexto histórico, ou seja,
4. O método histórico-gramatical-teológico.

Junto com esta metodologia, Calvino encontra a necessidade de


enfatizar a responsabilidade dos que pregam a Palavra, que deveriam
atuar sem influências humanas. O ministro deve agir sempre com a
segurança de que sua pregação está firmemente baseada nos man-
damentos de Deus.28  Como ele ressalta nas pastorais: “A Escritura é
a fonte de toda a sabedoria, e os pastores terão de extrair dela tudo
o que eles expõem diante do seu rebanho”.29 

6. Calvino questiona Aquino


São cerca de 15 apontamentos sobre Aquino que encontramos
no “Índice de autores e obras citadas” das Institutas de Calvino.30 
Analisemos algumas delas:

 26
Cf. COSTA, Hermisten M. P. Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino. Texto apresentado em sala
de aula, no curso da Faculdade Mackenzie, 1ª semestre de 2005, p. 27.
 27
Hermisten ressalta um dado muito interessante quando escreve que Calvino ampliava as Institutas
da Religião Cristã à medida que escrevia seus comentários da Bíblia. (cf. Ibidem, p. 42).
 28
CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana, p. 616.
 29
CALVINO, João. As pastorais. São Paulo, Paracletos, 1998, p. 123.
 30
CALVINO, Juan. Institucion de la Religion Cristiana, p. 1223.

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Calvino e Aquino | 41

6.1. Aquino erra ao ensinar o sinergismo


Ao discorrer sobre livre-arbítrio, Calvino cita o mestre da esco-
lástica quanto à sua posição sobre o tema; segundo Tomás, “o livre-
arbítrio é uma faculdade eletiva que, participando do entendimento
e da vontade, se inclina, não obstante, mais à vontade”.31  A crítica
de Calvino baseia-se no esforço colocado na razão e na vontade
para comprovar o livre-arbítrio. Segundo Calvino não existe tal
sinergismo ou capacidade no homem.
Em outro lugar, sobre boas obras, Calvino também aponta
algo que é considerado fundamental a respeito da justificação. A
discussão gira em torno da possibilidade do homem se justificar.
Segundo parece, o reformador observa na posição do escolástico
que “o pecador [é] gratuitamente libertado da condenação e que
é justificado enquanto alcança o perdão”. Parece que Aquino
compreende certo sinergismo na justificação, e este ponto será
um grande divisor de águas entre a posição dos reformados e dos
católicos romanos.32 
Há mais um ponto ressaltado por Calvino na Suma Teológica,
em que ele mostra que Aquino acredita que os homens são jus-
tificados pela fé, mas as obras assumem o valor e a “virtude de
justificar”.33 
Ainda mais, Calvino critica Tomás, Duns Scoto e Boaventura,
que são chamados para defender o ponto de vista das boas obras
para a salvação. Para ele, há certa incoerência quando os tais falam
sobre uma graça aceitável, ou seja, uma necessidade constante de
que Deus conceda ao pecador durante toda a sua vida perdão em
meio às obras, pois a justiça das obras é imperfeita, mas o perdão
alcança o pecador como recompensa por obras. Segundo Calvino,
isto seria incoerente, pois a expressão graça aceitável não seria mais
que uma má interpretação da justificação encontrada em Cristo.
Esta justificação ocorre de uma vez por todas, não precisando de

 31
Ibidem, p. 176. Cf. AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. I, parte 1 questão 83.
 32
Salvação pela graça somente (Reforma), salvação pela graça e as obras (Pensamento católico).
 33
CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana, p. 616. AQUINO, Tomás. Suma teológica, v. I,
parte 2, art. 4.

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mais nada a não ser o próprio Cristo: “Ao sermos cobertos pela
limpeza de Cristo nossas faltas e imundícies de nossas imperfeições
não são mais imputadas [...]”.34 

6.2. Aquino erra ao definir que muitos dos mandamentos na


Bíblia não podem ser vistos como obrigatórios
Em outro lugar Calvino combate a questão das ordenanças da
Igreja Católica, especialmente quanto aos votos, que não podem
ser vistos como ordenanças. Ele mostra que os conselhos da Igreja
Católica Romana se tornaram mandamentos ao adquirir o status de
preceitos, de dever para todos. Ele cita a Suma Teológica de Aquino,35 
mostrando que é grande erro de interpretação e enganoso descon-
siderar alguns mandamentos como preceitos, adquirindo assim a
possibilidade de não cumprimento. Ele argumenta mostrando que
no evangelho os mandamentos são endereçados a todos.

6.3. Calvino critica a posição de Aquino quanto ao descanso


nas fraquezas do coração
Calvino se coloca contra a posição da Suma Teológica quando
Tomás fala de pecados veniais e pecados mortais.36  Para Aquino,
pecado venial é um mau desejo sem consentimento deliberado,
que não está tão arraigado ao coração.37  Calvino refuta mostrando
que o crente, quando não tem a preocupação de oferecer a Deus
todo o coração e fica tão viciado na divisão de pecados menores e
maiores, perde a noção de que devemos valorizar a obediência a
Deus em todos o aspectos. Para Calvino o crente deve ter o desejo
de tão somente fazer com que toda a vida esteja em harmonia com
a Palavra de Deus.38 

 34
CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana, p. 602.
 35
Ibidem, p. 998.
 36
A Igreja Católica faz esta diferenciação para mostrar que existem pecados que podem ser graves
e que, se não forem absolvidos na hora da morte, tais pessoas morrem e vão para o inferno; já os
pecados veniais não são tão graves assim. O pecado venial constitui uma desordem moral reparável
pela caridade. Cf. Novo catecismo para o futuro. São Paulo: Ed. Santuário, 1999, p. 139.
 37
CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana, p. 306.
 38
Ibidem, p. 306.

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Calvino e Aquino | 43

6.4. Calvino mostra que erros de interpretação das Escrituras


levam a atitudes erradas em termos de comportamento com
o próximo.
Calvino critica de forma geral o posicionamento dos escolásti-
cos quanto aos aspectos práticos de comportamento, por exemplo,
quando se lida com o próximo. Refutando por meio de argumentação
bíblica, ele se recusa a fazer distinção entre mandamento e conselho
evangélico. A crítica é demonstrada pelo que Calvino chama de uma
perniciosa ignorância sobre a ordem de não desejar a vingança e
amar os inimigos: este mandamento foi dado tanto aos judeus como
aos cristãos; mas para os escolásticos, tais ordens são conselhos, os
quais se pode obedecer ou não.
Tomás de Aquino39  argumenta dizendo que deve-se aceitar a
ordem de não-vingança e amor aos inimigos como conselho ao
invés de preceito, pelo fato de ser muito difícil e pesada.40  Calvino
contesta questionando: como podem “querer anular e cancelar a lei
eterna de amar ao próximo, que Deus tem dado?”41  A argumentação
de Calvino gira em torno da Palavra de Deus evidenciando o amor
ao próximo como dever e não conselho (Pv 25.21), mostrando que
as ordens são bem explícitas quanto ao inimigo que tiver fome e
sede, que o mesmo seja saciado. Calvino utiliza o texto de Êxodo
23.4, tendo em vista que o texto sagrado fala da ajuda que deve ser
dispensada aos animais, como uma mula, um jumento prostrado do
inimigo; e argumenta que se o animal do inimigo deve ser ajudado,
muito mais deve ser feito por aquele que causa o aborrecimento.
Ainda citando Deuteronômio 32.35, Calvino mostra que o com-
portamento para com um suposto inimigo deve ser de descanso na
Palavra eterna de Deus (Lv 19.18). Calvino argumenta que Deus
não é um mero conselheiro, e sim é legislador.

6.5. Quanto à questão do posicionamento católico referente


aos sacramentos
A expressão “sacramento” se tornou objeto de mais uma argu-

 39
AQUINO, Tomás. Suma teológica, capítulo 2, 1, questão 108, art. 4.
 40
CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana, p. 304.
 41
Ibidem.

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44 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

mentação de Calvino. Compreendendo os católicos que sacramento é


um sinal visível de uma graça invisível, como poderiam então os sete
sacramentos ser vistos “como vasos do Espírito Santo, instrumentos
e meios para alcançar justiça, e causa de remissão dos pecados?”42 
Um exemplo é o sacramento considerado pela igreja de Roma cha-
mado de extrema-unção. Calvino afirma que Tomás de Aquino não
via nos sacramentos do Antigo Testamento algo que pudesse ser
enfatizado como sacramento, pois para aqueles que viviam naquela
época não tinham nem a significação nem o que figuravam.43  Para
Calvino isso era um absurdo, pois se aquilo que Deus ordenara por
sua Palavra não era sacramento, então como poderiam ordenanças
inventadas por homens ser vistas, tranquilamente, como ordenanças
sacramentais?44 
Quanto à confissão de pecados, Calvino mostra que não há base
nas Escrituras pela qual a confissão deveria ser por meio das penas
e absolvições de homens. Ao provar que a confissão de pecados foi
livre, ou seja, não havia uma intermediação entre o pecador e Deus,
nem o ato de confissão auricular, Calvino ressalta que até o fim do
século 12, isto é, até Inocêncio III que obrigou a igreja a se confes-
sar,45  não havia tal erro, e que nem homem nem mulher deveriam
passar por este rito. O questionamento de Calvino a Tomás é quanto
à posição do sacerdote, pois pelo menos uma vez por ano homens
e mulheres deveriam procurar o seu sacerdote para confessar seus
pecados.46  Calvino, sobre isso, mais vez usa o argumento bíblico:

Por demais, nos refugiemos à estrita simplicidade da Escritura, não


temos por que temer que sejamos enganados com tais mentiras.
Porque nas Escrituras se nos propõe uma só maneira de confissão;
a saber, que é o Senhor que perdoa pecados, se esquece deles, e os
apaga, se os confessarmos a ele para alcançar o perdão dos mesmos.

 42
Ibidem, 1139.
 43
Ibidem.
 44
CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana, p. 1140.
 45
CALVINO, Juan. Institucion de la Religion Cristiana, p. 478.
 46
Esta crítica é tirada da Suma Teológica de Aquino, Suma Teológica, III, suplem. qu. 8; art. 4-5. in,
Ibidem.

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Calvino e Aquino | 45

É ele o médico; descubramos, pois, nossas enfermidades. Deus é o


ofendido; a ele, portanto, é que devemos pedir misericórdia e paz.
Ele, que perscruta os nossos corações e conhece a imperfeição de
nossos pensamentos; apressemo-nos, portanto, a descobrir nossos
corações em sua presença.47 

Contra outra doutrina, a penitência, mostra que a Igreja Cató-


lica está apoiada na argumentação de Pedro Lombardo e de Tomás
de Aquino, citando assim as respectivas obras Sentenças e Suma
Teológica;48  nestas, entende que tais teólogos vêem o perdão dos
pecados ocorrendo em um movimento concomitante entre a obra
da cruz e as penitências. Calvino verifica que a doutrina mantida
pelos papistas não evidencia a eficácia da obra de Cristo, pois “não
há outra satisfação com aquilo que se pode aplacar a Deus uma vez
que o temos ofendido”.49  Desta forma, não existe outra maneira de
satisfação de Deus, a não ser pela propiciação perpétua de Cristo.
Numa outra referência feita por Calvino, Aquino defende que há
necessidade de participação correta no sacramento da ceia, é neces-
sário uma dignidade – que Calvino chamará de falsa dignidade, pois
para ele esta dignidade seria pautada em critérios de purificação,
tais como a confissão de pecados ao sacerdote, que geram apenas
falsa segurança:50 

Não faço caso da sutileza de Santo Tomás de Aquino, o qual disse


que, ainda que a presciência dos méritos não pode ser chamada
causa de predestinação no que se refere a Deus que predestina,
contudo se pode pelo que nos diz respeito, como quando afirma
que Deus predestina a seus eleitos para que com seus méritos
alcancem a glória; porque determinou dar a eles a sua graça para
que com ela mereçam a glória. Mas como o Senhor não quer que
consideremos outra coisa em sua eleição senão sua pura bondade,

 47
CALVINO, Juan. Institucion de la Religion Cristiana, p. 481.
 48
CALVINO, Juan. Institucion de la Religion Cristiana, p. 496.
 49
CALVINO, Juan. Institucion de la religion cristiana, p. 496 (citando 1Jo 2.1 – 2.12).
 50
Ibidem, p. 1115.

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46 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

se alguém quiser ver alguma outra coisa é evidente que se extrapola


excessivamente.

Se quiséssemos contrapor a uma outra sutileza, não nos faltaria


meios de abater a de Santo Tomás. Ele pretende provar que a glória
é em certa maneira predestinada aos eleitos por seus méritos, porque
Deus lhes predestina a graça com a qual mereçam a glória. Mas eu
replico que, pelo contrário, a graça que o Senhor dá aos seus serve
para sua eleição, e muito mais a segue que a precede; posto que se
dá àqueles a quem a herança da vida havia sido já determinada.
Porque a ordem que Deus segue consiste em justificar depois de
ter elegido. De onde se conclui que a predestinação de Deus com a
qual delibera chamar os seus à sua glória é precisamente a causa da
deliberação que tem de justificá-los, e não ao contrário.51 

7. Considerações Finais
Para nossas considerações finais ressaltamos que Aquino foi um
homem sério e responsável dentro de seu desejo de estabelecer os
meios que seriam usados para transmitir o conhecimento de Deus.
Podemos dizer que no seu afã, Deus o usou como um meio para
impedir certo panteísmo que se estruturava por meio da filosofia
árabe. Talvez, sem as obras de Aquino, poderíamos ter um misto
de filosofia e religião anticristã vigentes em nossos dias, o que nos
levaria a desafios muitos maiores dos que temos hoje, principal-
mente ao falarmos de nossa pátria que ainda mantém a estrutura
de pensamento católico.
Quanto a Calvino, sabemos que o seu valor se dá como um dos
principais apologetas da Reforma, um sistematizador, que por meio
de sua obra mostrou ao mundo as referências fundamentais da fé
em meio à efervescência do humanismo e renascimento.
Temos por certo que entre Calvino e Aquino há muitas divergên-
cias que correspondem ao desenvolvimento histórico de séculos de

 51
Ibidem, p. 743.

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Calvino e Aquino | 47

diferença, e que este fator deve ser considerado. Porém, devemos


dizer que a melhor abordagem para uma visão comparativa entre
os dois é por meio da hermenêutica bíblica.
A hermenêutica de Calvino, quanto aos pontos de clareza de ex-
posição, doutrina da graça comum, teologia, exegese e a doutrina da
soberania de Deus, enfatiza de forma clara e própria que o processo
epistemológico do reformador possibilita o conhecimento humano
de Deus. Já Aquino está preso, em muitos detalhes, ao método da
Idade Média, principalmente ao regula fidei. Cremos que isso preju-
dicou a criatividade do Doutor da Igreja Católica.
Creio que Calvino aponta o melhor caminho ao dar valor ao
conhecimento oriundo do estudo sério do Livro Sagrado. Tratar a
Bíblia com total reverência epistemológica era buscar óculos para
a compreensão da realidade da existência de Deus, para enxergar a
conduta e a verdadeira fé.52  Diferentemente de Aquino, Calvino “não
estava interessado em minúcias metafísicas da teologia abstrata”,53 
mas seu propósito era edificação daqueles que têm fé em Deus e
que atuam em todas as áreas como agentes da fé pactual.
Contudo observamos que tanto Calvino como Aquino direciona-
ram o futuro das duas igrejas representadas (a Reformada e a Cató-
lica), na compreensão do relacionamento entre a teologia e filosofia:
• Para Calvino o pensamento humano está sempre em descré-
dito se não tiver concomitância com a revelação de Deus.
• Para Aquino há um espaço mais livre para aceitação das
especulações humanas. É claro que Aquino não queria isso,
mas mesmo assim ele abriu espaço para, mais a frente, o
desenvolvimento da neo-ortodoxia, do evolucionismo; uma
conciliação de fé e especulações filosóficas. Não é sem motivo
que vemos a Igreja Católica Apostólica Romana em muitos
momentos aderindo a uma mistura de teologia e a filosofia
da moda (como o marxismo).

 52
GEORGE, Timothy. Teologia do Reformadores. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova,
p. 198.
 53
Ibidem, 200.

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Damos graças a Deus por ter em nosso bojo uma teologia que,
por meio de sua fidelidade à Palavra, sabe manter uma posição fir-
me e irredutível às modas filosóficas que, por vezes, tentam minar
a fé do crente.

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Departamento de Música

As fontes do
coral luterano

Maestro Parcival Módolo

Regência na Westfälische Landeskirchenmusikschule,


em Herford, Alemanha
Mestrado com especialização em música dos séculos 17 e 18
também na Westfälische Landeskirchenmusikschule
Bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia do
Instituto Presbiteriano Mackenzie
Mestrando em Ciências da Religião pelo Instituto
Presbiteriano Mackenzie
Titular da Orquestra de Sunden, Westfalia
Direção da Orquestra Sinfônica Municipal
de Americana por 14 anos
Regente regular da Orquestra Filarmônica de Rio Claro,
SP, e da Orquestra Sinfônica da UNICAMP
Maestro convidado da Orquestra Sinfônica e da Orquestra de
Câmara de Goiânia, GO, bem como da Sinfônica de Belém, PA
Maestro visitante da Orquestra Sinfônica de San Diego, USA
“Gastdirektor” da Orquestra do Teatro da Ópera de
Bielefeld, Alemanha

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As fontes do
coral luterano

Resumo
O uso de música litúrgica nas igrejas filhas da Reforma é
um capítulo à parte na história da igreja. Os reformadores,
especialmente Lutero, deram grande atenção à música sacra
como meio de adoração a Deus e doutrinação dos fiéis. Neste
artigo, a importante obra do reformador alemão no âmbito
da música será abordada pelo Mst. Parcival, que analisará as
fontes utilizadas por Lutero. Este trabalho se concluirá com
outro, “As fontes do salmo calvinista”, a ser publicado no
próximo número desta revista.

Palavras-chave
Música Sacra; Música Litúrgica; História da Reforma; Mar-
tinho Lutero; Coral Luterano.

Abstract
The use of liturgical music in the churches proceeding of the
Reformation is a remarkable chapter in the Church History.
The reformers, especially Luther, payed great attention to
the sacred music as means of worship God and of believers
doutrination. In this article, the important musical work of
the German reformer will be approached by Mst. Parcival,
that will analyze the sources used by Luther. This work will
be concluded with another, “The sources of the Calvinist
Psalm”, to be published in our next issue.

Keywords
Sacred music; Liturgical music; History of Reformation;
Martin Luther; Luther Choral.

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Embora o uso de música vocal e instrumental no culto das igre-


jas filhas da Reforma seja hoje uma prática comum e natural, foi
tema que mereceu muita atenção e consideração dos reformadores
do século 16. Alguns deles, ao pensarem na música de suas igrejas
nascentes, colocaram-se em posições distintas, por vezes opostas.
Real ou aparente controvérsia sobre a música litúrgica não havia só
entre Lutero e Calvino.
Lutero não hesitava em afirmar que o Espírito Santo honrava
a música como ferramenta para sua obra, o que nos parece conse-
qüente e natural, já que ele estava convencido de que boa música1 
era um presente de Deus exclusivo aos homens, o que a tornava
veículo óbvio e eficiente para a pregação da Sua Palavra.
Calvino acreditava que a música devia ter parte nos ofícios reli-
giosos, dos quais, porém, excluía as artes plásticas e visuais. O uso de
música apropriada, adaptada ao serviço religioso, podia enriquecer o
culto e ser um importante veículo para o homem adorar seu Deus.
Por isso encorajava a congregação a cantar – e os seus seguidores
cantaram tanto que tornaram o cântico de salmos uma marca da
igreja reformada, mesmo nas horas mais difíceis, enfrentando prisão
e a morte, até: “Os protestantes franceses, ao serem levados para a
prisão ou para a fogueira, cantavam salmos com tanta veemência
que foi proibido por lei cantar salmos, e aqueles que persistiam
tinham sua língua cortada.”2 
Exatamente por se preocuparem com a música no culto, os refor-
madores produziram um novo tipo de cântico litúrgico, contendo a
Palavra de Deus e o evangelho no vernáculo, para uso congregacional
no culto dominical ou em qualquer outra ocasião. Na Alemanha esse
novo tipo de cântico passou a chamar-se “Coral Reformado”, “Coral
Luterano” ou “Coral Alemão”,3  em contraposição ao “Coral Grego-

 1
“Boa Música” nesse caso é valor objetivo. Sobre os conceitos de “boa música” e “música má” no
final da Idade Média, cf. MÓDOLO, Parcival. Musica: explicatio textus, praedicatio sonora. Fides
Reformata, v. 1, n. 1, Janeiro-Junho 1996, p. 60-64.
 2
LEITH, John H. A tradição reformada. São Paulo: Pendão Real, 1997, p. 299.
 3
O “Coral Reformado”, “Coral Luterano”, “Coral Alemão” ou ainda “Coral Protestante”, foi o gênero
nascido com a Reforma luterana. É muito diferente do canto gregoriano em todos os sentidos,
tanto a estrutura musical, o texto, a execução e a finalidade. Deixemos a professora Henriqueta
descrevê-lo: “língua vulgar ao invés do latim usado no canto gregoriano. Melodia no soprano e

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As fontes do coral luterano | 53

riano”, da igreja romana, cantado por dez séculos.4  Na Suíça, com


Calvino, será chamado “Salmo Calvinista”.

Coral Protestante x Coral Gregoriano


Durante a Reforma, na Alemanha, Lutero mesmo preparou mui-
tos Corais. Para isto metrificou salmos, traduziu e adaptou antigos
hinos latinos, arranjou e espiritualizou canções sacras de diferentes
origens, escreveu textos e compôs melodias. Suas revisões e melhorias
de material preexistente resultaram, na maior parte das vezes, em
cânticos novos e originais.
As melodias, segundo Lutero, deviam ser “fáceis de aprender e de
memorizar”. Compostos ou adaptados, textos e melodias deviam ser
sempre apropriados um ao outro. A declamação silábica tinha prima-
zia, sem melismas,5  facilitando a compreensão do texto, preservando
todas as características da língua local, o que Lutero assim justificava:
“O texto e as notas, a acentuação, a melodia e os movimentos, tudo
deve vir da língua local; senão será mera imitação, como fazem os
macacos”.6  Os textos agora eram doutrinários, cantados por todo
o povo e não pelo clero somente. O canto gregoriano é música do
clero e é música “de impressão”. O coral alemão é canção popular –
no sentido de ser “do povo” – música para ensino e expressão para
cada parte do culto. Traduções e adaptações deviam ser bem feitas
e perfeitamente adaptadas à forma de falar do local.
A propósito, essa preocupação e cuidado com a língua foi uma
constante na vida de Lutero.

desenvolvendo-se em valores longos, lentamente escandidos; harmonização a quatro vozes na


tonalidade moderna, nota contra nota; seccionamento fraseológico, verso por verso, formando
cadência; execução silábica; articulação simultânea de todas as vozes; acompanhamento ao órgão”
(BRAGA, H. Contribuição da Reforma ao desenvolvimento musical. Revista Teológica, v. 11, n. 21,
p. 31-43, jan. 1960, p. 34).
 4
O canto gregoriano se origina nas práticas musicais das sinagogas judaicas e na música dos antigos
núcleos cristãos da igreja (Jerusalém, Antioquia, Roma e Constantinopla). Com Gregório Magno,
bispo de Roma entre os séculos 6º e 7º, começou a espalhar-se, tornando-se, ali pelos anos 800, a
música por excelência da liturgia católica romana até a Reforma no século 16.
 5
Passagens melódicas com seqüências de várias notas para uma única sílaba de texto.
 6
Lutero apud BERNSDORF-ENGELBRECHT, Christiane. Geschichte der evangelischen Kirchenmusik.
Wilhelmshaven: Heinrichshofen, 1980. 2 v, p. 108, tradução nossa.

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54 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

Uma palavra de lutero sobre tradução

Em 8 de setembro de 1530, mesmo ano da Dieta de Augsburg7  e 4


anos antes de completar a Bíblia Alemã, Lutero escreveu uma “Carta
aberta sobre tradução interpretativa”, (Sendbrief vom Dolmetschen).8 
É provavelmente o documento que melhor revela sua idéia sobre
tradução: esforçar-se por alcançar o texto mais inteligível possível para
os leitores.9  Para isso Lutero recusa a tradução literal, “palavra por
palavra”, e orienta-se pela linguagem popular, pela maneira usual
das pessoas falarem: traduz para uma língua“wie die Menschen reden”
ou “como o povo fala”. De fato, sua preocupação não foi apenas
a de verter o texto sagrado para o alemão, mas fazê-lo para um
alemão compreensível, falado pelas pessoas comuns. Não um texto
para eruditos, mas um texto para o homem que devia ser salvo. Se
assim não fosse, como tornar as Escrituras a norma para todas as
decisões da fé e da vida cotidiana?10  Como fazer dela sua prática
diária sem conhecê-la?
Não deve nos surpreender, portanto, que o alemão de Lutero,
especialmente a tradução da Bíblia, tenha se tornado padrão para
a língua alemã moderna. Mas Gerhard Ebeling nos lembra que é a
teologia a mola que impulsiona Lutero:

Confrontar-se com Lutero como acontecimento lingüístico não


significa uma esquiva da problemática teológica em direção àquele

 7
A Dieta de Augsburgo foi convocada por Carlos V e iniciada no mês de junho. Lutero não pôde
participar por já ter sido excomungado pelo papa em 1520.
 8
Até mesmo por respeito às idéias de Lutero sobre traduções, talvez a melhor tradução de Sendbrief
vom Dolmetschen seja, mesmo, Carta aberta sobre Tradução Interpretativa, já que qualquer Sendschreiben
(inclusive Brief) sempre se refere a uma missiva circular, enviada para ser divulgada, lida por muitos.
E Dolmetschen é “interpretar, servir de intérprete”, mais que “traduzir” (=Übersetzen). Nesse mesmo
sentido, Lutero também utiliza a expressão verdeutschen, algo como alemanizar, germanizar o texto.
 9
A sendbrief de Lutero aparece integralmente publicada em inúmeros autores. Utilizamos o traba-
lho de STÖRIG, Hans Joachim, Das Problem des Übersetzens. Wissenschaftliche Buchgesellschaft:
Darmstadt, 1973.
 10
Para Lutero, o princípio da sola scriptura destinava-se a salvaguardar a autoridade das Escrituras de
qualquer dependência servil à igreja. As Escrituras são a norma normans (norma determinadora), não
a norma normata (norma determinada) para a vida. Elas são superiores à igreja. A igreja depende
da Escritura e não a Escritura da igreja.

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As fontes do coral luterano | 55

aspecto cultural geral sob o qual, com razão, se costuma enaltecer


a sua obra, independente de um juízo confessional. “Ninguém que
sabe o que é uma língua”, escreve Klopstock, “comparece sem reve-
rência diante de Lutero. Em nenhum povo um homem só formou
tanto a sua língua”.11 

De forma análoga, apesar do grande amor de Lutero pela mú-


sica, era a teologia a própria fonte de suas convicções sobre pro-
pósito e uso da música no culto. Seu cuidado com a tradução dos
textos para as canções é similar ao da tradução do texto bíblico.
Ele traduz para o fiel cantar, não para o clero; para gente simples
e não para os letrados; e tem total consciência de que uma boa
tradução do texto musical deve “soar bem” e fazer total sentido
na língua traduzida, ou o resultado será: “mera imitação, como
fazem os macacos”.

Lutero e os cancioneiros

Para Lutero,12  a música é Donum divinum et excellentissimum, um


“maravilhoso presente divino” dado exclusivamente aos homens,
consciência que o levou à natural conclusão de que música era um
dom para ser recebido com gratidão e apreço, e que devia ser usado
para a glória de Deus e o bem da humanidade. Nada parecia mais
natural para ele, portanto, do que o fato de que a música devia ser
juntada à Palavra: se o evangelho é a boa nova que traz fé, esperança
e alegria, era a música que melhor poderia acender esta mensagem,
dar vida às palavras, impressionar o coração humano e exprimir a
alegria que a boa nova traz. Por seu poder de comunicação, assim,
nada haveria melhor do que a música para preservar e espalhar o
evangelho.
Em 1538, Lutero escreveu na apresentação de uma coletânea de
músicas publicada por Georg Rhau:

 11
EBELING, Gerhard. O pensamento de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 1986, p.21.
 12
LUTHER. Encomion musices. In: D. Martin Luther Werke. Weimar, 1944. v. 50. p. 372.

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Eu sinceramente desejo que todo cristão possa amar e compreender


o quanto é valioso e amável o dom da música, que é um precioso,
valioso e caro tesouro, dado aos homens por Deus […]. Ela pode
orientar nossos pensamentos, mentes, corações e espíritos. [...] Nos-
sos queridos pais e profetas não desejavam sem razão que música
fosse sempre usada nas igrejas. Por isso herdamos tantas canções
e salmos.13 

Lutero achava que se os jovens fossem educados na arte da


música e cantassem boas músicas, aprenderiam a discernir o que é
verdadeiramente bom, afastando-se das “canções carnais e lascivas”.
A esse respeito escreveu no prefácio do Geistliches Gesangbüchlein, um
volume contendo canções sacras arranjadas a quatro e cinco vozes
por Johann Walther, publicado em 1524:

Assim como muitos outros eu também coletei um bom número de


canções sacras [...] para que por meio delas a Palavra de Deus e a
doutrina cristã possam ser pregadas, ensinadas e postas em prática
[...]. Desejo isso em especial pensando nos jovens, que deviam ser
educados na arte da música e também nas outras artes se quisermos
tirá-los das canções carnais e lascivas, e fazê-los interessarem-se no
que é bom salutar. Só assim eles aprenderão, e devem fazê-lo, a
apreciar e amar o que é intrinsecamente bom [...]. Infelizmente o
mundo tornou-se relapso quanto às reais necessidades dos jovens
e esqueceu-se de treinar e educar seus filhos e filhas por caminhos
corretos. O bem da nossa juventude deveria ser nossa maior preo-
cupação. Deus nos conceda sua graça. Amem.14 

Talvez ainda seja oportuno observar que a citação acima nos


revela Lutero consciente de uma música má, imprópria para a ju-
ventude, e outra, “intrinsecamente boa”.15  Ele fazia, assim, clara

 13
Lutero In. KARL, Anton. Luther und die Musik. Zwickau: W.E. Buszin 1948, p. 53, tradução nossa.
 14
Apud KARL, Anton. Luther und die Musik. Zwickau: W.E. Buszin 1948, p. 50, tradução nossa.
 15
Novamente remetemos o leitor ao artigo de MÓDOLO, Parcival. Musica: explicatio textus, pra-
edicatio sonora. Fides Reformata, v. 1, n. 1, Janeiro-Junho 1996, p. 60-64.

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As fontes do coral luterano | 57

distinção entre sacro e profano; entre música apropriada para o


cristão e música imprópria, fosse no culto ou fora dele.
Em 1524 o primeiro hinário luterano foi publicado, o Achtlieder-
buch, ou “Livro de oito cânticos”. Como diz o nome, era um volume
contendo oito corais métricos, quatro deles compostos pelo próprio
Lutero. No mesmo ano dois outros volumes foram publicados em
Erfurt com o triplo de cânticos, dos quais 18 eram de Lutero.16 
Lutero, confiante na experiência musical de seu colaborador, o
hábil compositor Johann Walther,17  ainda em 1524 preparou e pu-
blicou – com Walther – o Wittenberg Gesangbuch. Como a finalidade
era a educação, as harmonizações eram simples, para que até os
mais jovens pudessem cantá-las facilmente.
Lutero viveu no tempo áureo da música coral desacompanhada,
isto é, da polifonia coral a cappella. A escola neerlandesa de compo-
sitores elevou a arte do canto coral (a polifonia coral) a um ponto
de grande elaboração técnica. Lutero admirava essas obras, esses
motetos polifônicos18  baseados em melodias gregorianas, melodias
essas artisticamente enriquecidas por várias linhas vocais simul-
tâneas. Era de se esperar que Lutero, sensível à beleza da música,
tendo cantado em corais desde a adolescência, maravilhado pelo
dom da voz, pela habilidade de expressar idéias e emoções através
da canção, conhecedor das elaboradas técnicas da composição, se
entusiasmasse ao ouvir as grandes obras polifônicas corais dos seus
dias. De fato, Lutero escreve:

 16
Entre 1524 e 1545 Lutero compilou e publicou nove hinários.
 17
Johann Walther (1496-1570), compositor e Kantor (mestre responsável por toda a vida musical
de uma igreja) alemão. Estudou na Universidade de Leipzig. Atuou em Capelas de várias cortes,
especialmente as de Torgau e Dresden. Luterano rigoroso, teve seu hinário prefaciado por Lutero
e o viu amplamente difundido. Ao lado de sua produção musical para o cântico congregacional,
há obras mais ambiciosas para coros de quatro a sete vozes, oito Magnificats e duas Paixões. Seu
trabalho ao lado de Lutero, sua atividade como músico de igreja devotado e suas composições
litúrgicas alicerçadas em inabalável fé cristã, garantiram-lhe reconhecimento como músico sacro
modelo da Reforma Protestante.
 18
O Moteto foi uma das formas mais importantes de música polifônica desde aproximadamente o
ano 1250 até 1750. Originou-se no século 13 da prática dos músicos da Catedral de Notre Dame
de Paris de acrescentar palavras (“moteto” deriva do francês mot, “palavra”) em linhas puramente
melódicas que faziam contraponto com um cantus firmus. Era o início das experiências de polifonia
na música vocal religiosa.

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Essa preciosa dádiva [a música] foi dada somente aos homens para
lembrá-los de que eles foram criados para louvar e exaltar o Senhor.
Mas, quando música natural é aguçada e polida pela arte, aí se pode
principiar a ver, maravilhado, a grande e perfeita sabedoria de Deus
em sua maravilhosa criação, a música, quando uma voz principia
cantando uma simples linha em torno da qual são cantadas três,
quatro ou cinco vozes, saltando, movendo-se ao redor da primeira,
acima e abaixo, magistralmente enfeitando a simples melodia, como
uma dança coreografada no céu, com encontros de parceiros, abraços,
reverências entre amigos. Aquele que não acha isso um inexplicável
milagre do Senhor é de fato um tolo.19 

Fica claro que Lutero enfatiza, aqui, a importância da “arte”, isto


é, do domínio técnico do músico, que consegue “aguçar e polir” a
“música natural”. Domínio da técnica que transforma sons naturais
em arte, era, a propósito, exigência antiga, muito anterior a Lutero,
para a música que se cantava a Deus. Já o salmista, ao exortar o povo
para que louvasse ao Senhor, insiste para que o façam “com arte e
com júbilo” (Sl 33.3b). E se é verdade que a expressão “com júbilo”,
h[‘Wrt.B, pode ter aqui diferentes interpretações, a expressão “com
arte”, Wbyjiyhe, da raiz bjy, “ser bom”, “ser o melhor”, “ser belo”,
não apresenta nenhuma dificuldade: refere-se, mesmo, à questão
da técnica; no nosso caso, da técnica musical.20   

As fontes do coral luterano

Em 1542 Lutero escreveu para Spalatin:21  “Eu quero produzir

 19
LUTHER, Martin. Luthers sämmtliche Schriften. BUSZIN, W.E. (ed.). St. Louis Edition 1972, p.
XXI, tradução nossa.
 20
A mesma expressão, Wbyjiyh, aparece em Oséias 10.1c: “Quanto melhor a terra, ...” (a Bíblia de
Jerusalém traduz “...quanto mais bela se tornava sua terra...”), utilizada, ali também, com o sentido
de “mais trabalhada”, “mais tratos culturais”.
 21
Spalatin, cujo nome era Georg Burkhardt (1484-1545), nasceu em Spalt, cidade próxima a
Nürnberg – daí o epíteto “Spalatin”. Doutorou-se em Artes (Filosofia) na então nova Universi-
dade de Wittenberg, onde havia ingressado em 1502. Logo passou a servir Frederico, o Sábio,
príncipe eleitor da Saxônia, tornando-se educador do jovem príncipe Johann Friedrich. Pouco
depois foi nomeado secretário privado do próprio príncipe, e a seguir, seu conselheiro. Defendeu

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As fontes do coral luterano | 59

salmos alemães para o povo [...] para que a Palavra de Deus seja
conservada no meio do povo através dessas canções”.22 
Segundo o atual estado das pesquisas, se reconhece com certeza
36 canções da autoria de Lutero, assim classificados: 12 adaptações
de hinos latinos; 4 transcrições do folclore religioso alemão; 7 salmos
métricos parafraseados; 8 hinos baseados em versos bíblicos e 5
hinos totalmente originais. Além dos cânticos de sua comprovada
autoria, portanto, Lutero adaptou outros, extraindo-os de várias
fontes, para compor o acervo musical da igreja luterana. Sempre
se esforçando por não lançar fora o que a tradição litúrgica trazia
de bom e procurando aproximar-se do povo sem criar uma ruptura
com tudo o que era conhecido, Lutero utilizou muitas canções sacras
pré-reformadas. Obviamente, traduzia as canções para o alemão
quando estavam em qualquer outra língua, adaptando métrica e
ritmo para a nova realidade, para o estilo musical que nascia e que
seria chamado Coral Alemão.
É necessário lembrar que, embora nas cerimônias litúrgicas roma-
nas formalmente só cantasse o clero, com muito pouca ou nenhuma
participação dos fiéis, havia muita música sacra do povo e pelo
povo – música “folclórico-eclesiástica”, portanto – nas procissões,
nas peregrinações, nas reuniões informais e na devoção individual.
Bons compositores sempre compuseram boas músicas sobre temas
religiosos, que se tornaram conhecidas e utilizadas fora da igreja.
Assim, cânticos religiosos acompanhavam o povo em sua história
muito antes da Reforma, mesmo que não pudessem cantá-los na
liturgia romana. Eram canções entoadas pelo povo, portanto, mas
apenas durante atos privados de devoção, já que o canto dos fiéis
havia sido praticamente suprimido do culto cristão oficial por volta
do século 6º.

a causa da Reforma na corte, mesmo que o príncipe Frederico ainda permanecesse fiel à doutrina
católica, influenciando na atitude benevolente do príncipe em relação ao próprio Lutero, com
quem mantinha relações estreitas. Seu conselho era muito apreciado também na escolha dos
professores da Universidade, o que contribuiu para que esta alcançasse sua máxima glória: du-
rante o período de sua supervisão o número de matrículas excedia o de todas as demais escolas
superiores da Alemanha.
 22
LUTHER, Martin. Briefwechsel. In: D. Martin Luthers Werke. Weimar,1969. v. 3. p. 590, tradução
nossa.

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É fato, ainda, que movimentos litúrgicos independentes de Roma


nasciam em vários lugares e em diferentes épocas da história do
cristianismo, e que alguns desses movimentos valorizaram a músi-
ca litúrgica. Hustad se lembra, por exemplo, de Francisco de Assis
(1182-1226), que no século 13 “dirigiu um movimento de reforma
na Itália [...]. O cântico constituía uma parte tão grande da sua
missão que Francisco apelidou a si mesmo de ‘cantor de Deus’”.23 
Os seus hinos de louvor e devoção eram chamados laude, canções
nas quais se pode notar a influencia das canções dos trovadores
franceses24  daquele período.
De sua parte, também a própria igreja latina já produzira grandes
hinos que se tornaram imortais, como o Dies irae, o Stabat mater e o
Jesu dulcis memória, que podiam ser cantados em ocasiões especiais,
acrescentados ao Ordinarium da missa, ou em devoções pessoais.
Mas esses e outros hinos, ou as “Seqüências”25  de São Hilário, São
Ambrosio, Fortunatus, São Bernardo, São Tomás de Aquino, entre
muitos outros, também eram cantados apenas pelos sacerdotes ou
o coro clerical, em latim, e soavam tão incompreensíveis para as
pessoas comuns quanto as partes fixas da missa latina.
Isso significa que, para a elaboração do cancioneiro reformado,
Lutero tinha à disposição farto material acumulado por séculos, boa
poesia e música cristã, bastando adaptá-lo às novas necessidades e
exigências da igreja que nascia, o que de fato ele fez.

Canções de tradições litúrgicas anteriores

Entre as primeiras fontes utilizadas como matéria prima para a

 23
HUSTAD, Donald P. Jubilate!: a música na igreja. São Paulo: Vida Nova, 1986, p. 126.
 24
Os trovadores (troubadours e trouvères), foram músicos poetas da tradição francesa de canção e
poesia lírica cortesã secular que floresceu particularmente entre os séculos 12 e 14. Os Minnesänger
podem ser considerados uma versão germânica dos troubadours e trouvères da França, mas foram
movimentos independentes.
 25
Seqüência era um tipo de cantochão medieval que floresceu entre 850 e 1150 aproximadamente.
Era uma peça de canto sacro extensa, de grande âmbito, com texto latino, mas musicada silabi-
camente, isto é, sem melismas. Após o ano 1000 os textos foram cada vez mais se escandindo e
rimando, até se transformarem finalmente em versos. Esses textos estavam associados às datas do
ano litúrgico e eram cantados durante a missa imediatamente após o Aleluia, como uma acrésci-
mo ao Ordinarium. Com o passar do tempo algumas seqüências foram ganhando importância e
autonomia, podendo subsistir mais tarde como peça musical independente.

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As fontes do coral luterano | 61

música da Reforma, estão seqüências, tropos,26  antífonas27  e cantos


gregorianos originais. O Erfurt Enchiridion,28  publicado em 1524
por Justus Jonas,29  traz três corais baseados em antigos hinos la-
tinos: Nun komm, der Heiden Heiland (“Vem chegando o redentor
dos gentios”), Christum Wir sollen loben schon (“A Cristo devemos já
louvar”, uma canção de natal), e Komm, Gott Schöpfer heiliger Geist
(“Vem, Deus criador, Espírito Santo”, para o Pentecostes). Eles são
traduções, respectivamente, dos hinos latinos Veni, Redemptor Ge-
nitum (atribuído a Santo Ambrósio30 ), A solis ortus Cardine (escrito
por Sedulius31  no século 5º), e Veni, Creator Spiritus (atribuído a
São Gregório).
O Kyrie alemão, Kyrie, Gott Vater in Ewigkeit (“Kyrie, Deus Pai,
eternamente”) foi uma adaptação de Lutero do antigo tropus latino
Kyrie fons bonitatis (Cf. ANEXO A).

 26
Tropos são acréscimos ou interpolações aos corais gregorianos, completando ou interpretando os
textos litúrgicos. Podiam servir também como introduções a esses cantos, constituindo-se de mú-
sica com ou sem palavras. Nos manuscritos do século 10 e 11 aparecem tropos introdutórios para
o Intróito, Ofertório, Comunhão e outros cantos do Proprium da missa. A prática, porém, aparece
com mais freqüência a partir dos manuscritos do século 12. Um tropo podia ganhar independência
e ser cantado no lugar da liturgia onde originalmente se cantava um coral gregoriano tradicional,
desde que, naturalmente, transmitisse o mesmo significado daquele coral. Há casos em que os
tropos são tão apreciados que passam a substituir definitivamente o canto original ao qual foram
inicialmente acrescidos.
 27
“Antífonas” são cantos litúrgicos com texto em prosa, cantados por dois coros, ou oficiante e coro,
que se respondiam.
 28
Coletânea de corais luteranos, não necessariamente para uso na igreja, mas especialmente para
as casas, como expresso no próprio título. A melodia, não harmonizada, vinha anotada acima das
palavras do texto, facilitando a leitura e o aprendizado da melodia por toda a família.
 29
Justus Jonas (1493-1555) estudou jurisprudência e depois teologia na Universidade de Erfurt,
tornando-se Mestre em Artes em 1510. Em 1521 foi a Wittenberg como professor, retornando a
Erfurt em 1514 ou 1515. Tornou-se amigo e colaborador de Lutero tanto na tradução da Bíblia
quanto nas discussões teológicas – acompanhou Lutero a Worms, por exemplo.
 30
Ou da Liturgia Milanesa, da tradição de Ambrosio, bispo de Milão (339-397).
 31
Sedulius [Caelius Sedulius] (primeira metade do século 5º), poeta cristão latino, tornou-se conhe-
cido especialmente por seu Carmen paschale, um épico bíblico em cinco livros de textos poéticos
em hexâmetros dáctilos (dactylic hexameter), provavelmente escritos no período entre 425–50.
O Carmen paschale ainda era bem conhecido até o fim do quinto século e permaneceu popular até
pelo menos o século 12; ele era freqüentemente copiado e citado, e foi a fonte para o texto intro-
dutório da Missa Votiva à Virgem, Salve, sancta parens, e para a Antífona de natal Genuit puerpera
regem. Outros dois breves poemas são também atribuídos a Sedulius: um texto sobre a historia da
salvação, Cantemus socii Domino, e o famoso hino alfabético em metro iâmbico, A solis ortus cardine,
a que aqui nos referimos, e que reconta a vida de Cristo da encarnação à ascensão. Tanto o A
solis ortus cardine quanto o Carmen paschale influenciaram significativamente os poetas medievais.

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62 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

A antífona Veni Sancte Spiritus, do século 11, cuja primeira estrofe


já vinha sendo cantada em alemão desde 1480, na região de Eber-
sberg, como Komm, Heiliger Geist, Herre Gott (“Vem, Santo Espírito,
Senhor Deus”), ganhou mais duas estrofes de Lutero em 1524. A
melodia original de Ebersberg, de 1480, foi preservada com alte-
rações feitas em Erfurt, em 1524, prática usual para torná-la mais
próxima ao estilo musical do Coral Luterano. A antífona Da pacem,
Domine, in diebus nostris, do século 9º, foi adaptada por Lutero em
1529, letra e música, para seu Verleih uns Frieden gnädiglich (“Dá-nos
paz misericordiosamente”).

As Leisen
Outra fonte importante para a música da Reforma foram as
Leisen (pronuncia-se “Láizen”), antigas estrofes devocionais, espécie
de refrão, que vinham sendo cantadas pelos fiéis excepcionalmente
até mesmo durante a liturgia. Na celebração da missa esses cânticos
estróficos concluídos por Kyrie eleison eram acrescidos ao próprio
Kyrie da liturgia, mas fora da igreja eram cantados pelo povo em
sua devoção individual como hinos independentes. Lutero utilizou
algumas das Leisen que já vinham sendo cantadas pelo povo e adap-
tou várias outras: a seqüência Grates nunc omnes tornou-se a canção
de natal Gelobet seist du, Jesu Christ (“Louvado sejas, Jesus Cristo”).
A seqüência pascal Victimae paschali laudes tornou-se Christ lag in
Todesbanden (“Cristo jazia nas amarras da morte”). Para a antífona
Media vita in morte sumus, que já no fim do século 15 era cantada em
alemão como Mitten wir im Leben sind (“No meio da vida estamos”),
Lutero escreveu mais duas estrofes.

Canções de peregrinação
Eram inúmeras as boas composições musicais sacras cantadas nas
peregrinações, a caminho de Santiago de Compostella, nas cruzadas
a Jerusalém, nas romarias a Colônia, por exemplo, durante as quais,
com maior liberdade e longe da autoridade do clero, todos os fiéis
podiam cantar enquanto caminhavam, ou nas paradas para descan-
so. Da conhecida canção de peregrinação In Gottes Namen fahren wir
(“Em nome de Deus nós vamos”), do século 12, Lutero utilizou a

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As fontes do coral luterano | 63

música para sua canção de catecismo Dies sind die heilgen zehn Gebot
(“Estes são os dez mandamentos sagrados”) (Cf. ANEXO B).

Salmos metrificados
Um outro grupo é composto pelos salmos, isto é, canções cujos
textos são os próprios salmos bíblicos metrificados por Lutero: o
Salmo 12, Ach Gott vom Himmel, sieh darein (“Ah, Deus, do céu olhe
para nós”); o Salmo 46, Ein feste Burg ist unser Gott (“Castelo forte
é nosso Deus”); o Salmo 67, Es wolle Gott uns gnädig sein (“Queira
Deus apiedar-se de nós”); o Salmo 124, Wär Gott nicht mit uns diese
Zeit (“Se Deus não estivesse conosco”); o Salmo 130, Aus tiefer Not
schrei ich zu dir (“Das profundezas clamo a ti”); e muitos outros.
É fato que, dentre todas as composições de Lutero, há especial
predileção pelo seu famoso Ein feste Burg (“Castelo forte”). E essa
predileção não é recente, nem localizada: tornou-se desde sua com-
posição e em todos os países onde foi cantado, o principal coral
luterano (Cf. ANEXO C).
Diferentemente dos salmos reformados posteriores, cujos textos
conservaram-se substancialmente fiéis aos textos dos salmos bíblicos,
apenas metrificados e organizados em estrofes, os salmos de Lutero
traziam, declarada ou implícita, a mensagem do Cristo, isto é, os
salmos luteranos foram “cristianizados”.

Canções de autores contemporâneos


É evidente que as idéias e os ensinos da Reforma foram cantados
por muitos compositores contemporâneos de Lutero, que viviam nas
redondezas de Wittenberg. Algumas dessas canções foram recolhi-
das por Lutero e as melhores foram publicadas. Bons exemplos são:
Allein Gott in der Höh sei Ehr (“Somente a Deus, nas alturas, seja a
glória”), de Nikolaus Decius; Herr Christ, der einig Gotts Sohn (“Cristo
o Senhor, o unigênito de Deus”), de Elisabeth Creuzigter (a partir
da Reforma, também uma mulher podia escrever uma canção para a
liturgia!); Es ist das Heil uns kommen her (“A salvação chegou a nós”),
de Paul Esperatus; Wo Gott der Herr nicht bei uns hält (“Onde o Senhor
Deus não está conosco”), de Justus Jonas; Ihr lieben Christen, freut
euch nun (“Vós amados cristãos, alegrai-vos já”) e Christe, du bist der

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64 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

helle Tag (“Cristo, tu és o claro dia”), ambos de Erasmus Albert. Da


distante Königsberg vieram Nun lob, mein Seel, den Herren (“Louva
agora, minha alma, ao Senhor”) de Johann Gramann e Was mein
Gott will, das g’scheh allzeit (“A vontade de meu Deus seja feita”), do
Duque Albrecht da Prússia.

Canções de coletâneas anteriores


Outras contribuições importantes foram os hinos extraídos do
Cancioneiro de Estrasburgo (o Strassburger Liederbücher, editado em
1525), e do repertório dos Irmãos Boêmios,32  tais como Gottes Sohn
ist kommen (“O filho de Deus é chegado”) de Michael Weisse, Christus,
der uns selig macht (“Cristo, que nos faz bem-aventurados”) e Gelobet sei
Gott im höchsten Thron (“Louvado seja Deus em seu sublime trono”).

Poesia latino-germânica
Outra curiosa fonte para a hinódia protestante foi a antiga poesia
mista, da qual se fez menção acima, aquela que se compunha de
algumas frases em alemão e outras em latim. Era prática relativa-
mente comum, já que muitas frases latinas faziam parte da rotina
litúrgica dos fiéis, que as ouviam domingo após domingo durante a
missa. Além do exemplo acima transcrito (In dulci jubilo, nun singet
uns sei froh), há vários outros, bem conhecidos, como os tradicionais
Quem pastores laudavere, den die Hirten lobten sehre (“Quem os pastores
louvaram”, apelidado de Quempas, por flexão das duas primeiras
palavras do texto), o Resonet in laudibus e a antiga canção de ninar
Joseph, lieber Joseph mein (“José, meu querido José”).

Contrafactura (Contrafactum) 33 


A adaptação de novo texto sacro a uma conhecida melodia de

 32
O movimento dos Irmãos boêmios e morávios foi um movimento pré-reformatório dos séculos
15 e 16 originado em Johann Hus (1369-1415).
 33
Contracfaturas são canções originalmente não-sacras, mas adaptadas, conservando metro e melodia,
mas com o texto alterado. O novo texto, agora sacro, era derivado do original, secular, sem prejuízo
para o novo: a idéia central do texto original devia ser preservada e, assim, enriquecer o novo texto
(nesse ponto o Contrafactum difere da paródia). É óbvio que poucas canções prestavam-se a esse
tipo de adaptação, pois o texto original deve ser, já, bastante apropriado para o novo tema, sacro.
Há pouquíssimos bons exemplos dessa espécie.

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As fontes do coral luterano | 65

canção profana é prática bem mais rara na hinódia luterana. Já que


a lembrança do texto original, secular, enquanto se canta o novo,
sacro – fato inevitável – não pode ser prejudicial ao conjunto agora
litúrgico, boas contrafacturas são raras. A mais célebre é a canção
de despedida de Heinrich Isaacs,34  Innsbruck, ich muss dich lassen
(“Innsbruck, eu vou deixar-te”), que foi adaptada como O Welt,
ich muss dich lassen (“Ó mundo, eu vou deixar-te”), uma canção de
sepultamento. A canção original, logo depois de composta, passou
a ser cantada em festas e reuniões de despedida – de qualquer pes-
soa, de qualquer lugar e para qualquer lugar – tornando-se, assim,
uma espécie de “canção de partida”, muito conhecida, a exemplo
de tantas que há também no Brasil, na qual “Innsbruck” é apenas
um símbolo de lugar onde se vive e que se ama.35 

Texto original de 1495 Tradução (nossa)


Innsbruck, ich muß dich lassen, Innsbruck, eu vou deixar-te
Ich fahr dahin mein Straßen Vou seguir minha estrada,
In fremde Land dahin. Vou para uma terra estranha.
Mein Freud ist mir genommen, Minha alegria me foi roubada,
Die ich nit weiß bekommen, Já que eu não posso saber,
Wo ich im Elend bin. Aonde deverei desditoso estar.

Contrafactura de
nüremberg36, 1555 Tradução (nossa)
O Welt, ich muß dich lassen, Ó mundo, eu vou deixar-te,
Ich fahr dahin mein Straßen Vou seguir minha estrada,
Ins ewig Vaterland. Vou para a eterna pátria do Pai.
Mein Geist will ich aufgeben, Meu espírito quero entregar,
Dazu mein’ Leib und Leben E com ele meu corpo e minha vida
Legen in Gottes gnädig Hand. Deporei na mão misericordiosa de
Deus.

 34
Heinrich Isaac (1450-1517) serviu aos Médici em Florença onde foi organista da catedral. Traba-
lhou em Viena e Constança. Foi o mestre de capela da corte imperial de Innsbruck e compositor
da corte em Augsburgo e Torgau, até retornar a Florença, onde faleceu.
 35
Dessa forma e com essa finalidade ainda é muito cantada nos países europeus de fala germânica.
Vezes sem conta pudemos nós também cantá-la na Alemanha em várias despedidas, e ouvi-la
cantada na nossa, quando regressávamos ao Brasil.
 36
Já havia uma adaptação sacra anterior à Reforma, de 1505.

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66 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

Por sua importância como modelo para esse gênero de adaptação,


consideremos algumas de suas características:
1. Na contrafactura o texto original foi consideravelmente pre-
servado. Os dois primeiros versos são praticamente idênticos, com
exceção da troca de Innsbruck por O Welt.
2. O terceiro verso do texto original informa que a partida é para
lugar desconhecido, para uma terra estrangeira. Mas a contrafactura
assegura que a viagem é “de regresso”, de “volta para casa”: para a
eterna casa do Pai.
3. O que se segue é conseqüência da partida para lugar desco-
nhecido, no texto original, e da almejada jornada à casa do Pai, na
contrafatura: a segunda parte da estrofe original lamenta a partida
para a terra estranha, talvez inóspita, onde certamente a vida será
desditosa, ao menos pela saudade de Innsbruck. Na contrafactura
é clara a idéia de tranqüilidade da jornada ao encontro de Deus,
que também é quem garante a segurança da própria viagem. Há,
assim, uma espécie de paralelismo entre a idéia original e a nova,
mas uma espécie de “palalelismo antitético”,37  já que a afirmação
do original é negativa e na contrafactura é positiva.
Assim, é obvio que quando se canta a contrafactura, o texto
original é imediatamente lembrado. Mas a lembrança do primeiro
texto, não sacro, de despedida de uma cidade, intensifica e enriquece
o sentido do novo texto, de despedida do mundo terreno. A cada
linha cantada, a sensação de tristeza e insegurança da antiga canção
em homenagem a Innsbruck vai dando lugar à sensação de seguran-
ça desta outra jornada. A inevitável comparação entre uma viagem
e outra fortalece a segurança nesta nova. Eis aí a mais importante
característica da contrafactura: a lembrança do texto original é ine-
vitável e isso deve necessariamente contribuir enriquecendo o novo.
Onde isso não acontece não há boa contrafactura (Cf. ANEXO D).
Talvez ainda se deva dizer, a respeito desta contrafactura, que não
ela foi feita para ser utilizada exatamente como uma canção para a
liturgia regular do culto comunitário, e sim para uma cerimônia de

 37
Apesar do empréstimo da expressão “paralelismo antitético” do ambiente da análise da poesia
hebraica – e semita em geral – não pretendemos com isso fazer nenhuma relação entre uma técnica
poética e outra.

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As fontes do coral luterano | 67

sepultamento. Até hoje está no hinário luterano alemão – é o número


521 do Evangelisches Gesangbuch da edição de 1996, atualmente em
uso nas igrejas alemãs – na seção reservada às canções para ocasiões
especiais, nesse caso numa subdivisão chamada Sterben und ewiges
Leben (“Morte e vida eterna”). Assim, não se tratava exatamente de
música para o culto, de louvores a Deus, ou confissão de pecados,
por exemplo, o que pode justificar ainda mais a liberdade com que
Lutero recorreu ao recurso.
Outra contrafatura, nesse caso de canção folclórica, Mein Freud’
möcht sich wohl mehren (“Minha alegria quer crescer”), foi a adapta-
ção de Elisabeth Cruciger, em 1524, Herr Christ, der einig Gotts Sohn
(“Senhor Cristo, o unigênito filho de Deus”). O mesmo se deu com
Aus fremden Landen komm’ ich her (“De outra terra eu venho”) que
parece ter sido utilizada pelo próprio Lutero para sua canção infantil
de natal Vom Himmel hoch, da komm ich her (“Do alto céu eu venho”).
Como se disse, contrafaturas não foram freqüentes na Reforma por
causa da dificuldade que podiam trazer consigo: durante o canto do
novo texto com a antiga música, a inevitável lembrança do texto
original terá que ser considerada e deverá contribuir para enriquecer
o novo texto. Quando a memória do texto antigo perturba o texto
novo não houve boa contrafactura.
De todas essas fontes veio matéria prima para o Cancioneiro
de Wittenberg. Como dissemos no início deste trabalho, Lutero
tinha à disposição séculos de tradição musical sacra que bastou
modelar, tanto letra quanto música, para dar forma ao novo gênero
musical que nascia, o “Coral Alemão”. Diferentemente, portanto,
do que tem sido freqüentemente afirmado nos nossos dias, Lutero
não “saiu à cata”, aleatoriamente, da música profana do seu tempo
para introduzi-la na nova liturgia. Nem havia necessidade, pois o
acervo sacro era imenso! As poucas canções seculares adaptadas por
ele foram exceções especiais, contrafacturas bem construídas, que
enriqueciam ocasiões também especiais: sepultamentos, música para
crianças, canções para festas litúrgicas… Repitamos: Lutero certa-
mente “popularizou” o cântico litúrgico, já que o antigo gregoriano
era cantado apenas pelo clero. O coral alemão tornou-se “cântico
do povo”, cantado pelos fiéis, para seu ensino e instrução. É este o

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68 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

“cântico popular” defendido por Lutero para o culto: música cantada


por todos os participantes do culto, homens, mulheres e crianças,
que explicava o evangelho e a doutrina reformada para o povo, fa-
cilitando sua memorização. “Cântico popular”, neste contexto, não
se refere à música profana da época, quando considerada “música
má” e, portanto, agradável apenas aos ouvidos de Satanás. “Cântico
popular” aqui é expressão contraposta ao “cântico clerical”, sem
participação popular, característico da igreja romana até então. O
canto litúrgico luterano popularizou-se, de fato, e o fez “de dentro
para fora”, isto é, saiu do espaço do templo onde ficara aprisionado
por dez séculos, desde Gregório Magno até a Reforma.
Nesse ponto é fundamental lembrarmos que, segundo o pensa-
mento medieval, toda música, mesmo a secular, podia e devia ser
escrita para a glória de Deus. Mas nas palavras do próprio Lutero,
a música cantada no culto deve “fortalecer e intensificar o santo
evangelho e também impulsioná-lo”.38  Acima de tudo, “popularizar
o cântico litúrgico” quer dizer tirá-lo da posse do clero e torná-lo
laico; é fazer o povo cantar. A intensificação do canto de hinos foi
gradual. Os corais de Lutero tornaram-se muito conhecidos, can-
tados em casa, nos campos, no mercado, no caminho do trabalho,
estando as pessoas sós ou em agrupamentos de toda ordem. Nas
igrejas o cântico era liderado pelo coro, sem acompanhamento.
Quando os cancioneiros se tornaram mais disponíveis para a con-
gregação, o canto foi se tornando antifônico, as estrofes repartidas
entre a congregação, o coro e o órgão. A igreja luterana passou a ser
conhecida como “a igreja que canta”.
Durante a vida de Lutero cerca de 100 cancioneiros foram
publicados. Como já dissemos, eram de canções que tinham impor-
tante finalidade didática: as pessoas podiam aprender a doutrina
da igreja e do evangelho mesmo quando não estavam no culto.
Ante o ímpeto da proposta musical luterana na Alemanha, já nas

 38
“Das heylige Evangelion[...] treyben und ihn schwanck [...] bringen”. M. Lutero, no prefácio da 1ª edição
do Geistlichen Gesanbüchlein de Wittenberg, editado por J. Walther, 1524 (edição fac-simile), p. 3,
tradução nossa.

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As fontes do coral luterano | 69

primeiras décadas da Reforma, o número de hinos aproximou-se


de 75.000!39 
Era música “de expressão”, que devia ser cantada por todos os
fiéis na língua local, para que fosse compreendida, assimilada, e
servisse de ensino religioso. Por isso importava que os textos fossem
apropriados para os diversos momentos do culto (louvor, confissão,
dedicação, etc.) e sobre variados temas religiosos, para diferentes
datas litúrgicas e do calendário cristão. Cantando teologia e doutrina,
a música auxiliava na memorização e no esclarecimento do sentido
das palavras. Música sacra devia ser a “explicação do texto” e uma
espécie de “sermão em sons”.40  A partir desse momento os hinários
passaram a ter importância para o ensino religioso já que os que
podiam ler levavam seus volumes para suas casas, cantavam com
seus familiares e amigos, no trabalho ou no lazer.
Lutero certamente não trouxe a música da taberna para a liturgia.
Mas pode ter, isto sim, provocado a expansão da música do culto, de
forma que, transcendendo os limites da liturgia, entrasse em todos
os lugares, até na taberna, levando com ela a doutrina Reformada.

 39
Cf. BLANKENBURG, Walter. Kirche und Musik. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1979, p. 327.
 40
Vide, sobre esse tema, MÓDOLO, Parcival. Musica: explicatio textus, praedicatio sonora. Fides
Reformata, v. 1, n. 1, Janeiro-Junho 1996.

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70 | TEOLOGIA PA R A VIDA – VOLUME II – NÚMERO 2

ANEXO A – Antigo Kyrie gregoriano e o de Lutero.


Nota-se na versão alemã acréscimo de sílabas de texto nos antigos
melismas
AS FONTES DO COR AL LUTERANO | 71

ANEXO B – Canção de peregrinação, séc XII e adaptação de Lutero


In Gottes Namen fahren wir

Dies sind die heiligen zehn Gebot

ANEXO C
72 | TEOLOGIA PA R A VIDA – VOLUME II – NÚMERO 2

ANEXO D
| 73

Departamento de Teologia Histórica

Relatório pastoral do
Rev. George W. Chamberlain

Edição Diplomática

Rev. Wilson Santana Silva

Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico


Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição
Licenciado em Pedagogia pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie
Bacharel em Filosofia pelas Faculdades Associadas
Ipiranga
Pós-graduado em Estudos Brasileiros pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Pós-graduado em História do Brasil do Século 20
pelas Faculdades Associadas Ipiranga
Mestre em História e Teologia pela Universidade
Metodista de São Paulo
Doutorando na Pontifícia da Universidade Católica -
PUC - SP
Pastor da Igreja Presbiteriana do Jardim Marilene

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74 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

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| 75

Relatório pastoral do
Rev. George W. Chamberlain
Edição Diplomática

Resumo
Dentre os muitos nomes estrangeiros importantes para a his-
tória da implantação do Protestantismo em nosso país, figura
o do Rev. George Whitehill Chamberlain (1839-1902), que
apesar de ter vindo ao Brasil por recomendação médica, logo
se ligou aos missionários presbiterianos, trabalhando como
evangelista em São Paulo e Bahia. Foi em sua residência que
iniciou a Escola Americana (1870). Nesta edição, trazemos
seu relatório pastoral, apresentado ao Presbitério do Rio de
Janeiro em 1866.
O relatório pastoral do Rev. Chamberlain é parte da “Coleção
Carvalhosa”, conjunto de documentos primários reunidos e
compilados pelo Rev. Modesto Perestrello Barros de Carva-
lhosa (1846-1917), encontrados no Arquivo Histórico da
IPB, a quem, novamente, agradecemos a gentileza da cessão.

Palavras-chave
História da Igreja; História da Igreja Presbiteriana do Brasil;
Coleção Carvalhosa; Rev. George Whitehill Chamberlain.

Abstract
Among the many important foreign names in the history of
the implantation of the Protestantism in our country, figures
Rev. George Whitehill Chamberlain (1839-1902), that in
spite of having come to Brazil for medical recommendation,
quickly joined the Presbyterian missionaries, working as

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76 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

Evangelist in São Paulo and Bahia. It was in his residence


that the American School began (1870). In this edition, we
bring his Pastoral Report, presented to the Rio de Janeiro
Presbytery in 1866.
The pastoral report of Rev. Chamberlain is part of the “
Carvalhosa Collection”, a group of primary documents ga-
thered and compiled by Rev. Modesto Perestrello Barros de
Carvalhosa (1846-1917), found in the Historical Archive of
IPB, to whom we thanks.

Keywords
Church History; History of the Presbyterian Church of Brazil;
Carvalhosa Collection; Rev. George Whitehill Chamberlain.

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|

5.

10.

15.

20.

“E guiarei os cegos pelo caminho qual n’unca souberam; os farei caminhar pelas veredas
que não souberam; tornarei as trevas em • 5 lúz perante elles; e as cousas tortas farei
direitas; estas cousas lhes farei e núnca as desampararei.” Esaias XLII:16. Sirvo-me d’estas
palavras • 10 que ha muito se tornarão uma lampada para os meus pés, afim de indicar e
louvar a Divina Providencia que me ligou á missão da Igreja Presbyteriana no Brasil. • 15
Partindo de minha terra em junho de 1862, não tinha em vista senão recoperar a vista
estragada em estudos, por uma viagem de már que durasse 4 me- • 20 zes. No fim de 4
annos, chamado
78 | TEOLOGIA PAR A V IDA – VOLUME II – NÚMERO 2

5.

10.

15.

20.

como membro como membro da Egreja Presbyteriana do Rio de Janeiro a narrar alguns
dos trabalhos nos quais tem sido o meu • 5 previlegio participar. Tencionei passar uns
dias n’este porto como melhor me aprouvesse. Desembarquei no dia 21 de julho de
1862, e logo no mes • 10 mo dia travei relações com o Rev. Blackford (por via d’uma carta
de recomendação) que tinhão um alcance imprevisto – relações que hoje não posso con-
templar sem • 15 recordar-me das palavras bellas e cheias de consolação que acima hei
citado. Estes annos são cheios de gratas recordações, “mas não é aqui • 20 o lugar de
fallarmos de tudo isto
|

5.

10.

15.

20.

individualmente.” Passo por alto uns meses que occupou uma visita ao Rev. F. J. L.
Schneider da nossa missão aos colonos Alle- • 5 mães do interior da Provincia de S. Paulo,
como também o anno que em seguida gastei na província de S. Pedro do Rio Grande do
Sul. Annuindo ao • 10 pedido do Rev. A. G. Simonton a tomar parte nos trabalhos do seu
ministério, deixei Porto-Alegre, capital daquella província a 16 de Maio de 1864, chegan-
do á Côr- • 15 te no dia 23 do mesmo. Na providencia de Deos estas relações forão
suspensas, e no dia 1º de Novembro, parti para S. Paulo, onde dividi o meu • 20 tempo no
ensino de Inglês e tra-
80 | TEOLOGIA PAR A V IDA – VOLUME II – NÚMERO 2

5.

10.

15.

20.

trabalho da missão. Em Março e Abril de 1865 acompanhei o Rev. Simonton a Brotas.


Agosto e Septembro passarão em quanto visi- • 5 tei muitas cidades e villas afim de
espalhar as Escripturas Sagradas. Os seis mezes em seguida passei-os na Côrte ajudando
o Pastor desta Igreja; e durante • 10 a sua ausência a Sessão 1ª do Presbyterio, desempe-
nhei como melhor podia os deveres que me couberão. No dia 6 de janeiro de 1866, sube
por uma carta da mesa • 15 administrativa de missões no estrangeiro sua decisão pela qual
fiquei sendo missionário coadjutor no Brasil. No dia 6 de Abril parti para • 20 S. Paulo,
d’onde em seguida fui a
|

5.

10.

15.

20.

a Brotas ajudar na missão já empreendida pelo nosso digno irmão o Rev. Jose M. da
Conceição. A elle cabe por direito a narra- • 5 ção do acontecido nessa sua antiga parochia.
Visto ser o seu relatorio mui resumido neste poncto, passo a dar alguns pormenores. • 10
A igreja de Brotas, não por ser importante em si, mas em razão da sua posição é calculada
para prestar grande auxilio na Evangelisação do interior • 15 Hoje é digna das ricas pro-
messas. O interesse do Evangelho manifesta-se mais nos sitios circunvizinhos do que na
propria villa. • 20 A vantagem nisso é: 1º A obra
82 | TEOLOGIA PAR A V IDA – VOLUME II – NÚMERO 2

5.

10.

15.

20.

não dá tanto na vista dos adversarios, e por isso é livre de embaraços que aliás serião postos
nos caminhos. • 5 2º A simplicidade da vida dos occupados em lavoura offerece a propaga-
ção mais rapida da verdade. Vivem mais isolados, sabem menos das afamadas “con- • 10
viniencias sociais,” e não na luz destas, mas na sua propria luz encarão o Evangelho. Teêm-
no ouvido e aceito muitas vezes, antes de saberem o que disem fula- • 15 no e sicrano, e
estão firmes em oppiniões formadas sobre a palavra de Deos, e independente prevenções
dos homens. São mais mestre de si mesmos. • 20 3º Será mais difficil organisar
|

5.

10.

15.

20.

opposição. Além destas razões, por dirigirem a nossa attenção principalmente aos Sítios,
como esta é a obra de Deos e não dos • 5 homens, não nos resta senão seguir os indicios da
sua providencia, para alcançar o fim o estabelecimento do Reino do Nosso Salvador. Com
quanto, • 10 pois, não deixássemos de pregar na villa em tempo e fóra de tempo, foi princi-
palmente nos sitios que colhemos fructos. De 15 pessoas que se offerecerão para fa- • 15 zer
profissão de sua fé, só 4 erão moradores na villa. Depois de algumas semanas de pregação
dentro e fóra da povoação, com auditorio que n’um- • 20 ca a excedia a 50 pesoas e ás
84 | TEOLOGIA PAR A V IDA – VOLUME II – NÚMERO 2

5.

10.

15.

20.

vezes consistião dos membros de uma só familia. Celebrámos a Céa do Senhor no dia 6
de Maio na casa pertencente á • 5 viuva de Pedro Garcia d’Almeida. Forão recebidas (e
batizadas confórme a fé Evangelica em nome do Pai, do Filho e do Espírito Sancto, septe
pessoas á • 10 communhão da Igreja. O Rev. F. J. C. Schneider dirigiu os exercicios ajuda-
dos pelos Snrs. Conceição e Chamberlain. Foi baptizada a filha de José Rufino e Gertruda
• 15 C. Leite, que nesta occasião fizerão profissão de fé. A principal opposição que expe-
rimentamos tinha por alvo tirar-nos a casa que o Senhor Jesus • 20 nos preparou para
nella comer
|

5.

10.

15.

20.

mos a nossa Paschoa. Frustrados os esforços dos nossos inimigos, vierão-nos á lembrança
as palavras de David: • 5 “Aparelhas a meza perante mim, em frente de meus adversarios.”
(Sal. XXIII. Almeida) Na volta passei por Sorocaba onde preguei no dia 20 dia 20 • 10 de
Maio. Demorei-me em S. Paulo até 25 de Junho desempenhando os deveres com que me
incubiu o pastor da Igreja nessa cidade, partimos nesta da- • 15 cta a assistir na actual
reunião, Sessão do Presbyterio que hoje tem de findar. Rio de Janeiro 10 de Julho de
1866. (Assignado) George Chamberlain.
86 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

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| 87

Departamento de Teologia Sistemática

Anotações sobre a
Hermenêutica de Calvino
Compreensão a serviço da
piedade e do ensino

Parte I

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

Bacharel em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul


Licenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais
Licenciado em Pedagogia pela Universidade Mackenzie
Pós-graduação: Estudo de Problemas Brasileiros pela
Universidade Mackenzie
Pós-graduação: Didática do Ensino Superior pela
Universidade Mackenzie
Mestre em Teologia e História pela Universidade
Metodista de São Paulo
Doutor em Teologia e História pela Universidade
Metodista de São Paulo
Pastor auxiliar da 1ª Igreja Presbiteriana
de São Bernardo do Campo

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Anotações sobre a
Hermenêutica de Calvino
Compreensão a serviço da
piedade e do ensino

Parte I

Resumo
Este artigo inicia uma série que procurará expor os princípios
e a importância do método de interpretação bíblica desen-
volvido por João Calvino. Nesta primeira parte, num texto
fartamente documentado, o autor traça um breve panorama
biográfico do reformador, destacando sua formação intelec-
tual e sua relação com os valores humanistas que floresciam
em sua época.

Palavras-chave
Hermenêutica; João Calvino; Reforma Protestante; Huma-
nismo.

Abstract
This article begins a series that will try to expose the rudi-
ments and the importance of John Calvin’s method of biblical
interpretation. In this first part, in a richly documented text,
the author presents a brief biographical panorama of the re-
former, enhancing his intellectual formation and relation to
the humanistic values that bloomed in his times.

Keywords
Hermeneutics; John Calvin; Protestant Reformation; Hu-
manism.

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90 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

[Calvino] foi o habilidoso exegeta entre os reformadores, e seus


comentários estão entre os melhores do passado e do presente –
Philip Schaff.1 

[...] Eu poderia feliz e proveitosamente assentar-me e passar o resto


de minha vida somente com Calvino – Carta de Karl Barth (1886-
1968) a um amigo, Eduard Thurneysen, escrita em 8 de junho de
1922.2 

Poucos teólogos foram tão equilibrados quanto Calvino em sua


tentativa de dar expressão à plenitude do ensinamento bíblico –
Moisés Silva.3 

Introdução
Calvino, falando das diversas calúnias que levantavam contra
ele,4  partindo inclusive de falsos irmãos, diz: “Só porque afirmo e
mantenho que o mundo é dirigido e governado pela secreta provi-
dência de Deus,5  uma multidão de homens presunçosos se ergue
contra mim alegando que apresento Deus como sendo o autor do
pecado.”6  “Outros tudo fazem para destruir o eterno propósito di-

 1
SCHAFF, Philip e SCHAFF, David S. History of the christian church. Peabody, Massachusetts: Hen-
drickson Publishers, 1996, v. III, p. 261.
 2
BARTH, Karl. Revolutionary theology in the making. p. 101. Apud GEORGE, Timothy. Teologia dos
Reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 163. Também citada em PARKER, T. H. L. Calvin’s
Old Testament Commentaries. Edinburgh: T &T Clark, 1993 (reprinted), na folha de rosto.
 3
SILVA, Moisés. Em favor da Hermenêutica de Calvino: In: KAISER, Walter C. SILVA, Moisés.
Introdução à Hermenêutica bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 256.
 4
Comentando o Salmo 64 Calvino extrai um exemplo extremamente prático concernente a este
ponto: “Ao ouvirmos Davi, homem em todos os aspectos muito mais santo e justo em sua conduta
do que nós, suportava as infundadas afrontas contra seu caráter, não temos razão alguma para
ficarmos perplexos ante o fato de que é possível sermos expostos a uma semelhante provação. Este
conforto pelo menos sempre temos, a saber, que podemos recorrer a Deus e obter sua defesa para a
causa justa” [CALVINO, J. O Livro dos Salmos. São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 64.4), p. 601].
 5
Esta expressão é comum a Calvino. Ver: O Livro dos Salmos. São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, p.
37-38; Vol. 2, (Sl 47.3), p. 343. Depois de ser expulso de Genebra (O exílio foi votado pelo
Conselho de Genebra em 23 de abril de 1538 – cf. Calvin, Textes Choisis par Charles Gagnebin,
Egloff Paris, c. 1948, p. 297), escreveria a Farel (04/8/1538): “Se sabemos que eles não podem
caluniar-nos, exceto na medida em que Deus permitir, sabemos também o objetivo que ele tem
em vista em dar essa permissão. Portanto, humilhemo-nos, a menos que desejemos lutar contra
Deus.” CALVIN, J., To William Farel, Letters. John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software,
1998, (CD-ROM), (04/08/1538), n. 22.
 6
Ver: CALVINO, J. O Livro dos Salmos. v. 2, (Sl 51.4), p. 429.

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 91

vino da predestinação, pelo qual Deus distingue entre os réprobos


e os eleitos [...]”.7 
O que nos chama a atenção na aproximação bíblica de Calvino,
é, primeiramente, o seu amplo e em geral preciso conhecimento
dos clássicos de teologia e da exegese bíblica, os quais cita com
abundância, especialmente Crisóstomo (c. 347-407)8  – pregador
profícuo9  e “o primeiro tutor exegético de Calvino”10  –, Agostinho
(354-430) e Bernardo de Claraval (1090-1153).11  Outro aspecto, é
o domínio de algumas das principais obras dos teólogos protestantes
contemporâneos, tais como: Melanchthon (1497-1560) – a quem
considera um homem de “incomparável conhecimento nos mais
elevados ramos da literatura, profunda piedade e outros dons” e
que por isso “merece ser recordado por todas as épocas”12  –, Bucer
(1491-1551) e Bullinger (1504-1575). Contudo, o mais fascinante,
é o fato de que ele, mesmo se valendo dos clássicos – o que aliás,
nunca escondeu13  –, conseguiu seguir um caminho por vezes dife-
rente,14  buscando na própria Escritura o sentido específico do texto:
a Escritura se interpretando a si mesma.

 7
CALVINO, J. O Livro dos Salmos. São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, p. 44,45. Vd. também: CAL-
VIN, J., “To the Seigneurs of Berne,” John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software, 1998,
(CD-ROM), nº 398.
 8
“Quando comparados com os escritos de Crisóstomo, a maior parte dos escritores subseqüentes
parecia prolixa” [SILVA, Moisés. Em favor da Hermenêutica de Calvino. In: KAISER, Walter C.;
SILVA, Moisés. Introdução à Hermenêutica bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 245-246].
 9
Ver: OLD, Hughes Oliphant. The reading and preaching of the Scriptures in the worship of the christian
church. Grand Rapids, Mi./Cambridge, UK.: Eerdmans, 1998, v. 2, p. 173.
 10
GAMBLE, Richard C. Current trends in Calvin research, 1982-1990. In: NEUSER, Wilhelm H.
(ed.). Calvinus Sacrae Scripturae professor: Calvin as confessor of Holy Scripture. Grand Rapids,
MI.: Eerdmans, 1994, p. 95.
 11
Vejam-se: REID, W. Stanford. Bernard of Clairvaux in the thought of John Calvin. In: GAMBLE,
Richard C. (ed.). Articles on Calvin and Calvinism. New York & London: Garland Publishing, Inc.,
1992, p. 35-53 e TAMBURELLO, Dennis E. Union with Christ: John Calvin and the mysticism of
St. Bernard. Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press, 1994, 167p.
 12
CALVIN, J. Commentaries on the Prophet Jeremiah. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House,
(Calvin’s Commentaries, v. IX), 1996 (reprinted), (Carta Dedicatória do seu comentário do Livro
de Jeremias), p. xxi.
 13
“[Deus] jamais abençoou a seus servos numa medida tal que nenhum deles chegasse a possuir
pleno e perfeito conhecimento de todas as áreas do saber humano” [CALVINO, J. Exposição de
Romanos. São Paulo: Edições Paracletos, 1997, p. 24].
 14
“Ainda quando, sob outros aspectos, é algo extremamente desejável, não devemos esperar que haja
na presente vida concordância durável entre nós na exposição de passagens da Escritura. Quando,
pois, dissentimos dos pontos de vista de nossos predecessores, não devemos, contudo, deixar-nos
estimular por algum forte desejo a inovação, nem impelidos por algum intuito de difamar outros,

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92 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

Escapar de um clichê histórico-teológico é especialmente difí-


cil. Para que possamos ter uma visão mais clara da perspectiva de
15 

Calvino a respeito das Escrituras, precisamos refletir um pouco sobre


a sua forma de aproximação da Bíblia; assim, poderemos entender
a sua visão hermenêutica16  e exegética.17 

O Homem, Sua Formação e seus Propósitos

Para se entender Calvino é necessário ler Calvino – Alister E. Mc-


Grath, A vida de João Calvino, São Paulo: Editora Cultura Cristã,
2004, p. 171.

1. A formação de Calvino18 
Calvino foi, sem dúvida, o principal arquiteto da tradição refor-

nem despertados por algum ódio, nem induzidos por alguma fortuita ambição. A nossa única
necessidade é a de não ter em vista nenhum outro objetivo além do desejo sincero de só fazer o
bem” [CALVINO, J. Exposição de Romanos. São Paulo: Edições Paracletos, 1997, p. 24].
 15
“A imagem de Calvino, organizador e disciplinador, como pai da frouxidão na ética social, é uma
lenda” [TAWNEY, R. H. A religião e o surgimento do capitalismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971,
p. 113]. Richard C. Halverson, faz comentário semelhante a respeito do estereótipo puritano.
Veja-se: HALVERSON, Richard C., na Introdução da obra de Richard Baxter, O pastor aprovado,
São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1989, p. 15.
 16
Hermenêutica provém da junção de duas palavras gregas: ermnneu/w e texnh/ (“arte de interpretar”).
Ainda que esta palavra não apareça desta forma no Novo Testamento, encontramos a sua raiz em
algumas ocasiões: ermhneu/w (“explicar”, “interpretar”, “traduzir”, “tornar claro”: Jo 1.38,42; 9.7;
Hb 7.2); ermhnei/a (“interpretação”, “tradução”, “explanação”: 1Co 12.10; 14.26); diermhneuth/j
(“intérprete”, “tradutor”: 1Co 14.28); diermhneu/w (“traduzir”, “interpretar”, “explicar”, “expor”:
Lc 24.27; At 9.36; 1Co 12.30; 14.5,13,27). Todas estas palavras são derivadas de Ermh=j (“Her-
mes”), deus grego (Mercúrio na mitologia romana) filho de Júpiter e Maia, sendo considerado o
intérprete e porta-voz dos deuses, tido também, como modelo de eloqüência (At 14.12). Paulo
saúda um cristão de Roma chamado Hermes (Rm 16.14).
 17
A palavra “exegese” é uma transliteração do grego ech/ghsij, que significa “narração, “exposição”.
A palavra é formada por ec (fora de) e hge/omai (conduzir, guiar, liderar), daí o sentido de “tirar”,
“trazer para fora”, “relatar”, “explicar”, “expor” (O substantivo não ocorre no NT, contudo o verbo
echge/omai, é encontrado seis vezes: Lc 24.35; Jo 1.18; At 10.8; 15.12,14; 21.19). Aplicando a
palavra ao texto, significa extrair a mensagem do texto (Vd. BARTH, Karl. La Proclamacion del
Evangelio. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1969, p. 57). Portanto, a função da exegese bíblica
é, humanamente falando, trazer à luz a mensagem da parte de Deus conforme registrada nas
Escrituras. Deste modo, a “exegese” é oposta à eish/ghsij (introdução), atitude que consiste em
tentar fazer o texto dizer o que queremos, torcer as evidências em favor de nossas concepções
previamente dogmatizadas.
 18
Cabe aqui uma nota de advertência: alguns dados referentes à juventude de Calvino são incertos,
havendo disputa quanto à datas e lugares.

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 93

mada do Protestantismo.19  Vejamos como isso começou. Comecemos


do início. João Calvino nasceu em 10 de julho de 1509 em Noyon,
Picardia,20  sendo o segundo filho de uma família de cinco irmãos.21 
Seu pai, Gérard Cauvin, era de origem humilde; sua mãe, Jeanne Le-
franc, uma senhora piedosa, proveniente de família abastada, morreu
quando Calvino tinha uns 5 ou 6 anos. Como Gérard era secretário
apostólico de Charles de Hangest – bispo de Noyon (1501-1525)
– e procurador fiscal do município, a sua família mantinha íntimas
relações com as famílias nobres de sua região, sendo ele próprio um
ambicioso visionário que procurou encaminhar a educação de seus
filhos da melhor maneira possível, usando dos meios e recursos de
que dispunha. Calvino ainda criança (29/05/1521) recebeu um be-
neficio eclesiástico na catedral, que ajudaria a custear as despesas
de sua educação, então um privilégio não raro.22 
No entanto, Calvino recebeu a sua primeira educação junta-
mente com as crianças da nobre família de Hangest. Aqui, foi
que Calvino aprendeu e adquiriu educação e modos refinados
próprios da nobreza que lhe permitiram posteriormente transitar
em todos os meios sociais com polidez. Entre os seus amigos de
infância, destaca-se um dos filhos de Adrien, Lorde de Genlis,
Claude de Hangest (Mommor), que se tornaria abade de St. Eloi

 19
Cf. BATTLES, Ford Lewis. Preface. In: BATTLES, F. L. e TAGG, Stanley (eds.). The Piety of John
Calvin: an anthology illustrative of the spirituality of the reformer. Grand Rapids, Michigan: Baker
Book House, 1978, p. 7.
 20
Cidade eminentemente religiosa, que distava cerca de 92 quilômetros de Paris com uma população
de aproximadamente 12 mil pessoas. “Noyon a Santa, como se dizia por vezes, tantas eram as
igrejas e as relíquias que possuía – era a sua cidade natal, capital diocesana, dotada de um clero
poderoso e de um bispo com assento entre os doze pares da França” (DANIEL-ROPS, Henri. A
igreja da Renascença e da Reforma: a reforma protestante. São Paulo: Quadrante, 1996, p. 365-366).
 21
Ver: BEZA, Theodoro. A vida e morte de João Calvino. Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 2006, p. 8.
 22
Ver: BEZA, Theodoro. A vida e morte de João Calvino. Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 2006,
p. 10; FERREIRA, Wilson de Castro. Calvino: vida, influência e teologia. Campinas, SP.: Luz para
o Caminho, 1985, p. 32-33; LESSA, Vicente Temudo. Calvino 1509-1564: sua vida e sua obra.
São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, [s.d.], p. 27-28; GEORGE, Timothy. Teologia dos Reforma-
dores. p.168-169. Havia quatro capelães em Noyon os quais alternavam na recitação da missa
matinal. Calvino sendo ainda muito jovem, não podendo portanto ser ordenado, pagava a um
padre para cobrir a sua escala. (Cf. SCHAFF, Philip. History of the christian church. v. VIII, p. 300;
LESSA, Vicente Temudo. Calvino: 1509-1564: sua vida e sua obra, p. 27; WILEMAN, William,
John Calvin: his life, his teaching and influence. John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software,
1998, (CD-ROM), p. 11-12.

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94 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

em Noyon.23  Além de professores particulares, Calvino estudou


na mesma escola dos filhos dos nobres de sua cidade, o Colégio de
Capeto.
Posteriormente, Calvino, acompanhado de alguns amigos filhos
de nobres de sua terra natal, foi para Paris, onde recebeu seu trei-
namento para o sacerdócio estudando alguns meses no Collège de la
Marche (Humanidades e latim, a partir de agosto de 1523),24  tendo
como mestre o grande humanista Maturinus Corderius, e depois, foi
para uma escola menos requintada em seus costumes e mais dura
em sua disciplina e de orientação escolástica: Collège de Montaigu25 
(Gramática, Filosofia e Teologia, em 1524), por onde também passa-
ram Erasmo de Roterdã e Rabelais (c. 1483-1553), estudando sob a
direção de um mestre espanhol grandemente competente,26  Antonio
Coronel, com quem Calvino fez grandes progressos, destacando-
se entre os seus colegas no estudo da gramática.27  Neste período,
Calvino foi também, ao que parece,28  grandemente influenciado
por outro de seus professores, que havia retornado a Montaigu em

 23
O Comentário de Calvino sobre Sêneca publicado em abril de 1532 seria dedicado a Claude; na
Dedicatória, redigida em Paris (04/4/1532), reconhecendo a sua dívida para com a família de seu
amigo, diz: “Nosso Comentário que recomendo à sua guarda, receba-o como os primeiros frutos
de nossa colheita, dedicado e inscrito por direito e mérito a você; não só porque eu devo a você
tudo que sou e que tenho, pois desde bem cedo, ainda menino fui educado dentro da sua casa e
iniciado nos mesmos estudos junto com você, eu estou endividado com a sua mui nobre família
por meu primeiro aprendizado na vida e nas letras” (CALVIN, J. “Commentary on Seneca’s de
Clementia.” John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software, 1998, (CD-ROM), p. 8.
 24
McGrath discute a possibilidade de esta interpretação tradicional ser equivocada. Em sua opinião
Calvino não estudou do Collège de la Marche (Ver: MCGRATH, Alister E. A vida de João Calvino.
São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 37-43).
 25
As regras do Collège de Montaigu eram bastante rígidas e a alimentação precária. É famosa a
descrição de Erasmo a respeito desta Escola. Entre outros trabalhos, vejam-se: BAINTON, Roland
H. Erasmo da Cristandade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1988), p. 39ss.; MCGRATH,
Alister E. A vida de João Calvino. p. 44-45. Para um estudo detalhado de Montaigu, a obra clássica
é: GODET, Marcel. La Congrégation de Montaigu. Paris: Libraire Ancienne Honoré Champion,
1912, 220p.
 26
Foi aqui que Calvino se familiarizou com a teologia de Aquino, Agostinho e Jerônimo, entre
outros teólogos antigos. (Cf. FERREIRA, Wilson de Castro. Calvino: vida, influência e teologia,
p. 41. Do mesmo modo: WALLACE, Donald S. Calvino, Genebra e a Reforma. São Paulo: Editora
Cultura Cristã, 2003, p. 10).
 27
Cf. BEZA, Theodore. Life of John Calvin. John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software, 1998,
(CD-ROM), p. 4. Ver: TORRANCE, Thomas F. The Hermeneutics of John Calvin. Edinburgh: Lindsay
& Co. Ltd., 1988, p. 80.
 28
A amplitude da influência de seus professores é discutível. McGrath dá-nos um resumo de algumas
posições, Ver: MCGRATH, Alister E. A vida de João Calvino, p. 53ss.

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 95

1525-1531, o escocês John Major (1469-1550). Major (ou Mair)


“tinha ligações com a Irmandade da Vida em Comum”.29  Foi ele
quem instruiu Calvino na filosofia e lógica30  medieval bem como
na teologia bíblica e patrística.31 
Neste período dá-se algo curioso:

Em fevereiro, 1528, Inácio de Loyola, o fundador da ordem dos Je-


suítas, entrou na mesma faculdade e estudou sob o mesmo professor.
Os líderes das duas correntes opostas no movimento religioso do
décimo sexto século viveram muito próximos, debaixo do mesmo
telhado e se sentando à mesma mesa. Calvino já durante este perí-
odo mostrou as características proeminentes do seu caráter: ele era
consciencioso, estudioso, silencioso, reservado, animado por um
estrito senso de dever, e sumamente religioso.32 

No entanto, todos esses jovens, Erasmo, Calvino e Loyola – foram
formados lendo entre outras obras piedosas, a atribuída ao místico
Thomas à Kempis (c. 1380-1471), Imitação de Cristo, a qual mesmo
sem citar, parece tê-lo influenciado em sua formação,33  destacando-
se, ainda que não exclusivamente,34  As Institutas (III.7-10) e a
Verdadeira Vida Cristã.35 

 29
WALLACE, Donald S. Calvino, Genebra e a Reforma, p. 10.
 30
Torrance diz que Major considerava a lógica como “A arte das artes e a ciência das ciências”
(TORRANCE, Thomas F. The Hermeneutics of John Calvin, p. 27).
 31
Cf. TORRANCE, Thomas F. The Hermeneutics of John Calvin, p. 80ss. Para uma visão panorâmica
do pensamento de Major, ver: TORRANCE, Thomas F. The Hermeneutics of John Calvin, p. 23ss.
 32
SCHAFF, Philip. History of the christian church, v. VIII, p. 302. Loyola contudo, ficaria pouco tempo
no Colégio de Montaigu; em 01/11/1529 foi estudar Filosofia no já tradicional Colégio de Santa
Bárbara (fundado em 1460), dirigido pelo padre português Diogo de Gouveia, o Velho (nascido
por volta de 1471), que se propusera, entre outras coisas, à formação de teólogos portugueses com
bolsas fornecidas pela coroa portuguesa. (Vd. CARVALHO, Rómulo. História do ensino em Portugal.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1986), p. 143-144, 170ss; 284).
 33
Ver: TORRANCE, Thomas F. The Hermeneutics of John Calvin, p. 74-75. Ver também: WALLACE,
Donald S. Calvino, Genebra e a Reforma. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 10, 158-160.
Segundo Peter Toon, a obra de Kempis tem hoje mais de 2000 edições impressas (Peter Toon,
Tomas de Kempis: In: DOUGLAS, J. D. (ed.). Diccionario de Historia de la iglesia. Miami: Editorial
Caribe, 1989, p. 632).
 34
Ver outras correlações em: TORRANCE, Thomas F. The Hermeneutics of John Calvin, p. 75ss.
 35
CALVINO, J. A verdadeira vida cristã. São Paulo: Novo Século, 2000, passim.

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96 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

No mesmo ano (1528), concluído o seu curso de Artes, dá-se


algo inusitado: devido a uma disputa de seu pai com os clérigos de
Noyon – assunto ainda não esclarecido satisfatoriamente36  –, ele
resolveu enviar o filho para a conceituada e concorrida universidade
de Orléans, de cunho mais humanista, onde se dedicaria ao estudo
de Direito civil,37  sob a influência do conceituado jurista, Pierre
L’Étoile, cognominado de “rei da jurisprudência”38  e “príncipe dos
juristas”,39  que posteriormente se tornaria presidente do Tribunal
do Parlamento em Paris.40  Calvino, ao que parece ficou impressio-
nado com a erudição de L’Étoile.41  Ali Calvino tornou-se Bacharel
em Direito (“licencié ès lois”) (14/2/1531). Como resolvera deixar
a universidade antes de completar os seus estudos, a universidade
– em reconhecimento aos seus serviços prestados –, resolveu por
voto unânime de seus professores conferir-lhe o grau de Doutor
em Direito, sem cobrar-lhe as taxas habituais; no entanto, não há
consenso se Calvino aceitou ou não o título.42  Foi para Bourges,
certamente atraído43  pelo famoso humanista e mestre de Direito, o
italiano Andreas Alciati (1492-1550), “um jurista de primeira linha,
teórico da soberania do Príncipe”.44  Na já famosa Universidade de
Bourges, fundada em 1463 por Luís XI, estudaria com Alciati e
Melchior Wolmar, a quem conhecera em Orléans.

 36
Beza apenas registra que o pai de Calvino fê-lo estudar Direito, “vendo que seria um meio melhor
para chegar às riquezas e às honrarias” (BEZA, Theodoro. A vida e morte de João Calvino. Campinas,
SP.: Luz para o Caminho, 2006, p. 10).
 37
MCGRATH, Alister E. Teologia sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã. São
Paulo: Shedd Publicações, 2005. p. 103.
 38
Cf. FERREIRA, Wilson de Castro. Calvino: vida, influência e teologia, p. 45.
 39
Cf. LESSA, Vicente T. Calvino 1509-1564: sua vida e obra, p. 50.
 40
Cf. BEZA, Theodoro. A vida e morte de João Calvino, p. 10.
 41
Cf. DE GREEF, W. The writings of John Calvin: an introductory guide. Grand Rapids, Michigan:
Baker Book House, 1993, p. 21.
 42
Beza diz que Calvino se recusou a receber este privilégio (Ver: BEZA, Theodoro. A vida e morte de
João Calvino. Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 2006, p. 11;Theodore Beza. Life of John Calvin:
In: Tracts and Treatises on the Reformation of the Church, v. I, lxi; Theodore Beza. “Life of John Calvin.”
John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), p. 5 . Vejam-se: SCHAFF,
Philip. History of the christian church. v. VIII, p. 306;. LESSA, Vicente T. Calvino 1509-1564: sua
vida e obra, p. 51; FERREIRA, Wilson de Castro. Calvino: vida, influência e teologia, p. 45-46.
 43
Cf. BEZA, Theodoro. A vida e morte de João Calvino. Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 2006, p. 11.
 44
Ladurie, Emmanuel Le Roy. O mendigo e o professor: a saga da família Platter no século XVI. Rio de
Janeiro: Rocco, 1999, v. 1, p. 325.

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 97

Ele mesmo resumiria a sua infância:

Quando era ainda bem pequeno, meu pai me destinou aos estudos
de teologia. Mais tarde, porém, ao ponderar que a profissão jurídica
comumente promovia aqueles que saíam em busca de riquezas, tal
prospecto o induziu a subitamente mudar seu propósito. E assim
aconteceu de eu ser afastado do estudo de filosofia e encaminhado
aos estudos da jurisprudência. A essa atividade me diligenciei a
aplicar-me com toda fidelidade, em obediência a meu pai; mas Deus,
pela secreta providência, finalmente deu uma direção diferente ao
meu curso.45 

Calvino recebeu um encargo no curato de Saint-Martin de
Martheville (05/09/1527); mas em 30 de abril de 1529 resignou
a capelania de La Gesine em favor do irmão mais jovem, Antoine
e, em 5 de julho de 1529, trocou o cargo de Saint-Martin pelo da
aldeia Pont-l’Evèque (local de nascimento de seu pai). Com a morte
de seu pai (25 ou 26 de maio 1531) tornou a Paris para continuar
seus estudos literários e durante certo período voltou a Orléans para
concluir seu curso de Direito.
Quando um de seus amigos, Nicolás Cop foi eleito reitor da
Universidade de Paris, Calvino talvez o tenha ajudado a pre-
parar o seu discurso,46  que foi lido na igreja dos Maturinos,47 
como de costume no dia 1º de novembro de 1533. Neste discurso
propunha-se uma reforma na igreja. A resposta foi imediata: Cop
e Calvino tiveram de fugir de Paris; Cop voltou à sua terra natal,
Basiléia, e Calvino para outras cidades francesas. Em 1534, Cal-
vino completaria 25 anos, idade legal para ser ordenado; agora é
o momento de assumir de fato a sua fé e ofício. Assim, em 4 de
maio de 1534, voltou a Noyon e renunciou aos seus benefícios

 45
CALVINO, J. O Livro dos Salmos. São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, p. 37-38.
 46
Este ponto não é consensual entre os especialistas. Ver: Alexandre Ganoczy. The Young Calvin. Phi-
ladelphia: The Westminster Press, 1987, p. 80-83; DANIEL-ROPS, Henri. A igreja da Renascença e
da Reforma: a reforma protestante. p. 370; Jacques Pannier em Introdução. As Institutas da Religião
Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 1, p. 10.
 47
Cf. DANIEL-ROPS, Henri. A igreja da Renascença e da Reforma: a reforma protestante, p. 370.

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98 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

eclesiásticos.48  As perseguições então intensificaram-se.49  Nova-


mente ele inicia as suas peregrinações: Paris, Angoulême, Poitiers;
passaria algum tempo na Itália, Estrasburgo e Basiléia (1535).
Como fica evidente, nesse ínterim, Calvino havia sido convertido
ao protestantismo; a questão é: como e quando?

2. A conversão de calvino

Na verdade, o Senhor chama eficazmente só os eleitos – João Calvino,


Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, (Hb 6.4), p. 153.

O fundamento de nossa vocação é a eleição divina gratuita pela


qual fomos ordenados para a vida antes que fôssemos nascidos.
Desse fato depende nossa vocação, nossa fé, a concretização de
nossa salvação – João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998,
(Gl 4.9), p. 128.

Não nos é possível precisar as circunstâncias e data da “súbita


conversão” de Calvino, contudo as evidências apontam para um
período entre cerca de 1532 a 1534 – portanto, em Orléans ou
Paris. Devemos estar atentos também para o fato de que a vida de
Calvino, mesmo antes da sua conversão, não fora marcada por um
comportamento dissoluto e imoral – já tão comum nos jovens de
seu tempo –; antes, a sua conversão, como observa Schaff, “foi uma
transformação do Romanismo para o Protestantismo, da superstição
papal para a fé evangélica, do tradicionalismo escolástico para a
simplicidade bíblica”.50 

 48
Vejam-se: Alexandre Ganoczy. The Young Calvin. Philadelphia: The Westminster Press, 1987, p.
85; MCGRATH, Alister E., A Vida de João Calvino, p. 91-92.
 49
Ver: LESSA, Vicente Temudo. Calvino: 1509-1564: sua vida e sua obra, p. 63; FERREIRA, Wilson
de Castro. Calvino: vida, influência e teologia, p. 64-65.
 50
SCHAFF, Philip. History of the christian church, v. VIII, p. 310. Bem mais tarde, seu discípulo
e sucessor, Theodore Beza (1519-1605), escreveria: “Estes são os eventos principais na vida
e morte de Calvino que eu mesmo testemunhei durante os últimos dezesseis anos. Eu penso
que estou qualificado para declarar que nele foi exibido diante de todos os homens, um dos
mais belos e ilustres exemplos de vida piedosa e morte triunfante de um verdadeiro cristão; que
será fácil pela malevolência caluniar, como será difícil devido a sua exaltada virtude imitar”.
[Theodore Beza. “Life of John Calvin.” John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software, 1998,

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 99

Crê-se que o seu primo Olivétan – ainda que não isoladamente51 


–, teve uma participação importante na sua conversão ao Protes-
tantismo.52  Félice chega a afirmar que, “...a Bíblia que recebeu das
mãos de um de seus parentes, Pedro Roberto Olivetan, o arrebatou
do catolicismo....”.53  Lembremo-nos de que Calvino não é muito
pródigo ao falar da sua vida. Quanto à sua conversão, em 1539 diz:

Contrariado com a novidade, eu ouvia com muita má vontade e,


no início, confesso, resisti com energia e irritação; porque (tal é a
firmeza ou descaramento com os quais é natural aos homens resistir

(CD-ROM), p. 65; Outra tradução: Beza Theodore. Life of John Calvin: In: Tracts and Treatises on
the Reformation of the Church, v. I, p. cxxxviii. Vd. SCHAFF, Philip. History of the christian church,
v. VIII, p. 272].
 51
Fala-se também de Jacques Lefèvre D’Étaples (1455-1536), a “estrêla-d’alva” da Reforma, e de
seu discípulo, Melchior Wolmar († 1561), professor de grego de Calvino e “fanático de Lutero”,
conforme expressão de DANIEL-ROPS, Henri, A igreja da Renascença e da Reforma: a reforma pro-
testante, p. 367. Vd. SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 305, 310; MCNEILL,
John T. The history and character of calvinism. New York: Oxford University Press, 1954, p. 110,195;
IRWIN, C. H. Juan Calvino: su vida y su obra. Barcelona: CLIE., (1991), p. 22. O sábio Lefèvre
desejava uma reforma na igreja romana. O historiador católico Daniel-Rops (pseudônimo de Henri
Petiot, 1901-1965) mesmo não admitindo que Lefèvre nutria simpatia para com o luteranismo (p.
356), escreve: “Na prática, o que ele preconizava era uma reforma levada a cabo na igreja e pela
igreja, uma reforma intelectual que substituísse a degenerada escolástica por uma teologia positiva,
baseada no estudo da Escritura e dos Santos Padres, e também uma reforma moral e disciplinar que
pusesse fim aos abusos gritantes. Por que meios se realizaria tal reforma? Por um regresso da alma
fiel à verdade de Cristo e por uma penetração do evangelhoevangelho em todas as consciências.
Era à Escritura, à palavra sagrada, que, muitos anos antes de Lutero, Lefèvre d’Étaples confiava
as possibilidades da indispensável renovação” (DANIEL-ROPS, Henri, A igreja da Renascença e da
Reforma: a reforma protestante, p. 352).
 52
MCNEILL, John T., The history and character of calvinism, p. 108-117; LESSA, Vicente T. Calvino
1509-1564: sua vida e obra. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, [s.d.], p. 47; CAIRNS, E. E.
O Cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1984, p.
252; Schaff, Philip. The creeds of christendom. 6ª ed. Revised and Enlarged, Grand Rapids, Mi-
chigan: Baker Book House, (1931), v. I, p. 425ss.; BIÉLER, André. O pensamento econômico e social
de Calvino. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 115 e 121; MCGRATH, Alister, The
intellectual origins of the european Reformation, p. 54; HARKNESS, Georgia. John Calvin: the man
and his ethics. New York: Abingdon Press, 1958, Preface, p. 6-7; FERREIRA, Wilson de Castro.
Calvino: vida, influência e teologia. Campinas,SP.: Luz para o Caminho, 1985, p. 50-51; FISHER,
Jorge P. Historia de la Reforma. Barcelona: CLIE., (1984), p. 196-198; WILLIAMS, William R. Eras
and characters of History. New York: Harper & Brothers, p. 207; DANIEL-ROPS, Henri, A igreja da
Renascença e da Reforma: a reforma protestante, p. 368ss.; WENDEL, François. Calvin. New York:
Harper & Row, Publishers, 1963, p. 37ss.
 53
FÉLICE, G. de. História dos protestantes da França. São Paulo: Typographia International, 1888, p.
51. Provavelmente, a “Bíblia” mencionada por Félice, seja a edição do Novo Testamento de 1534.

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100 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

no caminho que outrora tomaram) foi com a maior dificuldade que


fui induzido a confessar que, por toda minha vida, eu estivera na
ignorância e no erro.54 

Na introdução do seu comentário de Salmos (1557), afirma:

Inicialmente, visto eu me achar tão obstinadamente devotado


às superstições do papado, para que pudesse desvencilhar-me
com facilidade de tão profundo abismo de lama, Deus por um
ato súbito de conversão,55  subjugou e trouxe minha mente a
uma disposição suscetível, a qual era mais empedernida em tais
matérias do que se poderia esperar de mim naquele primeiro
período de minha vida.56 

Também na já citada carta ao Cardeal Sadoleto (01/09/1539),


Calvino descreve as suas angústias espirituais no romanismo, resul-
tantes do que a igreja pregava.57  No entanto, em nenhum momento
Calvino menciona o instrumento humano usado por Deus.
A Bíblia Francesa (04/06/1535), traduzida por Pierre Robert –
apelidado de “Olivetanus”, daí, Olivétan (c.1506-1540)58  –, primo
de Calvino, foi a primeira tradução Protestante francesa das Es-
crituras, feita a pedido e às expensas dos Valdenses, que gastaram
na impressão 1.500 escudos.59  A tradução, feita diretamente dos

 54
CALVINO, J. Respuesta al Cardeal Sadoleto. 4ª ed. Barcelona: Fundación Editorial de Literatura
Reformada, 1990, p. 63; CALVIN, J., Tracts and Treatises on the Reformation of the Church, v. I, p. 62.
 55
Este ato “súbito” não precisa ser entendido necessariamente como “repentino”. Pode indicar
também algo “não-premeditado” (Cf. GEORGE, Timothy, Teologia dos Reformadores, 174).
 56
CALVINO, J., O Livro dos Salmos, v. 1, p. 38. Veja-se: GEORGE, Timothy, Teologia dos Reformadores,
p. 171-185 (especialmente).
 57
Vd. CALVINO, J., Respuesta al Cardeal Sadoleto, p. 61-64.
 58
Olivétan estudou grego e hebraico com Bucer em Estrasburgo (1528). (Cf. SCHAFF, Philip, History
of the christian church, v. VIII, p. 299).
 59
Cf. TRON, Ernesto. Historia de los Valdenses. Colonia Valdense: Libreria Pastor Miguel Morel,
1952, p. 25; LINDER, Robert. D. Olivétan: In: DOUGLAS, J. D. (ed. ger.). The new international
dictionary of the christian church. p. 730; LESSA, Vicente Temudo, Calvino 1509-1564: sua vida e
obra, p. 47; FRITZSCHE, O. F., Bible Versions: In: SCHAFF, Philip, ed. Religious encyclopaedia: or
dictionary of biblical, historical, doctrinal, and practical theology, v. I, p. 288; DE GREEF, W. The writings
of John Calvin: an introductory guide. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 90.

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 101

originais hebraicos e gregos,60  foi utilizada pela primeira geração de


calvinistas franceses na proclamação do evangelho.61  Aliás, Olivetán
em seu prefácio (12/02/1535), dedicou a sua tradução “à igreja po-
bre”. O Novo Testamento foi editado em 1534, saindo a segunda
edição em 1535, acompanhado do Antigo Testamento. Esta edição
(segunda do Novo Testamento e primeira da Bíblia completa), foi
revisada e prefaciada por Calvino, intitulado: “A todos os que amam
a Jesus Cristo e a seu evangelho”. Aqui temos o primeiro testemunho
público de Calvino que indica a sua conversão. Posteriormente, Beza
(1519-1605) fez nova revisão da Bíblia Francesa, que continuou
sendo revista de quando em quando nos séculos seguintes.62 

3. Calvino como humanista

Os homens jamais encontrarão um antídoto para suas misérias,


enquanto, esquecendo-se de seus próprios méritos, diante do fato de
que são os únicos a enganar a si próprios, não aprenderem a recorrer
à misericórdia gratuita de Deus – João Calvino, O livro dos Salmos,
v. 1, (Sl 6.4), p. 128-129.

Podemos dizer no sentido mais pleno da palavra que Calvino


(1509-1564) era um genuíno humanista, estando profundamente
interessado pelo ser humano. Ainda que de passagem, examinemos
alguns pontos que ilustram a nossa tese.

1) Seu conhecimento humanístico


Já bem cedo Calvino revela o seu fino método de análise filológica

 60
Contudo Olivétan valeu-se também de outras traduções, especialmente da realizada por Lefèvre
D’Étaples (1455-1536) (NT 1523 e AT 1530). (Cf. DE GREEF, W., The Writings of John Calvin,
p. 90).
 61
Cf. LINDER, Robert. D., Olivétan: In: DOUGLAS, J. D. (ed. ger.). The new international dictionary
of the christian church, p. 730.
 62
Cf. ANGUS, J. História, doutrina e interpretação da Bíblia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora
Batista, 1971, p. 126; LESSA, Vicente Temudo, Calvino 1509-1564: sua vida e obra, p. 47. Nunca
é demais lembrar, que Calvino dominava o latim, hebraico e grego (Vd. WALKER, W., História da
igreja cristã, v. II, p. 69-71; LATOURETTE, K. S., Historia del Cristianismo, II, p. 100-101; SCHAFF,
Philip, The creeds of Christendom, v. I, p. 424ss; KRAUS, Hans-Joachim, Calvin’s exegetical principles.
Interpretation 31, 1977, Virginia, p. 14-15.

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102 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

e literária aprendido com os humanistas.63  Ele evidencia isso na sua


primeira obra escrita,64  publicada inclusive com os seus próprios
recursos:65  a edição comentada do livro de Sêneca, De Clementia (4
de abril de 1532) – “o principal monumento dos conhecimentos
humanísticos do jovem Calvino”, diz McNeill;66  “sólido trabalho
de um humanista muito jovem e já brilhante”, comenta Boisset;67 
um “erudito de primeira linha”, acrescenta Parker.68  Resume Gano-
czy: “O seu comentário sobre De Clementia é um modelo de estudo
humanista de um documento antigo”.69  Nessa obra – da qual uma
cópia foi enviada a Erasmo –, o então jovem autor (23 anos) já
revelava o seu gosto literário, erudição,70  amplo conhecimento da
literatura grega e romana, uma perspectiva sóbria e um estilo próprio
de análise – lapidado dentro de uma análise filológica e literária da
melhor qualidade – que se tornaria uma de suas marcas em seus
comentários bíblicos.71  Já nesse trabalho pioneiro, Calvino parece
desafiar o soberano, quando define o tirano como aquele que governa
contra a vontade de seu povo e, seguindo a concepção de Aristóteles
(384-322 a.C.),72  interpreta a tirania como “uma transgressão dos

 63
Cf. SILVA, Moisés. Em favor da Hermenêutica de Calvino. In: KAISER, Walter C.; SILVA, Moisés.
Introdução à Hermenêutica bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 246-247.
 64
Não consideramos aqui o prefácio de Calvino ao trabalho de seu amigo Nicholas Duchemin,
Antapologia, (6/3/1531).
 65
Cf. CALVIN, J. “To Francis Daniel,” John Calvin Collection, Albany, OR: Ages Software, 1998,
(CD-ROM), (23/05/1532), nº 5, p. 37 e CALVIN, J. “To Francis Daniel,” John Calvin Collection,
Albany, OR: Ages Software, 1998, (CD-ROM), (1532), nº 6, p. 38.
 66
MCNEILL, John T., The history and character of calvinism, p. 104. “Os Comentários sobre Sêneca
foram de certo modo a culminação do humanismo do jovem Calvino” (BREEN, Quirinus. John
Calvin: a study in french Humanism. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1931, p. 67).
 67
BOISSET, Jean, História do Protestantismo, p. 57.
 68
PARKER, T. H. L. Portrait of Calvin. London: SCM Press, 1954, p. 19.
 69
GANOCZY, Alexandre. The young Calvin. Philadelphia: The Westminster Press, 1987, p. 179.
 70
George a denomina de “Obra-prima de erudição” (GEORGE, Timothy, Teologia dos Reformadores,
p. 171).
 71
Vd. WARFIELD, B. B. Calvin and Calvinism. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House [The
works of Benjamin B. Warfield; v. V], 1981, p. 4; GEORGE, Timothy, Teologia dos Reformadores, p.
171; MCGRATH, Alister C., The intellectual origins of the european Reformation, p. 54; FERREIRA,
Wilson C., Calvino: vida, influência e teologia, p. 141ss.; WALLACE, Ronald S. Calvin, Geneva and
the Reformation. Grand Rapids, Michigan/Edinburgh, UK.: Baker Book House/Scottish Academic
Press, 1990, p. 5; GONZALEZ, Justo L., A era dos reformadores, p 109; SCHAFF, Philip, The creeds
of Christendom, v. I, p. 424-425; SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 308-309;
SILVA, Moisés. Em favor da Hermenêutica de Calvino. In: KAISER, Walter C.; SILVA, Moisés.
Introdução à Hermenêutica bíblica. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 246-247.
 72
Aristóteles escrevera que “Na tirania há pouca ou nenhuma amizade. Com efeito, onde nada aproxi-
ma o governante dos governados não pode haver amizade, uma vez que não há justiça” (Aristóteles.
Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973, VIII.11, 1160 30. p. 391 [Os Pensadores, v. IV]).

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 103

verdadeiros limites de realeza”,73  revelando, ainda que embriona-


riamente a sua ousadia, que tão bem caracterizará a sua vida como
pregador, escritor e administrador. Esta perspectiva humanista vai
ser o fator determinante na sua aproximação pedagógica.74 

 73
CALVIN, J. Commentary on Seneca’s de Clementia. John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software,
1998, (CD-ROM), p. 133. “Muitas farpas que disparava tinham em vista a ordem estabelecida, a
igreja e a escolástica” (DANIEL-ROPS, Henri, A igreja da Renascença e da Reforma: a reforma pro-
testante, p. 367-368). Mais tarde, escreveria em lugares diferentes: “Os príncipes e os magistrados
devem, pois, recordar de Quem são servidores quando cumprem seu ofício, e não fazer nada que
seja indigno de ministros e lugar-tenentes de Deus. A primeira de suas preocupações deve ser a
de conservar, em sua verdadeira pureza, a forma pública da religião, conduzir a vida do povo com
boas leis, e procurar o bem, a tranqüilidade pública e doméstica de seus súditos” (CALVINO, J.
Breve instruccion cristiana. Barcelona: Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 83).
Partindo do princípio de que as formas de governo estão sujeitas a falhas, escreve: “É verdade que
o rei, ou qualquer indivíduo que exerça o poder monárquico, facilmente baixa à condição de tirano.
Mas é igualmente fácil, quando elementos de alta posição exercem o governo, eles conspirarem
para impor uma dominação iníqua. E ainda é muito mais fácil o surgimento de sedições quando
é o povo que exerce a autoridade”, conclui, mostrando que Deus Se digna em manifestar a Sua
providência através da variedade de governos, aos quais devemos nos submeter: “se deixarmos
de fixar o nosso olhar só numa cidade e observarmos o mundo inteiro ou alguns países, por certo
veremos que não é sem a ação da providência de Deus que diversas regiões sejam governadas por
formas diversas de governo. Porque, assim como não se podem manter os elementos senão com
uma proporção e uma temperatura desiguais, assim também não se pode manter os governos
senão por meio de uma certa desigualdade. Contudo, não há necessidade de demonstrar todos os
aspectos disto para aqueles para os quais a vontade de Deus é argumento suficiente. Porque, se é
da vontade de Deus constituir reis sobre os reinos, e outras formas de autoridade sobre povos não
sujeitos à monarquia, a nós compete sujeitar-nos e obedecer às autoridades que nos dominarem onde
vivermos” (CALVINO, J. As Institutas, (1541), IV.16). “[Os governantes] encontram amplíssima
consolação ao verificarem que a sua vocação não é algo profano nem alheio a um servo de Deus,
mas um cargo sacratíssimo, já que, ao exercê-lo, eles fazem as vezes de Deus e executam o Seu
ofício” (CALVINO, J. As Institutas, (1541), IV.16). “[Davi] prescreve uma norma aos reis terrenos,
a saber: que, devotando-se ao bem público, seu único desejo para que sejam preservados é o bem
de seu povo. Quão longe a realidade se acha disto, nem é preciso dizer. Cegados de soberba e
presunção, desprezam o resto do mundo, como se sua pompa e dignidade os elevassem totalmente
acima do estado comum do homem. Nem é para se admirar que a humanidade seja tão insolente
e habitualmente pisoteada pelos pés dos reis, já que a maioria rejeita e desdenha carregar a cruz
de Cristo” [CALVINO, J. O Livro dos Salmos. São Paulo, Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 28.9), p. 610].
Comentando o Salmo 45, faz uma crítica aos reis de sua época que governam pela força e não
pela persuasão dos argumentos: “Quão manifestamente isso reprova a pobreza de espírito dos reis
de nossos dias, por quem é considerado como derrogatório de sua dignidade dialogar com seus
súditos e empregar a censura a fim de assegurar sua submissão; mas qual? exibem um espírito de
bárbara tirania, buscando antes compeli-los pela força do que persuadi-los com humanidade; e
em preferir antes abusar deles, como se fossem escravos, do que governá-los por leis e com justiça
como pessoas tratáveis e obedientes” [CALVINO, J., O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 45.2), p. 307].
Ver: MCNEILL, John T., Los Forjadores del Cristianismo, v. II, p. 210.
 74
Cf. REID, W. Stanford, Calvin and the founding of the Academy of Geneva: In: Westminster
Theological Journal, 18, (1955), p. 4.

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104 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

2) Amigo de humanistas:75 
O “humanismo” de Calvino é visível em sua formação, escritos
e atitudes. Ele apoiou o humanista Guillaume Budé (1467-1540),
que era chamado de “Prodígio da França”, e, juntamente com Eras-
mo (1466-1536) e Juan Luis Vives (1492-1540), foi considerado o
“triunvirato do humanismo europeu”.76 
Budé, como historiador, filósofo e helenista, contribuiu para o
reavivamento do interesse pela língua e literatura gregas e colaborou
na introdução do Humanismo na França. Calvino também dedicou
o seu Comentário da Primeira Epístola aos Tessalonicenses (Genebra,
17/02/1550) ao seu mestre de gramática e retórica, conhecido hu-
manista, Maturinus Corderius (1479-1564) – que foi fundamental
na formação do estilo de Calvino –, a quem Calvino chama de
“homem de eminente piedade e erudição”,77  reconhecendo a sua
dívida para com ele.78  Posteriormente, Corderius já convertido ao
Protestantismo, Calvino o convidou a lecionar na Academia de
Genebra, o que Corderius aceitou, sendo inclusive durante algum
tempo diretor daquela instituição, permanecendo ali até a sua morte
em 08/09/1564, quatro meses depois de Calvino.79  Corderius, além

 75
Veja-se um bom resumo a respeito da influência de seus professores sobre a sua formação em
BATTLES, Ford L. Interpreting John Calvin. Grand Rapids, MI.: Baker Books, 1996, p. 47-64.
A discussão sobre este assunto é extensa. Vejam-se, entre inúmeros outros: BREEN, Quirinus.
John Calvin: a study in french Humanism. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1931; GAMBLE,
Richard C. (ed.). Articles on Calvin and Calvinism, New York & London: Garland Publishing, Inc.,
1992; MCGRATH, Alister E. A vida de João Calvino. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p.
37ss. Para uma revisão bibliográfica, ver: COMPIER, Don H., The independent pupil: Calvin’s
transformation of Erasmus’ theological Hermeneutics. The Westminster Theological Journal, Phila-
delphia, Pennsylvania: Westminster Theological Seminary, (1992) 217-233.
 76
Cf. FRAILE, Guillermo. Historia de la Filosofia. Madrid: La Editorial Catolica, S.A. 1966, v. III, p. 62.
 77
CALVIN, J. Calvin’s Commentaries. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1981,
v. XXI, (Prefácio do seu comentário de 1ª Tessalonicenses) p. 234.
 78
Na Dedicatória de 1ª Tessalonicenses, disse: “Eu me reconheço endividado para com você pelo
progresso que foi feito desde então. E isto eu estava desejoso de testemunhar à posteridade que, se
qualquer vantagem provirá a eles de meus escritos, eles saberão que, em algum grau, se originaram
com você” (CALVIN, J. Calvin’s Commentaries, v. XXI, p. 234).
 79
Vd. Theodore Beza. Life of John Calvin. John Calvin Collection, Albany, OR: Ages Software, 1998,
(CD-ROM), p. 4; GEORGE, Timothy, Teologia dos Reformadores, p. 170; FISHER, Jorge P. Historia
de la Reforma. Barcelona: CLIE., (1984), p. 195-196; IRWIN, C. H., Juan Calvino: su vida y su
obra, p. 16s.; MCNEILL, John T., The history and character of calvinism, p. 98,192; MCNEILL,
John T., Los Forjadores del Cristianismo, v. II, p. 207; SCHAFF, Philip, History of the christian church,
v. VIII, p. 301-302.

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 105

de brilhante e laborioso professor, 80  era conhecido por sua erudição,


piedade e integridade.
Calvino dedicou o seu comentário de 2 Coríntios (01/08/1546)
a outro humanista de influência luterana, que lhe ministrara aula
de grego (e também a Beza),81  Melchior Wolmar († 1561), quem,
como já fizemos menção, possivelmente pode ter despertado em
seus alunos o interesse pela Reforma.82  Calvino diz que Wolmar
era “o mais distinguido dos mestres [de grego]”.83 

3) Humanismo e a graça comum:


Calvino tinha uma visão ampla da cultura, entendendo que Deus
é Senhor de todas as coisas; por isso, toda verdade é verdade de Deus.
Esta perspectiva amparava-se no conceito da “graça comum” ou
“graça geral” de Deus sobre todos os homens.84  Ele diz: “... visto que
toda verdade procede de Deus, se algum ímpio disser algo verdadeiro,
não devemos rejeitá-lo, porquanto o mesmo procede de Deus. Além
disso, visto que todas as coisas procedem de Deus, que mal haveria
em empregar, para sua glória, tudo quanto pode ser corretamente
usado dessa forma?”.85  Em outro lugar: “Se reputamos ser o Espírito

 80
Beza registra que Corderius (Cordier) faleceu em Paris “aos oitenta e cinco anos, instruindo alunos
do sexto ano, até três ou quatro dias antes de morrer” (BEZA, Theodoro. A vida e morte de João
Calvino, Campinas. SP.: Luz para o Caminho, 2006, p. 9).
 81
Beza testemunha a respeito de seu generoso mestre: “De quem me lembro com tanto maior agrado
em que foi ele meu fiel preceptor e guia de toda a minha juventude, pelo que louvarei a Deus por
toda minha vida” (BEZA, Theodoro, A vida e morte de João Calvino, p. 12).
 82
Vd. MCNEILL, John T., The history and character of calvinism, p. 110,195; IRWIN, C. H., Juan
Calvino: su vida y su obra, p. 22; SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 305.
 83
CALVINO, J. Exposição de 2 Coríntios. São Paulo: Paracletos, 1995, Dedicatória, p. 8.
 84
Cf. As Institutas, II.2.16-17,27; II.3.4. Esta doutrina, que nada mais é do que a compreensão de
que o Espírito Santo exerce influência comum sobre os homens em geral, pode ser resumida em
três pontos: 1) Uma atitude favorável da parte de Deus para com a humanidade em geral – eleitos
e réprobos –, concedendo-lhes os bens necessários à sua existência: chuva, sol, água, alimento,
vestuário, abrigo; 2) A restrição do pecado feita pelo Espírito Santo na vida dos indivíduos e na
sociedade: “A obra da graça divina se vê em tudo que Deus faz para restringir a devastadora influ-
ência e desenvolvimento do pecado no mundo....” (BERKHOF, L. Teologia Sistemática. Campinas,
SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 436); 3) A possibilidade da aplicação da justiça civil por parte
do não regenerado: Aquilo que é certo nas atividades civis ou naturais. No entanto, deve ser dito
que esta graça: a) Não remove a culpa do pecado; b) Não suspende a sentença de condenação,
portanto, o homem continua sob o juízo de Deus. Deste modo, esta ação do Espírito deve ser
distinta da Sua operação efetiva no coração dos eleitos através da qual Ele os regenera.
 85
CALVINO, J. As Pastorais. São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.12), p. 318. Vd. também: As Institutas,
I.5.2; I.15.6; II.2.13,15, 16. CALVIN, J., To Bucer, “Letters,” John Calvin Collection, Albany, OR:

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106 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

de Deus a fonte única da verdade mesma, onde quer que ela haja
de aparecer, nem a rejeitaremos, nem a desprezaremos, a menos
que queiramos ser insultuosos para com o Espírito de Deus”.86  Por
exemplo em passagem magistral, analisando Gênesis 4.20, destaca
o fato de que mesmo na amaldiçoada descendência de Caim há
espaço para a graça de Deus, concedendo-lhe dons que permitissem
a invenção das artes e de outras coisas úteis para a vida presente.
“Verdadeiramente é maravilhoso, que esta raça que tinha caído
profundamente de sua integridade superaria o resto da posteridade
de Adão com raros dons”.87  Entende que Moisés registrou isso para
realçar a graça de Deus que não se tornou vã sobre estes homens,
visto que “havia entre os filhos de Adão homens trabalhadores e
habilidosos, que exerceram sua diligência na invenção e no cultivo
da arte”.88  Por isso, as “artes liberais (Humanidades) e ciências
chegaram até nós pelos pagãos. Realmente, somos compelidos a
reconhecer que recebemos deles a astronomia e outras partes da
filosofia, a medicina e a ordem do governo civil”.89 
Hooykaas (1906-1994) resume o humanismo de Calvino: “Ele
era um humanista talentoso e realista demais para aceitar que a

Ages Software, 1998, (CD-ROM), Fevereiro de 1549, nº 236. Fiel a esse princípio, na Academia
de Genebra, estudavam-se autores gregos e latinos, tais como: Heródoto, Xenofonte, Homero,
Demóstenes, Plutarco, Platão, Cícero, Virgílio, Ovídio, entre outros. (Ver: SCHAFF, Philip, History
of the christian church, Vol. VIII, p. 805; WALLACE, Ronald S., Calvin, Geneva and the Reformation,
p. 99). NAs Institutas, escreveu: “Admito que a leitura de Demóstenes ou Cícero, de Platão ou
Aristóteles, ou de qualquer outro da classe deles, nos atrai maravilhosamente, nos deleita e nos
comove ao ponto de nos arrebatar” [CALVINO, J., As Institutas, (1541), I.24]. Calvino conside-
rava Platão, “entre todos o mais religioso [filósofo] e particularmente sóbrio” [CALVINO, J. , As
Institutas, I.5.11]. Ver também: CAMPOS, Heber Carlos, A “filosofia educacional” de Calvino e
a fundação da Academia de Genebra. Fides Reformata, São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-
Graduação Andrew Jumper, 5/1, 2000, 41-56, p. 51.
 86
CALVINO, J., As Institutas, II.2.15. Ele acrescenta: “Se o Senhor nos quis deste modo ajudados pela
obra e ministério dos ímpios na física, na dialética, na matemática e nas demais áreas do saber,
façamos uso destas, para que não soframos o justo castigo de nossa displicência, se negligenciarmos
as dádivas de Deus nelas graciosamente oferecidas” (CALVINO, J., As Institutas, II.2.16). (Vd.
CALVINO, J., As Institutas, II.2.12-17).
 87
CALVIN, J. Calvin’s Commentaries. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996
(Reprinted), v. I, (Gn 4.20), p. 217.
 88
CALVIN, J., Calvin’s Commentaries, Vol. I, (Gn 4.20), p. 218.
 89
CALVIN, J., Calvin’s Commentaries, Vol. I, (Gn 4.20), p. 218. “É bem verdade que os que recebe-
ram instrução sobre as artes liberais, ou que provaram algo delas, têm nesse conhecimento uma
ajuda especial para aprofundar-se nos segredos da sabedoria divina” (CALVINO, J., As Institutas
(1541), I.11).

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 107

queda tivesse levado o homem a uma total depravação no campo


científico”.90  Wallace, por sua vez, acentua que Calvino

sempre insistiu que a tradição precisava ser constantemente corrigida


pelo ensino das Sagradas Escrituras e ser subordinada a elas. Porém,
ele sempre foi cuidadoso e criterioso em examinar minuciosamente
dentro da tradição o que devia ser rejeitado e o que devia ser aceito.
Ninguém foi mais obstinado em manter aquilo que ele tinha experi-
mentado como algo bom, qualquer que fosse sua origem, contanto
que sua retenção não atrapalhasse a total sujeição de sua mente e
de sua vida à Palavra de Deus ou o desviasse de seguir a Cristo.91 

4) Objetividade desejada
Calvino procurava ser objetivo em sua análise bíblica, teoló-
gica e mesmo nas questões cotidianas. Analisando a divergência
entre os zuinglianos e os luteranos concernente à ceia do Senhor,
comentou: “Uns e outros erraram em não ter paciência para
escutar-se a fim de seguir a verdade sem parcialidade, onde quer
que se encontrasse”.92 

a) Limitações de nosso conhecimento


Essa compreensão tinha implicações em outras áreas; por exemplo:
Calvino entende que a divergência em questões secundárias não deve
servir de pretexto para a divisão da igreja; afinal, todos, sem exceção,
estão envoltos de “alguma nuvenzinha de ignorância”:

São palavras do apóstolo: ‘Todos quantos somos perfeitos sintamos


o mesmo; se algo entendeis de maneira diferente, também isto vos

 90
HOOYKAAS, R. A religião e o desenvolvimento da ciência moderna. Brasília, DF.: Editora Universidade
de Brasília, 1988, p. 152. Ver: CALVINO, J., As Institutas, II.12-13; WALLACE, Donald S., Calvino,
Genebra e a Reforma. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 91-96.
 91
WALLACE, Donald S. Calvino, Genebra e a Reforma. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p.
11-12. Veja-se uma boa análise em: ENGEL, Mary Potter. John Calvin’s perspectival anthropology.
Eugene, Oregon: Wipf and Stock Publishers, 2002, p. 199-205.
 92
CALVINO, J. Breve tratado sobre la santa cena. In: Tratados Breves. Buenos Aires/México, La Au-
rora/Casa Unida de Publicaciones, 1959, p. 46. Vd. Packer, J. I. “Fundamentalism” and the Word
of God. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1988 (Reprinted), p. 34.

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108 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

haverá de revelar o Senhor’ [Fp 3.15]. Não está ele, porventura, a


suficientemente indicar que o dissentimento acerca destas cousas
não assim necessárias não deve ser matéria de separação entre
cristãos? Por certo que estará em primeira plana que em todas as
cousas estejamos em acordo; mas, uma vez que ninguém há que
não esteja envolto de alguma nuvenzinha de ignorância, impõe-se
que ou nenhuma igreja deixemos, ou perdoemos o engano nessas
cousas que possam ser ignoradas não somente inviolada a suma da
religião, mas também aquém da perda da salvação.
Mas, aqui, não quereria eu patrocinar a erros, sequer os mais
diminutos, de sorte que julgue devam ser fomentados, com agir
com complacência e ser-lhes conivente.93  Digo, porém, que não
devemos por causa de quaisquer dissentimentozinhos abandonar
irrefletidamente a igreja, em que somente se retenha salva e iliba-
da essa doutrina, mercê da qual se mantém firme a incolumidade
da piedade e conservado é o uso dos sacramentos instituído pelo
Senhor.94 
Não vejo, porém, nenhuma razão por que uma igreja, por mais uni-
versalmente corrompida, desde que contenha uns poucos membros
santos, não deva ser denominada, em honra desse remanescente, de
santo povo de Deus.95 

 93
“Paulo, pois, nos ensina [Ef 5.11] que, quando não reprovamos os maus, essa é uma espécie de
comunhão com as obras infrutíferas das trevas. É certamente um modo de agir muito perverso
quando certas pessoas, buscando alcançar o favor humano, indiretamente desdenham de Deus;
e todos são coniventes em fazer com que seus negócios sejam do agrado dos perversos. Davi,
contudo, sente deferência, não tanto pela pessoa do perverso, mas pelas suas obras. O homem
que vê o perverso sendo honrado, e pelos aplausos do mundo se torna ainda mais obstinado em
sua perversidade, e que de bom grado dá seu consentimento ou aprovação, com isso não estará
enaltecendo o vício, em vez da autoridade, e o envolvendo de soberano poder?” [CALVINO, J.,
O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 15.1), p. 293].
 94
CALVINO, J., As Institutas, IV.1.12. Em outro lugar: “Onde se professava o Cristianismo, se
adorava um único Deus, se praticavam os Sacramentos e se exercia algum gênero de ministério,
ali permaneciam as marcas da igreja. Nem sempre encontramos nas igrejas tal pureza como era
de se desejar. Ainda a mais pura tem suas máculas, e algumas têm não só umas poucas manchas
aqui e ali, mas são quase que completamente deformadas. Não devemos ficar tão desconcertados
pelo ensino e vida de alguma sociedade que, se não ficamos satisfeitos com tudo o que se procede
ali, então prontamente negamos ser ela uma igreja” [CALVINO, J. Gálatas. São Paulo: Paracletos,
1998, (Gl 1.2), p. 25].
 95
CALVINO, J. O Livro dos Salmos. São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 50.4), p. 401.

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 109

Contanto que a religião continue pura quanto à doutrina e ao culto,


não devemos deixar-nos abalar em demasia ante os erros e pecados
que os homens cometem, como se com isso a unidade da igreja fosse
dilacerada. Entretanto, a experiência de todas as épocas nos ensina
quão perigosa esta tentação se torna quando vemos a igreja de Deus,
que deve prosseguir isenta de toda e qualquer mancha poluente
e resplandecer em incorruptível pureza, nutrindo em seu seio um
grande número de hipócritas ímpios ou pessoas perversas. […] Mas
Cristo, em Mateus 25.32, com justa razão alega ser seu, com toda
propriedade, o ofício peculiar de separar as ovelhas dos cabritos; e
por isso nos admoesta que devemos suportar os maus, e que não está
em nosso poder corrigi-los, até que as coisas se tornem amadurecidas
e chegue o tempo próprio de purificar a igreja. Ao mesmo tempo, os
fiéis são aqui intimados, cada um em sua própria esfera, a empregar
todos os seus esforços para que a igreja de Deus seja purificada das
corrupções que nela ainda persistem.
[…] O sagrado celeiro de Deus não estará perfeitamente purificado
antes do último dia, quando Cristo, em sua vinda, lançará fora a
palha. Mas ele já começou a fazer isso através da doutrina do seu
evangelho, que chama crivo de joeirar. Não devemos, pois, de forma
alguma ser indiferentes acerca desse assunto; ao contrário, devemos
antes mostrar-nos absolutamente sérios, para que todos nós que
professamos ser cristãos possamos levar uma vida santa e imaculada.
Acima de tudo, porém, o que Deus aqui declara com respeito a toda
injustiça deve ficar indelevelmente impresso em nossa memória; ou
seja, que ele os proíbe de entrar em seu santuário, e condena sua
ímpia presunção em irreverentemente intrometer-se na sociedade
dos santos.96 
Todavia, ainda quando a igreja seja remissa em seu dever, não por
isso será direito de cada um em particular a si pessoalmente assumir
a decisão de separar-se.97 

 96
CALVINO, J., O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 15.1), p. 287-289.
 97
CALVINO, J., As Institutas, IV.1.15. Em outro lugar Calvino diz: “Deus só é corretamente servido
quando sua lei for obedecida. Não se deixa a cada um a liberdade de codificar um sistema de
religião ao sabor de sua própria inclinação, senão que o padrão de piedade deve ser tomado da
Palavra de Deus” (CALVINO, J., O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 1.1), p. 53).

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110 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

Há tanta rabugice em quase todos esses indivíduos que, estando


em seu poder, de bom grado fariam para si suas próprias igrejas,
porquanto se torna difícil acomodarem-se aos modos das demais
pessoas.98 
É indubitável que a nós compete cultivar a unidade da forma a
mais séria, porque Satanás está bem alerta, seja para arrebatar-nos
da igreja, ou para desacostumar-nos dela de maneira furtiva.99 

b) Humildade necessária
Na sua concepção a humildade se constitui num primeiro passo
para alcançar a unidade. Continua:

Donde procede a impudência, a soberba e as injúrias lançadas con-


tra os irmãos? Donde procede as questiúnculas, os escárnios e as
exprobrações, a não ser do fato de cada um amar excessivamente a si
próprio e de querer agradar em demasia a si próprio? Aquele que se
desfaz da arrogância e cessa de agradar a si próprio se tornará manso
e acessível. E quem quer que persista em tal moderação ignorará e
tolerará muitas coisas nos irmãos.(...) Será inútil ensinar a mansidão,
a menos que tenhamos iniciado com humildade.100 

Portanto, “devemos ser unidos, não apenas em uma parte, mas
no corpo e na alma”.101  Em 19 de agosto de 1561, na Dedicatória
de seu comentário do Profeta Daniel, Calvino fala de seu esforço
por manter a paz102  – o que nem sempre havia sido possível –, e,
ao mesmo tempo, estimula seus irmãos a não ultrapassarem deter-
minados limites. Escreve:

Mais ainda, é vossa incumbência, amados irmãos, tomar prudente


cuidado para que a verdadeira religião possa novamente readquirir
uma posição sã; isto é, até onde cada um tiver o poder e a vocação.

 98
CALVINO, J., Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 10.25), p. 272.
 99
CALVINO, J., Exposição de Hebreus, (Hb 10.25), p. 273.
 100
CALVINO, J. Efésios. São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.1), p. 108.
 101
CALVINO, J., Efésios, (Ef 4.1-4), p. 109.
 102
Veja-se: BEZA, Theodoro, A vida e morte de João Calvino, p. 30-31.

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 111

Não é necessário dizer o quanto tenho lutado para remover toda e


qualquer ocasião geradora de tumultos até agora. Clamo aos anjos e a
vós para testemunhardes diante do supremo juiz que não é de minha
responsabilidade que o progresso do reino de Cristo não tenha sido
calmo e inofensivo. De fato, julgo ser em decorrência de meu cuidado
que pessoas particulares ainda não passaram dos limites.103 

Ele entende que Satanás muitas vezes se vale de nossos bons


sentimentos para fazer com que quebremos a unidade da igreja, su-
postamente, em busca de uma igreja ideal. Para este mister, somos
capazes até de reunir textos que falam da santidade da igreja como
pretexto para a nossa atitude.104  “Recordemos sempre, quando o
diabo nos empurrar para as controvérsias, que as desavenças dos
membros, no seio da igreja, não nos levam a parte alguma, senão
para a ruína e destruição de todo o corpo”.105  Como os jovens são
mais irritáveis, dá uma orientação mais específica:

Os jovens, em meio às controvérsias, se irritam muito mais depressa


do que os de mais idade; se iram mais facilmente, cometem mais
equívocos por falta de experiência e se precipitam com mais ousadia
e temeridade. Daí ter Paulo boas razões para aconselhar a um jovem
precaver-se contra os erros próprios de sua idade, os quais, de outra
forma, poderiam facilmente envolvê-lo em disputas inúteis.106 

c) Unidade na Palavra
Após argumentar contra aqueles que chamavam os reformados
de hereges, ressalta que a unidade cristã deve ser na Palavra:

Com efeito, também isto é de notar-se: que esta conjunção de amor


assim depende da unidade de fé que lhe deva ser esta o início, o fim,
a regra única, afinal. Lembremo-nos, portanto, quantas vezes se nos

 103
CALVINO, J. O Profeta Daniel: 1-6. São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, p. 26.
 104
Cf. CALVIN, J. Calvin’s Commentaries. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company,
1996, (Reprinted), v. XV, (Ag 2.1-5), p. 351.
 105
CALVINO, J., Gálatas, (Gl 5.15), p. 165.
 106
CALVINO, J. As Pastorais. São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 2.22), p. 244.

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112 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

recomenda a unidade eclesiástica, isto ser requerido: que, enquanto


nossas mentes têm o mesmo sentir em Cristo, também entre si
conjungidas nos hajam sido as vontades em mútua benevolência
em Cristo. E, assim, Paulo, quando para com ela nos exorta, por
fundamento assume haver um só Deus, uma só fé e um só batismo
[Ef 4.5]. De fato, onde quer que nos ensina o apóstolo a sentir o
mesmo e a querer o mesmo, acrescenta imediatamente: em Cristo
[Fp 2.1,5] ou: segundo Cristo [Rm 15.5], significando ser conluio de
ímpios, não acordo de fiéis, a unidade que se processa à parte da
Palavra do Senhor.107 

Em outro lugar, instrui: “A melhor forma de promover a unidade


é congregar [o povo] para o ensino comunitário....”.108 
Calvino, em 1554, consola os irmãos refugiados em Wezel (Ale-
manha), que sofriam diversas pressões de luteranos e sobreviviam
numa pequena Igreja Reformada, mostrando que apesar dos grandes
problemas pelos quais passava o mundo, Deus lhes havia concedi-
do um lugar onde poderiam adorar a Deus em liberdade. Também
os desafia a não abandonarem a igreja por pequenas divergências
nas práticas cerimoniais, sendo tolerantes a fim de preservar a
unidade. Contudo, os exorta a jamais fazerem acordos em pontos
doutrinários.109 
Portanto, mesmo desejando a paz e a concórdia, Calvino entendia
que essa paz nunca poderia ser em detrimento da verdade; pois, se
assim fosse, tal paz seria maldita:

Naturalmente, há uma condição para entendermos a natureza desta


paz, ou seja, a paz da qual a verdade de Deus é o vínculo. Pois se
temos de lutar contra os ensinamentos da impiedade, mesmo se for

 107
CALVINO, J., As Institutas, IV.2.5. Calvino entendia que “onde os homens amam a disputa,
estejamos plenamente certos de que Deus não está reinando ali” (CALVINO, J. Exposição de 1
Coríntios. São Paulo: Edições Paracletos, 1996, (1Co 14.33), p. 436). T. George comenta com
acerto que “Calvino não estava disposto a comprometer pontos essenciais em favor de uma paz
falsa, mas ele tentou chamar a igreja de volta à verdadeira base de sua unidade em Jesus Cristo”
(GEORGE, Timothy, Teologia dos Reformadores, p. 182-183).
 108
CALVINO, J., Efésios, (Ef 4.12), p. 125.
 109
CALVIN, J. To the brethren of Wezel, “Letter.” John Calvin Collection. Albany, OR: Ages Software,
1998, (CD-ROM), nº 346, p. 32-34.

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 113

necessário mover céu e terra, devemos, não obstante, perseverar na


luta. Devemos, certamente, fazer que a nossa preocupação primária
cuide para que a verdade de Deus seja mantida em qualquer con-
trovérsia; porém, se os incrédulos resistirem, devemos terçar armas
contra eles, e não devemos temer sermos responsabilizados pelos
distúrbios. Pois a paz, da qual a rebelião contra Deus é o emblema,
é algo maldito; enquanto que as lutas, indispensáveis à defesa do
reino de Cristo, são benditas.110 

Em 20 de março de 1552, Thomas Cranmer (1489-1556)111 


escreveu a Calvino – bem como a Melanchthon (1497-1560)112 
e a Bullinger (1504-1575)113  –, convidando-o para uma reunião
no Palácio de Lambeth com o objetivo de preparar um credo que
fosse consensual para as Igrejas Reformadas.114  Cranmer tinha em
vista também a realização do Concílio de Trento115  que estava em
andamento, estando preocupado de modo especial com a questão

 110
CALVINO, J., Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.33), p. 437.
 111
Arcebispo de Canterbury, que em 1549 havia elaborado o Livro de Oração Comum, no qual dava
ênfase ao culto em inglês, à leitura da Palavra de Deus e, ao aspecto congregacional da adoração
cristã.
 112
Melanchthon, mesmo sendo luterano e amigo pessoal de Lutero, desfrutou também de boa amizade
com Calvino, mantendo com este ampla correspondência. Nos dizeres de Schaff, Melanchthon
“permaneceu como um homem de paz entre dois homens de guerra” (SCHAFF, Philip, History
of the christian church, v. VIII, p. 260). O seu principal trabalho teológico foi Loci Communes (abril
de 1521). Este tratado foi a primeira obra de teologia sistemática protestante do período da
Reforma, marcando época portanto, na história da teologia. Nele Melanchthon segue a ordem
da Epístola aos Romanos. (Ver: SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VII, 368-370).
A tradução francesa do trabalho de Melanchthon foi prefaciada por Calvino (1546). (Cf. DE
GREEF, W. The writings of John Calvin: an introductory guide. Grand Rapids, Michigan: Baker
Book House, 1993, p. 205).
 113
Bullinger foi amigo, discípulo e sucessor de Zuínglio (1484-1531), tendo escrito cerca de 150
obras, entre elas, A segunda Confissão Helvética (1562-1566).
 114
Cranmer, na carta a Calvino, escreve: “Como nada mais tende a separar as igrejas de Deus que
as heresias e diferenças sobre as doutrinas de religião, assim nada mais eficazmente os une, e
fortalece a obra de Cristo mais poderosamente, que a doutrina incorrupta do evangelho, e união
em opiniões reconhecidas. Eu tenho freqüentemente desejado, e agora desejo que esses homens
instruídos e piedosos que superam outros em erudição e julgamento, constituíssem uma assembléia
em um lugar conveniente, onde se realizasse uma consulta mútua, e comparando as suas opiniões,
eles poderiam discutir todas as principais doutrinas da igreja.... Nossos adversários estão agora
organizando o seu concílio em Trento, no qual eles podem estabelecer os seus erros. E devemos
nós negligenciar convocar um sínodo piedoso que nos possibilite refutar os erros deles, e purificar
e propagar a verdadeira doutrina?” (Thomas Cranmer to Calvin, “Letter.” John Calvin Collection.
Albany, OR: Ages Software, 1998, (CD-ROM), 16).
 115
Cranmer era um teólogo e estadista; a sua preocupação com Trento era pertinente e a história já
demonstrou amplamente esse fato.

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114 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

da ceia do Senhor. Calvino então responde (abril de 1552), enco-


rajando Cranmer a perseverar no seu objetivo. A certa altura diz:
“Estando os membros da igreja divididos, o corpo sangra. Isso me
preocupa tanto que, se pudesse fazer algo, eu não me recusaria a
cruzar até dez mares, se necessário fosse, por essa causa”.116  O
próprio Cranmer comporia no Livro de oração comum uma oração
para o culto anual anglicano, quando se comemorava a coroação
do monarca. A oração diz:

Ó Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, nosso único Salvador, o


Príncipe da Paz: Dá-nos a graça para com seriedade nos compene-
trarmos dos grandes perigos em que nos encontramos por causa de
nossas lamentáveis divisões, retira todo o ódio e preconceito e tudo
o mais que possa impedir-nos de ter uma união e concórdia piedosas;
para que, como existe somente um só corpo e um só Espírito e uma
só esperança de nossa vocação, um só Senhor, uma só fé, um só ba-
tismo, um só Deus e Pai de todos nós, assim possamos de agora em
diante ser todos de um só coração, de uma só alma, unidos em um
único e santo vínculo de verdade e paz, de fé e caridade, e possamos
de uma só mente e com uma só boca glorificar-te: por meio de Jesus
Cristo, nosso Senhor. Amém.117 

 116
Letters of John Calvin: selected from the Bonnet Edition. Edinburgh, The Banner of Truth Trust,
1980, p. 132-133. Comentando sobre o egoísmo humano que gera divisões na igreja e, ao mesmo
tempo a falta de tolerância, Calvino escreve, exortando-nos a amar os nossos irmãos (retomo,
aqui, parte de citação feita acima) “Há tanta rabugice em quase todos esses indivíduos que, es-
tando em seu poder, de bom grado fariam para si suas próprias igrejas, porquanto se torna difícil
acomodarem-se aos modos das demais pessoas. Os ricos invejam uns aos outros, e raramente se
encontra um entre cem que acredite que os pobres são também dignos de ser chamados e incluídos
entre seus irmãos. A menos que haja similaridade em nossos hábitos, ou alguns atrativos pessoais,
ou vantagens que nos unam, será muitíssimo difícil manter uma perene comunhão entre nós.
Essa advertência, pois, se torna mais que necessária a todos nós, a fim de sermos encorajados a
amar, antes que odiar, e não nos separarmos daqueles a quem Deus nos uniu. Torna-se urgente
que abracemos com fraternal benevolência aqueles que nos são ligados por uma fé comum. É
indubitável que a nós compete cultivar a unidade da forma a mais séria, porque Satanás está alerta,
seja para arrebatar-nos da igreja, ou para desacostumar-nos dela de maneira furtiva” (CALVINO,
J. Exposição de Hebreus. São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 10.25), p. 272-273). Schaff analisa: “A
igreja de Deus era a sua casa, e aquela igreja não conhece nenhum limite de nacionalidade e
idioma. O mundo era a sua paróquia. Tendo rompido com o papado, ele ainda permaneceu um
católico na melhor acepção da palavra, e orou e trabalhou para a unidade de todos os crentes”
(SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 799).
 117
Apud NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do Cristianismo. São Paulo: Editora Cultura
Cristã, 2000, p. 204.

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 115

d) Humanismo teológico
1) A valorização do homem como imagem de Deus:
Robert D. Knudsen, tratando da visão “humanística” de Cal-
vino, diz:

É um erro supor que o duradouro interesse de Calvino pelos estudos


humanísticos e pelo desenvolvimento cultural do homem fosse um
simples remanescente do tempo que precedeu sua conversão à fé
evangélica. Sua preocupação para com os estudos humanísticos e
para com aquilo que diz respeito ao que é humano, está muito in-
separavelmente ligado ao seu modo global de pensar, para permitir
uma tal interpretação.
De fato, num sentido que precisa ser bem definido e cuidadosa-
mente preservado de má compreensão, Calvino pode ser chamado
de ‘humanista’. Através de toda a sua vida, ele teve um profundo
compromisso para com aquilo que é humano [...]
Calvino ataca aqueles humanistas que fazem a apoteose do ser
humano e pensam que a realização daquilo que é humano pode ser
alcançada somente na presumida independência de Deus e de sua
revelação. Ele mesmo como um humanista, rejeitou aquilo que era o
coração da idéia de personalidade do Renascimento, a idéia de que
o homem é a fonte criadora de seus próprios valores e, portanto, no
fundo, incapaz de pecar.118 
[Segundo Calvino] o homem só se conhece verdadeiramente quando
se conhece à luz de Deus e de sua revelação, com o corolário implícito
de que, se se conhece verdadeiramente, conhece verdadeiramente
também a Deus. Não é muito extrair desta correlação o pensamento
de que o homem, estando verdadeiramente relacionado com Deus
pela piedade, estará verdadeiramente relacionado consigo mesmo,
e estando relacionado consigo pela piedade, estará verdadeiramente
relacionado com Deus.119 

 118
KNUDSEN, Robert D. O Calvinismo como uma força cultural. In: REID, W. Stanford (ed.).
Calvino e sua influência no mundo ocidental. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990, p. 13-14.
 119
KNUDSEN, Robert D. O Calvinismo como uma força cultural. In: REID, W. Stanford (ed.),
Calvino e sua influência no mundo ocidental, p. 19

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116 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

Para Calvino, tornou-se possível relacionar a idéia de humanidade


à antítese religiosa retratada na Escritura. O caminho foi aberto
pela idéia de que o homem se torna humano em sua relação com
Deus. O homem, em si mesmo, é verdadeiramente homem quando
responde àquilo que constitui o modo de ser de sua natureza, àquilo
para o que foi criado [...]. A autonomia humana pecaminosa, longe
de ser o caminho para a auto-realização humana, é, em si mesma,
uma distorção daquilo que é humano.120 

De modo semelhante, escreve André Biéler:

A diferenciação clara das atribuições desses dois campos (teocen-


trismo e antropocentrismo) explica a grande liberdade com que
Calvino soube combinar as valiosas conquistas do humanismo com
os ensinamentos insubstituíveis da teologia, sem todavia cair nas
enganosas sínteses almejadas pela escolástica romana e que impor-
tava evitar a todo preço [...].
Calvino, foi portanto, um humanista. E o foi no seu mais alto grau
porque, ao conhecimento natural do homem pelo próprio homem,
acrescentou, sem confundir, o conhecimento do homem que Deus
revela à sua criatura através de Jesus Cristo. Não se tratava, pois, de
dar as costas ao humanismo e sim de suplantá-lo dando-lhe, talvez,
as suas mais amplas dimensões. De um conhecimento puramente
antropocêntrico, Calvino queria passar ao conhecimento do homem
total, cujo centro se localiza no mistério de Deus.
Por vezes, ele se opôs aos humanistas, mas sua oposição não visava
tanto ao humanismo como tal, e sim ao ateísmo e ao antropocen-
trismo exclusivo de alguns, confinados no seu orgulho intelectual e
numa confiança ilimitada no homem incompatíveis com a fé cristã.
Resumindo, enquanto a ciência da Idade Média foi a Teologia, o
estudo de Deus, a da Renascença foi o humanismo, o estudo do ho-
mem. A ciência de Calvino, por sua vez, é um humanismo teológico
que inclui a um tempo o estudo do homem e da sociedade através

 120
KNUDSEN, Robert D. O Calvinismo como uma força cultural. In: REID, W. Stanford (ed.),
Calvino e sua influência no mundo ocidental, p. 20.

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 117

do duplo conhecimento do homem pelo homem, de um lado, e do


homem por Deus, de outro.121 

Em suma, podemos dizer, que o “humanismo” de Calvino era


um “humanismo cristocêntrico”, caracterizando-se pela compre-
ensão de que o homem encontra a sua verdadeira essência no
conhecimento de Deus.122  Conhecer a Deus significa ter uma
perspectiva clara de si mesmo; a recíproca também é verdadeira:
não há conhecimento genuíno de Deus sem um conhecimento
correto de si mesmo.
A dignidade e beleza do homem estão em ter sido criado “à
imagem e semelhança de Deus”,123  podendo, portanto, relacionar-se
com o seu Criador.124  No homem a “sua imagem e glória peculiar-
mente brilham”.125  O conhecimento de Deus, deve nos conduzir ao
temor e à reverência, tendo a Deus como guia e mestre, buscando
nele todo o bem.126 

2) A Academia de Genebra
Fiel ao seu princípio de que “...as escolas teológicas [são] berçá-
rios de pastores”,127  Calvino (1509-1564), criou uma Academia em

 121
BIÉLER, André. O humanismo social de Calvino. São Paulo: Edições Oikoumene, 1970, p. 12-13.
 122
“Esse humanismo cristocêntrico, essa nova imagem do homem, redescoberta pelo Cristianismo
reformado, permitia a cada indivíduo compreender que sua natureza atual era uma natureza
degradada e que devia ser restaurada. Mas essa nova concepção permitia-lhe também descobrir
que ele trazia em si, como toda pessoa, os traços maravilhosos de sua identidade primeira. Cada
indivíduo podia, portanto, conhecer-se a si mesmo e redescobrir que toda a criação era também
convidada para sua renovação (Rm 8.20-21)” (BIÉLER, André. A força oculta dos protestantes. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 47).
 123
Vejam-se: CALVINO, J., As Institutas, I.15.3 e 4; CALVIN, J. Commentaries on the first book of Moses
called Genesis. Grand Rapids, Michigan: Eerdamans Publishing Co., 1996 (Reprinted), v. 1, (Gn
1.26-27), p. 92, (Gn 5.1), p. 227; CALVINO, J., A Verdadeira Vida Cristã, p. 37-38; CALVINO, J.,
O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 8.7-9), p. 173-174; CALVINO, J. Breve instruccion cristiana. Barcelona:
Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 25;
 124
Vd. ERICKSON, Millard J. Introdução à teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 207.
 125
CALVIN, J. Commentaries on the Epistle of James. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House
Company, 1996, (Calvin’s Commentaries, v. XXII), (Tg 3.9), p. 322.
 126
Cf. CALVINO, J., As Institutas, I.2.2.
 127
CALVINO, J., As Pastorais, (1Tm 3.1), p. 82. Schaff usa essa expressão referindo-se à Academia
de Genebra, um “berçário de pregadores evangélicos” (SCHAFF, Philip, History of the christian
church, v. VIII, p. 820).

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118 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

Genebra (5/6/1559)128  – contando com 600 alunos, aumentando já


no primeiro ano para 900 alunos129  –, a quem coube a educação dos
protestantes da língua francesa, atingindo em sua maioria alunos
estrangeiros vindos da França, Holanda, Inglaterra, da Alemanha, da
Itália e de outras cidades da Suíça.130  Além disso, Genebra se tornou

 128
Data da sessão solene de inauguração, presidida por Calvino na Catedral de São Pedro. (A. Biéler,
O pensamento econômico e social de Calvino, p. 192; SCHAFF, Philip, History of the christian church,
v. VIII, p. 805; Calvin, Textes Choisis par Charles Gagnebin. Egloff, Paris, c. 1948, p. 302; Van
Halsema, Thea B. João Calvino era assim, p. 195). Na ocasião estavam presentes todo Conselho
e os ministros. Calvino rogou a bênção de Deus sobre a Academia, a qual estava sendo dedicada
à ciência e religião. Michael Roset, o secretário de Estado, leu a Confissão de Fé o os estatutos
que regeriam a instituição. Beza foi proclamado reitor, ministrando uma aula inaugural em latim.
A reunião foi encerrada com uma breve palavra de Calvino e oração pelo próprio. (Cf. SCHAFF,
Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 805; VAN HALSEMA, Thea B., João Calvino era
assim, p. 195). John Knox (1515-1572), que estudou na Academia, escreveria mais tarde a uma
amiga (09/12/1556) dizendo ser a Igreja de Genebra “a mais perfeita escola de Cristo que jamais
houve na terra desde os dias dos Apóstolos” (MCNEILL, John T., The history and character of
calvinism, p. 178; SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 263; SCHAFF, Philip,
The creeds of Christendom, v. I, p. 460; GEORGE, Timothy, Teologia dos Reformadores, p. 167; HALL,
Basil, John Calvin: humanist and theologian. London: The Historical Association by George Philip
& Son, Ltd., 1956, p. 6, 36; Schaff observa que havia uma faculdade em Genebra, desde 1428,
chamada “Faculdade Versonnex”, que se destinava à preparação de clérigos; no entanto ela havia
entrado em decadência, sendo reorganizada por Calvino em 1541. A instrução era gratuita. Ain-
da segundo Schaff, Calvino incentivou a educação fundando diversas escolas estrategicamente
distribuídas na cidade. As taxas eram baixas até que foram abolidas (1571) conforme pedido de
Beza. “Calvino às vezes é chamado o fundador do sistema de escola pública”. Calvino desejava
criar uma grande universidade, contudo os recursos da República eram pequenos para isso, as-
sim ele se limitou à Academia. Contudo até para criar a Academia ele teve de pedir de casa em
casa donativos, conseguindo arrecadar a soma respeitável de 10,024 guilders de ouro. Diversos
estrangeiros que ali residiam contribuíram generosamente, havendo também um genebrino,
Bonivard, o Velho, que doou toda a sua fortuna à instituição. (Cf. SCHAFF, Philip, History of the
christian church, v. VIII, p. 804-805).
 129
Cf. SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 805; WALLACE, Ronald S., Calvin,
Geneva and the Reformation, p. 99. Em 1564 a Academia contaria com 1200 alunos nos cursos
superiores e 300 nos inferiores. (Cf. FERREIRA, Wilson C., Calvino: vida, influência e teologia,
p. 196; A. Biéler, O pensamento econômico e social de Calvino, p. 192; DANIEL-ROPS, Henri, A igreja
da Renascença e da Reforma: a reforma protestante, p. 413).
 130
Genebra chegou a abrigar mais de 6 mil refugiados vindos da França, Itália, Inglaterra, Espanha
e Holanda (Cf. SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 802; CERNI, Ricardo.
Historia del Protestantismo. 2ª ed. Corregida, Edinburgh: El Estandarte de la Verdad, 1995, p.
63), aumentando este número com os estudantes que para lá se dirigiram com a fundação da
Academia de Genebra (1559). Lembremo-nos que a população de Genebra era de 9 a 13 mil
habitantes (9 mil segundo REID, W. S. A propagação do calvinismo no século XVI. In: REID, W.
Stanford (ed.). Calvino e sua influência no mundo ocidental, p. 52; 12 mil conforme MCNEILL, J. T.,
Los forjadores del Cristianismo, v. II, p. 211; 13 mil de acordo com NICHOLS, Robert H. História
da igreja cristã. São Paulo: CEP., 1978, p. 164; em torno de 10 mil conforme NAPHY, William
G. Calvin and the consolidation of the genevan reformation. Louisville: Westminster John Knox Press,
2003, p. 21, 36). Em 1550 Genebra dispunha de 13.100 habitantes, saltando para 21.400 em
1560. Dez anos depois, em 1570, a população voltaria a 16.000. A casa dos 20 mil habitantes

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 119

um grande centro missionário, uma verdadeira “escola de missões”,


porque os foragidos que lá se instalaram puderam, posteriormente,
levar para os seus países e cidades o evangelho ali aprendido. “O
estabelecimento da Academia foi em parte realizado por causa do
desejo de suprir e treinar missionários evangélicos”, informa-nos
Mackinnon.131  Destacamos que, com exceção de Isaías, todos os
comentários de Calvino sobre os profetas “consistem em sermões
direcionados a alunos em treinamento para o trabalho missionário,
principalmente na França”.132 
Este objetivo da Academia faz jus à compreensão missionária
de Calvino. Comentando 1 Timóteo 2.4, Calvino afirma: “.... ne-
nhuma nação da terra e nenhuma classe social são excluídas da
salvação, visto que Deus quer oferecer o evangelho a todos sem
exceção”.133  Por isso, “o Senhor ordena aos ministros do evangelho

só seria ultrapassada em 1720, atingindo 20.800. (Cf. Perrenoud, Alfred. La Population de


de Genève du Seizième au Début Du Dix-Neuvième Siècle: Étude Démographique. Genève: Libraririe A.
Jullien, 1979, v. 1, p. 37). Schaff apresenta dados mais específicos relativos a cada período: Cerca
de 12 mil habitantes no início do século XVI, aumentando para mais de 13 mil em 1543, tendo
um surto de crescimento de 1543 a 1550, quando a população saltou para 20 mil (SCHAFF,
Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 802. Vd. também: Tomas M. Lindsay, La Reforma
y su desarrollo social, Barcelona: CLIE., (1986), p. 117; VAN HALSEMA, Thea B., João Calvino era
assim, p. 193. Segundo McGrath, em 1550 a população foi estimada em 13.100 habitantes. Em
1560 era de 21.400 habitantes. (MCGRATH, Alister E. A vida de João Calvino. São Paulo: Editora
Cultura Cristã, 2004, p. 145). Biéler estima 10.300 habitantes em 1537, chegando a 13.000
em 1589 (BIÉLER, André, O pensamento econômico e social de Calvino, p. 216, 220 e 251, n. 514).
 131
MACKINNON, James. Calvin and the Reformation. Londres: Penguin Books, 1936, p. 195.
 132
PARKER, T. H. L., Prefácio à versão inglesa do Comentário de Daniel (cf. CALVINO, J. O Profeta
Daniel: 1-6. São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, p. 13).
 133
CALVINO, J., As Pastorais, (1Tm 2.4), p. 60. Ver também: CALVIN, J. Calvin’s Commentaries.
Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. XII, (Ez 18.23), p.
246-249. Para um estudo sobre a visão missionária de Calvino, ver: HUGHES, Philip E. John
Calvin: Director of Missions. In: BRATT, J. H. (ed.). The heritage of John Calvin. Grand Rapids,
Michigan: Eerdmans, 1973, p. 40-54; BEAVER, R. Pierce, The genevan mission to Brazil. In:
BRATT, J. H. (ed.). The heritage of John Calvin. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1973, p. 55-
73; REID, W. Stanford. Calvin’s Genebra: a missionary centre. In: GAMBLE, Richard C. (ed.).
Calvin’s work in Geneva. New York: Garland Pub., 1992; BERG, J. Vanden. Calvino y las misiones.
In: HOOGSTRA, Jacob T. (org.). Juan Calvino, profeta contemporáneo. Barcelona: CLIE., 1973, p.
169-185; MORRIS, S. L. The relation of Calvin and calvinism to missions. In: MAGILL, R. E.
(ed.). Calvin memorial addresses. Richimond, VA.: Presbyterian Committee of Publication, 1909,
p. 127-146; BARRO, Antonio Carlos. A consciência missionária de João Calvino. Fides Reformata,
São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 3/1, 1998, 38-49; NESTE,
Ray Van. John Calvin on Evangelism and Missions. In: http://www.founders.org/FJ33/article2.html
(Capturado em 30/06/06); JAMES, Frank A., Calvin, the evangelist. In: http://www.rts.edu/quarterly/
fall01/james.html (Capturado em 01/07/06).

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120 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

[que preguem] em lugares distantes, com o propósito de espalhar


a doutrina da salvação em cada parte do mundo”.134  Analisando
uma das implicações da petição “venha o teu reino”, comenta: “Por-
tanto, nós oramos pedindo que venha o reino de Deus; quer dizer,
que todos os dias e cada vez mais o Senhor aumente o número dos
seus súditos e dos que nele crêem [...]”;135  “[...] é nosso dever para
proclamar a bondade de Deus a toda nação”.136 
A Academia tornou-se grandemente respeitada em toda a Eu-
ropa; o grau concedido aos seus alunos era amplamente aceito e
considerado em universidades de países protestantes como, por
exemplo, a Holanda. O historiador católico Marc Venard, comenta
que a Academia “será daí em diante um viveiro de pastores para
toda a Europa reformada”.137  A Academia contribuiu em grandes
proporções para fazer de Genebra “um dos faróis do Ocidente” ad-
mite Daniel-Rops.138  A formação dada em Genebra era intelectual e
espiritual; os alunos participavam dos cultos das quartas-feiras bem
como em todos os três cultos prestados a Deus no domingo.139  Um
escritor referiu-se a Genebra deste modo: “Deus fez de Genebra sua
Belém, isto é, sua casa do pão”.140 

 134
CALVIN, J. Calvin’s Commentaries. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996
(Reprinted), v. XVII, (Mt 28.19), p. 384.
 135
CALVINO, J., As institutas da religião cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, v.
3, (III.9.39), p. 124.
 136
CALVIN, J. Calvin’s Commentaries. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996
(Reprinted), v. VII, (Is 12.5), p. 403.
 137
VENARD, Marc. O Concílio Lateranense V e o Tridentino. In: ALBERIGO, Giuseppe (org.). His-
tória dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995, p. 339. Do mesmo modo escreve Willemart:
“Genebra torna-se o centro de formação dos pastores que serão enviados para todas as comu-
nidades francesas e que permitirão a unidade da Igreja Evangélica Reformada” (WILLEMART,
Philippe. A Idade Média e a Renascença na literatura francesa. São Paulo: Annablume, 2000, p. 42).
 138
DANIEL-ROPS, Henri, A igreja da Renascença e da Reforma: a reforma protestante, p. 414.
 139
Cf. BAIRD, Charles W. A liturgia reformada: ensaio histórico. Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP.,
2001, p. 29.
 140
Apud BAIRD, Charles W., A liturgia reformada: ensaio histórico, p. 30.
 141
DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, v. I, p. 128-
129; DANIEL-ROPS, Henri, A igreja da Renascença e da Reforma: a reforma protestante, p. 415 e
EISENSTEIN, Elisabeth L. A revolução da cultura impressa: os primórdios da Europa moderna. São
Paulo: Editora Ática, 1998, p. 185. Expressão já usada por Schaff. Vd. The creeds of Christendom, v.
I, p. 445. É curioso que mesmo Calvino tendo uma alma francesa, ele jamais deixaria a igreja de
Genebra; quando foi convidado a pastorear a Primeira Igreja Protestante de Paris, não aceitou.
(Cf. SCHAFF, P. History of the christian church, v. VIII, p. 807).

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Anotações sobre a Hermenêutica de Calvino | 121

O conceituado historiador católico contemporâneo Delumeau,


fazendo eco a um dito comum, afirma – a bem da verdade com tons
românticos e caricatos –, que Calvino fez de Genebra “a Roma do Pro-
testantismo”.141  Bem, essa perspectiva pode ser adotada por analogia
por um católico; no entanto, para nós Reformados, essa figura não
existe: não temos meca, nem basílica, nem catedral, nem bispo,
nem papa.142  Que Deus nos livre disso tudo!143  E nos tem livrado...
Retornemos a Calvino. Ele insistiu junto aos Conselhos para
melhorar as próprias condições do ensino, bem como os recursos das
escolas. Visto que o Estado estava empobrecido, apelou para doações
e legados.144  Sem dúvida, entre os reformadores, Calvino foi quem
mais amplamente compreendeu a abrangência das implicações do
evangelho nas diversas facetas da vida humana,145  entendendo que
“o evangelho não é uma doutrina de língua, senão de vida. Não
pode assimilar-se somente por meio da razão e da memória, senão
que chega a compreender-se de forma total quando ele possui toda
a alma, e penetra no mais íntimo recesso do coração”.146  Por isso,
ele exerceu poderosa influência sobre a Europa e Estados Unidos.
Schaff chega dizer que Calvino “de certo modo, pode ser considerado
o pai da Nova Inglaterra e da república americana”.147 

 142
“No Cristianismo evangélico não existe papa que possa falar ex catedra, e assim impor pronun-
ciamentos infalíveis aos fiéis” (DE WITT, John Richard. O que é a fé reformada? In: DE WITT,
John Richard; JOHNSON, Terry L.; PORTELA, F. Solano. O que é a Fé Reformada? São Paulo:
Editora Os Puritanos, 2001, p. 9).
 143
Barth combatendo a figura de Genebra como a Roma do Protestantismo, escreveu que era um
equívoco revestir “a Instituição cristã, as ordenanças eclesiásticas e a própria pessoa de Calvino
de uma autoridade profética e apostólica. [...] Primeiramente, o termo Roma protestante é uma
flor de retórica sentimental. A ‘Roma protestante’ nunca existiu – senão em caricaturas, bem-
intencionadas ou malévolas” (BARTH, Karl, em introdução à obra. Calvin, Textes Choisis par
Charles Gagnebin, p. 11).
 144
Conforme mencionamos, Calvino pessoalmente chegou a sair pedindo donativos de casa em
casa para a escola. Vd. BIÉLER, André, O pensamento econômico e social de Calvino, p. 192-193;
SCHAFF, Philip, History of the christian church, v. VIII, p. 804-805. Veja-se, também, LUZURIAGA,
L. História da educação e da pedagogia. 17ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987, p.
108-116; NUNES, Ruy A. C. História da educação no Renascimento. São Paulo: EPU/EDUSP, 1980,
p. 97-102; GILES, T. R. História da Educação. São Paulo: EPU., p. 119-128; FERREIRA, Wilson
C., Calvino: vida, influência e teologia, p. 193,196.
 145
Vd. BIÉLER, André, O pensamento econômico e social de Calvino, p. 28; FERREIRA, Wilson C.,
Calvino: vida, influência e teologia, p. 188-189.
 146
CALVIN, J. Golden booklet of the true christian life. 6ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book
House, 1977, p. 17. Ver também; CALVINO, J., As Institutas, (1541), IV.17.
 147
SCHAFF, P., The creeds of Christendom, v. I, p. 445.

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Departamento de Teologia Pastoral

Uma Filosofia Bíblica


de Ministério
Pilares inegociáveis do
ministério reformado

Rev. Gildásio Jesus Barbosa dos Reis

Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico


Presbiteriano Rev José Manoel da Conceição
Bacharel em Psicanálise Clínica
Licenciado em Filosofia Plena pelas Faculdades
Associadas Ipiranga
Mestrado em Teologia com área de concentração
em Educação Cristã pelo Centro de Pós-graduação
Andrew Jumper
Pastor da Igreja Presbiteriana de Osasco

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Uma Filosofia Bíblica


de Ministério
Pilares inegociáveis do
ministério reformado

Resumo
Diante de um cenário evangélico onde a prática pastoral é
pautada pelas novidades do momento, muitas vezes sem uma
reflexão bíblica, o autor deste artigo procura defender a ne-
cessidade de uma filosofia ministerial pautada nas Escrituras
Sagradas. Assim, expõe os fundamentos bíblicos e teológicos
que determinam uma prática pastoral reformada: uma correta
compreensão de Deus, do homem, da Palavra de Deus, da
igreja e da liderança eclesiástica.

Palavras-chave
Ministério pastoral; Liderança eclesiástica; Autoridade bíblica.

Abstract
Before an evangelical scenery where the pastoral practice is
ruled by the innovations of the moment, sometimes without a
biblical reflection, the author of this article defends the need
of a ministerial philosophy rooted in the Holy Scriptures.
Thereby, he explains the biblical and theological foundations
that establish a reformed pastoral practice: a correct unders-
tanding of God, of man, of the Word of God, of the church
and of the ecclesiastical leadership.

Keywords
Pastoral ministry; Ecclesiastical leadership; Biblical authority.

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Não lograremos progresso a menos que o Senhor faça próspera a


nossa obra, os nossos empenhos e a nossa perseverança, de modo
a confiarmos à sua graça a nós mesmos e a tudo o que fazemos –
João Calvino.

Precisamos nos determinar a permitir que nossas convicções sejam


moldadas pela imutável Palavra de Deus e não pelas mutáveis ten-
dências da cultura moderna – Thomas Ascol.

Se existe algo que a história nos ensina, este ensino é que os ataques
mais devastadores desfechados contra a fé sempre começaram com
erros sutis dentro da própria igreja – John F. MacArthur.

Se você não puder ver os resultados, enquanto estiver nesta terra,


lembre-se de que você é apenas responsável por seu labutar e não
pelo seu sucesso – C. H. Spurgeon.

Introdução
Conscientemente, ou não, todo pastor tem a sua filosofia de
ministério. Talvez não seja tão óbvia ou ainda não esteja claramente
articulada, mas ela está presente em sua maneira de exercer o seu
pastorado, determinando como suas ações são executadas.
Podemos pensar em algumas perguntas que mostram a neces-
sidade e os princípios por trás de uma filosofia ministerial: O que
nós, ministros, devemos fazer para ter um ministério eficaz? Quais
os princípios que devem dirigir o nosso ministério? Como deter-
minamos o que precisa ser feito? Nosso ministério é dirigido pelo
pragmatismo ou por princípios? Temos optado pela relevância em
detrimento da verdade? Temos trocado a fidelidade pelo sucesso?
A Escritura dita a prática do nosso ministério, ou não importa exa-
tamente o que ela diz sobre nossos métodos?

I. Definição de filosofia de ministério

Uma filosofia de ministério é um conjunto de princípios que


determina como desenvolvemos o nosso ministério. Trata-se de

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Uma Filosofia Bíblica de M i n i st é r i o | 127

uma série de princípios bíblicos, os quais nos guiam em nossas


escolhas e decisões. Em outras palavras, podemos dizer que uma
filosofia de ministério define o porquê de fazermos o que fazemos.
Uma filosofia de ministério claramente estabelecida serve para nos
influenciar em tudo aquilo que nos propomos a fazer. Ela nos dá
o tom do porquê fazer e como levar à execução nossos planos para a
vida da igreja. Podemos perceber pelo menos quatro benefícios em
se ter uma filosofia de ministério clara:

a) Ela proporciona unidade e direção: Tendo uma filosofia de


ministério bem articulada e estabelecida, conseguimos facilmente
caminhar objetiva e consistentemente em direção aos propósitos
pessoais, bem como os da igreja como um todo. Ela nos permite a
concentração em alvos definidos e o estabelecimento de objetivos bíblicos
para a vida da igreja (1Co 9.26).

b) Ela nos mantém fiéis às Escrituras (2Tm 3.16): A base para


toda a atividade da igreja precisa ser extraída da Palavra. Como
pastores, precisamos submeter cada decisão, cada aspecto do
nosso ministério, bem como os métodos pelos quais a igreja opera,
ao escrutínio da Escritura. O ministro que desconsidera o que
a Bíblia diz sobre seus vários assuntos, termina por sucumbir,
desviando-se de seu principal objetivo. Como diz o Salmo 11.3:
“Destruídos os fundamentos, que poderá fazer o justo?”

c) Ela nos ajuda a delinear as prioridades para o ministério:


“Frequentemente, problemas, programas e trabalhos que têm
pouca ou nenhuma relação com o propósito principal da igreja
consomem as energias desta e do pastor”.1  Uma filosofia de mi-
nistério nos ajuda a ser eficazes (fazer as coisas certas; isto é, fazer
aquilo que consideramos importante e prioritário) e também
eficientes (fazer certo as coisas, isto é, com a menor quantidade
de recursos possível). Ser produtivo é fazer certo (eficiência) as
coisas certas (eficácia).

 1
MONTOYA, Alex. Concepção bíblica do ministério pastoral. In: Redescobrindo o ministério pastoral.
Rio de Janeiro: CPAD, 1995. p.88.

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d) Ela nos ajuda na avaliação de nossas atividades ministeriais:


Tendo clara a nossa filosofia de ministério, ela nos servirá de pa-
râmetro ou guia para medir se estamos fazendo aquilo que Deus
quer que façamos. Podemos utilizar estes parâmetros e fazer um
diagnóstico da situação, identificando problemas e verificando
se os objetivos propostos estão ou não sendo alcançados. Assim,
é possível fazer modificações, adequar determinadas posturas,
e redimensionar os rumos do processo com o intuito de atingir
os objetivos propostos.

II. pressupostos teológicos fundamentais para uma


filosofia bíblica de ministério
Quais são as convicções bíblicas que devem determinar e contro-
lar o nosso ministério? Como podemos desenvolver uma filosofia
ministerial, sem que para isso tenhamos de comprometer nossa
teologia? Sem tentar diminuir a complexidade do tema, podemos
dizer que há pelo menos cinco pressupostos teológicos que são
inegociáveis numa filosofia ministerial dentro da visão reformada:

1. Uma visão correta de Deus


Uma visão biblicamente orientada acerca de Deus deve, obriga-
toriamente, nos conduzir a uma visão correta do nosso ministério.
Há muita confusão e muitos erros praticados em algumas igrejas,
devido à ausência ou deficiência do conhecimento do ser de Deus.
G. K. Chesterton observou que quando o ser humano deixa de crer
no verdadeiro Deus, conforme revelado na Escritura, não significa
que ele deixou de crer em algo, mas que ele agora crê em tudo ao
mesmo tempo.2  Como disse Michael Horton: “A melhor tática de
Satanás não são as suas heresias óbvias, mas a transformação gradual
do Deus bíblico em um ídolo de religião domesticada”.3 

 2
Citado por HORTON, Michael. A face de Deus: os perigos e as alegrias da intimidade espiritual.
São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999. p. xv.
 3
HORTON, Michael. Creio: redescobrindo o alicerce espiritual. São Paulo: Ed. Cultura Cristã,
2000. p. 25.

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Uma Filosofia Bíblica de M i n i st é r i o | 129

O Deus que encontramos na Bíblia é muito diferente do “deus”


que está sendo pregado em algumas igrejas evangélicas em nossos
dias. O conceito de deidade que predomina, mesmo entre aqueles
que dizem professar e defender as Escrituras, é uma grotesca imi-
tação da verdade. Não poucas vezes, os sermões têm apresentado
Deus como sendo um ser incapaz e impotente, e um argumento
para isso é que Deus não consegue impedir catástrofes naturais
(como as ondas gigantes do tsunami). Outras vezes, Deus é apre-
sentado como um servo que está ao nosso serviço, pronto a resolver
qualquer problema, bastando apenas uma oração mais poderosa
ou uma declaração positiva e cheia de fé, acompanhada de ordens
e confissões antecipadas de uma suposta e esperada vitória. Este
“deus”, fruto da mente popular, é um produto que nada tem a ver
com a verdade, mais servo do que Senhor, e que não gera temor e
respeito nas pessoas.
Uma filosofia ministerial bíblica considera atentamente a
auto-revelação que Deus faz nas Escrituras e procura conhecê-lo
como é de seu desejo. As Escrituras nos falam de sua natureza,
seus propósitos e suas atividades. Ali tomamos conhecimento dos
atributos pertencentes à natureza de Deus: auto-existente, auto-
suficiente, imutável, onisciente, onipotente. santo, bom, imanente
e transcendente.
Quando conhecemos corretamente o Deus revelado nas Escritu-
ras, somos bem orientados em nossos sermões, em nossas orações,
em nossa forma de culto e adoração, em nossos métodos evangelís-
ticos, em nossa conduta moral, profissional, familiar, etc.
Uma visão distorcida do ser de Deus acaba por levar-nos a dei-
dades da nossa própria imaginação. Tudo o que conhecemos sobre
Deus irá determinar a nossa prática ministerial – como pregamos, a
forma como oramos e a maneira como aconselhamos; como visita-
mos, administramos, ou planejamos os rumos da igreja. Tudo está
intimamente ligada à visão que temos de Deus.

2) Uma visão correta do homem


Os pressupostos que alguém adota sobre a natureza do homem,
sua queda, o propósito de sua criação, irão determinar suas muitas

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práticas ministeriais. Nossa compreensão é que a crença ou a teologia


molda nossa prática pastoral. Por exemplo: o ponto de vista que
alguém toma a respeito da salvação será determinado, em grande
escala, pelo conceito que essa pessoa tem a respeito do pecado e de
seus efeitos sobre a natureza humana. Precisamos ter convicções
bíblicas sobre o homem:

2.1. O homem é criatura e pessoa4 


As Escrituras nos ensinam que o homem é uma pessoa e uma
criatura. Como pessoa, o homem tem desejo e vontade para tomar
decisões, planejar, e estabelecer objetivos. Como ser criado, ele é
absolutamente dependente de Deus. Não pode fazer nada à parte
da vontade de Deus.5  Nossa correta compreensão do homem deve
manter estas duas verdades em equilíbrio.6  Qualquer concepção do
ser humano que não o vê como alguém que está relacionado com
Deus, totalmente dependente dele e também responsável perante
ele, irá nos conduzir a praticas ministeriais erradas.

2.2. O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus


O homem distingue-se das demais criaturas de Deus porque foi
criado de uma maneira singular. Apenas do homem é dito que
foi criado à imagem de Deus. Esta expressão descreve o homem
na totalidade de sua existência, ele é um ser que reflete e espelha
Deus. (Gn 1.26-28). O conceito de imagem de Deus é o coração
da antropologia cristã.7 

2.3. O homem, a queda e a imagem desfigurada


Como sabemos, o estado de integridade (“posso não pecar”) de
nossos primeiros pais não foi mantido até o fim. Veio a desobediên-
cia e consequentemente a queda. Nossos primeiros pais, criados

 4
A. Hoekema traz um capítulo que trata de maneira abundante este aspecto da natureza do homem
em HOEKEMA, Anthony. Criados à imagem de Deus. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999.
 5
HOEKEMA, op. cit., p.19.
 6
Ibidem, p. 19
 7
VAN Groningen, Gerard, Revelação messiânica no Velho Testamento. Campinas: Editora Luz para
o Caminho. 1995

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para refletir e representar Deus, não passaram no teste. Provados,


caíram e deformaram a imagem de Deus neles.8  Historicamente,
temos utilizado a terminologia “depravação total” para descrever
a condição de todo ser humano após a queda, querendo com isso
dizer que o homem é corrupto, pervertido e anti-Deus em todas
as suas faculdades (Gn 6.5; Jr 17.9; Rm 3.10-12). Este deve ser
um pressuposto teológico norteando nossas práticas no ministério.
Nossa soteriologia orienta nossa metodologia evangelística.

2.4. Cristo e a imagem renovada


O homem, antes criado para refletir Deus, agora após a queda,
precisa ter esta condição restaurada; restauração esta que se esten-
derá por todo o processo da redenção (santificação). Esta renovação
da imagem original de Deus no homem significa que o homem
é capacitado a voltar-se para Deus, a voltar-se para o próximo e
também a voltar-se para a criação para governá-la. Esta restauração
da imagem só é possível através de Cristo, porque ele é a imagem
perfeita de Deus, e o pecador precisa agora tornar-se mais seme-
lhante a Cristo. Lemos em Colossences 1.15 que “ele é a imagem do
Deus invisível” e em Romanos 8.29 que Deus nos predestinou para
sermos “conformes à imagem de seu Filho” (cf. 1Jo 3.2; 2Co 3.18).

2.5. A imagem aperfeiçoada


A completação da perfeição dos cristãos será a participação
da final glorificação de Cristo Jesus. Não somos apenas herdeiros
de Deus, mas também co-herdeiros com Cristo, com ele sofre-
mos para que também com ele sejamos glorificados (Rm 8.17).
Não podemos pensar em Cristo separado de seu povo, nem seu
povo separado dele. Assim será na vida futura: a glorificação
dos cristãos ocorrerá junto com a glorificação do Senhor Jesus.
É exatamente isto que Paulo nos ensina em Colossences 3.4:
“Quando Cristo que é a nossa vida, se manifestar, então vós

 8
Para Calvino, a imagem de Deus não foi totalmente aniquilada com a queda, mas foi terrivelmente
deformada; ele descreve esta imagem depois da queda como “uma imagem deformada, doentia e
desfigurada” (Cf. Institutas, I, XV, 3).

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também sereis manifestados com ele, em glória”. A glorificação


é voltar à perfeição na qual fomos criados por Deus, é voltar à imagem de
Deus. Este é o propósito último de nossa redenção. Esta perfeição
da imagem será o auge, a consumação do plano redentivo de Deus
para o seu povo.

3. Uma visão correta da Escritura


Uma filosofia bíblica de ministério, dentro de uma perspectiva
reformada, precisa ser consistente na maneira de encarar sua relação
com a Escritura. A mensagem cristã vem a nós através da Bíblia;
portanto, nossa visão sobre a Bíblia precisa estar correta.
Não é novidade que tem crescido muito uma aversão ao cris-
tianismo doutrinário, bem como uma intolerância em relação à
doutrina e à confessionalidade. Muitos líderes evangélicos acolhem
práticas ministeriais sem perceber que tais práticas não encontram
autorização na Escritura.9  Nosso pressuposto é que o ministério
reformado fundamenta-se na revelação. A doutrina protestante de
Sola Scriptura (somente a Escritura) afirma que Deus tem um plano
eterno que só pode ser corretamente compreendido através de sua
revelação especial. Todos os outros meios de que o homem lançar
mão o levarão ao misticismo e às falsas religiões. Por outro lado,
o que vai determinar se nosso ministério está sendo fiel é a nossa
submissão à Escritura. Pelo menos quatro convicções acerca das
Escrituras devem nortear nossas práticas:

3.1. A convicção de que a Bíblia é inspirada por Deus


Sobre o fundamento da divina inspiração da Bíblia permanece ou
cai o edifício inteiro da verdade cristã. Será inútil discutir qualquer
doutrina ensinada pela Escritura até que se esteja preparado para
reconhecer, sem reservas, que ela é divinamente inspirada. Tudo o
que chamamos de Escritura foi inspirado por Deus. Tudo da Escri-
tura procede de Deus (2Tm 3.16; 2Pe 1.20,21).

 9
Mohler, R. Albert. Lutar pela verdade numa era de anti-verdade. In: BOICE, J. M. et al.. Reforma
hoje. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999. p. 60.

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Uma Filosofia Bíblica de M i n i st é r i o | 133

3.2. A convicção de que a Bíblia é inerrante


A infalibilidade da Escritura acompanha necessariamente a
inspiração. A Bíblia é fonte segura e infalível de qualquer infor-
mação e assunto tratado por ela. Não contém erros; é correta em
tudo o que declara. Visto que Deus não erra, e sendo a Bíblia
a sua Palavra, segue-se que tudo o que ela diz está correto (Jo
10.35; Lc 16.17).

3.3. A convicção de que a Bíblia é autoritativa


A autoridade da Escritura é conseqüência natural de sua inspi-
ração e infalibilidade. Conforme declarada na Confissão de Fé de
Westminster (4): “A autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual
deve ser crida e obedecida, depende [...] somente de Deus (que é a
própria verdade) que é o seu autor; tem portanto, de ser recebida,
porque é a Palavra de Deus”

3.4. A convicção de que a Bíblia é suficiente


Tudo o que o Senhor desejou revelar à sua igreja em matéria de
fé e pratica está registrado nas paginas da Escritura (Jo 20.30-1;
2Tm 3.16,17; Sl 119.105; 2Ts 2.2; 1Co 2.9; Dt 12.32).
A Igreja Reformada, através de seus símbolos de fé, também deu
grande ênfase ao relacionamento cuidadoso do ministério com as
Escrituras. Confira o que responde o Catecismo Maior:

Aqueles que são chamados a trabalhar no ministério da Palavra de-


vem pregar a sã doutrina, diligentemente, em tempo e fora de tempo,
claramente, não em palavras persuasivas de humana sabedoria, mas
em demonstração do Espírito de Deus; sabiamente, adaptando-se às
necessidades e às capacidades dos ouvintes; zelosamente, com amor
fervoroso para com Deus e para com as almas de seu povo; since-
ramente, tendo por alvo a glória de Deus e procurando converter,
edificar e salvar as almas.10 

 10
Catecismo maior de Westminster, na resposta à pergunta 159: “Como a Palavra de Deus deve ser
pregada por aqueles que para isto são chamados?”

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134 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

MacArthur afirma que “a perda de uma fundamentação bíblica


é o motivo primário do declínio da pregação na igreja contemporâ-
nea”.11  E Kenneth Macrae, em seu artigo “A pregação e o perigo do
comprometimento”, pondera o seguinte:

Não deveríamos tentar aprimorar o evangelho. Não podemos


melhorá-lo; é presunção tentar melhorar aquilo que Deus, em sua
perfeição nos outorgou. Se começarmos a brincar com o evangelho,
diminuindo aqui e acrescentando ali, para torná-lo mais aceitável
aos nossos ouvintes, não podemos esperar que Deus abençõe aquilo
que ele não outorgou. Temos de pregar o evangelho assim como ele
se encontra na Palavra de Deus; e, quando nos propomos a expor
um texto, precisamos declarar exatamente o que o texto afirma.12 

A prática ministerial, portanto, na perspectiva reformada, crê que


Deus continua governando a igreja através da Bíblia. Assim, nossa
atitude para com ela reflete nossa atitude para com Deus. Ninguém
que afirma amar a Deus poderá ter uma atitude para com a Palavra
de maneira que desonre a Deus. Quem reivindica amá-lo deve dar
provas desse amor demonstrando zelo para com a Escritura Sagrada:
“Oh! quanto amo a tua lei! Ela é a minha meditação o dia todo”.
“Oh! quão doces são as tuas palavras ao meu paladar! Mais doces
do que o mel à minha boca” (Sl 119.97,103).

4. Uma visão correta da igreja


Qual deve ser a tarefa da igreja? Para que ela existe? Uma
filosofia bíblica de ministério, dentro da perspectiva reformada,
precisa estar associada a uma visão correta da natureza da igreja.
Isto porque, para se definir o papel do ministro, é preciso definir
o papel da igreja.

 11
MacArthur, John. Com vergonha do evangelho. São José dos Campos: Editora Fiel, 1997. p. 283.
 12
MACRAE, Kenneth A. A pregação e o perigo do comprometimento. Revista fé para hoje, São José
dos Campos, n. 7, p. 4, 2000.

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Uma Filosofia Bíblica de M i n i st é r i o | 135

Quem quer que tente formular uma filosofia bíblica do ministério


e desenvolver uma estratégia e uma metodologia contemporânea
firmemente alicerçada em fundamentos bíblicos, deve fazer algumas
perguntas bem fundamentais e a elas responder: Por que a igreja
existe? Qual é seu propósito principal? Por que, antes de qualquer
coisa, Deus a deixou no mundo?13 

Considerando que a igreja, como povo de Deus, encontra sua


razão de ser não em si mesma, mas em Deus, podemos relacionar
algumas maneiras como a igreja cumpre a sua função:

4.1. A igreja existe para adorar e glorificar Deus (1Co 10.31; Hb


13.15; Cl 3.16; Ef 1.12; 5.16-19)
Glorificar a Deus não significa torná-lo mais glorioso, pois Deus
tem glória intrínseca à sua própria natureza (cf. Is 6.3). Sua glória
não é algo que lhe foi dada, mas lhe pertence em virtude daquilo
que ele é. Mesmo que ninguém viesse a dar glória a ele, ainda assim
ele continuaria sendo glorioso, pois tal glória é uma combinação de
todos os seus atributos.
Calvino disse que a “glória de Deus é quando sabemos o que
ele é”.14  Isto significa dizer que reconhecemos quem é Deus e,
assim, o valorizamos acima de todas as outras coisas (1Co 10.31).
Novamente, Calvino é enfático: “Não busquemos nossos próprios
interesses, mas antes aquilo que compraz ao Senhor e contribui
para promover sua gloria”.15 
Como podemos glorificar a Deus? 1) Glorificamos a Deus crendo
nele (Fl 2.9-11). 2) Glorificamos a Deus colocando-o em primeiro
lugar em nossa vida (1Co 10.31). 3) Glorificamos a Deus fazendo
a sua vontade (Jo 12.27,28; Mt 26.39,42; Mc 14.36; Lc 22.42).

 13
GETZ, Gene A. Igreja: forma e essência. São Paulo: Editora Vida Nova, 1994. p. 53. Embora
Getz esteja equivocado ao definir a principal razão da existência da igreja, seguindo princípios
pragmáticos do movimento de crescimento de igrejas, ele corretamente pontua que não é possível
delinear uma filosofia de ministério se ignorarmos o papel da igreja do Senhor.
 14
Citado por VAN HORN, Leonard T. Estudos no Breve catecismo de Westminster. São Paulo: Editora
Os Puritanos, 2000. p. 7.
 15
Calvino, João. A verdadeira vida cristã. 4. ed. São Paulo: Editora Novo Século, 2008. p. 31.

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136 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

4) Glorificamos a Deus quando confiamos e descansamos nele (Fl


4.11,12; 2Co 1.30). 5) Glorificamos a Deus quando testemunhamos
dele (2Ts 3.1; At 13.48).

4.2. A igreja é uma comunidade que existe para anunciar entre as nações
a glória de Deus (Mt 28.19-20; Tt 2.11-15)
O salmista diz: “Cantai ao Senhor, bendizei o seu nome; pro-
clamai a sua salvação, dia após dia. Anunciai entre as nações a sua
glória, entre todos os povos, as suas maravilhas. Porque grande é
o Senhor e mui digno de ser louvado, temível mais que todos os
deuses (Sl 96.2-4). O envolvimento da igreja na obra missionária não
tem como objetivo alcançar o maior número de pessoas possível. A
motivação não pode ser as pessoas, mas Deus.16  Como bem afirma
John Piper, nosso alvo ao querer fazer a obra missionária deve ser o
de levar as nações a regozijarem-se em Deus e glorificá-lo acima de
tudo. O alvo da obra missionária é a alegria dos povos na grandeza
de Deus (Sl 97.1; 67.3-4; cf. 47.1; 66.1; 72.11,17; 86.9; 102.15;
117.1; Is 25.6-9; 52.15; 56.7; 66.18-19). O grande objetivo de Deus
em toda a história é manter e manifestar a glória do seu nome para
o contentamento do seu povo de todas as nações.17 

4.3. A igreja existe como um centro de treinamento por meio do qual


as pessoas possam crescer e aplicar seus dons na edificação de toda a igreja
(1Co 12 – 14; Rm 12; Ef 4)
De acordo com as Escrituras, um propósito da igreja deve ser a
edificação de seus membros. Em Colossences 1.28 Paulo afirma que
seu objetivo era o de “apresentar todo homem perfeito [maduro] em
Cristo”. E escrevendo aos efésios, ele diz que Deus havia concedido
dons à igreja “com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o
desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, até
que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento
do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da
plenitude de Cristo (Ef 4.12-13).

 16
Piper, John. Alegrem-se os povos: a supremacia de Deus em missões. São Paulo: Editora Cultura
Cristã, 2001. p. 42,43.
 17
Ibidem, p. 36,37

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Esta foi uma das estratégias de Paulo (1Co 12-14). Ele preparava
os membros para desenvolverem seus dons: pregar, ensinar, lidar
com os pobres, administrar os problemas que surgiam. É preciso
descobrir na igreja pessoas que tenham potencial, e treiná-las para
áreas específicas. É responsabilidade do pastor, equipar os santos
para o ministério (Ef 4.12-16).

5. Uma visão correta da liderança da Igreja


Uma quinta convicção que precisamos ter é quanto à função ou
natureza da liderança. Penso já ser de nosso conhecimento que mui-
tos pastores em nossos dias imaginam-se a si mesmos como homens
de negócios; profissionais da mídia evangélica, ou promotores de
eventos eclesiásticos. Ricardo Barbosa, ao fazer algumas considera-
ções sobre o ministério do pastor no mundo moderno, chama-nos a
atenção para uma mudança sutil quanto à natureza do ministério:

A igreja moderna transformou-se num negócio, numa empresa, e o


pastor, num executivo que luta para manter-se no mercado. Esta é,
talvez, uma das mudanças mais significativas e sérias que estamos
atravessando. Somos agora executivos eclesiásticos, circulando
com agendas eletrônicas, telefones celulares, secretárias, auxiliares
e assistentes, para atender a um volume cada vez maior de reuni-
ões, entrevistas, conferências, aconselhamentos, etc. Ser ocupado
tornou-se símbolo de status e sucesso tanto no mundo secular como
no religioso. Ter uma agenda repleta de compromissos é sinal de
competência; afinal, ninguém considera competente um médico
cuja sala de espera do consultório encontra-se absolutamente vazia,
e ele, confortavelmente sentado em sua cadeira lendo uma boa re-
vista. Para ser competente, precisa estar com a agenda dos próximos
meses completamente cheia. Este sim é um bom profissional. Nesta
busca por sucesso e status não temos mais tempo para construirmos
amizades verdadeiras e profundas, nem tempo para caminharmos
com nossos amigos no caminho do discipulado.18 

 18
BARBOSA, Ricardo. Em artigo intitulado “Da Profissão à Vocação”- disponível em: http://www.
elnet.com.br/canais/igreja/miolo2.php?art=26174. Acesso em 08/03/2006.

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138 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

Entendo que esta mudança deve-se a uma filosofia contempo-


rânea de ministério pastoral orientada por resultados (assimilando
o estilo empresarial), negando assim a visão bíblica da nossa tarefa
como pastores. Estes pastores-empresários estão distorcendo a vo-
cação, deixando de pastorear pessoas e se tornando administradores
e profissionais de igrejas.
Quando olhamos para o ministério de Jesus, verificamos que ele
passou mais tempo cuidando de pessoas e conversando com elas
do que em qualquer outra coisa. Jesus não era inclinado aos pro-
gramas, mas às pessoas. Diferentemente de alguns líderes que são
movidos pela produção. Para uma filosofia de ministério saudável,
precisamos entender o conceito bíblico de liderança. Eu a defino
da seguinte forma:

Liderança (espiritual) é a capacidade dada por Deus para que pos-


samos, através dos nossos dons e do desenvolvimento dos mesmos,
ajudar outros a cumprirem seu papel dentro do reino de Deus, de tal
maneira que sejam capazes de atingir o propósito para o qual foram
criados, cumprindo assim a vontade de Deus, em Cristo, conforme
prescrita nas Sagradas Escrituras.19 

Ao desdobrarmos esta definição, podemos ver pelo menos cin-


co aspectos essenciais do conceito de líder: 1) A liderança é uma
iniciativa divina; 2) Já nascemos com algumas habilidades, mas
não podemos abdicar de treinamento; 3) Nossa função é ajudar
a desenvolver e aperfeiçoar os crentes para cumprirem a vontade
de Deus; 4) Esta liderança deve ser cristocêntrica, 5) O padrão é a
Sagrada Escritura e não a criatividade do líder.

5.1. A Liderança é uma iniciativa divina


O líder já nasce feito ou se torna líder? Em outras palavras,
liderança é inata ou adquirida? MacArthur, fazendo uma análise
da liderança dos 12 apóstolos, deixa claro o ensino bíblico de que

 19
REIS, Gildásio Jesus Barbosa. Apostila de liderança cristã (material utilizado no Seminário Pres-
biteriano Rev. José Manoel da Conceição), 2006.

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a liderança é uma capacitação dada por Deus. Diz ele: “O que


qualificava esses homens para serem líderes? Obviamente não era
qualquer aptidão intrínseca ou talento patente neles próprios…
não foi por terem talentos extraordinários, aptidões intelectuais
singulares, poderosa influência política ou uma posição social
especial”.20  Ele afirma que ainda que não haja ninguém que seja
naturalmente qualificado, é o próprio Deus quem deseja salvar
pecadores, santificá-lo e então transformá-lo de seres incapazes em
instrumentos úteis a ele.21 

5.2. O líder já nasce com algumas habilidades, mas não pode abdicar
de treinamento.
Ao analisar a liderança do apóstolo Pedro, vemos um homem que
possuía alguns dons para exercer a liderança, mas isso não significa
dizer que Pedro pudesse abdicar de treinamento específico a fim de
ser moldado e assim melhorar sua capacidade de liderança.22 

5.3. A função do líder é ajudar a desenvolver e aperfeiçoar os crentes


para cumprirem a vontade de Deus
Encontramos em toda a Escritura esta tarefa como sendo essen-
cial à uma filosofia bíblica de ministério, mas é especialmente em 2
Timóteo 2.2 que encontramos este princípio claramente expresso:
“E o que de minha parte ouviste através de muitas testemunhas, isso
mesmo transmite a homens fiéis e também idôneos para instruir a
outros”. Jay Adams, ao comentar esta passagem da Escritura, diz:
“Os homens que se qualificam para a obra do ministério são aqueles
que conseguem manter a tocha do evangelho bem acessa, de modo
que possam passá-la (inalterada) aos que vêm depois.” Paulo tem
em mente os homens que “têm (de Deus) o que é necessário para
fazer a obra ministerial. São homens que aprenderam a empregar
seus dons habilmente na obra do pastorado”.23 

 20
MACARTHUR, John. Doze homens comuns. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004. p. 24-26.
 21
Ibidem, p.26.
 22
Ibidem, p.50.
 23
ADAMS, Jay. Shepherding God’s flock. Grand Rapids: Zondervan, 1975. p. 16.

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140 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

5.4. A liderança cristã deve ser cristocêntrica


O modelo supremo e perfeito do exercício de liderança é no-
toriamente visto na pessoa de Jesus. Não é tarefa nada fácil tecer
comentários a respeito de sua postura frente aos liderados. Ele é
incomparável! Ele desnuda por completo a nossa vulnerável forma de
liderar. Uma liderança cristocêntrica procura imitar Jesus. Não vive
para si mesmo, mas para a glória do Mestre. “Aqueles que lideram
o povo de Deus têm de ser, antes de tudo, exemplos de sacrifício,
devoção, submissão e humildade”.24  Um servo que serve bem não
se preocupa com sua fama ou bem-estar, conquanto possa realizar
os desejos de seu Senhor”.25 

5.5. O padrão é a Sagrada Escritura e não a criatividade do líder


Um pouco acima já vimos sobre este aspecto da liderança, ao
dizer que o líder cristão precisa ter uma visão correta da Escritura.
Não obstante, insistimos em que o caminho para honrar a Deus em
nossa liderança não é a tradição denominacional, nem a sabedoria
ou criatividade pessoal do homem, nem a conveniência, mas a con-
cordância com os princípios ensinados nas Escrituras.
Paulo encarrega o jovem Timóteo da responsabilidade de instruir
a igreja quanto a certos líderes que estavam pregando algumas he-
resias e prejudicando a igreja (1Tm 1.18-20). Dentre estes líderes
estavam Himeneu e Alexandre,26  os quais se faziam de mestres da
lei, mas sequer sabiam as coisas que ensinavam (cf. 1Tm 1.7). Vi-
sando orientar o jovem ministro a preparar a igreja para enfrentar os
falsos mestres, Paulo diz: “Mantêm o modelo das sãs palavras que
de mim tens ouvido, na fé e no amor que há em Cristo Jesus” (2Tm
1.13). O termo grego aqui para “sãs” é u`giainontwn (hugiainonton,
da mesma palavra de onde temos “higiene” em português). Daí o
significado de“sadio”, em contraste com a gaggraina27  (gangraina,
de onde temos “gangrena”) que aparece em 2 Timóteo 2.17 tradu-

 24
MACARTHUR, John. Pastores ou potentados? Revista fé para hoje, São José dos Campos, p. 7.
 25
SHEDD, Russel. O líder que Deus usa. São Paulo: Edições Vida Nova, 2000. p. 51.
 26
O nome Himeneu deriva-se de Hímen, o deus do matrimônio; Alexandre significa “defensor dos
homens”.
 27
Este termo grego dá origem a nossa palavra gangrena, que é um termo médico para a necrose (morte)
de tecidos causada por perda de suprimento de sangue, seguida de decomposição e apodrecimento.

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Uma Filosofia Bíblica de M i n i st é r i o | 141

zida para o português por câncer.28  Aqui, Paulo tem em mente o


erro devastador dos falsos mestres, pois a “linguagem deles corrói
como um câncer”, como uma gangrena.
William Hendriksen, comentando 2 Timóteo 2.17, fala do pre-
juízo provocado pelos falsos mestres: O câncer não somente devora
os tecidos sadios, mas também agrava a condição do paciente. De
forma semelhante, a heresia que recebe publicidade, quando se lhe
empresta demasiada atenção, se desenvolverá tanto em extensão
quanto em intensidade. Ao afetar de forma adversa uma proporção
crescente da membresia, tentará destruir o organismo da igreja.29 
Sabendo da erosão que as heresias podem causar na vida da igreja,
e da disposição natural dos homens de resistirem à sã doutrina (cf.
2Tm 4.1-4), e da sua inclinação à rebeldia e à apostasia, Paulo diz
que é responsabilidade daqueles que estão em posição de liderança
guardar o bom depósito, ou seja, as Escrituras:30  “Mantém o pa-
drão das sãs palavras que de mim ouviste com fé e com o amor que
está em Cristo Jesus. Guarda o bom depósito, mediante o Espírito
Santo” (2Tm 1.13,14).

Conclusão
Chegamos ao fim de nossa reflexão, e, sem pretender que o
assunto tenha recebido um tratamento completo, esperamos ter
apresentado satisfatoriamente a idéia de que estes cinco pressupostos
são indispensáveis para o desenvolvimento de um ministério que
seja fiel e que glorifique a Deus.

 28
Cf. Robertson, Archibald Thomas. Word pictures in the New Testament. Grand Rapids: Baker
Book House. 1931. p. 620.
 29
Hendriksen, Willliam. 1 Timóteo, 2 Timóteo e Tito. São Paulo: Ed. Cultura Cristã, 2001. p. 325.
(Comentário do Novo Testamento).
 30
Cf. FEE, Gordon. 1 e 2 Timóteo, Tito. Deerfield: Editora Vida, 1994. p. 247 (Novo comentário
bíblico contemporâneo): “Desde que depósito é descrito como bom, é certo que se refere às sãs
palavras do evangelho”.

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Bibliografia recomendada

MacArthur, John. Redescobrindo o ministério pastoral. Rio de


Janeiro: CPAD, 1998.
_______. Doze homens comuns. São Paulo: Editora Cultura Cristã.
2004.
_______. Com vergonha do evangelho. São José dos Campos: Editora
Fiel. 1997.
HORTON, Michael. A face de Deus: os perigos e as alegrias da in-
timidade espiritual. São Paulo: Editora Cultura Cristã. 1999.
_______. Creio: redescobrindo o alicerce espiritual. São Paulo: Editora
Cultura Cristã, 2000.
HOEKEMA, Anthony. Criados à imagem de Deus. São Paulo: Editora
Cultura Cristã, 1999.
VAN Groningen, Gerard. Revelação messiânica no Velho Testamento.
Campinas: Editora Luz para o Caminho, 1995.
Mohler, R. Albert. Reforma hoje. São Paulo: Editora Cultura
Cristã, 1999.
Piper, John. Alegrem-se os povos: a supremacia de Deus em missões.
São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001.
SHEDD, Russel. O líder que Deus usa. São Paulo: Edições Vida
Nova, 2000.
Packer, J. I. Entre os gigantes de Deus: uma visão puritana da vida
cristã. São José dos Campos: Editora Fiel, 1996.
Peterson, Eugene. Um pastor segundo o coração de Deus. Rio de
Janeiro: Editora Textus, 2000.
Stowell, Joseph M. Pastoreando a igreja. São Paulo: Editora Vida,
2000.
CHAPELL, Bryan. Pregação cristocêntrica. São Paulo: Editora Cultura
Cristã, 2002.

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| 129

Resenhas
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resenha

Conselheiro capaz

Fernando Jorge Maia Abraão

Cirurgião-Dentista pela Faculdade de Odontologia da


Universidade de São Paulo (FOUSP)
Especialista em Cirurgia e TraumatologiaBuco-Maxilo-
Faciais (CTBMF) pelo Colégio Brasileiro de CTBMF
Pós-Graduado em Anatomia Cirúrgica da Face Humana
pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade
de São Paulo (ICB-USP)
Mestre em Deontologia, com atenção à Bioética,
pela FOUSP
Mestrando em Teologia Filosófica pelo Centro
Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da
Ciência e Ciências da Vida
do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP
Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico
Presbiteriano ‘Rev. José Manoel da Conceição’

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Resenha | 147

ADAMS, Jay E. Conselheiro Capaz. São Paulo: Editora Fiel Ltda.,


1977, 267 p.

Publicação antiga, surgiu no mercado norte-americano em 1970


com o título Competent to Counsel, pela Presbyterian and Reformed
Publishing Company. Para o português, verteu o Rev. Odayr Olivetti,
com publicação em 1977 pela editora Fiel. São passados, portanto,
30 anos desde o primeiro acesso do público brasileiro aos trabalhos
do Rev. Jay E. Adams1  e esta breve resenha pretende, mui simples-
mente, celebrar tal fato.
Conforme David Powlison,2  Jay E. Adams nasceu em 1929 em
Baltimore, sendo o único filho numa humilde família. Creu em Cris-
to ainda na high school,3  e passou a dedicar-se ao preparo teológico e
ministerial. Graduado em Divindade pelo Reformed Episcopal Semi-
nary e em Artes Clássicas pela Johns Hopkins University em 1952, foi
ordenado ao ministério no mesmo ano. Pós-graduou-se em Teologia
(mestrado) pela Temple University (1958) e em Oratória (PhD) pela
University of Missouri (1969).
Enfrentar os problemas das pessoas às quais pastoreava despertou
nele o desejo de obter maior preparo para aconselhá-las. Confor-
me seu próprio relato na Introdução da obra aqui resenhada, sua
busca causou-lhe desilusão. As publicações que leu ou valorizavam
“os métodos não diretivos de Rogers ou advogavam os princípios
freudianos” (p. 9). Sua prática inicial tornou-se frustrante e, preten-
dendo o melhor para suas ovelhas, Adams, como muitos pastores
contemporâneos, acabou por encaminhar as pessoas com proble-
mas mais graves para psiquiatras e instituições especializadas em
doentes mentais.

 1
A Editora Fiel Ltda. publicou em 1982, com a tradução de João M. Bentes, O Manual do Conse-
lheiro Cristão, dando continuidade à difusão do aconselhamento noutético aos leitores de língua
portuguesa.
 2
Powlison, David Biblical Counseling in the Twentieth Century. In: MacArthur, John & Mack, Wayne
(eds.) Introduction to Biblical Counseling. United States of America: Word Publishing, 1994,
p.44-60. Obra traduzida e publicada em português (Cf. Canelhas, George A. Resenha. In: Teologia
para a Vida, vol. 1, no 1, 2005, p.131.).
 3
Em nossos dias, o equivalente ao nível médio de ensino.

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Gradualmente, ele foi notando que quanto mais diretivamente


aplicava as exortações bíblicas, mais êxito alcançava no auxílio a
pessoas com problemas, os mais complicados.

Como em muitíssimos casos isso funcionava bem para mim, nas


consultas comecei a sugerir a outros que fizessem o mesmo, e vi
algumas pessoas receberem ajuda ainda maior. Mas, tendo em vista
que estes e outros fins e métodos começaram a surgir como por acaso,
eu continuava sendo um conselheiro assaz confuso4 .

Quando foi convidado para ensinar Teologia Prática, especial-


mente Poimênica, no Westminster Theological Seminary, Adams passou
a estudar exegeticamente todas as passagens que considerava úteis
para apoiar suas aulas. Ficou abismado com a riqueza da Escritura
a respeito do assunto, questionando-se se aquilo que, ainda hoje, se
denomina como doença mental não seria o que a Bíblia denomina de
pecado. Ao invés de atribuir a causa dos problemas de uma pessoa
a outra que lhe traumatizou, a Bíblia atribui o pecado à pecamino-
sidade humana, fruto da “depravação da natureza decaída” (p. 12).
Motivado por algumas leituras especializadas e estágios clínicos,
mesmo entre incrédulos (como O. Hobart Mowrer), e criticado
por uma miríade de pesquisadores e praticantes da psicanálise e
psiquiatria, inclusive cristãos, Adams desenvolveu seu método, a
respeito do qual trata sua obra.
Sua base não são “descobertas científicas. Meu método”, diz ele,
“tem base em pressupostos. Aceito francamente a Bíblia inerrante
como o padrão de toda fé e prática. Portanto, as Escrituras constituem
a base, e contém os critérios segundo os quais procurei emitir todo
juízo” (p. 18). Noutro trecho, diz: “Jesus Cristo está no centro de todo
genuíno aconselhamento cristão. Qualquer forma de aconselhamento
que remova a Cristo dessa posição de centralidade deixa de ser cristã
na proporção em que o faça” (p. 55).
Definindo confrontação noutética, o autor enumera três elementos
básicos: (1) Há uma condição no consultante que deve ser trans-

4
Adams, p.11.

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Resenha | 149

formada por Deus. “O propósito básico da confrontação noutética


[é] efetuar mudança de conduta e de personalidade” (p.58). (2) Con-
frontação verbal da pessoa. O conselheiro cristão, i.e., noutético,
jamais pergunta por que ou para quê algo aconteceu, mas questiona
o que foi feito pelo aconselhando. Afinal, “a razão pela qual as pes-
soas se envolvem em problemas em suas relações com Deus e com
o próximo está em sua natureza pecaminosa. Os seres humanos já
nascem pecadores” (p. 61). (3) “A correção verbal visa beneficiar
o interessado” (p. 62). Este é o terceiro elemento, o bem e a cura
do pecador, deve ser ressaltado. Não deve haver qualquer desejo de
humilhar ou desqualificar o aconselhando. Seus pecados devem ser
evidenciados para que sejam confessados em arrependimento pela
mediação de Cristo, o único remédio para a doença da existência
humana.
No desenvolvimento da obra, o autor parece recepcionar, com
amplas restrições, a psicologia. Resiste formalmente, por outro lado,
à psiquiatria (“a psiquiatria, essa filha ilegítima da psicologia que
historicamente fez as mais grandiosas autopromoções, está meti-
da em sérios problemas”, p. 20). Seu desenvolvimento se dá com
citações de procedimentos e críticas à psicanálise e à psiquiatria,
atribuindo a ambas a carência de fundamentação científica e influ-
ências humanistas (naturalistas e antropocêntricas) em sua filosofia
(p. 18). Freud, Rogers, May, e mesmo Mowrer, entre outros citados,
são rebatidos e negados enfaticamente (ex.: “a escola de Rogers deve
ser repudiada in toto”, p. 108). Em suma, “a tese deste livro é que
conselheiros cristãos treinados nas Escrituras são competentes para
aconselhar – mais competentes do que os psiquiatras e qualquer
outra pessoa” (p. 35).
Por outro lado, no capítulo III (Que há de errado com os doentes men-
tais?), no ponto denominado de “Adrenocromo ou Esquizofrenia?”
(p. 51ss), o autor faz referência às pesquisas de uma dupla, Hoffer e
Osmond, que afirma certos desequilíbrios fisiológicos (bioquímicos)
como causadores de algumas manifestações de alteração mental
tratáveis por medicação (niacinamida). Sua conclusão expõe humil-
dade e lucidez ao mesmo tempo em que convicção: “Pode ser que
haja várias coisas erradas com os [assim chamados] ‘mentalmente

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enfermos’ [...], mas a causa que deve ser excluída, na maior parte
dos casos, é doença mental” (p. 54).
Assim, Adams admite doenças físicas como causadoras de ma-
les psicológicos, mas isso deve ser verificado exaustivamente caso
a caso, pois toda doença tem como causa última o pecado, seja o
de Adão, seja o do aconselhado. Cabe identificar isso, confrontar o
aconselhado com sua real condição e auxiliá-lo em suas atitudes de
arrependimento e mudança de conduta, biblicamente orientados.
Em última instância, embora possam contribuir com seus dados
verdadeiramente científicos, nem a psicologia, nem a psiquiatria
escapam às críticas de Adams.
O aconselhamento noutético, em busca da glória de Deus,
dedica-se a promover a disciplina do aconselhado sem subterfúgios
ou transferências de responsabilidades. Faz isso pela intensa atenção
que dedica aos seus aconselhandos, ouvindo-os, valorizando-os sem
bajulações e confrontando-os com a realidade de seus pensamentos
mais profundos, originários de suas ações e verdadeiro foco da re-
generação em Cristo. Uma nova criatura será diferente do normal
e corrupto ser humano e, conseqüentemente, mais santo e seme-
lhante ao Senhor. Não há meio natural de promover isso. Somente
pela Palavra e no poder soberano de Deus isto terá lugar. Assim,
o aconselhador noutético é, nada mais, que um evangelista e um
discipulador, um pastor (p. 76) proclamando a verdade eterna a um
público reservado e carente da disciplina do Senhor.
Isso, e mais, com detalhes e argumentos exegéticos pertinentes
e enriquecedores, é o que se encontra no clássico Conselheiro Capaz,
leitura necessária não somente aos ministros e conselheiros formais,
mas a cada cristão.

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| 139

Artigos e
Sermões
dos alunos
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| 153

artigo

O Compromisso Social
e a Palavra de Deus

Lic. César Augusto Paiva

Bacharel em Direito pela Universidade São Francisco

Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano Rev.


José Manoel da Conceição

Licenciado pelo Presbitério Centro Norte Paulistano - SPN

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O Compromisso Social
e a Palavra de Deus

Resumo
Neste artigo, o autor pretende demonstrar que a responsa-
bilidade social é um mandamento do Senhor, claramente
ensinado nas Escrituras Sagradas, tanto no Antigo quanto no
Novo Testamentos. E que a desobediência à Palavra de Deus
neste aspecto não fica sem conseqüências para a igreja. Assim,
conclui pela necessidade de um compromisso social da igreja
brasileira, praticado de acordo com o mandamento divino.

Palavras-chave
Compromisso Social; Ordenanças Divinas; Eclesiologia.

Abstract
In this article, the author intends to prove that the social
responsibility is a commandment of the Lord, clearly taught
in the Holy Scriptures, so much in the Old as in the New
Testament. And that the disobedience to the Word of God in
this aspect is not without consequences to the church. Like
this, it concludes for the need of a social commitment of
the Brazilian church, practiced in agreement with the divine
commandment.

Keywords
Social commitment; Divine ordinances; Ecclesiology.

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Introdução
O presente trabalho visa investigar a base escriturística para o
compromisso social da igreja. Veremos que a Bíblia, a Palavra reve-
lada de Deus, nos ordena o comprometimento com a questão social.

1. O compromisso social no período do Êxodo


Desde o período mosaico, havia para Israel a ordenança de
acudir ao excluído pela sociedade. Para exemplificar esta realidade,
tomemos algumas passagens do Pentateuco. O texto de Levítico
19.10 ordena: “Não rebuscarás a tua vinha, nem colherás os bagos
caídos da tua vinha; deixá-los-ás ao pobre e ao estrangeiro. Eu sou
o Senhor, vosso Deus”.1 
Como vemos, o Senhor veda ao seu povo a rebusca; os filhos de
Israel estavam proibidos por Deus de buscar, por mais de uma vez,
por frutos em uma planta, pois pertenciam ao pobre e ao estrangei-
ro, para seu mantimento. É importante observar a razão pela qual
Deus emite tal proibição: ele é o Deus de Israel, tanto para ordenar
tal prática, quanto para suprir o seu povo de modo a que nada lhe
faltasse, mesmo que ele amparasse ao pobre.
Comentando esta passagem, Matthew Henry traz uma inte-
ressante aplicação para este texto: “Os tempos de alegria, como o
tempo da colheita, são ocasiões próprias para a caridade; quando
nos regozijamos, os pobres devem regozijar-se conosco, e quando
nossos corações louvam a Deus, seus estômagos também devem
nos abençoar”.2 
O capítulo 15 de Deuteronômio fala muito sobre a compreensão
mosaica do compromisso social de Israel. Para ilustrar isto, dois ver-
sículos são bastante significativos. Primeiro, o verso 7: “Quando entre
ti houver algum pobre de teus irmãos, em alguma das tuas cidades,
na tua terra que o Senhor, teu Deus, te dá, não endurecerás o teu
coração, nem fecharás as mãos a teu irmão pobre”.

 1
Almeida Revista e Atualizada.
 2
HENRY, Matthew. Commentary on the whole Bible. Grand Rapids: Zondervan, 1961, p. 132.

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O C o m p r o m i ss o S o c i a l e a Palavra de Deus | 157

A ordem do Senhor aqui é clara: o povo de Israel não deveria


fechar as mãos ao pobre; Deus escolhera aquele povo não só para
ser abençoado, mas também para abençoar a todas as nações da
terra (Gn 12.3), e seu compromisso social deveria refletir esta
realidade.
O verso 11 do mesmo capítulo de Deuteronômio é esmagador
em relação ao cuidado com o necessitado: “Pois nunca deixará de
haver pobres na terra; por isso, eu te ordeno: livremente, abrirás
a mão para o teu irmão, para o necessitado, para o pobre na tua
terra”.
Aqui, além da ordenança sobre cuidar dos necessitados; há a
interessante anotação que Deus faz, de que sempre haveria pobres
na terra. É o que, de fato, observamos em nosso dia-a-dia. Estes
preceitos serviam para evitar que um eventual hebreu ambicioso
pudesse explorar ou negligenciar os necessitados, apesar das pro-
messas de Deus.3  Se estas ordenanças valiam para o povo de Deus
da época de Moisés, não valerão também para nós, Israel de Deus
dos tempos modernos?

2. O compromisso social no período monárquico

As melhores exposições sobre a ética social de Israel nos tempos


da monarquia estão nos livros poéticos. Vejamos, primeiro, o Salmo
82, verso 4: “Socorrei o fraco e o necessitado; tirai-os das mãos
dos ímpios”. Deus, por meio de Asafe, exorta aqui o povo a um
compromisso social com os pobres da terra. Observe-se que o verbo
empregado aqui é WjL.P,; o qual significa, literalmente, “libertar”. Ou
seja, o dever do povo de Israel era libertar o pobre de seu estado de
angústia e de opressão.
Em Provérbios 19.17, a sabedoria de Salomão acrescenta um
outro fator ao compromisso social do povo de Deus: “Quem se
compadece do pobre ao Senhor empresta, e este lhe paga o seu
benefício”. Deus promete aqui sua benção sobre aquele que se com-
padecer do pobre. É algo claro que se compreende do contexto de

 3
GRAY, James M. The concise Bible Commentary, p. 253.

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toda a Escritura, a benção de Deus sobre aqueles que obedecerem


às suas ordenanças.
No mesmo livro de Provérbios, capítulo 21, verso 13, lemos: “O
que tapa o ouvido ao clamor do pobre também clamará e não será
ouvido”. Se no versículo que vimos anteriormente é prometida a
benção do Senhor sobre aquele que obedecer, o que vemos aqui é a
sua maldição sobre a desobediência. No hebraico, esta imprecação,
aqui traduzida por “não será ouvido”, tem também o sentido de “não
será respondido”, ou seja, Deus promete também tapar os ouvidos
ao clamor de quem tapa os seus ao clamor do pobre.
De todo o visto até aqui, temos que Israel compreendia o com-
promisso social, neste período, como uma ordenança do Senhor, a
qual, uma vez obedecida, implicaria bênçãos sobre o povo; mas que,
desobedecida, acarretaria maldição. Tal desobediência foi manifesta
no período profético, com conseqüências trágicas para o povo eleito.

3. Profecia e compromisso social

Em seu tempo, o profeta Isaías já profetizava contra a opressão


do necessitado:

Seria este o jejum que escolhi, que o homem um dia aflija a sua
alma, incline a sua cabeça como o junco e estenda debaixo de si
pano de saco e cinza? Chamarias tu a isto jejum e dia aceitável ao
Senhor? Porventura, não é este o jejum que escolhi: que soltes as
ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras da servidão, deixes livres
os oprimidos e despedaces todo jugo? Porventura, não é também
que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres
desabrigados, e, se vires o nu, o cubras, e não te escondas do teu
semelhante? (Is 58.5-7).

O que se vê aqui é a condenação de uma religiosidade hipócrita,


que louva ao Senhor por meio de atos externos de culto, mas não
o faz mediante a obediência dos preceitos de cuidado com o neces-
sitado, que expusemos acima. Isaías condena o povo eleito por não
atentar ao seu compromisso social.

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O C o m p r o m i ss o S o c i a l e a Palavra de Deus | 159

Durante o cativeiro babilônico, o profeta Ezequiel também falou


da impiedade de Jerusalém, comparando-a a Sodoma: “Eis que esta
foi a iniqüidade de Sodoma, tua irmã: soberba, fartura de pão e
próspera tranqüilidade teve ela e suas filhas; mas nunca amparou o
pobre e o necessitado” (Ez 16.49).
Vale observar aqui o fato de que, além da sua conhecida imo-
ralidade sexual, Sodoma foi condenada por permanecer em uma
situação econômica cômoda, sem, entretanto, cuidar do pobre e do
necessitado. Concordo, aqui, com Adam Clarke:

Se tomarmos esta passagem literalmente, Sodoma era culpada de


outros crimes além deste pelo qual ela aparenta haver sido especial-
mente punida; em adição ao seu crime não-natural, ela foi acusada
de orgulho, luxúria, lassidão e não-caridade; e isto era suficiente para
afundar qualquer cidade em um poço sem fundo.4 

4. Jesus e o compromisso social da igreja

Nos tempos neotestamentários, a condição do povo de Israel,


quanto à sua indiferença em relação aos menos favorecidos da
sociedade, não era melhor. No Sermão do Monte Jesus exorta os
seus discípulos a serem diferentes daqueles que não são cidadãos
do reino dos céus: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque
alcançarão misericórdia” (Mt 5.7).
O Greek-english lexicon de Thayer5  indica que o termo evleh,monej,
aqui traduzido por “misericordioso” tem um sentido de prontidão
a ajudar. Aquele que está pronto a ajudar é bem-aventurado, pois
encontrará, também, um Deus pronto a ajudá-lo. É uma promessa
de benção ao povo eleito, caso este cumpra o preceito divino de
atentar para a necessidade do pobre.
Comentando esta passagem, Calvino diz:

O mundo incentiva tais homens a serem felizes, os que não tem ne-
nhuma preocupação com o sofrimento dos demais, mas consideram

 4
CLARKE, Adam. Prophet Ezekiel, Grand Rapids: Baker Book House, 1967. p. 899.
 5
THAYER, Joseph Henry. Greek-english lexicon of the New Testament Grand Rapids: Baker Book House, 1977.

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seu próprio conforto. Cristo diz que são felizes os que não apenas
preparam-se para enfrentar suas próprias aflições, mas também
para partilhar a aflição dos demais – assistindo os miseráveis – que
voluntariamente partinham com aqueles que sofrem.6 

O reformador entendia, portanto, que são felizes aqueles que


não apenas consideram o seu próprio bem-estar, como também
o bem-estar dos demais. O parâmetro para a igreja de Cristo
deve ser diferente do mundo egoísta em que vivemos. Ainda no
contexto do Sermão do Monte, Jesus insiste em que os discípulos
tenham um padrão diferenciado de conduta, fazendo diferença
no contexto de mundo em que estão inseridos: “Vós sois o sal
da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o
sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado
pelos homens” (Mt 5.13). A palavra aqui é de condenação a um
discípulo de Jesus que não atente para a sua ordem de abençoar
a um mundo pecador e sem sabor. Se não o fizermos, para que
servimos?
Na parábola do bom samaritano (Lc 10.25-37), tal como fez
Isaías no texto citado acima, Jesus condena os atos de religiosidade
hipócrita, a vida daqueles que, honrando o Senhor com os seus
lábios, não o honram cuidando do necessitado. Jesus, aqui, elogia
um samaritano, alguém que foi capaz de um ato que os judeus
negligenciaram.
Por fim, observamos o texto de Lucas 14.12-14:

Disse também ao que o havia convidado: Quando deres um jan-


tar ou uma ceia, não convides os teus amigos, nem teus irmãos,
nem teus parentes, nem vizinhos ricos; para não suceder que
eles, por sua vez, te convidem e sejas recompensado. Antes, ao
dares um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os
cegos; e serás bem-aventurado, pelo fato de não terem eles com

 6
CALVIN, John. Harmony of the Gospels. Grand Rapids: Baker, 1981. v. 1, p. 226.

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que recompensar-te; a tua recompensa, porém, tu a receberás na


ressurreição dos justos.7 

Mais uma vez, está presente aqui a idéia de retribuição de Deus


à misericórdia que empregarmos em relação ao necessitado.

5. A compreensão da igreja primitiva quanto ao compro-


misso social

O cuidado do necessitado era um dos sinais da igreja apostólica.


Vejamos o testemunho do conhecido texto de Atos 4.34-35: ”Pois
nenhum necessitado havia entre eles, porquanto os que possuíam
terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores correspondentes e
depositavam aos pés dos apóstolos; então, se distribuía a qualquer
um à medida que alguém tinha necessidade”.8 
Notamos aqui a existência de uma vida comunal na comunidade
cristã primitiva: não havia acumulação de riquezas; este modo de
vida da igreja primitiva é contrário à mentalidade egoísta atual,
em que cada um pensa mais em si do que no bem comum. Isto se
coaduna com a idéia de Calvino de que a propriedade não podia
atender exclusivamente ao seu possuidor, mas à coletividade.
Esta idéia é reforçada pelo apóstolo Paulo: “Aquele que furtava
não furte mais; antes, trabalhe, fazendo com as próprias mãos o que
é bom, para que tenha com que acudir ao necessitado” (Ef 4.28).9 
Para o apóstolo Paulo, o trabalho não deve ser um meio para sa-

 7
Calvino diz, a respeito desta passagem: “Você pode servir uma mesa para os ricos, mas, ao mesmo
tempo, você não deve negligenciar o pobre; você pode festejar com seus amigos e parentes, mas
você não pode fechar a porta aos estranhos, se a pobreza sobrevier a eles, e se você tiver os meios
para satisfazer às suas necessidades. Numa palavra, o sentido desta passagem é que aqueles que
são gentis aos parentes e amigos, mas que usam de mesquinhez com o pobre não são dignos de
admiração, pois não exercitam a caridade, mas visam apenas seu próprio ganho ou ambição”.
CALVIN, op. cit., v. 2, p. 122.
 8
Segundo Clarke esta assistência era prestada àqueles pobres que haviam sido excluídos da parte
que cabia aos sacerdotes nos sacrifícios por haverem se convertido ao cristianismo. Cf. CLARKE,
Adam. Acts of the Apostles, Grand Rapids: Baker Book House, 1967. p. 438.
 9
Hodge diz acerca desta passagem que “nenhum homem vive para si mesmo; e nenhum homem
deve trabalhar apenas para si, mas com o objetivo definido de estar apto a assistir outros. Os
princípios cristãos, se corretamente cumpridos, poderiam rapidamente banir a pobreza e outros
males correlacionados de nossa civilização moderna”. HODGE, Charles. A commentary on Ephesians.
Grand Rapids: Baker, 1980. p. 273.

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tisfazer aos nossos próprios prazeres, mas para que façamos o que
é bom, ou seja, atendamos ao que está passando necessidades. É
notável esta ênfase neotestamentária no tocante à nossa mordomia
quanto aos bens que Deus coloca em nossas mãos: devemos pensar
mais nos outros do que em nós mesmos.
Por fim, o segundo capítulo de Tiago que, em minha avaliação, é
a suma de tudo o quanto a Escritura fala a respeito de compromisso
social do cristão. Primeiramente, Tiago nos ordena a não menos-
prezar os pobres, a não os ignorar, mas dar a eles o mesmo local de
honra que daríamos a qualquer pessoa de destaque na sociedade,
pois Deus mesmo não faz acepção de pessoas. Exorta ainda o povo
de Deus a manifestar a sua fé por meio de obras. Isto fica muito
claro nos versos 15 e 16 deste capítulo: “Se um irmão ou uma irmã
estiverem carecidos de roupa e necessitados do alimento cotidiano,
e qualquer dentre vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-vos e fartai-
vos, sem, contudo, lhes dar o necessário para o corpo, qual é o
proveito disso?”.10 
Para Tiago, a fé, vivida ou pregada sem obras, é morta. A meu
ver, ao afirmar que de nada adianta proclamarmos a paz que exce-
de todo o entendimento a um necessitado carente de alimento ou
roupas, Tiago está implicitamente ordenando aqui uma tarefa para
a igreja, que se expressa num compromisso social efetivo.

Conclusão
Neste arrazoado sobre a base bíblica para o compromisso social
da igreja percebemos que o envolvimento social desta não era mera
sugestão, mas uma ordenança do Senhor à sua igreja. Aliás, nos
momentos em que a igreja fecha-se apenas no âmbito de templos
confortáveis, sem atentar para seu compromisso de ser luz no mun-
do, a expansão do evangelho sofre considerável declínio.

 10
Julgo ser oportuno o comentário de John Wesley sobre este capítulo, afirmando que, aqui, Tiago
“não opõe a fé às obras; mas aquela fé nominal vazia àquela fé operosa por amor. Pode aquela fé
que é sem obras salvar o homem? Não mais do que poderia beneficiar ao seu próximo”. WESLEY,
John. Notes on the Bible: New Testament. Grand Rapids: Francis Asbury Press, 1987. p. 779.

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Ainda assim, a igreja brasileira está em débito em relação ao seu


compromisso social. Parece que os evangélicos contaminaram-se
pelo individualismo de nossos tempos, e a regra passou a ser o “bus-
car a benção”, negligenciando o serviço que a Palavra nos ordena.
Como podemos esconder as mesmas mãos que recebem de Deus
toda a sorte de bênçãos de nosso semelhante – criado à imagem e
semelhança de Deus?
É preciso despertar para os valores que a Bíblia defende, a partir
de uma pregação fiel do evangelho. Que o Senhor, que nos abençoa
e nos provê de tudo o quanto necessitamos, possa nos iluminar a
fim de que, com base em sua Palavra, possamos ser uma bênção
neste mundo caído.

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Sermão

As leis alimentares e
a nossa santificação
Levítico 11

Sermão pregado no Seminário.

Lic. Alceu Lourenço de Souza Jr.


Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano
“Rev. José Manoel da Conceição”
Licenciado pelo Presbitério de Pirituba – SUN

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Introdução
Nós vivemos num mundo que realmente acredita no ditado de
que “você é o que você come”. Podemos ver isto claramente na ver-
dadeira obsessão pelos alimentos, por descobrir novas dietas capazes
de curar ou prevenir doenças, retardar o envelhecimento, melhorar
a aparência da pele ou dos cabelos, emagrecer, etc.
Às vezes, determinado alimento sai da “lista dos proibidos” di-
retamente para a “lista dos recomendados pelos médicos”; como o
café, por exemplo, que já migrou de uma lista para a outra algumas
vezes... Nos últimos anos, todos nos assustamos ao ouvir notícias
sobre a “vaca louca” na Europa, ou a “gripe do frango”, na América;
os nomes das doenças viraram piada, mas na verdade, causaram
mortes e prejuízos gigantescos em diversos países, e nos mostraram
que nenhum alimento é completamente confiável.
O que causa alguma estranheza é encontrarmos um capítulo
inteiro das Escrituras Sagradas prescrevendo uma dieta alimentar.
O capítulo onze de Levítico é exatamente isso: uma lei dietária, ou
seja, uma lei cerimonial que alista os animais apropriados para co-
mer, chamados “limpos”; e os animais que não podiam ser comidos,
devendo ser considerados “imundos”, ou “abominação”.
Para a maioria dos cristãos, este é um trecho da Palavra de Deus
que parece especialmente sem significado atual. Eu conheço mesmo
bons crentes que, ao fazerem sua leitura bíblica sistemática, chegam
em trechos como o capítulo onze de Levítico e não sabem o que
fazer com ele. Acabam fazendo uma leitura mais superficial, e isso
quando não, simplesmente, pulam para a próxima passagem!
Cabe a nós nos perguntarmos, juntamente com eles: Por que a
Palavra de Deus registra isto?

Contextualização
De fato, esta lei sobre animais limpos e imundos faz parte de
uma série de leis dadas por intermédio de Moisés ao povo de Israel
no deserto. Aquele povo havia acabado de sair da escravidão do
Egito, mas ainda tinha os antigos costumes bastante arraigados
em seu dia-a-dia; aliás, arraigados em seu coração, conforme po-

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As l e i s a l i m e n t a r e s e a n o ss a s a n t i f i c a ç ã o – Levítico 11 | 167

demos perceber pelas inúmeras vezes em que murmuraram contra


Moisés, dizendo: “era melhor que tivéssemos ficado como escravos
no Egito”.
Deste modo, Deus entrega a Moisés uma perfeita regra de justiça,
geralmente chamada lei moral, para que seu povo aprendesse como
deveria viver diante do seu Deus. Deus quis também dar ao povo
de Israel, como um corpo político, numerosas leis judiciais que pro-
moviam a justiça e eqüidade nas suas relações sociais. Além destas
leis, Deus entregou ainda um conjunto de leis cerimoniais para Israel,
como sua igreja na menoridade; estas variadas ordenanças diziam
respeito ao modo pelo qual eles deveriam adorar ao Senhor por
meio de sacrifícios, mas também como poderiam manter-se puros
em seu cotidiano, como adoradores do Deus santo.
Tais leis cerimoniais prefiguravam a pessoa e obra de Cristo, que
nas palavras do autor da epístola aos Hebreus, é o sumo sacerdote
“santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores, feito mais
alto que os céus”, assentado “à destra do trono da Majestade nos
céus”. A obra de Cristo ab-rogou, ou seja, anulou completamente
as ordenanças “baseadas somente em comidas e bebidas e diver-
sas abluções” da antiga aliança, substituindo-as pela nova aliança
no seu sangue, capaz de “purificar a nossa consciência de obras
mortas para servirmos ao Deus vivo” (Hb 7.26; 8.1; 9.10,14).
Por isso, “não é a comida que nos recomendará a Deus, pois nada
perderemos, se não comermos, e nada ganharemos, se comermos”
(1Co 8.8).
Sendo assim, todas aquelas ordenanças que nós lemos em Levíti-
co perderam completamente seu efeito: a igreja cristã não está presa
ou obrigada ao seu cumprimento, e mesmo sua função de apontar
para a obra de Cristo fica prejudicada, pois já temos bem presente
a realidade da cruz.
Mas permanece a pergunta do crente comum: “Por que eu tenho
isto na minha Bíblia?”
O apóstolo Paulo garante a Timóteo que “toda a Escritura é inspi-
rada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção,
para a educação na justiça” (2Tm 3.16); por isso, a passagem de
Levítico 11 também é proveitosa para nosso processo de santificação.

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Mas, como leis que não guardamos podem ser proveitosas para nosso
processo de santificação? Primeiramente, por ensinar que é necessário
discernir o que é puro do que é impuro.

As leis alimentares nos ensinam a discernir


o puro do impuro

De fato, este é o proveito mais direto que o povo de Israel obteve


do cumprimento destas leis; nos versículos 46 e 47 a afirmação é
clara: “Esta é a lei dos animais, e das aves, e de toda alma vivente
que se move nas águas, e de toda criatura que povoa a terra, para
fazer diferença entre o imundo e o limpo e entre os animais que se
podem comer e os animais que se não podem comer.” Veja bem:
“Esta é a lei... para fazer diferença”.
Esta lei não apenas aponta, informa, descobre diferenças inerentes
entre as espécies animais – ela estabelece estas diferenças! É bem ver-
dade que muitos estudiosos sérios já apontaram questões de saúde
pública que estariam sendo evitadas por Deus no meio de seu povo;
considerar “imundos” e impróprios para o consumo animais como
o porco, hospedeiro comum de parasitas que causam verminoses, só
faria bem; e o cadáver de um animal morto espontaneamente pode
carregar a doença que o matou – tanto mais se considerarmos as pre-
cárias condições de higiene que prevaleciam naquele tempo e lugar.
Entretanto, devemos nos lembrar das palavras de Deus em
Gênesis 9.3, “Tudo o que se move e vive ser-vos-á para alimento;
como vos dei a erva verde, tudo vos dou agora.” Certamente Deus
não perece preocupado ali em restringir a alimentação de Noé e de
sua posteridade.
E já que nenhum critério parece ligar os tipos tão díspares de
proibições de nossa lista, a explicação mais simples e direta é que
Deus, numa sábia e santa pedagogia, deseja ensinar ao seu povo
que as coisas não são todas iguais, mas que há uma fundamental
diferença entre coisas aprovadas e não-aprovadas, entre bem e mal,
e que é a sua Palavra o critério para distinguir entre ambos.
Na repetição parcial desta lei, em Levítico 20.25, o texto é
ainda mais claro: “Fareis, pois, distinção entre os animais limpos

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As l e i s a l i m e n t a r e s e a n o ss a s a n t i f i c a ç ã o – Levítico 11 | 169

e os imundos e entre as aves imundas e as limpas; não vos façais


abomináveis por causa dos animais, ou das aves, ou de tudo o que
se arrasta sobre a terra, as quais coisas apartei de vós, para tê-las
por imundas.”
Ainda que se possa traduzir este texto como “separei de vós
por serem imundas”, a tradução em nossas Bíblias faz mais jus ao
sentido do original: Deus é que as separa para serem consideradas
impuras. Os israelitas não poderiam recorrer aos costumes das outras
nações, nem tampouco poderiam apelar aos seus instintos, apetites
e paladar para discernirem o que era bom para comer – a Palavra
de Deus era o critério.
É o mandamento do Senhor que faz o salmista do Salmo 119
mais sábio do que seus inimigos, mais entendido do que seus mes-
tres e que os anciãos; mas na Bíblia a sabedoria sempre está ligada
à capacidade de discernir o mal e praticar o bem, a uma resposta
coerente à justiça de Deus conforme revelada nas Escrituras.
Porém, o que está predito em Jeremias 31.33?: “Naqueles dias,
na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas
inscreverei”; e Ezequiel 36.27: “Porei dentro de vós o meu Espírito
e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os
observeis”. E qual a promessa de Cristo à sua igreja em seu último
discurso em João, a partir do capítulo 14?: “O Consolador, o Espírito
Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas
as coisas; o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade”.
Num certo sentido, não há diferença real entre o povo no de-
serto e nós. É a obediência à lei do Senhor que manifesta que não
andamos mais como também andam os gentios, obscurecidos em
seu entendimento. Porém, é a sua lei gravada em nosso íntimo
pelo seu Espírito que nos faz discernir um tipo mais sutil de impu-
rezas, conforme a exortação de Paulo aos Efésios, capítulos 4 e 5:
impudicícia e cobiça, que nem sequer deve ser nomeada entre nós;
blasfêmia, amargura, gritaria e malícia, que devem estar longe de
nós; incontinência e avareza, pelas quais vem a ira de Deus. Ain-
da seguindo a exortação de Paulo, é pela santa lei divina que nós,
cheios do Espírito, discernimos que em nosso lar a mulher deve ser
submissa ao seu próprio marido, como ao Senhor; que o marido

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170 | Teologia para V i d a – V o l u m e II – número 2

deve amar sua mulher, a ponto de se entregar por ela; que filhos
devem obedecer aos pais, e que os pais devem criá-los na disciplina
do Senhor, sem provocá-los à ira.
Será que podemos recorrer aos costumes e conceitos dos ímpios
para discernir o que é bom para nossas famílias e nossos filhos?
Poderemos extrair nosso critério dos conceitos mutáveis e limitados
da Psicologia ou Sociologia? Será que podemos apelar aos nossos
instintos, apetites e bom senso para distinguir o que é bom para
nossas vidas? Não, o texto de Levítico nos ensina que o Espírito
de Deus, falando nas Escrituras e pelas Escrituras, será sempre o
nosso critério.
Quase como uma implicação direta da distinção entre puro e
impuro, estas leis também são proveitosas por apontar a necessidade
de separação do povo de Deus.

As leis alimentares nos apontam a necessidade


de separação

Isto está muito claro na lógica do texto: Deus lhes dá a lei para
que eles possam se separar dos demais povos, sendo santos como ele
mesmo o é. No versículo 44 há duas ordens diretas, uma positiva,
“vós vos consagrareis”, e outra negativa, “não vos contaminareis”.
Porém, não devemos imaginar que na antiga dispensação da
graça a consagração (ou a religião) era algo meramente exterior.
Profetas como Isaías alertaram constantemente contra um cum-
primento meramente exterior dos preceitos divinos, contra o
oferecimento meramente formal dos sacrifícios ao Senhor: “não
me agrado do sangue de novilhos, nem de cordeiros, nem de bo-
des; não continueis a trazer ofertas vãs” (Is 1.11-16). E o Salmo
51.16,17: “Pois não te comprazes em sacrifícios; do contrário, eu
tos daria; e não te agradas de holocaustos. Sacrifícios agradáveis a
Deus são o espírito quebrantado; coração compungido e contrito,
não o desprezarás, ó Deus.”
Por mais que houvesse ritos, cerimônias e ordenanças externas
– que, nas palavras da epístola aos Hebreus, eram apenas sombras
daquilo que era real, Jesus Cristo – ainda assim, o culto ao Senhor

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As l e i s a l i m e n t a r e s e a n o ss a s a n t i f i c a ç ã o – Levítico 11 | 171

no Antigo Testamento era uma religião espiritual, e estas leis ali-


mentares que estamos estudando não são exceção.
Entretanto, como vimos a pouco, o texto não aponta para um
mal inerente daqueles animais, mas enfatiza a ordenança divina:
“estes serão para vós outros abominação”. E diz: “não vos façais
abomináveis”, e não algo como: “cuidem mais da saúde” ou “não
fiqueis doentes...” Daí concluímos que o fundamento da lei é a
vontade soberana do doador da lei; e que, portanto, cumprí-la ou
descumprí-la nunca é apenas uma questão formal, mas sempre uma
questão moral. Tem a ver com nossa submissão à vontade revelada
do Criador; com nossa fé em que sua vontade é boa, agradável e
perfeita, conforme Romanos 12.2.
Mais um detalhe: Na repetição destas leis em Deuteronômio
14.3-21, interessantemente é acrescentado que os israelitas pode-
riam dar ou vender um animal achado morto, considerado impuro,
a um estrangeiro, que estivesse morando em Israel, por exemplo;
além disto, os povos em derredor certamente não seguiam estas
leis. Isto tudo significa que cada filho de Israel era constantemente
confrontado com a realidade de que eles não podiam comer aquilo
que seus vizinhos e estrangeiros podiam comer – e, como indica o
Salmo 73, eram tentados a cobiçar a aparente fartura em que os
ímpios viviam.
Agora, imagine um israelita em pleno deserto tendo de selecionar
aquilo que poderia comer; tendo de utilizar a valiosa água para lavar
utensílios, roupas e instrumentos (v. 32); tendo mesmo de quebrar
vasos e fornos de barro (vs. 33 a 35) e lançar fora sementes (v. 38)
– e tudo isto em razão de incidentes considerados completamente
normais entre outros povos!
Meus irmãos, o fato é que era necessária verdadeira fé na
Palavra de Deus, verdadeiro desejo de guardar sua santa lei, para
obedecer a estas ordenanças. A distinção do povo de Deus não
seria o cumprimento formal e externo de alguns preceitos, mas
esta fé viva e verdadeira. Deveria haver um esforço consciente
de se separar, submetendo cada aspecto da vida comum ao
mandamento divino, ainda que isto pudesse custar alguns bens
materiais, mesmo que valiosos. Quando Daniel e seus compa-

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nheiros resolveram firmemente não se contaminar com as finas


iguarias do rei, puseram em risco sua própria segurança no império
babilônico. Eles não estavam sendo legalistas; eles estavam, por
meio de sua obediência e fé, distinguindo-se daqueles que não
pertenciam ao seu Deus.
Aliás, aqui no versículo 47, a expressão “fazer diferença” é uma
tradução do mesmo verbo que aparece lá em Levítico 20.24 como
“separar”: “Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos separei dos povos”,
e no 26: “e separei-vos dos povos, para serdes meus.”
Ou seja, na sua misericórdia Deus fez diferenciação, distinguiu,
separou um povo para si. O que seus mandamentos requerem é
que seu povo se distinga, se separe. É óbvio que povo de Deus
hoje não tem menos necessidade de se distinguir (ou seja, de se
separar das práticas do mundo que nos rodeia) do que o tinha o
povo de Israel.
Mais ainda: João, em sua primeira carta afirma que se amarmos
o mundo o amor do Pai não estará em nós; e que, se nossas obras
forem justas, o mundo nos odiará. Aliás, Em sua oração sacerdotal,
em João 17, no versículo 15, Jesus afirma que o mundo nos odeia
mesmo, porque não somos do mundo; e pede ao Pai, não que nos
retire do mundo, mas que, no mundo, sejamos guardados do mal. Por
isso, 1 Pedro 2.11 nos chama de peregrinos e forasteiros no mundo e
nos exorta a lutarmos contra as paixões pecaminosas, para vivermos
vidas santas e separadas, bem no meio dos gentios, para que eles
emudeçam. Na verdade, os cristãos da igreja primitiva mantinham
um padrão de vida tão distinto dos demais que eram chamados de
“seita do caminho” (At 24.14).
Cada cristão é igualmente chamado a um esforço consciente de
se separar, ainda que a um alto custo, submetendo cada aspecto
da vida comum ao mandamento divino, para que a obra de Deus
dentro de nós seja manifesta e manifestamente reconhecível pelos
de fora, para vergonha deles e glória do Pai.
Mas, se estas leis são proveitosas por ensinar o povo de Deus
de todos os tempos a distinguir o puro do impuro e por apontar a
necessidade de o próprio povo do Senhor se separar, também são
proveitosas por nos exortar a imitar o caráter santo do Senhor.

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As l e i s a l i m e n t a r e s e a n o ss a s a n t i f i c a ç ã o – Levítico 11 | 173

As leis alimentares nos exortam a buscar a santidade

Veja que não era apenas uma proibição de comer certos animais,
mas até mesmo de tocá-los! Podemos calcular que muitas vezes era
inevitável tocar um animal destes que tivesse aparecido morto no
campo, ou coisa assim; mas os versículos 8, 11, 27 em diante nos
esclarecem que quem tocasse nos cadáveres destes animais seria
“imundo” por certo tempo, isto é, teria contraído uma impureza
cerimonial “até à tarde”, e portanto estaria afastado dos serviços do
tabernáculo por aquele dia. Estas leis diziam respeito diretamente
ao relacionamento do povo com seu Deus.
O grande fundamento desta lei é afirmado duas vezes, para maior
ênfase e clareza: “Eu sou o Senhor” (v. 44 e 45); Yahweh, o nome que
faz referência ao pacto de Deus com seu povo, o pacto que impele
o povo do Deus santo a ser santo também: “portanto, vós sereis
santos, porque eu sou santo”, igualmente repetido no 44 e no 45.
Se dissemos acima que o critério para distinguir o puro do impuro
é a Palavra de Deus, aqui estamos afirmando que o fundamento
para esta distinção é o caráter de Deus: Deus é santo, sua Palavra
é santa, seu povo é santo.
Apesar da concepção muito popular de que o conceito básico da
palavra santo é simplesmente de “separado”, na Bíblia esta palavra
nunca aparece num contexto secular, mas sempre religioso; também
nunca é contrastada com “misturado”, mas com “profano” ou com
aquilo que é “culticamente impuro” – que é bem o nosso caso aqui
em Levítico.
Assim, os objetos consagrados do tabernáculo ou do templo
tinham de ser totalmente dedicados àquela função; e a separação
de pessoas daquilo que podia torná-las cerimonialmente impuras
era um símbolo desta santidade, que é espiritual e ética.
Quando relacionado a Deus, podemos ver que “santidade” se
refere especificamente ao seu caráter totalmente bom, e inteiramente
isento de mal. É o atributo divino de perfeição transcendente, uma
pureza que não pode tolerar nenhuma forma de pecado – que não
pode contemplar o mal, segundo Habacuque 1.13.
Santidade é esta separação de tudo que é profano e pecaminoso,
e o livro de Levítico enfatiza isto em cada linha! Num livro de 27

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capítulos, mais de 120 vezes aparece a palavra “santo” ou o verbo


“santificar”; e a palavra “imundo”, mais de 130 vezes! É quase como
um luminoso gigantesco em néon, com setas apontando claramente
a impureza e o pecado na vida humana. Apontando para Deus:
Santo! Santo! Santo! E apontando para nós: é necessário santificar-
vos, santificai-vos já a Deus!
O versículo 45 ressalta que Deus, este Deus santo, havia entrado
em aliança com este povo pecaminoso, ao tirá-los do Egito para ser
seu Deus; e que cada aspecto de suas vidas agora deveria refletir
este relacionamento.
O apóstolo Paulo esclarece em Romanos 8.29 que fomos predes-
tinados por Deus para sermos conformes à imagem de seu Filho; e
em 2 Coríntios 3.18 diz que isto acontece ao sermos transformados,
de glória em glória, na imagem de Cristo pela atuação do Espírito. É
a cristãos que 1 João 1.7 afirma que o sangue de Jesus nos purifica
de todo pecado: nós, que cremos no nome de Cristo, não precisamos
mais lavar nossas vestes contaminadas, pois o sangue de Jesus já nos
cobriu e nos lavou completamente, ao ponto de nos apresentar com
vestes alvas como igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa
semelhante, porém santa e sem defeito (Ef 5.27). Paulo, em suas
epístolas, chega mesmo a denominar mais de 40 vezes os crentes
das igrejas locais de “os santos”. Esta é a nossa realidade em Cristo.
Em Cristo, de modo algum estaremos “imundos até a tarde”,
apartados da presença e do amor do Pai. Entretanto, esta mesma
expressão “Sede santos porque eu sou santo”, é repetida em 1 Pedro
1.16, ao afirmar que os cristãos são filhos da obediência, chamados
a não se amoldar às paixões mundanas, mas a andarem segundo a
santidade de Deus. Em Efésios 5.1, Paulo exorta seus convertidos
a serem imitadores de Deus, como filhos amados; e a andarmos em
amor, como também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por
nós, como oferta e sacrifício a Deus, em aroma suave.
Portanto, não pelo temor de sermos apartados dos serviços
do tabernáculo, nem pela libertação do Egito, mas como resposta
amorosa ao nosso grande Deus e Salvador, daquele que nos ado-
tou como filhos em sua família, sejamos santos como ele mesmo
é santo.

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As l e i s a l i m e n t a r e s e a n o ss a s a n t i f i c a ç ã o – Levítico 11 | 175

Conclusão
Quanto àquela pergunta inicial – “Por que eu tenho leis alimen-
tares na minha Bíblia?” –, podemos concluir que, ainda que não
estejamos debaixo de tais leis para cumpri-las, elas são extremamente
proveitosas para nosso processo de santificação, por ensinar o povo
de Deus a distinguir o puro do impuro, por apontar a necessidade de
o próprio povo do Senhor se separar, e finalmente por nos exortar
a imitar o caráter santo do Senhor.
Meus irmãos! Este processo de santificação é o resultado da
habitação do Espírito Santo nos crentes, mas vimos que de modo
algum descarta um comprometimento consciente do cristão em
discernir e se separar daquilo que desagrada a perfeita vontade de
Deus, conforme sua Palavra, que dizemos ser nossa única regra de
fé e prática.
Como para o povo no deserto, nossa santificação tem de al-
cançar cada detalhe do nosso cotidiano. Se somos estudantes, por
exemplo, temos de distinguir que há formas impuras de fazer uma
prova, ainda que os colegas achem perfeitamente aceitável “passar
cola”; temos de distinguir claramente que a internet não pode fazer
nossos trabalhos por nós. Sejamos santos como santo é o Senhor!
Atinge igualmente nossa vida profissional. Devemos nos sepa-
rar das práticas desonestas e injustas do mundo por meio de um
santo proceder, ainda que o custo seja alto! Se você é funcionário,
considere abominação assinar a folha de ponto de forma desonesta
ou receber pela hora extra que você não fez. Se é empresário, não
seja injusto ao definir salários e horários de seus funcionários;
pague seus impostos corretamente, não espere ser acionado na
justiça para acertar o direitos de ex-empregados! Sejamos santos
como santo é o Senhor!
Precisamos nos separar, ainda, das práticas imorais dos ímpios
nos nossos relacionamentos afetivos. Santificar os momentos de
namoro, ainda que isto signifique não ter mais momentos a sós
com a pessoa amada. E nos separar das práticas impuras dos ímpios
no tempo que passamos em frente ao computador, ainda que isto
signifique restringir os momentos de acesso à internet. Sejamos
santos como santo é o Senhor!

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Ainda que isto venha a nos custar mais do que a restrição ali-
mentar ou a perda de simples utensílios, devemos submeter nossa
vida, desde os aspectos mais corriqueiros do cotidiano, ao Senhor.
Temos de cultivar um desejo por santificação, num esforço cons-
ciente de sermos santos, tal como nosso Pai celestial, porque assim
ele é. A santidade de Deus é a fonte, o padrão e a motivação da
nossa santificação.
Que a nossa comida consista em fazer a vontade daquele que
nos salvou. Amém!

Revista Teologia Para Vida


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“Dar-vos-ei pastores segundo o meu coração, que vos
apascentem com conhecimento e com inteligência.”
teologia
para
vida
(JR 3.15)

Volume II - nº 2 - Janeiro - Junho 2009

Volume II - nº 2 - Janeiro - Junho 2009

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