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Vol. 6 Nº 3 págs. 467-479.

2008

https://doi.org/10.25145/j.pasos.2008.06.035
www.pasosonline.org

Turismo, cultura e desenvolvimento entre sustentabilidades e


(in)sustentabilidades

Luzia Neide Coriolano


Claudia Leitão ii
Universidade Estadual do Ceará (Brasil)

Resumo: O turismo é um dos fatores de aceleração do desenvolvimento contemporâneo, e de intensifi-


cação das relações sociais, típicas do modo de produção capitalista. Trata-se de atividade que necessita
do uso e da apropriação de ambientes naturais e culturais, produzidos pelo trabalho, para transformá-lo
em espaço de lazer e consumo. Faz parte da dinâmica atual da mundialização do capital, que cria territo-
rialidades, como forma de responder às crises da acumulação global, envolvendo, além do mercado, o
Estado e a Sociedade Civil. É ainda um serviço de suporte à recuperação do trabalho humano, ao pro-
gressivo crescimento das relações do trabalho industrial, comercial e financeiro dos diversos mercados
internacionais, além de, enquanto produto de exportação, constituir-se em uma das principais mercado-
rias do comércio exterior. É um setor afeito a mitologias, ora é considerado panacéia capaz de resolver
os problemas socioeconômicos dos países periféricos, ora é interpretado como indústria selvagem, capaz
de destituir comunidades de suas marcas identitárias e de sentimentos de pertença. Há, pois, na atividade
turística, elementos contraditórios. Este artigo reflete sobre os significados, contradições e desafios rela-
tivos à sustentabilidade do turismo, em face dos significados do desenvolvimento adotados pelas políti-
cas governamentais e sua desconexão com as políticas de cultura que podem contribuir, em valores e
diretrizes, para a construção do turismo solidário, voltado para o fomento da diversidade cultural e quali-
dade de vida das populações.

Palavras chave: Turismo; Cultura; Territorialidades; Local; Comunidades; Sustentabilidades.

Abstract: The tourism is one of the factors of the contemporary development and of the intensification
of the social relationship, typical of the capitalist production model. It is an activity that requires the use
and the appropriation of natural and cultural environments, produced by work, to turn it into spaces of
leisure and consumption. It is part of the current dynamic of the capital, which creates territorialities, like
an answer to the crises of global accumulation, involving the market, the State and the Civilian Society.
It is also a service that supports the recovering of the human work, to the progressive growth of the in-
dustrial, commercial and financial work relationships of the several international markets, besides, as an
export product, to be constituted in one of the main merchandise of the foreign trade. It is a sector accus-
tomed to mythologies, sometimes is considered the solution capable to solve the socioeconomic prob-
lems of the outlying countries and sometimes is seen as a savage industry, capable to destroy the identity
of communities. This article reflects about the meanings, contradictions and challenges related to tourism
sustainability, facing of the meanings of the development adopted by the government policies and its
disconnection with the culture policies that may contribute, in value and guidelines, to the construction
of the solidary tourism, turned to the foment of the cultural diversity and the living quality of the local
populations.

Keywords: Tourism; Culture; Territorialities; Local; Communities; Sustainabilities.

ii
• Profa. Dra. Luzia Neide Coriolano; Profa. Dra. Claudia Leitão. Mestrado Acadêmico em Geografia e do Mestra-
do Profissional em Gestão de Negócios Turísticos, da Universidade Estadual do Ceará. Email: luzianei-
de@hotmail.com

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Responder a essas indagações implica a


Introdução
compreensão de novas dimensões da ativi-
dade turística no século XXI. Os estudos
O turismo é um campo de estudo afeito a
acerca do “pensamento complexo” de Ed-
tensões e antinomias. De um lado, é consi-
gard Morin, (2003) assim como sobre as
derado um dos fatores de aceleração do
“estruturas antropológicas do imaginário”
desenvolvimento moderno e, de outro, da
de Gilbert Durand, poderão servir de refe-
intensificação das redes de relações sociais
rencial epistemológico para penetração no
no planeta ((características do
campo do turismo mediante as perguntas
novo século). As imagens do turismo conso-
anteriormente elaboradas. Ao refletir sobre
lidadas ao longo do século XX, produzirão
o percurso das ciências até o século XX,
signos e símbolos impregnados de significa-
Morin constata uma primeira grande dis-
dos simultaneamente criativos e destruti-
tinção entre a cultura geral e a cultura
vos. Ao mesmo tempo em que a atividade
técnica e científica. Enquanto a primeira é
turística simboliza o uso e a apropriação
ampla e abraça tanto informações quanto
(muitas vezes inadequada) de ambientes
idéias, a segunda compartimenta o con-
naturais e culturais, transfigurando-os em
hecimento, tornando difícil sua contextuali-
espaços de lazer e consumo, concentração
zação. Utilizando-se de metodologia redu-
de riqueza, especulação, segregação de es-
cionista para conhecer (simbolizada pelo
paços, degradação de ambientes, destruição
método lógico dedutivo que parte do todo
de expressões culturais, exploração de tra-
para o conhecimento das partes que o
balhadores, também simboliza o empreen-
compõem e da obsessão determinista pelas
dedorismo, a conquista, a descoberta, o
leis gerais em que se oculta o acaso, o novo,
sonho.
as exceções) o conhecimento científico mo-
A contradição é especialmente valiosa
derno empobreceu o mundo, retirou o objeto
quando refletimos sobre a
pesquisado do seu contexto, rejeitando co-
(in)sustentabilidade do fenômeno turístico
nexões entre ele e seu ambiente.
nas sociedades contemporâneas. Tal reflex-
As Ciências Sociais percorreram o mes-
ão torna-se gradativamente mais oportuna
mo caminho, pois reduziram sua atuação ao
no contexto em que a atividade turística
calculável e formulável, abstraindo os obje-
vem ampliando significados e éticas, ou
tos de pesquisa dos contextos sociais, histó-
seja, vem se libertando da imagem mera-
ricos, políticos, culturais e ecológicos nos
mente econômica, passando a adquirir no-
quais foram gerados. Por isso, a Economia,
vas dimensões e transversalidades. Embora
entre as Ciências Sociais, por ser matema-
ainda de forma tímida e incipiente, é possí-
ticamente a mais avançada, é, na perspec-
vel observar-se recente tendência de diálo-
tiva humana, a mais atrasada das Ciências.
go entre as políticas públicas para o turis-
De forma analógica, também estamos atra-
mo, especialmente com os campos ambien-
sados, relativamente aos estudos da disci-
tal e cultural. Tais observações propõem
plina do turismo, fatalmente “atropelados”
indagações para a nossa reflexão neste ar-
pelos movimentos desarmônicos do planeta,
tigo: é possível definir indicadores de sus-
frustrados com o caráter aleatório do mun-
tentabilidade para o fenômeno turístico? A
do (Morin: 2003, 69-70).
atividade turística pode simbolizar nova
Por outro lado, a Sociologia do Imaginá-
compreensão de indústria, capaz de cons-
rio de Durand convida a criar conexões
truir relações mais “ecológicas” entre os
entre as sociedades do espetáculo, socieda-
empreendimentos turísticos e o patrimônio
des da proliferação das imagens, do cresci-
cultural e natural em que estão inseridos?
mento das indústrias criativas e o fenôme-
A reflexão sobre a atividade turística pode
no da transfiguração do turismo, ao longo
fazer rever os modelos mentais modernos e
das últimas décadas. Pelas imagens do
nos ampliar nosso repertório de imagens e
turismo, podemos observar tendências so-
símbolos, capazes de fazer perceber, de
ciais, esboçar traços do “espírito do tempo”,
forma transversal, o fenômeno do turismo
neste início de século, do retorno aos mitos,
como criação de socialidades, atividade
às artes, ao espetáculo, aos afetos, ao no-
econômica, assim como repertório de ima-
madismo das sociedades. Ora, não é exata-
gens das sociedades?

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mente com este repertório do homo sapiens ões trabalhistas, observamos, na atividade
que o turismo trabalha? Não carregaría- turística, acentuada exploração do mercado
mos, como afirma Jung, imagens universais de trabalho, pela elevada porcentagem de
do nosso inconsciente coletivo, que definem trabalhadores em meio período; grande
nossas reações e empatias nos lugares visi- porcentagem de trabalhadores temporários
tados? Enfim, uma viagem turística não é e ocasionais; intensa presença de mulheres
menos o consumo de produtos e serviços com contratos de meio período, especial-
mas uma espécie de “trajeto antropológico” mente em hotelaria e restaurantes; escasso
em que revisitamos a nós mesmos pelas número de mulheres em cargos de maior
narrativas, símbolos e ícones construídos responsabilidade; presença de trabalhado-
pelo “outro”? Se a modernidade tem como res estrangeiros ocupando cargos de maio-
grande símbolo a razão, a análise, a decom- res responsabilidades, nos países em de-
posição dos fenômenos para explicá-los, as senvolvimento, em detrimento dos profis-
sociedades contemporâneas, pelo contrário, sionais locais; pouca qualificação dos pres-
vêm, pela imaginação, reinventar e reen- tadores de serviços na hotelaria e em ali-
cantar o mundo, ou melhor, buscando mentos e bebidas; menores níveis de salá-
abraçá-lo (origem etimológica do verbo rios em relação a outros setores; maior ex-
compreender), tomá-lo por todos os lados, ploração do trabalhador na jornada de tra-
de forma a percebê-lo não somente pelas balho; poucos trabalhadores sindicalizados
ciências mas por outros caminhos: pelos e com algumas atividades com curto ciclo
afetos, pelos sentidos, pela memória, pelos de vida. No plano geográfico, observamos
mitos, pelas imagens. impactos relativos às transformações do
Os estudos e pesquisas do fenômeno território, assim como repercussões sócio-
turístico seguiram a herança aristotélica da antropológicas para as comunidades e so-
modernidade, ou seja, do pensamento bipo- ciedades. Nos países periféricos, o turismo
lar não complexo, habituado à mera análise produz “ilhas de prosperidade” em conflito
“causa x efeito” dos fatos sociais, sem bus- com espaços marginais, fazendo emergir
car-lhes maior conexão e aprofundamento contradições, as mais diversas, especial-
com outros campos do conhecimento. Se os mente de ordem social, cultural e econômi-
novos tempos assentam-se sobre a multipli- ca.
cidade e superposição de discursos que indi- No Brasil, o turismo cresce e se consoli-
cam a fusão e a (con)fusão entre antigas da como atividade geradora de riqueza,
contradições( existência e intelecto, corpo e tornando-se importante produto de expor-
espírito, arte e vida, conquistas cientificas e tação. No Nordeste brasileiro, no Ceará
renascimento de guerras etnocêntricas e (estado emergente para o turismo nacio-
religiosas), vale avaliar em que medida os nal), o turismo ocupa o quarto lugar entre
estudos turísticos foram submetidos, ao lon- os produtos de exportação1. No entanto,
go do século XX, às mesmas mazelas sofri- quanto mais se torna estratégia de desen-
das pelas Ciências Sociais. Mediante méto- volvimento econômico, mais sua imagem é
dos, ora quantitativos, fruto de visões positi- reduzida à dimensão mercadológica. O em-
vistas, ora empíricos, produto de visões fe- pobrecimento de significados para o setor
nomenológicas, parte significativa dos estu- pode ser percebido nos programas gover-
dos turísticos também simbolizam a dico- namentais, nas práticas do chamado trade
tomia do pensamento moderno diante dos turístico, nos comportamentos dos em-
dilemas entre explicação x compreensão do presários da cadeia produtiva.
mundo. As conseqüências do reducionismo são
É evidente que não subestimamos, nas desastrosas para a atividade turística, nas
sociedades mundializadas, as velhas con- perspectivas pública e privada. No espaço
tradições suscitadas pelas tradicionais re- público, é o turismo como mero “negócio”
lações capital-trabalho, tão presentes no reduzindo políticas públicas em meras aç-
século XX. Nesse contexto, o turismo, como ões de marketing. No espaço privado, a
área de conhecimento acadêmico e ativida- cadeia produtiva do turismo é estruturada
de econômica, se desenvolve, contribuindo nas mesmas bases das economias dos seto-
para a proliferação de desequilíbrios sócio- res primário e secundário. Dessa forma, os
espaciais de toda sorte. No plano das relaç- projetos públicos e privados para o setor

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turístico constroem-se pelos mesmos mode- recursos naturais, em razão da ação equí-
los mentais e mesmas bases semânticas voca do homem sobre o ambiente, traz re-
fundadas na imagem do “turis- percussões e modificações nas formas har-
mo/mercadoria”, o que também ocorre nos moniosas de construção do cotidiano de
discursos políticos, jurídicos e econômicos culturas tradicionais. A alteração das aspi-
relativos às questões de sustentabilidade. rações dos diferentes grupos sociais e co-
Marcados pela vagueza e ambigüidade, os munitários e seus modos peculiares de vi-
mesmos serão particularmente omissos, ver foi drasticamente substituída pela im-
mostrando-se incapazes de normatizar e posição de novos padrões comportamentais,
institucionalizar o campo turístico. ameaçando a diversidade cultural e a vida
O crescimento da economia do turismo no planeta.
impacta diversos setores da economia, es- Se os resorts simbolizam a acumulação e
pecialmente o imobiliário, simbolizado pela concentração de capital no setor turístico,
construção de mega empreendimentos hote- as pousadas ou os pequenos hotéis podem
leiros e equipamentos de lazer que, por sua simbolizar novas imagens de um turismo
vez provocam danos ambientais, além do menos concentrador e mais solidário, me-
que contribuem, como já afirmamos, para nos pasteurizado e mais atento à diversida-
concentrar riqueza, causando, conseqüen- de cultural. O turismo não somente mapeia
temente, disfunções e esgarçamentos do territórios mas cria territorialidades, pois
tecido social. Reações a esse quadro, no define destinos, propõe roteiros, dando visi-
entanto, começam a acontecer pelos movi- bilidade a espaços até então “invisíveis”.
mentos sociais, os mais diversos, que cla- Além de construir espaços simbólicos, a
mam por garantias jurídicas que definam atividade turística tece rede extensa de
critérios de responsabilidade social para pequenos negócios que, por sua vez, cria
esses empreendimentos. As forças sociais socialidades as mais diversas.
se estruturam em reação ao próprio modo Neste sentido, o turismo suporta e res-
de produção capitalista, que vive, de crises significa o trabalho, propondo-lhe lógicas
periódicas, pois as mesmas condições que menos especulativas e invasivas e mais
proporcionam o crescimento do produto e abertas à diversidade e ao compartil-
da riqueza, do trabalho e do lazer, desenca- hamento afetivo. Pela própria natureza, a
deiam momentos de autodestruição, no atividade turística, pode, ao mesmo tempo,
movimento permanente de sustentabilida- concentrar lucro, riqueza e renda, mas
des e insustentabilidades. A imagem do também criar oportunidades de ganhos aos
mercado passa a simbolizar, gradativamen- trabalhadores e às comunidades mais po-
te, espaço de instabilidades, uma espécie de bres, visto que a tese incorpora a antítese; o
“tabuleiro de xadrez” cujos vencedores e contraponto, o ponto e a contraposição, a
perdedores são indefinidos, circunstanciais posição. A própria transfiguração da ativi-
e imprevisíveis. dade turística dá indícios de que o turismo,
As reações às ações, no campo turístico, como mera atividade capitalista voltada
originam estudos e pesquisas que elaboram unicamente para o lucro financeiro, perde
novos discursos, por meio de novas imagens força, fruto dos impasses entre os limites do
e de novas representações simbólicas a eles capital e a própria sobrevivência do homem
agregadas. As mais significativas, nas no ambiente natural e cultural.
últimas décadas, se referem às conexões Não obstante o surgimento de novas
entre turismo e ambiente. Esse relaciona- mentalidades voltadas para o campo turís-
mento se traduz no crescimento da legis- tico, constatamos que, em pleno século XXI,
lação sobre o direito ambiental, assim como as reflexões acerca da (in)sustentabilidade
no surgimento de relatórios capazes de do turismo ainda estão impregnadas das
salvaguardar os impactos negativos do tu- imagens emprestadas pela ciência econômi-
rismo em face do meio, tão comuns nas ca e que, se os discursos ambientais passam
práticas do “turismo de massas”, marcado a estabelecer-lhe novos limites, o mesmo
pelo caráter predatório, relativo ao trato não ocorre, na mesma proporção, no campo
irresponsável, com a natureza e a cultura. cultural. As políticas públicas entre turis-
O desequilíbrio planetário resultante da mo e cultura, na América Latina, especial-
progressiva degradação e destruição dos mente no Brasil, pouco dialogaram até

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aqui, não compreendendo que o patrimônio XX, surgem incertezas de ordens diversas.
natural é também patrimônio cultural. O Ora, enquanto conhecimento que almeja o
isolamento pode ser percebido pela pequena status de ciência, o turismo também exem-
contribuição da cultura nos indicadores de plifica os discursos monoteístas promovidos
(in)sustentabilidade para o setor turístico e pelo racionalismo moderno. Suas bases e
do grande distanciamento entre os projetos fundamentos alimentam-se, desde origens,
de intervenção sobre a paisagem, em geral, do campo moral do “dever-ser”, ou seja, são
realizados por ministérios e secretarias de discursos que objetivavam construir uma
infra-estrutura, apoiados por conselhos do sociedade com “s” maiúsculo, assegurando-
ambiente, sem a participação dos conselhos lhe padrões normativos, regras de conduta,
de cultura. O discurso ambiental que vem códigos fixos de ser e estar no mundo. Gran-
se integrando ás discussões sobre sustenta- de parte desses discursos foi se desmorali-
bilidade do turismo necessita, por conse- zando (referimo-nos ao sentido etimológico
guinte, da contribuição do discurso cultural, da expressão, ou seja, os discursos foram
ou seja, o próprio direito ambiental deve abandonando o campo da moral, por não
estabelecer relação dialógica com os “direi- serem capazes de prever, categorizar, nor-
tos culturais”, o que certamente contribuirá matizar ou sancionar a imensa diversidade
para indicadores de sustentabilidade mais dos comportamentos sociais). A desmorali-
transversais para o turismo. zação dos discursos sociais, políticos e jurídi-
A tendência de aproximação e do diálogo cos é perceptível por todos nós a olho nu,
entre os campos da cultura e do turismo é, tornando-se espetáculos histriônicos a que
pois, fruto das sociedades ditas pós- assistimos diariamente pela televisão, lemos
modernas ou pós-industriais, as quais pro- pelos jornais ou acessamos pela internet. O
duzem novas representações sociais menos desencanto diante das grandes narrativas
marcadas pelas imagens mercadológicas e “explicadoras” do mundo é um sintoma sobre
mais voltadas aos valores culturais, às o qual devemos refletir. Nossa herança ilu-
identidades, aos sentimentos de pertença, minista encontra-se em grande encruzil-
ao poder dos mitos e à carga de simbolismo hada; necessitamos construir nossos mode-
dos indivíduos e das comunidades conside- los mentais, rever dogmas e convicções e, por
radas destinos turísticos. A nova mentali- que não fazê-lo pela análise do fenômeno
dade compreende a atividade turística como turístico nas sociedades contemporâneas?
rica e diversa cadeia simbólica capaz de O mundo parece encontrar-se cada vez
reinventar territórios, criar novas sociabili- mais em todos, embora todos não se encon-
dades e estabelecer novas solidariedades. trem no mundo. Expressões como “capital
social”, “desenvolvimento sustentável”, “de-
Por uma ampliação dos significados do tu- senvolvimento com cooperação”, “inclusão
rismo social”, “cidadania” estão presentes nos dis-
cursos públicos e privados e, de tanto ouvi-
A atividade do turismo vem sendo histo- los e de tanto utilizá-los, temos a sensação
ricamente associada aos modos de produção de que, ao invés de nos sentirmos estimula-
do trabalho industrial, comercial e finan- dos ao debate, à imaginação e à criatividade,
ceiro, nos diversos mercados internacionais. temos mentes cada vez mais paralisadas. O
Dentro dos paradigmas modernos em que resultado e o perigo dos discursos “globali-
foi significado, o turismo transfigurou-se e zantes” é que, quanto mais progride a crise,
fragmentou-se. De lazer para as elites até menos capacidade temos de pensá-la, quanto
tornar-se atividade massificada, transfor- mais nos submetemos à “economia global” ,
mada em mercadoria barata, invenção da menos nos indagamos: afinal de contas, de
sociedade de consumo, o turismo transfigu- que globalização falamos? No século em que
rou-se, revelando, pelos significados e dile- o conhecimento, o ócio e o lazer tomam sig-
mas, a complexidade das sociedades con- nificados cada vez mais importantes, no
temporâneas. cotidiano das sociedades, o turismo pode,
Como produto moderno, o turismo sofreu graças à riqueza da carga simbólica, tornar-
da mesma “anemia semântica” do chamado se campo especialmente fecundo para a
“individualismo possessivo*. Finda a forta- compreensão das transfigurações do homo-
leza do “eu”, nas últimas décadas do século faber ao homo-ludens.

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Os significados do turismo ainda são es- grupos e estratos sociais. Desse modo, como
sencialmente modernos, pois são originá- habitantes de países em desenvolvimento,
rios do século XVII, com as principais teo- podemos perguntar: como reaver o capital
rias oriundas do período posterior à Segun- social de comunidades excluídas, de ex-
da Guerra Mundial, submetendo-se às re- colônias submetidas à domesticação de suas
presentações sociais suscitadas pelo ima- culturas, despossuídas de auto-estima e de
ginário moderno. Dessa forma, os discursos capacidade de mobilização? As perguntas
político, econômico e acadêmico chamam de referem-se não somente a continentes desi-
“indústria” a atividade turística, com o ob- guais como a América Latina ou a África,
jetivo de dar-lhe status de vigor e im- mas dizem respeito a comunidades periféri-
portância social. No discurso legitimador de cas em todo o planeta.
“indústria”, o turismo abandona-se, ou As políticas públicas, na América Lati-
mesmo, desqualifica-se suas imagens e na, especialmente no Brasil, ainda não
símbolos de natureza antropológica ou cul- construíram os necessários canais de inter-
tural. Assim, enfatiza-se a imagem do tu- secção entre os campos da cultura e do tu-
rista como hóspede, consumidor ou cliente e rismo, resumindo-se a compreender o tu-
o turismo como mera fonte de renda e divi- rismo cultural como patrimônio cultural
sas, subestimando-se a imagem do turista material (prédios e conjuntos tombados) e
como protagonista cultural, alguém que imaterial (festas e manifestações da cultura
estabelece trocas simbólicas com outros tradicional popular). No entanto, os consu-
indivíduos. midores da atividade turística começam a
Com o desenvolvimento das ciências e desenvolver novas éticas, demonstrando,
das tecnologias, cresce o tempo livre, fruto graças às suas práticas, que os modelos
contraditório da ampliação do trabalho mentais que produzem políticas e progra-
especializado, assim como do desapareci- mas turísticos necessitam urgentemente de
mento de determinadas profissões. As reestruturação. Os próprios turistas pas-
transformações do trabalho produzem ao sam a exigir, de forma gradativa, um maior
mesmo tempo, grande contingente de mul- espectro, no que se refere à fruição das ati-
tiespecialistas e um “exército” de desem- vidades. Ao mesmo tempo, vale enfatizar
pregados, provocam maiores deslocamentos que, nas cidades, o lazer urbano vem sendo
territoriais dos indivíduos, além do aumen- redimensionado.
to do tempo dedicado às férias, movimen- Assim, as classes de menor poder aquisi-
tos migratórios, a banalização das viagens, tivo v êm descobrindo o turismo social,2
a democratização do acesso aos meios de permitindo que as populações das regiões
transporte, enfim, um cenário cada vez não direcionadas ao turismo global descu-
mais favorável à atividade turística. Se as bram novas formas de inclusão na cadeia
inovações de Thomas Cook, em 1841, inse- produtiva do turismo e nos roteiros de visi-
riram o turismo no mundo dos negócios, tação. Mais uma vez, constatamos que a
atividade beneficiada, cada vez mais, pela dinâmica turística revela a complexidade
evolução dos transportes e do comércio de social, a tensão complementar entre centro
bens e serviços, esse movimento, levado ao e periferia, entre incluídos e excluídos. Afi-
paroxismo, mostra a atividade turística nal de contas, nesses tempos nômades, re-
vítima das próprias contradições. Os pro- pletos de contradições e de redundâncias, o
cessos massificadores da atividade turística que nos faz realizar atividade turística?
produzem “não-lugares”, desterritorializam Como deslocar-se em um mundo, no qual,
indivíduos e comunidades, com efeitos per- quanto mais nos movimentamos, mais pa-
versos à vida comunitária e social, gradati- recemos estar no mesmo lugar? E, por
vamente mais órfã de imaginários e desti- último, estas indagações: os discursos
tuídas de sentimentos de pertença. modernos acerca de sustentabilidade po-
Vale, portanto, repensar os modelos de dem aplicar-se à atividade turística? As
desenvolvimento definidos ou praticados limitações de natureza ambiental/natural e
em países latino-americanos com grandes cultural ameaçam o caráter econômico da
desigualdades como o Brasil. A desigualda- atividade turística ou, pelo contrário, po-
de suscita desconfiança, assim como é pro- dem representar seu renascimento e res-
dutora da lógica de distanciamento entre significação?.

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Meio ambiente e desenvolvimento usos variados. Não é o espaço absoluto da


natureza infinita e passiva, mas o espaço
O meio ambiente é significado e estrutu- relativo produzido e reprodutor de relações
rado por diferentes discursos, produzidos sociais, que também estão submetidas aos
pelas ciências, pelo senso comum, ou ainda modos capitalistas de produção e de con-
pela normatização realizada pelos poderes sumo.
legislativos. Alguns discursos, de escopo O meio ambiente constitui, por último,
limitado, abrangem apenas as imagens, os território, alvo de políticas transdisciplina-
símbolos ou as representações naturais, res e não somente ambientais. As questões
outros, mais abrangentes, referem-se ao ambientais ampliam-se para sociais, cultu-
meio ambiente como espaço social, econô- rais e territoriais, incluindo as interações
mico, cultural e político, ou seja, como espa- entre o homem, a comunidade e a natureza.
ço de interação entre os homens e a nature- Moraes (2002, p. 30) entende o ambiental
za e do homem com seus pares. O ambiente para além de vetor reestruturador da lógica
é o próprio espaço do turismo, seja nature- cientifica (a razão ambientalista como
za, campo ou cidade. Milton Santos (1997) o propõem alguns), ou seja, como mais um
entendia como o conjunto de complexos fator a ser considerado na modelagem do
territoriais que constituem a base física do espaço terrestre. Entretanto a preocupação
trabalho humano. ambiental se dessacraliza, circunscrevendo
O meio ambiente é, pois, o conjunto, em um campo teórico mais restrito que o alme-
um dado momento, dos agentes físicos, jado pelas proposições holísticas. A redução
químicos, biológicos, culturais e dos fatores ambientalista e a presunção holística aca-
socioeconômicos susceptíveis de efeito dire- bam por gerar empobrecimento significati-
to ou indireto, imediato ou a termo, sobre os vo, na análise dos processos políticos e
seres vivos e as atividades humanas (Pou- econômicos do ambiente.
trel e Wasserman,1977). A natureza, as O modo de produzir e de consumir tem a
praias, as cidades, os lugares visitados pe- natureza como recurso, portanto reduziu-a
los turistas constituem o meio ambiente. também à imagem de “mercadoria”, degra-
Constituem ainda espaço complexo, pois dando-a até a exaustão, fazendo emergir,
contêm o ar, o solo, a água, as plantas, os na pauta das discussões mundiais, as
animais e o homem, com todas as condições questões relativas à (in)sustentabilidade.
econômicas e sociais que influenciam a vida Para o imaginário moderno, a natureza
em geral. Desse ambiente, depende a vida, existe pra ser dominada pelo homem, para
em especial, a vida humana. Nele estão servir às suas finalidades, mesmo que aca-
todas as construções, máquinas, estruturas be por comprometer a própria sobrevivên-
e objetos feitos pelo homem ou objetos ge- cia. Desde os meados do século XX, verifica-
ográficos, assim como sólidos, líquidos, ga- se o fortalecimento da consciência ambien-
ses, odores, cores, calor, sons, vibrações, tal (incluindo o social e o político) de grupos
radiações e ações resultantes das ativida- que se solidarizam com pessoas de todo o
des culturais e naturais. Portanto, é cons- mundo, exigindo mudanças comportamen-
tantemente impactado, exigindo cuidados, tais, produção ecologicamente correta, res-
ponderações e novas abordagens acerca de ponsabilidade social das empresas e mode-
significados e conexões. los alternativos de turismo.
Trata-se, enfim, de espaço geográfico Buscamos avaliar os empreendimentos
simultaneamente natural, social, econômi- por fatores, com a consciência de que o pla-
co, político e cultural, que contém todos os neta é a casa de todos, a “consciência pla-
seres vivos em interação, um espaço político netária” tão discutida por Leonardo Boff
e não neutro, pois se encontra eivado de (1999), que diz respeito às habilidades,
ideologias, conceitos e preconceitos. Nele se responsabilidades, atitudes e visão de
desenvolvem as atividades humanas, ani- mundo e do cosmo, responsabilidade diante
mais e vegetais, possibilitando condições do planeta e senso de cidadania. Capra
para a dinâmica imbricada e complementar (2003) acredita que a chave para tal defi-
entre o natural e o social. Constituem, en- nição operacional é a tomada de consciência
fim, espaços submetidos a sucessivas trans- de que não precisamos inventar comunida-
formações, com formas de apropriação e des humanas sustentáveis a partir do zero,

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mas que podemos modelá-las, seguindo os de contribuir para a cultura de paz entre os
ecossistemas da natureza que são comuni- povos, considerando a diversidade cultural,
dades sustentáveis de plantas, animais e patrimônio comum da humanidade. Identi-
micro-organismos. Uma vez que a carac- dade, diversidade, criatividade, solidarie-
terística principal da biosfera consiste na dade são as palavras chaves dos novos
habilidade para sustentar a vida, uma co- tempos, presentes nos discursos internacio-
munidade humana sustentável deve ser nais, nacionais e locais, em contextos políti-
planejada de maneira que as formas de cos, educativos, econômicos, jurídicos ou
vida, negócios, economia, estruturas físicas sociais.
e tecnológicas não venham a interferir na Ao mesmo tempo, agências de desenvol-
habilidade inerente à Natureza ou à sus- vimento, como o Banco Interamericano de
tentação da vida. Mesmo que a natureza Desenvolvimento – BID passam a priorizar
não ofereça modelos para todos os compor- o financiamento de projetos, pela capacida-
tamentos sociais, como acreditam cientistas de de mobilização do capital social e da
de visão crítica, todos são unânimes em dinâmica cultural, específicos das populaç-
admitir que a transição para um futuro ões, às quais os projetos se aplicam. Ao se
sustentável ou uma sociedade sustentável levar em conta a diversidade cultural, abo-
se configura como postura política pautada le-se a concepção hierárquica do desenvol-
em visão de mundo e de valores éticos. vimento, dando-se voz a populações que até
As conceituações de meio-ambiente in- então não constituíam parte integrante
cluem e se aproximam cada vez mais dos deste “capital social”. Vale aqui conceituar
significados da cultura, pois nele estão con- capital social a partir da visão de Pierre
tidos ritos, mitos, as manifestações do Bourdieu, ou seja, “um atributo individual
cotidiano, a natureza, as cidades, o habitat, e coletivo de distinção e, com isso, de domí-
os saberes e fazeres, enfim, tudo que o nio dos membros das categorias privilegia-
homem cria ou dá significado, tudo o que das”. O capital social, segundo o sociólogo
constitui sua memória, o que lhe é imposto francês, se apóia no capital econômico (na
e também o que ele espera. Desse modo, segurança material), no capital cultural (no
meio-ambiente e cultura estão de tal forma manejo do idioma) e no capital social (na
imbricados, que a atividade turística não constituição de relações). Esses capitais
poderá produzir indicadores de sustentabi- convertem-se, por sua vez, em capital
lidade sem a compreensão de que, ao criar simbólico, instrumento maior da garantia
espaços de diálogo com a natureza, neces- de sobrevivência dos discursos dominantes.
sariamente os criará com a cultura, pois o Em 1999, em Paris, o Fórum “Desenvol-
turismo necessita do espaço geográfico, do vimento e Cultura”, organizado pelo BID,
ambiente entendido dessa forma mais am- traz novos significados a essas expressões.
pla. Turistas buscam paisagens, cultura, A cultura passa a ser percebida como ma-
patrimônio histórico, tudo que faz parte dos triz dinâmica das formas de ser, estar, rela-
ambientes, dos lugares e territórios e de cionar-se e perceber o mundo. Deste modo,
que essa atividade se apropria. É um tipo desenvolvimento significa pouco, se o redu-
de consumo do espaço (natureza), portanto zirmos seus significados a meras represen-
fazer turismo significa viver a própria na- tações de benefícios infra-estruturais ofere-
tureza. Mesmo protegendo-a, é sempre uma cidos às comunidades (saneamento, estra-
atividade de risco que implica (in) susten- das, urbanizações etc.), mas de forma cres-
tabilidade ou permanente controle das polí- cente ele está associado às reações e inter-
ticas territoriais ou ambientais. venções das pessoas atingidas por estes
benefícios. Desenvolvimento, portanto, não
Cultura e desenvolvimento significa unicamente geração de riqueza ou
aumento do Produto Interno Bruto (PIB)
A conferência Geral da UNESCO, logo dos países, embora o crescimento e a distri-
após o dramático atentado de 11 de setem- buição menos desigual da riqueza material
bro de 2001 formata a “Declaração Univer- sejam decisivos para a qualidade de vida
sal sobre a Diversidade Cultural”. O docu- dos indivíduos. Como se vê, desenvolvimen-
mento ratifica o esforço dos países, na cons- to não se confunde com “desenvolvimentis-
trução de um dialogo intercultural, capaz mo”, tônica da América Latina dos anos 50

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e 60, presente no projeto militar brasileiro entre Cultura e Desenvolvimento. No en-


resultante do golpe de 1964. tanto, as reflexões do antropólogo francês
Se os significados de Desenvolvimento não encontraram acolhimento digno de
submetem-se ao reducionismo da Ciência nota no pensamento ocidental, especial-
Econômica, no campo da Antropologia, os mente nas décadas em que os processos de
significados de Cultura também são redu- globalização transformavam a criação, a
zidos. Os estudos da “cultura”, assim como transmissão, a apropriação e a interpretaç-
os de “desenvolvimento” fixaram e “conge- ão dos bens simbólicos.
laram” conteúdos e conceitos, criaram fal- Na nova “paisagem cultural”, de in-
sas oposições ao invés de se abrirem para tercâmbio intenso entre pessoas que criam,
novas percepções das experiências huma- se apropriam e dão significado aos bens
nas. culturais, nosso olhar limitou-se à mera
Ao reconhecermos a natureza fluida da descrição dos fatos, mostrando-se incapaz
realidade e o distanciamento cada vez mais de produzir exegese sobre os diversos
desconcertante entre as abstrações teóricas mundos e suas narrativas. Não construí-
e as experiências humanas, no século XX, mos, como desejava Durand, um novo mo-
não queremos aqui defender o pensamento delo mental capaz de aproximar e fundir o
anárquico ou desestruturado para o século moderno e o tradicional. A incapacidade,
XXI. Pelo contrário, necessitamos rever por sua vez produziu o colapso, um “beco
mentalidade categórica e reducionista para sem saída” para o pensamento ocidental,
que possamos identificar princípios gerado- simbolizado pelas narrativas apocalípticas
res e estruturadores, externos a nós. Para sobre o “Fim da História”. Afinal, o desen-
compreendermos a complexa teia dos pro- volvimento do homem seria um mito? O
cessos sociais, especialmente os de mais discurso da evolução do homem do estágio
larga escala, necessitamos considerar a de barbárie à civilização seria insustentá-
existência de interesses, instituições, agên- vel? Se não conduzimos a História, acabe-
cias e atores dos diversos campos sociais mos com ela, disseram muitos, ou brademos
(Knutsson in Arizpe: 2001,140). Essas re- o nosso desapontamento diante de nossas
des, sobre as quais se constroem as relações tentativas de explicar os fatos.
entre Cultura e Desenvolvimento, possuem
especial complexidade no Brasil, país onde A utopia da sustentabilidade no turismo
a fusão do arcaico e do moderno invalidam
categorias sociológicas. É o caso da catego- A idéia de sustentabilidade surgiu em
ria “campo” de Pierre Bourdieu, a qual bus- 1983, na Comissão Mundial do Meio Am-
ca definir áreas de interesse profissional. biente e Desenvolvimento – Comissão
No Brasil, os “campos” se sobrepõem, os Brundtland - CMMAD/ONU – com o relató-
indivíduos alternam papéis, vivem e convi- rio Nosso Futuro Comum – apresentando
vem em diversas “constelações” que se te- os princípios: Equidade social: direito de
rritorializam e se desterritorializam, ao cada um (de todos) se inserir no processo de
sabor de interesses, valores, crenças, hábi- desenvolvimento, Eficiência econômica:
tos e éticas. Ao tratarmos historicamente o gestão dos recursos econômicos e financei-
desenvolvimento pela matriz econômica, ros para garantir o funcionamento eficiente
subestimamos os papéis da cultura, en- da sociedade e Prudência ecológica: a racio-
quanto espaço da produção de mitos, símbo- nalização do consumo, usos de tecnologias
los e metáforas, capaz de produzir novas limpas, definição de regras para a proteção
categorias que, por sua vez, desempenhas- ambiental. Portanto, há mais de duas déca-
sem papel estratégico para a própria res- das, se discute o tema, levantando algumas
significação do desenvolvimento. preocupações em relação à natureza e so-
“É preciso unir a memória de nossa cul- ciedade.
tura com a intuição de nossas ciências mais Sustentabilidade significa política e es-
avançadas. Precisamos juntar a ciência da tratégia de desenvolvimento econômico,
nossa modernidade mais moderna com o social e cultural contínuos, sem prejuízo do
saber tradicional” (Rocha Pitta: 2005, 62). ambiente (inclusive dos recursos naturais)
A advertência de Gilbert Durand poderia e do homem. Desse desenvolvimento, de-
simbolizar a chave para novas conexões pende a continuidade da vida, da atividade

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humana, da capacidade dos animais e das conhecimento humano. Pela própria cons-
plantas de se reproduzirem ao longo do tituição, o fenômeno se alimenta do con-
tempo. Sustentabilidade e capitalismo est- hecimento racional-empírico, associado à
ão sempre em contradição, mas, tratados esfera simbólico-mítico-mágica, ou seja, no
como pensamento complexo, podem abrir turismo é especialmente necessária a com-
caminhos para a construção de um modelo preensão da dificuldade de permanecermos
cuja matriz permita não a oposição mas em conceitos claros, distintos, fáceis. Em
ação dinâmica entre as oposições. Conside- face da constatação, podemos convocar os
remos, portanto, sustentabilidade um con- protagonistas do campo turístico a rever
ceito complexo, no sentido em que abriga a mentalidades, perceber que, tendo ou não
objetividade que não deve excluir, de sua status de ciência, não existem ciências pu-
análise, o espírito humano, o sujeito indi- ras, e políticas públicas para o turismo são
vidual, a cultura e a sociedade. Buscar va- menos o fruto de pesquisas quantitativas
riáveis para qualificar a sustentabilidade que de bom senso capaz de superar precon-
de um fenômeno significa criar consensos ceitos e visões maniqueístas da vida social.
mas também pressupõe o antagonismo dos Aí está o desafio aos governantes, empresá-
conflitos presentes nas diversas formas de o rios, planejadores, investidores, e, espe-
homem ser e estar no mundo. cialmente, as comunidades receptoras.
Neste sentido, as variáveis e os próprios A "Carta da Terra" - documento da
significados de (in)sustentabilidade são UNESCO - (2000) é uma tentativa de com-
naturalmente abertos e passíveis a flexibi- plementar a Declaração Universal dos Di-
lidades, adaptações, pois este conhecimento reitos Humanos, agregando a dimensão
é fruto de uma cultura dada, a qual, por planetária, partindo do princípio de que
sua vez, alimenta-se do repertório de noç- não adianta garantir os direitos humanos,
ões, crenças, linguagens etc. Por isso, cate- se o planeta continuar em processo de de-
gorizar o fenômeno de (in)sustentável sig- vastação. (a questão é que estes direitos
nifica, antes construir um pensamento ca- humanos não foram garantidos a todos) O
paz de detectar as falhas, as lacunas, as grande desafio é a defesa do homem, de seu
contradições de todas as tentativas de re- trabalho, de sua dignidade, da extinção das
dução da própria categoria (in) sustentabi- desigualdades sociais e o da conservação do
lidade e sua impotência diante das tentati- ambiente onde se vive. O documento afirma
vas de generalização e definição de leis que humanidade é parte de vasto universo
gerais acerca dos fenômenos sociais. em evolução. Que a Terra, nosso lar, está
Dessa forma, algo é sustentável ou in- viva com uma comunidade de vida única.
sustentável pela compreensão, a priori, de As forças da natureza fazem da existência
que o objeto pensado (no caso, o fenômeno uma aventura exigente e incerta, mas a
turístico) possui uma relativa autonomia, Terra providenciou as condições essenciais
não sendo necessariamente determinado para a evolução da vida. A capacidade de
por forças específicas (no caso, os modos de recuperação da comunidade da vida e o
produção capitalista). Desta forma, mitos e bem-estar da humanidade dependem da
ideologias habitam os discursos e não mais preservação da biosfera saudável, com to-
se excluem, ou seja, para compreendermos dos os sistemas ecológicos, uma rica varie-
as repercussões da (in)sustentabilidade do dade de plantas e animais, solos férteis,
fenômeno jurídico necessitamos rever a águas puras e ar limpo. O meio ambiente
estruturação do pensamento, da capacidade global, com seus recursos finitos, é preocu-
de pensar. Necessitamos ir além da racio- pação comum de todas as pessoas. A pro-
nalização que escraviza os objetos estuda- teção da vitalidade, diversidade e beleza da
dos buscando encerrá-los em sistema lógico Terra é um dever sagrado. E erradicar a
e coerente. pobreza é imperativo ético, social, econômi-
Enfim, só avançamos na nova estrutura co e ambiental.
de pensamento, se aliarmos diversas com- A “Agenda 21”, transformada em Pro-
petências relativas ao ato de conhecer. No grama, procura integrar as atividades rela-
caso da (in)sustentabilidade do fenômeno tivas ao desenvolvimento e meio ambiente,
turístico, urge que acrescentemos novos ou seja, quer realizar o desenvolvimento
olhares e contribuições de outros campos do sustentável, evitando o esgotamento da

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natureza, e redirecionar as políticas. Al- senvolvimento sustentável, de melhoria


guns empresários, que entenderam os ques- de ambientes, de recuperação ambiental;
tionamentos, buscam agregar valor am- • Discutindo a possibilidade de geração de
biental, cultural e social aos produtos, utili- oportunidades para os considerados ex-
zando tecnologias brandas e políticas para cluídos do trabalho, da chamada cadeia
diminuir impactos negativos, assumindo produtiva do turismo;
responsabilidade social, embora muitos • Tornando a qualidade de vida mais viá-
outros permaneçam utilizando apenas a vel nas cidades, com políticas alternati-
propaganda e o marketing da maquiagem vas de habitação, de educação e de pe-
verde para tentar passar imagem positiva. quenos negócios;
Responsabilidade Social é o compromis- • Participando da implementação local da
so contínuo da empresa em adotar a ética Agenda 21 seguindo os princípios de
do desenvolvimento social, sustentada so- sustentabilidade estabelecidos na Confe-
bre o tripé da qualidade de vida, inclusão rencia Rio/92.
social e respeito ao homem, à natureza e às De algoz a protagonista de ações afirma-
gerações futuras. Nela, estão presentes a tivas, na proteção das cidades, paisagens,
Responsabilidade Ambiental e a Responsa- serras, litorais, sertões, enfim, de grande
bilidade Cultural. A Responsabilidade Am- variedade de geossistemas ou espaços ge-
biental não se limita ao compromisso volta- ográficos, os programas governamentais
do para a natureza (flora, fauna, ar e água), começam timidamente a criar políticas al-
mas cada vez mais se funde com a Respon- ternativas de turismo voltado à diminuição
sabilidade Cultural, no que se refere à das desigualdades regionais, disparidades
compreensão estratégica dos recursos cul- sociais, à conservação ambiental, à manu-
turais, históricos e sociais para o desenvol- tenção de lugares saudáveis. Dessa for-
vimento humano. Não se deve poluir a ma,vão integrando novos elementos para a
praia, o ambiente, assim como não se pode (re)definição de variáveis relativas à reflex-
depredar o patrimônio histórico, os modos ão acerca da (in)sustentabilidade das ações
de vida e as culturas. do turismo, os quais passam a observar ou
Em alguns empreendimentos turísticos, a refletir sobre:
podemos encontrar exemplos indicativos de • Um novo paradigma para o desenvolvi-
possibilidade de mudanças sociais diferen- mento;
tes dos modelos vigentes. Algumas iniciati- • Uma sociedade mais justa e solidária;
vas, em Fortaleza, capital do Ceará e quar- • As práticas do consumo;
ta maior cidade do Brasil, indicam tendên- • Aumento da consciência ecológica, da
cias animadoras para o exercício da respon- cidadania, da educação ambiental dos
sabilidade social, caminhando na busca de visitantes e visitados;
iniciativas turísticas mais solidárias: • A biodiversidade e diversidade cultural
• Combatendo e denunciando o trabalho não como recursos produtivo, mas como
infantil nos empreendimentos; patrimônios da humanidade;
• Capacitando trabalhadores de bares e • As formas compartilhadas de planejar e
restaurantes populares localizados no gerir com base local;
entorno dos grandes hotéis e resorts; • A formação profissional voltada para o
• Patrocinando empreendimentos cultu- resgate da afetividade e da visão
rais e de lazer popular; humanística;
• Combatendo a prática de esportes inse- • O comportamento ético das operadores e
guros, oferecendo condição para aqueles agências especializadas – comprometi-
passíveis de controle de segurança; das cada vez mais com a prática turísti-
• Combatendo a displicência e a desones- ca responsável;
tidade praticada contra o turista; • A construção de sistemas de promoção e
• Ajudando a organização comunitária na marketing turístico adequada aos am-
luta por seus direitos e concretização da bientes frágeis utilizados para o ecotu-
cidadania; rismo;
• Apoiando a realização de estudos, pes- • O apoio às pequenas e médias empresas;
quisas e programas com objetivos de de- • A Proteção / conservação dos recursos
naturais / culturais;

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• O investimento em pesquisas cientificas, 2004 As dimensões culturais da transfor-


voltadas ao turismo. mação global: uma abordagem antro-
Tais iniciativas são mais ou menos efi- pológica. Brasília: UNESCO.
cazes em função das respostas culturais das
Boff, Leonardo
sociedades nas quais são experimentadas.
No entanto, mantêm-se enquanto utopias, 1999 Saber Cuidar. Ética do Humano –
como possibilidade, sonho e desejo de nos Compaixão pela Terra. Petrópolis: Vo-
conhecermos mais, pelo conhecimento e zes.
reconhecimento dos limites do homem. Bourdieu, Pierre
Muitos movimentos socio-cultural- 1979 La distinction: critique sociale du
ambientais vêm propondo programas e jugement. Paris, Les éditions de minuit.
ações neste sentido, como é o caso da coa-
Capra, Fritjof
lizão globalizada de Organizações Não Go-
vernamentais, pautada nos valores centrais 2003 As Conexões Ocultas: Ciência para
da dignidade humana, base de quaisquer uma Vida Sustentável. São Paulo.
projetos ditos sustentáveis. Em 1999, as Carta da Terra
organizações realizaram protestos ao mode- 2000 Rio de Janeiro: Ibase - Instituto Brasi-
lo de consumo insustentável da sociedade leiro de Análises Sociais e Econômicas.
capitalista, na reunião da Organização Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e
Mundial do Comércio, em Seattle. A “Coa-
Desenvolvimento
lizão de Seattle”, como foi chamado o mo-
vimento (paralelo ao da Organização Mun- 1991 Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro:
dial do Comércio), é a luta por outra globa- Ed Fundação Getulio Vargas.
lização. Trata-se de movimento global pela Coriolano, Luzia Neide M. T.
justiça social, pela busca da sustentabilida- 1998 Do local ao global: O Turismo litorâ-
de social que vem realizando os Fóruns neo cearense. Campinas-SP: Papirus.
Sociais Mundiais, em Porto Alegre, Brasil.
2003 Turismo de inclusão e Desenvolvi-
Todos os movimentos e encontros sistemá-
ticos vêm estimulando o surgimento de
mento Local. Fortaleza: FUNECE.
contra-propostas políticas em busca de uma Coriolano, Luzia Neide M. T, Lima, Luiz
sociedade sustentável, para que se possa Cruz (orgs.)
pensar na sustentabilidade do desenvolvi- 2003a Turismo Comunitário e Responsabi-
mento, particularmente, por meio do fenô- lidade Socioambiental. Fortaleza:
meno turístico. Os movimentos associam-se EDUECE.
na busca de novas reflexões acerca das nos-
2003b Turismo e desenvolvimento social
sas relações com o mundo, e para conosco,
que definem papéis, espacialidades, hierar- sustentável. Fortaleza: EDUECE.
quias e formas de dominação. Que essas 2004 Turismo, territórios e sujeitos nos
reflexões perdurem, pois são especialmente discursos e práticas políticas. Tese de
necessárias aos destinos da América Lati- doutorado. Aracaju: UFS / NPGEO.
na, historicamente constituída de ex- 295p.
colônias ainda hoje periféricas aos proces- Coriolano, Luzia Neide M.T, e SILVA, Syl-
sos de mundialização econômica e, por isso,
vio Bandeira de M. e.
ciosas de novas alternativas para o desen-
volvimento dod povos. 2005 Turismo e Geografia: reflexões críti-
cas. Fortaleza: EDUECE.
Bibliografia Cunha Filho, Francisco Humberto
2006 Cultura e Democracia na Constituiç-
AGENDA 21. ão Federal de 1988. Rio de Janeiro, Edi-
1992 Diário Oficial da União em tora Letra Legal.
02/06/1992. Dowbor, Ladislau
Arizpe, Lourdes (Org.) 1998 A Reprodução Social: proposta para
uma gestão descentralizada. Petrópolis:
Vozes.

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Leitão, Cláudia (Org.) Soja, Edward W.
2003 Gestão Cultural: significados e dile- 1993 Geografias pós-modernas: a reafir-
mas na contemporaneidade. Fortaleza, mação do espaço na teoria sócio-crítica.
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Lopes, Carlos ro: Zahar.
2005 Cooperação e desenvolvimento huma-
no: a agenda emergente para o novo
milênio. São Paulo: Editora UNESP. NOTAS
Maffesoli, Michel
2005 O Mistério da Conjunção: ensaios 1
sobre comunicação, corpo e socialidade. O primeiro item de exportação é o calçado, o
Porto Alegre, Sulina. segundo os produtos têxteis e o terceiro a cas-
Mendes, Cândido (org) tanha de caju Depois do turismo são produtos
de exportação: couros e peles, camarão, lagos-
2003 Representação e Complexidade, Rio
ta, frutas tropicais, confecções, ceras vegetais
de Janeiro, Garamond.
e ferro.
Moraes, Antônio Carlos Robert
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Turismo realizado por trabalhadores, operá-
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1997 “O mundo, o Brasil e a globalização: o Sometido a evaluación por pares anónimos
horror não dura eternamente”. Rev.
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