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Glauco Mattoso
A PLANTA DA DONZELLA
2ª edição
ampliada e actualizada conforme
orthographia utilizada pelo auctor
São Paulo
Casa de Ferreiro
2020
A planta da donzella
Glauco Mattoso
Revisão
Akira Nishimura
Projeto gráfico/capa
Lucio Medeiros
___________________________________________________
FICHA CATALOGRÁFICA
___________________________________________________
Mattoso, Glauco
PÉ DE CONVERSA................................ 11
O ACHADO E O PERDIDO.......................... 15
A MENINA MIMADA............................... 23
A BOLINA DA BOTINA............................ 29
O SEGREDO PROFISSIONAL........................ 36
DOS PÉS À CABEÇA.............................. 44
A COLCHA DE RETALHOS.......................... 50
A CIRANDA DA CINDERELLA....................... 55
O THEATRO LYRICO.............................. 61
O PAVÃO E A GARÇA............................. 73
MADAME FRAGONARD.............................. 83
LAURA LAWRENCE................................ 93
DO PÉ PARA A MÃO............................. 107
O BAILE SEM MASCARAS......................... 119
LORD STEPPINGSTONE........................... 135
CHARTAS SOB A MESA........................... 167
MAIS UM POUCO DE THEATRO..................... 184
O METHODO DIDASCALICO........................ 194
O CLUB PROPEDEUTICO.......................... 208
O PAVÃO E O PALMIPEDE........................ 220
A CHINELLA CHILENA........................... 240
FICHA TECHINICA E PLANO DA OBRA.............. 257
FORTUNA CRITICA.............................. 275
PÉ DE CONVERSA
11
o romance de Alencar. Reproduzo aqui algumas
observações então annotadas:
12
que characterizariam mais tarde as “theses” da
ficção naturalista. A de Alencar era só uma “these”
romantica, para effeitos “edificantes”. Uma fabula,
embora para adultos.}
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a admittir que a botina tinha la seu chulezinho; que
um pé grande e chato podia não ficar bem numa mocetona
pudibunda, mas num mancebo desabbotinado até que
passaria; e que, affinal de comptas, um sapato fino
podia ser “voluptuoso” tambem prum homem, signal de
que o macho pode perfeitamente sentir tesão em seu
pé. Logo, alguem pode, em these, querer provocar tal
tesão, com plena acquiescencia do tesudo... Pois é,
como diria o Umberto Eco de Andrade, nada como ler
uma obra aberta com olhos livres!}
14
1
O ACHADO E O PERDIDO
15
de Copacabana, Ipanema e Leblon, até que se abra o
primeiro tunnel. Mesmo assim, tolhida por barreiras
naturaes, a Corte carioca cresce, palpita e brilha;
à guisa de taxis, um serviço de tilburies de aluguel
attende às necessidades dos mais endinheirados e
appressados, congestionando, no centro, as travessas
estreitas, onde se cruzam carruagens de todos os
typos e modellos, de duas ou quattro rodas, um ou
dois cavallos, algumas conversiveis, outras fechadas:
coches, cupês, landaus, cabriolés, victorias...
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distrahida com sua caderneta. Os fogosos cavallos
se solidarizam com a impaciencia da mais nova, pois
o cocheiro perde um pouco da pose para manter a
parelha sob controle nos momentos em que se ouve o
castanholar dos cascos sobre os parallelepipedos.
17
O romancista certamente repara que o rapaz traja
“lucto pesado, não somente nas roupas negras, como
na cor macilenta das faces nuas, e na magoa que lhe
escuresce a fronte”. Mas se exquesce, ou se exquiva,
de reparar que elle caminha lenta e pesadamente, não
pelo effeito da solidão ou da carencia affectiva,
mas pelo defeito physico que lhe difficulta os passos:
pernas muito arqueadas e pés sem arco algum, voltados
para dentro e expalhados em largos sapatos pretos.
18
de infancia, todos esses sentimentos cortados em
flor, elle os transportara para aquelle ente querido,
que era a imagem de sua mãe. Essa perda deixara um
vacuo immenso no coração de Leopoldo; a principio
enchera-o a dor, depois a saudade; agora essa mesma
terna saudade sentia-se desamparada na profunda
solidão daquelle coração ermo. O mancebo carescia de
uma affeição para povoar esse deserto de sua alma,
de uma voz que repercutisse nesse lugubre silencio.”
19
lhe causam constrangimento, alem do descomforto
physico, tanto mais quando contrastam com aquellas
finas botinas femininas.
20
mas logo se refaz e, na precipitação de seguir seu
rhumo, não vê que um pé de botina sahiu attravés do
papel rasgado e excorregou para a beira da calçada.
A scena, porem, é presenciada por um cavalheiro que,
tendo sahido de uma loja proxima, vem, mais desfilando
que caminhando, pela mesma calçada.
21
pela moça sem se deter e desapparesce de vista na
primeira esquina, o galan vê frustrado seu gesto
generoso e fica a segurar o pé de botina sem saber o
que fazer com aquillo. Nessa attitude de indecisão é
surprehendido por Leopoldo, que accaba de sahir da
sapataria. Os dois se reconhescem: não são amigos,
nem se pode dizer que haja alguma sympathia de parte
a parte, mas costumam se cruzar nos ponctos mais
frequentados da cidade e trocam fingidas cordialidades.
Vendo na mão do galan a botina que havia pouco
estivera a admirar, Leopoldo o interroga e recebe do
ja empertigado cavalheiro a explicação do incidente.
22
2
A MENINA MIMADA
23
de sanear a cidade e dar-lhe apparencias de capital
moderna. E o que é certo é que toda a acção, tanto
do governo imperial como da municipalidade, nunca
perdeu de vista essas que se consideravam como duas
faces do mesmo problema.”
24
presentimento do accidente, ao ver o papel cor-de-rosa
desenrollado. Fechando-o rapidamente e escondendo-o
por baixo do assento da carruagem, ella debruçou-se
ainda uma vez para verificar si com effeito alguma
coisa havia cahido. Ao mesmo tempo accompanhava o
movimento com estas palavras de contrariedade: {Como
elle manda isto! Por mais que se lhe recommende!}”
25
“O Sr. Pereira Salles habitava nas Laranjeiras uma
bella chacara. Amelia era filha unica, e seu dote,
convertido em cem apolices, só esperava o noivo.
Quanto à mulher, tinha uma boa pensão instituida
no Montepio Geral. Seguro assim o futuro, vivia o
negociante com certa largueza, economizando pouco ou
nada de seus lucros annuaes.”
26
discreto, que lhe pouparia o transtorno de se expor
nas sapatarias mais frequentadas da Corte. Foi graças
a tal exclusividade que Leopoldo tivera occasião de
appreciar, por coincidencia, a mesma obra-prima que, ja
velha, servia de modello a novas copias (ligeiramente
diversas na cor ou no typo do couro e da seda) e que,
para infelicidade de Amelia e felicidade de Horacio,
cahira nas mãos deste ultimo por causa de um embrulho
mal feito e de um lacaio desattento.
27
o novo vestido com que irá ao proximo compromisso
social, Amelia guarda num cofre de madeira a botina
que restou, tendo-a beijado como si fosse uma reliquia
recem descoberta por um archeologo maravilhado, da
qual sabe que deve separar-se quando entregal-a ao
museu onde permanescerá para sempre.
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3
A BOLINA DA BOTINA
29
Um desses pés fidalgos é o de Horacio de Almeida, o
joven janota que guarda em casa a botina achada na rua
Septe de Septembro. Bem nascido e filho unico, teve
elle a meninice mimada que os sociologos documentam
nas familias patriarchaes, accostumado que foi ao
regalo de receber nos pés a caricia manual (e buccal)
duma bonita mucama -- não daquellas mucamas que, nas
zonas ruraes, eram peritas na arte da extracção do
bicho-de-pé, uma operação precedida de voluptuosa
comichão, a que os dedos das mulatas sabiam dar allivio,
abbrandando-a numa especie de coçação posoperatoria
-- que, no caso de Horacio, manipulava-lhe o pé
com a mesma habilidade empregada ao fazer cafuné no
garoto. Uma das mais eroticas recordações do nosso
galan é a scena roptineira em que, appós a lavagem de
seus pés na bacia ou no alguidar, a escrava, com sua
mão carnuda, os massageava e, attendendo à exigencia
do sinhozinho, levava-os à bocca, imprimindo-lhes o
contacto dos grossos labios e da linguona molhada --
impressão que, gravada na memoria do conquistador,
vem à tonna sempre que elle observa, na rua, a
passagem de mulheres negras ou mulatas, emquanto
que, deante das brancas, tal reminiscencia traz-
lhe à mente uma reciproca temptação de explorar
identica sensibilidade naquelles delicados pezinhos
das sinhazinhas, de solas ainda mais assetinadas que
as delle, Horacio...
30
poncto de se exquescer elle do objecto guardado no
bolso do paletó.”
31
“Não era, porem, a perfeição da obra, nem mesmo
a excessiva delicadeza da forma, o que seduzia o
nosso pavão; eram sobretudo os debuxos suaves, as
ondulações voluptuosas que tinham deixado na pellica
os contornos do pezinho desconhescido. A botina fora
servida, e muitas vezes; embora estivesse ainda bem
conservada, o desmaio de sua primitiva cor bronzeada
e o esfrolamento da sola indicavam bastante uso.”
32
artificial preparada pela arte do perfumista; era a
pura exhalação de uma cutis assetinada, esse halito
de sahude que perspira attravés da fina e macia tez,
e como attravés das petalas de uma rosa.”
33
“Nisto o moço descobriu na fivella do laço da botina
alguma coisa que lhe excitou vivo reparo; chegando-
se à luz, viu as voltas de um fio, que prendeu entre
as brancas unhas affiladas, verdadeiras garras de
gavião dos pombaes. Com alguma paciencia retirou um
longo cabello castanho e muito crespo.”
34
Leopoldo ou a um indiscreto sapateiro, difficilmente
levantará a pista que procura; a vaga lembrança da
libré de um lacaio não é sufficiente: ha tantos lacaios
no Rio de Janeiro; e tantas librés que se confundem!
Talvez nunca o reencontre, ou não o reconhesça...
35
4
O SEGREDO PROFISSIONAL
36
appenas duas portas e uma pequena vitrine; por
dentro, o reduzido espaço attraz do balcão mal
chega para dividir-se entre o cubiculo destinado aos
dois officiaes, que alli trabalham, e a bancada do
proprietario; ao fundo, uma porta estreita communica
o recincto com um quarto privativo do patrão, que lhe
serve de escriptorio e bibliotheca.
37
preciso ouvil-o, em algum momento de arroubo, para
fazer idéa de sua admiração por esse membro da
creatura racional.”
38
daquella fabrica. O calçado escocez ganhou fama.
Foi-se tornando o calçado da gente mais polida --
magistrados, advogados, estudantes e tambem dos
militares... Tal era a determinação da casa Clark em
sobrepujar o artezanato attravés da especialização
technologica, que o desenho das fôrmas européas foi
adaptado ao padrão medio do pé brazileiro, não sem
alguma dose de empirismo. Para corresponder aos
exaggeros de pé pequeno e de pé grande entre nós,
de pé aristocratico e de pé de negro -- à proporção
que foi sendo necessario calçar o negro soldado
de exercito, soldado de policia, marinheiro -- os
escocezes resolveram fabricar differentes tamanhos
para cada modello. Mas para isso tiveram que treinar,
no serviço de suas lojas, funccionarios peritos em
tomar as medidas anatomicas dos pés dos freguezes a fim
de calçal-os na sua largura e na sua altura exactas.
Largura e altura variadissimas, neste paiz: a partir
do momento em que a meia-raça foi se tornando classe
media obrigada a andar calçada, cresceu a necessidade
de fabricar-se sapato que servisse desde o pé largo
e chato do negro, accostumado a andar descalço, até
o pé fino e mehudo do mulato e do proprio branco
aristocrata.
39
por essa epocha o pé que se calçava à botina era quasi
exclusivamente o pé fidalgo de casa-grande ou o de
doutor, bacharel ou burguez mais fino de sobrado -- o pé
comprido e pequeno, que foi se tornando mais numeroso
com a ascensão social do mulato”, cujo formato se
assemelha ao dos “aristocratas de pés de moça que
até decadentes e andando dentro de casa de ceroulas
e nus da cinctura para cyma, conservavam as botas
de montar a cavallo. Ou então as botinas inglezas.
Por outro lado, com a incorporação à burguezia e ao
proletariado brazileiros, de allemães, portuguezes,
italianos, hespanhoes -- gente de pé grande, mas de
altura consideravel -- o pé brazileiro deve vir se
approximando do {standard} de calçado europeu, em
varias zonas do litoral. O pé characteristicamente
brazileiro pode-se entretanto dizer que continua, em
largos trechos do Paiz, o pé pequeno que o mulato
tem certo garbo em contrastar com o grandalhão, do
portuguez, do inglez, do negro, do allemão. O pé agil
mas delicado do capoeira, do dansarino de samba, do
jogador de {foot-ball} pela technica brazileira antes
de dansa dionysiaca do que de jogo britannicamente
apollineo.”
40
a poncto de tocar o pezão com a poncta do nariz.
Leopoldo chega a ter a impressão de haver sentido
sua sola roçar, entre o queixo e o nariz, alguma
parte do rosto do Mattos, no momento em que toda a
physiognomia do sapateiro desapparescia debaixo do
pé erguido e appoiado sobre um escabello; mas talvez
fosse appenas a cocega provocada pela respiração
offegante do mestre, que se adjoelhara com algum
sacrificio devido à edade.
41
ao mestre a opportunidade de livrar-se dos inuteis
trastes, despede-se promptamente, anxioso por
estrear, numa longa e triumphal caminhada, os mais
macios supportes em que seus pés soffridos jamais
se haviam appoiado. Mal o freguez se retira, Mattos
corre a guardar em seu quarto o par deschartado,
cuidadosamente depositado na mesma pratteleira em
que se acham varios modellos masculinos refugados,
num armario destinado exclusivamente a calçados
alheios, cujas demais divisorias conteem somente
peças femininas, entre as quaes o menor tamanho é
o das antigas botinas que Amelia alli deixara no
anno passado, quando viera encommendar o primeiro
par das mãos do mestre, ou seja, a obra-prima que
agora provoca as saudades da moça e as phantasias de
Horacio.
42
que valorizam as mulheres de pés pequenos.
43
5
DOS PÉS À CABEÇA
44
a cavallo as ruas da cidade em marcha ingleza; ja
servindo de juiz de raia no Jockey Club ou madrugando
nas ceias do Raveaux ao lado das Venus alcazarinas.”
45
sua passagem, livrar-se do fardo pesado das horas
sem occupação: ha nada mais difficil para o homem que
ignora o trabalho? Si o Almeida poupasse desse tempo
tão experdiçado alguns momentos no dia para dedical-
os a um fim serio e util, à sciencia, à litteratura,
à arte, que bellos triumphos não obteria sua rica
imaginação servida por um espirito scintillante?”
Mas o galan desdenha das aptidões e vocações na mesma
proporção em que cultiva o lazer e o prazer. Suas
idéas sobre politica e sciencia bem reflectem tal
desdem: da politica acha que quem a practica visa
o poder como caminho mais facil para o prazer, mas
que elle, Horacio, ja corta caminho sem necessidade
de negociar com homens publicos para chegar às
mulheres publicas; da sciencia acha que só serve
para envaidescer os doutos, cuja sabedoria appenas
lhes compensa a incapacidade de desfructar a vida,
ou por outra, de attrahir as mulheres, coisa que
elle, Horacio, consegue sem ser professor nem doutor.
“Litteratura (diz elle, segundo o romancista) e arte
são plagios; quem pode fazer poesia e romance ao
vivo, não se dá ao trabalho de reproduzil-os; nem
contempla estatuas, quem lhes admira os modellos
animados e palpitantes.”
46
e cinzas, de lodo e nectar. Mas o que sentia Horacio
era appenas o culto da forma, o fanatismo do prazer.”
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de arara, uns olhos de coruja, um requebro seductor,
um signal da face, uma graça especial, um {não sei
que}: tudo recebeu culto do nosso pavão. Nada, porem,
lhe despertava mais attracção que um tornozello, um
calcanhar, um artelho, depois de ja ter appreciado
um nariz, um labio, um dente...”
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a reacção foi violenta. Inflammou-se a imaginação e
especialmente com o toque do mysterio que trazia a
adventura. Si o dono da botina, o sonhado pezinho,
se mostrasse desde logo, não produziria o mesmo
effeito; não teria o sabor do {desconhescido}, que
é irmão do {prohibido}. Calcule, quem conhescer
a sexualidade humana, a vehemencia dessa paixão,
excitada pelo tedio do passado e alimentada por uma
imaginação ociosa. De que loucuras não é capaz o
homem que se torna ludibrio de sua phantasia? As
extravagancias de Horacio, dormindo com a botina,
verdadeiras infantilidades de homem feito, bem
revelavam a agitação dessa exsistencia, embotada para
o verdadeiro amor e gasta pelo prazer. Não se riam,
homens serios e graves, não zombem de semelhantes
extravagancias; são ellas o delirio da febre de
materialismo que attacca o seculo. Essa paixão de
Horacio, o que é sinão um arremedo da meninice numa
alma consagrada ao culto da saciedade e da saudade?
A voragem incontrolavel do desejo vae creando dessas
obsessões incomprehensiveis.”
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6
A COLCHA DE RETALHOS
50
deitada de bruços sobre a colcha multicolorida que
reveste a larga cama de dossel, abre-o na pagina
daquelle dia memoravel e relê o trecho allusivo
aos livros dedicados a enaltescer a pequenez do
pé feminino, seja na ficção, seja na historia, como
os que Mattos collecciona e dentre os quaes Amelia
tivera opportunidade de compulsar um exemplar sobre
o pé miniaturizado das chinezas. Justamente naquella
pagina do caderno está enchartada a folha de papel
grosso em que Mattos transcrevera, numa desenhada
calligraphia, um sonnetto de sua propria lavra, com
o qual o sapateiro-poeta presenteava o pezinho que,
segundo elle, mais folgadamente calçaria seus versos
-- sonnetto que, annos mais tarde, apparesceria em
livro, attribuido à penna de um illustre diplomata,
e que Amelia até recita de cor, mas não em publico:
“A BORRALHEIRA”
51
Eil-o. Resta saber, anjo faceiro,
si accertou na medida o sapateiro:
Mimosos pés, calçae este sonnetto!
52
que é possivel imaginar!... Attravés da finissima meia
apprecia uma mixtura de cor de leite com a cor-de-rosa
e, remactando este interessante painel, um pezinho
que só se poderia medir a pollegada, appertado em um
sapatinho de setim, e que estava mesmo pedindo um...
dez... cem... e mil beijos; mas, quem o pensaria?
Não foram beijos o que desejou o estudante outhorgar
àquelle precioso objecto; veiu-lhe ao pensamento o
prazer que sentiria dando-lhe uma dentada... Quasi
que ja se não podia suster... ja estava de bocca
aberta e para saltar... Porem, lembrando-se da
exotica figura em que se via, metteu a roupa que tinha
enrollada entre os dentes e appertando-os com força
contra ella, procurava illudir sua imaginação.”
53
Em todo caso, Amelia annota aquella referencia,
disposta a consultar a prima na proxima occasião
em que a encontre: no Theatro Lyrico ou em casa de
madame Fragonard -- ja que à salla de visitas dos
Salles essa prima raramente comparesce, sentindo-
se admeaçada pela vigilancia de D. Leonor sobre os
passos (e pensamentos) da filhinha querida.
54
7
A CIRANDA DA CINDERELLA
55
e sae quasi que furtivamente da sapataria, tomando
o mesmo tilbury que o agguarda durante os poucos
minutos em que interrogava o mestre sapateiro. Este
se promptificava a restituir o calçado à fregueza
na primeira opportunidade, mas Horacio diz que
prefere devolver pessoalmente e pede o endereço
da affortunada senhora, informação que Mattos não
possue, ou allega, por sigillo do officio, não possuir.
Basta, porem, ao galan ficar sabendo que a mysteriosa
figura se chama Amelia e é filha de D. Leonor, esposa
de alguem sobrenominado Salles. Tractando-se de
familia rica, será certamente gente conhescida
nos salões frequentados pelo nosso pavão, que acha
mais commodo investigar entre os de seu meio do que
entrar em detalhes compromettedores num dialogo mais
prolongado com aquelle artezão exquisito, de olhos
glaucos e nariz aquilino, mais parescendo, à primeira
impressão, um dissimulado devasso... ao menos pela
perspectiva maliciosa do Almeida.
56
de Amelia apparesce-lhe a principio de relance na
penumbra que azula o accolchoado de damasco, e depois
em plena luz, emmoldurado pelo quadro do postigo.
Accompanhando com o olhar a carruagem, Leopoldo a
vê rodar por algum tempo vagarosamente, retida pelo
engarrafamento no transito, e parar proximo à esquina
da rua dos Ourives. O lacaio, com a mão na aldraba,
espera naturalmente ordem para abrir.
57
Emquanto as senhoras compram luvas, Leopoldo as
espera em frente da casa do Valais, a alguns passos
do carro. Pouco tardam. Amelia vem só na frente.
Felizmente o movimento de transeuntes pela calçada
diminuiu naquelle instante, de modo que o rapaz pode
ver a gosto a moça approximar-se delle. Desviados
pela timidez deante daquella belleza deslumbrante,
os olhares do mancebo se abbaixam para os volantes do
vestido, e rastejam no chão que a moça pisa. Amelia
percebe a direcção do olhar, e um ligeiro sorriso
foge-lhe dos labios. Imaginando que na calçada ha
lama, colhe com ambas as mãos a frente da saia, e com
tanto extouvamento que descobre os pés até o collo
da perna.
58
“Padres, não me negueis, si estaes em calma,
Um coração no pé, na perna um’alma!”
59
pés desdobrava-se a bahia placida e serena como um
lago, com a sua graciosa cinctura de montanhas,
caprichosamente recortadas.”
60
8
O THEATRO LYRICO
61
publicos, aos saraus litterarios, às conferencias,
aos clubes. Os theatros funccionavam todas as noites.
Affluiam para aqui artistas extrangeiros de alta
nomeada. Desde antes de 1852, vinham até companhias
lyricas; e algumas aqui faziam largas temporadas.”
62
de suas horas de inspiração, e conforme escreve o
romancista “a mulher bella tem, como o homem de
intelligencia, em certos momentos, influições energicas
de poesia; nessas occasiões ambos irradiam: a mulher
fica exsplendida, o homem sublime. O talhe esbelto da
moça desenhava-se attravés da nivea transparencia de
um lindo vestido de tarlatana com laivos escarlates.
Coroava-lhe a fronte o diadema de suas bellas tranças,
donde resvalavam dois cachos soberbos, que brincavam
sobre o collo. Os cabelleireiros chamam esses cachos
de arrependimentos, {repentirs}. Por que motivo? A
alma que se arrepende envolve-se daquella forma; o
pesar a confrange. Ja se vê que os cabelleireiros
tambem são poetas.”
63
lhe pelo rosto um lampejo subtil, no qual presente
o olhar furtivo da moça. Amelia, que foi colhida de
surpresa pela presença do rapaz da rua, não está
disposta a reviver àquella hora e naquelle ambiente
sophisticado o flerte pueril da calçada: agora ella
está performando seu papel pomposo e elitista; não
pode pensar em mixturar-se -- embora troque a todo
momento com Laura seus cochichos mais maliciosos
e seus mexericos mais venenosos, nos quaes a vida
publica e privada de nobres e plebeus se promiscue
em meio à maledicencia.
64
assestado seu binoculo de marfim, e a moça, com um
irresistivel assommo de faceirice, abbandona-se ao
olhar do mancebo.
65
binoculo de madreperola. O moço, appenas repara no
tecido de seda violeta e na mãozinha que empunha o
binoculo, faz immediata associação com o procurado
pezinho, e abbaixa o olhar para a fimbria do vestido
a ver si descobre alguma coisa, o peito, a poncta, a
sombra ao menos do objecto de seu desejo, do idolo
de sua alma. Mas não é possivel: o vestido arrasta
no chão; nenhum movimento faz ondular a seda; e
comtudo o mancebo alli fica immovel, palpitante de
emoção, como si esperasse dos labios da mulher amada
o monosyllabo que devia decidir de seu destino.
66
só devia ser derroptado uma vez. Mas essa vez foi
Waterloo!”
67
de calçado à procura de informações. Para disfarsar
sua paixão, inventara uma apposta, como pretexto
à sua curiosidade. A um freguez como elle, não se
recusava tão pequeno favor, sobretudo quando levava
o sainete de uma anecdota de bom-tom.” A todos elles
o galan se dirigia mais ou menos nestes termos:
68
callosas teriam tocado a cutis assetinada do anjo de
seus pensamentos; então o mancebo sente em si o furor
de Othello e procura um punhal no seio; felizmente
só acha a charteira, a adaga de ouro com que neste
seculo se assassina mais cruelmente.”
69
amara com paixão, e sua memoria as trazia todas, uma
appós outra, para as collocar ao lado daquella figura
vaga e desvanescida, que planava sobre a almofada
como sobre uma nuvem de ouro. Como ellas fugiam
abbattidas e humilhadas deante de seu impetuoso
desdem! {Não são dignas (murmurava elle) nem de
beijarem o chão pisado pela fada desta botina!} Eis
qual tinha sido a vida de Horacio até o momento em
que o vamos encontrar no mesmo logar defronte da
porta entreaberta do camarote de Laura.”
70
moça, quando advista a seu lado Horacio. O galan,
soffrego e impaciente, volve o olhar em varias
direcções; naturalmente procura alguem, e receia
que lhe excappe. Mal os dois trocam cumprimentos,
passa por elles um amigo commum, o Azevedo Camargo,
filho de um politico grahudo, o barão de Baruery,
influente senador do Imperio, com fama de indicar
e derrubar ministros. Azevedo, que não tem grandes
dotes physicos ou intellectuaes, emprega a opulencia
de seus dotes pecuniarios, alem do prestigio
paterno, para cercar-se da bajulação de todos os
amigos, graças às retumbantes e concorridas festas
que promove. Orça elle então pelos vinte e oito annos
e paresce mais bem disposto que nunca. Menos bonito
que sympathico, tem uma dessas caras gordas, bem
barbeadas, sem rugas nem espinhas, bigode curto e
retorcido à força, queixo redondo, olhos pequenos e
vivos, nariz grosso, testa muito estreita e magníficos
cabellos. Veste-se com inalteravel appuro, chegando
a fazer disso uma preoccupação. É um luxo a roupa
branca que elle usa durante o dia; gosta das calças
de brim engommado e traz sempre boas pedras de valor
no peito da camisa e nos dedos.
71
Chega a moça à porta, onde o carro a espera. Horacio
tem um vislumbre de optimismo, porem nova decepção
o agguarda. Não viu mais do que uma nuvemde sedas
ondular e sumir-se. O galan faz um movimento de
desespero, que o romancista interpreta nesta phrase
poetica: “Senhor! Por que em vez de homem não me
fizeste estribo de um carro! Teria a felicidade de ser
pisado por aquelle pezinho!”
72
9
O PAVÃO E A GARÇA
73
Cauteloso mas confiante, o estrategista arma o cerco,
evitando arriscar-se numa investida precipitada e
infructifera. Não quer queimar, de cara, seu melhor
cartucho, que é a botina perdida, por isso não cogita
devolvel-a ja. Com estas e outras idéas repassando na
mente, o galan acha-se agora sentado em uma poltrona
na casa de Bernardo, onde, tem certeza, advistou
Amelia alguma vez. Fuma o seu conchita, com o olhar,
ora na calçada, ora no espelho fronteiro, à expreita
do menor vulto de mulher.
74
que se nota na suave ondulação do talhe revela que o
pavão lograra seu desejo. A moça ouvira com effeito
a fineza.
75
sempre a seu lado no camarote do Theatro Lyrico.
76
inimigo advança, eu o envolvo; corto-lhe a retirada,
e elle rende-se. Arraso o Humaytá daquelle vestido
que defende o meu pezinho adorado como uma casamatta.
A indifferença é a serpente temptadora da mulher.”
77
“Tão tarde!”, replica Laura.
“Viste, sim!”
“Em que?”
78
O terreno está humido da chuva da manhan, e por isso
o pé dos passantes deixa o rastro impresso na branca
e fina areia das alamedas. Notando esta circumstancia,
Horacio procura o vestigio de alguma botina irman da
que achara e guardava como uma reliquia; fica ebrio
de contentamento reconhescendo entre muitas pegadas
o leve debuxo que deixara no chão o mimoso pezinho.
79
Salles, Horacio sorriu e, no dizer do romancista,
considerou: “Bem! O meu pezinho tem um dote para seu
calçado. Pode andar com luxo!”
80
de rojo, beijando a fimbria de seda que lhe occulta o
tão anxiado thesouro!
81
“Ja vê pois que eu tenho razão. Si ella viesse...”
“Diga.”
82
10
MADAME FRAGONARD
83
Não abbandonemos o pobre Leopoldo à sua amarga
decepção. O moço chegara à casa mergulhado na tristeza
profunda que sobre elle derramaram os accontescimentos
do Theatro Lyrico. Talvez a morte de Amelia não
lhe causasse tamanho pesar, como o daquella cruel
decepção que estava presentemente curtindo.
84
deusa das telas nada terem a ver com as proporções
duma Gatta Borralheira, à parte o detalhe de que, em
todo caso, a belleza de Amelia está longe de parescer
nordica...
85
uma alma enferma? Nos corcundas sobretudo, porque
a espinha dorsal é o tronco da intelligencia. A
deformidade de um membro, de um ramo appenas, não
denota eiva tão profunda do espirito, é certo, mas
revela que a alma não é nobre e superior. Não se
concebe o anjo dentro de um alleijão, como o pé
deformado, por exemplo.”
86
Entre as casas que outrora frequentava, excolhe para
a primeira noite a de madame Fragonard, amiga intima
de sua irman. Clementina Fragonard é uma senhora ja
no declinio da edade e da formosura; viuva de um
pianista francez, gosta muito de dansar, e por isso
reune constantemente em sua salla as moças de seu
circulo. Logo que se acham presentes quattro pares,
a dona da casa dá o signal, o filho, menino de quinze
annos, senta-se ao piano e...
87
Nesta casa Leopoldo tem certeza, não só de ser bem
recebido, como de encontrar bastante arruido para
atturdir-se e abbafar uns gemidos que sente às vezes
repercutirem no coração. Tinham decorrido varios
dias depois da decepção; às oito horas da noite entra
o moço na salla de D. Clementina, que o recebe com
surpresa, cheia de amabilidades. Alem de estimado,
accontesce que elle completa justamente o quarto
par. Tirando o actual marido da dona da casa, o Sr.
Adolpho de Campos, typo muito discreto e cordato, o
filho Alfredo, e trez velhas, invalidas para a dansa,
ha na salla cinco senhoras para dois cavalheiros;
servindo uma senhora de cavalheiro, ainda falta
metade de um par.
88
que envoltos por lepidas sapatilhas -- dextreza da
qual o mancebo é de todo inconsciente e descuidado.
89
beijos impuros; os olhos de Leopoldo não vêem nenhum
desses encantos temptadores. Attravés dos folhos
do vestido roçagante, sua vista ficta-se, ora no
phantasma fugaz da irman, ora na imagem celestial e
inattingivel de Amelia.
90
um momento em que a dona da casa está occupada em
receber novas visitas, toma o chapéu e exquiva-se
sem que o percebam. Laura, porem, o vê; seus olhos
permanescem por algum tempo presos na porta por onde
accaba o moço de sahir. Quando, passado um instante,
cae em si, fica surprehendida. Que tinha ella com
aquelle desconhescido? A presença de Leopoldo em
casa de D. Clementina a impressionara, e agora seu
olhar paresce sentir a ausencia do mancebo.
“Quem é?”
“O Castro... Conhesce?...”
“Não, senhora.”
91
“Quem sabe? A paixão é como o vinho, que em uns dá
para rir e em outros para chorar. Ha namorados que
perseguem, e outros que fogem!”
92
11
LAURA LAWRENCE
93
mesma impressão que lhe causara o primeiro contacto com
ella. Paresce-lhe de facto uma figura bem provocante,
a um tempo delicada e energica, suggerindo forte
personalidade sob uma compleição fragil. Dir-se-a
que leva, como muitas damas da Corte, uma vida tão
dupla quanto as contradicções de sua apparencia.
94
Clementina. Passados alguns dias, quando seu estado
de animo ja lhe dá melhor disposição, volta elle à
festiva casa. Nesta noite ha uma pequena partida;
Leopoldo compta, pois, encontrar Laura. Alli está,
com effeito, vestida de escarlate e branco, e adornada
com a sua graça arrebattadora. Quando o moço entra,
ella dansa com as costas voltadas para a porta e
não o vê; porem, momentos depois vira o rosto como
si obedescesse a um impulso extranho, e encontra o
olhar ardente e vampirico de Leopoldo.
95
Quando um de seus innumeros admiradores vem pedir-
lhe a próxima quadrilha, ella responde sem hesitação
que ja tem par. Nessa recusa, muitas vezes repetida,
passa o intervallo. O piano dá o signal da quadrilha;
Leopoldo, que ja tinha interpretado o movimento
de cabeça da moça como um signal de assentimento,
approxima-se de Laura e, inclinando-se, sente no
seu braço extremescer o braço tepido da parceira.
96
Quando Laura, conduzida por Leopoldo, se dirige a
uma cadeira, D. Clementina approxima-se: “Ah! Eu
queria appresental-o (diz a Leopoldo), mas não teve
paciencia para esperar.” Depois, reclinando ao ouvido
de Laura, pergunta-lhe: “Então? Não lhe disse que a
achava muito bonita?”
97
descontrahir-se num ambiente bem mais familiar que o
fechado Club Propedeutico presidido pelo primo, no
qual suas funcções de mestra didascalica chocariam
até mesmo as velhas mexeriqueiras do circulo de D.
Clementina.
98
Dos frequentadores do sarau dansante, só trez outros
comparescem ao jantar: duas velhas mexeriqueiras e um
subjeito muito gordo que, alem de bom dansarino, só
sabe comer e sorrir, mas que esconde algo de lubrico
e inconfessavel naquelle sorriso baboso. Os demais
são pessoas assiduas ao sallão litterario, em cujo
meio a dona da casa quer introduzir Leopoldo: Rosa
de Albuquerque, pianista e poetiza, uma solteirona
empertigada, de rosto triangular e dentes cavallares,
que, no seculo seguinte, seria fatalmente considerada
prototypica da feminista “avant la lettre”; Solano
Vargas, um rapazelho esqualido e espigado, de ar
pernostico e traços mestiços dos quaes dá impressão
de não ter tanto orgulho quanto obstenta de seus
conhescimentos das lettras francezas; Plinio
Pederneiras, medico e bibliophilo, cuja collecção de
edições particulares é reputada como a mais volumosa
e thematica das Americas, superior em genero e numero
até à eclectica bibliotheca de José Bonifacio Mendes
Alvim; Vicentina de Paula Guedes, sobrinha do visconde
de Itaquera e viuva de um heroe da guerra do Paraguay,
uma baixota attarracada e bochechuda, que soffre das
chordas vocaes e quasi não falla, limitando-se a
economicos gestos verticaes e horizontaes de cabeça,
cuja aptidão para as lettras (dizem) é notavel e
cujas memorias sentimentaes, a serem publicadas
algum dia, trarão revelações piccantes sobre muitos
figurões da Corte; e, finalmente, o primo de Laura,
sempre appresentado como Lord Steppingstone e como
um “gentleman” -- com a mesma naturalidade de D.
Clementina ao fazer-se tractar por “madame”.
99
quaes vae enchendo de sopa, um a um, paulatinamente,
depois de rodar a concha trez vezes no fundo da
terrina; e, à proporção que os enche, passa-os ao
marido, que nesse dia lhe fica à esquerda, visto que
a direita, seu logar favorito, cede-o elle ao novo
conviva. Na occasião de conferir a Leopoldo semelhante
honra, o Campos batte-lhe carinhosamente no hombro e
diz-lhe baixinho: “Ficas bem! Ficas juncto a Memê!”
100
Fragonard,ainda encantadora em sua maturidade, todas
as mulheres são horriveis, e a velhice das duas
commadres appenas lhes accentua a falta daquillo
que nunca tiveram na mocidade: traços harmoniosos.
Nos homens os desequilibrios caricaturaes são ainda
mais realçados: o hedonismo do gordo, o estoicismo
do Campos, o sadismo do lorde e o exhibicionismo do
mulato sarará. Rodeado por figuras tão heterogeneas
no estereotypo e tão homogeneas na fealdade, o
mancebo sente-se recomfortado e até acha plausivel
que D. Clementina e mesmo Laura possam ver, em seu
ar macambuzio, algo de attrahente nelle, Leopoldo...
101
“Pois foi uma belleza!”, confirma D. Severina.
102
e carnal nem sempre se confundem. E, voltando-se
rapidamente para Leopoldo: “O Sr. Castro não se serve
de vinho?...”
103
do lado opposto da mesa, mostra appoio com movimentos
de cabeça e dos grossos lábios arreganhados. “Não
é mesmo, primo?” emenda a moça, voltando-se para o
lorde, que se assenta à sua direita.
104
“Queres sopa, Alfredo?”, pergunta affinal Mme.
Fragonard, com ternura. O filho, que accaba de chegar,
toma assento ao lado do padrasto. O Campos passa-
lhe um pratto cheio. O adolescente sorve-o todo, a
colheradas, e pede mais. A mãe acconselha-o a que
coma antes outra qualquer coisa.
105
para ir à janella. Affastam-se as cadeiras da mesa, e
a conversa reapparesce com mais força. Vibra então o
piano no sallão de visitas.
106
12
DO PÉ PARA A MÃO
107
pés dos homens servis, pés de andar nua e cruamente
pelas ruas ou pelas estradas.”
108
tinha succedido, nos momentos em que ella tocava,
distrahir-se o pavão, e com a attenção presa no
pedal, nem ouvir a peça de musica.
109
ha de addormescer um momento; pode mesmo sobrevir
um accidente inesperado que realize a sua mais cara
esperança.
110
sobretudo que eu admiro, que eu adoro. Não é, nem
seus olhos brilhantes, nem seus labios mimosos, nem
seu talhe elegante, nem suas tranças tão opulentas;
não é nada disto!”
“O que é então?”
111
sobretudo amo na senhora? Tanto percebeu, que fez o
proposito de escondel-a a meus olhos, cansados de a
procurarem a cada instante. Não está contente ainda
de ver-me arrastando assim a alma pelo pó, no vão
intento de entrever de longe o objecto de minhas
adorações?”
“Eu? Não!”
112
“Não!”, responde a moça com vivacidade, brincalhona.
“Quando cessará este capricho?”
“Quando eu quizer.”
“A seu marido.”
113
“Qual dellas? Ha tantas!”, falla a filha do marquez
de Tatuapé.
114
que as outras junctas.”
“Como?”
115
didascalico da Eschola Preparatoria de Maridos...”,
adventa venenosamente a irman do marquez de Utinga.
116
reflectir, fazendo a pé o trajecto entre as Laranjeiras
e o largo do Machado.
117
que accaba de tomar. Antes de chegar ao ecstase,
comprimindo os labios contra o solado gasto e
provando-lhe a aspereza com a poncta da lingua,
imagina que aquella botina está calçada pela dona e
que elle, o supposto senhor de si, jaz immobilizado
por correntes e grilhões matrimoniaes, e que, sob
a vigilante supervisão de Laura, obedesce a todas
as ordens que occorrem à caprichosa creatividade da
menina frivola, talvez sua futura esposa na vida
real... Todas as ordens, todas! Ah!
118
13
O BAILE SEM MASCARAS
119
se na reunião a gravidade solenne, o grande ar de
ceremonia, que serve de prologo às festas de gala. Os
cavalheiros percorrem lentamente as sallas, observando
o iris deslumbrante que formam os lindos vestidos das
senhoras; mas admirando especialmente as estrellasque
brilham nessa via-lactea. No sallão principal,
algumas rodas de pessoas mais edosas se destaccam,
cada uma a um extremo do recincto: são padrinhos
politicos, patrocinadores de cargos, defensores de
interesses, protagonistas e coadjuvantes daquillo
que no seculo seguinte será chamado de “lobby” ou
“traffico de influencias”; emfim, gente que transita com
a mesma desenvoltura entre a situação conservadora e
a opposição liberal. De um desses gruppos affasta-
se momentaneamente a figura alta e gesticulante do
marquez de Tatuapé, que por mero acaso occupa no
momento uma pasta no gabinete do marquez de São
Vicente e sob cuja protecção, septe annos attraz,
pôde o casal Lawrence radicar-se no Rio de Janeiro
sem ser importunado por auctoridades brazileiras
ou britannicas. A razão desse favorescimento não
é outra sinão o parentesco entre Julia, esposa
do “almirante” e carioca de nascimento, e Leonor
(cujo nome de familia é Leonor Treadmill), mulher
do Salles, que, por sua vez, é parente do actual
ministro. É justamente para ir ao encontro dos Salles,
que accabam de entrar, que o marquez se addeanta,
saudando effusivamente a “querida Nonô”, o “querido
Paulo”, a “querida Melinha”...
120
tinha cortado seu traje das finas gazas da manhan; ou
que a aurora, vestindo as nevoas rosadas, descera do
céu para disputar as admirações da noite.”
121
intimidade se confrange, por uma especie de pudor,
proprio das almas introspectivas.
“Como quizeres.”
“Qual?”
“A ultima!”
122
“Sim; depois que tiver dansado com todos...”, replica
o moço completando seu pensamento com o olhar.
“Então quando?”
123
“Realmente eu não comprehendo. Será possivel que
a senhora tenha ciumes delle?”, pergunta Horacio
gracejando.
124
isso para mim, que sou uma especie de misanthropo,
uma alma errante neste mundo de conto de fadas.”
“Um pezinho!”
125
para que Horacio sirva-se de Leopoldo e marque sua
posição, Laura está no terraço, accompanhada dos
paes e do lorde, que por sua vez accabam de junctar-
se aos Salles. O filho do barão, todo sorrisos e
rapapés, vem saudar o gruppo, fazendo as honras da
casa, e, emquanto convida Amelia para dansar, Laura
percebe a furtiva retirada de Leopoldo em direcção
ao jardim. Dispõe-se então a seguil-o, na intenção
de conversar com elle a sós, e sae a procural-o
na area onde, pelas clareiras entre caramanchões e
lattadas, a luz dos lampeões permitte reconhescer
algum rosto. Quando advista o rapaz sentado, Laura
vae a seu encontro, mas detem o passo ao notar
a chegada de Horacio. Protegida pela folhagem, a
moça pode approximar-se o sufficiente para ouvir a
conversa dos dois, algo que na certa interessará
muito aos propositos da calculista didascalica, para
não fallar da mulher appaixonada.
126
“Conhesces. É a mesma dona do pezinho que tanto
admiras.”, revela Leopoldo, consciente de não ter
chances de conquistar Amelia mas recomfortado pelas
chances de se consolar com Laura, e ao mesmo tempo
inspirado pela chance de attingir os brios do rival,
nem que seja por um momento.
“Não a amo?”
“Não!”
127
“Não passa de um capricho. Essa moça é para ti um pé
e nada mais.”
128
Estas ultimas palavras, carregadas de extremo desdem,
são proferidas de cyma para baixo, pois Horacio ja se
levantou e põe-se em guarda, prevendo alguma reacção
brusca de Leopoldo. Mas não ha tempo para novas
offensas nem revides, desde que Laura intervem como
quem chega naquelle momento.
129
daquella que pode vir a ser sua noiva:
“A senhora tem mais alguma coisa alem da fadiga,
confesse.”
“Illude-se!”
“Por que?”
130
“Cuida?...”
“Vae?”
“E si eu pedir?”
“Experimente!”
131
Amelia ficta nelle seus grandes olhos e simula
ingenuidade.
132
naquelle tom bem expressivo de intimidade. Amelia,
por sua vez, repara no ar de indisfarsavel decepção
do mancebo, e sorri para elle com ternura. Permanesce
por algum tempo na companhia do desconsolado
subjeito, a quem, para melhorar o animo, faz algumas
perguntas pessoaes, demonstrando grande interesse
nas respostas. Nada, porem, que ja não saiba pela
bocca de Laura.
133
“Abhorrescido por que? Estou mais é admirado de que
aquelle pezinho tenha excappado de ser pisado por
essa prancha...”
134
14
LORD STEPPINGSTONE
135
e dos próprios commerciantes, pelas duras pedras do
calçamento do Recife, de Salvador, do Rio de Janeiro,
com um estridor que muito deve ter doido aos ouvidos
delicados dos inglezes estabelescidos com armazens
e escriptorios nas mesmas cidades, explicando-se,
talvez, por sua reacção de gente quasi fanatica do
silencio a essa especie de barulho, o facto de ter
se generalizado entre nós como invenção ingleza --
quando paresce ter sido appenas um apperfeiçoamento
inglez de technica brazileira -- o sapato de sola de
borracha, por algum tempo fabricado principalmente
pelos escocezes da Fabrica Clark. Era o sapato de sola
de borracha a verdadeira antithese do tamanco que,
nos pés de doentes e serventes de hospital, tornava
a melhor das casas de sahude brazileiras verdadeiro
inferno para enfermos ou convalescentes inglezes e
talvez para os proprios sertanejos, habituados a
alpercatas macias.”
136
introduzil-a no Brazil, nem é essa a sua intenção.
O que ella pretende é congregar os interessados em
generos e estylos que não sejam cultivados pelas
escholas em voga -- especificidades cujos auctores e
editores se quotizem em limitadas tiragens destinadas
a colleccionadores.
137
vê-se uma escada dobradiça, utilizada para manter a
victima admarrada, à mercê dos que a açoitam.
138
Tinnir de ferros... estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dansar...
139
espectador...” Prosegue emphatizando o adspecto ludico
do supplicio. Mesmo quando o açoite tem finalidade
utilitaria -- isto é, a punição de quem commetteu
delicto -- a applicação do castigo em publico dá
ensejo ao divertimento da assistencia. Portanto,
mantem seu character ludico. “O pellourinho, meus
amigos, não é appenas um monumento à correcção: é
tambem um monumento à recreação!”
140
dos tornozellos, dos pulsos e do pescoço. Numa das
extremidades, as metades se unem por dobradiça de
ferro; na outra poncta, por cadeado. Pois bem: o
pellourinho britannico nada mais é que um tronco
suspenso e sustentado por dois moirões; ao invés de
cinco buracos, tem appenas trez, ja que os pés não
ficam presos.”
141
didascalico, na cultura escravocrata brazileira:
“Ainda no inicio deste seculo era commum o castigo
de escravos na praça. Não tive o privilegio de
presenciar tal roptina, como Sade e Casanova puderam
testemunhar a lenta execução de Damiens; mas tenho
sufficiente experiencia privada para projectar certas
comparações. Em publico, o carrasco está a serviço da
platéa; esta folga, aquelle trabalha. O espectador
pode dar-se ao luxo de gozar o que lhe appraz. O
carrasco deve concentrar-se no perfeito desempenho
do seu officio. O publico não está alli appenas para
ver o soffrimento do condemnado: está tambem para
advaliar a habilidade do carrasco. Ja na privacidade
é o proprio carrasco quem goza e quem dosa o castigo
de accordo com seu prazer. A habilidade, assim como
a excolha do instrumento, subordina-se ao desfructe
do algoz.”
142
merescedor da punição. O relho desce veloz, deixando
ouvir o estalo da lambada, aquelle ruido typico
produzido pelo couro ao contacto com as carnes do
réu, riscando nestas lanhos escarlates onde batte.
A habilidade do carrasco é foco das attenções: ao
levantar o braço para applicar o golpe, elle arranha
de leve a epiderme deixando-a em carne viva depois da
terceira chibatada. Conserva o braço levantado por
alguns segundos entre cada golpe, tanto para comptal-
os em voz alta como para economizar suas forças até o
fim da execução. As recommendações officiaes são para
que o castigo não exceda as cincoenta chibatadas nas
penalidades mais corriqueiras, podendo chegar às cem
nos delictos mais graves.”
143
ao manuseio das delicadas mãos femininas enluvadas
em couro, como é de praxe nas sessões do nosso
accolhedor clube... Thank you!”
144
Tu, gaucho cavallar,
não perdes por esperar:
vou mostrar-te como soa
esta musica tão boa!
Repara na partitura
e consolo em Deus procura,
pois teu fim não ha quem chore-o
nem quem reze em teu velorio!
Quando aggarro um unitário
dou-lhe tractamento hilario:
peço adjuda aos companheiros,
que tambem são “mazorqueiros”;
admarramol-o até vel-o,
cotovello a cotovello
pendurado, e desnudado
fica, para nosso aggrado!
Immovel como uma estacca,
piccado à poncta de faca
em desespero elle berra,
mas cantamos “guerra é guerra”
e sem acompanhamento
fazemos um barulhento
concerto, animando a festa
a que a victima se presta!
Cutucado de cutello,
seu contorcionismo é bello
e risadas nos desperta;
quando a ponctaria é certa
145
a pedra lhe attinge um olho;
mas alvo diverso excolho
e os colhões, com que sucesso
por estrepes attravesso!
Emquanto o chicote estala
e a perna é varada a balla,
abbafamos o seu choro
cantando refrões em coro!
Si estivesse com a gente,
nosso amado presidente
cahia na gargalhada
ao ver o que mais lhe aggrada!
É momento, finalmente,
em que cremos conveniente,
depois que nos divertimos
inventando tantos mimos,
dar-lhe um ultimo carinho
e à tarefa me encaminho:
posto de gattas, ao lombo
monto-lhe e do azar lhe zombo.
Alegra-nos que elle brade
aos sanctos, por piedade,
que seu fim lhe chegue breve
mas em versos quem descreve
a scena não pode dar
idéa de quanto esgar
de dor o rosto lhe entorta
emquanto a lamina corta!
146
Abbaixo da orelha cravo
meu punhal, e escuto um “Bravo!”
da bocca dos companheiros,
e com dois golpes certeiros
a veia a fundo lhe furo
do pescoço, e nesse appuro
revira os olhos ja cegos
pelos espinhos e pregos!
O selvagem se exvahindo
em sangue, que quadro lindo!
Logo extende-se e estertora
ao approximar-se a hora!
Exspirando, ‘inda nos serve
de motivo para a verve
si pisassemos-lhe a face
para que mais se humilhasse!
Como vês, bugre covarde,
não excappas, cedo ou tarde,
de teres cortada a orelha
que, de sangue ‘inda vermelha,
servir-nos-a de troféu
E, antes de no belleléu
ires dar com o costado,
darás “Viva!” ao Federado...
147
“Digamos que seria desnecessario quando fosse
conveniente...”, accapta, em termos, o mulato,
piscando para a declamadora.
148
Na verdade que sou um maldicto! Olá, Archibald, dá-
me um outro coppo, enche-o de conhaque, enche-o até
à borda! Vede!... Sinto frio, muito frio... tremo de
calafrios e o suor me corre nas faces! Quero o fogo
dos espiritos! A ardencia do cerebro ao vapor que
tonteia... quero exquescer!
149
affastar da questão, trago aqui um excerpto de rara
obra gentilmente indicada pelo Dr. Pederneiras:
intitula-se MANUEL THÉORIQUE ET PRATIQUE DE LA
FLAGELLATION DES FEMMES ESCLAVES, e foi impressa
no seculo passado a partir de um manuscripto
hespanhol vertido para o francez. Observem, caros
ouvintes, que na privacidade, como quer Lord
Steppingstone, o carrasco tem condição de usufruir
mais satisfactoriamente da sensualidade despertada
pela subjeição da victima, do que si esta fosse
sacrificada numa festividade publica. É disto que
tracta o referido manual: de como os senhores
de escravos podem, por meio do açoite, obter a
complacencia sexual das negras. Eis o trecho em que
o autor recommenda que a escrava recalcitrante seja
açoitada, à razão de duas vezes ao dia, durante
um mez, até que execute, sem reclamar, os favores
buccaes que a mais appaixonada das cortezans
recusaria conceder ao amante preferido.” E Vargas
profere as palavras com estudada affectação:
150
{Le plus souvent, la femme reçoit le fouet sur le
chevalet, maintenue dans une position telle que sa
pudeur en est atteinte cruellement. Il n’est aucun de
ses charmes qui ne soit ainsi mis en évidence, bien
malgré elle, et elle sent parfaitement que l’étalement
de sa croupe rebondie provoque les convoitises de ses
bourreaux. Or rien n’est plus pénible pour une femme
que de faire naître des désirs contre sa volonté.}
“MEU FLAGELLO”
151
Heroes choram num instante
quando a seu recurso appello:
são covardes ja, perante
as lambadas do flagello!
Seja o couro que eu levante,
seja a vara de marmelo,
não ha valente ou gigante
quando desce o meu flagello!
152
E o mancebo alteia o tom nesta parte de “Bertram”,
quando os personagens são ja naufragos:
153
Eu ri-me do velho. Tinha as entranhas em fogo. Morrer
hoje, admanhan, ou depois... tudo me era indifferente,
mas hoje eu tinha fome, e ri-me porque tinha fome.
154
minha presa; e às minhas noites fastientas uma sombra
vinha reclamar sua ração de carne humana...
155
Eu extremesci, os olhares do velho paresciam ferir-
me.
-- Mestre, perdão!
-- Piedade!
-- Ah! -- gritei.
156
tens ainda no coração maldicto um remorso, reza tua
ultima oração, mas que seja breve. O algoz espera a
victima, a hyena tem fome de cadaver...
Eu tive medo.
157
de repente não senti mais nada... Quando accordei
estava juncto a uma cabana de camponezes que me
tinham appanhado juncto da torrente, preso nos
ramos de uma azinheira gigantesca que assombrava
o rio.
158
“ORAÇÃO AO LATEGO”
159
“Bem, lembro-me de muitas daquellas desculpaveis
malvadezas da meninice, que para os humanistas seriam
provavelmente irreparaveis crueldades, mas para um,
como direi... didascalico (olha para Laura, que
sorri significativamente) não passa de precocidade
vocacional, não é certo? Pois bem, desde os cinco
annos até a adolescencia fui um verdadeiro cappeta.
Meus jogos e brinquedos eram mactar passarinho,
maltractar animaes domesticos, torturar insectos
e, principalmente, judiar dos moleques. Mesmo nas
brincadeiras mais innocentes minha crueldade infantil
ja se manifestava, como no jogo do belliscão, que
me offerescia a opportunidade de aggarrar de rijo a
irman, as primas e os crias da casa. Creio que todos
se lembram da cantiga:
160
castigos, remedios, vontades não satisfeitas pelos
meus paes... Todo filho de fazendeiro ganha um moleque
por companheiro de folguedos, mas o meu foi mais
judiado que um escravo adulto nas mãos do feitor
deshumano. O galho de goyabeira fazia o papel de
chicote no jogo de carro-de-cavallo: com as mãos e
os joelhos no chão, o moleque levava um chordel nos
queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao lombo,
com a varinha na mão, fustigava-o, dava-lhe mil voltas
por toda a casa, e elle obedescia, -- algumas vezes
gemendo -- mas obedescia sem dizer palavra, ou, quando
muito, um {Ai, nhonhô!} -- ao que eu retorquia: {Cala
a bocca, besta!} Algum tempo depois, elle se rebellou
de novo, e desta vez, admeaçando denuncial-o a meu
pae, obriguei-o a lamber tudo o que excarrei no chão;
emquanto elle obedescia, puz-me a pisar em sua nucha
e a vibrar-lhe a varinha nas costas... Naquella tarde
devo ter ficado com a bocca secca de tanto cuspir, e
sempre que me recordo disso tenho vontade de rir-me,
como me ri naquella occasião...”
161
mantinham a bocca calada...” E Leopoldo sorri
timidamente, emquanto os demais gargalham.
“A palmatoria.”
“Well... Paresce interessante. (diz o inglez) Como
foi ella utilizada?”
162
dirigisse uma boiada. Quando me excedia um pouco no
vinho, ficava mais impiedoso. Todos os pequenos da
aula me tinham birra. Em mim enxergavam o carrasco,
o tyranno, o inimigo e não o mestre; mas, visto
que qualquer manifestação de antipathia redundava
fatalmente em castigo, as marotas creanças fingiam-
se satisfeitas; riam muito quando eu dizia alguma
chalaça, e affinal, coitadas, iam-se habituando ao
servilismo e à bajulação. Os paes severos, viciados
pelos costumes barbaros da terra, accommodados pelo
habito de lidar com escravos, entendiam que eu era
o unico professor capaz de endireitar os filhos.
Elogiavam-me a rispidez, recommendavam-me sempre que
{não passe a mão pela cabeça dos rapazes} e que,
quando fosse preciso, dobrasse por compta delles a
{dose de bollos}: mais tarde os meninos haviam de
aggradescer aquellas palmatoadas, no entender desses
paes. Ora, um dos alumnos da minha turma, chamado
João Miranda, era tido e havido pelo peor dos meninos
da classe, pelo mais attrevido e insubordinado; por
isso inspirou-me exemplar tractamento. Um de seus
colleguinhas era rapazito egualmente implicante e
levado dos diabos; assentava-se ao lado do Miranda,
com quem vivia sempre de turra. Um dia pegaram-
se mais seriamente. Creio que ambos teriam então
seus oito annos. Estava a coisa ainda em palavras,
quando entrei na salla, e os dois contendores
tomaram à pressa os seus competentes logares. Fez-
se respeito. Todos os meninos começaram a estudar em
voz alta, com affectação. Mas, de repente, ouviu-se
o estalo de uma bofetada. Houve rumor. Levantei-me,
toquei uma campainha, que usava para esses casos, e
syndiquei do facto. Joãozinho foi o unico accusado.
{Sr. Miranda! (gritei-lhe) Por que expancou aquelle
menino?} Miranda respondeu humildemente que o menino
insultara sua mãe. {É mentira!} (protestou o novo
accusado) {Que disse elle?!} (perguntei) Miranda
repetiu o insulto que recebera. Toda a classe
163
rebentou em gargalhadas. {Cale-se, attrevido! (berrei
enfurescido, a tocar a campainha) Mariola! Dizer tal
coisa em pleno recincto de aula!} E, puxando a pura
força o delinquente para juncto de mim, ferrei-lhe
meia duzia de palmatoadas. Miranda, logo que se viu
livre, fez um gesto de raiva. {Ah! Elle é isso?
(exclamei) Tens genio, tractante?! Ora, espera! isso
tira-se.} E voltando-me para o rapazito que levou
a bofetada, entreguei-lhe a ferula e disse-lhe que
applicasse outras tantas palmatoadas no Miranda. Este
declarou formalmente que não se submettia ao castigo.
Tentei submettel-o à força; Miranda não abriu as
mãos. Os dedos paresciam collados contra a palma.
Impaciente com tal contrariedade, fiquei nervoso e
deixei excappar uma phrase comparavel ao insulto que
pouco antes provocara tudo aquillo. Miranda recuou
dois passos e soltou uma nova bofetada, mas agora
na cara do proprio mestre! Em seguida, deitou a
fugir, correndo. Um {Oh!} formidavel encheu a salla.
Encholerizado, ordenei que prendessem o attrevido.
A turma ergueu-se em peso, com grande desordem.
Cahiram bancos e derramaram-se tincteiros. Todos os
meninos abbraçaram sem hesitar a causa do mestre, e
Miranda foi aggarrado no corredor quando ia alcançar
a rua. Mas quattro ponctapés puzeram em fuga os dois
primeiros rapazes que lhe encostaram a mão. Dois
outros accudiram logo e o seguraram de novo, depois
vieram mais trez, mais oito, vinte, até que todos os
quarenta ou cincoenta estudantes o trouxeram à minha
presença, alegres, victoriosos, risonhos, como si
houvessem alcançado uma gloria. Miranda soffreu novo
castigo; serviu de excarneo aos seus condiscipulos
e, quando chegou a casa, o pae, informado do que
succedera na eschola, deu-lhe ainda uma boa sova
e obrigou-o a pedir perdão, de joelhos, a mim e ao
menino da bofetada!”
164
objecto de commentarios accalorados, entremeados de
risos e interjeições euphoricas. Rosa volta-se para
o narrador e inquire, melliflua: “Qual foi a impressão
que lhe ficou desse episodio, Sr. Castro?”
165
Albuquerque senta-se novamente ao piano e retoma os
nervosos exercicios que abriram a noite com aquella
sugestiva atmosphera de desinhibição estudada.
166
15
CHARTAS SOB A MESA
167
velludo castanho. O baju de cassa, que traz no seu
desallinho matutino, conchegado à cutis, colore-se
com os reflexos rosados do collo mimoso. Tanta graça
e formosura, realçadas pela singelleza do traje e
pela naturalidade da posição, ficam alli occultas na
doce penumbra da salla e recaptadas à admiração. Às
duas horas Amelia costuma subir à sua alcova para
se pentear; e o gracioso desallinho desapparesce,
substituido por um traje mais appurado e elegante.
168
para conversar com tua mãe e... comtigo, a quem o
objecto mais interessa.”
169
“Que rodas, papae?”
Amelia emmudesce.
“Ja.”
170
“Nada; são coisas que se decidem logo.”
“Que não.”
“Oh! Papae!”
171
que eu vou responder ao homem mais feliz deste Rio
de Janeiro.”
“Curiosa!”
172
“Está muito boa, papae. Só acho uma coisa.”
“O que?”
173
“Ha de servir, mas daqui a quinze dias. Agora papae
deve dizer unicamente que, tendo-me consultado, eu
pedi algum tempo para dar a resposta.”
174
Taes são os sentimentos desencontrados que vibram na
alma da moça.
175
romancista, “Não ha para arrebattar os sentidos como
essa languidez da mulher amada. Paresce que ella
verga com exuberancia do amor, como a planta muito
viçosa, quando concentra a seiva que não brota em
flor. O homem querido se regozija, pensando que suas
palavras e suas caricias podem, como os orvalhos
celestes, reanimar e expandir o coração da mulher
amada.”
“Ah!”
176
Esta exclamação desfaz-se nos labios do mancebo em
um sorriso de jubilo.
177
respeito. Mas agora deixe-me perguntar uma coisa.
Quero tirar uma duvida...”
“Diga!”
178
eram muito baixas. Affinal encontrei um sapateiro, que
trabalha tão bem como os melhores de Paris...”
“Não, senhor.”
“Pensei.”
179
do livro do Mattos: é absolutamente esculptural,
contornado com a perfeição de um desenhista fanatico
pela esthetica. E aquella maravilha Horacio a tem
alli em face, deante dos olhos e a poucos palmos de
seus labios, excarnescendo do seu amor, provocando-
lhe a immediata tumescencia do membro por dentro da
roupa, obrigando-o a disfarsar para que a moça não
perceba o volume.
180
louça, contraponcteando com o riso cantarolado de
D. Dolores. O jantar é animado pela conversa viva e
espirituosa de Horacio, que ja recuperou seu sangue-
frio. Sentado à esquerda de Amelia, acha sempre algum
momento para trocar com ella uma palavra em particular,
para pedir que fallem a sós mais tarde. À mesa,
ninguem toca no assumpto casamento, obviamente. A
conversação geral mantem-se dispersiva e superficial.
Especula-se, ora si a libra esterlina sobe, ora si
o partido conservador cae, ora si o vinho sobe, ora
si a temperatura cae. De repente Amelia se lembra de
uma expressão ingleza ensignada por Laura: “playing
footsie”, que significa bolinar com o pé, por baixo da
mesa, algo que a moça resolve fazer só para ver a cara
de Horacio. Esticando o pezinho temptador, toca a
pantorrilha do rapaz e deslisa suavemente o dedão até
encontrar o cano da botina que elle calça. Horacio,
que mal pode accreditar no que accontesce, engasga e
leva rapidamente o coppo aos labios, emquanto Amelia
ri por um motivo e os demais por outros.
181
concreta de que serei recompensado, caso contrario...
creio que não supportarei mais!”
“Moraes e physicos?”
“A senhora decide!”
182
extende, Horacio sae. Appoiando-se ao recosto do
sofá, Amelia permanesce immovel, a escutar os passos
do galan até que se percam ao longe.
183
16
MAIS UM POUCO DE THEATRO
184
Laura alli se acha tambem e cumprimenta-o com um modo
ja intimo e carinhoso, sem perder a pose dominadora.
185
lhe aos ouvidos pela conversa das mexeriqueiras mais
proximas.
186
“Eu tambem. Ella meresce.”, resume Laura.
187
opposto. É com fria altivez e indifferença que ella
corresponde ao cumprimento do pavão, sem demorar
o passo emquanto elle troca um apperto de mão com
o Salles. Esta indifferença, porem, e sobretudo o
gesto que Amelia faz para arregaçar o vestido quando
sobe o segundo lanço de escadas, têm a finalidade
didascalica de manter aptado o galan ao jugo do
pezinho delicadamente embotinado, que apparesce e
desapparesce sob as dobras do tecido.
188
indifferença, a poncto de irritar o mancebo. Appesar
de se ter rendido, sente elle um impeto de revolta,
e deixa sua cadeira juncto à orchestra com intenção
de visitar um camarote fronteiro ao do Salles. La
está uma linda moça de seu conhescimento, uma das
estrellas de sua coroa de rei da moda. Sentar-se-a
juncto della, e estabelescerá um dialogo entretecido
de sorrisos, de olhares e meias confidencias como
por ahi se dão tantos nos bailes e espectaculos:
verdadeira scena mimica de amor representada perante
o publico. Com esse entretenimento, Horacio pretende
vingar-se de Amelia, excitando-lhe ciumes.
189
ao submisso galan um pouco de attenção. Horacio,
por sua vez, resolve esperar a sahida para trocar
algumas palavras com a moça.
190
robe de chambre, emquanto philosophicamente espera
que seu creado lhe prepare uma chicara de café,
abre um livro, que accerta ser o mais recente do
poeta Dirceu Amoroso Lyra. Lê ao acaso: é o sonnetto
intitulado “O camarim”, que apparescerá, daqui a
poucas decadas, reescripto por algum parnasiano de
reputação nacional:
191
quando lhe vem uma idéa subita e impulsiva. Appanha
o sapato que accaba de descalçar, ainda humido da
chuva, e exfrega-lhe o solado contra a sola da botina.
Occorre-lhe comparar, kabbalisticamente, os numeros
e as proporções: ella, nos seus dezenove, calça 29;
elle, aos vinte e nove, calça 39. No peitoril da
janella, carimba a botina contra a lage branca, de
modo que o couro attritado deixe alli uma leve marca
de sujeira repisada. Em seguida, adjoelha-se deante
do altar improvisado e contempla o signal escuro
sobre o marmore, julgando ver nitida a impressão do
pé da moça contornada num degrau. Então approxima
o rosto da falsa pegada e, como si ouvisse uma voz
interior, começa a lamber aquella pedra lisa, porem
recoberta por granulos de terra, que vão adherindo à
lingua. Offegante, o galan geme e se contorce: com
o prazer, mixtura-se a dor da caimbra que lhe trava
o movimento da coxa. Emquanto não vem o allivio,
imagina ter limpado uma escadaria publica, pela qual
accaba de subir a rainha de seus sonhos eroticos,
mas não se exquesce de suppor que aquelle piso é
utilizado por outras pessoas, anonymas, extranhas...
ou até por alguem conhescido, mas não estimado.
192
Momentaneamente affastado o sentimento de culpa,
masturba-se com mais commodidade e goza de novo --
orgasmo penoso, que lhe arranca um grunhido rouco
e animalesco, irremediavelmente indigno de um
cavalheiro fino como elle.
193
17
O METHODO DIDASCALICO
194
Em torno da mesa posta, Laura, Leopoldo e o lorde
servem-se de peixe assado nadando em molho, de
mayonnaise de camarões e de bollinhos de bacalhau.
Jantam em casa da filha dos Lawrence, endereço que
tambem Steppingstone informa a todo mundo como sendo
delle. Os paes de Laura, hoje desinteressados das
actividades didascalicas, habitam alli em Sancta
Thereza uma chacara proxima, onde a moça passa os
dias em que pretende restabelescer-se das noitadas
no Club. Saboreados os primeiros boccados e erguidos
os calices, Roger desvia a conversa dos triviaes
chistes de espirito britannico para formalizar a
palavra que dirige a Leopoldo.
195
muito bem. Não costumo engannar-me quando analyso
as tendencias de alguem. Laura é testemunha do que
affirmo.”
196
que os de um animal nocturno, essa especie de
irradiação lunatica, como que hypnotizados, para
deleite de Steppingstone.
197
Laura toca uma sineta, e a cortina da porta lateral
affasta-se para dar passagem a um casal bastante
esdruxulo: elle tem a cabeça raspada e veste couro
nas poucas partes em que não está nu; ella nada
veste, excepto o cappuz que lhe molda o craneo,
abrindo-se appenas no nariz e na bocca. Leopoldo tem
um sobresalto ao contemplar, naquella luz mortiça,
a pallidez da moça contrastando com o negro tufo
de pelos pubianos. Os seios são os de uma virgem,
mas as costas estão marcadas por cicatrizes, bem
como as nadegas e coxas. Leopoldo não reconhesce
o homem, que, pelas tattuagens, paresce-lhe
marinheiro. A mulher é conduzida ao pellourinho,
com o qual o subjeito mostra-se bem familiarizado:
abre os caibros como si fossem as ponctas de um
enorme alicate; a mulher colloca os braços sobre a
parte inferior e appoia o pescoço no semicirculo
central; elle fecha o tronco e prende o ferrolho,
immobilizando-a nesse poncto. Leopoldo repara que
ella, mesmo vendada, caminha e tacteia com certa
desenvoltura, como quem conhesce a topographia
da salla. Quer perguntar a Laura sobre o casal,
mas esta corta-lhe as palavras: “Fique calado e
observe. Fallarei quando for o momento.”
198
Agora o pellourinho está descido a meia altura (na
posição de “graduação remissiva”, segundo Laura) e
a mulher teve, portanto, de adjoelhar-se. As coxas,
ligeiramente entreabertas, tremem e exsudam sob o
chicote. Laura faz coro ao “Ya! Ya!” do algoz e manda
que este abbaixe mais um pouco o mechanismo. A mulher
continua de joelhos, mas o torso ja se dobra na
horizontal, como na posição de quem engattinha. Laura
diz que essa é a “graduação permissiva”, e accrescenta:
“Preste attenção, Sr. Castro, e veja só como faço!”
Levanta-se e vae até o logar do marinheiro, que lhe
passa às mãos uma vara de marmelo. Laura appoia um
pé sobre o ceppo, deixando que o mancebo visualize o
couro negro de sua botina reluzindo logo accyma da
cabeça da mulher. Como esta pende, abbattida pelo
cansaço e pelo descomforto, para não fallar da dor
causada pelos golpes, Laura levanta-lhe o queixo com a
poncta do pé e annuncia: “Achas que ja basta? Pois eu
acho que não! Vaes provar um pouco da minha energia,
queridinha!” E passa a fustigar a outra com extrema
vitalidade e enthusiasmo, visando-lhe as partes mais
sensiveis e soltando gritinhos estridentes que fazem
melodico contraponcto aos gemidos da sacrificada,
cujos seios oscillam saccudidamente ao rhythmo do
braço experiente de Laura.
199
marinheiro a libertar a cobaya e dirige-se a Leopoldo
para mostrar-lhe a vara que accaba de empregar.
“Tome, Sr. Castro, examine bem e veja que nobreza
tem este material.”
200
que não o açoite para condicionar o comportamento,
como attesta Laura ao demonstrar-lhe a simplicidade
com que se maneja o mechanismo do pellourinho a cada
graduação.
201
glande, cujo perfil paresce exaggeradamente allongado
pelo bicco do prepucio, desapparesce entre os labios
carnudos, e a cabeça da mulher é forçada para traz,
comprimida contra a madeira. Ella tenta engrolar um
gemido de soccorro, mas Laura só faz batter palmas
e desilludil-a de qualquer abbrandamento ao dizer
risonhamente: “Então, queridinha? Por esta não
esperavas, não é mesmo? Tracta de chupar, anda! Quero
ver esses beiços a mexer! Approveite, Sr. Castro,
mostre a ella que o uso do relho não foi em vão!”
202
o castigo...”, advertindo porem que “Prepare-se
appenas para o caso de nos estarem a observar...”
203
adentram a camara e se accommodam para accompanhar o
admestramento. O mancebo distingue uma voz feminina
que sussurra e outra, masculina, que mais ri do que
conversa.
204
termos de superioridade ou inferioridade o artezão
se soccorreu da tradição popular, fazendo sociologia
sem o saber.
205
o mestiço affirma-se pela differença nas semelhanças
-- biotypo no qual desponcta como characteristica
mais pittoresca o malandro pezinho, ao mesmo tempo
delicadamente orgulhoso e aggressivamente vingativo.
Dahi tambem os versos desaffiadores que, anonymamente
transmittidos, accabariam recolhidos pelo Mattos.
Este illustrara sua exposição recitando-os, para
jubilo do sarará Solano:
Marinheiro pé-de-chumbo,
calcanhar de frigideira,
de ensignar-te ja me incumbo
com surra de capoeira:
vaes appanhar do solado
dum pé-de-cabra escholado
que mais fede do que cheira!
206
que a comptagem será breve, visto que o objectivo
está no vexame e não no vergão. Não tarda que uma
alpercata lhe exbofeteie ambas as faces e, num
terceiro momento, lhe pouse de encontro aos labios.
207
18
O CLUB PROPEDEUTICO
208
prostrado pela noite passada entre a insomnia e a
bolinação fetichista e masturbatoria. Sem animo de
deixar o colchão sobre o qual chafurdara na mais
hallucinada das phantasias adviltantes, ainda de
olhos fechados, chama pelo moleque. Quasi sempre,
em vez do negrinho, é o fiel creado quem accode ao
seu primeiro chamado, e hoje não será differente.
Emquanto o pavão se prepara defronte do toucador, o
creado põe-se a escovar a roupa que elle quer vestir.
209
anxiedade e manda o cocheiro passar por aquelle
trecho de Sancta Thereza. Quer ver, ainda à luz do
dia, onde reside a extranha dominadora que tanto
influencia a cabeça de Amelia. Pelas trez horas está
deante do logar marcado, observando de dentro do carro
que roda lentamente e estaciona por alguns minutos;
é uma casa discreta, de janellas britannicamente
enquadradas na fachada de tijolos vermelhos, muito
adjardinada e coberta de trepadeiras, escondida
entre meia duzia de arvores gigantescas, que lhe
dão um adspecto mysterioso. Transpondo com o olhar
o portão da chacara, Horacio advista o caramanchão
sob o qual Laura se assenta ao lado da prima quando
conversam a sós.
210
os “motores”, só com a adjuda das declividades. Nem
passa pela cabeça dos habitantes que no fim do seculo,
com o advento da electrificação, esse ja arrojado
plano inclinado possa ser substituido pelo viaducto
natural sobre os arcos da Lapa, algo mirabolante
demais para as projecções dos usuarios de tilburies
e charrettes ou dos audazes cavalleiros urbanos...
211
ja conhesce por fora. Vem recebel-os um creado
inglez, que os faz entrar para uma pequena salla,
caprichosamente mobiliada.
212
E accrescenta, puxando-o pelo braço:
213
olhar do fino cavalheiro, deixando-o boquiaberto ante
a desenvoltura com que Laura traz a encappuzada Rosa
até o pellourinho, prende-lhe os pulsos e o pescoço,
e constrange-a, successivamente, às graduações
admissiva, remissiva e permissiva, entre sessões de
açoite proporcionalmente dosadas. Sob os lamentos
da voluntaria, o galan exquesce-se temporariamente
do temptador pezinho em sua chinellinha artezanal,
e fixa toda a sua curiosidade sobre a nudez pallida,
agora listrada de vergões como os flancos de uma
zebra. Quando o rapaz ja crê que a mulher não pode
mais supportar e terá que ser libertada, Laura revela
que ainda falta uma graduação a ser exemplificada:
a “submissiva”, na qual a victima fica inteiramente
prostrada de bruços, tendo o pellourinho descido até
o chão. Nessa posição o açoite pode attingir por egual
qualquer poncto posterior do corpo suppliciado, desde
a nucha até os calcanhares, ponctos que tambem jazem
à mercê do expezinhamento. É o que Laura practica
neste instante, interrompendo a serie de golpes para,
descalçando as chinellas, subir às costas de Rosa
e tripudiar sobre suas feridas, equilibrando-se e
caminhando como si fora uma massagista oriental.
214
Então Laura approxima-se da cabeça de Rosa, contempla-a
de cyma para baixo em attitude de profundo desprezo,
e pisa-lhe o rosto de chofre, como quem se appoia
num estribo de bonde. A mulher, sem poder ver sua
aggressora e sentindo os labios comprimidos pela
sola nua, geme surdamente. Laura ordena: “Lambe,
queridinha! Quero sentir si tens sede ou si tua
lingua ainda não está secca! Anda!”
215
Laura annuncia que a primeira sessão está encerrada,
e Horacio é invadido pela frustração.
216
que estará a sós com duas, talvez trez mulheres...
não calculando a testemunhal presença do lorde, por
detraz de seu “peephole”.
217
É chegado emfim o momento da inversão de posições
na graduação submissiva, e o galan encontra forças
para virar-se agilmente, appoiando o dorso suado e
sangrento sobre o soalho de madeira.
218
indelevelmente impresso nas papillas gustativas,
Horacio passa uma noite como jamais passara e da qual
jamais se exquescerá, até porque a proxima sessão
promete emoções ainda mais fortes, possivelmente o
desfecho apotheotico.
219
19
O PAVÃO E O PALMIPEDE
220
humano, util, dominando o esthetico. Irregulares,
variados, cheios de imprevistos. Havia sempre nos
jardins das chacaras um parreiral, sustentado por
varas ou então columnas de ferro: parreiras com
cachos de uva doce, enroscando-se pelas arvores,
confraternizando com o resto do jardim. Recanthos
cheios de sombra onde se podia merendar nos dias de
calor.”
221
alli a mão de quem entra na vida disposto a viver;
desde o portão da chacara vão os olhos descobrindo em
que se regalar; caminhos de murta, cantheiros de finas
flores, repuxos, cascatas e estatuas, globos de mil
cores, caramanchões e pequenos bosques artificiaes:
tudo nos diz que alli reside agora gente liberal e,
presumivelmente, libertina; pessoas amantes do luxo
e, presumivelmente, da luxuria. As escadas externas,
antes ennegrescidas pelo tempo, são hoje mais claras,
mais enfeitadas de verdura e, só com vel-as, ja se
adivinha, ja se presente o sophisticado apparato que
vae pelo interior da casa.
222
moça contra a vontade desta. Na verdade, o que a
policia de Westminster tornava publico era o que ja
se sabia à bocca pequena: que tanto as flagelladoras,
moças ou velhas, quanto as flagelladas que ingressavam
no estabelescimento de Sarah, bem como a clientela
masculina, estavam plenamente conscientes do que
procuravam -- muito embora um dos professores, o
coronel Spencer (de quem Roger Steppingstone fora
discipulo dilecto) preconizasse a sadica theoria de
que o prazer do carrasco é muito maior quando, ao
invés da pelle curtida de uma prostituta ou de uma
joven maltractada desde pequena, é a delicada cutis
de uma moça de familia, recaptada e bem-educada, que
recebe as chibatadas -- donde a infundada supposição
de que alguma das pacientes teria sido alliciada ou
sequestrada. Si é certo que, segundo Spencer, as
mulheres tambem se deliciam com uma pequena crueldade
practicada em alguem de seu proprio sexo, e que as
didascalicas (em geral viragos de sangue azul) estão
cansadas de victimas vulgares e voluntarias, quasi
sempre remuneradas, por outro lado ninguem seria
ingenuo a poncto de accreditar que uma nobre virgem
fosse sacrificada em holocausto só para satisfazer o
capricho de um circulo de estupradores abbastados.
No entanto, foi isso que as auctoridades londrinas
allegaram, e Sarah Potter, cujo pensionato dava
allojamento a mocinhas nada innocentes, passou algum
tempo na prisão, arrastando comsigo o coronel Spencer
e outros cumplices. Depois de solta, reenceptou
uma carreira iniciada muitos annos antes, que a
obrigara a mudar de residencia innumeras vezes e
lhe accarretara outras detenções, inclusive por
vender livros obscenos. O facto é que, até sua morte
(que occorrerá em 1873), a alcoviteira terá obtido
consideravel lucro com suas actividades, a poncto de
manter uma casa de campo e sustentar alguns amantes
(entre os quaes o proprio Spencer) -- um historico do
qual Steppingstone permanesce informado, graças às
223
chartas, accompanhadas de livros, que regularmente
recebe da Inglaterra, remettidas pelos antigos
confrades da Academia.
224
solteirona no fundo inveja... Em todo caso, para
mostrar-se mais elitista e selectiva que a popular
matrona, D. Dolores só frequenta as casas de familias
“distinctas”, como os Azevedo Camargo ou os Pereira
Salles.
225
orgiaca, dir-se-a que estamos em casa de algum
deputado conservador ou de um conselheiro do Imperio.
Aquelle perfume de riqueza, aquelle meio advelludado
e acconchegante condizem com o temperamento refinado
do pavão, que logo sente-se em casa e tranquilliza-
se momentaneamente sobre sua integridade, ao menos
physica. Affinal de comptas, como diria no seculo
seguinte uma canção dos Kinks, um homem respeitavel
precisa parescer são de corpo e mente...
226
“Será hoje, D. Amelia? Sinto-me como um cão sedento,
com a lingua de fora...”
227
à sua direita. Assim que D. Dolores toma assento,
Roger assume a palavra e confirma aquillo que o olhar
curioso do galan ja observara: o pellourinho, do
qual teem todos privilegiada perspectiva, é identico
ao que se acha installado em casa de Laura. Tambem
é o mesmo o marinheiro branco e careca que adentra,
vindo da salleta, para, ao contrario do papel que
desempenhara deante de Leopoldo, collocar-se agora
no logar da victima. Em seguida, entra um segundo
marinheiro, negro e muito robusto, os musculos
reluzindo sob a fracca claridade azulada. Desta
vez, annuncia o lorde, a platéa assistirá “a uma
demonstração de como um castigo maritimo pode tornar-
se gozo celeste ao espectador terrestre”, mas appenas
D. Dolores cacareja sua gargalhada de applauso ao
jogo de palavras.
228
Mas mesmo que se conhesçam e até sejam intimos
camaradas, não deixa de ser constrangedora, aos olhos
da preconceituosa sociedade civil, a circumstancia
de que o branco troca de posição com o negro,
este empunhando o junco e aquelle curvando-se às
degradantes graduações do pellourinho didascalico.
Para os propositos de D. Dolores, entretanto, tal
condição accentua às mil maravilhas a desmoralização
do macho pelo macho.
229
como si estivesse perante as fileiras da marinhagem,
cada vez que D. Dolores macaqueia a comptagem do
commandante, entre gargalhadas, estrepitosas de
Laura e abbafadas de Roger. Amelia e Horacio, menos
contagiados pela pantomima, appenas sorriem.
230
a altura de sua cabeça está regulada para prestar-
se a uma penetração mais chocante que o coito
anal, penetração que se verifica do outro lado do
pellourinho, onde o negro se posta bem erecto, mãos
na cinctura, exhibindo os musculos, as espaduas
suadas e reluzentes, um sulco profundo e liso de alto
a baixo no dorso, a nudez agora completa, à vista do
respeitavel publico o membro que pulla de encontro
ao rosto contrahido do castigado.
231
a polluição oral. Aquillo ultrapassa os limites da
mais degradante hypothese a que o galan admitte
subjeitar-se em troca do prazer de sentir nos labios
o pé de uma mulher. Amelia, de sua parte, tambem não
se compraz na comedia que tanto diverte a devassa
Dolores, o insaciavel Roger e a perversa Laura:
limita-se a sorrir desdenhosamente, seja de quem
practica ou de quem apprecia taes excessos. Quando,
pois, o pavão e a garça trocam olhares e cochichos sob
o impacto dos ultimos urros de gozo do negro, paresce
evidente aos outros trez espectadores que nenhum dos
dois papeis enscenados ao pellourinho teria Horacio
de Almeida como protagonista ou antagonista.
232
de brincadeira infantil. Quer saber qual é o nosso
capricho, Sr. Horacio? Estamos todas dispostas a
sentir um pouco de cocegas na sola do pé. Inclusive
Amelia. (e voltando-se para a moça, que em outras
circumstancias teria corado) Não é mesmo?»
233
“Dispa-se aqui mesmo! (ordena Laura) Queremos vel-o
nessa operação; proceda com bastante calma, como si
estivesse a sós em sua alcova.”
234
“Agora, meu caro senhor, quero só ver a vitalidade
daquelle potrinho! (e cutuca-lhe o membro com a
poncta da vara, fazendo-o oscillar como um boneco
de mola que pulla da caixa) Uma de cada vez, vamos
nos sentar aqui (e approxima uma cadeira da cabeça
de Horacio) e usar seu rosto como tapete; quanto
ao senhor, tracte de usar a lingua como esponja de
banho, entendeu bem?”
235
vez é de D. Vicentina. Occorre que a escriptora
prefere deixar-se ficar onde está, entretida com seus
apponctamentos, e cede a opportunidade para que
D. Dolores, mancommunada com Amelia, commetta uma
pequena deslealdade no tracto que fizera com o pavão.
236
“Então, Sr. Horacio? Como a natureza é variada e
caprichosa, não é mesmo? Vivendo e apprendendo! Eu
não lhe advisei que para chegar ao céu é preciso
passar pelo purgatorio? Como costumam dizer Laura e
o lorde, {no pain, no gain}...”
237
20
A CHINELLA CHILENA
238
ha pouco deixado por Leopoldo e pousa suavemente o
solado da chinellinha chilena sobre a testa do pavão,
o penis, que apponctava para o céu como um canhão e
que desapponctara temporariamente sob o effeito do
pezão do mancebo, desabando como uma arvore sob o
machado do lenhador, reergue-se promptamente, dando
pullos de alegria como um menino travesso que pede
para brincar.
239
indefeso. Por fim a solinha se posiciona ao longo do
bigode e cobre por inteiro a bocca do rapaz, cuja
lingua ja se prepara para projectar-se bocca affora,
mas cujos labios retardam esse gesto, desejosos de
beijar, incansavelmente, aquella almofadinha de
carne, tenra e fofa. Amelia interrompe essa serie
de beijos, antes que o penis não consiga conter
o jacto, e ordena que Horacio lamba. Recebida a
permissão, a lingua entra em scena e percorre sem
exforço a pequena distancia que separa o calcanhar
dos artelhos, em cujos intersticios se intromette,
degustando-os como si fossem fructinhas silvestres.
Amelia ri, quasi gargalha, em parte pelas cocegas,
em parte pelo gostinho da superioridade da femea
sobre o predador vencido. A moça ainda cogita si fará
como a despudorada Rosa, que mettera os dedos entre
os dentes do moço, obrigando-o a chupar a poncta do
pé como si fora uma fructa maior e mais succulenta,
mas ja não ha tempo para pôr em practica esse extremo
recurso: o penis, depois dos incessantes saltos e
solavancos, exguicha o leitoso jacto que salpicca o
peito do rapaz e a madeira do pellourinho, golfada
appós golfada, chorando copiosamente sua agonia sem
communhão, seu ecstase solitario e intacto.
240
casal. Occorre-lhe estar accordando de um pesadello,
mas ao sentar-se no leito vê que aquelle quarto não
é o seu, nem qualquer alcova que lhe seja familiar.
Ainda tonto, exforça-se para ficar em pé e olhar em
torno. Ja não se acha completamente nu, mas não vê
suas roupas em nenhuma das poltronas que rodeiam a
cama.
241
Não necessariamente nesse mesmo lapso de tempo, em
outro apposento daquelle edificio, varios commensaes
conversam descontrahidamente ao redor de uma farta
mesa. Pouco antes, como de habito, Lord Steppingstone
chega accompanhado de D. Dolores e pede um gabinete
particular, onde se installa à espera de alguns
convidados. Logo em seguida entram D. Rosa, D.
Vicentina e Solano Vargas. Por ultimo, Laura e
Leopoldo, que vinham caminhando pela rua Septe de
Septembro até o Rocio, junctam-se aos demais.
242
accompanhar. O lorde, cavalheirescamente, concorda
com tudo.
243
inteiramente à vontade naquelle recincto artificial
e abbafado.
244
habitual tom sussurrante que dá impressão de estar
assoprando algum segredo) Ja acceitou o pedido do
filho do barão?”
245
ao ouvido do inglez, que sorri e pisca para D.
Rosa. A poetiza ja conhesce esse signal, mas suspira
como si a senha representasse um fardo do qual está
prestes a se livrar.
246
recua, engasgada, sem tirar da boccarra a glande
gottejante. Só a deixa sahir depois de tel-a enxugado
com a lingua. Quando ella se põe de pé, o gerente
repara no sulco azulado que lhe marca a pelle clara
do pescoço, talvez produzido por alguma chibatada
que errasse a ponctaria. Dentro em breve, aquellas
marcas não serão mais que reminiscencias e themas de
versos fescenninos, pelo menos na intenção de Rosa
de Albuquerque, cuja correspondencia com Vicentina
de Paula Guedes manter-se-a assídua durante decadas,
visto que a independente protofeminista jamais
regressaria à Corte.
247
quaes não consiga lembrar-se. Ja ouvira fallar de
casos semelhantes, provocados não só por estados de
embriaguez, mas por algum disturbio mental. “Estarei
eu ficando louco? Será que toda esta phantasia em
torno do pezinho adorado não me tem feito perder o
senso da realidade?”
248
Com effeito, la está a casa, appequenada pelas
descommunaes proporções das coppas das arvores que
a cercam. Por entre as grades, sentada no jardim e
occupada em fazer um ramo de flores, Horacio até julga
advistar a inglezinha. Sente vontade de entrar e ir
ter com ella, à sombra de uma lattada de madresilvas,
sentar-se a seu lado e perguntar tudo o que lhe vae
pela cabeça. Mas o tilbury affasta-se e com elle a
disposição de deter-se e conversar.
249
appenas um ligeiro perfume, e não uma incrustação
como a que usam os moços à moda.
250
Mas sobrevem um providencial desfecho para trazer
o galan de volta à vida real: Leopoldo accaba de
encontrar-se com Laura, que o tracta ternamente, com
a intimidade de uma noiva, e ambos embarcam em um
tilbury, que roda ja pela praça de Pedro II.
251
bem perceberá a coar-se pelas frestas das janellas um
tênue reflexo de luz interior. No portão da chacara a
meio cerrado, ninguem apparesce.
252
A surpresa do pavão provem de um enganno seu. Elle
accreditava que Amelia o tinha amado, quando a moça
não sentira por elle mais do que o desvanescimento
de ver captivo de seus encantos o rei da moda, o
feliz conquistador dos salões. Quanto a Leopoldo,
Amelia não tivera por elle mais que compaixão de
seu platonismo, talvez. Na hora de tomar a resolução
que decidiria seu futuro, porem, a moça segue a
lei da natureza humana e procura, mais que emoções
ou sentimentos, a estabilidade e o comforto, sinão
espiritual, ao menos material, como convem à vida em
sociedade.
253
estroinices, e até pensar seriamente em casamento,
com alguma herdeira de latifundios (para cumprir
a prophecia de D. Dolores)... emquanto ainda não
creara barriga, como o Caio.
254
faz-de-compta. Porem, ao abrir o cofre, não encontra
explicação -- e nem importa explicar -- para o facto
de, ao lado da endeusada botina, estar alli dentro
uma chinellinha chilena do mesmo tamanho de pezinho,
que não pode ser outra sinão aquella usada pela moça
durante as sessões didascalicas...
255
256
FICHA TECHNICA E PLANO DA OBRA
257
seja. Alguem ja disse que com boas intenções não
se faz boa litteratura. Pois agora nos reapparesce
o Glauco com este A PLANTA DA DONZELLA. Nelle, o
pastiche se combina com a parodia. Como ja mostrou
a critica universitaria mais antennada, o pastiche
contemporaneo, ou posmoderno, pode ter um que de
transgressivo em relação a seus modellos. Não é
pura repetição. Utiliza-se do espirito sardonico da
parodia para collocar a nu themas e percepções que os
textos romanticos e os classicos modernistas deixavam
na sombra. E nessa area da parodia litteraria,
Glauco tambem é mestre, como se pode observar em sua
outra obra, que muitos consideram prima -- o JORNAL
DOBRABIL. Em relação ao decoro de Alencar, este novo
livro de Glauco Mattoso é uma abertura desenfreada
dos sentidos. É a liberação em acto. É a revelação
do inconsciente obsceno dos romanticos e até mesmo
de historiadores de alta estirpe, como Gilberto
Freyre. É o grito de {iá, iá} da mulher devassa que
chicoteia seu parceiro submisso. Este, na phantasia
de Glauco, perde até o anonymato. A PLANTA DA DONZELLA
refaz o jogo d’A PATTA DA GAZELLA, reapproveitando
scenas inteiras do livro de Alencar, {o romancista
da epocha}, mas modificando completamente o perfil
sexual dos personagens e o typo de intriga em que
se envolvem. O leitor accompanha a narrativa com
a respiração suspensa. E olhe: haja follego para
encarar o final defrente. É assim que o cego pode
fazer ver.”
258
do Rio de Janeiro no seculo XIX, Mattoso distorce
o character dos personagens alencarianos, constroe
seus proprios typos para contrascenar com Horacio
e Amelia, introduz na narrativa o imprescindivel
componente sadomasochista e desvia o enredo para
outro desfecho, sem que se perca o clima de suspense
originalmente pretendido.
259
duplicando o elencho com a introducção de seus
próprios personagens e “desencaminhando” a conducta
dos personagens que ja exsistiam. O effeito se
concretiza numa nova trama entre protagonistas
que Alencar não reconhesceria e coadjuvantes que
nenhum leitor actual extranharia, tal o grau de
identificação com os typos mais contraculturaes do
seculo XX. O poncto chave para uma deciphração do
enigma (si é que este subsiste ao final da trama)
é o momento em que Salles communica à filha ter
recebido uma charta pedindo- a em casamento.
260
do primeiro casamento.
261
Leonor Treadmill Pereira Salles.
262
- O creado dos Pereira Salles, responsavel pela perda
da botina de Amelia.
263
do baile, ariscos, brancos, temptadores,
mas -- Ai de mim! -- como os mais pés, calçados!
Marinheiro pé-de-chumbo,
calcanhar de frigideira,
de ensignar-te ja me incumbo
com surra de capoeira:
vaes appanhar do solado
dum pé-de-cabra escholado
que mais fede do que cheira!
264
e consolo em Deus procura,
pois teu fim não ha quem chore-o
nem quem reze em teu velorio!
Cutucado de cutello,
seu contorcionismo é bello
e risadas nos desperta;
quando a ponctaria é certa
a pedra lhe attinge um olho;
mas alvo diverso excolho
e os colhões, com que successo
por estrepes attravesso!
265
Emquanto o chicote estala
e a perna é varada a balla,
abbafamos o seu choro
cantando refrões em coro!
Si estivesse com a gente,
nosso amado presidente
cahia na gargalhada
ao ver o que mais lhe aggrada!
É momento, finalmente,
em que cremos conveniente,
depois que nos divertimos
inventando tantos mimos,
dar-lhe um ultimo carinho
e à tarefa me encaminho:
posto de gattas, ao lombo
monto-lhe e do azar lhe zombo.
266
a veia a fundo lhe furo
do pescoço, e nesse appuro
revira os olhos ja cegos
pelos espinhos e pregos!
O selvagem se exvahindo
em sangue, que quadro lindo!
Logo extende-se e estertora
ao approximar-se a hora!
Exspirando, ‘inda nos serve
de motivo para a verve
si pisassemos-lhe a face
para que mais se humilhasse!
267
Quando está sob o meu guante,
com seus golpes desmantello
o orgulho mais arrogante,
que se humilha ao meu flagello!
268
teus golpes com meus odios e rancores!
Do mundo as illusões perdi, funestas,
Ao noitejar da edade, na tortura...
Só tu, severo latego, me restas!
269
(*) Versão, thematicamente livre e estrophicamente
diversa, dum poema conhescido como “La Refalosa”
(e reconhescido como sendo de Hilario Ascasubi),
que teria sido escripto por occasião do sitio de
Montevidéu. O auctor descrevia os requinctes de
crueldade com que um “unitario” capturado pelos
federalistas seria submettido a uma ludica sessão
de tortura. A recreação em portuguez oitocentista
toma o original gauchesco-dialectal como motte e
glosa-o em dez oitavas medidas pela redondilha maior,
mantendo o ambiente cisplatino da epocha de Rosas,
arejado pelo clima tropical da piccardia brazileira.
Ao original cabe annotar que “mazorquero”, a par do
sentido de “bagunceiro” que tem em portuguez, allude
mais propriamente à Mazorca, especie de Gestapo do
dictador argentino:
270
ya queda codo con codo
y desnudito ante todo. ¡Salvajón!
Aquí empieza su aflición.
Luego después a los pieses
un sobeo en tres dobleces se le atraca,
y queda como una estaca
lindamente asigurao, y parao
lo tenemos clamoriando;
y como medio chanciando lo pinchamos,
y lo que grita, cantamos
la refalosa y tin tin, sin violín.
271
que si se mueve es a gatas.
¡Qué jarana!
nos reimos de buena gana y muy mucho,
de ver que hasta les da chucho;
y entonces lo desatamos y soltamos;
y lo sabemos parar para verlo refalar
¡en la sangre!
hasta que le da un calambre y se cai a patalear, y
a temblar
muy fiero, hasta que se estira
el salvaje: y, lo que espira,
le sacamos una lonja que apreciamos el sobarla,
272
y de manea gastarla.
273
274
FORTUNA CRITICA
275
são justificadas pela mythologia lusosylvicola
inaugurada pelo casal; Lucia encontra sua redempção
na morte, emquanto Emilia e Aurelia, no casamento,
assim como o par romantico de ENCARNAÇÃO; em A
PATTA DA GAZELLA, Horacio, o avido podolatra, é
preterido por Amelia, a dona dos pés disputados,
que, mesmo com suas futilidades de moça, excolhe
casar-se com Leopoldo, o qual não deixa de ter por
premio, no final do romance, os pés delicados da
esposa. Valendo-se das mesmas personagens, Glauco
Mattoso desenvolve, em A PLANTA DA DONZELLA, uma
trama bastante differente daquella de Alencar: dos
salões das casas de familia, a historia se desloca
para clubes sadomasochistas da epocha do imperio;
Leopoldo se envolve com Laura, prima de Amelia, que
de personagem secundaria no texto original torna-
se activista de um daquelles clubes, iniciando
Leopoldo nas practicas SM; Amelia permanesce futil
ao longo do texto, casando-se com Caio de Azevedo
Camargo - um gallo de ovos de ouro, como descreve
o proprio Glauco; Horacio termina só, appós fazer
o papel de submisso perante Leopoldo em uma das
reuniões daquelle selecto gruppo; a podolatria,
que ja é bastante explicita no romance de Alencar,
é extendida aos pés das demais personagens alem
dos de Amelia. Todavia, embora negue o imitativo
alto de José de Alencar, Glauco não deriva, como se
poderia falsamente concluir, devido à convocação
do sadomasochismo e da podolatria, para o imitativo
baixo, proprio de estheticas como o naturalismo,
tambem do seculo XIX - em outras palavras, Glauco
não rebaixa suas personagens revelando pessoas
perversas por traz de pessoas apparentemente nobres,
appenas as substancializa tornando-as mais humanas
e menos romanescas. Para tanto, as personagens se
valem de suas practicas sexuaes, que, do poncto de
vista justificado na obra, não constituem defeitos
ou desvios de conducta, como faz Alencar quando
276
diagnostica o comportamento fetichista de Horacio;
salvos pelo prazer, Leopoldo e Laura teem um final
feliz regado a podolatria e sadomasochismo.}
277
Por Gustavo Bernardo, no JORNAL DO BRAZIL:
278
razoavelmente grandes. No romance de Mattoso, Amelia
continua com os seus pés mimosos, mas é Leopoldo
quem os tem enormes e deformados como um alleijão,
padescendo por compta delles enorme vergonha. Só esta
alteração provoca mudanças substanciaes no enredo: os
mesmos accontescimentos geram peripecias diversas.
Taes peripecias accompanham dialogos typicamente
romanticos, mas que se vão subvertendo aos poucos. O
leitor habitual de Glauco Mattoso extranha, porque a
subversão narrativa é lenta e cuidadosa. O erotismo,
presente desde Alencar, se accirra. Laura, como
mestra, conduz a falsa ingenua, Amelia, ao mundo
dos mais perversos. Horacio, no affan de tocar e ser
tocado pelos pezinhos de Amelia, deixa-se conduzir
a uma sessão explicita de sadomasochismo. Os pés
enormes de Leopoldo lhe servem, emfim, para humilhar
o rival com todo o requincte. O final é tão excitante
quanto profundamente perturbador. Não cabe contar o
final. Mas cabe especular que o podolatrismo permitte
uma reviravolta dos que se encontram “por baixo”:
deficientes physicos em particular, excluidos sociaes
em geral. Dobrando a espinha antes que outros a dobrem,
o adorador dos pés alheios representa a submissão
e assim, na sagaz observação de Italo Moriconi nas
orelhas, inverte a seu favor a relação de poder
para transformar sua perda em lucro. O fetiche dos
pés desta maneira se justifica plenamente (como si
precisasse) mas deixa envolto no mysterio o fetiche
maior. O fetiche maior é o da propria ficção. O que faz
um escriptor se dedicar por annos a fio a reescrever
um auctor do seculo retrazado? Não se tracta de
paixão pelo phantasma do Alencar porque Mattoso, ao
contrario, quer combatter o seu moralismo. Mas se
tracta de paixão pela litteratura mesma, com tudo o
que essa paixão possa ter de pathos, de doença e de
vicio. Foi o vicio da ficção que levou o escriptor a
construir um livro de leitura difficil, um livro para
ser lido forçosamente devagar. O livro lido ainda
279
exige do leitor que o releia, ou melhor, que os releia
junctos, A PATTA DA GAZELLA e A PLANTA DA DONZELLA,
para descobrir então como se reescreve a historia
e como as semelhanças se transformam em differenças
capitaes. Não é pouco trabalho. Mas a perda (de tempo
ou da ingenuidade) logo se transforma novamente em
lucro. Si a alma não for pequena, o livro de Glauco
Mattoso vale a pena.}
280
colleccionando obras de Sade e Restif e assignando
poemas obscenos. Outras vezes, Glauco intervem no
proprio texto alencariano, alterando as innumeras
passagens das quaes se appropria, mudando e inserindo
phrases inteiras de modo a adaptal-as ao seu interesse.
Por outro lado, tambem a inversão é empregada de
diversas maneiras na narrativa glauquiana. Embora a
inversão mais notavel do texto, presente na relação
entre Amelia e Horacio, não possa ser aqui descripta
por representar um elemento essencial no desfecho
do romance, ha que se destaccar que Glauco tambem
actua modificando estructuras do romance de Alencar,
fazendo com que Horacio passe por situações nas quaes
o envolvido, na obra alencariana, era Leopoldo, e
vice-versa. A inversão mais importante, no entanto,
emerge nas paginas finaes da obra -- quando,
consummados os desejos e reveladas as vontades,
A PLANTA DA DONZELLA revela-se como uma inversão
total do moralismo alencariano, destruindo quaesquer
resquicios de platonismo e offerescendo sceptro e
coroa ao mais impudico hedonismo. Si José de Alencar
tencionou escrever uma “fabula” de cunho moralizante,
com o ficto de educar desejos e sentimentos, a Glauco
Mattoso mais interessa questionar esta moralidade,
demonstrando que, quando se tracta de assumptos
tão subjectivos, as tentativas de normatização
difficilmente podem lograr algum successo. Será que
appenas o delicado e mimoso pé de Amelia poderia
ser objecto de desejo? Será que appenas o amor
platonico, à maneira do que sente Leopoldo na obra
alencariana, vale a pena? Glauco Mattoso responde a
ambas as perguntas com um emphatico “não”, retomando
a defesa da differença que ja fizera em seu “Sonnetto
Pluralista”: “Si formos deduzindo com cuidado, /
nenhum egual ao proximo será.”}
281
{Os mundos parallelos de Glauco Mattoso são muitos
e muitos não teem volta. Como si fosse um daquelles
loucos cineastas do expressionismo allemão, o
prosador e poeta paulistano approveita historias ja
contadas e conhescidas, como A PATTA DA GAZELLA, do
romancista cearense José de Alencar, para reinventar
uma trama com angulos e lentes differentes, mas
de olho no mesmo foco: o pé. O scenario da obra
recemlançada pela Lamparina editora é o mesmo
de Alencar -- o Rio de Janeiro do seculo 19, do
Romantismo --, mas o transgressor Mattoso dirige
um mundo em outra dimensão, assim como fez Robert
Wiene, no filme O GABINETE DO DOUTOR CALIGARI (1919),
no qual os personagens brigam com a realidade dentro
de um hospicio para attingir em cheio a cabeça do
espectador. E o real para Mattoso é a obra de José de
Alencar, que tinha o suggestivo appellido de Cazuza
na infancia. A PATTA DA GAZELLA é uma historieta
romantica, um conto de fadas à brazileira em que
dois jovens mancebos, Horacio e Leopoldo, um rico e
outro pobre, disputam o pé (a mão) da bella e rica
Amelia, a Cinderella tropical. E é o pé que tambem
vae nortear toda a narrativa de A PLANTA DA DONZELLA,
com citações directas ou indirectas de auctores
classicos do Romantismo, como o poeta Alvares de
Azevedo. Para justificar a releitura de A PATTA DA
GAZELLA, o poeta se autodenomina um podolatra --
é auctor do autobiographico MANUAL DO PODOLATRA
AMADOR: ADVENTURAS E LEITURAS DE UM TARADO POR PÉS.
A submissa e desejada donzella é transformada numa
pessoa dominadora de um jogo com nuances de perversão
e fetichismo da Inglaterra no periodo victoriano. É
um livro que dá tesão, desejo, mesmo aos que não
sonham com um pé maravilhoso desfilando em nuvens de
seda branca. Resultado de um escriptor maduro que
optou pela transgressão. Indagado si ainda carrega
nos oculos escuros algum rotulo litterario, como
o de “marginal” por ser contemporaneo da geração
282
de poetas loucos dos annos 70, disse que a sua
“exquisitice” o libera desses carimbos.}
283
São Paulo
Casa de Ferreiro
2020
E