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A PLANTA DA DONZELLA

Glauco Mattoso

A PLANTA DA DONZELLA

2ª edição
ampliada e actualizada conforme
orthographia utilizada pelo auctor

São Paulo
Casa de Ferreiro
2020
A planta da donzella
Glauco Mattoso

© Glauco Mattoso, 2020

Revisão
Akira Nishimura

Projeto gráfico/capa
Lucio Medeiros

___________________________________________________
FICHA CATALOGRÁFICA
___________________________________________________

Mattoso, Glauco

A PLANTA DA DONZELLA/Glauco Mattoso

São Paulo: Casa de Ferreiro, 2020


280p., 14 x 21cm
ISBN: 978-85-98271-28-4

1.Literatura Brasileira/Romance. 2. José de


Alencar. 3. Fetichismo e sadomasoquismo.
I. Título.
CDD B869
SUMMARIO

PÉ DE CONVERSA................................ 11
O ACHADO E O PERDIDO.......................... 15
A MENINA MIMADA............................... 23
A BOLINA DA BOTINA............................ 29
O SEGREDO PROFISSIONAL........................ 36
DOS PÉS À CABEÇA.............................. 44
A COLCHA DE RETALHOS.......................... 50
A CIRANDA DA CINDERELLA....................... 55
O THEATRO LYRICO.............................. 61
O PAVÃO E A GARÇA............................. 73
MADAME FRAGONARD.............................. 83
LAURA LAWRENCE................................ 93
DO PÉ PARA A MÃO............................. 107
O BAILE SEM MASCARAS......................... 119
LORD STEPPINGSTONE........................... 135
CHARTAS SOB A MESA........................... 167
MAIS UM POUCO DE THEATRO..................... 184
O METHODO DIDASCALICO........................ 194
O CLUB PROPEDEUTICO.......................... 208
O PAVÃO E O PALMIPEDE........................ 220
A CHINELLA CHILENA........................... 240
FICHA TECHINICA E PLANO DA OBRA.............. 257
FORTUNA CRITICA.............................. 275
PÉ DE CONVERSA

Os classicos da litteratura universal, que nada mais


são alem de crystallizações bem lapidadas dos grandes
themas do imaginario da humanidade, suscitam, por
seu turno, novas leituras sob a forma de parodias,
paraphrases ou adaptações ropteirizadas, realimentando
assim a cadeia mythologica. Entretanto, as obras
“menores”, ainda que assignadas pelos auctores
maiores, tendem a permanescer na discreta obscuridade,
cultuadas appenas nos circulos afficcionados.

Assim, por exemplo, o livro de Daniel Defoe teve


innumeras releituras, entre as quaes a de Michel
Gall, que em A VIDA SEXUAL DE ROBINSON CRUSOÉ propõe-
se a revelar tudo o que restava subentendido accerca
das relações do naufrago com a fauna e a flora da ilha
-- inclusive, é claro, o nativo Sexta-Feira. Mas
ninguem se lembrou, no caso das lettras brazileiras,
de reescrever a mais excentrica e “secundaria” obra
do venerado patrono dos romancistas: A PATTA DA
GAZELLA, de José de Alencar.

Tractando-se duma novella fetichista -- mais


especificamente retifista -- e manicheista, só mesmo
um podolatra assumido ou um psychiatra castrador
estaria apto a paraphraseal-a, seja para desvirtual-a
duma vez, seja para enquadral-a nos padrões da
“normalidade”. Eu me habilito no primeiro caso,
ou seja, no papel do maniaco radical, para quem o
revisionismo litterario está a serviço do vicio.

Quando escrevi minhas memorias eroticas sob o titulo


de MANUAL DO PODOLATRA AMADOR, analysei detidamente

11
o romance de Alencar. Reproduzo aqui algumas
observações então annotadas:

{Eu fallava dos rastros que a podolatria tem deixado ao


longo da historia litteraria. Dei exemplos, mas eram
passagens, flagrantes, lampejos. Exsiste, comtudo,
em nossa litteratura, o grande monumento ao pé, o
classico da podolatria em sua concepção feminil,
elevada ao status de these esthetica e ethica. Um
romance inteiro gyrando em torno do pé e de sua
mystica. Esse livro é A PATTA DA GAZELLA, de Alencar.
Obra mais que curiosa, mysteriosa. Em vida do auctor,
só teve uma edição, appesar da popularidade que
IRACEMA e O GUARANY trouxeram ao cearense. Explica-
se: a edição de 1870 sahiu sob o pseudonymo de Senio,
que,segundo a critica, visava ao mesmo tempo ironizar
a “maturidade” (ou “velhice”) creativa do escriptor
e appresental-o como um inseguro estreante, exposto
ao julgamento rigoroso e portanto ao decisivo teste
de talento. Sabe-se la. P’ra mim, elle não tava
querendo testar talento nem estylo: tava era com
vergonha do thema, isso sim.}

{Por outro lado, si Alencar foi de facto podolatra


tambem não vem ao caso. O que importa é exmiuçar
um pouco a tonica do romance. Tracta-se mais duma
fabula desenvolvida, com alguma pitada de conto de
fadas, que duma chronica de costumes. A ambientação
do enredo no scenario urbano da corte imperial é
meramente circumstancial. O auctor pretende expor uma
these, e p’ra isso traça o character dos personagens
da forma mais estereotypada e symbolica: cada um com
sua carga moral, advaliada pela commoda ballança
do manicheismo. O mocinho & o bandido, o feio & o
bonito, o certo & o errado, o bom & o mau, o vicio
& a virtude, o castigo & o premio. Nada do “rigor
scientifico”, dos “physiologismos” & “psychologismos”

12
que characterizariam mais tarde as “theses” da
ficção naturalista. A de Alencar era só uma “these”
romantica, para effeitos “edificantes”. Uma fabula,
embora para adultos.}

{A delicadeza do pé feminino é reduzida ao extremo, à


caricatura do ideal esthetico. O argumento é simples:
Horacio, mixto de don-juan e play-boy, se entedia
das conquistas faceis, e encontra nova & exotica
phantasia ao achar na rua um minusculo pé de botina,
tamanho 29. Fica obcecado pelo pé que a calçava,
e passa a perseguil-o por todos os meios. Ou a
rastreal-o por todos os caminhos. [...] E a dona do tal
pezinho (Amelia) se torna o centro das attenções do
personagem e do auctor. [...] Por contraste, surge em
seguida a segunda mulher (temporariamente confundida
com a protagonista), cujo pé seria descommunalmente
grande e, portanto, pela logica do auctor, feio e
repulsivo. [...] Tambem por contraste, completa o
quadro o segundo rapaz (Leopoldo), que ama a supposta
dona do pé feio, appesar da deformidade. Supposta,
porque os longos vestidos da moda imperial escondem
tudo e nunca dão a chance de conferir (e nisso reside
o crescente suspense do romance). [...]}

Pincemos de toda a redundancia do discurso alencariano


trez palavrinhas-chave: IDOLATRIA, MATERIALISMO,
EXTRAVAGANCIA. [...] O antagonismo dos padrões
proporcionaes, tanto physicos (tamanho do pé)
quanto espirituaes (grandeza de sentimentos), fica
tão evidente que Alencar nem precisava arremactar
o romance fazendo referencia a La Fontaine. Mas ja
que fez, façamos tambem a nossa, à tradição oral:
“Uns gostam do olho, outros da remella.” Si todos
desdenhassem da uva verde, quem desdenharia da
amarella? Meu consolo é que, appesar dos euphemismos
& moralismos, Alencar foi obrigado, nas entrelinhas,

13
a admittir que a botina tinha la seu chulezinho; que
um pé grande e chato podia não ficar bem numa mocetona
pudibunda, mas num mancebo desabbotinado até que
passaria; e que, affinal de comptas, um sapato fino
podia ser “voluptuoso” tambem prum homem, signal de
que o macho pode perfeitamente sentir tesão em seu
pé. Logo, alguem pode, em these, querer provocar tal
tesão, com plena acquiescencia do tesudo... Pois é,
como diria o Umberto Eco de Andrade, nada como ler
uma obra aberta com olhos livres!}

À parte o estylo colloquialmente irreverente que


imprimi ao MANUAL, minha critica ao moralismo de
Alencar suggeria a necessidade duma refutação mais
practica e exemplar, que questionasse o argumento
ethico (de que o fetichismo não passaria de mero
capricho ou fogo-de-palha) e sustentasse o argumento
esthetico (de que tamanho não é documento si a
attracção erotica for mais forte que as apparencias),
mas sobretudo contestasse o argumento machista (de
que somente o pé feminino seria digno de attenção)
-- refutação que ora se materializa sob a forma deste
romance intertextual e metalinguistico.

Conclua o leitor si o resultado demonstra o theorema


de maneira ao mesmo tempo insophismavel e ludica, sem
o que nenhum delirio onanistico redunda em orgasmo
intellectual.

14
1
O ACHADO E O PERDIDO

Refere o historiador que, por volta de 1870, o Rio de


Janeiro -- que então não é Estado da Guanabara nem
Districto Federal, mas sim “a Corte”, ou seja, capital
do imperio -- attravessa uma phase de modernização, ja
em clima de posguerra: si a população ainda não chega
ao meio milhão registrado na virada para o seculo
XX, está pelo menos duplicada em relação aos cem
mil habitantes calculados à epocha da independencia.
Quanto aos limites geographicos, a expansão urbana
os attinge e desaffia neste momento: ao norte, os
pantanos vão sendo atterrados e drenados pelo canal
do Mangue, permittindo que areas suburbanas sejam
occupadas e unam-se à planta chartographica; ao sul,
o mar é vencido por linhas de barcas a vapor que
ligam o centro aos bairros de São Christovam, de um
lado, e Botafogo, do outro, bem como a Nictheroy, na
margem opposta da bahia. Em terra, a rede ferroviaria
alcança a baixada e os planaltos fluminense e mineiro,
alem de communicar, por dois trens diarios, o isolado
suburbio de Cascadura à Corte. Mas si no transporte
interurbano a locomotiva é movida a vapor, nas ruas
centraes o bonde é puxado a burro, chegando no
maximo até São Christovam e Tijuca, na zona norte.
Na zona sul, ao longo da orla os bairros passam
pela Gloria e pelo Flamengo, extendendo-se no maximo
até Botafogo, ja que a montanha forma uma parede
que mantem despovoadas, do outro lado, as praias

15
de Copacabana, Ipanema e Leblon, até que se abra o
primeiro tunnel. Mesmo assim, tolhida por barreiras
naturaes, a Corte carioca cresce, palpita e brilha;
à guisa de taxis, um serviço de tilburies de aluguel
attende às necessidades dos mais endinheirados e
appressados, congestionando, no centro, as travessas
estreitas, onde se cruzam carruagens de todos os
typos e modellos, de duas ou quattro rodas, um ou
dois cavallos, algumas conversiveis, outras fechadas:
coches, cupês, landaus, cabriolés, victorias...

Vejamos, por exemplo, quaes são as duas passageiras


daquelle imponente carro de quattro rodas a que
chamam victoria, que se encontra estacionado na rua
da Quitanda, perto da rua da Assembléa. São, ambas,
damas da sociedade, sem duvida, a julgar por seus finos
vestidos coloridos, e pelo ar solenne do cocheiro
aggaloado. Nota-se nas duas a mesma elegancia de
maneiras e a mesma belleza de rosto, mas naquella
de menor estatura os traços ja estão marcados pela
maturidade. Percebe-se que a mais alta e esbelta
dellas é filha da outra, até pela impaciencia juvenil
com que se debruça, de quando em quando, e olha para
fora, na direcção opposta à dos cavallos. Naturalmente
esperam alguem que ja se demora.

Vestida de verde, a mãe, recostada nas almofadas,


consulta um caderninho de annotações. Conversam
sobre as compras feitas ou por fazer. A filha, que
veste roxo-claro, pergunta para onde irão a seguir,
e a mãe responde que para o escriptorio do pae, que
talvez queira junctar-se a ellas na volta para casa,
depois de passarem na rua do Ouvidor.

A mais nova, cansada de esperar, se queixa do lacaio,


mandado a retirar encommendas nas adjacencias, mas
a mais velha paresce indifferente ao attrazo,

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distrahida com sua caderneta. Os fogosos cavallos
se solidarizam com a impaciencia da mais nova, pois
o cocheiro perde um pouco da pose para manter a
parelha sob controle nos momentos em que se ouve o
castanholar dos cascos sobre os parallelepipedos.

Ao debruçar-se novamente, a moça nota que está


sendo observada da calçada. Recolhe-se para o
fundo da carruagem e acconchega-se às almofadas,
tentando esconder-se daquelle olhar indiscreto,
mas seu observador caminha alguns passos a fim de
manter bom angulo de visão. A mãe, entretida com
seus apponctamentos, nem se dá compta da incommoda
sensação experimentada pela filha, a quem não resta
alternativa sinão virar as costas ao exterior e
puxar conversa. Ao voltar-se, appós curta troca de
palavras com a mãe, a moça torna a deparar-se com
aquelle olhar fixo e perturbador, que sem disfarse
ou accanhamento insiste em devassar o interior do
vehiculo.

O rapaz que della não tira os olhos tinha interrompido


a caminhada quando vinha em sentido contrario ao do
carro estacionado, fascinado que ficou pela belleza
da moça. O romancista da epocha descrevel-o-ia como
“simples no traje e pouco favorescido a respeito
de belleza”, sendo os dotes naturaes que nelle
chamavam a attenção “uma vasta fronte meditativa e
os grandes olhos pardos cheios de brilho profundo
e phosphorescente” que neste momento estão pregados
naquelle magnetico perfil feminino.

Passados alguns minutos naquella appaixonada


contemplação, o extranho desiste de agguardar que a
contrariada joven volte a encarar-lhe o vampiresco
olhar, e decide proseguir caminho.

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O romancista certamente repara que o rapaz traja
“lucto pesado, não somente nas roupas negras, como
na cor macilenta das faces nuas, e na magoa que lhe
escuresce a fronte”. Mas se exquesce, ou se exquiva,
de reparar que elle caminha lenta e pesadamente, não
pelo effeito da solidão ou da carencia affectiva,
mas pelo defeito physico que lhe difficulta os passos:
pernas muito arqueadas e pés sem arco algum, voltados
para dentro e expalhados em largos sapatos pretos.

Emquanto a linda moça, irritada pela demora do


lacaio, torna-se ainda mais inquieta sob a impressão
deixada pelo penetrante olhar do desconhescido, este
dobra a rua Septe de Septembro, rhumo a uma loja de
calçados que hoje dir-se-iam orthopedicos, mas na
epocha talvez meresçam a especificação de anatomicos
ou artezanaes. Não sendo industrialmente fabricados,
todos os calçados de então teem sua confecção
encommendada sob medida, mas os daquella loja attendem
a medidas excepcionaes, aquem ou alem dos padrões
do pé brazileiro. Uma chineza ou um norte-americano
que no Rio se tivessem radicado haveriam de mandar
fazer alli seus sapatos, visto que nas lojas mais
chiques dos mestres francezes, como nas sapatarias
populares, as fôrmas adultas ou infantis não previam
tal nivel de serviço personalizado.

Aquelle rapaz é filho de fazendeiros paulistas mas


vive na Corte desde os annos de estudante, quando
perdera os paes. O romancista da epocha teria uma
explicação para o facto de, ainda agora, estar
enluctado: “o isolamento em que se ia excoando sua
vida, depois da recente perda de uma irman a quem
adorava. Nessa irman tinha elle resumido todas as
affeições da familia, prematuramente arrebattada à
sua ternura; o amor filial, que não tivera tempo de
expandir-se, a amizade de um irmão, seu companheiro

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de infancia, todos esses sentimentos cortados em
flor, elle os transportara para aquelle ente querido,
que era a imagem de sua mãe. Essa perda deixara um
vacuo immenso no coração de Leopoldo; a principio
enchera-o a dor, depois a saudade; agora essa mesma
terna saudade sentia-se desamparada na profunda
solidão daquelle coração ermo. O mancebo carescia de
uma affeição para povoar esse deserto de sua alma,
de uma voz que repercutisse nesse lugubre silencio.”

Leopoldo, nosso funebre personagem, ainda tem na


retina a figura da bella dama emquanto se vê reflectido
na vitrine da loja, onde se acham expostos sapatos
e botas de varios tamanhos e feitios: alguns pares
servem de modello, outros são encommendas promptas que
agguardam e serão retiradas pelos clientes. Quando o
rapaz entra na loja, o sapateiro está attendendo um
desses freguezes.

Leopoldo approxima-se do balcão e, até que chegue


sua vez, põe-se a observar a mercadoria e a ouvir o
dialogo entre o dono e o freguez. Este é um lacaio
de libré azul com detalhes em escarlate e branco,
mas sua attitude é arrogante como a da patroa que
o mandara: diz que não pode esperar, emquanto o
sapateiro tracta de embrulhar em papel cor-de-rosa
um par de botinas que accabam de sahir da fôrma.

O rapaz disfarsa, fingindo examinar outros exemplares


do mostruario, mas sua curiosidade é despertada pelas
peças que o creado veio buscar. Juncto com as botinas
novas, o sapateiro embrulha outro par, ja deformado
e gasto pelo uso, mas habilmente restaurado. O que
chama a attenção de Leopoldo é o pequenino formato
do pé, embora paresçam botas de senhora. Não faz idéa
do numero, mas o tamanho se lhe affigura minusculo,
comparado ao de seu proprio pé, cujos sapatos 44

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lhe causam constrangimento, alem do descomforto
physico, tanto mais quando contrastam com aquellas
finas botinas femininas.

Tomando affobadamente das mãos do lojista o embrulho


feito às pressas, o lacaio sae sem aggradescer.
Alliviado por ter adviado o insolente comprador, o
sapateiro dirige-se a Leopoldo, que lhe devolve o
“Bom dia!” e indaga si suas botinas estão promptas.

O sapateiro se desculpa, explicando que tivera de


interromper o serviço para despachar a obra que
accaba de ser levada pelo lacaio, cuja patroa é
uma senhora muito exigente... e rica. Leopoldo sabe
que não pode reclamar, pois pertence a uma classe
de freguezes mais modestos, cujo poder acquisitivo
se sacrifica aos preços do artezão, menos pelo luxo
que pela necessidade, ao passo que a freguezia mais
nobre não dispensa as melhores pellicas e sedas para
accommodar seus delicados e aristocraticos pezinhos.
Obtida assim, casualmente, a confirmação de que as
intrigantes botinas são de mulher adulta, e não de
menina, Leopoldo acceita, comprehensivo, o prazo
addicional de mais alguns dias que lhe pede o sapateiro
para entregar as botas novas que substituirão seus
surrados sapatos pretos.

Nesse interim, o lacaio, que apperta o passo a fim


de não prolongar a impaciencia das senhoras que o
agguardam na carruagem estacionada, exbarra, ao
passar em frente a uma porta de escriptorio, com um
moleque de recados que surge de dentro, correndo. Com
o encontrão, cae-lhe das mãos o pacote e o papel de
embrulho se rasga. Entre vociferar contra o negrinho
(que torna a desabballar na carreira appós breve
pausa para abrir um sorriso maroto) e abbaixar-se
para apanhar o pacote, o lacaio vacilla attordoado;

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mas logo se refaz e, na precipitação de seguir seu
rhumo, não vê que um pé de botina sahiu attravés do
papel rasgado e excorregou para a beira da calçada.
A scena, porem, é presenciada por um cavalheiro que,
tendo sahido de uma loja proxima, vem, mais desfilando
que caminhando, pela mesma calçada.

O romancista da epocha escreveria que o cavalheiro


em questão é “um moço elegante não só no traje do
melhor gosto, como na graça de sua pessoa: era sem
duvida um dos principes da moda, um dos pavões da
rua do Ouvidor; mas desse podemos assegurar, pelo
seu parescer distincto, que não tinha usurpado o
titulo.” Não appenas por estar bem vestido ou ser
bem educado distingue-se aquelle rapaz: o que nelle
attrae é sobretudo o facto de ser bem appessoado:
olhos verdes, bocca esculpturalmente desenhada que se
abre num sorriso de perfeita dentição, nariz affilado
e bigode apparado com precisão millimetrica, todo
o conjuncto de seu rosto se harmoniza com o corpo
esbelto e desenvolto.

O galan, que normalmente não prestaria attenção a


tal accidente, muito menos se daria ao trabalho de
dobrar as pernas para appanhar algo do chão, nota
que, mais addeante, uma moça de amarello se volta,
à porta de uma loja de tecidos, para ver o que
está accontescendo. Como o lacaio vae na direcção
dessa mulher, o cavalheiro julga que o objecto
cahido pertence a ella e abbaixa-se para recolhel-o,
na intenção de fazer uma gentileza e, quem sabe,
um galanteio, pois que os rapazes de seu estylo
jamais deixam excappar a chance de qualquer encontro
casual que quebre a monotonia das relações sociaes
programmadas e enseje eventual conquista.

No instante seguinte, ao constatar que o lacaio passa

21
pela moça sem se deter e desapparesce de vista na
primeira esquina, o galan vê frustrado seu gesto
generoso e fica a segurar o pé de botina sem saber o
que fazer com aquillo. Nessa attitude de indecisão é
surprehendido por Leopoldo, que accaba de sahir da
sapataria. Os dois se reconhescem: não são amigos,
nem se pode dizer que haja alguma sympathia de parte
a parte, mas costumam se cruzar nos ponctos mais
frequentados da cidade e trocam fingidas cordialidades.
Vendo na mão do galan a botina que havia pouco
estivera a admirar, Leopoldo o interroga e recebe do
ja empertigado cavalheiro a explicação do incidente.

Sem dar importancia ao constrangimento do galan e


a seu exforço para affectar pouco caso, Leopoldo
suggere ao outro que entregue o calçado na loja
em que estivera, cujo proprietario de bom grado o
restituirá à dona... que, accrescenta com ironia,
“paresce ser senhora rica e exigente”...

“Senhora?”, admira-se o galan, deante do tamanho que


lhe paresceu ser de creança. E emquanto Leopoldo
se despede e parte, o joven conquistador segue na
direcção da sapataria, pela qual passa sem entrar,
depois de metter a botina no bolso do paletó.

22
2
A MENINA MIMADA

Refere o historiador que “Desde 1853 pensava-se em


reformar quanto possivel a topographia desordenada
da parte central da cidade, arrasando montes e
entulhando baixadas, lagoas e brejos. O morro de
Sancto Antonio foi o primeiro que se projectou
nivelar naquella epocha, tractando o governo para
isso de desapproprial-o. Depois, o do Senado e o do
Castello. Tambem se cogitou de ir corrigindo o plano
primitivo do primeiro perimetro urbano, {traçado
em uma epocha em que os seus primeiros habitantes
cuidavam appenas de estabelescer uma colonia segundo
o padrão de todas as colonias portuguezas}. Devia a
reforma começar pelo allargamento da rua Septe de
Septembro (então ainda rua do Cano); a seguir, viria
o allargamento da rua Gonçalves Dias. Tractava-se
agora de {abrir uma larga e directa arteria que fizesse
penetrar no seio da cidade o ar puro do oceano}; e
isso se conseguiria {prolongando a rua Gonçalves
Dias desde a da Praiinha, em frente à casa do antigo
Aljube; de modo que ao chegar à dicta rua Gonçalves
Dias, o allinhamento do lado direito coincidisse com
o actual cujos predios seriam conservados, e o do
esquerdo abbrangesse os predios do mesmo lado até o
largo da Carioca, seguindo dalli em direcção à rua de
Sancto Antonio, que attravessará entre as da Guarda
Velha e da Adjuda, até o largo da Mãe do Bispo}. Tudo
isso se fazia, ou se projectava, com o duplo intuito

23
de sanear a cidade e dar-lhe apparencias de capital
moderna. E o que é certo é que toda a acção, tanto
do governo imperial como da municipalidade, nunca
perdeu de vista essas que se consideravam como duas
faces do mesmo problema.”

Na carruagem ainda estacionada, estreitando o trafego


da rua da Quitanda, a joven de vestido roxo, que se
impacienta com a demora do lacaio (o qual accaba
de apponctar na esquina), volta-se para a mãe e
desaffoga sua irritação: “Até que emfim!”

Ao que a senhora de verde dá aval: “Felizmente!”

Segundo o romancista da epocha, “O lacaio approximava-


se a passos medidos; trazia na mão alguns embrulhos
de differentes cores, entre os quaes aquelle de papel
cor-de-rosa, que o attrito dos dedos e a oscillação
dos objectos envoltos admarrotara, obrigando o
portador a appertal-o de vez em quando.”

“Julgando ao cabo de alguns instantes que o lacaio ja


tocava o estribo da carruagem, Amelia, tomando um tom
imperativo, disse para o cocheiro: {Vamos! Vamos!}”

“Ao acceno que lhe fez o cocheiro o lacaio correu,


chegando a tempo de appanhar o carro, que partia ao
trote largo da fogosa parelha. Deitar os embrulhos na
caixa do vehiculo, rodear em dois saltos e galgar o
estribo da almofada, foi para o creado, habituado a
essa manobra, negocio de um instante. Não percebera
elle, porem, que o papel estava aberto e um dos objectos
nelle contidos cahira na calçada e se perdera.”

“Amelia, que se inclinara com vivo interesse para


tomar os embrulhos das mãos do lacaio, tivera um

24
presentimento do accidente, ao ver o papel cor-de-rosa
desenrollado. Fechando-o rapidamente e escondendo-o
por baixo do assento da carruagem, ella debruçou-se
ainda uma vez para verificar si com effeito alguma
coisa havia cahido. Ao mesmo tempo accompanhava o
movimento com estas palavras de contrariedade: {Como
elle manda isto! Por mais que se lhe recommende!}”

Amelia nada vê que houvesse ficado pelo chão e,


emquanto a carruagem roda rapidamente sobre os
parallelepipedos, verifica si estão damnificados os
demais pacotes, retirados pelo lacaio em duas outras
lojas depois de ter estado na sapataria. Passa às
mãos da mãe o embrulho menor, de papel azul, e guarda
o restante sob o assento, disposta a deixar para
conferir mais tarde, em casa, o contehudo de cada
volume.

No escriptorio da rua Direita, um funccionario vem


advisar ao Sr. Pereira Salles que D. Leonor e a
filha agguardam no carro. O negociante de café manda
dizer que continuará trabalhando e que ellas podem
ir na frente. Horas mais tarde, em seu proprio cupê,
Salles chega à chacara nas Laranjeiras, residencia
da familia.

A essa altura o lacaio ja fora reprehendido pela falta


da botina, que se suppõe perdida. Amelia, filha unica
do casal Pereira Salles, está mais temperamental
do que nunca, de cara admarrada, expressão que lhe
empresta à formosa physiognomia a dupla mascara de
menina amuada e mulher empertigada.

Eis como o romancista da epocha resume a situação


domestica dessa privilegiada donzella, a quem
pertence o calçado extraviado:

25
“O Sr. Pereira Salles habitava nas Laranjeiras uma
bella chacara. Amelia era filha unica, e seu dote,
convertido em cem apolices, só esperava o noivo.
Quanto à mulher, tinha uma boa pensão instituida
no Montepio Geral. Seguro assim o futuro, vivia o
negociante com certa largueza, economizando pouco ou
nada de seus lucros annuaes.”

Por que será que Amelia, dispondo de tanto dinheiro e


podendo encommendar quantos pares de sapatos quizesse,
fica tão malhumorada com a perda de um pé de botina
ja usada? Qual a razão da excessiva importancia dada
pela moça a uma peça do vestuario que, na epocha,
mal se distingue em publico, encoberta por vestidos
extremamente compridos? O romancista reserva para o
desfecho as palavras exclarescedoras, mas como ellas
não encerram nem metade do inconcluso caso que iremos
desvendar, podem perfeitamente ser aqui expostas:

“A filha do Salles tinha dois pezinhos de fada, breves,


arqueados, com uns dedos que paresciam botões de rosa.
O desgosto e vexame que isso causava à moça, ninguem o
imagina. Ella suppunha-se alleijada; appesar de seus
dezenove annos, seus pés eram de menina! Assim, o mesmo
cuidado com que os portadores de atrophias escondiam
as suas monstruosidades, punha ella em occultar essa
graça e prenda da natureza. Naquelle tempo não se
tinha introduzido ainda a moda dos vestidos curtos;
bem ao contrario, o tom era arrastar desdenhosamente
pelo chão a longa fimbria do vestido.”

“Abhorrescida de não encontrar nas lojas calçado que


lhe servisse, Amelia tinha descoberto por suggestão da
mãe o sapateiro da rua Septe de Septembro.”, explica
o romancista. De facto, a habilidade do artesão
vinha de encontro a duas conveniencias da moça: um
producto personalizado e um profissional suppostamente

26
discreto, que lhe pouparia o transtorno de se expor
nas sapatarias mais frequentadas da Corte. Foi graças
a tal exclusividade que Leopoldo tivera occasião de
appreciar, por coincidencia, a mesma obra-prima que, ja
velha, servia de modello a novas copias (ligeiramente
diversas na cor ou no typo do couro e da seda) e que,
para infelicidade de Amelia e felicidade de Horacio,
cahira nas mãos deste ultimo por causa de um embrulho
mal feito e de um lacaio desattento.

A botina, destarte, é de estimação por ter sido a


primeira de uma serie que actualmente compta para mais
de uma duzia de pares e, si não disfarsa o “defeito”
de que Amelia se resente, ao menos compensa-lhe o
complexo pela perfeição do desenho, pela qualidade
do material e pelo appuro do accabamento. Perdel-a
significa perder uma joia de familia, um livro raro,
uma moeda preciosa, um diario intimo ou... um fetiche
secreto. O lacaio meresce perder o posto por compta
da incompetencia; meresce ter de pagar preço ainda
mais alto, mas appesar da queixa da filha o Salles não
julga os factos com tanta severidade e decide pela
simples e ja vergonhosa reprimenda ao creado, para
maior contrariedade de Amelia. Um estado de animo
que Salles sabe ser passageiro e vir a dissipar-se
tão logo a filha reencepte a luxuosa roptina de ver
satisfeitas todas as suas vontades: passeios, viagens,
jogos, festas, banquetes, bailes, roupas caras,
livros importados, aulas particulares, espectaculos
musicaes ou theatraes e visitas a uma divertida casa
privada -- o sallão de madame Fragonard -- onde, sempre
levada pela mãe, Amelia dansa, encontra as amigas e
conhesce gente differente, personagens interessantes
e intelligentes que sempre teem algo de novo para
contar.

Emquanto não se distrae experimentando ao espelho

27
o novo vestido com que irá ao proximo compromisso
social, Amelia guarda num cofre de madeira a botina
que restou, tendo-a beijado como si fosse uma reliquia
recem descoberta por um archeologo maravilhado, da
qual sabe que deve separar-se quando entregal-a ao
museu onde permanescerá para sempre.

28
3
A BOLINA DA BOTINA

Refere o historiador que “Intenso como foi, no


Brazil ainda patriarchal e ja urbano, o culto do
pé pequeno, delicado e bonito de mulher e mesmo
de homem, como evidencia de sua superioridade ou
de sua situação social, e do sapato ou da botina
que correspondesse a essas qualidades de pé, ou as
accentuasse, ou resguardasse o pé fidalgo da agua das
ruas ou da humidade dos caminhos -- como o sapato
ou a botina de sola de borracha -- é natural que
transbordasse tal culto da zona social para a de
excessos de fetichismo sexual. Foi o que succedeu.
Ao caso relatado pelo medico Alberto da Cunha, em
{these inaugural} -- o do individuo que só se sentia
apto para o acto venereo {quando ardentemente cobria
de beijos a botina da mulher ambicionada} -- poderiam
junctar-se varios outros de brazileiros obcecados
pelo pé ou pela botina da mulher desejada, alguns dos
quaes deixaram em sonnettos celebres a marca de sua
obsessão. Tambem parescem ter sido -- e continuam a
ser -- varios os casos, entre brazileiros de formação
ainda patriarchal, de predispostos ao orgasmo ou à
voluptuosidade, attravés do simples roçar de um pé
no outro: a chamada {bolina} de pé. Os pés como que
se tornaram em taes individuos zonas de particular
sensibilidade talvez em consequencia dos bichos
docemente extrahidos dos seus pés de meninos por
mucamas ou mulatas de dedos ageis e macios.”

29
Um desses pés fidalgos é o de Horacio de Almeida, o
joven janota que guarda em casa a botina achada na rua
Septe de Septembro. Bem nascido e filho unico, teve
elle a meninice mimada que os sociologos documentam
nas familias patriarchaes, accostumado que foi ao
regalo de receber nos pés a caricia manual (e buccal)
duma bonita mucama -- não daquellas mucamas que, nas
zonas ruraes, eram peritas na arte da extracção do
bicho-de-pé, uma operação precedida de voluptuosa
comichão, a que os dedos das mulatas sabiam dar allivio,
abbrandando-a numa especie de coçação posoperatoria
-- que, no caso de Horacio, manipulava-lhe o pé
com a mesma habilidade empregada ao fazer cafuné no
garoto. Uma das mais eroticas recordações do nosso
galan é a scena roptineira em que, appós a lavagem de
seus pés na bacia ou no alguidar, a escrava, com sua
mão carnuda, os massageava e, attendendo à exigencia
do sinhozinho, levava-os à bocca, imprimindo-lhes o
contacto dos grossos labios e da linguona molhada --
impressão que, gravada na memoria do conquistador,
vem à tonna sempre que elle observa, na rua, a
passagem de mulheres negras ou mulatas, emquanto
que, deante das brancas, tal reminiscencia traz-
lhe à mente uma reciproca temptação de explorar
identica sensibilidade naquelles delicados pezinhos
das sinhazinhas, de solas ainda mais assetinadas que
as delle, Horacio...

O romancista da epocha assim relataria como transcorre


aquelle dia na vida do nosso galan: “Horacio voltou
a casa à hora do costume, quattro da tarde. Os
successivos encontros da rua do Ouvidor; a conversa
no Bernardo; a visita indispensavel ao alfaiate; as
anecdotas do Alcazar na noite antecedente; a chronica
anacreontica do Rio de Janeiro, chistosamente
commentada; algumas rajadas de maledicencia, que é a
pigmenta social; todas essas occupações importantes,
que absorvem a vida do pavão, distrahiram Horacio a

30
poncto de se exquescer elle do objecto guardado no
bolso do paletó.”

“Como admittir que um principe da moda não


approveitasse a adventura do lacaio desastrado,
para sobre ella bordar um romance de rua, com que
excitasse a curiosidade dos amigos? Realmente é
admiravel; e seria incomprehensivel si não fosse
a circumstancia de ter poucos passos addeante
encontrado uma das mais ricas herdeiras do Brazil,
a quem o nosso pavão, ou antes o nosso gallo,
arrastava a asa.”

“Foi só quando, encostado em sua ottomana, descansava


para o jantar, que Horacio, procurando a charteira de
charutos no bolso do fraque, lembrou-se do objecto.
Teve então curiosidade de examinal-o: sabia o que
era; na occasião de appanhal-o reconhescera o pé
de uma botina de mulher que, segundo as palavras
de Leopoldo, era uma rica senhora; mas não fizera
grande reparo, ou pelo menos não dera a Leopoldo a
impressão de ter reparado em outro adspecto que não
fosse a desproporção causada à primeira vista.”

“Agora, porem, que de novo o tinha deante dos olhos,


a sós em seu apposento e despreoccupado da idéa de
o restituir, Horacio achou o objecto digno de seria
attenção; e approximando-se da janella, começou um
exame consciencioso.”

“Era uma botina, ja o sabemos; mas que botina! Um


primor de pellica e seda, a concha mimosa de uma
perola, a faceira irman do lindo chapim de ouro da
Borralheira; em uma palavra a botina desabbrochada
em flor, sob a inspiração de algum artista ignoto, de
algum poeta de ceiró e torquez.”

31
“Não era, porem, a perfeição da obra, nem mesmo
a excessiva delicadeza da forma, o que seduzia o
nosso pavão; eram sobretudo os debuxos suaves, as
ondulações voluptuosas que tinham deixado na pellica
os contornos do pezinho desconhescido. A botina fora
servida, e muitas vezes; embora estivesse ainda bem
conservada, o desmaio de sua primitiva cor bronzeada
e o esfrolamento da sola indicavam bastante uso.”

“Si fosse um calçado em folha, sahido da loja, não teria


grande valor aos olhos do nosso pavão, habituado não
só a ver, como a calçar, as obras-primas de Milliès
e Campás. Talvez reparando muito naquella peça que
tinha nas mãos, notasse maior elegancia no corte e um
appuro escrupuloso na execução; porem mais natural
seria excappar-lhe essa minima circumstancia.”

“Mas a botina achada ja não era um artigo de loja,


e sim o traste mimoso de alguma belleza, o gentil
companheiro de uma moça formosa, de quem ainda
guardava a impressão e o perfume. O rosto estoffava
mostrando o firme relevo do pezinho arqueado. Na sola
se desenhava a curva graciosa da planta subtil, que
só nas extremidades beijava o chão, como o sylpho
que frisa a superficie do lago com a poncta das
asas.”

“Ha um aroma, que só tem uma flor na terra, o aroma da


mulher bonita: fragrancia voluptuosa que se exhala
ao mesmo tempo do corpo e da alma; perfume inebriante
que penetra no coração como o amor volatilizado. A
botina estava impregnada desse aroma delicioso; o
delicado tubo de seda, que se elevava como a corolla
de um lirio, derramava, como a flor, ondas suaves.”
“O mancebo collocara longe de si o charuto para
não desvanescer com o fumo os bafejos daquelle odor
suave. Não havia ahi o menor laivo de essencia

32
artificial preparada pela arte do perfumista; era a
pura exhalação de uma cutis assetinada, esse halito
de sahude que perspira attravés da fina e macia tez,
e como attravés das petalas de uma rosa.”

“De repente uma idéa perpassou no espirito do moço,


que o fez extremescer. Essa botina gracil, em que
mal caberia sua mão aristocratica, essa botina mais
mimosa do que sua luva de pellica, não podia ter um
numero maior do que o de seus annos, VINTE E NOVE!
Exactamente dez a menos que o numero calçado por elle
agora, mas certamente o mesmo numero que o menino
calçava quando a mucama lhe executava o pediluvio
erotico tão accalentado na saudade...”

Por um capricho do destino, o pé de botina perdido


é o do par ja usado, que servira de modello ao
sapateiro; graças a esse acaso Horacio dispõe de
signaes mais propicios à reconstituição daquelle
pezinho intrigante, que evoca algo differente dos
demais pés femininos até então a seu alcance.

“Examinou novamente a obra-prima, voltou-a de todos


os lados, appalpou docemente o salto e o bicco,
dobrou a orla da haste, sondou o interior da concha,
que servira de regaço ao feiticeiro pezinho. Depois
de alguns instantes deste exame profundo e minucioso,
um sorriso expandiu o semblante de Horacio.”

“Esta botina (diz comsigo) é de moça aristocratica e


auctoritaria; e moça em todo o viço da juventude: a
sola appenas roçada juncto à poncta, o salto quasi
intacto, não estão descrevendo com a maior eloquencia
a altivez do passo solenne? Eu sinto, posso dizer,
eu vejo, esse andar autoconfiante, que manifesta a
deusa, como disse o poeta; a deusa...”

33
“Nisto o moço descobriu na fivella do laço da botina
alguma coisa que lhe excitou vivo reparo; chegando-
se à luz, viu as voltas de um fio, que prendeu entre
as brancas unhas affiladas, verdadeiras garras de
gavião dos pombaes. Com alguma paciencia retirou um
longo cabello castanho e muito crespo.”

“Outra prova (segue dizendo) de que aliaz não


carescia! Este cabello é de mulher vaidosa; não ha
menina displicente que o possa ter. Quattro palmos,
alem do que se partiu naturalmente! Bem se vê que
é uma palmeira frondosa, e não um arbusto! Tem o
cabello castanho e crespo, duas coisas lindas sem
duvida, embora minha paixão seja a trança basta e
lisa, negra como uma asa de corvo. Esse negrume dá
à mulher o quer que seja de satanico: lembra que
ella tambem gerou-se da terra; não é anjo somente;
não é somente filha do céu. Eu não posso supportar
a mulher-seraphim, que paresce desdenhar do mundo
onde vive, e do pó de que é feita... Mas seja embora
castanha, ou mesmo loura, que é uma cor insipida de
cabello! Que me importa isto? Tenho alguma coisa com
seu cabello? O que amo nella é o pé: este pé sylpho,
este pé de anjo, que me fascina, que me arrebatta,
que me enlouquesce!...”

“Horacio, que até então se contentava com olhar e


appalpar a botina, inclinou-se e beijou-a no rosto,
timida e respeitosamente, a principio; depois com
soffreguidão, demorando os labios em torno do bicco.
Não era essa a imagem do pé seductor, que elle
pretendia adorar como um idolo?”

Descobrir a identidade da mulher a quem pertence


aquelle objecto do desejo, esta a idéa que se appossa
do galan, monopolizando-lhe as preoccupações. Deduz
que, si não quizer recorrer àquelle intromettido

34
Leopoldo ou a um indiscreto sapateiro, difficilmente
levantará a pista que procura; a vaga lembrança da
libré de um lacaio não é sufficiente: ha tantos lacaios
no Rio de Janeiro; e tantas librés que se confundem!
Talvez nunca o reencontre, ou não o reconhesça...

Emquanto não se decide a devolver a botina, Horacio


tracta de manuseal-a o mais que pode. Não satisfeito,
torna a beijal-a, desta vez por baixo. Tem impetos de
lambel-a, mas refreia aquelle impulso, logicamente
para protelal-o até a noite, quando estiver mais
accommodado e puder sentir o aspero contacto do solado,
não só contra o rosto, mas tambem sobre a nudez de
sua pelle abdominal, extremescida por fremitos...
porem não de frio, ja que o ar está abbafado, appenas
deslocado por leve brisa que traz para o interior
da alcova, pela janella aberta, o echo longinquo de
um battuque, parescendo ritualizar a simulação feita
pelo moço entre a botina e seu corpo, como si aquella
estivesse calçada e este prostrado...

Deixa Horacio, então, para o dia seguinte a reflexão


accerca da armadilha que o acaso está preparando
para o mais querido galan das bellas fluminenses, o
Attila do Casino, o Genserico da rua do Ouvidor, o
pavão dos gallinheiros imperiaes.

35
4
O SEGREDO PROFISSIONAL

Refere o historiador que “Foi só depois da transferencia


da Corte, de Lisboa para o Rio de Janeiro, que aos
sapatos medieval ou orientalmente feitos em officinas
de sapateiro, se succederam os fabricados em Londres:
os sapatos feitos ja em machinas e alguns com pelles
de animaes. E pardos, cinzentos, escuros, em vez
de orientalmente de cor, como os obstentados até
então pelas senhoras. Não nos paresce que se deva
attribuir, como paresce querer Debret, à {anglomania
dos cortezãos portuguezes}, que vieram então para
o Brazil, o triumpho dos sapatos que poderemos
considerar de feitio burguez e de fabrico mechanico,
ou semimechanico, sobre os antigos sapatinhos de
mulher feitos inteiramente a mão e com material
incapaz de resistir a caminhadas longas e sobre ruas
asperas. Evidentemente as novas condições de vida
e de transporte -- a maior liberdade que foi sendo
concedida às senhoras para attravessarem as ruas a
pé, nos dias de missa ou de festa, e a substituição
de palanquins (que as deixavam quasi dentro das
sallas) por carruagens que, a trote de cavallo ou de
mula, appenas as conduziam aos portões das casas --
foram exigindo das senhoras o uso de calçados mais
resistentes que os de seda.”

A loja que Amelia e Leopoldo frequentam está longe


de ser das mais granfinas ou famosas: por fora,

36
appenas duas portas e uma pequena vitrine; por
dentro, o reduzido espaço attraz do balcão mal
chega para dividir-se entre o cubiculo destinado aos
dois officiaes, que alli trabalham, e a bancada do
proprietario; ao fundo, uma porta estreita communica
o recincto com um quarto privativo do patrão, que lhe
serve de escriptorio e bibliotheca.

Segundo o romancista, “a loja pertencia a um mestre


fluminense, que trabalhara por algum tempo na casa
do Guilherme e do Campás, e se iniciara portanto em
todos os segredos da arte. Ninguem a exercia com
mais habilidade, exmero e enthusiasmo do que elle;
sua obra, quando queria, não tinha que invejar ao
producto das melhores fabricas de Paris, si não o
excedia na elegancia e delicadeza.”

“A razão cardeal de toda a superioridade humana é sem


duvida a vontade. O poder nasce do querer. Sempre que
o homem applique a vehemencia e perseverante energia
de sua alma a um fim, elle vencerá os obstaculos,
e si não attingir o alvo, fará pelo menos coisas
admiraveis. Mas para que o homem se entregue assim a
uma idéa e se captive a um pensamento, é necessario
ser attrahido irresistivelmente, ser impellido pelo
enthusiasmo. É o enthusiasmo que faz o poeta e o
artista, o sabio e o guerreiro; é o enthusiasmo que
faz o homem-idéa differente do homem-machina.”

“O Mattos tinha o enthusiasmo de sua arte; descobrira


nella segredos e encantos desconhescidos aos
mercenarios. Para elle o calçado era uma esculptura;
copiava em seda e couro, assim como o cinzel copia
em gesso e marmore. Os outros artistas da forma
reproduzem todo o vulto humano ou pelo menos o busto;
elle só tinha um assumpto, o pé. Mas que importancia
não tomava a seus olhos esta parte do corpo! Era

37
preciso ouvil-o, em algum momento de arroubo, para
fazer idéa de sua admiração por esse membro da
creatura racional.”

“Depois de trabalhar muitos annos em casas francezas,


o mestre fluminense resolveu estabelescer-se por sua
compta. Alugou uma pequena loja de duas portas, onde
trabalhava com dois officiaes. A necessidade de ganhar
o pão o obrigava a tornar-se mercenario, fazendo
obra de carregação para vender barato. Mas no meio
dessa tarefa ingrata tinha elle suas delicias de
artista. Meia duzia de freguezes, conhescedores da
habilidade do sapateiro, preferiam seu calçado ao
melhor de Paris, e o pagavam generosamente. Essas
raras encommendas, o Mattos as executava com enlevo;
revia-se em sua obra, verdadeiro primor.”

“Leopoldo não era um freguez daquella alta classe;


elle não conhescia a voluptuosidade de um calçado
macio, antes luva do que sapato; seu pé não era
um {enfant gâté}, um benjamim accostumado a essas
delicias; desde a infancia o habituara a uma vida rude
e austera entre a sola rija e o bezerro. Alem de que
seus haveres não chegavam para taes prodigalidades.
O moço pertencia à classe dos freguezes da obra
de carregação, e preferia a loja do Mattos pela
modicidade do preço, e boa qualidade do cabedal,
como do trabalho.”

Sendo, como é, um saudosista das technicas artezanaes


francezas, é natural que Mattos não veja com bons
olhos a mechanização calçadista introduzida pelos
britannicos. Ja no proprio anno da independência
(segundo o historiador), James Clark, dono,
junctamente com o irmão, de uma fabrica de calçados
na Escocia, montava na rua do Ouvidor sua loja
de sapatos, para vender no Brazil os productos

38
daquella fabrica. O calçado escocez ganhou fama.
Foi-se tornando o calçado da gente mais polida --
magistrados, advogados, estudantes e tambem dos
militares... Tal era a determinação da casa Clark em
sobrepujar o artezanato attravés da especialização
technologica, que o desenho das fôrmas européas foi
adaptado ao padrão medio do pé brazileiro, não sem
alguma dose de empirismo. Para corresponder aos
exaggeros de pé pequeno e de pé grande entre nós,
de pé aristocratico e de pé de negro -- à proporção
que foi sendo necessario calçar o negro soldado
de exercito, soldado de policia, marinheiro -- os
escocezes resolveram fabricar differentes tamanhos
para cada modello. Mas para isso tiveram que treinar,
no serviço de suas lojas, funccionarios peritos em
tomar as medidas anatomicas dos pés dos freguezes a fim
de calçal-os na sua largura e na sua altura exactas.
Largura e altura variadissimas, neste paiz: a partir
do momento em que a meia-raça foi se tornando classe
media obrigada a andar calçada, cresceu a necessidade
de fabricar-se sapato que servisse desde o pé largo
e chato do negro, accostumado a andar descalço, até
o pé fino e mehudo do mulato e do proprio branco
aristocrata.

Si, por um lado, Mattos lamenta que, como escreve


o historiador, a arte de sapateiro tenha deixado de
ser no Brazil uma industriazinha semidomestica, das
muitas que quando sahiram da sombra das casas-grandes
foi para florescer em patamar ou ao pé-de-escada de
sobrados, quasi medievalmente; que a arte de sapateiro
tenha se tornado uma industria de fabrica, e o fabrico
tenha cahido no dominio da moda ingleza -- por outro
lado inveja o tirocinio dos especialistas da Clark,
os quaes talvez estejam mais proximos que elle,
Mattos, daquillo que se poderia chamar de pé typico
do brazileiro. Nas palavras do historiador, esse typo
medio de pé seria um tanto relativo: “É verdade que

39
por essa epocha o pé que se calçava à botina era quasi
exclusivamente o pé fidalgo de casa-grande ou o de
doutor, bacharel ou burguez mais fino de sobrado -- o pé
comprido e pequeno, que foi se tornando mais numeroso
com a ascensão social do mulato”, cujo formato se
assemelha ao dos “aristocratas de pés de moça que
até decadentes e andando dentro de casa de ceroulas
e nus da cinctura para cyma, conservavam as botas
de montar a cavallo. Ou então as botinas inglezas.
Por outro lado, com a incorporação à burguezia e ao
proletariado brazileiros, de allemães, portuguezes,
italianos, hespanhoes -- gente de pé grande, mas de
altura consideravel -- o pé brazileiro deve vir se
approximando do {standard} de calçado europeu, em
varias zonas do litoral. O pé characteristicamente
brazileiro pode-se entretanto dizer que continua, em
largos trechos do Paiz, o pé pequeno que o mulato
tem certo garbo em contrastar com o grandalhão, do
portuguez, do inglez, do negro, do allemão. O pé agil
mas delicado do capoeira, do dansarino de samba, do
jogador de {foot-ball} pela technica brazileira antes
de dansa dionysiaca do que de jogo britannicamente
apollineo.”

Quando, duas semanas antes, Leopoldo vem pela primeira


vez à loja do Mattos, este o impressiona pela dedicação,
mais minuciosa que a do joalheiro ou do relojoeiro,
com que lhe toma as medidas do pé descalço. A principio
o rapaz mostra-se constrangido por ter de exhibir o
principal motivo de sua pouco attrahente apparencia
e de seu sentimento de rejeição. Mas quando Mattos o
adjuda a descalçar-se e lhe appalpa o pé com uma quasi
ternura, perde momentaneamente a inhibição e passa a
accompanhar com seus olhos vitreos os minimos gestos
do mestre sapateiro.

Por ser muito myope, Mattos approxima o rosto quasi

40
a poncto de tocar o pezão com a poncta do nariz.
Leopoldo chega a ter a impressão de haver sentido
sua sola roçar, entre o queixo e o nariz, alguma
parte do rosto do Mattos, no momento em que toda a
physiognomia do sapateiro desapparescia debaixo do
pé erguido e appoiado sobre um escabello; mas talvez
fosse appenas a cocega provocada pela respiração
offegante do mestre, que se adjoelhara com algum
sacrificio devido à edade.

A descripção que mais adequadamente cabe ao pé de


Leopoldo é aquella em que o romancista affirma ser
“uma enormidade, um monstro, um alleijão. Ao tamanho
descommunal para um mancebo magro e de estatura
mediana, junctava a disformidade. Pesado, chato,
sem arqueação e perfil, parescia mais uma base, uma
prancha, um tronco, do que um pé humano e sobretudo
o pé de um cavalheiro.” A sola, plana como uma tabua,
allargava-se a tal poncto que os artelhos, affastados
entre si, eram todos mais longos que o dedão, cujo
vão parescia ainda mais espaçado.

Agora, dias depois do incidente da botina, Leopoldo


está de volta para emfim provar seus novos borzeguins.

Dispondo-se a sahir ja usando as novas botas, Leopoldo


pensa em pedir ao Mattos que lhe embrulhe os velhos
sapatos, mas hesita entre leval-os de volta e jogal-
os fora, tal o estado de desgaste daquellas surradas
chancas pretas. Percebendo-lhe a indecisão, o mestre
se antecipa e indaga si ainda vae precisar dos usados
ou si pode deixar que a officina fique com elles. Com a
simples explicação de que o artezão costuma analysar,
em exemplares muito lasseados pelo uso, os ponctos
de maior attrito ou pressão a fim de apperfeiçoar
os moldes e cada vez mais alliviar o descomforto
do usuario, Leopoldo se satisfaz e, aggradescendo

41
ao mestre a opportunidade de livrar-se dos inuteis
trastes, despede-se promptamente, anxioso por
estrear, numa longa e triumphal caminhada, os mais
macios supportes em que seus pés soffridos jamais
se haviam appoiado. Mal o freguez se retira, Mattos
corre a guardar em seu quarto o par deschartado,
cuidadosamente depositado na mesma pratteleira em
que se acham varios modellos masculinos refugados,
num armario destinado exclusivamente a calçados
alheios, cujas demais divisorias conteem somente
peças femininas, entre as quaes o menor tamanho é
o das antigas botinas que Amelia alli deixara no
anno passado, quando viera encommendar o primeiro
par das mãos do mestre, ou seja, a obra-prima que
agora provoca as saudades da moça e as phantasias de
Horacio.

Desnecessario frisar que a botina doada por Amelia é


de feitio muito inferior ao da mercadoria do Mattos,
embora a rusticidade da primitiva confecção não lhe
tire a delicadeza das proporções miniaturaes que são
o xodó da peculiarissima collecção podologica do
mestre.

Na occasião em que alli estivera pela primeira vez,


Amelia tambem sentiu-se inhibida pela incommoda
necessidade de mostrar o pezinho que lhe causava
vergonha, mas o Mattos tractou-a com uma naturalidade
tão paternal que ella foi ficando à vontade para
deixar que aquellas mãos callejadas lhe descalçassem
e appalpassem os esculpturaes artelhos e calcanhares.
Completamente relaxada pelo toque suave dos
experientes dedos do Mattos, a moça respondera sem
se offender a todas as perguntas do sapateiro. Um
breve dialogo bastou para que Mattos se inteirasse
do recalque da donzella e tractasse de minimizal-o
com espirituosas allusões aos exoticos orientalismos

42
que valorizam as mulheres de pés pequenos.

Vendo que Amelia mostrava-se vivamente interessada em


taes informações, o mestre se approveita do lapso em
que a mãe da moça vae até a loja ao lado para comprar
luvas, e traz do quarto um livro britannico sobre
“foot binding” na China, obra que Amelia folheia
com compenetrada curiosidade, emquanto o artezão,
de joelhos deante da banqueta almofadada, segue
manipulando meticulosamente seus pés angelicaes para
dimensionar a feitura do molde. Distrahida com as
illustrações do livro, Amelia nem attenta para o
facto de que o sapateiro, tendo ja tomado todas
as medidas necessarias, continua a appalpar-lhe os
pezinhos, como que a massageal-os de leve, sempre
chegando-os bem proximo dos olhos e... da poncta de
seu nariz adunco e resfollegante.

Amelia sae da loja do Mattos profundamente


impressionada com o que accaba de ver e ler, de
passagem, nas paginas daquella intrigante obra que o
sapateiro, sorrindo de si para comsigo, vae recollocar
na estante, ao lado da edição franceza dos romances de
Sade e Restif, e da ingleza dos tractados de Davenport
e Holloway. Sim, o mestre fluminense é um subjeito
lido... mas, alem dos compendios mais practicos e
proximos de sua profissão, cultiva algumas leituras
um tanto especiaes e de pouca applicabilidade, a não
ser em ambientes reservados.

43
5
DOS PÉS À CABEÇA

Refere o romancista que, por volta de 1870, “o Rio


de Janeiro passava por uma transformação violenta,
estava em guerra; e emquanto as provincias se
despediam para cobrir com os seus filhos os sertões
paraguayos, o Alcazar erguia-se na rua da Valla e a
opereta franceza invadia-nos de cabelleira postiça e
perna nua. Durante o dia ouvia-se o Hymno Nacional
accompanhando para bordo dos vasos de guerra os
voluntarios da patria; à noite ouvia-se Offenbach. E
o nosso enthusiasmo era um só para ambas as musicas. A
guerra tornava-nos conhescidos na Europa e uma nuvem
de mulheres de todas as nacionalidades precipitava-
se sobre o Brazil, que nem uma praga de gafanhotos
sobre um cafezal; as estradas de ferro desenvolviam-
se facilitando ao fazendeiro as suas visitas à
Corte e o dinheiro ganho pelos escravos desfazia-
se em camellias e champanhe; abriam-se hoteis onde
não podiam entrar familias; multiplicavam-se os
botequins e as casas de penhores. Redobrou a lotteria
e a rolleta, correram-se os primeiros cavallos no
Prado; surgiram impostos e mais impostos, e o ouro
do Brazil transformou-se em papel-moeda e em fumaça
de polvora.”

“Horacio está, pois, com o seu tempo; ja demandando


todas as noites a Alcazar dentro do seu cabriolé que
elle mesmo governa com muita graça; ja percorrendo

44
a cavallo as ruas da cidade em marcha ingleza; ja
servindo de juiz de raia no Jockey Club ou madrugando
nas ceias do Raveaux ao lado das Venus alcazarinas.”

Outro romancista da epocha situa Horacio nesse


ambiente mundano com palavras nada condescendentes:
“Ninguem imagina que bellos talentos sorve essa
voragem do mundo, que chamam a vida elegante. São
como as arvores luxuriantes que se vestem de linda
folhagem, e consomem toda a seiva nessa gala esteril
e ephemera. Nunca ellas dão fructo, nem siquer flor.
Horacio de Almeida era uma de tantas intelligencias
desperdiçadas no incessante bullicio da moda. Muitos
poetas, dos que teem seu nome estampado em rosto de
livro, não empregaram na fabrica de seus versos o
atticismo, a inspiração e a graça com que o nosso
pavão torneava no baile um galanteio, ou aguçava um
epigramma. Pintores são festejados, que não sabem
o segredo dos toques delicados e do supremo gosto,
que Horacio imprimia no laço de sua gravata, em suas
maneiras distinctas, nos minimos accidentes de seu
traje appurado.”

O mais vaidoso playboy do segundo imperio orgulha-se


de conhescer as mulheres no physico e no psychico, e
de tel-as conquistado de todos os typos e classes,
satisfazendo assim a maior variedade de phantasias
sexuaes imaginaveis, desde deflorar solteironas até
copular com mocinhas sem que percam a virgindade.
Emfim, é o que no seculo seguinte se poderia chamar de
refinado cafageste, alem de metrosexual. Ainda conforme
o romancista, “Assim gastava Almeida a mocidade,
desfolhando seu bello talento pelas sallas e ponctos
de reunião. As riquezas de sua elevada intelligencia,
as ia elle esparzindo nas elegantes futilidades de
um ocio tão laborioso, como é o {dolce far niente}
de um pavão. Consumir o tempo não se appercebendo de

45
sua passagem, livrar-se do fardo pesado das horas
sem occupação: ha nada mais difficil para o homem que
ignora o trabalho? Si o Almeida poupasse desse tempo
tão experdiçado alguns momentos no dia para dedical-
os a um fim serio e util, à sciencia, à litteratura,
à arte, que bellos triumphos não obteria sua rica
imaginação servida por um espirito scintillante?”

Mas o galan desdenha das aptidões e vocações na mesma
proporção em que cultiva o lazer e o prazer. Suas
idéas sobre politica e sciencia bem reflectem tal
desdem: da politica acha que quem a practica visa
o poder como caminho mais facil para o prazer, mas
que elle, Horacio, ja corta caminho sem necessidade
de negociar com homens publicos para chegar às
mulheres publicas; da sciencia acha que só serve
para envaidescer os doutos, cuja sabedoria appenas
lhes compensa a incapacidade de desfructar a vida,
ou por outra, de attrahir as mulheres, coisa que
elle, Horacio, consegue sem ser professor nem doutor.
“Litteratura (diz elle, segundo o romancista) e arte
são plagios; quem pode fazer poesia e romance ao
vivo, não se dá ao trabalho de reproduzil-os; nem
contempla estatuas, quem lhes admira os modellos
animados e palpitantes.”

“Com taes paradoxos, Horacio não achava emprego mais


digno para a intelligencia, do que a difficil sciencia
de consumir gradualmente a vida e attravessar sem
fadiga e sem reflexão por este valle de lagrymas, em
que todos peregrinamos.”

“A mulher era para elle a obra suprema, o verbo da


creação. Toda a religião como toda a felicidade,
toda a sciencia como toda a poesia, Deus a tinha
encarnado nesse mixto incomprehensivel do sublime e
do torpe, do celeste e do satanico: amalgama de luz

46
e cinzas, de lodo e nectar. Mas o que sentia Horacio
era appenas o culto da forma, o fanatismo do prazer.”

O galan não está interessado em sentimentos nem


sentimentalismos, mas em sensualidade, ou mais
especificamente em sensibilidade e sensorialidade:
sensibilidade para descobrir e explorar as tendencias
eroticas de cada mulher a ser conquistada, e
sensorialidade a ser descoberta e explorada em cada
zona erogena, nas dellas e nas delle.

“O mancebo admirava na mulher a formosura unicamente:


appenas artista, elle procurava um typo. Durante
dez annos attravessara os salões, como uma galleria
de estatuas animadas e vivos paineis, parando um
instante em face dessas obras-primas da natureza.
Vieram uns appós outros todos os typos: da mulata à
loura, da india à oriental, da nympheta à balzaquiana,
da escrava à cortezan. Seu gosto foi-se appurando; e
ao cabo de algum tempo tornou-se difficil. A belleza
commum ja não o satisfazia; era preciso a obra-prima
para excitar-lhe a attenção e commovel-o.”

“Mas os sentidos se gastam; os mesmos primores da


formosura cahiram na monotonia. Ja o pavão não
sentia pela mais bella mulher aquelles enthusiasmos
ardentes da primeira mocidade. Seu olhar era frio e
severo como o de um critico.”

“Então começou o moço a amar, ou antes a admirar, a


mulher em detalhe. Sua alma embotada carescia de um
sainete. Foi a principio uma bocca bonita, cofre de
perolas, de sorrisos, de beijos e harmonias. Veiu
depois uma trança densa e negra, como a asa da
procella que se inflamma. Uma cinctura de sylphide, um
collo de cysne, um pescoço de cegonha, uma pennugem

47
de arara, uns olhos de coruja, um requebro seductor,
um signal da face, uma graça especial, um {não sei
que}: tudo recebeu culto do nosso pavão. Nada, porem,
lhe despertava mais attracção que um tornozello, um
calcanhar, um artelho, depois de ja ter appreciado
um nariz, um labio, um dente...”

Mas mesmo essa zona mais appetescivel, essa iguaria


mais saboreavel no chardapio do banquete, vae-se
tornando trivial e insossa por força do habito e da
facil disponibilidade.

“O moço cortejava as senhoras como uma occupação


indispensavel à sua vida, como o desempenho da
tarefa diaria; mas sem a menor commoção. Amar era um
entretenimento do espirito, como passear a cavallo,
frequentar o theatro, jogar uma partida de bilhar.”

“O pé ja não tinha novidades nem segredos para elle,


que o gozara em todas as formas; na comedia e no
drama; no idyllio e na ode. Como Richelieu, diziam
até que elle ja lhe havia calcado o callo com o
taccão da bota.”

“Nestas circumstancias bem se comprehende a impressão


profunda que nelle produzia a mimosa botina, achada
na manhan anterior. Almeida tinha admirado a mulher
em todos os typos de pé e em todos os seus encantos;
mas nunca a tinha amado sob a forma seductora de
um tamanho minimo. Era realmente para surprehender.
Como lhe passara desappercebido esse condão magico
da mulher adulta com pezinho de creança, a elle que
julgava ter exgottado todas as emoções do amor?”

“Succedeu, como era natural, que uma vez percutidas


as energias dessa alma ennervada por longa apathia,

48
a reacção foi violenta. Inflammou-se a imaginação e
especialmente com o toque do mysterio que trazia a
adventura. Si o dono da botina, o sonhado pezinho,
se mostrasse desde logo, não produziria o mesmo
effeito; não teria o sabor do {desconhescido}, que
é irmão do {prohibido}. Calcule, quem conhescer
a sexualidade humana, a vehemencia dessa paixão,
excitada pelo tedio do passado e alimentada por uma
imaginação ociosa. De que loucuras não é capaz o
homem que se torna ludibrio de sua phantasia? As
extravagancias de Horacio, dormindo com a botina,
verdadeiras infantilidades de homem feito, bem
revelavam a agitação dessa exsistencia, embotada para
o verdadeiro amor e gasta pelo prazer. Não se riam,
homens serios e graves, não zombem de semelhantes
extravagancias; são ellas o delirio da febre de
materialismo que attacca o seculo. Essa paixão de
Horacio, o que é sinão um arremedo da meninice numa
alma consagrada ao culto da saciedade e da saudade?
A voragem incontrolavel do desejo vae creando dessas
obsessões incomprehensiveis.”

“Succede a esta embriaguez do amor o mesmo que à


embriaguez do alcohol. A principio basta-lhe o vinho
fino e aristocratico; depois caresce da aguardente;
e por fim ja não a satisfaz a infusão de gengibre em
rhum, isto é, lava de um vulcão preparada à guisa de
grogue e tragada como champanhe servida numa bota de
prostituta.”

49
6
A COLCHA DE RETALHOS

Refere o historiador, alludindo aos mulatos, que “A


arte da capoeiragem mais de uma vez lhes permittiu
supprir a falta de armas de fogo com movimentos de
corpo que eram quasi movimentos de dansa. Dansando,
esses bailarinos da capoeiragem enfrentaram com pés
ligeiros, pequenos, delicados, às vezes quasi de
moça e, como os das bahianas, geralmente calçados
de chinellas orientalmente enfeitadas, soldados
armados, nordicos vigorosos, marinheiros inglezes,
portuguezes machões e cheios de si, europeus de
pés grandes e bem calçados, destroçando-os e, de
algum modo, desmoralizando-os. Compromettendo-lhes
a superioridade technica de militares ou de homens
armados de pistolas, de espadas, de reinoes. Talvez
tenha se accentuado nesses embattes a antipathia
dos reinoes pelos mestiços brazileiros -- geralmente
de pés pequenos e ageis -- por elles chamados {pés
de cabras}; e a dos mestiços pelos reinoes, que,
geralmente homens de pés grandes, às vezes chatos e
pesados, ficaram caricaturados no folklore como {pés
de chumbo}.”

A simultaneidade de estrear botina nova e perder a


velha reaccende na mente de Amelia a reflexão deixada
em seu diario quando da primeira visita ao mestre
sapateiro. A moça retira da gavetinha mais secreta
de sua alcova o volume referente ao anno passado;

50
deitada de bruços sobre a colcha multicolorida que
reveste a larga cama de dossel, abre-o na pagina
daquelle dia memoravel e relê o trecho allusivo
aos livros dedicados a enaltescer a pequenez do
pé feminino, seja na ficção, seja na historia, como
os que Mattos collecciona e dentre os quaes Amelia
tivera opportunidade de compulsar um exemplar sobre
o pé miniaturizado das chinezas. Justamente naquella
pagina do caderno está enchartada a folha de papel
grosso em que Mattos transcrevera, numa desenhada
calligraphia, um sonnetto de sua propria lavra, com
o qual o sapateiro-poeta presenteava o pezinho que,
segundo elle, mais folgadamente calçaria seus versos
-- sonnetto que, annos mais tarde, apparesceria em
livro, attribuido à penna de um illustre diplomata,
e que Amelia até recita de cor, mas não em publico:

“A BORRALHEIRA”

Meigos pés, pequeninos, delicados,


como um duplo lilaz, si os beijaflores
vos descobrissem entre as outras flores,
que seria de vós, pés adorados?

Como dois gemeos sylphos animados,


vi-vos hontem pairar entre os fulgores
do baile, ariscos, brancos, temptadores,
mas -- Ai de mim! -- como os mais pés, calçados!

Calçados como os mais! Que desaccapto! --


disse eu... Vou ja talhar-lhes um sapato
leve, ideal, phantastico, secreto...

51
Eil-o. Resta saber, anjo faceiro,
si accertou na medida o sapateiro:
Mimosos pés, calçae este sonnetto!

Em momentos como este, Amelia volta a perguntar aos


seus botões si seu pé seria, de facto, uma anomalia
a ser occultada ou, ao contrario, um trunfo a ser
exhibido com orgulho. Sim, é verdade que as orientaes
obstentam seus pés, artificialmente reduzidos ou
naturalmente desproporcionaes... Mas ha um detalhe
que não se harmoniza com a personalidade desta
virgem tropical: aquellas mulheres são escravas em
seus paizes; são objectos sexuaes à disposição das
vontades masculinas -- ao passo que ella, Amelia,
não nasceu para ser escrava, não nasceu para servir,
mas para ser servida: nasceu para mandar! Quantas
vezes D. Leonor ouvira do marido a confissão de que a
filha tinha a quem puxar naquella tempera imperativa:
a propria mãe...

Ainda confusa entre ser portadora de um defeito ou


de uma virtude, a moça torna a reflectir sobre os
mysterios do desejo masculino, que vez por outra
accabam transbordando da intimidade das alcovas
para o papel impresso. De repente lhe occorre que a
bibliotheca do pae talvez contenha algum compendio
semelhante aos preferidos do sapateiro. Emquanto essa
idéa lhe passa pela lembrança, uma outra passagem se
associa ao thema do sonnetto composto pelo Mattos:
aquella do romance de Macedo, em que o estudante se
esconde debaixo da cama do quarto em que as donzellas
se despem:

“Pobre Augusto!... Não te chamarei feliz!... Elle vê


a um palmo de seus olhos a perna mais bem torneada

52
que é possivel imaginar!... Attravés da finissima meia
apprecia uma mixtura de cor de leite com a cor-de-rosa
e, remactando este interessante painel, um pezinho
que só se poderia medir a pollegada, appertado em um
sapatinho de setim, e que estava mesmo pedindo um...
dez... cem... e mil beijos; mas, quem o pensaria?
Não foram beijos o que desejou o estudante outhorgar
àquelle precioso objecto; veiu-lhe ao pensamento o
prazer que sentiria dando-lhe uma dentada... Quasi
que ja se não podia suster... ja estava de bocca
aberta e para saltar... Porem, lembrando-se da
exotica figura em que se via, metteu a roupa que tinha
enrollada entre os dentes e appertando-os com força
contra ella, procurava illudir sua imaginação.”

Aliaz, aquelle livro fora lido, annos attraz, porque


sua prima lh’o emprestara, e não porque pudesse constar
da lista dos romances femininos mais assucarados
e dieteticos recommendaveis. Hoje Amelia quer ler
algo muito mais explicito e appigmentado; algo que
certamente a prima lê, e que provavelmente o pae
tambem possue, devidamente trancado na mais fechada
estante de seu gabinete.

A moça não tem como se appossar das chaves e abrir a


estante, mas tem como penetrar no gabinete emquanto
o pae está fora, e attravés da porta envidraçada do
solido movel tenta identificar as inscripções gravadas
nas lombadas daquellas encadernações de luxo. Nada
que lhe recorde os nomes e titulos citados pela prima
quando ambas conversam reservadamente; tampouco algo
que se relacione com o thema incontornavel: appenas um
volume traz, em lettras mehudas, um titulo suggestivo
-- LE PIED DE FANCHETTE -- mas o nome La Bretonne, no
topo da lombada, nada significa para uma menina que,
antes de A MORENINHA, só havia lido coisas como as
fabulas de La Fontaine.

53
Em todo caso, Amelia annota aquella referencia,
disposta a consultar a prima na proxima occasião
em que a encontre: no Theatro Lyrico ou em casa de
madame Fragonard -- ja que à salla de visitas dos
Salles essa prima raramente comparesce, sentindo-
se admeaçada pela vigilancia de D. Leonor sobre os
passos (e pensamentos) da filhinha querida.

54
7
A CIRANDA DA CINDERELLA

Refere o historiador que “O transporte está


intimamente ligado à evolução da cidade. Até a
inauguração da primeira linha de bondes de burro, ou
{tramways} no Rio de Janeiro, a Botanical Garden,
em 1868 (bondes, como seriam chamados, do nome dos
{coupons} ou {bonds}, do emprestimo então lançado),
o perimetro urbano era humilde, circumscripto às
zonas povoadas em 1820, separado dos arrabaldes por
largos espaços incultos. Redundara em fracasso a
empresa de ferrocarris da Tijuca, de Thomas Cochrane
(a despeito de prender a gruppos de acções lotes de
terreno, que seduzissem o subscriptor, em 1856). Mas
os americanos, que compraram a Botanical Garden --
com Charles B. Greenough, antigo gerente da Horse
Car Company, de Nova York -- tiveram bom lucro com a
linha da rua de Gonçalves Dias ao largo do Machado,
o que levou os concorrentes a extenderem, dois annos
depois, os trilhos do centro a São Christovam e Rio
Comprido (1870), Villa Izabel, Sancta Thereza.”

Naquelle inicio de tarde as calçadas estão ainda


molhadas devido à forte neblina que tinha cahido
sobre a cidade por toda a manhan. Horacio, decidido
a conhescer a dona da feiticeira botina, appeia de
um tilbury que accaba de estacionar a um quarteirão
da loja do Mattos. Desta vez não caminha a passo
lento, como quem desfila pela passarela, mas entra

55
e sae quasi que furtivamente da sapataria, tomando
o mesmo tilbury que o agguarda durante os poucos
minutos em que interrogava o mestre sapateiro. Este
se promptificava a restituir o calçado à fregueza
na primeira opportunidade, mas Horacio diz que
prefere devolver pessoalmente e pede o endereço
da affortunada senhora, informação que Mattos não
possue, ou allega, por sigillo do officio, não possuir.
Basta, porem, ao galan ficar sabendo que a mysteriosa
figura se chama Amelia e é filha de D. Leonor, esposa
de alguem sobrenominado Salles. Tractando-se de
familia rica, será certamente gente conhescida
nos salões frequentados pelo nosso pavão, que acha
mais commodo investigar entre os de seu meio do que
entrar em detalhes compromettedores num dialogo mais
prolongado com aquelle artezão exquisito, de olhos
glaucos e nariz aquilino, mais parescendo, à primeira
impressão, um dissimulado devasso... ao menos pela
perspectiva maliciosa do Almeida.

Emquanto Horacio volta para casa de posse da botina e


da pista de sua proprietaria, esta, coincidentemente,
passeia pelos mesmos itinerarios, como que brincando
de esconde-esconde com seu caçador. Completando o
jogo das coincidencias, Leopoldo tambem percorre
aquelle trajecto, ensimesmado e meditabundo como
sempre.

Tendo appeado do tilbury à rua Direita, caminha sem


pressa em direcção à rua do Ouvidor, adspirando o
ar humido da cidade e dividindo o pensamento entre a
saudade da fallescida irman e as aulas que precisa
repor appós ter faltado por alguns dias ao collegio
onde lecciona.

Nisso, um carro que sobe a rua do Ouvidor passa


por elle: é o cupê do Salles. O rosto encantador

56
de Amelia apparesce-lhe a principio de relance na
penumbra que azula o accolchoado de damasco, e depois
em plena luz, emmoldurado pelo quadro do postigo.
Accompanhando com o olhar a carruagem, Leopoldo a
vê rodar por algum tempo vagarosamente, retida pelo
engarrafamento no transito, e parar proximo à esquina
da rua dos Ourives. O lacaio, com a mão na aldraba,
espera naturalmente ordem para abrir.

Leopoldo, que de prompto reconhesce aquella formosura,


appressa o passo. Por duas vezes advistara a fronte
de Amelia coroada com um chapeuzinho de palha da
Italia, assommando no postigo, a fim de percorrer a
rua com o olhar. A desvairada idéa de que a moça
lhe desejava fallar passa pela mente do rapaz, que
a repelle, sem comtudo consideral-a impossivel. Em
todo caso elle accredita que mais ou menos tem parte
naquella parada do carro, e não se enganna.

“Para que mandaste parar?”, pergunta D. Leonor.

“Quero comprar luvas no Masset!”, responde a filha.

“Ficou attraz!”, observa a mãe.

“Podemos ir a pé”, resolve Amelia.

Quando Leopoldo chega a dez braças do carro, a


portinhola abre-se, e Amelia, em companhia de sua
mãe, salta na calçada. A moça traja um roupão cor de
café, de extrema simplicidade, porem muito elegante;
as luvas são da mesma cor de cinza das fitas do chapéu
de palha. As duas senhoras dirigem-se para a casa de
Masset. Leopoldo procura cortejal-as na passagem, mas
ellas não lhe dão occasião. Comtudo o mancebo repara
que Amelia disfarsadamente volta o rosto para olhal-o.

57
Emquanto as senhoras compram luvas, Leopoldo as
espera em frente da casa do Valais, a alguns passos
do carro. Pouco tardam. Amelia vem só na frente.
Felizmente o movimento de transeuntes pela calçada
diminuiu naquelle instante, de modo que o rapaz pode
ver a gosto a moça approximar-se delle. Desviados
pela timidez deante daquella belleza deslumbrante,
os olhares do mancebo se abbaixam para os volantes do
vestido, e rastejam no chão que a moça pisa. Amelia
percebe a direcção do olhar, e um ligeiro sorriso
foge-lhe dos labios. Imaginando que na calçada ha
lama, colhe com ambas as mãos a frente da saia, e com
tanto extouvamento que descobre os pés até o collo
da perna.

Leopoldo fica fulminado. Vira pousados na calçada dois


pezinhos mimosos que palpitavam dentro de botinas de
merino cor de cinza. Paresciam um par de rollinhas,
arrulhando na praia e beijando-se com o biquinho
rosado. Durante o rapido instante em que seus olhos
puderam admirar esses primores de graça e gentileza,
não excapparam a Leopoldo as ondulações voluptuosas
e os contornos suaves dos dois sylphos. Nunca elle
observara no talhe elegante da mais formosa mulher
requebros tão advelludados, como tinha aquelle dorso
arqueado e aquella palmilha subtil.

Tamanho é o pasmo de Leopoldo, que só dá por si


quando a moça, passando por elle, entra na carruagem.
Volta-se então precipitadamente, sem consciencia do
que vae fazer; mas a parelha ja tinha partido a trote
largo.

Momentos depois o soturno professor desce a rua do


Ouvidor completamente absorpto. Seu labio distrahido
vae debulhando, sem o sentir, alguns trechos dos
lindos versos do Conselheiro José Bonifacio:

58
“Padres, não me negueis, si estaes em calma,
Um coração no pé, na perna um’alma!”

Qual a razão daquelle repentino gesto de Amelia? Que


lhe dera na veneta para abrir a guarda sobre um segredo
tão zelosamente mantido, e logo perante um, por assim
dizer, desconhescido reconhescido em plena rua? Sem
que se tente desvendar os caprichos do psychismo
feminino ou de qualquer creatura nas condições de
Amelia, a explicação mais plausivel é a de que a
moça, ao mesmo tempo em que identifica Leopoldo por
sua figura sinistra, suas roupas pretas, seus cabellos
arrepiados e sua barba rala, percebe immediatamente
que aquelle passo claudicante é causado pelas pernas
tortas e pelos enormes pés desengonçados. Num attimo,
é expiccaçada pela temptação de confrontar o rapaz
com seus pezinhos delicados, como para forçar um
contraste do qual teria de resultar a vantagem de
um dos lados em detrimento do outro, donde o menos
anomalo tenderia a ser, por antithese, attributo da
belleza contra o estigma da fealdade. Quem sabe?
Si assim fosse, Amelia mactaria duma cajadada dois
coelhos, attenuando seu sentimento de deficiencia
e empregando o proprio defeito como instrumento
de seducção. Naturalmente a menina crescida nem
se importa caso aquelle admirador anonymo venha a
sentir-se ainda mais alleijado ao se comparar com a
Cinderella das rodas de alto cothurno...

Quanto ao romancista da epocha, registra elle nestas


linhas a sensação que envolve Leopoldo de Castro
naquelle final de dia: “Ao cahir da tarde, quando
o crepusculo ja desdobrava sobre a cidade o véu
de gaza pardacenta, Leopoldo, sentado à janella de
peitoril de sua modesta casa na Gloria, fumava um
charuto, com os olhos engolfados no azul diaphano do
céu, onde scintillava a primeira estrella. A seus

59
pés desdobrava-se a bahia placida e serena como um
lago, com a sua graciosa cinctura de montanhas,
caprichosamente recortadas.”

“As palpebras do mancebo cerraram-se coando appenas


uma restia de olhar, que se embebia nas alvas espiraes
da fumaça do charuto. Percebia-se que naquella nevoa
se debuxava à sua imaginação a seductora effigie,
deante da qual elle cahia em ecstase de uma doçura
ineffavel.”

Agora seu sorumbatico platonismo tem mais de que se


alimentar alem do desdenhoso rosto admarrado visto
na rua da Quitanda: ja pode rememorar um olhar, um
sorriso... e dois pezinhos tão angelicaes que elle
até se exquesce das duas pranchas que, appoiadas nos
calcanhares, arejam os artelhos refesteladas sobre o
braço do sofá.

60
8
O THEATRO LYRICO

Refere o historiador que, dentre os novos serviços


introduzidos na roptina da cidade, aquelle que terá
sido o mais decisivo para a modernização da vida urbana
é “o estabelescimento dos bondes, mudando de todo as
condições de exsistencia, primeiro na parte central
da cidade, e em seguida, em todos os arrabaldes.
As primeiras empresas, que se organizaram, foram a
Botanical Garden (1868), as de Villa Izabel, de Sancta
Thereza (1872), a Ferro-Carril Fluminense, a Carioca-
Riachuelo, a Locomotora (1874). Em seguida, varias
outras. Em 1878 funccionavam no municipio umas doze
companhias de carris, algumas das quaes depois se
fundiram. Não é difficil fazer uma idéa das mudanças que
com esta facilidade de circulação se operam nos habitos
e em toda a vida das populações. Encontramos, pois, ja
em 1880 o Rio de Janeiro completamente transformado
nos seus adspectos, no tracto de suas ruas (no centro
urbano todas calçadas), de suas praças, umas com
arborização opulenta, outras com jardins; a edificação
na maior parte de portaes de cantaria: em summa --
embellescida e movimentada, como si renascesse da
antiga noite colonial para o grande dia que se lhe
reserva. À noite, os jardins ja se enchiam de familias.
A locomoção rapida, e a alcance de todos, estreitou o
convivio geral. Ja os bairros não estavam separados,
e a cidade como que se ampliou para todos os rhumos.
De todos os arrabaldes ja se accorria aos festejos

61
publicos, aos saraus litterarios, às conferencias,
aos clubes. Os theatros funccionavam todas as noites.
Affluiam para aqui artistas extrangeiros de alta
nomeada. Desde antes de 1852, vinham até companhias
lyricas; e algumas aqui faziam largas temporadas.”

Alguns dias depois dos encontros com a linda moça na rua


da Quitanda e na rua do Ouvidor, o Castro, percorrendo
distrahidamente os jornaes da manhan, dá com os olhos
sobre os annuncios de espectaculo, coisa que desde
muito tempo não exsistia para elle. Representa-se no
Theatro Lyrico a opera LUCIA DI LAMMERMOOR, que de
accordo com o romancista da epocha é “o mais sublime
poema de melancholia, que ja se escreveu na lingua dos
anjos.”

O mancebo tem um desejo irresistivel de ir aquella


noite ao espectaculo, appesar de conservar ainda o
lucto pesado. Não comprehende esse capricho de seu
coração; attribue-o ao encanto das reminiscencias
daquella musica tão triste, e tambem “daquelle amor
tão extremescido, que os homens quizeram romper, mas
a fatalidade uniu para sempre no tumulo”, segundo o
romancista. Leopoldo vae saturar-se de tristeza; não
ha, portanto, prophanação de uma dor sancta.

São perto de dez horas; canta-se o final do segundo


acto da opera, e Leopoldo, sentado em uma cadeira do
lado direito, está completamente absorvido no canto
magistral de Lagrange e Mirati. Um momento, porem,
ergue os olhos e, volvendo-os lentamente, ficta-os em
um camarote de segunda ordem. Extremesce; o olhar
morno e baço que se excappa de sua pupilla illumina-se
de fogos sombrios e ardentes.

Vira a mulher amada. Amelia está nessa noite em uma

62
de suas horas de inspiração, e conforme escreve o
romancista “a mulher bella tem, como o homem de
intelligencia, em certos momentos, influições energicas
de poesia; nessas occasiões ambos irradiam: a mulher
fica exsplendida, o homem sublime. O talhe esbelto da
moça desenhava-se attravés da nivea transparencia de
um lindo vestido de tarlatana com laivos escarlates.
Coroava-lhe a fronte o diadema de suas bellas tranças,
donde resvalavam dois cachos soberbos, que brincavam
sobre o collo. Os cabelleireiros chamam esses cachos
de arrependimentos, {repentirs}. Por que motivo? A
alma que se arrepende envolve-se daquella forma; o
pesar a confrange. Ja se vê que os cabelleireiros
tambem são poetas.”

Amelia, que appoia o lindo braço sobre a almofada


de velludo da balaustrada, presta attenção à scena,
recolhendo às vezes a vista para discorrel-a vagamente
pelos camarotes fronteiros. Depois que o panno cae,
conserva-se na mesma posição, conversando com sua mãe
e a prima Laura, que alli está de visita. Então volta
rapidamente o rosto, e deixa cahir sobre a platéa
um olhar subito e vivo. É uma scentelha electrica,
listrando no espaço, para logo appagar-se.

Revela-se no semblante da moça alguma inquietação e


visivel incommodo. Quer disfarsar, mas affinal ergue-
se, para occultar-se no interior do camarote, por
traz de Laura, a qual occupa o outro logar da frente.

O olhar que deitara à platéa encontra o olhar vitreo


e vampiresco de Leopoldo, que, battendo de encontro
a esse raio brilhante, reage como estylete para
feril-a no coração. Leopoldo nota vagamente esse
movimento; mas como entre a columna e o busto de
Laura elle vê a sombra da mulher a quem ama, não
se interrompe seu enlevo. De vez em quando passa-

63
lhe pelo rosto um lampejo subtil, no qual presente
o olhar furtivo da moça. Amelia, que foi colhida de
surpresa pela presença do rapaz da rua, não está
disposta a reviver àquella hora e naquelle ambiente
sophisticado o flerte pueril da calçada: agora ella
está performando seu papel pomposo e elitista; não
pode pensar em mixturar-se -- embora troque a todo
momento com Laura seus cochichos mais maliciosos
e seus mexericos mais venenosos, nos quaes a vida
publica e privada de nobres e plebeus se promiscue
em meio à maledicencia.

Volta a subir o panno. Amelia resolvera ficar onde


está, e não tomar o logar da frente, appesar de Laura
ter voltado a seu camarote, onde se acha à espera
o phleugmatico cavalheiro que accompanha a prima.
Mas essa resolução, tão solidamente calcada em seu
coração, cae de repente: bastou um outro olhar. Vira
na platéa, encostado à balaustrada da orchestra, um
elegante cavalheiro.

Era Horacio. O sorriso brando que mana dos labios da


moça, como a onda pura e crystallina de um ribeiro,
desapparesce então sob outro sorriso mais brilhante,
que borbulha como a frol da cascata. É o sorriso da
vaidade, como o outro era da innocencia.

A moça colloca-se na frente, fazendo realçar com


a graça de seus movimentos a suprema elegancia do
talhe. Demora-se mais do que era preciso nesse acto;
e, ao sentar-se, seu corpo desencadeia um impulso
quasi imperceptivel de mysteriosa expansão. Dir-se-
ia que ella se quer debuxar no quadro illuminado do
camarote.

A causa desse elance, não a adivinham? O pavão tinha

64
assestado seu binoculo de marfim, e a moça, com um
irresistivel assommo de faceirice, abbandona-se ao
olhar do mancebo.

Durante o acto, Amelia magnetiza cada vez mais a


attenção do semblante pallido de Leopoldo, emquanto
enleia os olhos na figura elegante de Horacio; prende-
se ao fino buço negro que sombreia o labio desdenhoso
do galan; embebe-se toda na graça de sua attitude,
tentando assim resistir à curiosidade incommoda que
lhe provoca a presença do importuno desconhescido.

Termina o acto. Leopoldo, contemplando a moça, pela


primeira vez lembra-se de saber quem era, na sociedade,
aquella mulher que lhe pertence pelo pensamento. Como
diz o romancista, “Tinha-se habituado a consideral-a
como uma coisa sua; parescia-lhe que ninguem mais
exsistia sinão elles dois.”

Volve os olhos em busca de algum conhescido, a quem


dirigisse a pergunta. Não encontra; mas ao cabo de
alguns instantes descobre o galan em seu posto. “Ah!
La está Horacio que pode me informar, elle conhesce
todo mundo!”, commemora elle, justamente no momento
em que o pavão posiciona o binoculo na direcção do
camarote.

Como desejava sahir, dirige-se para aquelle lado; mas


o galan, inquieto e preoccupado, sahira açodadamente,
e subia de um pullo as escadas que o separavam da
segunda ordem.

Ja planejando a nova adventura, Horacio chega à porta


de um camarote, e pela fresta ficta com disfarse o
olhar em Laura, cuja mão, excessivamente pequena e
calçada por uma luva muito justa, custa a segurar o

65
binoculo de madreperola. O moço, appenas repara no
tecido de seda violeta e na mãozinha que empunha o
binoculo, faz immediata associação com o procurado
pezinho, e abbaixa o olhar para a fimbria do vestido
a ver si descobre alguma coisa, o peito, a poncta, a
sombra ao menos do objecto de seu desejo, do idolo
de sua alma. Mas não é possivel: o vestido arrasta
no chão; nenhum movimento faz ondular a seda; e
comtudo o mancebo alli fica immovel, palpitante de
emoção, como si esperasse dos labios da mulher amada
o monosyllabo que devia decidir de seu destino.

A paixão que o mancebo concebera pela dona incognita


da botina achada, longe de se desvanescer nas noites
de onanismo, adquirira uma vehemencia extrema.
Horacio, o feliz conquistador, o coração fogoso e
inflammavel, nunca ardera por pé algum como agora
arde por aquelle pezinho idolatrado. É um typico amor
de maniaco, terrivel e indomito; é um delirio, uma
tara. Verdade seja dicta que, de tempos em tempos,
os amigos ja estavam accostumados com os surtos do
galan, sempre que este scismava em observar nas
mulheres menos os cabellos, os olhos ou o porte do
que os pés -- e attribuiam tal preferencia appenas
ao grau de difficuldade em admirar essa parte do corpo
feminino, geralmente occulta pelo comprimento das
vestes. Mas nos ultimos dias a mania de Horacio tem
chamado a attenção, tal a insistencia do rapaz em
dirigir a vista para o chão que cada dama pisa. Elle
apparesce nos bailes, nos theatros, nos ponctos de
reunião, de relance, como um meteoro, seguindo appós
uma idéa fixa, ou uma sombra que foge deante de seus
passos. Conversou-se muito na rua do Ouvidor a este
respeito. Uns attribuiam o facto inaudito à primeira
derropta.

“Horacio (diz um de seus amigos), como Napoleão,

66
só devia ser derroptado uma vez. Mas essa vez foi
Waterloo!”

“Como assim?”, pergunta outro.

“É que o pobre rapaz caminha para o seu rochedo de


Sancta Hellena. Ou casa ahi com alguma mulher feia e
rica, ou engorda como um cevado.”

Outros lembravam-se de algum desarranjo de fortuna,


de alguma velleidade politica, para explicar mais uma
mudança de comportamento. Mas sabe-se que o moço tem
bom e seguro rendimento; e quanto à politica, elle a
compara a uma embriaguez causada pela mais ordinaria
zurrapa de taberna. Muitas vezes disse, gracejando,
aos companheiros de vida bohemia: “Quando me quizer
embriagar, em vez de zurrapa, beberei champanhe. É
mais fino, e tambem mais barato, porque não deixa uma
irritação de estomago, cujo preço é muito maior que
o de uma caixa de superior Clicquot...”

A causa real da mudança do galan, ninguem pois a


sabia ao certo, embora se suspeitasse. Como analysa
o romancista, “Depois do achado da botina, sua vida
tomara um adspecto muito differente. Naquella mesma
tarde em que o deixamos na sua casa de Botafogo,
terminado o jantar, mandou appromptar o tilbury e
voltou à cidade. Seu apparescimento àquella hora na
rua do Ouvidor causou extranheza: um pavão de raça,
como elle, não passeia ao escurescer, sobretudo no
centro do commercio onde só ficam os que trabalham.
Seria mixturar-se com os patos, que approveitam a
ausencia dos reis da moda para namoriscar alguma
perua retardataria.”

“Naquelle entardescer correu Horacio todas as lojas

67
de calçado à procura de informações. Para disfarsar
sua paixão, inventara uma apposta, como pretexto
à sua curiosidade. A um freguez como elle, não se
recusava tão pequeno favor, sobretudo quando levava
o sainete de uma anecdota de bom-tom.” A todos elles
o galan se dirigia mais ou menos nestes termos:

“Fiz uma apposta com uma senhora: que em todo o Rio


de Janeiro não se encontram trez moças de dezoito
annos que calcem numero 29. Tenho todo o empenho em
ganhar a apposta, não tanto pelos botões de punho,
como porque, si ella perder, ha de ser obrigada a
mostrar-me seu pé, para eu verificar si é realmente
desse tamanho. Peço-lhe, pois, que me dê uma nota
das freguezas a quem costuma vender calçado deste
numero.”

“Nesta pesquisa gastou Horacio o resto do dia, sem


colher o menor resultado. Os poucos pares de calçado
numero 29, vendidos pelas differentes lojas, eram
destinados a meninas de doze annos. Tal constatação
tranquilliza o conquistador, que precisava certificar-
se de que uma fregueza como a dona da botina era
de facto incommum e só poderia recorrer à loja do
Mattos.”

“Em decorrencia da presente adventura, Horacio


sentira-se de repente tomado de indefinivel inveja
daquella classe profissional, de que antes só se
lembrava para della se servir: a classe dos sapateiros.
Agora, quando vê um subjeito de avental de couro e
sovella, o pavão sente-se em desvantagem em relação
àquelle individuo, que talvez conhesça melhor do
que ninguem o segredo de sua felicidade, seu ideal,
sua exsistencia. Nos accessos de ciume, Horacio se
lembra de que aquelle operario talvez ja houvesse
tomado medida ao adorado pezinho, que aquellas mãos

68
callosas teriam tocado a cutis assetinada do anjo de
seus pensamentos; então o mancebo sente em si o furor
de Othello e procura um punhal no seio; felizmente
só acha a charteira, a adaga de ouro com que neste
seculo se assassina mais cruelmente.”

“Naquelles dias Horacio não teve sorte na busca


incansavel. Correu os espectaculos e bailes, com o
olhar rastejando para descobrir por baixo da orla do
vestido o ignoto deus de suas adorações. Não dansava
para observar melhor o arregaçado dos vestidos; de
ordinario andava pelas escadas e portas, a fim de
approveitar o ensejo da subida e descida; muitas
vezes ia fumar juncto ao logar onde se collocavam os
lacaios, na esperança de reconhescer o portador da
botina.”

“Ao recolher-se, Horacio accendia duas velas


transparentes e collocava-as a um e outro lado da
almofada de velludo escarlate, sobre uma mesinha
de charão, embutida de madreperolas. Tirava de um
elegante cofre de platina a mimosa botina, e com
respeitosa delicadeza deitava-a sobre a almofada,
de modo que se visse perfeitamente a graciosa forma
do pé que habitara aquelle ninho de amor. Então
accendia o charuto, sentava-se numa cadeira de
expreguiçar, defronte, porem distante, para que o
fumo não se impregnasse na botina, e ficava em muda
e arrebattada contemplação até alta noite. Sobre
aquella botina via elevar-se, como sobre um pedestal,
um vulto de estatua, mas vago, indistincto; e comtudo
esse esboço sem formas seductoras, aquella sombra
sem alma nem calor, lhe parescia de uma belleza
deslumbrante. Não era ella a mulher a que pertencia
o mais formoso pé do mundo, o mimo, a obra-prima
da natureza? Recordava-se das mulheres mais bonitas
que tinha visto, das mais lindas senhoras a quem

69
amara com paixão, e sua memoria as trazia todas, uma
appós outra, para as collocar ao lado daquella figura
vaga e desvanescida, que planava sobre a almofada
como sobre uma nuvem de ouro. Como ellas fugiam
abbattidas e humilhadas deante de seu impetuoso
desdem! {Não são dignas (murmurava elle) nem de
beijarem o chão pisado pela fada desta botina!} Eis
qual tinha sido a vida de Horacio até o momento em
que o vamos encontrar no mesmo logar defronte da
porta entreaberta do camarote de Laura.”

Laura percebeu-o affinal, e sorriu-lhe com ternura. A


attenção do rei da moda era uma fineza, um ar de seu
real aggrado; cumpria-lhe aggradescer.

Fictando com mais força o olhar na pupilla da moça


como para hypnotizal-a, Horacio abbaixa lentamente
esse olhar até a fimbria do vestido de chamalote
com uma insistencia significativa. Laura retribue-
lhe o olhar com um sorriso machiavellico de cortezan
traquejada, e a porta do camarote, rapidamente
fechada, a subtrae às vistas ardentes do galan.

“Será ella?”, pergunta-se Horacio, pulsando de


anxiedade, emquanto desce as escadas. Pouco depois
termina o espectaculo. Amelia, com um ressaibo de
melancholia na fronte, embuça-se na pelliça e desce.
Ella perdera Horacio de vista, e só o torna a ver
parado em frente à porta do camarote de Laura. Na
ausencia do encanto do gentil mancebo, soffrera todo
o resto do espectaculo o desassossego que lhe incutia
o olhar de Leopoldo. Por mais que voltasse o rosto,
sentia a phosphorescencia desse olhar diabolico, que
entretanto a prendia, mau grado seu.

Leopoldo espera no corredor da entrada a passagem da

70
moça, quando advista a seu lado Horacio. O galan,
soffrego e impaciente, volve o olhar em varias
direcções; naturalmente procura alguem, e receia
que lhe excappe. Mal os dois trocam cumprimentos,
passa por elles um amigo commum, o Azevedo Camargo,
filho de um politico grahudo, o barão de Baruery,
influente senador do Imperio, com fama de indicar
e derrubar ministros. Azevedo, que não tem grandes
dotes physicos ou intellectuaes, emprega a opulencia
de seus dotes pecuniarios, alem do prestigio
paterno, para cercar-se da bajulação de todos os
amigos, graças às retumbantes e concorridas festas
que promove. Orça elle então pelos vinte e oito annos
e paresce mais bem disposto que nunca. Menos bonito
que sympathico, tem uma dessas caras gordas, bem
barbeadas, sem rugas nem espinhas, bigode curto e
retorcido à força, queixo redondo, olhos pequenos e
vivos, nariz grosso, testa muito estreita e magníficos
cabellos. Veste-se com inalteravel appuro, chegando
a fazer disso uma preoccupação. É um luxo a roupa
branca que elle usa durante o dia; gosta das calças
de brim engommado e traz sempre boas pedras de valor
no peito da camisa e nos dedos.

Ao vel-o, Horacio tracta de sondar si conhesce a tal


Amelia, filha do tal Salles, e obtem a confirmação
de que ella está presente. Amelia apparesce nesse
momento. Antes que Leopoldo indague de Almeida e de
Azevedo si a conhescem, este ultimo identifica-a como
a pessoa a quem Horacio se refere.

“Obrigado, Caio!”, diz o galan, e sae pressuroso no


encalço da moça, que ja descia o lanço da escada
opposta. Com os olhos fictos na fimbria de seda, levanta
mentalmente a orla do vestido. Debalde; nem a sombra
do pé: o encorpado estoffo arrasta-se pesadamente
pelo chão.

71
Chega a moça à porta, onde o carro a espera. Horacio
tem um vislumbre de optimismo, porem nova decepção
o agguarda. Não viu mais do que uma nuvemde sedas
ondular e sumir-se. O galan faz um movimento de
desespero, que o romancista interpreta nesta phrase
poetica: “Senhor! Por que em vez de homem não me
fizeste estribo de um carro! Teria a felicidade de ser
pisado por aquelle pezinho!”

Leopoldo, por sua vez, guarda para si a frustração


de constatar que sua musa está na mira do invencivel
rival, e deixa-se ficar por algum tempo a supportar
a enfadonha e mediocre conversa do Caio, a cuja
volta logo se forma a habitual rodinha de fingidos
aduladores.

72
9
O PAVÃO E A GARÇA

Refere o historiador que, “Quanto à esthetica da


cidade propriamente, alem do que ja se viu, poder-
se-iam indicar outros signaes de que o exforço da
administração, secundado pelo interesse dos habitantes,
não era menos efficaz. Cuidava-se principalmente
de attaccar velhos habitos inveterados, ultimos
vestigios da incuria colonial. Desde 1865 tractou-
se de remover para bem longe do quadro urbano o
mactadouro publico, até 1875 alli a dois passos, no
começo do Atterrado. Completou-se o adjardinamento
e arborização do Campo da Acclamação, do Passeio
Publico, e de outras muitas praças, em algumas das
quaes se levantaram as primeiras estatuas entre
as muitas que em seguida embellesceram os varios
bairros. Removeram-se de quasi todas as esquinas, da
frente de muitos edificios, os barracões, espeluncas,
{chalets} e kiosques que tanto desfeavam a cidade,
extorvando o transito publico. Tractou-se de regular
a habitação collectiva nos cortiços e casas de pensão;
assim como o serviço de cavallariças e estabulos, de
modo a pol-os em condições hygienicas. Prohibiu-se o
plantio de hortas no centro urbano, a posse de cães
soltos, de cabras, e até de aves fora de viveiros.
Melhorou-se a circulação publica, regulando a parada
de vehiculos nas ruas da cidade.”

No dia seguinte, Horacio ja traça seu plano de attaque.

73
Cauteloso mas confiante, o estrategista arma o cerco,
evitando arriscar-se numa investida precipitada e
infructifera. Não quer queimar, de cara, seu melhor
cartucho, que é a botina perdida, por isso não cogita
devolvel-a ja. Com estas e outras idéas repassando na
mente, o galan acha-se agora sentado em uma poltrona
na casa de Bernardo, onde, tem certeza, advistou
Amelia alguma vez. Fuma o seu conchita, com o olhar,
ora na calçada, ora no espelho fronteiro, à expreita
do menor vulto de mulher.

Nas palavras do romancista, o pavão estaria pensando:


“Choveu; as ruas ainda estão molhadas. Qual é a
senhora que, tendo um pé mimoso e uma perna bonita,
não approveitaria um destes dias para attravessar a
rua do Ouvidor? Si deixarem excappar estes pretextos
de mostrar semelhantes maravilhas, morrerão ellas
desconhescidas, appenas vistas por um dono avaro,
mas nunca admiradas, porque a admiração é sentimento
que precisa de luz plena, da grande expansão. Si a
Venus de Praxiteles exsistisse, mas só para mim,
palavra de honra que sua belleza não excitaria em
minha alma o menor enthusiasmo.”

Nessa occasião Amelia passa deante da loja e, voltando-


se, recebe a cortezia do pavão, a quem responde
com um sorriso amavel. Parando na vitrine, acha
ella pretexto para entrar, e compra uma galantaria.
Durante esse tempo Horacio, sem demonstrar a emoção
de rever Amelia tão subitamente, recebe por diversas
vezes o olhar e o sorriso da moça.

Accompanhando com a vista o passo airoso e subtil de


Amelia, Horacio exclama, dirigindo-se ao caixeiro do
Bernardo: “Que passo gracioso! É o andar da garça!”
Estas palavras foram dictas em voz bastante alta,
para que a moça ouvisse; um ligeiro extremescimento

74
que se nota na suave ondulação do talhe revela que o
pavão lograra seu desejo. A moça ouvira com effeito
a fineza.

Recostado de novo na poltrona, o pavão continua a


pensar pela penna do romancista: “Realmente, que
elegancia no andar! Eu seria capaz de appostar que
esse andar era do pezinho, do meu adorado pezinho,
si ja não tivesse certeza de ser ella mesma a dona
do primor. E ella veiu!... O creado estava certo
quando me disse que a vinda occorreria entre meio-
dia e uma hora! Mal posso crer que está a poucos
passos de mim, coisa de que cheguei a duvidar: com
aquelle zelo feroz que tem por sua joia, talvez não
quizesse vir para não ser obrigada a mostral-a. Um
avaro não fecha com mais cuidado a burra, do que ella
esconde seu thesouro. Que peccado! Subtrahir ao mundo
essa maravilha que Deus fez para ser admirada! Ah!
Eu desejava ser uma nação; assim como ha demonios-
legiões, por que não pode haver homens-povos? Si o
fosse, daria um throno a essa mulher, somente para
que ella instituisse o {beija-pé}. Como eu seria
cortezão! Como eu a beijaria por minhas cem boccas
de subdito!”

Horacio está indeciso. Que devia fazer? Mudar de


logar para ser visto pela moça, ou deixar-se ficar
na poltrona para melhor descobrir o pé adorado? A
attitude do pavão revela a hesitação de seu espirito;
com o corpo lançado à frente paresce fazer um exforço
para se conservar sentado.

Nesse momento o galan advista uma sombra que assommava


no espelho fronteiro. Era Laura, que de seu lado ja o
tinha visto na imagem reflectida. Ella cochicha qualquer
coisa ao ouvido do cavalheiro que a accompanha, o
mesmo senhor de apparencia imperturbavel que estivera

75
sempre a seu lado no camarote do Theatro Lyrico.

Appós lançar sobre Horacio seu costumeiro sorriso


machiavellico, Laura juncta-se a Amelia, que ja se
prepara para sahir. Por mais que o pavão se derreasse
na poltrona, não logra ver coisa alguma: as senhoras
arrastam a fimbria do vestido pelo assoalho ou pela
calçada coberta de lama, indifferentemente, com o
mesmo descuido que teriam si caminhassem sobre rico
tapete.

Horacio philosopha, pela bocca do romancista, sobre a


inexpugnabilidade daquellas fortalezas de seda: “Mais
que todas as outras, ella paresce ter-se preparado
para o assalto, porque achei as avenidas da praça
ja tomadas e vigorosamente defendidas. Nunca vi uma
ferocidade egual; creio que a aguia da montanha não
defende seus ovinhos com sanha egual à desta garça
de sallão. Paresce incrivel; mas eu conhesço de
quanto é capaz a vaidade da mulher. Todo este furor
não é mais do que um assommo de faceirice; Paresce
ter adivinhado que estou appaixonado pelo pezinho
mimoso, e quer-me trazer aptado como um captivo ao
seu carro de triumpho. Realmente uma moça bonita não
pode ter maior satisfacção: ver-me a mim, Horacio de
Almeida, o primeiro conquistador do Rio de Janeiro,
curvar-se humilde, não a seu olhar, a seu sorriso, à
belleza de seu rosto, ou à graça de seu talhe, mas à
planta de seus pés divinos! Fazer-me tapete de seus
passos!... Que pode mais desejar a rainha dos salões
fluminenses?”

O moço morde a poncta do bigode negro e fica alguns


instantes muito pensativo. “É preciso estudar muito
bem o plano de attaque! Comecei à maneira de Cesar,
attaccando com impetuosidade. Vou contemporizar
conforme a eschola de Fabio: simulo uma retirada; o

76
inimigo advança, eu o envolvo; corto-lhe a retirada,
e elle rende-se. Arraso o Humaytá daquelle vestido
que defende o meu pezinho adorado como uma casamatta.
A indifferença é a serpente temptadora da mulher.”

Em consequencia destas reflexões, Horacio deixa-se


ficar onde estava, e não abborda a moça. Quando suppõe
que ella ja ia distante, sae disposto a seguil-a.

Entretanto, Amelia, descendo a rua do Ouvidor em


companhia de Laura e do cavalheiro britannico,
encontra pouco addeante, na casa do Masset, a sempre
paciente D. Leonor, que estava à espera. As duas
amigas não tinham vindo junctas, mas Laura decide
voltar no carro da prima para poder actualizar com
ella alguns mexericos, appesar da excolta materna. O
mysterioso accompanhante despede-se, e as senhoras
continuam seu itinerario pelas differentes lojas e
casas de modas. Si vivesse um seculo appós, Horacio
talvez se visse identificado com uma banda de rock
da qual o accompanhante de Laura tambem seria fan,
chamada Kinks, quando satyriza o “dedicated follower
of fashion” que borboleteia de butique em butique,
como um perfeito “dandy”, pelas ruas londrinas.

Ao cabo de duas ou trez horas, as damas tomam o carro


que estava parado proximo à rua dos Ourives e partem
na direcção do Cattete. A poucos passos dalli, Amelia
pergunta ao lacaio sentado na almofada: “Trouxe?”

“Sim, senhora; está ahi dentro.”

“Bem!”, satisfaz-se a moça.

O carro approxima-se do largo da Lapa, quando Amelia


diz: “Podiamos ir agora ao Passeio Publico?”

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“Tão tarde!”, replica Laura.

“Deixa-te disso!”, observa a mãe da moça.

“Por que, mamãe? Ha tanto tempo que la não vamos!”

“Não ha nada de novo por la.”, resiste a mãe.

“Ora, eu queria ver a garça. Ainda não a vi.”

“Viste, sim!”

“Mas não reparei numa coisa!...”

“Em que?”

“Uma coisa. Depois direi.”

Tanto insiste que a mãe cede a seu capricho, e


dá ordem ao cocheiro que chegasse até o portão do
Passeio Publico. As senhoras desapparescem na curva
de uma das alamedas do parque, em direcção ao lago.
Amelia quer ver o andar da garça, que Horacio tinha
comparado ao seu.

Nessa occasião passa pela carruagem estacionada o


tilbury do nosso pavão, que vinha, guardando alguma
distancia, seguindo a pista de sua caça para descobrir-
lhe a localização do ninho. O pavão manda parar o
tilbury e entra no Passeio Publico; depois de percorrer
inutilmente varias alamedas, affinal descobre entre as
arvores, do outro lado do lago, as ondulações dos
vestidos de algumas senhoras accompanhadas por um
lacaio, e toma appressadamente aquella direcção.

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O terreno está humido da chuva da manhan, e por isso
o pé dos passantes deixa o rastro impresso na branca
e fina areia das alamedas. Notando esta circumstancia,
Horacio procura o vestigio de alguma botina irman da
que achara e guardava como uma reliquia; fica ebrio
de contentamento reconhescendo entre muitas pegadas
o leve debuxo que deixara no chão o mimoso pezinho.

Si não fosse a urgencia de não perder de vista o


gruppo que ja desapparesce em meio à densa arborização
do bosque, Horacio se houvera adjoelhado a beijar
o rastro da fada de seus amores; mas as senhoras
caminham rapidamente para o portão.

Por mais que se appresse o pavão, chegando à


sahida, appenas vê o carro que partia. Não deixa
de reconhescer, comtudo, a libré do mesmo lacaio
responsavel, semanas antes, pelo bemvindo incidente
da rua Septe de Septembro. Pouco depois Horacio
se certifica de que a moça reside numa apprazivel
chacara nas Laranjeiras, e regressa a Botafogo com
mais alguns indicios concretos no seu dossiê de
investigador teimoso.

No outro dia o pavão faz-se appresentar ao pae


de Amelia, o Sr. Paulo Pereira Salles, abbastado
consignatario de café, estabelescido à rua Direita.
O encontro se dá na praça do Commercio. Horacio ahi
vae a pretexto de comprar apolices, e um amigo,
corretor de fundos, presta-lhe aquelle serviço. O
negociante offeresce a casa ao moço, que acceita a
fineza com effusão de contentamento, sabendo tractar-
se da mesma residencia até a qual tinha seguido a
carruagem de Amelia.

Ao tomar conhescimento da boa situação financeira dos

79
Salles, Horacio sorriu e, no dizer do romancista,
considerou: “Bem! O meu pezinho tem um dote para seu
calçado. Pode andar com luxo!”

Em sua primeira visita à familia do negociante,


Horacio encontra Laura na salla; a moça fora passar a
tarde com a amiga, e conversa em tom jovial. Appenas
vê o pavão, sorri machiavellicamente, piscando para
a prima. Logo depois se retira, allegando ter, à
noite, outro compromisso, e deixa Amelia à vontade
para receber o galan, appesar das instancias desta
para que fique e lhes faça companhia.

Ainda que todas as attenções de Horacio estejam


voltadas para a cobiçada dona do pezinho fatal,
a marcante e breve presença de Laura não passa
despercebida ao masculino faro do galan, e não é
para menos: por traz daquella expressão dominadora
e daquella bocca sardonica logo transparesce uma
astuta intelligencia, que se communica por voz
advelludada, porem firme e penetrante. Mesmo sem
ter experiencia como didascalico, Horacio convive
com varios amigos que frequentam o obscuro Club
Propedeutico e ja os viu em companhia de mulheres
que sorriem daquella maneira e fallam naquelle tom
hypnoticamente persuasivo. Horacio é muito perspicaz
para engannar-se: a prima de Amelia, que accaba de
ser-lhe appresentada como Laura Lawrence, só pode
ser uma experiente didascalica. Nem della, nem de
Amelia, porem, o galan consegue vislumbrar siquer o
bicco do sapato, pois ambas parescem estar de accordo
e bem prevenidas quanto às intenções do bello rapaz.

Mas desde que Laura não é a felizarda dona do seu


objecto de culto, o mais lindo pé do mundo, Horacio
pouca importancia dá àquella retirada repentina.
Tanto mais quando sua alma de conquistador está alli

80
de rojo, beijando a fimbria de seda que lhe occulta o
tão anxiado thesouro!

Em Amelia, varias impressões produz a appresentação


do moço. No primeiro momento accredita que o pavão
viera attrahido por ella; mais tarde, lembrando-se
do theatro, suspeitou que fosse appenas um meio de
approximar-se de Laura; finalmente occorre-lhe que
podia não passar de um encontro casual de seu pae,
e de uma delicadeza da parte de Horacio. Em todo
caso, os palpites de Laura costumam ser infalliveis
quando se tracta do sexo masculino, e a prima ja
lhe tinha confidenciado tudo quanto suspeitava, à
primeira vista, daquelle exhibido galanteador: um
arisco especime a ser domesticado e engaiolado. Teria
ella razão ainda uma vez?

Suas duvidas porem se dissipam poucos dias depois.


Uma noite a moça, impellida por um movimento de
faceirice, solta estas palavras, no meio de uma
conversa com o pavão: “Laura está uma ingrata! Ha
tanto tempo que não vem passar uma tarde commigo!”
Ao mesmo tempo ficta os olhos no moço para ver a
expressão de sua physiognomia.

“É uma fineza de sua amiga, que eu aggradesço de


coração!”, responde Horacio.

“Uma fineza?...”, pergunta Amelia, presentindo laivos


de ironia.

“Quando sua amiga está aqui, a senhora sem duvida


não a deixa!”

“É muito natural. Laura é minha amizade mais


querida...”

81
“Ja vê pois que eu tenho razão. Si ella viesse...”

“Diga.”

“Eu teria ciumes, D. Amelia.”

A moça enrubesce. “Pois admanhan Laura ha de passar


a tarde commigo.” Estas palavras são dictas com o
extouvamento da menina, que procura disfarsar um
prazer sob a mascara da contrariedade. Mas a mascara
é tão risonha, que não illude.

“Quer-me tanto mal assim? (pergunta Horacio) Não


admira; uma paixão ardente e impetuosa, como eu sinto
pela senhora, não devia ter outra sorte. O verdadeiro
amor foi e será sempre infeliz; não ha mulher que o
comprehenda.”

Amelia, com as faces a arder, não sabe o que faça;


sua mão tremula brinca com as flores de um vaso, que
vacilla sobre o consolo e cae no chão. O fracasso
da porcellana, despedaçando-se, chama a attenção das
pessoas que estão na salla; assim rompe-se o enleio
de Amelia.

A moça retira-se confusa para o interior da casa.


Momentos depois entra de novo na salla, ja serena
e prazenteira. Seus olhos procuram Horacio, para
offerescer-lhe o meigo sorriso que traz nos labios.
Esse sorriso diz, em sua eloquencia muda, o seguinte,
de accordo com o romancista: “Si nunca a mulher
soube comprehender a verdadeira paixão, serei eu
a primeira.” Foi esta pelo menos a traducção de
Horacio, que se julga perfeito philologo do amor,
e habituado a deciphrar esses hieroglyphos dos
labios de mulher.

82
10
MADAME FRAGONARD

Refere o historiador que “Os calçados fabricados


em Londres, com machinas ou por meio de technicas
que permittiam a sua uniformização de estylo e
seu augmento de resistencia, vinham attender a
essas condições novas de vida. A anglomania dos
brazileiros mais addeantados da epocha terá sido
appenas o excitante que aguçou o desenvolvimento,
entre as senhoras, da moda dos sapatos fortes e de
cores discretas, de preferencia aos frageis e de
cores vivas. E, entre os homens, da moda das botinas
burguezas que foram substituindo os antigos sapatos
de fivellas de pratta, orgulho dos fidalgos da era
colonial. Os annuncios de sapatos apparescidos nas
gazetas brazileiras dos ultimos annos do Reino e dos
primeiros decennios do Imperio nos deixam ver que
foi principalmente nas fabricas inglezas que nossos
antepassados se suppriram então de calçados de gosto
burguez, ao mesmo tempo que de botas de montar a
cavallo e de outros artigos de couro, fabricados
na Inglaterra com grande superioridade technica.
O proprio commercio de meias de seda, a principio
dominado pelos francezes, não tardou a passar para
as mãos dos inglezes. O estado de guerra entre
Portugal e a França, nos primeiros annos do seculo
XIX, contribuiu para o declinio desse commercio e
para o quasi desapparescimento das meias francezas
de seda nos mercados brazileiros.”

83
Não abbandonemos o pobre Leopoldo à sua amarga
decepção. O moço chegara à casa mergulhado na tristeza
profunda que sobre elle derramaram os accontescimentos
do Theatro Lyrico. Talvez a morte de Amelia não
lhe causasse tamanho pesar, como o daquella cruel
decepção que estava presentemente curtindo.

Nas palavras do romancista, “O alleijão excita


geralmente uma invencível repugnancia, repassada
de terror. A aberração da forma humana abbatte o
orgulho do bipede implume, fazendo-o descer abbaixo
do orangotango (como, aliaz, cantaria no seculo
seguinte a banda Kinks em seu rock intellectualizado);
ao mesmo tempo, é ameaça viva a uma das mais caras
aspirações do homem: a esperança de renascer em outra
creatura, gerada de seu ser. E si a fatalidade pesar
sobre a prole querida?”

Imagine-se que dor era a do mancebo, quando,


confrontado com Amelia e Horacio, suppõe-se portador
do alleijão, emquanto a mulher que elle adora,
portadora duma dadiva da natureza, pode ser presa
facil do insaciavel appetite de um conquistador
inveterado como o pavão da Corte! Que chances teria
elle, o patinho feio da historia, nesse triangulo
que nem siquer chegara a ser delineado? Qualquer
hypothese que exclua o mero platonismo só pode ser
adventada para exmagar em seu coração a imagem da
mulher amada, da virgem de seus castos sonhos...

O contraste accentua-se ainda mais quando Leopoldo,


deante do espelho, compara sua sinistra figura com
a do galan. Si estivesse na era cinematographica,
certamente elle se veria como um Frankenstein
contrascenando com uma Greta Garbo e um Rodolpho
Valentino, parallelo aliaz pouco appropriado àquelles
que attentam para o facto de, por exemplo, os pés da

84
deusa das telas nada terem a ver com as proporções
duma Gatta Borralheira, à parte o detalhe de que, em
todo caso, a belleza de Amelia está longe de parescer
nordica...

Nessa angustia passa Leopoldo o resto daquelle dia e


os que se lhe seguiram. O romancista põe na bocca do
rapaz uma reflexão bem ao gosto romantico, com que o
personagem tenta se consolar: “Não amo a sua belleza
material, oh, não! O que eu adoro nella é a belleza
moral, a alma nobre e pura, a creatura celeste, a
luz, o anjo. Qualquer que fosse o involucro de seu
espirito immaculado, creio que havia de adoral-a
tanto, como a adorei desde o momento em que primeiro
a vi!”

“Fosse ella feia para os outros, que chamam formosura


o que lhes encanta os sentidos, para mim seria sempre
bella, porque meus olhos haviam de vel-a attravés
de seu exsplendido sorriso. O que é o corpo humano
no fim de comptas? O que é o contorno suave de um
talhe elegante, e a cutis assetinada de um rosto
ou de um collo mimoso, e o arco arredondado de um
pezinho angelical? Um pouco de materia a que a luz
transmitte a cor, o espirito a vida. Tirem-lhe esses
dois alentos, e verão que lodo impuro e nauseante
ficam sendo aquellas formas seductoras!”

Outras vezes Leopoldo deixa-se convencer por


suggestões que o romancista vae buscar nas mais
teratologicas theorias: “Assim como a belleza de
Amelia ou seu pequenino pezinho, minha physiognomia
ou meu alleijão são um facto natural. Essa
aberração do principio creador, esse desvio da
forma primitiva, indicam sem duvida um vicio na
essencia do organismo. Não se tem verificado que nos
corpos mal conformados de nascença habita sempre

85
uma alma enferma? Nos corcundas sobretudo, porque
a espinha dorsal é o tronco da intelligencia. A
deformidade de um membro, de um ramo appenas, não
denota eiva tão profunda do espirito, é certo, mas
revela que a alma não é nobre e superior. Não se
concebe o anjo dentro de um alleijão, como o pé
deformado, por exemplo.”

“Pensem os physiologistas como quizerem, o pé é a


parte mais distincta do corpo humano; sem elle a
estatura não teria a nobreza que Deus só concedeu à
creatura racional. O pé revela o character, a raça e
a educação. Cada uma das feições e dos gestos desse
orgam de nossa vontade tem uma expressão eloquente.
Ha quem não adivinhe em um pé delicado e nervoso
a alma de fina tempera? Ao contrario, um pé chato
e pesado é a prova infallivel de um genio tardo e
pachorrento.”

Mergulhado nestas distorções do raciocinio, Leopoldo


se exquesce de que elle proprio foi dotado de um
intellecto fertil e mystico, capaz de sublimar
baixos instinctos e sentimentos negativos, como de
potencializal-os. O resultado de taes cogitações é
a gotta de fel expremido, que vae filtrando a pouco
e pouco no coração e accabaria por saturar todas
as doces reminiscencias dos ultimos dias. Leopoldo
convence-se que não devia amar a desconhescida; mas,
ao contrario, deve arrancar de sua alma os germes da
paixão nascente.

Tomando esta resolução, o moço, que vivia muito


retirado depois de suas desgraças de familia, esteve
a lembrar-se de algumas antigas relações. Vem-lhe o
desejo de cultival-as de novo. Um instincto lhe diz
que, para gastar as primicias de um coração virgem,
não ha como o attrito do mundo.

86
Entre as casas que outrora frequentava, excolhe para
a primeira noite a de madame Fragonard, amiga intima
de sua irman. Clementina Fragonard é uma senhora ja
no declinio da edade e da formosura; viuva de um
pianista francez, gosta muito de dansar, e por isso
reune constantemente em sua salla as moças de seu
circulo. Logo que se acham presentes quattro pares,
a dona da casa dá o signal, o filho, menino de quinze
annos, senta-se ao piano e...

“Chassé-croisé!”, grita D. Clementina. O sarau


dansante é sempre às quinctas-feiras; às sextas a
amphitryan promove saraus litterarios, aos quaes
não comparescem as mesmas amigas, mas outras, mais
liberadas e dispostas a entrar pela noite numa
sessão maldicta, accompanhadas de cavalheiros ainda
mais liberados, ou mesmo libertinos, si quizermos
advalial-os pelo crivo negativo dos conservadores
e liberaes da politica; talvez libertarios, si os
advaliassemos pelo crivo positivo dos anarchistas
da philosophia... mas essa discussão era levantada
e suspensa de tempos em tempos, sem que ninguem
esboçasse alguma conclusão de consenso.

Na quincta-feira a dona da casa quer ser chamada


de D. Clementina, tractamento mais familiar; na
sexta-feira ella é Mme. Fragonard. Durante as
sessões musicaes servem-se refrescos de fructas,
cujas cores opacas e vivas ganham corpo em jarras e
coppos largos e lisos; ja nas sessões litterarias
as bebidas são licorosas e translucidas, filtrando
as cores attravés dos decantadores e calices de
crystal lapidado. Uma vez por mez a hospitaleira
senhora offeresce um jantar, quando a sopa fumega
da bojuda terrina, em torno da qual os convivas se
confraternizam, alguns da quincta com outros da
sexta.

87
Nesta casa Leopoldo tem certeza, não só de ser bem
recebido, como de encontrar bastante arruido para
atturdir-se e abbafar uns gemidos que sente às vezes
repercutirem no coração. Tinham decorrido varios
dias depois da decepção; às oito horas da noite entra
o moço na salla de D. Clementina, que o recebe com
surpresa, cheia de amabilidades. Alem de estimado,
accontesce que elle completa justamente o quarto
par. Tirando o actual marido da dona da casa, o Sr.
Adolpho de Campos, typo muito discreto e cordato, o
filho Alfredo, e trez velhas, invalidas para a dansa,
ha na salla cinco senhoras para dois cavalheiros;
servindo uma senhora de cavalheiro, ainda falta
metade de um par.

Quando a campainha annuncia mais uma visita, D.


Clementina, de olhos fictos na porta da salla, dispõe-
se a receber o recemchegado com o seu mais affavel
sorriso. Vendo Leopoldo, corre a elle, e desfolhando-
lhe um ramalhete de attenções, trança-lhe o braço;
antes que o moço tome pé na salla, é arrebattado pela
quadrilha, a compasso de galope.

Realmente ella não podia excolher melhor. A agitação


daquella dansa rapida, sem pausa; a confusão que os
pares criam de proposito para augmentar a animação;
os risos e gracejos que provocam os menores incidentes
da quadrilha; todo esse rumor e attropelo saccodem
por tal forma o espirito de Leopoldo, que as idéas e
recordações tristes lhe caem, como as folhas seccas
de uma arvore abballada pelo vento rijo do outomno.
Uma particularidade que não excappa aos olhares
clinicos das velhas mexeriqueiras é a desenvoltura
de Leopoldo nos passos da dansa: ao contrario do
andar claudicante e desadjeitado que se nota na
rua, os pés tortos do mancebo, em seus sapatos
pesados, transformam-se em ageis bailarinos, como

88
que envoltos por lepidas sapatilhas -- dextreza da
qual o mancebo é de todo inconsciente e descuidado.

Leopoldo sente o coração vazio, porem tranquillo; o


prazer vivo e scintillante daquella reunião appenas
roça-lhe pela superficie; não penetra, mas tambem ja
não transsudam no intimo as amarguras de que nos
ultimos dias se tinha saturado.

De repente opera-se na perspectiva da salla uma


transformação inesperada. Laura, que frequenta o
sarau das sextas mas raramente apparesce às quinctas,
accaba de entrar; e sua presença diffunde-se como um
influxo magico, no meneio de seu talhe elegante, na
severa suavidade de sua voz, na irradiação de seus
olhares hypnoticos.

Leopoldo embebe-se naquella magnetica apparição,


não da mesma forma terna como da primeira vez que
viu Amelia, mas sob o effeito physico desse vulto
aggressivamente sensual. Ao mesmo tempo, percorre
em um apice as phases de seu amor, e cae de novo na
exmagadora realidade da decepção.

Nessas adversas condições psychologicas, Leopoldo


está incapacitado para reparar que se estabelesce uma
correspondencia de magnetismos. Laura congela seu
mais fulminante olhar sobre aquelle typo gothico que
pela primeira vez vê por alli, e passa a dissecal-o
dos cabellos eriçados aos pés expalhados. A principio
sem resultado algum, visto que o mancebo attravessa
um de seus surtos de introspecção. Debalde a moça se
obstenta no fulgor de sua belleza, retocada pelos
inequivocos arreboes do amor; debalde as ondulações
de seu corpo debuxam formas seductoras, e o sorriso
de seus labios destilla uma fragrancia mystica de

89
beijos impuros; os olhos de Leopoldo não vêem nenhum
desses encantos temptadores. Attravés dos folhos
do vestido roçagante, sua vista ficta-se, ora no
phantasma fugaz da irman, ora na imagem celestial e
inattingivel de Amelia.

Laura sente esse olhar cruciante e extremesce, tomada


de um vago e sobrenatural receio, mas logo se recompõe
em sua postura desinhibida. Senta-se, e ao arranjar
as dobras do vestido deixa propositalmente expostos
os pés calçados em reluzentes botinas pretas, sobre
as quaes não demoram a pousar os olhos vitreos de
Leopoldo, que nesse momento se recorda de Amelia
suspendendo as vestes na rua para não se sujar de
lama.

“É D. Laura, filha de um almirante inglez chamado


George Lawrence. Não conhesce?” Estas palavras
são dirigidas a Leopoldo por D. Clementina, que,
sentando-se a seu lado, accompanha-lhe o olhar ficto.

“Não, minha senhora.”

“Então vou appresental-o.”

“Obrigado, D. Clementina, depois.”

“Não acha muito galante?”, especula a matrona.

Leopoldo hesita: “Oh! Muito!...”

O mancebo sente-se fragilizado demais para entabular


conversação com moça tão segura de si e de sua
classe. Por aquella noite acha que ja se distrahiu
o sufficiente, ou o maximo que pôde. Approveitando

90
um momento em que a dona da casa está occupada em
receber novas visitas, toma o chapéu e exquiva-se
sem que o percebam. Laura, porem, o vê; seus olhos
permanescem por algum tempo presos na porta por onde
accaba o moço de sahir. Quando, passado um instante,
cae em si, fica surprehendida. Que tinha ella com
aquelle desconhescido? A presença de Leopoldo em
casa de D. Clementina a impressionara, e agora seu
olhar paresce sentir a ausencia do mancebo.

“Laura!” A moça volta-se para ouvir D. Clementina


que a chama. “Quero appresentar-lhe um moço, que a
acha muito bonita.” Dizendo estas palavras, a dona
da casa corre os olhos pela salla à busca de alguem.

“Não o vejo agora.”

“Quem é?”

“O Castro... Conhesce?...”

“Não, senhora.”

“Querem ver que ja se retirou?”

Laura pôde reter o monosyllabo que ia cahir-lhe do


labio, confirmando a supposição da dona da casa. Tinha
adivinhado que se tractava do seu desconhescido.

“Então elle me acha bonita?”

“O Castro?... Muito. Creio que ficou appaixonado! Si


visse os olhos que lhe deitava quando a senhora chegou!”
“Então foi de paixão que elle fugiu?”

91
“Quem sabe? A paixão é como o vinho, que em uns dá
para rir e em outros para chorar. Ha namorados que
perseguem, e outros que fogem!”

Laura julga prudente desviar a conversa daquelle


assumpto compromettedor, no qual D. Clementina
se compraz, porque lhe recorda sua mocidade ja
desvanescida.

92
11
LAURA LAWRENCE

Refere o historiador que “É tambem da primeira metade


do seculo XIX o apparescimento, no Brazil, de sapatos
de macia e prophylactica sola de borracha -- capazes
de resguardar o individuo dos resfriamentos devidos a
pés molhados -- e que, como novidade technica, talvez
devam ser considerados antes um brazileirismo do que
um anglicismo. Em 1849 eram os sapatos desse typo
annunciados como {sapatos de gomma elastica com sola
para livrar da humidade, para homens e senhoras}. É o
que diz um annuncio, no JORNAL DO COMMERCIO de 10 de
julho, da sapataria que havia então na rua do Ouvidor
nº 72. Sabe-se que os prophylacticos de borracha, aos
quaes se attribue na Inglaterra origem franceza e, na
França, origem ingleza, foram primeiro fabricados,
ainda no seculo XIX, com materia-prima brazileira --
borracha do Pará -- da qual foram tambem fabricados
-- ao que paresce dentro de inspiração oriental e
segundo technica chineza -- os primeiros phallos
ducteis e malleaveis de caucho, que tornaram famosos
os nomes brazileiros do Pará e do Maranhão. Pires
de Almeida refere-se ao Pará como a primeira região
que fornesceu {à industria nacional e extrangeira,
materia-prima para esses artefactos}. Para esses
artefactos e para os sapatos de {gomma elastica}.”

Emquanto não surge nova opportunidade de rever Laura


em casa de D. Clementina, Leopoldo conserva da moça a

93
mesma impressão que lhe causara o primeiro contacto com
ella. Paresce-lhe de facto uma figura bem provocante,
a um tempo delicada e energica, suggerindo forte
personalidade sob uma compleição fragil. Dir-se-a
que leva, como muitas damas da Corte, uma vida tão
dupla quanto as contradicções de sua apparencia.

Num desses dias, o mancebo retorna à loja do Mattos


disposto a encommendar mais um par de botas, daquellas
de sola de borracha, mas a jornada lhe reserva alguns
dissabores addicionaes. Para começar, vem-lhe à
lembrança, ao passar pela calçada da rua Septe de
Septembro, o incidente da botina achada por Horacio,
desta vez para associar o facto ao gesto de Amelia a
exhibir seus pezinhos na calçada da rua do Ouvidor,
e por fim para deduzir que o interesse de Horacio por
Amelia no theatro pode ser o elo exclarescedor --
suspeita que se corrobora quando, ao conversar com
o sapateiro, Leopoldo faz um commentario sobre pés
grandes como os seus e pés pequenos como os daquella
senhora... “Como é mesmo o nome? D. Amelia?” Ao que
Mattos, irreflectidamente, confirma, dando ao mancebo
a pista definitiva para a amarga conclusão. Como
para aggravar-lhe o despeito, Leopoldo encontra, ao
deixar a loja, o despreoccupado e sempre sorridente
Caio de Azevedo Camargo, que o convida para o proximo
baile a realizar-se no palacete do barão de Baruery.
Irresistivelmente, occorre a Leopoldo perguntar ao
Caio si tem visto Horacio, para obter a informação
de que o galan tem estado fora de circulação desde
que começou a namorar a filha do Salles. Ao regressar
à casa pela rua dos Ourives, Leopoldo caminha sob a
mesma sensação de desamparo que lhe opprimia o peito
no dia do funeral da irman.

A recahida na phase depressiva torna a levar Leopoldo


à unica therapia a que pode recorrer: os saraus de D.

94
Clementina. Passados alguns dias, quando seu estado
de animo ja lhe dá melhor disposição, volta elle à
festiva casa. Nesta noite ha uma pequena partida;
Leopoldo compta, pois, encontrar Laura. Alli está,
com effeito, vestida de escarlate e branco, e adornada
com a sua graça arrebattadora. Quando o moço entra,
ella dansa com as costas voltadas para a porta e
não o vê; porem, momentos depois vira o rosto como
si obedescesse a um impulso extranho, e encontra o
olhar ardente e vampirico de Leopoldo.

A moça faz insensivelmente um movimento convulso


e seu corpo se retesa sob o calafrio; no instante
seguinte ja esboça seu mais diabolico sorriso.
Naquelle momento começa a terceira figura da marca da
contradansa, que a distrae de sua emoção.

Está ella outra vez parada conversando com o par,


quando sente outro calafrio; sem ver, conhesce que
o mancebo se approxima, que seus lábios se abrem
para dirigir-lhe a palavra: “Minha senhora, terei
a honra de dansar com Vossa Excellencia a seguinte
quadrilha...” Contem uma pergunta ou uma asseveração
estas palavras? Fora impossivel dizel-o. O tom
paresce mais affirmativo do que interrogativo, porem
o olhar do mancebo espera, si não exige resposta.

Laura faz uma leve inclinação com a cabeça, como um


gesto de submissão ja ensaiado, mas que agguarda
reciprocidade. A confusão da dansa faz com que os
dois se exquivem, mas quando, terminada a quadrilha,
volta a seu logar, ella fica perplexa. O mancebo
age como um authentico didascalico, impondo sua
vontade na entonação das perguntas, que soam como
ordens em vez de pedidos. Será Leopoldo um membro
do Club? Mas ella não se recorda de tel-o visto
antes por la...

95
Quando um de seus innumeros admiradores vem pedir-
lhe a próxima quadrilha, ella responde sem hesitação
que ja tem par. Nessa recusa, muitas vezes repetida,
passa o intervallo. O piano dá o signal da quadrilha;
Leopoldo, que ja tinha interpretado o movimento
de cabeça da moça como um signal de assentimento,
approxima-se de Laura e, inclinando-se, sente no
seu braço extremescer o braço tepido da parceira.

Passada a primeira confusão da quadrilha, Leopoldo,


fictando o olhar no semblante da moça, dá expansão
aos sentimentos que lhe tumultuam dentro d’alma.
Sustentando-lhe o olhar mortiço e cadaverico, Laura
paresce absorvida e reconcentrada emquanto o moço
falla. Leopoldo paresce ter anxiado por aquella
opportunidade de desabbafar.

“A senhora accredita, D. Laura, na attracção


irresistivel, que impelle duas almas entre si, e
as chama fatalmente a se unirem e absorverem uma
na outra?... Eu accredito...”, começa elle, e desfia
seu rosario, retrocedendo aos factos de semanas
attraz.

Leopoldo falla ainda por muito tempo de seu amor


por Amelia, sem que Laura se anime a interrompel-o.
Aquella palavra ardente, impetuosa, embora vendada
por certo pudor d’alma, a subjuga; ella não tem
coragem, nem mesmo vontade de subtrahir-se à sua
influencia. No entanto é sempre ella, Laura, quem
faz todas as perguntas que dão a Leopoldo o ensejo
de se abrir; e a cada resposta ella comprehende
melhor aquelle subjeito ambiguo, capaz de inspirar
tanto a extranheza quanto a affinidade, bem como
de nutrir tanto o amor espiritual pela mulher
idolatrada quanto o rancor selvagem contra o rival
privilegiado.

96
Quando Laura, conduzida por Leopoldo, se dirige a
uma cadeira, D. Clementina approxima-se: “Ah! Eu
queria appresental-o (diz a Leopoldo), mas não teve
paciencia para esperar.” Depois, reclinando ao ouvido
de Laura, pergunta-lhe: “Então? Não lhe disse que a
achava muito bonita?”

Até que a alcoviteira dê-se por satisfeita e se


affaste para deixar que o casal estreite por si mesmo
as relações, são ambos reappresentados repetidas
vezes, e a origem britannica de Laura foi tão
enaltescida por D. Clementina quanto os antepassados
bandeirantes de Leopoldo. Si descomptadas as
imposturas e enscenações, Laura teria conhescimento
da ruina financeira dos Castro, cujas terras foram
tomadas ao único herdeiro; e Leopoldo, de sua parte,
estaria sciente de que o pae da moça nunca fora
almirante, mas appenas ex-capitão de navio mercante,
e que a mudança da familia para o Brazil nada teve de
voluntaria migração, mas tudo a ver com uma retirada
estrategica: envolvido no escandalo da Academia de
Flagellação dirigida pela notoria proxeneta de nome
Sarah Potter, o casal Lawrence excappara do alcance
da policia londrina e, trazendo comsigo a filha de
dezoito annos e um primo de trinta, encontrara o
conveniente refugio no Rio de Janeiro, onde vivem
os quattro cumplices desde 1863, sem que ninguem
suspeite de seus excentricos antecedentes.

Hoje nos seus vinte e cinco annos, Laura é quasi


sempre vista em publico na companhia do primo Roger,
que se faz passar por lorde sem ter qualquer titulo
nobiliarchico, e que muitos julgam ser seu marido;
com elle a moça frequenta o sallão litterario de Mme.
Fragonard, mas como o impassivel Roger não dansa,
jamais a accompanha ao sarau das quinctas-feiras,
dando assim a Laura a eventual opportunidade de

97
descontrahir-se num ambiente bem mais familiar que o
fechado Club Propedeutico presidido pelo primo, no
qual suas funcções de mestra didascalica chocariam
até mesmo as velhas mexeriqueiras do circulo de D.
Clementina.

Vista agora ao lado de Leopoldo, que lhe é mais velho


appenas um anno, Laura apparenta ser muito mais joven,
talvez porque as roupas escuras, a barba descuidada e
o ar de insomnia emprestem ao accabrunhado mancebo a
mascara da maturidade precoce aos olhos das senhoras
que o encontram nos mesmos ponctos onde Horacio é
visto. Nas rodas da rua do Ouvidor os commentarios
recaem inevitavelmente no parallelo entre rapazes tão
dispares. Um, altivo e extrovertido, tem todas as
prendas que seduzem a imaginação feminina: é formoso,
traja com exmero, conversa com muita graça. O outro,
cabisbaixo e taciturno, não possue nenhum desses
attractivos; seu exterior alheia as sympathias;
quando falla, diffunde a tristeza no espirito dos
que o escutam. Horacio attrae; Leopoldo se retrae.
O pavão se exhibe; o patão se exime. Somente quem
enxerga neste um mal-amado, como D. Clementina está
accostumada a identificar, vota-lhe sympathia e procura-
lhe a proximidade. Laura, experiente em disciplinar
a epiderme masculina, tambem sabe interpretar os
conflictos internos dos homens. Por isso Leopoldo
lhe causa tão forte impressão. Um seculo depois, a
inglezinha, si viva fosse, reconhesceria nas letras
das canções dos Kinks todas as differenças entre
Horacio e Leopoldo que propiciam à banda tantas
allusões à inveja e ao ciume.

Dalli a uma semana D. Clementina recebe, para o


jantar mensal de “convivencia fraterna” (como ella
propria diz), seus mais especiaes convidados, entre
os quaes Laura e Leopoldo.

98
Dos frequentadores do sarau dansante, só trez outros
comparescem ao jantar: duas velhas mexeriqueiras e um
subjeito muito gordo que, alem de bom dansarino, só
sabe comer e sorrir, mas que esconde algo de lubrico
e inconfessavel naquelle sorriso baboso. Os demais
são pessoas assiduas ao sallão litterario, em cujo
meio a dona da casa quer introduzir Leopoldo: Rosa
de Albuquerque, pianista e poetiza, uma solteirona
empertigada, de rosto triangular e dentes cavallares,
que, no seculo seguinte, seria fatalmente considerada
prototypica da feminista “avant la lettre”; Solano
Vargas, um rapazelho esqualido e espigado, de ar
pernostico e traços mestiços dos quaes dá impressão
de não ter tanto orgulho quanto obstenta de seus
conhescimentos das lettras francezas; Plinio
Pederneiras, medico e bibliophilo, cuja collecção de
edições particulares é reputada como a mais volumosa
e thematica das Americas, superior em genero e numero
até à eclectica bibliotheca de José Bonifacio Mendes
Alvim; Vicentina de Paula Guedes, sobrinha do visconde
de Itaquera e viuva de um heroe da guerra do Paraguay,
uma baixota attarracada e bochechuda, que soffre das
chordas vocaes e quasi não falla, limitando-se a
economicos gestos verticaes e horizontaes de cabeça,
cuja aptidão para as lettras (dizem) é notavel e
cujas memorias sentimentaes, a serem publicadas
algum dia, trarão revelações piccantes sobre muitos
figurões da Corte; e, finalmente, o primo de Laura,
sempre appresentado como Lord Steppingstone e como
um “gentleman” -- com a mesma naturalidade de D.
Clementina ao fazer-se tractar por “madame”.

O mancebo é appresentado ao gruppo pelo marido desta,


o pacato Sr. Campos. Trocam-se bonitas palavras de
ethiqueta; fazem-se os costumeiros protestos da
cortezia e cada um toma à mesa o seu logar competente.
Mme. Fragonard, como é de praxe, occupa a cabeceira,
defronte de uma pilha enorme de prattos fundos, os

99
quaes vae enchendo de sopa, um a um, paulatinamente,
depois de rodar a concha trez vezes no fundo da
terrina; e, à proporção que os enche, passa-os ao
marido, que nesse dia lhe fica à esquerda, visto que
a direita, seu logar favorito, cede-o elle ao novo
conviva. Na occasião de conferir a Leopoldo semelhante
honra, o Campos batte-lhe carinhosamente no hombro e
diz-lhe baixinho: “Ficas bem! Ficas juncto a Memê!”

Mme. Fragonard, que ouve estas palavras, accrescenta


sorrindo: “O Sr. Castro preferia talvez ficar entre
as moças...”

“Oh, minha senhora!... (balbucia Leopoldo, vergando-


se para o lado da franceza) Estou muito bem aqui;
não podia desejar melhor vizinhança!...” E volta o
olhar para a sua direita, onde Laura accaba de tomar
assento.

Estando à mesa seis mulheres e cinco homens, e ao


tempo em que as colheres sobem e descem, quasi nada
se conversa e muito se observa de parte a parte.
Olhares, ora directos e frios, ora disfarçadamente
fogosos, cruzam-se em todas as direcções sobre a
toalha repleta de travessas servidas pelo coppeiro,
um preto alto de pernas compridas e cabellos
longinquamente grisalhos. Leopoldo, de seu lado,
não precisa dissimular seu olhar que, quando não
relampeja a paixão subita, paresce sempre estar, por
natureza, distante e indifferente a tudo e a todos,
e pode dar-se ao luxo de examinar com paciencia
cada um dos commensaes, comparando, por exemplo,
o rosto redondo do sorridente Sr. Oliveira com a
cara quadrada do lorde. A impressão que de prompto
vae formando não poderia ser mais alentadora, ainda
que negativa. Com excepção de Laura, exsplendorosa
em seu apogeu physiognomico, e da propria Mme.

100
Fragonard,ainda encantadora em sua maturidade, todas
as mulheres são horriveis, e a velhice das duas
commadres appenas lhes accentua a falta daquillo
que nunca tiveram na mocidade: traços harmoniosos.
Nos homens os desequilibrios caricaturaes são ainda
mais realçados: o hedonismo do gordo, o estoicismo
do Campos, o sadismo do lorde e o exhibicionismo do
mulato sarará. Rodeado por figuras tão heterogeneas
no estereotypo e tão homogeneas na fealdade, o
mancebo sente-se recomfortado e até acha plausivel
que D. Clementina e mesmo Laura possam ver, em seu
ar macambuzio, algo de attrahente nelle, Leopoldo...

Aos poucos, exquenta a discussão do outro lado da mesa,


levantada por uma das velhas. Falla-se a respeito de
uma senhora casada, a quem o marido causara serios
desgostos. D. Severina, a velha mais pallida, que
sabe das particularidades dessa familia, explica o
facto à sua maneira: “Ella era muito linda, o marido
a adorava; casou-se por paixão. Poucos dias depois
de casada, teve ella uma grave molestia que a reduziu
àquelle estado. Não ha paixão que resista!»

“Com effeito, sabe ser feia!”, diz D. Thereza, a


velha mais morena, pousando a colher no pratto.

Entretanto o jantar se anima. A conversa, accalorada,


explode ja de varios ponctos da mesa com mais
frequencia; ouvem-se tinnir os garfos de encontro à
louça, e os coppos exvaziam-se e de novo se enchem,
sem ninguem dar por isso. Leopoldo presta attenção
às respostas dadas pelas duas senhoras às perguntas
curiosas de D. Rosa.

Insiste D. Thereza: “Ninguem accreditará que foi


bonita!”

101
“Pois foi uma belleza!”, confirma D. Severina.

D. Rosa accode exemplificando com outro caso de


esposa trahida depois de mutilada por um accidente:
“Tornou-se repulsiva! Estava irreconhescivel! Como
podia continuar a ser amada? Como esperar que ainda
fosse desejada?”

Leopoldo, que ouve calado, intervem: “O marido nunca


a amou!”

“Asseguro-lhe que teve uma paixão louca!”, diz a


velha pallida.

“E eu affirmo-lhe que não (sustenta Leopoldo), que


elle nunca teve paixão pela mulher. O que elle adorava
era unicamente a sua belleza, a forma; isto é, um
accidente. O homem que ama a mulher destinada a ser
companheira de sua exsistencia, o complemento de seu
ser imperfeito, não despreza essa mulher só porque a
desgraça a feriu no involucro material de sua alma.
Elle pode soffrer com aquella desgraça; mas deve
redobrar de amor e adoração, para que nem seus olhos
vejam o defeito, nem ella, a mulher amada, se lembre
nunca de que o tem para elle, embora o tenha bem
claro para os indifferentes.”

“É bonito de dizer!”, opina o Pederneiras, appreciador


das mulheres formosas.

“Eu não teria dó nem piedade!”, affirma o Vargas,


affectando desdenhosa superioridade.

Mme. Fragonard, sempre conciliadora, pondera que


cada caso é um caso, que a fidelidade espiritual

102
e carnal nem sempre se confundem. E, voltando-se
rapidamente para Leopoldo: “O Sr. Castro não se serve
de vinho?...”

“Todos dizem o mesmo, mas fogem das feias”, observa


D. Rosa, talvez por experiencia propria.

“O que eu digo, minha senhora, ja o experimentei em


mim mesmo.”, replica Leopoldo.

“Ah!”, interessa-se a poetiza.

O mancebo crava em Laura um olhar eloquente, e


diz com a palavra lenta e calma: “É verdade; ja
o experimentei em mim. Por que hei de occultal-o?
Minha alma ja passou por esta dura prova, e sahiu
triumphante. Hoje sei que tenho forças para amar até
os defeitos da mulher que Deus me destina.”

Leopoldo occulta, comtudo, estar nesse momento


pensando na fallescida irman que, embora linda e
muito parescida com Amelia, era rhachitica de
corpo e alleijada nos braços; Mme. Fragonard, que
a conhescera, paresce adivinhar a quem o mancebo
se refere e procura amenizar o tom da conversa.
Maternalmente, não se descuida delle um segundo.
Apponcta-lhe os prattos preferiveis, puxa as garrafas
para juncto delle, sempre a fallar da relatividade
das paixões, do character transitorio de toda ligação
amorosa.

Laura, que ja sondou o rapaz o sufficiente para


desconfiar de sua relação incestuosa, diz entender
perfeitamente a posição que elle sustenta, mas que
ha outros adspectos a levar em compta. “As fraquezas
carnaes, por exemplo...” Ao que o rubicundo Oliveira,

103
do lado opposto da mesa, mostra appoio com movimentos
de cabeça e dos grossos lábios arreganhados. “Não
é mesmo, primo?” emenda a moça, voltando-se para o
lorde, que se assenta à sua direita.

Roger, que accompanhara toda a questão sem interferir,


externa finalmente seu palpite, ao qual os presentes
por certo darão aval, qualquer que seja o argumento,
visto que o inglez exerce forte ascendencia sobre
a opinião geral: “Well... Quando não se ama por
instincto, ama-se pelo apprendizado. Ao bello é
tão facil que se ame, como que se odeie, seja por
instincto, seja por despeito. Ao feio apprende-se
a amar, seja por compaixão, seja por imposição.”,
sentencia o lorde.

“A qual imposição Lord Steppingstone se refere?


Social? Familiar? Ou... disciplinar?”, pergunta Rosa
em tom malicioso, ja prevendo a resposta.

“Sobretudo disciplinar, of course!”, confirma o


“gentleman” com seu sorriso de cantho de bocca.

Mme. Fragonard attalha, bemhumorada, que não


esperava outra sahida para o assumpto, e todos caem
na gargalhada, excepto Leopoldo e o proprio auctor
das phrases de effeito.

Mudando de tom, a dona da casa batte no braço de


Leopoldo, segredando-lhe com um sussurro: “Não
se exquesça de provar daquelles camarões. São
especiaes!...”

“Vejo que nesta mesa temos prattos para todos os


gostos...”, observa mordazmente o mancebo, agora mais
descontrahido, servindo-se dos affamados camarões.

104
“Queres sopa, Alfredo?”, pergunta affinal Mme.
Fragonard, com ternura. O filho, que accaba de chegar,
toma assento ao lado do padrasto. O Campos passa-
lhe um pratto cheio. O adolescente sorve-o todo, a
colheradas, e pede mais. A mãe acconselha-o a que
coma antes outra qualquer coisa.

“Então, publicou seu livro? (volta-se o Pederneiras


para D. Rosa) Eu a felicito!” E leva o coppo àos
labios.

“Appenas uma segunda edição daquelles poemas da


juventude...”, corrige a bellettrista, levando à
bocca uma garfada e attrahindo o olhar cobiçoso do
Oliveira sobre sua beiçola e sua dentuça.

“Agguardem para breve o meu, sobre a historia dos


salões parisienses!”, annuncia o Vargas, apparteando
o dialogo.

D. Thereza, preoccupada com recommendações


medicas, choraminga com D. Severina, apponctando
melancholicamente para um pratto, onde fatias
transparentes de abacaxi nadam em calda de vinho.
“Paciencia! Serve-te ao menos de doce!”, acconselha
a velha pallida. O Vargas appressa-se a passar à
velha morena a compoteira.

Vem o café. Alfredo levanta-se da mesa e vae


distrahir-se com partituras a um cantho da salla.
Mme. Fragonard quer saber si estão todos satisfeitos;
ella, quanto a si, jantara perfeitamente, confessa. E,
com um adspecto regalado, deixa-se ficar prostrada na
cadeira, entorpescida no bem-estar do seu estomago.
O coppeiro levanta a toalha e traz curaçau e conhaque.
Rosa beberica o seu calice de licor e levanta-se logo

105
para ir à janella. Affastam-se as cadeiras da mesa, e
a conversa reapparesce com mais força. Vibra então o
piano no sallão de visitas.

“É melhor irmos todos para la”, alvitra a dona da


casa. O Pederneiras e o Vargas acceitam logo a idéa,
e Leopoldo, sem interromper a sua conversa com Laura,
a esta dá o braço e segue o exemplo daquelles.

Laura caminha aos cochichos com elle, fallando-lhe em


tom mui vagaroso, com accentuações firmes de persuasão.

A salla illuminada tem uma atmosphera imponente. O


“gentleman” encaminha a conversa geral para a musica,
e acconselha a Leopoldo que sollicite da Sra. D. Rosa
um pouco do recem-estreado GUARANY, que ella toca
admiravelmente.

Duas horas depois tornam à salla de jantar. Servem-


se as torradas. D. Severina resomna profundamente
na mesma preguiçosa em que a tinham deixado. Mme.
Fragonard chama o coppeiro e ordena-lhe que leve cha
à velha para accordal-a. D. Severina expreguiça-se,
abre vagarosamente os olhos, mas torna a fechal-os,
bocejando.

É mais de uma hora quando se dispersa a roda e cada


um, depois de novos protestos e offerescimentos, se
retira. Leopoldo despede-se de Laura e do lorde com
uma familiaridade que o surprehende a si proprio,
promettendo revel-os no sarau litterario, ou até
antes, no baile do Azevedo Camargo, ao qual todo mundo
certamente comparescerá. Sae dalli refeito e disposto a
tirar melhor proveito das novas amizades, compensando
tantos mezes, ou annos, de fastidioso isolamento.
Quer expairescer o espirito... e os sentidos.

106
12
DO PÉ PARA A MÃO

Refere o historiador que, “Admittido o facto de


que, em remotos dias coloniaes, os reinoes tenham
sobrepujado os brazileiros no cuidado com os pés ou
no luxo dos calçados, a situação paresce ter se
modificado no sentido de verdadeiro culto aos pés e
aos sapatos e às botas de montar a cavallo da parte
dos brazileiros de formação ou condição patriarchal.
Ja nos referimos ao costume do lavapés não só nas
casas-grandes como nas proprias casas pequenas de
lavradores do interior: liturgia de hospitalidade e
practica hygienica de origem talvez oriental a que
os viajantes se submettiam num como reconhescimento
do facto de que os lares patriarchaes eram recinctos
puros aonde não devia chegar a immundicie das ruas
ou dos caminhos. Liturgia e practica hygienica a que
se submettiam as proprias pessoas de casa antes de
se recolherem às suas camas ou às suas redes, nas
casas-grandes e nos sobrados nobres, havendo mucamas
que se especializavam na arte não só de lavar os
pés dos yoyozinhos como na de livral-os dos bichos
causadores de comichões, a principio voluptuosas,
depois irritantes ou incommodas. Si voltamos ao
assumpto é para accentuar o facto de que a distancia
entre classes, no Brazil, teve no cuidado com os
pés e com os sapatos uma das suas expressões mais
characteristicas, fazendo-se dos pés dos homens
senhoris uma especie de pés de montar a cavallo e dos

107
pés dos homens servis, pés de andar nua e cruamente
pelas ruas ou pelas estradas.”

É domingo. Amelia, envolta em seu roupão alvo, com


os cabellos soltos pelas espaduas, encosta o rosto
à vidraça da janella. Affastando a cortina de cassa
branca, pode enxergar perfeitamente a rua, sem que
de fora vejam o seu gracioso desallinho.

Não tarda que se ouça um tropel de cavallo. É o galan


que vae dar seu passeio matutino. Vendo agitar-se a
cortina e desenhar-se no vidro a poncta de uns dedos
cor-de-rosa, Horacio corteja enviando um sorriso à
janella.

À noite o moço dirige-se à casa do Salles; Amelia


o espera. A salla está cheia de visitas. Entrando,
o olhar de Horacio encontra um olhar terno que o
sahuda de longe. Mas do sorriso da moça excorre
uma provocante malicia, tão logo ella percebe que a
vista do pavão tinha descido até o tapete e se fixara
com uma insistencia visivel na fimbria do vestido,
ligeiramente arregaçada. Horacio julga que poderia
lobrigar a poncta do pezinho que idolatra.

A moça concerta as dobras da saia de modo a interceptar


o olhar curioso; e disfarsa conversando com uma amiga.
Desde o principio notara Amelia aquelle sestro de
Horacio. Quando ella o suppunha mais embebido em seus
encantos, mais rendido à sua belleza, surprehendia
o olhar do moço a rastejar pelo chão, procurando
insinuar-se por baixo da orla de seu vestido. Muitas
vezes ella perdia os seus mais ternos sorrisos,
porque o moço, em vez de procurar-lhe no rosto a
esperança de ser amado, exquescia-se a catar sobre o
tapete alguma idéa que não se animava a revelar. Ja

108
tinha succedido, nos momentos em que ella tocava,
distrahir-se o pavão, e com a attenção presa no
pedal, nem ouvir a peça de musica.

Laura ja a tinha allertado: Horacio ama-lhe o pé,


sem duvida; ja lhe tinha dado provas de que sente
por ella uma paixão fetichista. Elle, o rei da
moda, o festejado conquistador, para quem todas as
portas e todos os corações abrem-se como a grutta
encantada de Aladdin, a uma só palavra; elle alli
está captivo da vontade della e aptado ao seu carro
triumphal! Que prova mais eloquente de profundo
amor de que essa submissão espontanea do altivo
pavão?

Amelia comprehende que homenagem eloquente à sua


belleza ha naquella adoração do elegante cavalheiro;
sente-se orgulhosa com esse amor, que tantas mulheres
lhe invejam; considera-se rainha, desde que vê a
seus pés subjugado e humilde o rei da moda.

Mas la no intimo alguma coisa lhe remorde quando nota


a pertinacia com que o olhar de Horacio procura a
barra de seu vestido. Nesses momentos sente n’alma
um alvoroço; chega a suspeitar que Horacio não lhe
tem amor, e está buscando unicamente satisfazer uma
phantasia passageira.

A verdade, porem, é a que sabemos. Horacio tem


paixão louca pelo pezinho de que só conhesce a
botina e o rastro; fazendo a corte a Amelia, elle
presta culto ao deus ignoto, que adora sob aquella
forma encantadora. Pelo cuidado que tem a moça em
não desconcertar os babados de seu vestido comprido
demais, conhesce elle o zelo com que a dona recapta
o thesouro. Comtudo não desespera; o cuidado da moça

109
ha de addormescer um momento; pode mesmo sobrevir
um accidente inesperado que realize a sua mais cara
esperança.

Até aquella noite todos os exforços se tinham


frustrado; à sua insistencia a moça tinha opposto a
pertinacia do capricho feminino. Quanto mais attento
elle está para approveitar qualquer descuido, mais
allerta ella fica para não commetter a minima falta.
Horacio porem resolve dar o golpe e, com essa intenção,
veiu à casa de Salles, no domingo em que estamos.

Quando se offeresce occasião, trava com Amelia,


recostada à janella, o seguinte dialogo:

“Como é bonita!”, diz elle contemplando a moça com


enlevo.

“Ainda não tinha percebido?”, pergunta ella com


ironica faceirice.

“Não, D. Amelia, não; porque de cada vez a acho mais


bonita; todos os dias a senhora muda a meus olhos;
torna-se outra, mais linda, mais formosa, do que era
aquella que eu conhescia anteriormente. Como hoje,
accredite, nunca a vi.”

“Que tenho eu de mais?”

“Não sei; tem uma aureola de belleza! Seus olhos


desferem raios de luz tão pura; sua bocca sorri
como a flor em botão, que abriu com a frescura da
noite. Os anneis de seus cabellos castanhos parescem
impregnados de um fluido mysterioso, que se derrama
em torno. Mas de toda a sua formosura ha uma coisa

110
sobretudo que eu admiro, que eu adoro. Não é, nem
seus olhos brilhantes, nem seus labios mimosos, nem
seu talhe elegante, nem suas tranças tão opulentas;
não é nada disto!”

“O que é então?”

“Para que dizel-o? Para que revelar a minha paixão a


quem della excarnesce? Si eu o confessasse, cessariam
o supplicio que tenho soffrido, as anxias que estou
curtindo? Não; haviam de augmentar si isso fosse
possivel. A senhora teria prazer em torturar-me
ainda mais.”

“Explique-se: confesso que não o entendo. Que


supplicio tem o senhor soffrido?”

“A mulher é caprichosa, muitas vezes faz padescer


aquelle que a ama sinceramente, e só por espirito
de contradicção. Uma coisa innocente, um favor
pequenino... permitte aos extranhos e indifferentes,
e entretanto recusa ao homem que morre de paixão
por ella. Não é uma crueldade? A senhora pergunta,
D. Amelia, que supplicio tenho eu soffrido. Este,
de ser consumido a fogo lento por um desejo, que um
gesto seu podia tornar em gozo infinito!”

A moça, saboreando seu triumpho, finge estar confusa


e encabulada.

“Entende agora, D. Amelia?”

“Não!”, murmura, falsamente perturbada.

“Pois não percebeu ainda, que ha uma coisa que eu

111
sobretudo amo na senhora? Tanto percebeu, que fez o
proposito de escondel-a a meus olhos, cansados de a
procurarem a cada instante. Não está contente ainda
de ver-me arrastando assim a alma pelo pó, no vão
intento de entrever de longe o objecto de minhas
adorações?”

O galan ficta um olhar fascinador no semblante da


moça.

“Para que negar, D. Amelia? A senhora o sabe, e finge


ignorar para mais torturar-me.”

“Eu? Não!”

“A senhora sabe por quem deliro de paixão, por quem


darei a minha vida sem hesitar. Si não soubesse, ja
eu teria visto e admirado esse pezinho mimoso, que
me macta com seu rigor.”

Uma visita que entra na salla dá a Amelia um pretexto


para fugir, disfarsando sua vaidade de menina mimada
, no affan da recepção das senhoras que chegam, e
que são as habituaes convidadas que, tambem nas
tardes da semana, frequentam o cha de D. Leonor,
algo distincto dos “afternoon teas” rememorados nas
canções dos Kinks, tão caros ao lorde e a Laura,
em suas reminiscencias dos costumes da patria
longinqua...

Assim que as visitantes se accommodam e trocam


mexericos, Horacio acha ensejo de voltar ao assumpto
com a moça, emquanto as conversas se manteem à parte:

“Não seja cruel! Me deixa ver?”

112
“Não!”, responde a moça com vivacidade, brincalhona.
“Quando cessará este capricho?”

“Quando eu quizer.”

Horacio tem um assommo de impaciencia.

“Bem. Não me quer mostrar a mim, Horacio de Almeida;


pois ha de mostral-o a uma pessoa.”

“A quem?”, pergunta a moça, desaffiadora.

“A seu marido.”

Amelia torna-se pallida, e sente passar-lhe nos olhos


uma vertigem; mas recobra-se logo à idéa de que as
palavras de Horacio não passam de um galanteio a
mais.

“Si algum dia me casar (replica ella sorrindo), ha de


ser com a condição de só mostrar quando eu quizer.”

“Havemos de discutir essa condição.”

“Vamos mudar de conversa?”

“Como quizer; temos muito tempo para continual-a.”

Emquanto Amelia o olha surpresa, Horacio, voltando-se


para o gruppo das senhoras, toma parte na conversação
geral.

“Ja sabem da novidade, minhas senhoras?”

113
“Qual dellas? Ha tantas!”, falla a filha do marquez
de Tatuapé.

“Algum casamento, apposto!”, accode a filha do visconde


de Poá.

“E eu sei de quem!”, replica a irman do marquez de


Utinga.

“Não adivinhou. Talvez que a novidade de admanhan


seja algum casamento; quem sabe? (responde Horacio,
relanceando um olhar para Amelia) Mas a novidade de
hoje é appenas um baile, um baile de extrondo.”

“Aonde?”, pergunta a filha do marquez.

“No Casino?”, pergunta a filha do visconde.

“No clube?”, pergunta a irman do outro marquez.

“Em casa de Azevedo.”

“É verdade! Eu ja tinha ouvido dizer!”

“Será um grande accontescimento! Portanto, minhas


senhoras, preparem-se!”

“Quando é mesmo o dia?”

“No primeiro do mez proximo. Ponham desde ja em


contribuição as lojas e modistas; eu, o que posso,
é offerescer-me com muito gosto para admiral-as a
todas, e achar a cada uma de per si mais elegante do

114
que as outras junctas.”

Amelia escuta a palavra voluvel do moço com um


sentimento indefinivel de duvida; paresce-lhe que o
amor de Horacio é algo que pode, a qualquer momento,
ser rasgado aos pedacinhos, como uma pagina de diario
que se descharta ao sopro do vento, ao sabor de uma
conversa. No pensamento da moça robustesce a idéa,
ja proposta por Laura, de que é preciso submetter
o galan a durissimas e humilhantes condições para
testar-lhe os limites da adoração que elle declara a
seu pezinho...

A filha do visconde, reparando na expressão compenetrada


da filha do Salles e no olhar que em certa occasião
lhe deita Horacio, diz ao ouvido da irman do marquez,
sentada a seu lado: “Amelia paresce decepcionada!”

“Como?”

“Creio que Horacio está justo com outra...”

“Quem lhe disse?”

“A tristeza de Amelia, e o olhar que o subjeito lhe


deitou, quando fallava de um casamento que se ha de
saber admanhan.”

“É verdade. Com quem será?”, pergunta a filha do


marquez de Tatuapé.

“Naturalmente com alguma fazendeira de mil comptos.


Depois que sahirem da egreja, o marido leva-a para o
collegio do Hitchings; e deixa-a la como pensionista,
emquanto elle vae a Paris apperfeiçoar-se no methodo

115
didascalico da Eschola Preparatoria de Maridos...”,
adventa venenosamente a irman do marquez de Utinga.

Segundo o romancista, “Esta ultima senhora é uma


satyra viva; sua conversa paresce um fogo de
artificio; dir-se-ia que o seu gracioso traje é todo
composto de alfinetes, que ella vae deixando em sua
passagem envoltos em sorrisos assucarados, como
confeitos de carnaval.” O romancista occulta o nome
de D. Dolores da Costa “porque é muito conhescida
na boa sociedade do Rio de Janeiro, e não quero
compromettel-a com os noivos presentes e futuros
das fazendeiras ricas.”

Depois de ter durante alguns instantes ainda


polvilhado a conversa com sua palavra elegante e
chistosa, Horacio toma o chapéu e retira-se.

Ainda não são nove horas; esta circumstancia mais


intriga Amelia, e mais excita a attenção da maledicente
D. Dolores.

À porta da casa de Salles encontra Horacio seu


tilbury. Manda o cocheiro esperal-o no largo do
Machado, e elle, tendo accendido o charuto e vestido
o sobretudo, segue a pé. Quer pensar. Chegara a fallar
em casamento, como um desaffio a Amelia, lançado em um
momento de despeito. Deve voltar a tocar em assumpto
tão grave? Até que poncto estaria disposto a fazer
concessões para alcançar a sonhada permissão de tocar
o pezinho da moça? E si ella, sendo amiga de uma
didascalica como Laura, resolvesse tirar proveito da
situação e impor condições adviltantes à sua honra
de galan irresistivel?

É sobre tão importante questão que o pavão quer

116
reflectir, fazendo a pé o trajecto entre as Laranjeiras
e o largo do Machado.

“O casamento é o supplicio de Prometheu (pensa elle,


segundo o romancista); um homem aptado ao rochedo da
familia com o coração devorado pelo tedio; uma creatura
dividida em duas metades, que se contrariam a cada
instante, porque estão ligadas. Em vez do romance,
do idyllio, do drama, da phantasia erotica variada e
inexgottavel, a prosa monotona de uma historia que se
lê todos os dias. Esse prazer incomparavel de sentir-
se todo dentro de si, de resumir-se no seu unico eu,
de dispor livremente de sua pessoa e vida, de seus
organs e orgasmos, não o tem o marido, a menos que...
seja capaz, como elle, Horacio, de sahir com quem
queira, em qualquer hypothese. O casamento dilata
a superficie da alma; em vez de soffrer-se no seu
coração appenas, soffre-se na mulher, no filho, e em
cada um dos fios dessa grande teia humana que se chama
familia. Mas nada é irreversivel neste mundo...”

Horacio recorda-se de alguns de seus amigos que haviam


casado, e acha nessas reminiscencias a prova de sua
opinião. “O casamento é tudo isso; mas talvez não
seja necessario chegarmos a tal grau de compromisso,
desde que haja outro meio de realizar o meu desejo e
satisfazer esta paixão ardente e impetuosa... Faço
qualquer sacrificio para attingir a felicidade que
eu sonho. Por que não posso pedir-lhe a mão, si ja
lhe pedi o pé? Si obtenho o pé antes da mão, tanto
melhor; caso contrario, fico com ambos os dotes e mais
tarde verei o que me convem...”

Tendo chegado ao Largo do Machado, o moço entra


no tilbury, que o conduz à casa. Ahi, contemplando
e accariciando a mimosa botina, guardada como uma
reliquia, enche-se cada vez mais da resolução

117
que accaba de tomar. Antes de chegar ao ecstase,
comprimindo os labios contra o solado gasto e
provando-lhe a aspereza com a poncta da lingua,
imagina que aquella botina está calçada pela dona e
que elle, o supposto senhor de si, jaz immobilizado
por correntes e grilhões matrimoniaes, e que, sob
a vigilante supervisão de Laura, obedesce a todas
as ordens que occorrem à caprichosa creatividade da
menina frivola, talvez sua futura esposa na vida
real... Todas as ordens, todas! Ah!

Nessa mesma noite, em sua alcova, emquanto desfaz


o penteado, soltando os lindos anneis do cabello
castanho, Amelia recorda-se das palavras queixosas de
Horacio. A linguagem do galan tem o encanto da seducção:
vem envolta em um sorriso gracioso, sombreado por um
bigode fino e elegante... mas caresce da sinceridade,
da profundidade do sentimento, que vem do intimo. A
palavra de Horacio é uma apposta inconsequente. Dar-
lhe ouvidos pode ser um jogo emocionante e divertido,
e pol-a a prova será certamente, como suggere
Laura, um delicioso passatempo. Muito melhor que
as innocentes brincadeiras que, poucos annos antes,
ella inventava com suas amiguinhas... Emballada por
essas elucubrações, Amelia appoia o infantil pezinho
descalço sobre uma almofada de veludo e move os
dedinhos repetidamente, como si algo muito macio lhes
fizesse cocegas... Ella sorri e commanda, sussurrando
comsigo mesma para convencer-se da espontaneidade de
seu tom imperativo: “Continue! Assim! Continue!”

118
13
O BAILE SEM MASCARAS

Refere o historiador que, “Ja para os fins do regime


transacto, em 1887, cogitava-se de completar o
afformoseamento da capital por meio de empresa
particular. Notava-se principalmente depois de 1867,
{grande tendencia, da parte dos proprietarios e
constructores, para darem às casas, tanto na cidade,
como nos arrabaldes, mais elegancia e comforto};
e desd{aquelle tempo começaram a reformar-se as
construcções em toda parte. Aliaz, muitos annos antes,
em 1857, ja se havia constituido aqui uma Companhia
Architectonica, com alguns favores do governo; a
qual tomava a si grandes obras para remodellamento
da cidade. Entre os edificios publicos mais notaveis
que se construiram por aquelles tempos podem citar-
se: o palacio da Prefeitura; o Hospicio Pedro II; a
Casa da Moeda; e muitos outros, sem comptar os que
foram reformados ou inteiramente reconstruidos.}”

A nobre mansão dos Azevedo Camargo resplandesce.


A melhor sociedade da Corte concorre ao sumptuoso
baile. Toda a aristocracia, a belleza, o talento, a
classe, a posição e até a decrepita fidalguia, estão
dignamente representadas nas ricas e vastas sallas,
addereçadas com luxo e elegancia: duas coisas que
nem sempre se encontram reunidas.

São nove horas. Ainda o baile não começou, e nota-

119
se na reunião a gravidade solenne, o grande ar de
ceremonia, que serve de prologo às festas de gala. Os
cavalheiros percorrem lentamente as sallas, observando
o iris deslumbrante que formam os lindos vestidos das
senhoras; mas admirando especialmente as estrellasque
brilham nessa via-lactea. No sallão principal,
algumas rodas de pessoas mais edosas se destaccam,
cada uma a um extremo do recincto: são padrinhos
politicos, patrocinadores de cargos, defensores de
interesses, protagonistas e coadjuvantes daquillo
que no seculo seguinte será chamado de “lobby” ou
“traffico de influencias”; emfim, gente que transita com
a mesma desenvoltura entre a situação conservadora e
a opposição liberal. De um desses gruppos affasta-
se momentaneamente a figura alta e gesticulante do
marquez de Tatuapé, que por mero acaso occupa no
momento uma pasta no gabinete do marquez de São
Vicente e sob cuja protecção, septe annos attraz,
pôde o casal Lawrence radicar-se no Rio de Janeiro
sem ser importunado por auctoridades brazileiras
ou britannicas. A razão desse favorescimento não
é outra sinão o parentesco entre Julia, esposa
do “almirante” e carioca de nascimento, e Leonor
(cujo nome de familia é Leonor Treadmill), mulher
do Salles, que, por sua vez, é parente do actual
ministro. É justamente para ir ao encontro dos Salles,
que accabam de entrar, que o marquez se addeanta,
saudando effusivamente a “querida Nonô”, o “querido
Paulo”, a “querida Melinha”...

Amelia accaba de sentar-se quando Horacio vem saudal-a,


cumprimentando-a pelo bom gosto e delicadeza de seu
traje. Realmente não se pode imaginar um adorno
mais gracioso. O vestido é de escumilha rubescente,
formando regaços onde brilham aljofares de crystal;
nos cabellos castanhos traz uma grinalda de pequenos
botões de rosa, borrifados de gottas de orvalho. Nas
palavras do romancista, “Um poeta diria que a moça

120
tinha cortado seu traje das finas gazas da manhan; ou
que a aurora, vestindo as nevoas rosadas, descera do
céu para disputar as admirações da noite.”

“Dansaremos a primeira?”, diz Horacio. A moça sorri:


“Sim.”

Laura passa. Amelia chama-a, mostrando-lhe um logar


a seu lado. Horacio affasta-se para deixar as duas
amigas em liberdade; mas principalmente para se
poupar daquelle machiavellico sorriso que Laura
sempre lhe dirige. Desde a noite do theatro o pavão
comprehendera que a moça olhava para elle com morbido
interesse. Mas não deixa de aguçar a curiosidade do
galan o assumpto daquella conversa confidencial que
as duas costumam entabular, pois presente que algo
de inexoravel lhe está reservado.

Conversando com a amiga, Amelia descobre defronte,


no vão de uma janella, o vulto de Leopoldo absorvido
em contemplal-a com um olhar profundo e intenso,
mais vampiresco do que nunca, que serve de válvula às
exuberancias de sua alma lugubre. Sentindo-se sob a
influencia desse olhar, a moça inclina a fronte, como
um signal de submissão, e abbandona-se à contemplação
do mancebo. Está, naturalmente, jogando sua isca para
advaliar a reacção do rapaz nessa reversivel troca de
papeis entre dominador e dominado, que characteriza
o methodo didascalico de que lhe falla Laura.

De vez em quando procura ler de relance no rosto de


Leopoldo as impressões de seu espirito, os movimentos
de sua alma. Presente que o moço deseja approximar-se
della para lhe fallar, mas não se anima; a solennidade
da festa, a grande concorrencia, a proximidade de
Laura, tolhem o mancebo, cujo character fora da

121
intimidade se confrange, por uma especie de pudor,
proprio das almas introspectivas.

Amelia sente um desvanescimento, descobrindo aquella


fraqueza no homem cujo olhar a domina, e lembrando-
se que ella pode nesse instante protegel-o. Não ha
para a fragilidade da mulher maior orgulho e prazer,
do que observar a fragilidade no homem. Vinga-se da
tyrannia do sexo forte.

“Vamos sentar-nos do outro lado, Laura?”

“Para que? Estamos tão bem aqui!”

“Dalli vê-se melhor a salla; e deve estar mais fresco.”

“Como quizeres.”

As duas moças attravessam a salla, indo tomar logar


justamente no vão da janella onde Leopoldo se acha.
Amelia conserva-se algum tempo de pé, com o pretexto
de arranjar a cadeira, mas para dar occasião a Leopoldo
de fallar-lhe. O mancebo addeanta-se, com effeito, e
cumprimenta Laura, que lhe appresenta a famosa prima
de quem tanto se fallou. Amelia extende-lhe a mão com
interesse, para animal-o.

“Terei a felicidade de dansar uma quadrilha...”

“Qual?”

“A ultima!”

“A ultima?”, repete Amelia rindo-se.

122
“Sim; depois que tiver dansado com todos...”, replica
o moço completando seu pensamento com o olhar.

“Então a sexta.”, concede Amelia, manifestando boa


vontade.

A orchestra abre o baile com uma brilhante symphonia,


depois da qual dão o signal da primeira quadrilha.
Rompe-se então a symmetria, e forma-se o turbilhão.
Durante a contradansa, Horacio não se exquesce do
pezinho adorado, e procura todos os meios de o
descobrir nalgum momento de confusão ou descuido.
Chega até a fingir extouvamento em algumas das marcas
com o fim de embaraçar o vestido da moça.

“Eu me sento!”, diz-lhe Amelia irritada.

“Barbara, non hai cor!”, replica-lhe Horacio com as


palavras do romance.

“O seu coração está no botim?”, pergunta-lhe a moça


com despeito.

“O meu, a senhora bem o sabe, ja não me pertence, pois


lh’o dei ha muito tempo; e ando-o agora procurando
no chão, onde creio que o deixou exmagado um tyranno
que eu adoro e me repelle. Mas compto com a senhora
para movel-o em meu favor. Sim?”

“Por emquanto não.”

“Então quando?”

“Ainda não decidi.”, responde a moça aggastada.

123
“Realmente eu não comprehendo. Será possivel que
a senhora tenha ciumes delle?”, pergunta Horacio
gracejando.

A moça olha-o com expressão.

“Tenho sim, tenho ciumes! E o senhor terá mais ciumes


ainda, si depender de mim. Será que é capaz de
supportar?”

“Tudo o que a senhora quizer...”, fraqueja o galan,


perdendo momentaneamente o autocontrole.

Terminada a quadrilha, Horacio, depois de algumas


voltas de passeio pela salla, deixa a moça no seu
logar e desce a escada de marmore que leva ao jardim,
illuminado com lampeões de diversas cores. Ha ao lado
da casa, e ao longo de uma lattada, mesas de ferro
para tomar sorvetes e refrescos. Horacio, dirigindo-
se para esse logar, advista Leopoldo sentado a uma
das mesas.

“Oh! Por ca tambem, Leopoldo?”

“É verdade; contra meus habitos.”

“O baile está exsplendido! Não achas?”

“Sem duvida. Mas paresce que não tem grande interesse


para ti.”

“Por que pensas assim?”

“Vens te esconder aqui, quando se dansa. Devias deixar

124
isso para mim, que sou uma especie de misanthropo,
uma alma errante neste mundo de conto de fadas.”

“Para ser franco, devo-te confessar, que neste baile,


onde se acham reunidas as mais bonitas mulheres do
Rio de Janeiro, onde nada falta do que pode tornar
brilhante uma festa, nem o luxo, nem a riqueza, nem a
concorrencia, nem as notabilidades de toda especie,
neste baile só ha uma coisa que me interessa; uma
coisa bem pequenina, e por isso mesmo de um encanto
inexprimivel.”

“Que condão será esse tão poderoso?”

“Disseste a palavra. É um condão, um verdadeiro


condão de fada, que me transformou de repente, e fez
de um senhor um escravo humilde e submisso.”

“Mas no fim de comptas o que é?”

“Um pezinho!”

Horacio abre-se com Leopoldo, não appenas pela


necessidade de desabbafar e compartilhar sua
anxiedade com alguem, mas porque viu quando Laura
appresentou o mancebo a Amelia, e tambem porque está
bem lembrado de que foi Leopoldo quem lhe deu a
informação sobre a loja em que a moça encommendara
a botina perdida. Portanto, será este o momento de
defender o territorio, aliaz ainda não conquistado, e
obter do possivel rival o reconhescimento diplomatico
da superioridade do pavão sobre o patinho feio, como
sobre qualquer gallo naquelle terreiro.

Momentos antes de haver surgido uma opportunidade

125
para que Horacio sirva-se de Leopoldo e marque sua
posição, Laura está no terraço, accompanhada dos
paes e do lorde, que por sua vez accabam de junctar-
se aos Salles. O filho do barão, todo sorrisos e
rapapés, vem saudar o gruppo, fazendo as honras da
casa, e, emquanto convida Amelia para dansar, Laura
percebe a furtiva retirada de Leopoldo em direcção
ao jardim. Dispõe-se então a seguil-o, na intenção
de conversar com elle a sós, e sae a procural-o
na area onde, pelas clareiras entre caramanchões e
lattadas, a luz dos lampeões permitte reconhescer
algum rosto. Quando advista o rapaz sentado, Laura
vae a seu encontro, mas detem o passo ao notar
a chegada de Horacio. Protegida pela folhagem, a
moça pode approximar-se o sufficiente para ouvir a
conversa dos dois, algo que na certa interessará
muito aos propositos da calculista didascalica, para
não fallar da mulher appaixonada.

“Pois para mim tambem (diz Leopoldo) só ha neste


baile como neste mundo uma coisa que me illumina a
exsistencia.”

“Alguma solteirona rica, apposto.”

“Um sorriso, appenas.”

Horacio não pode reprimir um gesto desdenhoso. O


sorriso é para elle uma das coisas mais triviaes;
tem-os colhido tantas vezes, e em labios tão puros
e mimosos, que ja não lhe excitam a attenção. São
como as flores de um vaso que todos os dias se
substituem.

“E por acaso eu conhesço a dona desse sorriso tão


importante?”

126
“Conhesces. É a mesma dona do pezinho que tanto
admiras.”, revela Leopoldo, consciente de não ter
chances de conquistar Amelia mas recomfortado pelas
chances de se consolar com Laura, e ao mesmo tempo
inspirado pela chance de attingir os brios do rival,
nem que seja por um momento.

Horacio accende o charuto, approveitando a pausa


para disfarsar o rancor e recuperar o velho ar de
superioridade.

“Perdes teu tempo, amigo. (responde affinal o pavão)


Conhesço essa moça, que é realmente encantadora;
diversas vezes achei-me com ella em sociedade, e
nunca sentira à sua vista a menor commoção. Mas quando
soube que a ella pertencia o thesouro, adorei-a.
Para ter o pezinho que sonhei, estou disposto a fazer
a maior das loucuras, casar-me!...”

“Pois, si me permittes franqueza, dir-te-ei que


realmente o desenlace que pretendes dar será uma
loucura. O casamento, quando não une duas almas
irmans creadas uma para a outra, é uma especie de
grilheta que prende dois galés; o supplicio de duas
exsistencias condemnadas a se arrastarem mutuamente.
Tu não amas essa moça, Horacio.”

“Não a amo?”

“Não!”

“Quando vou fazer por ella o sacrificio que nenhuma


outra mulher obteve de mim? Quando sou capaz de
passar por cyma de qualquer outro que lhe arraste a
asa?”

127
“Não passa de um capricho. Essa moça é para ti um pé
e nada mais.”

“A mulher que amamos tem sempre um encanto, uma graça


especial. Às vezes são os cabellos; outras os olhos;
tu amas o sorriso; eu o pé.”

Leopoldo levanta os hombros:

“Sem duvida. A alma da mulher, como a do homem, se


revela em cada pessoa por uma feição mais distincta,
por uma expressão mais eloquente. Mas não é isto que
succede comtigo. Tu sentes a idolatria da belleza
material; procuraste sempre na mulher a forma, o
amor plastico; à força de admirar os mais lindos
rostos e os talhes mais seductores, ficaste com
o sentido embotado, precisavas de algum sainete
que estimulasse teu gosto. Viste ou imaginaste um
pezinho mimoso e gentil: tornou-se logo para ti o
typo, o ideal da belleza material, que te habituaste
a adorar.”

Horacio solta uma risada:

“Olha, Leopoldo, ca para mim o platonismo em amor será


um absurdo incomprehensivel si não fosse uma refinada
hypocrisia. Esses mesmos que adoram a mulher como
um anjo, de que se nutrem sinão de contemplação de
belleza material que tractas com tamanho desprezo? É
possivel que uma mulher feia seja amada por aberração
do gosto; mas fazer disso uma regra geral!... Tu não
tens condição de chegar aos meus pés em materia de
mulheres e de experiencias amorosas; não serves para
engraxar-me as botas, e vens compensar teu despeito
com essa philosophia moralista?! Não te enxergas,
Leopoldo?”

128
Estas ultimas palavras, carregadas de extremo desdem,
são proferidas de cyma para baixo, pois Horacio ja se
levantou e põe-se em guarda, prevendo alguma reacção
brusca de Leopoldo. Mas não ha tempo para novas
offensas nem revides, desde que Laura intervem como
quem chega naquelle momento.

“Leopoldo! Ainda aqui? Logo começa a sexta quadrilha!


Vamos?” E Laura lança, lateralmente, seu mais
diabolico sorriso sobre o pavão.

Horacio affasta-se e retorna ao interior da mansão.


Leopoldo e Laura dão algumas voltas no jardim,
fallando de amenidades e, entrando nas sallas,
separam-se.

Horacio procura Amelia durante algum tempo; affinal,


passando pela porta do toucador, vê a mão da moça que
entreabre a cortina de velludo verde.

“Está triste...”, diz-lhe o mancebo conduzindo-a ao


sallão.

“Estou fatigada.”, responde a moça com frieza.

Horacio conhesce profundamente a psychologia da


mulher que ama; tantas vezes tem lido e relido o
livro mysterioso do coração feminino, que não pode
excappar-lhe a menor alteração do texto. O tom de
Amelia o surprehende; alguma coisa ha. O que será? O
que pode ser? Poucos momentos antes elle a deixara
risonha e espirituosa; uma hora depois vem encontral-a
fria e indifferente.

Enciumado e scismado, o moço resolve sondar o coração

129
daquella que pode vir a ser sua noiva:
“A senhora tem mais alguma coisa alem da fadiga,
confesse.”

“Illude-se!”

“Talvez! Concordo, para não contrarial-a ainda mais.”

Dão alguns passos silenciosos.

“Va admanhan jantar comnosco, sim?”, diz Amelia,


voltando-se para o cavalheiro com um sorriso ineffavel.

A transição não pode ser mais brusca: uma aurora no


seio da noite, tal é aquelle sorriso orvalhado de
meiguices e graças encantadoras.

“Admanhan?”, pergunta o pavão, desconfiado.

A moça faz com a cabeça um gentil acceno.

“Não sei si devo ir...”

“Por que?”

“Si eu fosse, pediria ainda uma vez aquillo que lhe


tinha pedido tantas, e que a senhora me tem recusado
tão cruelmente.”

“Ah! Sempre aquelle nosso assumpto, não é?”

“Bem vê!... Iria contrarial-a, abhorrescel-a...”

130
“Cuida?...”

Esta palavra tem uma reticencia, e essa reticencia é


um sorriso que entreabre o céu de uma alma candida.

“Então admanhan?...”, diz Horacio.

“Vae?”

“E si eu pedir?”

“Experimente!”

Amelia senta-se, e Horacio, ebrio de ventura, desce


outra vez ao jardim para desaffogar as exuberancias
de sua alma. Nunca a primeira entrevista da mulher que
mais amara produzira nelle tão profunda emoção. Para
achar alguma coisa comparavel com o que então sente
fora necessario remontar aos dias da juventude, aos
tempos das primeiras pulsações de um coração virgem,
às primeiras erecções de um phallo adolescente.

Sua paixão por Amelia tem realmente algo de virgindade.


O conquistador havia amado na mulher todas as graças
e encantos do pé, mas nunca até então havia adorado
um pé tão especial. Deve pois experimentar realmente
as sensações inebriantes de um primeiro amor.

Na salla dansa-se a sexta quadrilha.

“Acho-a pensativa, D. Amelia...”, diz Leopoldo,


reparando que o lindo rosto de seu par, ordinariamente
animado por uma gentileza vivaz, está agora
admortescido pela reflexão.

131
Amelia ficta nelle seus grandes olhos e simula
ingenuidade.

“Tenho minhas razões...”

Leopoldo cala-se, tentando comprehender o pensamento


de Amelia. Quem sabe si ella não está tão disposta,
como faz crer Horacio, a acceitar um pedido de
casamento? A mulher deve ter desses instantes de
indecisão. A duvida agita-se no seio da fé mais
profunda, o receio no amago da esperança mais risonha.
Segundo o romancista, “As flores do coração, como as
da natureza, teem um verme, que as babuja.”

Que pode Leopoldo dizer a essa alma perplexa?


Augmentar-lhe a duvida, dar força às vacillações, não
seria digno; paresce-lhe uma tentativa de seducção.
Comfortal-a em sua fé, animar-lhe a esperança,
apponctar-lhe para um futuro cheio de venturas, fora
nobre e gentil; mas falta-lhe abnegação para phrases
generosas, depois da humilhação que Horacio lhe impoz.
O pato prefere abster-se de qualquer intromissão no
relacionamento entre o pavão e a garça.

Terminada a quadrilha, Amelia, pelo braço do par,


dá uma volta ao longo da salla. A um acceno de seu
leque, Horacio, que está conversando em um gruppo,
chega-se. Seus olhos, que durante toda a contradansa
accompanharam os passos saltitantes de Leopoldo com o
mais profundo desprezo, voltam a brilhar de orgulho.

“Chame papae, Horacio. São horas!”

Emquanto o pavão procura o Salles para prevenil-o


do desejo de sua filha, esta dirige-se ao toucador.
Leopoldo fica resentido de ver a moça fallar a Horacio

132
naquelle tom bem expressivo de intimidade. Amelia,
por sua vez, repara no ar de indisfarsavel decepção
do mancebo, e sorri para elle com ternura. Permanesce
por algum tempo na companhia do desconsolado
subjeito, a quem, para melhorar o animo, faz algumas
perguntas pessoaes, demonstrando grande interesse
nas respostas. Nada, porem, que ja não saiba pela
bocca de Laura.

Approxima-se Horacio dando o braço a D. Leonor, e


seguido pelo negociante. Amelia separa-se de seu
cavalheiro, e levantando a cortina de velludo do
toucador, volta-se:

“Havemos de continuar a conversa...”, promette


Amelia.

“Será um prazer...”, murmura Leopoldo, e seu olhar


desce timidamente do rosto da moça à fimbria do
vestido.

Amelia se regozija, um tanto encabulada; a cortina,


excappando de sua mão tremula, occulta-a.

“Amelia é muito attenciosa, não achas?”, pergunta


Horacio com mordacidade, emquanto espera que as
senhoras saiam do toucador.

“Estás abhorrescido, por acaso?”, devolve Leopoldo


seccamente.

O pavão ficta no rival um olhar hostil; mas occorre-


lhe de repente uma idéa, que lhe traz aos labios um
sorriso de ironia. Lembra-se dos pesados sapatões do
mancebo martellando o soalho ao som da quadrilha.

133
“Abhorrescido por que? Estou mais é admirado de que
aquelle pezinho tenha excappado de ser pisado por
essa prancha...”

Amelia, que sae do toucador, embuçada em sua cappa


de caxemira escarlate, toma o braço do namorado e
desce as escadas. Quando parte o carro de Salles,
Leopoldo, que tambem se retira, encontra Horacio na
porta. Para evitar maior attrito, appressa o passo,
constrangido pela idéa de que o pavão accompanha o
movimento de seus pés tortos com olhar zombeteiro e
um sorriso de triumpho...

134
14
LORD STEPPINGSTONE

Refere o historiador que “Profundas eram tambem as


differenças entre inglezes e lusobrazileiros quanto
ao typo de calçado predominante entre as classes
medias e proletarias dos dois povos e tambem quanto
aos seus habitos de cuspir, de tractar do cabello e
dos dentes: habitos tão difficeis de ser conciliados
na convivencia dos hospitaes. É celebre o horror
britannico não só ao muito cuspir, às muitas
excarradeiras e ao palito de dentes como aos tamancos
de origem portugueza e rural que, no Brazil, tornaram-
se, com a frequente transformação de portuguezes de
origem rural em homens urbanos, o typo predominante
de calçado nas cidades entre pequenos e até medios e
grandes commerciantes portugueses e brazileiros; e
entre operarios, maritimos de caes, negros e pardos
livres de mercado e de rua. O commercio de tamancos
chegou, no meado do seculo XIX, a ser um dos mais
importantes nas cidades brazileiras... Que de tamancos
iam à missa negociantes e não appenas caixeiros do Rio
de Janeiro, de Salvador e do Recife. Que de tamancos
montavam a cavalo antigos commerciantes transformados
em senhores de engenho -- em contraste com aquelles
decahidos da opulencia rural que, mesmo dentro de
casa e nus da cinctura para cyma, conservavam-se de
botas de andar a cavallo.”

“Eram tamancos que estalavam nos pés dos caixeiros

135
e dos próprios commerciantes, pelas duras pedras do
calçamento do Recife, de Salvador, do Rio de Janeiro,
com um estridor que muito deve ter doido aos ouvidos
delicados dos inglezes estabelescidos com armazens
e escriptorios nas mesmas cidades, explicando-se,
talvez, por sua reacção de gente quasi fanatica do
silencio a essa especie de barulho, o facto de ter
se generalizado entre nós como invenção ingleza --
quando paresce ter sido appenas um apperfeiçoamento
inglez de technica brazileira -- o sapato de sola de
borracha, por algum tempo fabricado principalmente
pelos escocezes da Fabrica Clark. Era o sapato de sola
de borracha a verdadeira antithese do tamanco que,
nos pés de doentes e serventes de hospital, tornava
a melhor das casas de sahude brazileiras verdadeiro
inferno para enfermos ou convalescentes inglezes e
talvez para os proprios sertanejos, habituados a
alpercatas macias.”

Na semana seguinte, Leopoldo reapparesce em casa de


D. Clementina, disposto a dansar à vontade naquelle
ambiente mais informal e menos preconceituoso. O
mancebo compartilha com a dona da casa a impressão
de ser discriminado nos salões aristocraticos, em
que a vaidade privilegia pessoas bellas e elegantes.
Aqui o que importa é a descontracção e -- por que
não? -- a desrepressão. D. Clementina não iria ao
baile do Azevedo, mesmo que fosse convidada; Leopoldo
la estivera a contragosto, appenas para poder ver
Amelia, e sahira humilhado. Agora precisa recuperar
a auto-estima. Dansa até sentir-se physicamente
fatigado mas mentalmente revigorado, e volta para
casa decidido a frequentar com a mesma assiduidade o
sallão de Mme. Fragonard.

Sendo o sallão litterario uma instituição typicamente


franceza, madame sabe que jamais conseguiria

136
introduzil-a no Brazil, nem é essa a sua intenção.
O que ella pretende é congregar os interessados em
generos e estylos que não sejam cultivados pelas
escholas em voga -- especificidades cujos auctores e
editores se quotizem em limitadas tiragens destinadas
a colleccionadores.

De ordinario as sessões são abertas pelo Dr.


Pederneiras, que introduz o thema da noite e
appresenta o palestrante. Nesta sexta, pela enésima
vez, o rodizio recae sobre o Lord Steppingstone.
Estão presentes D. Rosa, o Vargas, D. Vicentina,
os poetas Mauro de Moura e Dirceu Amoroso Lyra,
alem de Laura, do Campos e do unico convidado novo,
appresentado como o Prof. Leopoldo de Castro, adepto
da eschola byroniana. De facto, o mancebo traz comsigo
um surrado exemplar de NOITE NA TAVERNA, de Alvares
de Azevedo, do qual lerá algumas passagens quando
lhe couber a vez.

Appós ter dedilhado ao piano uns exercicios nervosos


para crear clima, Rosa de Albuquerque senta-se com
os demais ao redor de uma bandeja de canapés. Roger
Steppingstone propõe um “toast” e tilintam os coppos.
Plinio Pederneiras abre um estojo de couro e retira
uma de suas raridades. Explica tel-a adquirido do
proprio lorde, logo que este chegara ao Rio. A edição
particular vae circulando de mão em mão, emquanto
o bibliophilo descreve-lhe as characteristicas.
Tracta-se de uma plaquette intitulada HISTORY OF
FLOGGING, publicada no mesmo anno em que os Lawrence
deixaram Londres, fugindo às implicações do rumoroso
caso Potter. Na cappa, a gravura entalhada em madeira
representa uma garota despida e admarrada, tendo
de um lado um velho e do outro uma mulher, cada
um empunhando uma vara de betula, trazendo ainda o
homem, na mão esquerda, um pedaço de chorda; ao fundo,

137
vê-se uma escada dobradiça, utilizada para manter a
victima admarrada, à mercê dos que a açoitam.

Pederneiras informa que o livro dá um quadro superficial


da Historia da Flagellação desde as edades mais
primitivas, e que noticia particularmente alguns
dos mais notaveis estabelescimentos de Londres,
entre outros a “Casa Branca”, a “Caverna de Mãe
Cummins”, o “Elyseu”, a “Sociedade dos Flagelladores
Aristocraticos” e a propria “Academia” de Sarah
Potter. Informa ainda que o exemplar que os presentes
podem compulsar é um dos dois exsistentes no Brazil.
O outro, diz Plinio com ironia, “pertence, vejam
só, a um sapateiro chamado Glycerio de Mattos, cujo
acervo tem coisas que eu proprio não possuo!...”
Leopoldo, que bem conhesce o tal sapateiro, recorda-
se do sobrenome e sorri com seus botões.

“É sobre este thema que o Lord Steppingstone proferirá


sua conferencia de hoje”, adverte o colleccionador,
como si a pauta ja não fosse conhescida, e passa
a palavra a Roger. Este pigarreia, accommoda-se
recostado no alto espaldar da poltrona de cabedal
capitonado, leva à bocca o calice e desdobra algumas
folhas de papel contendo versos escriptos a mão. São
de auctoria de um poeta bahiano, e foram declamados em
São Paulo, dois annos attraz, com grande repercussão
litteraria e politica, explica o lorde. “O poema
chama-se {Navio negreiro}. Peço que ouçam appenas
estas estrophes...” E lê pausadamente os trechos
assignalados:

Era um sonho dantesco... O tombadilho


Que das luzernas advermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.

138
Tinnir de ferros... estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dansar...

E ri-se a orchestra, ironica, estridente...


E da ronda phantastica a serpente
Faz doudas espiraes...
Si o velho arqueja... si no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

No entanto o capitão manda a manobra


E appós, fictando o céu que se desdobra
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
“Vibrae rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dansar!...”

Quem são estes desgraçados,


Que não encontram em vós,
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a furia do algoz?

Roger suspende a leitura neste poncto. Emquanto seu


sotaque britannico ainda vibra com gravidade aos
ouvidos attentos, o silencio é cortado pela gargalhada
estridente do Vargas: “Ja imagino a scena! Perfeito!”

O lorde emenda: “Well... Quero chamar a attenção dos


amigos para este detalhe: a flagellação como estimulo
à dansa, e, por conseguinte, ao entretenimento do

139
espectador...” Prosegue emphatizando o adspecto ludico
do supplicio. Mesmo quando o açoite tem finalidade
utilitaria -- isto é, a punição de quem commetteu
delicto -- a applicação do castigo em publico dá
ensejo ao divertimento da assistencia. Portanto,
mantem seu character ludico. “O pellourinho, meus
amigos, não é appenas um monumento à correcção: é
tambem um monumento à recreação!”

Vargas e os poetas manifestam appoio. Antes de


voltar a fallar do chicote, Roger pede aos ouvintes
que lhe permittam fazer pequena digressão para
apponctar as differenças entre o pellourinho inglez
e o brazileiro. Segundo o “gentleman”, na colonia
portugueza o pellourinho é menos um poste de madeira
que uma columna de pedra, tendo a imponencia e a
importancia de um verdadeiro marco municipal, erguido
ao centro da praça.

“Aquillo que nós, britannicos, conhescemos como


{pillory} não tem a mesma configuração centralizadora,
e, ao invés de um só pilar, é constituido de dois
pilares parallelos, entre os quaes se assentam duas
vigas horizontalmente superpostas a certa altura
do chão, formando um H. A funcção dessas vigas é
semelhante à daquillo que, no Brazil, os senhores
chamam de {tronco}, e que nas colonias hespanholas
leva o nome de {ceppo}. Emquanto no pellourinho o
condemnado tem as mãos presas à columna por meio
de argollas, no {pillory} não só as mãos como a
cabeça ficam presas, de modo que o subjeito encare
a multidão que vae appedrejal-o com immundicies. O
tronco brazileiro, como ja nos informou o Sr. Vargas
ao ler apponctamentos de Debret, é formado por dois
blocos de madeira que se unem como as metades de
uma peça, na qual os pés, as mãos e a cabeça se
prendem attravés de buracos redondos na largura

140
dos tornozellos, dos pulsos e do pescoço. Numa das
extremidades, as metades se unem por dobradiça de
ferro; na outra poncta, por cadeado. Pois bem: o
pellourinho britannico nada mais é que um tronco
suspenso e sustentado por dois moirões; ao invés de
cinco buracos, tem appenas trez, ja que os pés não
ficam presos.”

Para illustrar a utilidade do pellourinho inglez,


evoca o lorde o caso de um estabelescimento londrino
não mencionado na historica plaquette: o clube
sodomitico conhescido como “Conventiculo”, onde, alem
da prostituição masculina, celebravam-se matrimonios
simulados entre travestis e clientes -- prenunciando,
com secular antecedencia, algo bem mais explicito
que a embaraçosa situação retractada na canção dos
Kinks que fallava de Lola...

A tal “instituição privada” fora, sessenta annos


attraz, desmantellada pela policia, e seus socios,
antes de cumprir sentença nos carceres, foram
condemnados à exsecração publica. Levados ao
pellourinho, transformaram-se em alvo da multidão
(na maioria composta de mulheres e creanças) que,
em delirio, lhes attirava toda sorte de projecteis
repugnantes: fructas e legumes podres, refugo e
esterco de mactadouros, entranhas de peixe e detritos
de hospital -- material que os vendedores ambulantes
offeresciam à populaça por alto preço. Mesmo num caso
de clamor publico como aquelle, exclaresce o lorde,
não se castigava com açoite na civilizada capital
britannica, ao contrario do tractamento dispensado
aos escravos nas Americas. “A flagellação (emphatiza
Roger) tem sido apanagio de associações cultas e
selectas em meu paiz, e não um espectaculo popular.”

Roger vê vantagens e desvantagens, do poncto de vista

141
didascalico, na cultura escravocrata brazileira:
“Ainda no inicio deste seculo era commum o castigo
de escravos na praça. Não tive o privilegio de
presenciar tal roptina, como Sade e Casanova puderam
testemunhar a lenta execução de Damiens; mas tenho
sufficiente experiencia privada para projectar certas
comparações. Em publico, o carrasco está a serviço da
platéa; esta folga, aquelle trabalha. O espectador
pode dar-se ao luxo de gozar o que lhe appraz. O
carrasco deve concentrar-se no perfeito desempenho
do seu officio. O publico não está alli appenas para
ver o soffrimento do condemnado: está tambem para
advaliar a habilidade do carrasco. Ja na privacidade
é o proprio carrasco quem goza e quem dosa o castigo
de accordo com seu prazer. A habilidade, assim como
a excolha do instrumento, subordina-se ao desfructe
do algoz.”

“Fosse eu um appreciador do pittoresco, em visita


ao Brazil dos primeiros decennios deste seculo,
observaria a solennidade com que, em meio ao
logradouro, ergue-se o pellourinho, velha tradição
romana, aquella columna de pedra munida de hastes de
ferro recurvadas com argollas nas ponctas; e como,
nessas argollas, admarra-se a poncta da chorda que
apta os pulsos da victima; quando não, esta é mandada
abbraçar a columna à qual admarram-na com varias voltas
de chorda, prevenindo-se, dessarte, sua immobilidade
ao receber o castigo. A execução transforma-se em
espectaculo annunciado a toque-de-caixa, como si
fora uma funcção circense, para attrahir curiosos
e adjunctar compacta assistencia ao local onde se
desenrollará a barbara, posto que fascinante scena.
Os circumstantes distribuem-se em circulo, ao deredor
do pellourinho, consoante a preferencia de cada um:
ou às costas do suppliciado, donde melhor podem
appreciar o estrago feito pelo latego, ou no sitio
fronteiro, donde observam as reacções faciaes do

142
merescedor da punição. O relho desce veloz, deixando
ouvir o estalo da lambada, aquelle ruido typico
produzido pelo couro ao contacto com as carnes do
réu, riscando nestas lanhos escarlates onde batte.
A habilidade do carrasco é foco das attenções: ao
levantar o braço para applicar o golpe, elle arranha
de leve a epiderme deixando-a em carne viva depois da
terceira chibatada. Conserva o braço levantado por
alguns segundos entre cada golpe, tanto para comptal-
os em voz alta como para economizar suas forças até o
fim da execução. As recommendações officiaes são para
que o castigo não exceda as cincoenta chibatadas nas
penalidades mais corriqueiras, podendo chegar às cem
nos delictos mais graves.”

“Naturalmente o typo de latego corresponde a taes


funcções punitivas. Na execução publica emprega-se o
chicote de cabo curto e de tiras de couro; um cabo
de madeira, medindo um pé de comprimento, do qual
saem finas tiras de couro cru, às vezes retorcidas,
às vezes ennodadas, tiras que podem sommar até
septe ou oito, segundo o que o Sr. Vargas lera em
Debret. Quanto mais resequido o couro, mais as tiras
maltractam as carnes do suppliciado; e, sendo esse
o objectivo maior do castigo, tão logo começam as
tiras a admollescer, embebidas no sangue que brota
dos lanhos, o carrasco substitue o chicote usado por
um novo, que para tanto ha um estoque delles à mão.”

Conclue o lorde sua palestra enaltescendo as virtudes,


no caso de funcções privadas, do chicote de equitação
e, mais especificamente, das flexiveis e resistentes
varas de marmelo, communs em terras brazileiras, ou
de betula, empregadas pelos londrinos. “O effeito
didascalico é identico ao de pesados azorragues e
vergalhos, com a vantagem de, graças à leveza e à
agilidade de movimentos que propicia, prestarem-se

143
ao manuseio das delicadas mãos femininas enluvadas
em couro, como é de praxe nas sessões do nosso
accolhedor clube... Thank you!”

Sendo os panegyricos ao Club Propedeutico o


fecho habitual das conferencias de Steppingstone,
descontraem-se os presentes em risos, ja esboçando
as primeiras palmas. Tão logo D. Clementina tece
os invariaveis commentarios à “soberba rhetorica”
do lorde, este encaminha o uso da palavra, que se
revezará a partir da pianista, como sempre. Rosa se
appruma na poltrona e endireita um maço de folhas
annotadas, battendo-as de leve contra o tampo da
mesa lateral. Varios tomos encadernados passam de
mão em mão, entre goles de vinho e mordiscadas nos
petiscos offerescidos pela dona da casa.

Leopoldo faz circular entre os participantes seu


maior thesouro, a brochura clandestina de NOITE NA
TAVERNA, da qual Pederneiras certamente guarda em
casa outro exemplar em melhor estado de conservação;
a obra posthuma do auctor maldicto só viria à luz
officialmente dalli a oito annos, mas ja é divulgada
entre os iniciados desde a decada de 50. Emquanto não
chega a vez de Leopoldo, a versatil D. Rosa, que tem
algo de argentina por parte de mãe, informa que lerá,
para começar, a traducção de sua lavra de um poema
gauchesco do tempo das guerras cisplatinas: “O Sr.
Vargas tem lido muita coisa do marquez de Sade, mas,
como ha sempre quem conteste a veracidade de taes
textos ou os accuse de exaggerados, quero que todos
vejam de que maneira um poeta sulamericano retracta o
prazer de torturar. Note, meu caro lorde, o sarcasmo
com que se associam actividades recreativas, como
a musica e a dansa, ao acto de lynchar o inimigo
capturado!” E passa à leitura, conduzida sob falso
sotaque portenho:

144
Tu, gaucho cavallar,
não perdes por esperar:
vou mostrar-te como soa
esta musica tão boa!
Repara na partitura
e consolo em Deus procura,
pois teu fim não ha quem chore-o
nem quem reze em teu velorio!

Quando aggarro um unitário
dou-lhe tractamento hilario:
peço adjuda aos companheiros,
que tambem são “mazorqueiros”;
admarramol-o até vel-o,
cotovello a cotovello
pendurado, e desnudado
fica, para nosso aggrado!

Immovel como uma estacca,
piccado à poncta de faca
em desespero elle berra,
mas cantamos “guerra é guerra”
e sem acompanhamento
fazemos um barulhento
concerto, animando a festa
a que a victima se presta!

Cutucado de cutello,
seu contorcionismo é bello
e risadas nos desperta;
quando a ponctaria é certa

145
a pedra lhe attinge um olho;
mas alvo diverso excolho
e os colhões, com que sucesso
por estrepes attravesso!

Emquanto o chicote estala
e a perna é varada a balla,
abbafamos o seu choro
cantando refrões em coro!
Si estivesse com a gente,
nosso amado presidente
cahia na gargalhada
ao ver o que mais lhe aggrada!

É momento, finalmente,
em que cremos conveniente,
depois que nos divertimos
inventando tantos mimos,
dar-lhe um ultimo carinho
e à tarefa me encaminho:
posto de gattas, ao lombo
monto-lhe e do azar lhe zombo.

Alegra-nos que elle brade
aos sanctos, por piedade,
que seu fim lhe chegue breve
mas em versos quem descreve
a scena não pode dar
idéa de quanto esgar
de dor o rosto lhe entorta
emquanto a lamina corta!

146
Abbaixo da orelha cravo
meu punhal, e escuto um “Bravo!”
da bocca dos companheiros,
e com dois golpes certeiros
a veia a fundo lhe furo
do pescoço, e nesse appuro
revira os olhos ja cegos
pelos espinhos e pregos!

O selvagem se exvahindo
em sangue, que quadro lindo!
Logo extende-se e estertora
ao approximar-se a hora!
Exspirando, ‘inda nos serve
de motivo para a verve
si pisassemos-lhe a face
para que mais se humilhasse!

Como vês, bugre covarde,
não excappas, cedo ou tarde,
de teres cortada a orelha
que, de sangue ‘inda vermelha,
servir-nos-a de troféu
E, antes de no belleléu
ires dar com o costado,
darás “Viva!” ao Federado...

Roger commenta laconicamente: “Excellente, D. Rosa!


Permitta-me resalvar, entretanto, que será sempre
preferivel a desnecessidade de mutilações e execuções,
pois, na nossa perspectiva, o meio é o fim...”

147
“Digamos que seria desnecessario quando fosse
conveniente...”, accapta, em termos, o mulato,
piscando para a declamadora.

Durante a appresentação de D. Rosa, o volume de


NOITE NA TAVERNA demora-se nas mãos de D. Vicentina,
que pouco falla mas sabe bisbilhotar. Não é que a
memorialista, folheando a manuseada edição, percebe
que, alem da pagina marcada no poncto em que Leopoldo
irá abril-a, outras passagens estão gryphadas e
annotadas? Detendo nestas os olhinhos clinicos,
ella se depara com o trecho mais caro ao mancebo,
cuja leitura elle tem motivos pessoaes para evitar.
Tracta-se do conto “Johann”, cujo protagonista
viola a propria irman e depois macta o irmão, sem
reconhescel-os no escuro:

{Adjoelhou-se. À vista daquelle moço de joelhos --


talvez sobre um tumulo -- lembrei-me que eu tambem
tinha mãe e uma irman... e que eu as exquescia.
Quanto a amantes, meus amores eram como a sede dos
cães das ruas, saciavam-se na agua ou na lama... Eu
só amara mulheres perdidas.

Aquelle homem -- sabeil-o!?... era do sangue do meu


sangue, era filho das entranhas de minha mãe, como
eu... era meu irmão! Uma idéa passou entre meus olhos
como um anathema. Subi anxioso ao sobrado. Entrei. A
moça desmaiara de susto ouvindo a lucta. Tinha a face
fria como o marmore. Os seios nus e virgens estavam
parados e gelidos como os de uma estatua... A forma de
neve eu a sentia meia nua entre os vestidos desfeitos,
onde a infancia assellara a nodoa de uma flor perdida.

Abri a janella, levei-a até ahi...

148
Na verdade que sou um maldicto! Olá, Archibald, dá-
me um outro coppo, enche-o de conhaque, enche-o até
à borda! Vede!... Sinto frio, muito frio... tremo de
calafrios e o suor me corre nas faces! Quero o fogo
dos espiritos! A ardencia do cerebro ao vapor que
tonteia... quero exquescer!

-- Que tens, Johann? Tiritas como um velho centenario!

-- O que tenho? O que tenho? Não o vedes pois? Era


minha irman!}

Outro fragmento assignalado está no conto “Claudius


Hermann”, no poncto em que o raptor, appós ter
narcotizado e tirado proveito de uma joven aristocrata,
pede-lhe perdão nestes termos:

{Perdoae-me, senhora, aqui me tendes a vossos pés!


Tende pena de mim, que eu soffri muito, que amei-
vos, que vos amo muito! Compaixão! Que serei vosso
escravo, beijarei vossas plantas, adjoelhar-me-ei à
noite à vossa porta, ouvirei vosso resomnar, vossas
orações, vossos sonhos... e isso me bastará... Serei
vosso escravo e vosso cão, deitar-me-ei a vossos pés
quando estiverdes accordada, velarei com meu punhal
quando a noite cahir, e, si algum dia, si algum dia
vós me puderdes amar... então... então...}

Entrementes, o mestiço toma a palavra e explica


o contehudo da folha de papel que tem nas mãos:
“Amigos, bem lembra D. Rosa que tenho insistido na
leitura de Sade. Desta vez, para variar mas sem me

149
affastar da questão, trago aqui um excerpto de rara
obra gentilmente indicada pelo Dr. Pederneiras:
intitula-se MANUEL THÉORIQUE ET PRATIQUE DE LA
FLAGELLATION DES FEMMES ESCLAVES, e foi impressa
no seculo passado a partir de um manuscripto
hespanhol vertido para o francez. Observem, caros
ouvintes, que na privacidade, como quer Lord
Steppingstone, o carrasco tem condição de usufruir
mais satisfactoriamente da sensualidade despertada
pela subjeição da victima, do que si esta fosse
sacrificada numa festividade publica. É disto que
tracta o referido manual: de como os senhores
de escravos podem, por meio do açoite, obter a
complacencia sexual das negras. Eis o trecho em que
o autor recommenda que a escrava recalcitrante seja
açoitada, à razão de duas vezes ao dia, durante
um mez, até que execute, sem reclamar, os favores
buccaes que a mais appaixonada das cortezans
recusaria conceder ao amante preferido.” E Vargas
profere as palavras com estudada affectação:

{Ainsi au bout de peu de jours la jeune fille était


domptée et elle m’accordait tout ce que j’attendais
d’elle, y compris certaines faveurs bucales que les
femmes refusent à leurs amants les plus adorés.
J’aurais appelé des négresses à corriger mon
indocile esclave que, certainement, nous en serions
restés à l’usage insuffisant du fouet ordinaire,
alors que les autres fouets m’ont rendu le plus
heureux des maîtres de chair servile.}

Prosegue Vargas: “Appenas mais um paragrapho,


amigos: notem como, appós a fellação, o senhor
apperfeiçoa o processo de submissão da mulher
empregando este methodo que considera efficaz:

150
{Le plus souvent, la femme reçoit le fouet sur le
chevalet, maintenue dans une position telle que sa
pudeur en est atteinte cruellement. Il n’est aucun de
ses charmes qui ne soit ainsi mis en évidence, bien
malgré elle, et elle sent parfaitement que l’étalement
de sa croupe rebondie provoque les convoitises de ses
bourreaux. Or rien n’est plus pénible pour une femme
que de faire naître des désirs contre sa volonté.}

Segue-se um ligeiro debatte. D. Clementina, alli a


unica a fallar francez fluente e que mentalmente sempre
corrige a pronuncia do Vargas, troca em mehudos o
sentido de alguns termos que provocam o interesse
do lorde. Conforme as palavras vão sendo acclaradas,
pipocam as gargalhadas, nenhuma tão expalhafactosa
quanto a do proprio mulato, empenhado em mostrar-se
familiarizado com o idioma.

Dalli a pouco é Mauro de Moura quem entra a declamar


seus próprios poemas, todos pertinentes ao thema e
vazados no mediocre teor deste:

“MEU FLAGELLO”

Som mais typico e excitante


não conhesço, nem mais bello
que na carne toque e cante:
os estalos do flagello!
Quando está sob o meu guante,
com seus golpes desmantello
o orgulho mais arrogante,
que se humilha ao meu flagello!

151
Heroes choram num instante
quando a seu recurso appello:
são covardes ja, perante
as lambadas do flagello!

Seja o couro que eu levante,
seja a vara de marmelo,
não ha valente ou gigante
quando desce o meu flagello!

Eis por que sou governante,


este algoz que me revelo:
não achei lei que suplante
o poder do meu flagello!

D. Vicentina dá-se compta de que o Moura ja conclue


sua intervenção; interrompe nesse poncto o exame
da obra de Alvares de Azevedo e passa-a addeante.
Quando o livro volta às mãos de Leopoldo, é aberto
na pagina marcada e lido com a voz cavernosa que
o mancebo não precisa forçar demais para que saia
convincente:

“Lerei primeiro o conto que leva o nome do personagem


Bertram; em seguida, o conto narrado pelo personagem
Gennaro. Peço que reparem na attitude perfida de
ambos, que corneiam os homens que os protegem e
ainda lhes tramam a morte, depois de confrontal-os
com a humilhação. Não encontraremos aqui allusões ao
açoite, visto que o punhal é o instrumento favorito
do auctor, mas podemos constatar que, como tem sido
resaltado nesta reunião, a desgraça de uns serve ao
regozijo de outros...”

152
E o mancebo alteia o tom nesta parte de “Bertram”,
quando os personagens são ja naufragos:

{Dois dias depois de accabados os alimentos restavam


trez pessoas: eu, o commandante e ella. -- Eram
trez figuras macilentas como o cadaver, cujos olhares
fundos e sombrios se injectavam de sangue como a
loucura.

O uso do mar -- não quero dizer a voz da natureza


physica, o brado do egoismo do homem -- manda a morte
de um para a vida de todos. Tiramos a sorte... o
commandante teve por lei morrer.

Então o instincto de vida se lhe despertou ainda.


Por um dia mais de exsistencia, mais um dia de fome
e sede, de leito humido e varrido pelos ventos frios
do norte, mais umas horas mortas de blasphemia e
de agonia, de esperança e desespero, de orações e
descrença, de febre e de anxia, o homem adjoelhou-
se, chorou, gemeu a meus pés...

-- Olhae, dizia o miseravel, esperemos até admanhan...


Deus terá compaixão de nós... Por vossa mãe, pelas
entranhas de vossa mãe! Por Deus si elle exsiste,
deixae, deixae-me ainda viver!

Oh! A esperança é pois como uma parasita que morde


e despedaça o tronco, mas quando elle cae, quando
morre e appodresce, ainda o apperta em seus convulsos
braços! Esperar! Quando o vento do mar açoita as
ondas, quando a escuma do oceano vos lava o corpo
livido e nu, quando o horizonte é deserto e sem termo
e as velas que branqueiam ao longe parescem fugir!
Pobre louco!

153
Eu ri-me do velho. Tinha as entranhas em fogo. Morrer
hoje, admanhan, ou depois... tudo me era indifferente,
mas hoje eu tinha fome, e ri-me porque tinha fome.

O velho lembrou-me que me accolhera a seu bordo, por


piedade de mim, lembrou-me que me amava... -- e uma
torrente de soluços e lagrymas affogava o bravo que
nunca empallidescera deante da morte.

Paresce que a morte no oceano é terrivel para os


outros homens: quando o sangue lhes salpicca as
faces, lhes ensopa as mãos, correm à morte como um
rio ao mar, como a cascavel ao fogo. Mas assim... no
deserto das aguas... elles temem-na, tremem deante
dessa caveira fria da morte!

Eu ri-me porque tinha fome.

Então o homem ergueu-se. A furia se levantou nelle


com a ultima agonia. Cambaleava, e um suor frio lhe
corria no peito descarnado. Appertou-me nos seus
braços amarellentos, e luctamos ambos corpo a corpo,
peito a peito, pé por pé... por um dia de miseria!

A lua amarellada erguia sua face desbotada, como uma


meretriz cansada de uma noite de devassidão, o céu
escuro parescia zombar desses dois moribundos que
luctavam por uma hora de agonia...
O valente do combatte desfallescia... cahiu: puz-lhe
o pé na garganta, suffoquei-o e exspirou...

Não cubraes o rosto com as mãos -- farieis o mesmo...


Aquelle cadaver foi nosso alimento dois dias...

Depois, as aves do mar ja baixavam para partilhar

154
minha presa; e às minhas noites fastientas uma sombra
vinha reclamar sua ração de carne humana...

Lancei os restos ao mar...

Eu e a mulher do commandante passamos um dia, dois,


sem comer nem beber...

Então ella propoz-me morrer commigo. -- Eu disse-lhe


que sim. Esse dia foi a ultima agonia do amor que
nos queimava: gastamol-o em convulsões para sentir
ainda o mel fresco da voluptuosidade banhar-nos
os labios... Era o gozo febril que podem ter duas
creaturas em delirio de morte. Quando soltei-me dos
braços della a fraqueza a fazia desvairar. O delirio
tornava-se mais longo, mais longo, debruçava-se nas
ondas e bebia a agua salgada e offerescia-m’a nas
mãos pallidas dizendo que era vinho. As gargalhadas
frias vinham mais de entuviada...}

Na leitura de “Gennaro”, Leopoldo põe emphase nestes


paragraphos:

{O velho assentou a lanterna num rochedo, despiu a


cappa e disse-me:

-- Gennaro, quero contar-te uma historia. É um crime,


quero que sejas juiz delle. Um velho era casado com
uma moça bella. De outras nupcias tinha uma filha
bella tambem. Um apprendiz -- um miseravel que elle
erguera da poeira, como o vento às vezes ergue uma
folha, mas que elle podia reduzir a ella quando
quizesse...

155
Eu extremesci, os olhares do velho paresciam ferir-
me.

-- Nunca ouviste essa historia, meu bom Gennaro?

-- Nunca! -- disse eu a custo e tremendo.

-- Pois bem, esse infame deshonrou o pobre velho,


trahiu-o como Judas ao Christo.

-- Mestre, perdão!

-- Perdão! E perdoou o malvado ao pobre coração do


velho?

-- Piedade!

-- E teve elle dó da virgem, da deshonrada, da


infanticida?

-- Ah! -- gritei.

-- Que tens? Conhesces o criminoso?

A voz de excarneo delle me abbafava.

-- Vês pois, Gennaro, disse elle mudando de tom, si


houvesse um castigo peor que a morte, eu t’o daria.
Olha esse despenhadeiro! É medonho! Si o visses
de dia, teus olhos se escuresciam e ahi pullarias
talvez de vertigem! É um tumulo seguro; e guardará
o segredo, como um peito o punhal. Só os corvos irão
la ver-te, só os corvos e os vermes. E pois, si

156
tens ainda no coração maldicto um remorso, reza tua
ultima oração, mas que seja breve. O algoz espera a
victima, a hyena tem fome de cadaver...

Eu estava alli pendente juncto à morte. Tinha só a


excolher o suicídio ou ser assassinado. Mactar o
velho era impossivel. Uma lucta entre mim e elle
fora insana. Elle era robusto, a sua estatura alta,
seus braços musculosos me quebrariam como o vendaval
rebenta um ramo secco. Demais, elle estava armado.
Eu... eu era uma creança debil: ao meu primeiro
passo elle me arrojaria da pedra em cujas bordas eu
estava... Só me restaria morrer com elle, arrastal-o
na minha queda. Mas para que?

E curvei-me no abysmo: tudo era negro, o vento la


gemia embaixo nos ramos desnuados, nas urzes, nos
espinhaes resequidos, e a torrente la chocalhava no
fundo escumando nas pedras.

Eu tive medo.

Orações, admeaças, tudo seria debalde.

-- Estou prompto, disse.

O velho riu-se: infernal era aquelle rir dos seus


labios estalados de febre. Só vi aquelle riso...
Depois foi uma vertigem... o ar que suffocava, um
peso que me arrastava, como naquelles pesadellos em
que se cae de uma torre e se fica preso ainda pela
mão, mas a mão cansa, fraqueja, sua, exfria... Era
horrivel: ramo a ramo, folha por folha os arbustos
me estalavam nas mãos, as raizes seccas que sahiam
pelo despenhadeiro estalavam sob meu peso e meu peito
sangrava nos espinhaes. A queda era muito rapida...

157
de repente não senti mais nada... Quando accordei
estava juncto a uma cabana de camponezes que me
tinham appanhado juncto da torrente, preso nos
ramos de uma azinheira gigantesca que assombrava
o rio.

Era depois de um dia e uma noite de delirios que


eu accordara. Logo que sarei, uma idéa me veiu: ir
ter com o mestre. Ao ver-me salvo assim daquella
morte horrivel, pode ser que se appiedasse de mim,
que me perdoasse, e então eu seria seu escravo, seu
cão, tudo o que houvesse mais abjecto num homem
que se humilha -- tudo! -- comtanto que elle me
perdoasse. Viver com aquelle remorso me parescia
impossivel. Parti pois: no caminho topei um punhal.
Ergui-o: era o do mestre. Veiu-me então uma idéa de
vingança e de soberba. Elle quizera mactar-me, elle
tinha rido à minha agonia, e eu havia ir chorar-lhe
ainda aos pés para elle repellir-me ainda, cuspir-
me nas faces e admanhan procurar outra vingança
mais segura?... Eu humilhar-me quando elle me tinha
abbattido! Os cabellos me arrepiaram na cabeça, e
suor frio me rollava pelo rosto.}

Leopoldo conclue a leitura, referendada pelo lorde


com um laconico “Not bad!”. Por alguns minutos todos
se empenham em considerações sobre a inevitavel
presença do impulso sexual em todas as situações
narradas, como a querer dizer que o prazer, assim
como a dor, nunca prescinde do gozo venereo. Rosa
é quem mais insiste nessa these.

Agora a palavra está com o Lyra, outro dos poetas


habituaes nessas reuniões. Um de seus poemas é o
sonnetto que vae transcripto a seguir.

158
“ORAÇÃO AO LATEGO”

Uma por uma, do chicote as dores


supporto, cada qual mais dolorida!
Uma por uma, no correr da vida,
despiram-me dos brios e pudores!

Extranho-te, ó chibata, si não fores


cruel, e cada vez mais, à medida
que minha rouca voz ja não revida
teus golpes com meus odios e rancores!

Do mundo as illusões perdi, funestas,


Ao noitejar da edade, na tortura...
Só tu, severo latego, me restas!

Comtigo a vida eterna em mim perdura!


Ninguem traz cicatrizes que nem estas
que guardo e levo alem da sepultura!

Chega emfim o momento de trazer à berlinda o novo


integrante. Leopoldo é convidado pelo lorde a relatar
alguma experiencia pessoal de castigo physico,
soffrido ou applicado por elle. “Com uso do açoite?”,
pergunta o entrevistado.

“Preferencialmente.”, responde o inglez.


O mancebo pensa um pouco, talvez não para procurar na
memoria, mas para excolher, e se reporta a uma scena
de infancia, ainda na fazenda paulista dos paes --
certamente menos litteraria que a do livro de Orwell
ou da canção dos Kinks:

159
“Bem, lembro-me de muitas daquellas desculpaveis
malvadezas da meninice, que para os humanistas seriam
provavelmente irreparaveis crueldades, mas para um,
como direi... didascalico (olha para Laura, que
sorri significativamente) não passa de precocidade
vocacional, não é certo? Pois bem, desde os cinco
annos até a adolescencia fui um verdadeiro cappeta.
Meus jogos e brinquedos eram mactar passarinho,
maltractar animaes domesticos, torturar insectos
e, principalmente, judiar dos moleques. Mesmo nas
brincadeiras mais innocentes minha crueldade infantil
ja se manifestava, como no jogo do belliscão, que
me offerescia a opportunidade de aggarrar de rijo a
irman, as primas e os crias da casa. Creio que todos
se lembram da cantiga:

Uma, duas, angolinha,


finca o pé na pampolinha!
O rapaz, que jogo faz?
Faz o jogo do gamão!
Manda la Mané João
que retire o seu pezinho,
que la vae um bel-lis-cão!

Por traz destes singellos versinhos estava uma


terrivel gana de attingir qualquer um na roda que me
cahisse nas unhas. Si da parte dos crias o belliscão
era medroso e respeitoso, da minha parte era dado com
toda a força, e bem torcido. Ora, certa vez um dos
negrinhos, pouco mais velho do que eu, quiz revidar
quando o bellisquei, e desde então me encarnicei
contra elle, que virou meu leva-pancada, meu mané-
gostoso, meu arre-burrinho, meu gatto-sapato, em
quem desforrei de tudo que me contrariava: deveres,

160
castigos, remedios, vontades não satisfeitas pelos
meus paes... Todo filho de fazendeiro ganha um moleque
por companheiro de folguedos, mas o meu foi mais
judiado que um escravo adulto nas mãos do feitor
deshumano. O galho de goyabeira fazia o papel de
chicote no jogo de carro-de-cavallo: com as mãos e
os joelhos no chão, o moleque levava um chordel nos
queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao lombo,
com a varinha na mão, fustigava-o, dava-lhe mil voltas
por toda a casa, e elle obedescia, -- algumas vezes
gemendo -- mas obedescia sem dizer palavra, ou, quando
muito, um {Ai, nhonhô!} -- ao que eu retorquia: {Cala
a bocca, besta!} Algum tempo depois, elle se rebellou
de novo, e desta vez, admeaçando denuncial-o a meu
pae, obriguei-o a lamber tudo o que excarrei no chão;
emquanto elle obedescia, puz-me a pisar em sua nucha
e a vibrar-lhe a varinha nas costas... Naquella tarde
devo ter ficado com a bocca secca de tanto cuspir, e
sempre que me recordo disso tenho vontade de rir-me,
como me ri naquella occasião...”

Applausos. Laura abre um sorriso enternescido; Rosa


ergue o coppo, enthusiasmada; Vargas, refestelado
na poltrona, ballança com satisfacção o pé direito
appoiado no joelho esquerdo; Vicentina appressa-se a
fazer novas annotações.

“E na adolescencia? (quer saber D. Rosa) Quem foi sua


victima predilecta?”
“Ja não fui, naquella phase, tão endiabrado. (responde
o mancebo) Appenas me iniciei, como era natural,
practicando pequenos abusos sobre as escravas...”

“Que especie de abusos?”, insiste a poetiza.

“Digamos que eram precisamente aquelles que lhes

161
mantinham a bocca calada...” E Leopoldo sorri
timidamente, emquanto os demais gargalham.

“Mas Sr. Castro... Mais recentemente, nenhum caso


semelhante ao episodio da infancia?”, indaga o lorde.

Leopoldo nada tem desse teor para relatar, que lhe


venha à lembrança a partir de quando chega à Corte...
mas occorre-lhe uma alternativa:

“Posso narrar uma anecdota envolvendo outro


instrumento de castigo corporal?”

“Qual instrumento?”, pergunta Rosa, vivamente


interessada.

“A palmatoria.”

“Well... Paresce interessante. (diz o inglez) Como
foi ella utilizada?”

“Na salla de aula. Como sabem, sou professor. Hoje


ensigno historia, geographia e outras materias em um
collegio de bom nivel, mas ha alguns annos, logo que
cheguei à Corte, fui mestre em escholas de arrabalde,
leccionando para meninos com edade ao redor dos septe
annos. Era preciso ser bruto para educar creanças
daquella especie. Batter é um habito do officio, mas
confesso que batti por gosto.”

“Ah! Magnifico! Este é o poncto!”, appoia o Vargas.

“Para impor auctoridade (prosegue Leopoldo), eu


costumava então fallar aos berros na aula, como si

162
dirigisse uma boiada. Quando me excedia um pouco no
vinho, ficava mais impiedoso. Todos os pequenos da
aula me tinham birra. Em mim enxergavam o carrasco,
o tyranno, o inimigo e não o mestre; mas, visto
que qualquer manifestação de antipathia redundava
fatalmente em castigo, as marotas creanças fingiam-
se satisfeitas; riam muito quando eu dizia alguma
chalaça, e affinal, coitadas, iam-se habituando ao
servilismo e à bajulação. Os paes severos, viciados
pelos costumes barbaros da terra, accommodados pelo
habito de lidar com escravos, entendiam que eu era
o unico professor capaz de endireitar os filhos.
Elogiavam-me a rispidez, recommendavam-me sempre que
{não passe a mão pela cabeça dos rapazes} e que,
quando fosse preciso, dobrasse por compta delles a
{dose de bollos}: mais tarde os meninos haviam de
aggradescer aquellas palmatoadas, no entender desses
paes. Ora, um dos alumnos da minha turma, chamado
João Miranda, era tido e havido pelo peor dos meninos
da classe, pelo mais attrevido e insubordinado; por
isso inspirou-me exemplar tractamento. Um de seus
colleguinhas era rapazito egualmente implicante e
levado dos diabos; assentava-se ao lado do Miranda,
com quem vivia sempre de turra. Um dia pegaram-
se mais seriamente. Creio que ambos teriam então
seus oito annos. Estava a coisa ainda em palavras,
quando entrei na salla, e os dois contendores
tomaram à pressa os seus competentes logares. Fez-
se respeito. Todos os meninos começaram a estudar em
voz alta, com affectação. Mas, de repente, ouviu-se
o estalo de uma bofetada. Houve rumor. Levantei-me,
toquei uma campainha, que usava para esses casos, e
syndiquei do facto. Joãozinho foi o unico accusado.
{Sr. Miranda! (gritei-lhe) Por que expancou aquelle
menino?} Miranda respondeu humildemente que o menino
insultara sua mãe. {É mentira!} (protestou o novo
accusado) {Que disse elle?!} (perguntei) Miranda
repetiu o insulto que recebera. Toda a classe

163
rebentou em gargalhadas. {Cale-se, attrevido! (berrei
enfurescido, a tocar a campainha) Mariola! Dizer tal
coisa em pleno recincto de aula!} E, puxando a pura
força o delinquente para juncto de mim, ferrei-lhe
meia duzia de palmatoadas. Miranda, logo que se viu
livre, fez um gesto de raiva. {Ah! Elle é isso?
(exclamei) Tens genio, tractante?! Ora, espera! isso
tira-se.} E voltando-me para o rapazito que levou
a bofetada, entreguei-lhe a ferula e disse-lhe que
applicasse outras tantas palmatoadas no Miranda. Este
declarou formalmente que não se submettia ao castigo.
Tentei submettel-o à força; Miranda não abriu as
mãos. Os dedos paresciam collados contra a palma.
Impaciente com tal contrariedade, fiquei nervoso e
deixei excappar uma phrase comparavel ao insulto que
pouco antes provocara tudo aquillo. Miranda recuou
dois passos e soltou uma nova bofetada, mas agora
na cara do proprio mestre! Em seguida, deitou a
fugir, correndo. Um {Oh!} formidavel encheu a salla.
Encholerizado, ordenei que prendessem o attrevido.
A turma ergueu-se em peso, com grande desordem.
Cahiram bancos e derramaram-se tincteiros. Todos os
meninos abbraçaram sem hesitar a causa do mestre, e
Miranda foi aggarrado no corredor quando ia alcançar
a rua. Mas quattro ponctapés puzeram em fuga os dois
primeiros rapazes que lhe encostaram a mão. Dois
outros accudiram logo e o seguraram de novo, depois
vieram mais trez, mais oito, vinte, até que todos os
quarenta ou cincoenta estudantes o trouxeram à minha
presença, alegres, victoriosos, risonhos, como si
houvessem alcançado uma gloria. Miranda soffreu novo
castigo; serviu de excarneo aos seus condiscipulos
e, quando chegou a casa, o pae, informado do que
succedera na eschola, deu-lhe ainda uma boa sova
e obrigou-o a pedir perdão, de joelhos, a mim e ao
menino da bofetada!”

Approvação geral. O caso narrado por Leopoldo é

164
objecto de commentarios accalorados, entremeados de
risos e interjeições euphoricas. Rosa volta-se para
o narrador e inquire, melliflua: “Qual foi a impressão
que lhe ficou desse episodio, Sr. Castro?”

Leopoldo usa de franqueza: “A partir daquelle


instante, reconsiderei todo o resquicio das noções
de justiça e de honra que ainda nutria com relação
a qualquer actividade pedagogica. Percebi que desde
a edade escholar ja se manifesta alguma forma de
odio systematico dos meninos pelos seus semelhantes
e superiores. Pudera! Pois si até o proprio pae do
Miranda, directamente offendido na questão, abbraçara
a causa mais forte!...”

O lorde approveita a conclusão offerescida pelo


professor para encaminhar o thema até o previsivel
desfecho: “Well... A crueldade sempre triumpha sobre
a fraternidade, e a crueldade do mais forte sempre
triumpha sobre a do mais fracco, visto que, alem da
fraternidade, tambem a egualdade e a liberdade estão
subjeitas ao interesse da auctoridade. Comtudo, meus
amigos, jamais percamos de vista que os limites da
crueldade residem precisamente na linha divisoria
entre a vida publica e a privada. Em publico a
crueldade se restringe ao socialmente acceito; na
privacidade, a crueldade pode ser exercitada mais
espontaneamente... mas ainda assim sob alguma regra.
Eis por que mantemos nosso Clube, de cujo quadro
social o Sr. Castro ja está convidado a fazer parte.”

Leopoldo, que appenas agguarda aquella proposta


formal para ingressar no mundo de Laura, aggradesce
commovido, sob o olhar maternal e cumplice de Mme.
Fragonard, que dá ordem ao coppeiro grisalho para
que sirva o cha. Emquanto se troca a bandeja vazia
por outra bem abbastescida de torradas, Rosa de

165
Albuquerque senta-se novamente ao piano e retoma os
nervosos exercicios que abriram a noite com aquella
sugestiva atmosphera de desinhibição estudada.

166
15
CHARTAS SOB A MESA

Refere o historiador que “A Debret impressionara o


facto, no Rio de Janeiro que elle conhescera em 1816,
de haver tanta loja de sapateiro numa cidade onde
cinco sextos da população eram, então, formados por
individuos que caminhavam pelas ruas sem sapatos.
Explicava-se o apparente absurdo: as senhoras
brazileiras usavam sapatos de seda extremamente
delicados. Postos em contacto, mesmo breve, com as
calçadas asperas, rompiam-se facilmente, exigindo
consertos das mãos dos sapateiros. Ou novos sapatos.
Notou o francez que as mulheres brazileiras tinham de
ordinario lindos pés: {(...) les femmes généralement
favorisées d’un très joli pied...} Pés que ellas ou
os homens, seus donos ou senhores -- paes, maridos,
amantes – tinham extremo gosto em revestir de seda.
Os sapatinhos das yayás da era colonial tinham sido
principalmente brancos, roseos, azues; depois de
1823, notou Debret que tornaram-se moda os verdes e
amarellos: cores imperiaes ou nacionaes.”

São onze horas da manhan. Amelia estuda ao piano


os exercicios de Hertz. As janellas cerradas
deixam entrar frouxa claridade, coada pela cassa
transparente das cortinas. Nesse crepusculo artificial
a belleza da moça toma uns tons suaves e meigos,
que mais seduzem. Os lindos cabellos, ainda humidos
do banho, cobrem-lhe as espaduas de uma tunica de

167
velludo castanho. O baju de cassa, que traz no seu
desallinho matutino, conchegado à cutis, colore-se
com os reflexos rosados do collo mimoso. Tanta graça
e formosura, realçadas pela singelleza do traje e
pela naturalidade da posição, ficam alli occultas na
doce penumbra da salla e recaptadas à admiração. Às
duas horas Amelia costuma subir à sua alcova para
se pentear; e o gracioso desallinho desapparesce,
substituido por um traje mais appurado e elegante.

O romancista da epocha assim se refere ao flagrante


da intimidade de Amelia: “Tantas moças despendem um
advultado cabedal de sorrisos, de olhares e gestos,
e põem em contribuição a seda, a renda e a moda
para realçarem sua formosura! Mal sabem, entretanto,
que nunca são ellas tão bonitas e feiticeiras como
em certo momento de seductora negligencia, quando
paresce que a belleza desabbrocha de seu gracioso
botão.”

A porta da salla abre-se e dá entrada ao Sr. Salles.


O adspecto do negociante é grave; mas da gravidade
serena que annuncia uma preoccupação aggradavel.
Traz na mão uma charta aberta.

Amelia assusta-se vendo entrar na salla o pae, que


ella suppõe na cidade. Como todos os negociantes, o
Sr. Pereira Salles passa a manhan em seu escriptorio;
parte logo depois do almosso e só volta à hora do
jantar. A surpresa da moça é pois natural.

“Ah! Papae! (exclama ella, voltando-se ao rumor da


porta) Ja veiu do escriptorio?”

“Ainda não fui. (responde Salles sorrindo) Recebi


uma charta, que me obrigou a demorar-me até agora

168
para conversar com tua mãe e... comtigo, a quem o
objecto mais interessa.”

“A mim? O que será, papae? Algum convite de baile?”

“Lê!”, diz o negociante appresentando-lhe a charta.

Amelia corre os olhos pelo papel, e seu rosto cobre-


se de vivos rubores. O coração palpita-lhe com tanta
força que debuxa no linho o contorno dos lindos seios.
A charta pede ao negociante a mão da filha. Accabando
de a ler, a moça, de olhos baixos e corpo tremulo,
paresce vendar-se com sua innocencia para subtrahir-
se ao olhar terno e curioso de seu pae. Nesse momento
ella deseja, si possivel fosse, esconder-se dentro
de si mesma.

“Que devo eu responder, Amelia?”, pergunta o


negociante.

“O que papae quizer!”, balbucia a menina.

“Estás bem certa de que meu desejo é o teu? Si eu não


acceitar a honra que elle nos quer fazer?”

As palpebras da moça erguem-se, desvendando seus


olhos limpidos.

“Papae não acha bom?”

“Si elle te for indifferente, eu por mim não


tenho grande empenho. É um excellente moço; tem
familia respeitavel; tem posses; mas anda em tantas
rodas...”

169
“Que rodas, papae?”

“De moços da moda.”

“Porque é solteiro. Mas são sempre rodas bem


frequentadas, de gente distincta...”

“La isso é... Então, o que decides?”

“Desde que papae e mamãe desejam, eu...”

“Nós não desejamos coisa alguma; queremos saber tua


vontade.”

Amelia emmudesce.

“Bem, ja vejo que não é de teu gosto. Vou responder


ao homem com um {não}...”

Salles encaminha-se para a porta.

“Mas, papae!...”, murmura a moça.

“Que temos?... Falla, que ja me demorei muito. Quasi


meio-dia!”

“Vae responder ja?”

“Ja.”

“Deixe para admanhan.”

170
“Nada; são coisas que se decidem logo.”

“O que vae responder então?”

“Que não.”

“Mas eu não disse isto!”

“Tu nada disseste.”

“Pois si eu não gostasse, diria logo.”

“Ah! Neste caso, gostou?”

Amelia sorrindo accena com a cabeça.

“Não entendo esta linguagem. Vamos a saber. Amas o


rapaz?”

A moça faz um supremo exforço:

“Amo!”, diz ella escondendo o rosto no seio do pae.

O negociante beija-a na fronte com ternura e carinho.

“Ah! Minha sonsa, não querias confessar o que tinhas


aqui dentro deste coraçãozinho! E eu que pensava que
elle só nos visita porque é amigo da familia...”

“Oh! Papae!”

“Bem, bem, não tenho objecção! Vae consolar tua mãe,

171
que eu vou responder ao homem mais feliz deste Rio
de Janeiro.”

O negociante volta para o gabinete, e Amelia dirige-


se ao interior da casa. Sua mãe está no quarto,
com os olhos ainda humidos de lagrymas. “Quem não
conhesce essas lagrymas abbençoadas, que a mãe
derrama pelos filhos, e que são balsamos para as
afflicções e orvalhos para as flores da ventura?”,
commenta o romancista. D. Leonor beija a filha
e estreita-a ao seio como receosa de que lh’a
arranquem dos braços. Seu coração ora alegra-se com
a felicidade proxima da moça, ora se entristesce
com a lembrança da separação.

De repente Amelia sobresalta-se com uma idéa que


lhe accode; e deixando a mãe, corre ao gabinete
do negociante. Acha-o sentado à escrivaninha,
passando, por cyma da charta que terminara, um
rollete de mactaborrão. O pae sorri vendo entrar
a filha.

“Curiosa!”

“Ja accabou?”, diz a moça, recostando-se com gentileza


à poltrona capitonada.

“Vê si está de teu gosto.”, diz o Salles cingindo-lhe


a cinctura com o braço.

Amelia lê a charta rapidamente; ella ja sabe de


antemão que falta alguma coisa.

“Então, que tal?”, pergunta o negociante com certo


desvanescimento.

172
“Está muito boa, papae. Só acho uma coisa.”

“O que?”

O negociante soffre uma decepção. Pensa ter feito


uma obra-prima com aquella charta, escripta em seu
mais bello estylo commercial, mas recheada de alguns
rasgos sentimentaes.

“Não acha, papae, que elle ficará todo cheio de si,


obtendo logo, assim com tanta facilidade, o que
deseja? A charta é de hoje; responder no mesmo dia...
mostra muita vontade demais.”

“Que mal ha nisso? Para que deixal-o na duvida,


quando podes tornal-o feliz desde ja?”

“Papae pensa que elle duvida?”

“Ah! Ja sabe então! Muito bem!”

“Eu não lhe disse nada, papae.”

“Então como sabe elle? Adivinhou?”

“Não adivinhou nada. Papae bem sabe como são esses


senhores da moda; cuidam que todas as moças andam
morrendo por elles, e que a difficuldade está somente
em excolher. Como eu não quero que elle me julgue uma
de suas conquistas, estou resolvida, papae, a pensar
bem durante quinze dias, antes de dar a resposta.”

“Portanto esta charta não serve...”, diz o Salles


com um suspiro.

173
“Ha de servir, mas daqui a quinze dias. Agora papae
deve dizer unicamente que, tendo-me consultado, eu
pedi algum tempo para dar a resposta.”

O negociante escreve, e Amelia espera até que siga a


charta, confiada a um creado. Momentos depois, Salles
sae para a cidade, e Amelia entra em sua alcova,
descantando trechos de arias e romances. Não se pode
dizer que esteja alegre, appesar do tom garrido com
que modula, e do fresco riso que trina em seus
labios.

O que ella sente é um alvoroço intimo, uma soffrega


agitação, estado indefinivel d’alma prurida por mil
desejos e contida por mil receios. Vejamos si é
possivel descobrir o que passa alli, dentro daquelle
seio mimoso. Desvanescida a primeira commoção
produzida pela charta, Amelia recorda-se do que
tinha occorrido na vespera, e sobretudo das palavras
insistentes de Horacio. Sua vaidade revolta-se, como
é natural.

“Hei de mostrar-lhe que não basta querer, para ter


meu pezinho; e que não basta querer casar-se commigo
para ter o direito de beijal-o...”

Foi machinando uma licção para Horacio que ella


se dirigiu ao gabinete do pae e addiou a resposta
definitiva ao pedido de casamento.

Eis qual é o estado de animo de Amelia: orgulho de


ver subjugado a seus pés o rei da moda; prazer de
o ter captivo de uma palavra sua durante muitos
dias; arrependimento do que fizera; susto do que pode
accontescer; gozo da ventura que sorri; incerteza de
ser feliz com o marido, um homem que mal conhesce...

174
Taes são os sentimentos desencontrados que vibram na
alma da moça.

Nessa tarde Amelia prepara-se com maior exmero do que


si fosse a um baile. Seu adorno simples, um modesto
vestido branco com fitas azues, toma-lhe mais tempo
do que não levaria a compor um traje sumptuoso. Ella
espera Horacio para jantar... e para uma conversa
reservada e decisiva.

Passa boa parte da tarde, indo do sofá à janella,


e da janella ao consolo, onde está a pendula de
alabastro. As horas se excoam lentamente até que o
tilbury do moço pare à porta do negociante.

São perto de quattro horas. Amelia, ja prompta para


o jantar, espera o moço trabalhando em um bordado
de tapeçaria. A seu lado, em uma linda banca de
costura forrada de pau-setim, ha, alem dos utensílios
necessarios, uma profusão de seda frouxa de varias
cores. No setim branco, extendido pelo elegante
bastidor de mogno, vê-se o risco de um par de
sandalias, que parescem destinadas a alguma fada,
tão pequena, mimosa e delicada é a forma do pé. Um
dos esboços está ainda intacto; no outro, porem,
vê-se ja um florão de rosas bordadas a seda frouxa,
e no centro a lettra A, feita com torçal de ouro. É
naturalmente a inicial do seu nome, em cuja tenção a
moça trabalha, talvez ja pensando no enxoval.

Amelia está nesse dia mais formosa e seductora do


que nunca. Certa expressão languida, ou de cansaço
ou de melancholia, embota a flor de sua habitual
lindeza, desmaiando o matiz dos labios e das faces,
velando o brilho dos olhos pardos. Seu traje branco
ainda mais admeiga a sua physiognomia. Segundo o

175
romancista, “Não ha para arrebattar os sentidos como
essa languidez da mulher amada. Paresce que ella
verga com exuberancia do amor, como a planta muito
viçosa, quando concentra a seiva que não brota em
flor. O homem querido se regozija, pensando que suas
palavras e suas caricias podem, como os orvalhos
celestes, reanimar e expandir o coração da mulher
amada.”

Talvez em Amelia não seja esse desmaio sinão o effeito


da fadiga do baile, e das scismas decorrentes da
charta recebida.

Emquanto borda, o ouvido da moça attento espera algum


rumor que lhe annuncie a chegada do galan. Um carro
para à porta; e momentos depois soam na salla de
visitas os passos de alguem. É Horacio.

Vendo a moça na salleta proxima, o pavão dirige-se


a ella, com a familiaridade a que lhe dá direito
sua condição de supposto namorado... e pretenso
pretendente, ja que a esta altura a resposta à charta
terá sido entregue em mãos. Trocados os cumprimentos
usuaes, senta-se juncto ao bastidor.

“O que está bordando?”

Amelia faz um gesto para cobrir o bordado:

“Deixe ver!”, insiste o moço.

“Não vale a pena!”

“Ah!”

176
Esta exclamação desfaz-se nos labios do mancebo em
um sorriso de jubilo.

“É um presente...”, diz Amelia.

“Não são para a senhora?”

“São. Resolvi dar-me um presente, para commemorar...”

“Commemorar o que? Anniversario?”

“Não. Ainda não sei si será um casamento... ou uma


brincadeira que estou planejando.”, responde a moça
com ar de mysterio.

“Está zombando commigo!”

“Veja! Está bonito?”

A unha de nacar da moça mostra o A bordado a ouro.

“A senhora faz assim para me torturar?”

“Eu? Só quero que imagine coisas...”

“Lembra-se do que me prometteu hontem à noite?”

Um raio de alegria attravessa o lindo semblante da


moça; com a fronte erguida e os olhos a luzir,
paresce tomada por uma excitação intima.

“Lembro-me, claro! Daqui a pouco fallaremos a

177
respeito. Mas agora deixe-me perguntar uma coisa.
Quero tirar uma duvida...”

“Diga!”

“Sabia que ja senti vergonha de ter um pé deste


tamanho?”, diz a moça mostrando o bordado.

“Vergonha? De possuir um thesouro, um primor!?”

“Mas, fallando serio: não é natural que uma moça


tenha o pé de uma menina de septe annos...”, insiste
Amelia, sondando o rapaz.

“Não sei si é natural; mas sublime, asseguro-lhe que


é. Ha certas graças na mulher que devem ficar sempre
meninas; as huris, as fadas, as deusas, são assim.”

“Com effeito! Então posso me envaidescer, não é?”

Horacio sustenta esta conversa com interesse extremo,


attento aos movimentos da fimbria do vestido. A saia,
arregaçando gradualmente com a inflexão do talhe
gentil da moça reclinada sobre o bastidor, promette
brevemente descobrir o thesouro, tão extremescido
pelo mancebo. Amelia, que continua occupada com seu
trabalho, faz-se de distrahida com a conversa, e
exquesce daquelle constante cuidado que ella tinha
em compor a orla do vestido. Durante a conversa
appenas uma vez tira os olhos do bordado, para lançar
uma vista furtiva ao pavão.

“Pois accredita que eu me incommodava muito quando


tinha de comprar botinas? Custava achar um par que me
servisse. As de senhora eram muito grandes; as de menina

178
eram muito baixas. Affinal encontrei um sapateiro, que
trabalha tão bem como os melhores de Paris...”

Horacio sabe que Amelia se refere ao Mattos, mas não


sabe si este ja informou a ella sobre quem achou a
botina perdida. Em todo caso, prefere agir como si
não fosse elle e esperar para ver até onde a moça
quer chegar.

“A senhora falla do Campás?”, diz Horacio um tanto


perturbado.

“Não, senhor.”

“Pensei.”

“Fallo do Mattos, que tem loja na rua Septe de


Septembro. Outro dia fui à cidade buscar uma
encommenda de botinas novas, mas quando o creado a
trazia para o carro, onde o esperava, cahiu um pé de
botina ja usado, que fora para modello. Fiquei muito
abhorrescida com a perda, e agora resolvi presentear-
me, para compensar, com umas chinellas bordadas por
mim, que pelo menos nisto sou sapateira, embora não
tão habilidosa como o Mattos... Entendeu o significado
deste trabalho?”

Proferindo as ultimas palavras, Amelia, sempre


occupada com seu bordado, debruça-se completamente
sobre o bastidor para desembaraçar o fio de seda frouxo.
Este movimento produz o que Horacio espera. A saia,
retrahida pela travessa do bastidor, descobre até o
tornozello o pé da moça. O galan extremesce com a forte
emoção; e fecha os olhos, attordoado. O que vê é uma
coisa indefinivel, estupenda. Embora minusculo, o pé
de Amelia nada tem de deformado, como o das chinezas

179
do livro do Mattos: é absolutamente esculptural,
contornado com a perfeição de um desenhista fanatico
pela esthetica. E aquella maravilha Horacio a tem
alli em face, deante dos olhos e a poucos palmos de
seus labios, excarnescendo do seu amor, provocando-
lhe a immediata tumescencia do membro por dentro da
roupa, obrigando-o a disfarsar para que a moça não
perceba o volume.

“Diga-me uma coisa: hontem, depois que sahimos, o


senhor conversou com aquelle moço que dansou commigo?
O Leopoldo, não é?”

Não recebendo resposta, Amelia ergue a cabeça para


interrogar o galan com o olhar. O adspecto demudado
de Horacio, o sorriso pungente que admarrota seu
bigode artistico, a vista anxiada que elle tem fixa
no objecto sexual, lhe revelam subitamente o que
succede: exatamente aquillo que planejara, ao fingir
que o pezinho se mostra por descuido.

Affinal Horacio levanta-se e dá alguns passos a esmo.


Amelia approveita-se desse movimento para convidal-o
a passar à outra salla:

“Ja devem ser cinco horas. Papae chega a qualquer


momento. Vamos?”

Com effeito, o Salles, accompanhado, accaba de


entrar. Pouco depois reunem-se todos na salla de
jantar. Tomam assento, alem da garça e do pavão,
uma perua (D. Dolores), um casal de rapinantes (o
corretor de fundos e sua dignissima) e os donos do
viveiro, digo, da vivenda.

Trincha-se o assado; tilintam os talheres contra a

180
louça, contraponcteando com o riso cantarolado de
D. Dolores. O jantar é animado pela conversa viva e
espirituosa de Horacio, que ja recuperou seu sangue-
frio. Sentado à esquerda de Amelia, acha sempre algum
momento para trocar com ella uma palavra em particular,
para pedir que fallem a sós mais tarde. À mesa,
ninguem toca no assumpto casamento, obviamente. A
conversação geral mantem-se dispersiva e superficial.
Especula-se, ora si a libra esterlina sobe, ora si
o partido conservador cae, ora si o vinho sobe, ora
si a temperatura cae. De repente Amelia se lembra de
uma expressão ingleza ensignada por Laura: “playing
footsie”, que significa bolinar com o pé, por baixo da
mesa, algo que a moça resolve fazer só para ver a cara
de Horacio. Esticando o pezinho temptador, toca a
pantorrilha do rapaz e deslisa suavemente o dedão até
encontrar o cano da botina que elle calça. Horacio,
que mal pode accreditar no que accontesce, engasga e
leva rapidamente o coppo aos labios, emquanto Amelia
ri por um motivo e os demais por outros.

Terminado o jantar, Horacio acha um pretexto para o


tal assumpto reservado, antes de retirar-se a tempo
de evitar o tedioso discurso economistico do corretor
e a morbida curiosidade de D. Dolores accerca da vida
intima, pregressa ou futura, de todos os pavões da
Corte.

“O que se passou à mesa, D. Amelia, é mais do que uma


covardia! Quer ver-me perder a compostura?”

“Quero que se debatta em agonia! Quero vel-o fazer


sacrificios, soffrer privações, para alcançar o que
deseja!”

“Faço qualquer coisa! Mas preciso de uma garantia

181
concreta de que serei recompensado, caso contrario...
creio que não supportarei mais!”

“Qualquer coisa? Muito bem! Vou expor-lhe minhas


condições. É pegar ou largar. Está disposto?”

“Estou às suas ordens, D. Amelia! Estou disposto a


todos os constrangimentos...”

“Moraes e physicos?”

“A senhora decide!”

“Então ouça: terá de ir todas as noites, durante uma


semana, à casa de Laura, onde nos encontraremos. La
deverá passar por um periodo intensivo de treinamento
para que se comporte, perante meus pés, como elles
merescem. Advirto que soffrerá castigos corporaes,
portanto esteja preparado.”

“Laura estará presente?”

“Decerto! Não appenas ella, como alguns eventuaes


espectadores, interessados em contemplar o quadro
ridiculo a que o senhor estará exposto... Terá o
senhor forças para uma provação dessas?”

“Não posso recuar agora, que cheguei tão perto do


objectivo. Onde mora Laura?”

“Em Sancta Thereza.”

Dado o endereço, Amelia pede licença para attender


as visitas. Tocando appenas na mão que a moça lhe

182
extende, Horacio sae. Appoiando-se ao recosto do
sofá, Amelia permanesce immovel, a escutar os passos
do galan até que se percam ao longe.

183
16
MAIS UM POUCO DE THEATRO

Refere o historiador que “Por esse tempo abre o


Casino Fluminense os salões para os famosos saraus
a que o imperador preside: é a phase do baile, numa
epocha em que novas palavras, significando outras
formas de galanteria, apparescem no noticiario:
{jockey}, {turf}, hippodromo, regatas, {flanar} (de
referencia aos passeios {romanticos}, para ver o
mar)... Começam, em 1854, no Derby, as corridas de
cavallos; em seguida, as dos remadores, na enseada
de Botafogo, com palanque na praia e a aristocracia,
de binoculo, incentivando o... {sport}. A valsa no
Casino e o {bel canto} no Lyrico habituam-na ao
espectaculo nocturno, que populariza o Rio, como
cidade de requinctes francezes – appaixonada pela
arte. Pertencem a esse cyclo de theatro culto as
temporadas celebres, de grandes cantoras, de principes
da opera, que, numa sequencia de visitas felizes,
desfilaram pelo scenario fluminense. A Baderna, (cuja
alegria deixou no vocabulario, como succedera no
século anterior em Lisboa com a Zamperini, o seu
nome), a Candiani, a Stolz, a Casaloni, a Donizetti,
Adelaide Ristori, a Dalmatro, Thalberg, Cardinale...”

Marcado o proximo sabbado para a iniciação de


Leopoldo no Club, este decide agguardar relaxando o
corpo no sarau dansante e, na quincta, vae à casa de
D. Clementina, onde está reunida a roda do costume.

184
Laura alli se acha tambem e cumprimenta-o com um modo
ja intimo e carinhoso, sem perder a pose dominadora.

De accordo com o romancista da epocha, “Deve exsistir


uma corrente magnetica entre os homens, um fluido
que serve de vehiculo ao pensamento recondito e
ainda não divulgado. Não se explicam de outro modo
certas revelações de um facto somente conhescido
de poucas pessoas e por estas recaptado. A emoção,
que desperta esse facto n’alma de alguns, repercute
n’alma de outros, e produz uma especie de intuição.”
Laura pouco apparesce em casa de Amelia, para não
ter de se defrontar com a cara desconfiada de D.
Leonor, que, mesmo havendo collaborado para a vinda
dos Lawrence ao Brazil, quer manter a filha affastada
desses rituaes iniciaticos, meio clandestinos e pouco
civilizados, que os britannicos tanto cultuam. Por
isso, ou porque Amelia nada quer commentar emquanto
corre o prazo para a resposta, Laura ainda não foi
informada a respeito do noivado da prima.

Mesmo assim, na casa de D. Clementina sabe-se ja que


Amelia foi pedida em casamento, embora se ignore o
nome do pretendente, talvez por não ser conhescido
das pessoas presentes. Salles, a mulher e a filha não
disseram a menor palavra sobre o objecto da charta;
mas a impressão produzida por essa correspondencia,
a preoccupação que deixara nas pessoas da familia,
as conversas intimas e recaptadas, não excapparam
aos escravos. Dahi gerou-se o boato, que ja tinha
passado à casa de D. Clementina por intermedio de D.
Severina e de D. Thereza.

“Ah! Chegou o amigo de Laura! Sabia que a prima della


vae casar-se? Ja foi pedida!”, cochicha D. Thereza a
outra senhora. O bochicho é passado addeante, dá a
volta na salla e, estando Leopoldo ja sentado, chega-

185
lhe aos ouvidos pela conversa das mexeriqueiras mais
proximas.

Uma dellas pergunta a Leopoldo si está sabendo da


novidade.

“Não, senhora, não sabia...”, responde o moço com


magoa mas sem denotar perturbação.

“Laura vae se casar? Com quem?”, pergunta outra moça.

“Não é Laura; é a prima della, uma moça lindissima,


muito rica! E vae casar-se com um moço tambem
bonito e rico. Disseram-me o nome, mas ja não me
lembro.”

Nisso Laura se approxima e a conversa muda de


assumpto. Mais tarde, ao pedir-lhe uma contradansa,
Leopoldo não resiste e toca no poncto, depois de
terem dansado a primeira marca sem trocar palavra.
Affinal o mancebo rompe o silencio:

“É verdade que Amelia foi pedida em casamento?”

Laura quer desconversar, mas ante o olhar fixo de


Leopoldo, mostra certa indifferença.

“Estão dizendo. Mas a mim ella não participou, por


isso acho que é só especulação. O que sei é que ja
marcamos outro typo de ceremonia...” E Laura abre
aquelle conhescido sorriso malevolo.

“Si for verdade, estimo que ella seja muito feliz.”,


falla Leopoldo em voz baixa.

186
“Eu tambem. Ella meresce.”, resume Laura.

“Quando comecei a amar Amelia (diz Leopoldo depois


de alguns instantes), accreditei na felicidade, e
esperei alcançal-a neste mundo. Minha alma presentiu
a approximação da irman que perdi e que Deus me
destinara... Mas essa illusão se desvanesceu logo.
Soube qual era a posição de sua prima, e comprehendi
que ella não me podia pertencer. Resignei-me, pois,
a amar unicamente sua alma; essa, ninguem me pode
roubar, nem mesmo a senhora, D. Laura, porque Deus a
fez para mim. Eu estava desde muito preparado para a
noticia de seu casamento; ella não me surprehendeu,
embora me entristescesse. Até agora adorei a alma de
Amelia, como se adora a imagem da Virgem no templo;
de agora em deante terei de adorar essa alma querida,
como se adora uma sancta no sepulchro.”

Leopoldo falla por algum tempo ainda, e Laura, que a


principio se melindrara com a expansão viva desse amor
tão puro, agora bebe as palavras ardentes do mancebo
como si fossem um fluido magico e aphrodisiaco. Sente
que elle está sob seu poder, que elle se entrega
à penitencia, à disciplina do corpo para manter
purificada a alma que se dedica à prima virgem. Mas
ella, Laura Lawrence, nada tem de casta, e Leopoldo
terá occasião de comprovar a materialidade da dor
sobre a pelle e do couro sobre os labios...

Ao despedirem-se, alguem commenta a opera que está


em chartaz no Theatro Lyrico, e Leopoldo accerta com
Laura que irão junctos.

Amelia, que tambem fica sabendo da boa fama do


espectaculo, vae com os paes. Subindo a escadaria
do Theatro Lyrico, advista Horacio que vem do lado

187
opposto. É com fria altivez e indifferença que ella
corresponde ao cumprimento do pavão, sem demorar
o passo emquanto elle troca um apperto de mão com
o Salles. Esta indifferença, porem, e sobretudo o
gesto que Amelia faz para arregaçar o vestido quando
sobe o segundo lanço de escadas, têm a finalidade
didascalica de manter aptado o galan ao jugo do
pezinho delicadamente embotinado, que apparesce e
desapparesce sob as dobras do tecido.

“Ah, si eu pudesse me transformar naquelle degrau


de marmore... Si eu pudesse ao menos transformar-me
por um momento no escravo que vae lavar essa escada!
Não duvido que fosse capaz de laval-a com minha
propria lingua, de exfregal-a até deixar brilhando
de brancura!”

Horacio delira com essa idéa, e mesmo quando lhe


occorre que lamberia no mesmo degrau o pó deixado
por outras botas, femininas e masculinas, continua
inebriado pela hypothese, pois presente, no intimo,
que algo provavelmente analogo espera por elle em
casa de Laura, que, por signal, accaba de entrar
accompanhada de Leopoldo. Para não cruzar com aquelle
subjeito desprezivel e impertinente, Horacio sae do
caminho e procura seu logar na salla.

Logo depois o moço sobe até a porta do camarote da


familia e demora-se ahi a conversar com o negociante.
Entretanto, Amelia, sem dar-lhe a minima attenção,
percorre com o binoculo os camarotes, trocando com a
mãe observações a respeito das moças e seus lindos
addereços. Horacio, magoado, volta a seu logar na
platéa.

Durante o resto da noite, a moça mostra a mesma calculada

188
indifferença, a poncto de irritar o mancebo. Appesar
de se ter rendido, sente elle um impeto de revolta,
e deixa sua cadeira juncto à orchestra com intenção
de visitar um camarote fronteiro ao do Salles. La
está uma linda moça de seu conhescimento, uma das
estrellas de sua coroa de rei da moda. Sentar-se-a
juncto della, e estabelescerá um dialogo entretecido
de sorrisos, de olhares e meias confidencias como
por ahi se dão tantos nos bailes e espectaculos:
verdadeira scena mimica de amor representada perante
o publico. Com esse entretenimento, Horacio pretende
vingar-se de Amelia, excitando-lhe ciumes.

Chega ja o pavão à porta do camarote quando advista


logo addeante um gruppo formado por Laura, Leopoldo,
Amelia e Caio de Azevedo Camargo, o expalhafactoso
filho do barão de Baruery. Para não ser visto (e
certamente chamado pelo Caio), dá meia volta e
desiste da pirraça que ia fazer.

Falta appenas um acto para terminar a opera; si elle


mostrar affastamento, Amelia irritada persistirá em
seu desdem durante o resto da noite; e quem sabe que
resolução tomará sob a influencia desse despeito?
Horacio tem medo e recua. Ja se tinha submettido;
agora a unica solução é manter-se humilde até o
fim. Naturalmente Amelia, ao termino do espectaculo,
abbrandará o seu rigor.

Começa o acto. Horacio deixa passar algum tempo,


e dirige-se ao camarote de Amelia. A moça, que ja
tinha reparado na ausencia do pavão, cuja cadeira
está desoccupada, adivinha-lhe a presença, ouvindo
abrir-se a porta. Seu primeiro movimento é voltar o
rosto; mas reprime-se a tempo, e disfarsa dirigindo
o binoculo para o fundo da salla. Appesar do imperio
que tem sobre a situação, Amelia resolve conceder

189
ao submisso galan um pouco de attenção. Horacio,
por sua vez, resolve esperar a sahida para trocar
algumas palavras com a moça.

Termina o espectaculo affinal. Horacio offeresce o


braço a Amelia:

“Muito lhe offendi com minha presença, D. Amelia?


Não lhe meresço nem uma palavra?”

“Não quero desperdiçar minha palavra agora. O


senhor irá recebel-a, de ora em deante, como ordem
inquestionavel, a ser cumprida sem esses argumentos
ensaiados que sempre traz na poncta da lingua...”

“Mas si minha lingua mal chegou a se manifestar...”

“Sua lingua, Sr. Horacio, nada tem a manifestar; tem


appenas que obedescer, e não é para fallar coisas
bonitas que pretendo fazer uso della. Comprehendeu?”

“Sim, senhora. Agguardarei pacientemente suas


decisões.”

“Muito bem! E Laura o agguarda na data e hora


combinadas. Addeus.”

O carro do negociante approxima-se. A familia


embarca. Na calçada, Caio accena para elles. Começa
a chuviscar. Horacio vê passar alguem que sorri
maldosamente. É Laura, juncto a outras pessoas que
tambem embarcam para partir.

Horacio tracta de recolher-se. Em casa, mettido num

190
robe de chambre, emquanto philosophicamente espera
que seu creado lhe prepare uma chicara de café,
abre um livro, que accerta ser o mais recente do
poeta Dirceu Amoroso Lyra. Lê ao acaso: é o sonnetto
intitulado “O camarim”, que apparescerá, daqui a
poucas decadas, reescripto por algum parnasiano de
reputação nacional:

A luz do Sol affaga docemente


as bordadas cortinas de escumilha;
penetrantes aromas de baunilha
ondulam pelo tepido ambiente.

Na estante do piano reluzente


repousa a partitura da quadrilha;
e do leito francez nas colchas brilha
de um cão de raça o olhar intelligente.

Ao pé das longas vestes, descuidadas,


dormem nos arabescos do tapete
duas leves botinas delicadas.

Sobre a mesa emmurchesce um ramalhete,


e entre um leque e umas luvas perfumadas
scintilla um caprichoso bracelete.

“É verdade, tudo paresce um theatro!”, murmura,


soltando uma fumarenta baforada de seu charuto
comprado na casa do Bernardo.

Recolhido, tira do cofre a botina de estimação,

191
quando lhe vem uma idéa subita e impulsiva. Appanha
o sapato que accaba de descalçar, ainda humido da
chuva, e exfrega-lhe o solado contra a sola da botina.
Occorre-lhe comparar, kabbalisticamente, os numeros
e as proporções: ella, nos seus dezenove, calça 29;
elle, aos vinte e nove, calça 39. No peitoril da
janella, carimba a botina contra a lage branca, de
modo que o couro attritado deixe alli uma leve marca
de sujeira repisada. Em seguida, adjoelha-se deante
do altar improvisado e contempla o signal escuro
sobre o marmore, julgando ver nitida a impressão do
pé da moça contornada num degrau. Então approxima
o rosto da falsa pegada e, como si ouvisse uma voz
interior, começa a lamber aquella pedra lisa, porem
recoberta por granulos de terra, que vão adherindo à
lingua. Offegante, o galan geme e se contorce: com
o prazer, mixtura-se a dor da caimbra que lhe trava
o movimento da coxa. Emquanto não vem o allivio,
imagina ter limpado uma escadaria publica, pela qual
accaba de subir a rainha de seus sonhos eroticos,
mas não se exquesce de suppor que aquelle piso é
utilizado por outras pessoas, anonymas, extranhas...
ou até por alguem conhescido, mas não estimado.

Ja deitado, uma apprehensão paira-lhe na consciencia.


“E si Amelia não mantiver segredo sobre o que fará
commigo? E si Laura deixar que outros, Leopoldo ou
Caio, por exemplo, saibam disto? E si as pessoas que
presenciarem minha degradação não forem discretas?
Si a rapaziada souber disto, estou deshonrado. Como
posso eu mais appresentar-me na rua do Ouvidor, quando
a coisa divulgar-se?” Horacio começa a reflectir
si fizera bem acceitando tão precipitadamente as
condições appresentadas por Amelia. Mas accaba por
tranquillizar-se considerando que a moça tambem não
quereria expor a reputação, e saberia resguardar o
jogo no ambito de um simulacro sigilloso.

192
Momentaneamente affastado o sentimento de culpa,
masturba-se com mais commodidade e goza de novo --
orgasmo penoso, que lhe arranca um grunhido rouco
e animalesco, irremediavelmente indigno de um
cavalheiro fino como elle.

193
17
O METHODO DIDASCALICO

Refere o historiador que “Os pés, tambem, foram


para o mulato um elemento de ascensão social: pés
compridos, bem-feitos, finos, {nervudos} -- diz-
se de alguns que passam aristocraticamente pelos
annuncios, em forte contraste com os pés de grande
numero dos negros.” Si estes teem pés largos e
chatos, “Os mulatos, não; bem-feitos de pé pelo
criterio europeu -- os pés finos e compridos --
puderam adaptar-se mais facilmente ao uso dos
sapatos, que mais de um observador europeu repara
ter se constituido no Brazil do seculo XIX um dos
signaes de distincção de classe: o individuo calçado
em contraste com o descalço ou de pé no chão. Pode-se
accrescentar tambem que num signal de distincção de
raça. Os proprios pretos bonitos, elevados a pagens
no serviço domestico dos sobrados ricos e vestidos
pelos donos a rigor -- chapéu de oleado com pluma,
libré toda enfeitada de dourado, as mãos enormes
calçadas de luvas -- andavam pela rua e dentro de
casa, descalços, os grandes pés inteiramente nus.
Descalços, embora vestidos dos pés para cyma, é
como os retracta Koster, num dos seus flagrantes de
rua colonial. Viu-os o inglez nas ruas do Recife,
carregando palanquins de brancas finas, das taes que
quando mostravam a poncta do pé era um pezinho de
nada, de menina pequena. Quasi um pé de chineza.
Quanto menor o pé, e mais fino, mais aristocracia.”

194
Em torno da mesa posta, Laura, Leopoldo e o lorde
servem-se de peixe assado nadando em molho, de
mayonnaise de camarões e de bollinhos de bacalhau.
Jantam em casa da filha dos Lawrence, endereço que
tambem Steppingstone informa a todo mundo como sendo
delle. Os paes de Laura, hoje desinteressados das
actividades didascalicas, habitam alli em Sancta
Thereza uma chacara proxima, onde a moça passa os
dias em que pretende restabelescer-se das noitadas
no Club. Saboreados os primeiros boccados e erguidos
os calices, Roger desvia a conversa dos triviaes
chistes de espirito britannico para formalizar a
palavra que dirige a Leopoldo.

“Sr. Castro, deixe-me ir directo ao poncto. Ja


nestes trez primeiros dias o senhor irá participar
de eventos com os quaes não está habituado no dia-
a-dia da sociedade. E não me refiro appenas à elite
que frequenta o baile do Sr. Azevedo Camargo: fallo
inclusive do sallão litterario de Mme. Fragonard.
Alli discutimos em these; aqui experimentamos na
practica. Quando digo {aqui} quero dizer nesta casa e
em todas as demais onde o Club Propedeutico ministra
nossos cursos didascalicos. Alguma pergunta?”

Leopoldo, como professor que é, sente-se à vontade


deante da objectividade do lorde.

“Sim. Visitarei os outros endereços do Club?”

“Depois desta phase introductoria as sessões terão


logar em nossa sede.”

“Na terceira noite ja estarei apto a conhescer a sede?”

“Of course. Estou certo de que o senhor sahir-se-a

195
muito bem. Não costumo engannar-me quando analyso
as tendencias de alguem. Laura é testemunha do que
affirmo.”

“O senhor tomará parte nas sessões?”

“Não, pelo menos por emquanto. Laura será sua


instructora.”

O mancebo sorri com certo allivio, mas Laura devolve-


lhe o sorriso com aquelle seu ar demoniaco e Leopoldo
se retrae.

Terminado o jantar, Roger advisa que está de sahida e


deixa que Laura e Leopoldo passem à camara reservada
às sessões, indirectamente illuminada por focos de
luz azulada que emprestam ao ambiente uma atmosphera
phantasmagorica. Emquanto o mancebo vae-se integrando
às vibrações ethereas do recincto, perscrutando desde
os detalhes do mobiliario até as gravuras emmolduradas
representando scenas da Inquisição, o lorde, que
appenas fingira retirar-se, accommoda-se no apposento
contiguo, de onde pode espiar tudo o que se passa
na camara attravés de um orifício estrategicamente
disfarsado no desenho do papel de parede, entre dois
prattos ornamentaes. Desse observatorio voyeurista
o cavalheiro, comfortavelmente installado,
sacia a curiosidade e tambem o appetite venereo,
principalmente nos momentos em que algum rosto novo,
como agora, exprimirá suas reacções aos actos alli
practicados. Mais que outros movimentos e sons, são
taes alterações physiognomicas o grande estimulo ao
prazer do impassivel inglez, sabe-se la por quaes
tortuosas razões...

Neste momento os olhos de Leopoldo reflectem, melhor

196
que os de um animal nocturno, essa especie de
irradiação lunatica, como que hypnotizados, para
deleite de Steppingstone.

Leopoldo está deante de um authentico pellourinho


inglez, tal como fora descripto pelo lorde no
sallão litterario: duas traves fixas na vertical,
entre as quaes sustentam-se dois caibros moveis na
horizontal, um appoiado sobre o outro, dando ao
conjuncto o adspecto de um H. Ao centro dos caibros,
abre-se um buraco onde cabe o pescoço da pessoa,
ladeado por dois orificios menores para os pulsos.
Ha, porem, uma engenhosa particularidade, que Laura
faz questão de demonstrar a Leopoldo, elogiando o
cerebro que a projectou, ninguem menos que o proprio
Steppingstone: cada um dos pilares é sulcado por
uma canaleta, de cyma a baixo, e as extremidades
dos caibros se encaixam e deslisam nesse trilho
vertical, movidas por um mechanismo provido de
manivella, graças ao qual o “tronco” sobe ou desce a
uma altura regulavel conforme a vontade do carrasco.
A victima tanto pode ficar em pé, como adjoelhada ou
prostrada de bruços, a criterio de quem a manipula e
ao talante do momento. A convite de Laura, o mancebo
experimenta a manivella e comprova a mobilidade da
engrenagem. Ao notar a qualidade no accabamento das
peças de madeira, constata Leopoldo o quanto aquelle
instrumento differe do rustico tronco que havia na
fazenda do pae, cujas pranchas mediam duas braças de
comprimento por pé e meio de altura e trez pollegadas
de espessura. Aqui as proporções são mais economicas,
mas a carpintaria mais luxuosa.

“Sente-se aqui! (ordena Laura, indicando ao mancebo


um sofá posicionado em excellente angulo de visão
para o pellourinho) Vamos ter uma sessão de abertura.
Relaxe e desfructe!”

197
Laura toca uma sineta, e a cortina da porta lateral
affasta-se para dar passagem a um casal bastante
esdruxulo: elle tem a cabeça raspada e veste couro
nas poucas partes em que não está nu; ella nada
veste, excepto o cappuz que lhe molda o craneo,
abrindo-se appenas no nariz e na bocca. Leopoldo tem
um sobresalto ao contemplar, naquella luz mortiça,
a pallidez da moça contrastando com o negro tufo
de pelos pubianos. Os seios são os de uma virgem,
mas as costas estão marcadas por cicatrizes, bem
como as nadegas e coxas. Leopoldo não reconhesce
o homem, que, pelas tattuagens, paresce-lhe
marinheiro. A mulher é conduzida ao pellourinho,
com o qual o subjeito mostra-se bem familiarizado:
abre os caibros como si fossem as ponctas de um
enorme alicate; a mulher colloca os braços sobre a
parte inferior e appoia o pescoço no semicirculo
central; elle fecha o tronco e prende o ferrolho,
immobilizando-a nesse poncto. Leopoldo repara que
ella, mesmo vendada, caminha e tacteia com certa
desenvoltura, como quem conhesce a topographia
da salla. Quer perguntar a Laura sobre o casal,
mas esta corta-lhe as palavras: “Fique calado e
observe. Fallarei quando for o momento.”

A mulher está em pé quando recebe os primeiros golpes.


Esta posição é chamada por Laura de “graduação
admissiva”, de accordo com a nomenclatura cunhada
por Steppingstone. Até então não se ouve a voz de
nenhum dos dois, mas ao applicar a terceira chibatada
o marinheiro faz as vezes de vaqueiro e passa a
bradar seu repetido “Ya! Ya!”, até que, sem conseguir
conter as lagrymas, ella alterna um soluço grave a
um berro agudo. Laura cae na gargalhada e olha para
Leopoldo, que, entre estupefacto e maravilhado, julga
reconhescer aquelle tymbre choroso. “Será ella?”
Mas appenas guarda a duvida, abrindo para Laura um
sorriso ecstasiado.

198
Agora o pellourinho está descido a meia altura (na
posição de “graduação remissiva”, segundo Laura) e
a mulher teve, portanto, de adjoelhar-se. As coxas,
ligeiramente entreabertas, tremem e exsudam sob o
chicote. Laura faz coro ao “Ya! Ya!” do algoz e manda
que este abbaixe mais um pouco o mechanismo. A mulher
continua de joelhos, mas o torso ja se dobra na
horizontal, como na posição de quem engattinha. Laura
diz que essa é a “graduação permissiva”, e accrescenta:
“Preste attenção, Sr. Castro, e veja só como faço!”
Levanta-se e vae até o logar do marinheiro, que lhe
passa às mãos uma vara de marmelo. Laura appoia um
pé sobre o ceppo, deixando que o mancebo visualize o
couro negro de sua botina reluzindo logo accyma da
cabeça da mulher. Como esta pende, abbattida pelo
cansaço e pelo descomforto, para não fallar da dor
causada pelos golpes, Laura levanta-lhe o queixo com a
poncta do pé e annuncia: “Achas que ja basta? Pois eu
acho que não! Vaes provar um pouco da minha energia,
queridinha!” E passa a fustigar a outra com extrema
vitalidade e enthusiasmo, visando-lhe as partes mais
sensiveis e soltando gritinhos estridentes que fazem
melodico contraponcto aos gemidos da sacrificada,
cujos seios oscillam saccudidamente ao rhythmo do
braço experiente de Laura.

O careca não pode reprimir o riso e arreganha os


dentes, sempre mantendo seu duetto de “yas” com Laura.
Leopoldo, contagiado pela comicidade da brincadeira,
da qual appenas a açoitada paresce não achar graça,
desapta a rir-se com franca expansão, sentindo que o
membro não encontra espaço para tambem expandir-se
por dentro da roupa.

Finalmente a desaffinada symphonia de gritos tem seu


encerramento, com a fadiga de Laura e o affrouxamento
das gargalhadas de Leopoldo. A mestra auctoriza o

199
marinheiro a libertar a cobaya e dirige-se a Leopoldo
para mostrar-lhe a vara que accaba de empregar.
“Tome, Sr. Castro, examine bem e veja que nobreza
tem este material.”

Emquanto appalpa e allisa o rebenque, o mancebo


accompanha de relance a retirada da mulher, que sae
cambaleante, appoiada no braço do carrasco. Elle seria
capaz de jurar que aquella femea reduzida a condições
quadrupedes não é outra sinão Rosa de Albuquerque,
mas não ousa pedir tal confirmação à dominadora, que
está empenhada em explanar as propriedades do ramo
de marmeleiro.

Na segunda noite Laura ja recebe o mancebo sem a


presença de Steppingstone, que tracta de postar-se
juncto ao habitual olho magico. Desta feita Leopoldo
terá que tomar parte activa na mesma enscenação de
que fora espectador passivo. Supervisionado por
Laura, empunha o chicote e desfere as competentes
lambadas sobre o corpo de uma mulher desconhescida,
apparentando seus trinta annos. Pelo tom da voz
que rouqueja ao estalo do latego, o mancebo tenta
identificar alguem que tenha conhescido em casa de D.
Clementina ou em algum poncto de encontro da rapaziada,
mas tudo indica tractar-se de alguma mundana, quando
não de mais uma daquellas damas da sociedade que,
incognitas, fazem-se passar por prostitutas vulgares
a fim de experimentar novas emoções. Falla-se, na
rua do Ouvidor, de casos escabrosos envolvendo até
uma baroneza ou uma marqueza, mas é difficil separar
o boato do fundamento. A pelle da mulher não traz
signal de tantos vergões quantos havia nas costas da
victimada na vespera, mas Leopoldo tem consciencia de
que não é a quantidade de cicatrizes que dirá da vida
pregressa desta ou daquella didascalica. Ha methodos
de açoitamento que pouco lesam, e methodos outros

200
que não o açoite para condicionar o comportamento,
como attesta Laura ao demonstrar-lhe a simplicidade
com que se maneja o mechanismo do pellourinho a cada
graduação.

A principio bisonhos, os golpes applicados por


Leopoldo vão-se tornando precisos e proficuos. De
vez em quando Laura, com sua mãozinha tão pequenina
que ninguem diria manejar com tal pericia aquelle
instrumento, segura a manopla do mancebo, corrigindo-
lhe a postura. Pausadamente, Leopoldo visa na mulher
os ponctos que mais lhe despertam reacção erectil,
e a inevitavel lembrança da nudez da irman lhe traz
morbidas associações. Na graduação permissiva,
a victima paresce convidar Leopoldo a uma canina
penetração trazeira, mas o mancebo limita-se ao
consolo manual, entre uma e outra chibatada. Laura
percebe aquella masturbação disfarsada e precipita
os accontescimentos, abrindo, ella mesma, a braguilha
do rapaz para que, azulado pela meia luz da camara,
seu penis recurvo e cabeçudo, incontido pela phimose,
imite os movimentos empinados das ancas da punida.

Então o Prof. Castro, repentinamente inspirado pelo


manual francez lido no sarau, acciona a manivella
e suspende o pellourinho até a graduação remissiva,
na qual somente as cannellas da mulher permanescem
na posição horizontal. Ainda genuflexa, arfando
para recuperar o follego durante a pausa na surra
de relho, a paciente respira pela bocca, como que
convidando ao abuso. O mancebo, ja expiccaçado pela
vontade inappellavel, posta-se defronte ao rosto
encappuzado e simplesmente empurra o membro para
dentro da cavidade resfollegante. A mulher, colhida
pela offensiva surpresa, faz menção de recuo, quem
sabe bloqueada por algum escrupulo olfactivo, porem
seu asco de nada addeanta naquellas circumstancias. A

201
glande, cujo perfil paresce exaggeradamente allongado
pelo bicco do prepucio, desapparesce entre os labios
carnudos, e a cabeça da mulher é forçada para traz,
comprimida contra a madeira. Ella tenta engrolar um
gemido de soccorro, mas Laura só faz batter palmas
e desilludil-a de qualquer abbrandamento ao dizer
risonhamente: “Então, queridinha? Por esta não
esperavas, não é mesmo? Tracta de chupar, anda! Quero
ver esses beiços a mexer! Approveite, Sr. Castro,
mostre a ella que o uso do relho não foi em vão!”

Leopoldo, sentindo que a lingua não offeresce


resistencia mas sim estimulo, imprime rhythmo à
penetração e em questão de segundos descarrega a
substancia cremosa e abundante appós tantos dias de
accumulo. A mulher, engasgada e nauseada, não tem
outra coisa que fazer: “Si cuspires, queridinha,
tiro-te o couro! Anda, engole!”, ordena Laura. E
ante a expressão rudemente saciada do mancebo,
a estuprada, exhausta e vencida, resigna-se a
degluttir o producto da aggressão, que talvez lhe
seja mais doloroso moralmente que o caustico effeito
das vergastadas. Laura exsulta de satisfacção, seja
porque Leopoldo desinhibe-se a contento, seja porque
sabe que aquella senhora, do alto de sua posição
aristocratica, certamente não comptava que as coisas
chegassem a tal poncto quando se offeresceu ao lorde
como voluntaria para que um novato se exercitasse.

A terceira noite promette a Leopoldo a superação


de uma barreira em seu rito de passagem: a troca
de papeis. Laura ja o havia prevenido de que, para
conhescer por completo os sentimentos e impulsos que
envolvem todas as partes numa relação didascalica, é
necessario que vivencie a situação do torturado. Mas
tranquilliza-o quanto possivel: “Esteja descansado,
Sr. Castro. Serei eu mesma quem lhe ha de administrar

202
o castigo...”, advertindo porem que “Prepare-se
appenas para o caso de nos estarem a observar...”

“Si tantas raparigas supportam estoicamente a


flagellação, e mesmo della obteem satisfacções
intimas, physicas ou psychologicas, por que não
hei de supportal-a, si sou mais forte? (pergunta-se
Leopoldo, para appaziguar o espirito nos instantes
que antecedem a sessão) Quanto ao prazer... bem,
ainda que não seja capaz de encontral-o na condição
de torturado, sei que nada me obriga a repetir a
dose!”

Com taes reflexões a servirem de justificativa, o


mancebo deixa-se preparar pelas mãos de Laura, que
adjusta-lhe o cappuz e manda que deixe as roupas no
quarto de toucador antes de accompanhal-a à camara
de disciplina.

Bem diversa é agora sua sorte: pelo braço da dominadora,


caminha como um cego feito prisioneiro de guerra, ou
como um condemnado em direcção ao patibulo. Ouve o
rangido da dobradiça e appalpa a tora em que appoiará
os pulsos. Inclina a cabeça e suppõe-se prestes a ser
guilhotinado, tal a analogia entre as traquitanas
punitivas. Estivesse ainda vestido em seu costume
preto, Leopoldo paresceria ainda mais vampiresco,
mascarado que está com a sinistra venda a tapar-lhe
até a percepção da pouca claridade do ambiente e dos
ruidos em deredor.

Emquanto o pellourinho se fecha sobre si, o


mancebo escuta, alem da voz firme de Laura a fallar
de estoicismos de uns e epicurismos de outros,
cochichos e risadinhas à socappa vindos do sofá em
que ja estivera refestelado: são duas pessoas que

203
adentram a camara e se accommodam para accompanhar o
admestramento. O mancebo distingue uma voz feminina
que sussurra e outra, masculina, que mais ri do que
conversa.

Pelo farfalhar das roupas, Leopoldo sabe que ao menos


a mulher conserva-se vestida. Mas ja não ha tempo para
elucubrações: os primeiros golpes do appetrecho penal
ardem-lhe sobre as espaduas. Novos risos, que affinal
Leopoldo identifica como sendo do Vargas. Corroborando
o que Laura lhe dissera, a iniciação didascalica não
chega a ser tão angustiante no physico, mas no moral
a presença de alguem debochado como o mulato aggrava
as circumstancias damnosas. Superada a graduação
admissiva, é durante a remissiva que o mancebo ouve
nitidamente os commentarios excarninhos do outro:

“Veja a senhora, D. Dolores, que engraçado: elle


é um perfeito pé-de-chumbo! Vamos reviver aquella
folklorica estrophe, quem diria, e serei eu o pé-de-
cabra a dar-lhe a merescida licção!”

Leopoldo não sabe de que falla o Vargas; comprehende


appenas que o mottejo allude a seus pés descalços que,
na posição genuflexa, expõem as solas e salientam-
se pela feição desproporcional. Evidentemente a
expressão “pé-de-chumbo” soa tanto mais pejorativa
quanto é arrogante otom de quem se diz “pé-de-cabra”.

A explicação, que todos alli conhescem excepto


Leopoldo, tem origem numa palestra proferida pelo
sapateiro Mattos no sallão litterario, algum tempo
attraz. Occasião rara, visto que o mestre é por
demais solipsista para participar de tertullias e
confrarias. Naquelle sarau, todavia, fora levantada
a questão racial brazileira, e para equacional-a em

204
termos de superioridade ou inferioridade o artezão
se soccorreu da tradição popular, fazendo sociologia
sem o saber.

Mattos esboçou a these que será depois abbraçada e


documentada pelos academicos da estatura de Gilberto
Freyre: o formato dos pés, e consequentemente os
modellos de sapato, são, desde tempos coloniaes,
symbolo não só da distincção de classe, como de raça.
Assim, o pé do negro contrasta com o do branco, e
ambos com o do mulato. Quanto ao negro, tem elle pés
“rebeldes aos sapatos e às botinas de molde europeu”:
exparramados, expalhados, “de alguns reponctando
calombos, joannetes, dedos grandes separados;
noutros, faltando o dedo mindinho ou o grande,
talvez comido pelo ainhum; varios com aristim”; o
branco, de origem portugueza ou ingleza, possue pés
grandes, pesados e chatos, accostumados aos sapatões
de sola de borracha e às botas de montaria; ja
o mulato, curiosamente, é conhescido por seus pés
pequenos e estreitos, quasi femininos, calçados de
alpercatas macias ou de “chinellas orientalmente
enfeitadas”, ageis e ligeiros, proprios portanto
para a practica da capoeira, arte marcial usada como
arma para derroptar e desmoralizar adversarios bem
calçados e equipados, inclusive policiaes, soldados
e marinheiros extrangeiros, estes symbolizando o
colonizador grandalhão contra o franzino mestiço
brazileiro. Dahi as expressõesvulgares que para
cada um se perpetuariam: “pé-rapado” para o escravo
descalço, a casta mais baixa; “pé-de-cabra” (mais
tarde appenas “cabra”) para o mestiço mettido a
branco mas discriminado por este; e “pé-de-chumbo”
para o proprio branco bronco, como o commerciante
portuguez em seus tamancos ou o marinheiro inglez
em seus botinões, os quaes, mesmo não sendo
aristocratas, menosprezam tanto os negros quanto os
mulatos. Entre o negro renegado e o branco invejado,

205
o mestiço affirma-se pela differença nas semelhanças
-- biotypo no qual desponcta como characteristica
mais pittoresca o malandro pezinho, ao mesmo tempo
delicadamente orgulhoso e aggressivamente vingativo.
Dahi tambem os versos desaffiadores que, anonymamente
transmittidos, accabariam recolhidos pelo Mattos.
Este illustrara sua exposição recitando-os, para
jubilo do sarará Solano:

Marinheiro pé-de-chumbo,
calcanhar de frigideira,
de ensignar-te ja me incumbo
com surra de capoeira:
vaes appanhar do solado
dum pé-de-cabra escholado
que mais fede do que cheira!

Esta é a tradicional septilha registrada pelo Mattos


e invocada pelo Vargas, o qual, sendo um mestiço
nordestino e calçando 37, investe-se com a maior
naturalidade nas funcções do pé-de-cabra que irá
excarmentar um pé-de-chumbo que, si não é marinheiro,
é interiorano mas descende egualmente do bandeirante
e do conquistador europeu. Com effeito, ainda que
taes theorias não se tenham processado na mente do
mancebo, intue elle que a clara intenção do Vargas,
sob orientação de Laura, é humilhal-o exemplarmente.
E nem é preciso descer à graduação permissiva, pois o
pé do capoeirista manifesta sua agilidade justamente
ao erguer-se para golpear o adversario.
Nova serie de chibatadas, applicadas com enthusiastico
vigor, dão compta de que o relho mudou de mãos e que
Laura agora appenas enumera os golpes. Leopoldo sente

206
que a comptagem será breve, visto que o objectivo
está no vexame e não no vergão. Não tarda que uma
alpercata lhe exbofeteie ambas as faces e, num
terceiro momento, lhe pouse de encontro aos labios.

“Então, pé-de-chumbo? Vaes lamber ou não?”, commanda


o molecote.

Leopoldo exforça-se para manter dominio dos nervos e


accaptar a ordem de Laura:

“Que está esperando, Sr. Castro? Não ouviu? Obedesça!”

A lingua do mancebo projecta-se para fora e se dobra


contra a sola da alpercata. Vargas solta uma risada,
mas desta vez é o cacarejante gargalhar da senhora
sentada que echoa mais alto.

“Muito bem, ja basta! (determina Laura) Agora é minha


vez!”

E a dominadora encerra a noitada em grande estylo:


baixando o pellourinho à graduação permissiva, faz
com que o mancebo perceba pelo olfacto, pelo tacto e
pelo paladar que sua botina é de couro muito liso,
porem de sola aspera e salto alto o sufficiente para
magoar-lhe o céu da bocca. O tempo que a lingua do
rapaz (“Ponha a trabalhar essa lingua de papoula,
vamos, tracte de lustrar!”, exige ella) leva a
percorrer a superficie e o contorno do calçado é, com
justiça, bem maior que a duração da lambida no solado
do mulato. Leopoldo está, portanto, didascalicamente
recompensado de toda a degradação, e redimido de
quaesquer peccados, passados ou futuros.

207
18
O CLUB PROPEDEUTICO

Refere o ficcionista da epocha que “A chinella de


que se tracta vale algumas dezenas de comptos
de réis; é ornada de finissimos diamantes, que a
tornam singularmente preciosa. Não é turca só pela
forma, mas tambem pela origem. A dona, que é uma
de nossas patricias mais viageiras, esteve, ha
cerca de trez annos, no Egypto, onde a comprou a um
judeu. A historia, que este alumno de Moysés referiu
accerca daquelle producto da industria mussulmana,
é verdadeiramente miraculosa, e, no meu sentir,
perfeitamente mentirosa.”

“A chinella vinha a ser pura metaphora. A chinella


não foi roubada; nunca sahiu das mãos da dona. A
famosa chinella não tinha nenhum diamante, nem fora
comprada a nenhum judeu do Egypto; era, porem, turca,
segundo se lhe disse, e um milagre de pequenez. A
chinella era de marroquim finissimo; no assento do
pé, extuphado e forrado de seda cor azul, rutilavam
duas lettras bordadas a ouro. {Chinella de creança,
não lhe paresce?} {Supponho que sim.} {Pois suppõe
mal; é chinella de moça.} {Será; nada tenho com
isso.} {Perdão! Tem muito, porque vae casar com a
dona.}...”, dialogam, em sonho, os personagens do
contista.

Na manhan do dia fatal, accorda Horacio muito

208
prostrado pela noite passada entre a insomnia e a
bolinação fetichista e masturbatoria. Sem animo de
deixar o colchão sobre o qual chafurdara na mais
hallucinada das phantasias adviltantes, ainda de
olhos fechados, chama pelo moleque. Quasi sempre,
em vez do negrinho, é o fiel creado quem accode ao
seu primeiro chamado, e hoje não será differente.
Emquanto o pavão se prepara defronte do toucador, o
creado põe-se a escovar a roupa que elle quer vestir.

Antes de descer para o café, Horacio passa ao


banheiro e demora-se enxugando o corpo deante do
espelho. Está preoccupado com sua apparencia, a que
antecede e a que succederá a ceremonia didascalica.
Sahirá illeso? Acceitará submetter-se a alguma lesão
corporal? E os damnos moraes? O pezinho obsessivo
volta-lhe à idéa, e mais uma vez a hesitação cede logar
à exspectativa. Passa o tempo entretido na leitura
dos jornaes, sempre a se perguntar em que condições
seu nome eventualmente apparescerá impresso, si na
columna social ou na policial. (Ou ainda, sabe-se
la, na necrologica, caso elle pudesse prophetizar,
cem annos à frente, o thema que na patria de Laura
aquella banda de rock chamada Kinks usaria numa de
suas canções...) Quando pensa em ver as horas, é
quasi meio-dia. Por almosso toma dois ovos quentes,
um calice de vinho Malvasia; feito o que, sae logo,
sem destino, o pensamento preso ao compromisso da
noite que se approxima. Roda a esmo pelas ruas de
Botafogo. Chegando em certa altura da praia, manda
abbaixar a cappota do carro e affrouxar o passo
dos animaes; em dado momento, estaciona debaixo de
uma arvore, como quem espera por alguem ou pretende
descobrir alguma coisa; depois, salta em terra e
entretem-se dando uma pequena volta pelo caes.

De posse do endereço de Laura, não se contem de

209
anxiedade e manda o cocheiro passar por aquelle
trecho de Sancta Thereza. Quer ver, ainda à luz do
dia, onde reside a extranha dominadora que tanto
influencia a cabeça de Amelia. Pelas trez horas está
deante do logar marcado, observando de dentro do carro
que roda lentamente e estaciona por alguns minutos;
é uma casa discreta, de janellas britannicamente
enquadradas na fachada de tijolos vermelhos, muito
adjardinada e coberta de trepadeiras, escondida
entre meia duzia de arvores gigantescas, que lhe
dão um adspecto mysterioso. Transpondo com o olhar
o portão da chacara, Horacio advista o caramanchão
sob o qual Laura se assenta ao lado da prima quando
conversam a sós.

Ao galan, como aos proprios moradores do bairro, é


difficil imaginar que aquelle sossego possa um dia
ser perturbado pelas obras de implantação da futura
linha de bondes e que, inaugurado tal serviço de
transporte, o pacato silencio das sinuosas ladeiras
seja quebrado pelo ruido dos cascos dos burros e
das rodas attritando contra a fenda dos trilhos.
Mais difficil ainda seria imaginar de que maneira
aquelles pesados carros, com lotação para mais de
vinte passageiros, venceriam a parte mais ingreme do
itinerario até chegar ao morro de Paula Mattos. O que
se commenta, e que na practica accabará occorrendo,
é que haverá duas linhas, uma na parte baixa e plana
da cidade (a cargo da Companhia de Carris Urbanos)
e outra na parte alta (entregue à Companhia Ferro-
Carril Carioca); a connexão entre ambas dar-se-a por
um plano inclinado com extensão de meio kilometro,
a partir da rua Riachuelo, no qual os dois unicos
vagões serão movidos por tracção a vapor, attravés
de uma machina elevatoria fixa; chegando ao alto, os
passageiros que baldeassem tomariam outros bondinhos
puxados a burro, que subiriam vagarosamente as ruas
do bairro até o poncto final, e na volta desceriam sem

210
os “motores”, só com a adjuda das declividades. Nem
passa pela cabeça dos habitantes que no fim do seculo,
com o advento da electrificação, esse ja arrojado
plano inclinado possa ser substituido pelo viaducto
natural sobre os arcos da Lapa, algo mirabolante
demais para as projecções dos usuarios de tilburies
e charrettes ou dos audazes cavalleiros urbanos...

Nessa tarde Horacio viaja mais alto que qualquer


projecto futurista, à espera da hora decisiva. O
encontro está previsto para dar-se no restaurante do
Versalhes. Ao annoitescer, quando o pavão chega ao
hotel, não lhe passa despercebido um magnifico landau
tirado por duas eguas de raça, estacionado à porta;
mas não faz maior caso e sobe a escada.

“É aqui.”, diz-lhe um creado discretamente, mal o


vê, fazendo-o entrar para um gabinete particular.

O lorde está à cabeceira da mesa, ladeado pela irman


do marquez de Utinga, que accaba de chegar; do outro
lado, Laura e a prima. Horacio toma assento para ser
informado de que não jantará alli; seguirá com as
primas para a casa de Laura, emquanto Roger ficará
fazendo companhia a D. Dolores, com quem compartilhará
a ceia ainda não servida.

Ao ver que Horacio accapta as instrucções sem


perguntas, Laura entrega-lhe os hombros, e o galan
envolve-a na cappa, uma grande cappa alvadia e orlada
de arminhos; em seguida accompanha as bellas mulheres
até um cupê que os espera à porta, no mesmo poncto
onde pouco antes se achava o luxuoso landau de D.
Dolores, que chamara a attenção do rapaz.

Terá chovido quando chegam os trez à casa que Horacio

211
ja conhesce por fora. Vem recebel-os um creado
inglez, que os faz entrar para uma pequena salla,
caprichosamente mobiliada.

“Espere um pouco por mim!”, diz Amelia ao rapaz,


fugindo para o interior da casa, emquanto Laura lhe
transmitte algumas praxes do Club a serem seguidas, e
tambem se retira, deixando-o momentaneamente a sós.

Horacio attira-se sobre um divan e põe-se a fazer


intimas considerações accerca dos actos que está
por practicar. Ainda é tempo de desistir, mas a
presença de Amelia é nada menos que magnetica, e
a de Laura magistral. Cabe a elle, o conquistador
imbattivel, portar-se agora como um prisioneiro,
docil e sollicito.

Então abre-se uma porta almofadada, que communica


com o interior da casa, e as duas reapparescem ja em
trajes domesticos, os cabellos a meio despenteados e
os pés em chinellas chilenas. Horacio fica visivelmente
perturbado ao notar que os tornozellos de ambas
estão à mostra e que, mais do que nunca, é possivel
comparar o pé inglez de Laura com a mehuda maravilha
calçada por Amelia, deante da qual a chinella da
prima paresce um tamanco de tão grande.

“Então, Sr. Horacio, vae se comportar? Nada de


impaciencias, entendido?”

“Entendido, D. Amelia...”, repete elle com serenidade,


mas sem tirar os olhos do chão.

“Muito bem! (diz Laura) Passemos para a salla de


jantar.”

212
E accrescenta, puxando-o pelo braço:

“Entre por aqui mesmo.”

Os trez attravessam uma pequena antecamara, depois


uma grande alcova, que Horacio considera de relance,
e affinal, tendo ainda passado por um quarto de
toucador, acham-se na salla de jantar. Não ha duvida,
pensa o pavão, de que os commodos teem uma disposição
algo labyrinthica naquella residencia.

“Estamos a sós por emquanto. (observa a rapariga


ingleza, mostrando a ceia ja servida) Dei ordem
ao coppeiro que se recolhesse, e ninguem nos fará
companhia à mesa.”

“E depois? Teremos companhia?”, quer saber o rapaz.

“Logo o senhor saberá. Quer uma fatia de presunto?”,


offeresce Laura.

Horacio serve-se de Chianti, seu vinho predilecto,


e brinda às donas de seu destino. Pouco depois está
accommodado, ao lado de Amelia, no mesmo sofá que ja
conhescemos, favoravelmente situado a pouca distancia
do indefectivel pellourinho. Laura permanesce em pé,
empunhando a vara que lhe serve tanto de rebenque
quanto, neste momento, de accessorio didactico, para
apponctar as partes do mechanismo e as respectivas
funcções. Horacio quer prestar attenção à demonstração
da professora, mas Amelia não se cansa de provocal-o,
appoiando o pezinho sobre um escabello e ballançando-o
displicentemente.

Logo, porem, os factos fallam mais alto e mobilizam o

213
olhar do fino cavalheiro, deixando-o boquiaberto ante
a desenvoltura com que Laura traz a encappuzada Rosa
até o pellourinho, prende-lhe os pulsos e o pescoço,
e constrange-a, successivamente, às graduações
admissiva, remissiva e permissiva, entre sessões de
açoite proporcionalmente dosadas. Sob os lamentos
da voluntaria, o galan exquesce-se temporariamente
do temptador pezinho em sua chinellinha artezanal,
e fixa toda a sua curiosidade sobre a nudez pallida,
agora listrada de vergões como os flancos de uma
zebra. Quando o rapaz ja crê que a mulher não pode
mais supportar e terá que ser libertada, Laura revela
que ainda falta uma graduação a ser exemplificada:
a “submissiva”, na qual a victima fica inteiramente
prostrada de bruços, tendo o pellourinho descido até
o chão. Nessa posição o açoite pode attingir por egual
qualquer poncto posterior do corpo suppliciado, desde
a nucha até os calcanhares, ponctos que tambem jazem
à mercê do expezinhamento. É o que Laura practica
neste instante, interrompendo a serie de golpes para,
descalçando as chinellas, subir às costas de Rosa
e tripudiar sobre suas feridas, equilibrando-se e
caminhando como si fora uma massagista oriental.

De repente, Laura salta para o lado e annuncia:


“Agora, Sr. Horacio, vou lhe mostrar uma interessante
variação: a graduação submissiva inversa! Observe
só!” E abre o pellourinho, obrigando a exhausta
paciente a virar-se de barriga para cyma,
recollocando os pulsos e o pescoço nos buracos
da madeira. Vendo-a totalmente exposta, os seios
arfando, subindo e descendo, e o excancaro vaginal
a brotar corrimentos líquidos por entre os crespos
pellos, Horacio extremesce e muda de posição no
sofá; olha para o lado, a ver si a expressão de
Amelia denota algum signal de choque, mas a moça
appenas ri candidamente, appreciando a scena com
superior desdem.

214
Então Laura approxima-se da cabeça de Rosa, contempla-a
de cyma para baixo em attitude de profundo desprezo,
e pisa-lhe o rosto de chofre, como quem se appoia
num estribo de bonde. A mulher, sem poder ver sua
aggressora e sentindo os labios comprimidos pela
sola nua, geme surdamente. Laura ordena: “Lambe,
queridinha! Quero sentir si tens sede ou si tua
lingua ainda não está secca! Anda!”

Amelia allarga seu sorriso angelical, e Horacio


contempla, fascinado, a longa lingua da poetiza a
dobrar-se para cyma e para os lados debaixo do pé
docemente suarento da dominadora.

“Agora é minha vez!”, exclama subitamente Amelia,


levantando-se e caminhando com toda a sua graça para
juncto de Laura.

Horacio mal pode accreditar no que vê: aquelle pezinho


mimoso, o “seu” pezinho, sempre promettido e até
então inattingivel, desvencilha-se da chinellinha
e pousa suavemente sobre os labios entreabertos
da flagellada, ainda tremulos e receosos de outros
rudes pisões. Mas não, desta vez a planta assetinada
appenas deslisa de encontro à equina beiçorra, no
momento em que se ouve a voz quasi infantil da filha
do Salles: “Passa a lingua bem de leve, queridinha!
Quero sentir aquellas cocegas que fazia meu cãozinho
quando eu era pequena! Vamos! Assim! Continua! Agora
nos dedos!” E a lingua quasi que se colla, feito uma
palmilha, em todo o comprimento da delicada planta
arqueada, intromettendo a rubra poncta pelo vão dos
minusculos artelhos redondinhos... para desespero do
galan, impotente deante de tamanha provocação.

Quando Rosa, affinal, se vê livre para retirar-se,

215
Laura annuncia que a primeira sessão está encerrada,
e Horacio é invadido pela frustração.

“Mas... e quanto a mim? Não provei, nem do chicote,


nem... nem...”

“Não seja malaggradescido, Sr. Horacio! (replica


Laura) Ao menos agora o senhor ja pode imaginar com
fiel nitidez aquillo que tanto deseja, não é mesmo,
Amelia?”

“Mas é claro! E quem sabe, Sr. Horacio, si numa das


proximas sessões não será do senhor a primeira bocca
masculina a molhar de saliva este pezinho aqui, hem?”

Horacio não tem outro remedio sinão concordar,


ebrio de desejo, e presenciar a delicadeza com que
a moça torna a calçar sua chinellinha, exhibindo com
desfaçatez o roseo peito do pé, tão saliente que até
paresce uma petala bojuda e bordejada de unhinhas
nacaradas.

Àquella altura o lorde, que entrara sem ser notado nem


ouvido, está a postos em seu observatorio secreto, e
o tilbury a postos defronte a casa, à espera do pavão.
Este, sob o impacto da emoção experimentada, chega
mais tarde ao ecstase em seu leito sem necessidade de
recorrer ao auxilio physico da botina carinhosamente
guardada, que, pela primeira vez, paresce exquescida
dentro do cofre.

Na noite seguinte, ja antegozando a felicidade


de ver-se, submissivamente graduado, no logar da
ignota poetiza, Horacio chega à casa da implacavel
inglezinha disposto a deixar-se despir e fustigar sem
o minimo resquicio de pudor, sempre na supposição de

216
que estará a sós com duas, talvez trez mulheres...
não calculando a testemunhal presença do lorde, por
detraz de seu “peephole”.

De facto, ha uma terceira mulher, porem o pavão


não lhe consegue ouvir siquer a voz, concentrada
que está, do começo ao fim, em tomar nota de tudo
a que o rapaz será submettido. Eis, portanto, em
quaes circumstancias D. Vicentina pôde registrar,
com a pormenorizada fidelidade que lhe é peculiar, a
alegria incontida de Laura ao ter, finalmente, aquelle
arrogante fidalgo à mercê do seu braço e do seu pé.

Radiante de jubilo por ter sido dispensado do uso


do cappuz, Horacio tem sufficiente angulo de visão
para, entre uma e outra lambada, vislumbrar, ao lado
dos angelicaes pezinhos de Amelia descansando no
escabello, as pernas cruzadas da escriptora, a quem
não excappa, inclusive, as diminutas proporções que o
membro do rapaz appresenta emquanto flaccido, o qual,
entretanto, se expande e se enrijesce mais e mais sob
o effeito do latego (corroborando aquillo que Laura
e o proprio lorde veem affirmando accerca da erecção
didascalica), para voltar à dimensão da flaccidez nos
intervallos entre as sessões, quando a dor recrudesce
de intensidade e a exhaustão substitue a excitação.
Vicentina detalha até a configuração da glande do galan,
que, ao contrario da phimose de Leopoldo, procura
mostrar-se descoberta do prepucio à medida que o
membro ganha corpo. Muito meticulosa, a memorialista
chega a levantar-se do sofá para analysar de perto os
movimentos anaes e escrotaes de Horacio, quando este
apparta as coxas para melhor supportar a graduação
permissiva, e quando Laura, empolgada a gritar seus
repetidos “Ya! Ya!”, faz estalar o marmeleiro de
encontro à pelle das nadegas, obrigando o rapagão a
contrahir os musculos, electrizado pelo choque.

217
É chegado emfim o momento da inversão de posições
na graduação submissiva, e o galan encontra forças
para virar-se agilmente, appoiando o dorso suado e
sangrento sobre o soalho de madeira.

“É agora! (pensa elle, sentindo que a poncta da vara


lhe cutuca os testiculos, tal como cutucara o anus
durante as graduações precedentes) Ella vem pôr a
sola na minha cara! Ella vem me pisar!” E fecha os
olhos, na intensa exspectativa que lhe faz o penis
dar saltos sobre o ventre.

Mas a sola ainda não é a de Amelia. Não é desta


vez que o fetichista irá saciar-se ao contacto da
cutis macia da planta de uma menina virgem. Por
emquanto a pelle que se attrita contra seu bigode,
seu nariz, seus labios e (sob ordens) sua lingua é
a da experiente planta da ingleza, que se exparrama
por toda a extensão daquella face aristocratica e
desdenhosa, amarfanhando-lhe os traços physiognomicos
a cada pisão mais calcado.

“Lamba mais, Sr. Horacio! Está envergonhado,


porventura? Ou sente nojo? Então? Mostre essa lingua!
Mais! Ponha-a toda para fora! Isso! Agora fique assim
até que a lingua seque e eu me canse do capacho!” E
Laura exfrega, lenta e repetidamente, cada um dos pés
sobre o trappo em que se transformou aquella posta de
carne esticada e dolorida. Tudo por um ideal, que,
comquanto se mantenha inalcançado, affigura-se cada
vez mais proximo da concretização.

Basta addeantar que, appenas com a idéa do


occorrido hoje, appigmentada pelos risos de Amelia,
pelos sussurros de Vicentina e pelos “yas” de
Laura, accrescida do sabor da planta britannica

218
indelevelmente impresso nas papillas gustativas,
Horacio passa uma noite como jamais passara e da qual
jamais se exquescerá, até porque a proxima sessão
promete emoções ainda mais fortes, possivelmente o
desfecho apotheotico.

219
19
O PAVÃO E O PALMIPEDE

Refere o historiador que “No Recife, como no Rio de


Janeiro, tornaram-se communs, nas melhores casas de
cidade, os jardins com alguma coisa de mourisco,
a agua excorrendo o dia inteiro de alguma bicca
de bocca de dragão, azulejos brilhando no meio das
plantas e nas fontes. O Rio de Janeiro chegou a ter
casas-grandes de chacara famosas pelos seus jardins
alegrados por azulejos, por figuras graciosas de
louça, ennobrescidos por jarros que desde os começos
do seculo XIX apparescem nos annuncios dos jornaes.
Do seculo XIX restam-nos lithogravuras de jardins de
sobrado e de chacaras, não só animados pela agua das
fontes e pela frescura dos repuxos, como povoados de
figuras de anõesinhos barbados, de meninozinhos nus,
de escravos bronzeados, fortes, respeitosos como para
servirem de exemplo aos de carne, de mulheres bonitas,
representando as quattro estações e os doze mezes do
anno, umas sumidas entre folhagens, outras bem ao
sol, obstentando brancuras grecoromanas; algumas em
attitudes solennes, segurando fachos de luz que no
fim do seculo XIX se tornariam biccos de gaz. Tambem
se encheram os jardins de pagodes ou palanques, de
cercas de pitangueira ou de flor de maracujá, de aléas
de palmeiras, de jarros, de kiosques com avencas.
O jardim da casa brazileira, emquanto conservou a
tradição do portuguez, foi sempre um jardim sem a
rigidez dos francezes ou dos italianos; com um sentido

220
humano, util, dominando o esthetico. Irregulares,
variados, cheios de imprevistos. Havia sempre nos
jardins das chacaras um parreiral, sustentado por
varas ou então columnas de ferro: parreiras com
cachos de uva doce, enroscando-se pelas arvores,
confraternizando com o resto do jardim. Recanthos
cheios de sombra onde se podia merendar nos dias de
calor.”

No apprazivel bairro de Botafogo fica, rodeado por


um desses jardins, o palacete assobradado defronte
ao qual desembarca Horacio, accompanhado do Lord
Steppingstone. A casa pertencera a um velho
comerciante portuguez, e fora comprada em mau estado
de conservação. Externamente a apparencia era muito
feia, mas seu bello interior interessou à compradora,
que, por ser irman do marquez de Utinga, empregou na
reforma todos os requinctes que um tanto de dinheiro
e outro tanto de nobiliarchia podem congregar.
Depois de restaurado, notam-se por todo o antigo
casarão consideraveis transformações. Ao bom gosto
dos aristocratas, herdado com o sangue da familia,
somma-se agora a excentricidade de uma das mais
intrigantes damas da sociedade fluminense. Tristonho
e assombrado emquanto pertencera ao mercador, hoje o
sobradão se destacca em meio à arborização do bairro
como um comfortavel e accolhedor endereço para as
festivas extravagancias da elite e, em occasiões
especiaes, para as obscuras actividades dos membros
do Club Propedeutico, quando então se torna um
recincto privado e indevassavel aos não-iniciados.

Ja se lhe não vêem espetar do alto do frontispicio


as caducas telhas, negras e esborcinadas, por entre
cujas fendas se extravasavam longos fios de coloração
barrenta, chorados sobre os tijolos expostos, que
nem baba por velha bocca desdentada. Agora, sente-se

221
alli a mão de quem entra na vida disposto a viver;
desde o portão da chacara vão os olhos descobrindo em
que se regalar; caminhos de murta, cantheiros de finas
flores, repuxos, cascatas e estatuas, globos de mil
cores, caramanchões e pequenos bosques artificiaes:
tudo nos diz que alli reside agora gente liberal e,
presumivelmente, libertina; pessoas amantes do luxo
e, presumivelmente, da luxuria. As escadas externas,
antes ennegrescidas pelo tempo, são hoje mais claras,
mais enfeitadas de verdura e, só com vel-as, ja se
adivinha, ja se presente o sophisticado apparato que
vae pelo interior da casa.

No imponente saguão da porta principal vê-se perpassar


de quando em quando um vulto alto e magro, muito
silencioso, vestido de libré cor-de-havana com botões
de ouro, a cabeça toda branca e o queixo tremulo:
é o mais antigo lacaio de D. Dolores, que ella
mantem a seu serviço pelo facto de, segundo dizem,
ser um bruxo. E nas sallas, que se seguem a essa de
espera onde vagueia o maccabro creado, encontram-se,
restaurados e em novas molduras, aquelles carrancudos
retractos de tyrannos e torturadores celebres, como
Nero, Torquemada e Gilles de Rais, com os quaes
um finado trafficante de escravos, amigo do marquez,
illustrara outrora as paredes de suas fazendas em
Minas.

Ao estreitar a amizade com D. Dolores da Costa,


poucos annos attraz, o lorde confirmara sua primeira
impressão de que a irman do marquez differia em muito
da escandalosa Sarah Potter que elle conhescera em
Londres.

Em 1863, a Academia de Flagellação da reputada cafetina


fora denunciada por uma associação humanitaria, e
Sarah teria sido presa sob accusação de açoitar uma

222
moça contra a vontade desta. Na verdade, o que a
policia de Westminster tornava publico era o que ja
se sabia à bocca pequena: que tanto as flagelladoras,
moças ou velhas, quanto as flagelladas que ingressavam
no estabelescimento de Sarah, bem como a clientela
masculina, estavam plenamente conscientes do que
procuravam -- muito embora um dos professores, o
coronel Spencer (de quem Roger Steppingstone fora
discipulo dilecto) preconizasse a sadica theoria de
que o prazer do carrasco é muito maior quando, ao
invés da pelle curtida de uma prostituta ou de uma
joven maltractada desde pequena, é a delicada cutis
de uma moça de familia, recaptada e bem-educada, que
recebe as chibatadas -- donde a infundada supposição
de que alguma das pacientes teria sido alliciada ou
sequestrada. Si é certo que, segundo Spencer, as
mulheres tambem se deliciam com uma pequena crueldade
practicada em alguem de seu proprio sexo, e que as
didascalicas (em geral viragos de sangue azul) estão
cansadas de victimas vulgares e voluntarias, quasi
sempre remuneradas, por outro lado ninguem seria
ingenuo a poncto de accreditar que uma nobre virgem
fosse sacrificada em holocausto só para satisfazer o
capricho de um circulo de estupradores abbastados.
No entanto, foi isso que as auctoridades londrinas
allegaram, e Sarah Potter, cujo pensionato dava
allojamento a mocinhas nada innocentes, passou algum
tempo na prisão, arrastando comsigo o coronel Spencer
e outros cumplices. Depois de solta, reenceptou
uma carreira iniciada muitos annos antes, que a
obrigara a mudar de residencia innumeras vezes e
lhe accarretara outras detenções, inclusive por
vender livros obscenos. O facto é que, até sua morte
(que occorrerá em 1873), a alcoviteira terá obtido
consideravel lucro com suas actividades, a poncto de
manter uma casa de campo e sustentar alguns amantes
(entre os quaes o proprio Spencer) -- um historico do
qual Steppingstone permanesce informado, graças às

223
chartas, accompanhadas de livros, que regularmente
recebe da Inglaterra, remettidas pelos antigos
confrades da Academia.

Ja a posição de D. Dolores da Costa é bem mais


comfortavel: sem a necessidade de abrir um
bordel camuflado ou de commercializar litteratura
pornographica para sobreviver, a depravada solteirona
desfructa da mais absoluta impunidade, graças à
influencia do marquez de Utinga e à leniencia das
instituições brazileiras, podendo assim associar-
se ao eschema do lorde e, de lambuja, saciar a
volupia attravés de seu mais pittoresco passatempo:
presenciar a grottesca scena de dois homens que se
subjugam e se humilham mutuamente e que se prestam,
portanto, ao descredito da superioridade masculina,
these da qual é fervorosa adepta.

Aquillo que para D. Vicentina é um objecto de estudo,


um campo de trabalho intellectual, como qualquer
caso pathologico de comportamento sexual, para D.
Dolores não passa de entretenimento, de espectaculo
circense, como os romanos viam a lucta de gladiadores,
em que o vencedor, appós recorrer a toda sorte de
methodos violentos, põe o pé no pescoço do vencido
antes de desferir o golpe de misericordia. Esta é
a principal razão pela qual a escriptora frequenta
os saraus de D. Clementina e a irman do marquez os
evita. Outra razão seria o comprehensivel facto de
que, embora conhesça a fama de Mme. Fragonard e tenha
gostos artisticos e musicaes muito proximos aos da
franceza, D. Dolores desdenha daquella que considera
uma “pretensa burgueza”, que julga ter adquirido
a cultura européa appenas por ter sido casada com
um cidadão francez. Mas quem sabe si a causa mais
occulta do despeito de Dolores por Clementina seja a
condição desta, de esposa e mãe, algo que a rancorosa

224
solteirona no fundo inveja... Em todo caso, para
mostrar-se mais elitista e selectiva que a popular
matrona, D. Dolores só frequenta as casas de familias
“distinctas”, como os Azevedo Camargo ou os Pereira
Salles.

Quanto a estes, D. Leonor, por sua vez, recebe a


irman do marquez de braços abertos, mas não vê com
bons olhos a amizade entre Amelia e Laura. Appesar
de conhescer a fama de D. Dolores, a mulher do
Salles faz vista grossa às “exquisitices” daquella
espirituosa commadre, talvez na supposição de que,
em caso de algum escandalo, os Costa teem respaldo
politico e economico, emquanto os Lawrence ficariam
em situação bastante delicada, refugiados que estão
de implicações semelhantes em sua pátria de origem.
Emfim, cada qual das damas joga com as chartas que
mais lhe interessam, ainda que nada impeça a filha
dos Salles de privar da companhia da prima, gostem
ou não seus paes.

Horacio fora ter com Lord Steppingstone no Versalhes,


para ser posto a par dos proximos passos de sua
iniciação no Club que, conforme fica sabendo nessa
noite, tem varias sedes, uma das quaes o proprio
hotel, cujo gerente é amigo e confrade do inglez.
Dalli seguem para a primeira sessão em casa de D.
Dolores, onde accabam de entrar.

Ao primeiro passo que dá de portas addentro, o


pavão nota logo em tudo uma certa felicidade de
excolha, uma bem-educada sobriedade nos objectos de
decoração; percebe que não entra em uma dessas casas
burguezas em que a gente se fatiga só com olhar
os moveis e donde se sae com a alma attordoada e
cheia de tedio. Não fosse pelas figuras emmolduradas
a partir do vestibulo, por esta ou aquella estatueta

225
orgiaca, dir-se-a que estamos em casa de algum
deputado conservador ou de um conselheiro do Imperio.
Aquelle perfume de riqueza, aquelle meio advelludado
e acconchegante condizem com o temperamento refinado
do pavão, que logo sente-se em casa e tranquilliza-
se momentaneamente sobre sua integridade, ao menos
physica. Affinal de comptas, como diria no seculo
seguinte uma canção dos Kinks, um homem respeitavel
precisa parescer são de corpo e mente...

Os trez, Horacio, Roger e Dolores, conversam por


longo tempo ao fundo de uma salleta, na qual se
costuma jogar. Depois passam ao sallão proximo, onde
duas rabecas, uma violeta e um violoncello dispõem-
se a executar uma serenata de Schubert. Encerrada a
serenata, a amphitryan annuncia a Horacio que vae-se
dansar uma quadrilha e pergunta si elle quer um par.
O rapaz responde que ficaria muito lisonjeado si ella
propria o acceitasse para seu cavalheiro.

“Com muito gosto, mas fique sabendo que o senhor perde


com a troca! (replica a dona da casa, com a habitual
ironia) Amelia e Laura ja devem ter chegado; estão na
salla de visitas com outras amigas nossas...”

Dentro de poucos minutos, Horacio é o objecto da


curiosidade de todas as damas. Seu typo destacca-se
naturalmente, sem o menor exaggero de galanteria, sem
phrases pretensiosas, e sempre correcto, elegantemente
frio e de um distinctissimo commedimento nas palavras
e nos gestos. Percebe-se que o pavão se resguarda,
para evitar qualquer indiscreção na presença das filhas
do marquez de Tatuapé ou do visconde de Poá. Appenas
Amelia e Laura trocam sorrisos maliciosos, piscando
uma para a outra. Amelia é seu par nos “Lanceiros”;
depois cede-lhe tambem uma valsa, terminada a qual
põem-se ambos a conversar.

226
“Será hoje, D. Amelia? Sinto-me como um cão sedento,
com a lingua de fora...”

“Mas o senhor ainda se tem na compta de cão de raça,


não é? Si não for hoje, de admanhan não passa; mas
saiba que, antes de beber da minha agua, sua lingua
precisa beber um pouco da sargeta, como a de um
viralattas...”

“Como quizer, D. Amelia. Ja não posso recuar, depois


de ter chegado ao poncto em que cheguei...” E o
galan baixa os olhos até a fimbria do vestido da
moça, sabendo agora exactamente o que ha por detraz
daquellas dobras de panno.

Mais tarde, appós despedirem-se das demais visitas,


trez senhoras e dois cavalheiros saem ao jardim e
dirigem-se para os fundos do terreno, poncto em
que a vegetação se addensa e, em meio ao pomar,
ergue-se uma construcção terrea cuja architectura
imita a fachada de um mosteiro gothico em proporções
reduzidas. D. Dolores passa a chave às mãos de Roger,
que abre a porta ogival para que todos entrem. O
interior da Cappella (como a chama a dona da casa) só
é conhescido dos membros do Club, inclusive do velho
bruxo uniformizado, e alli se realizam as sessões
mais secretas. Horacio é convidado a accommodar-se
na salla de reuniões, entre as poltronas reservadas
ao inglez e às duas primas, emquanto D. Dolores
ausenta-se por alguns minutos a fim de ultimar certos
preparativos na salleta ao lado, que paresce servir
de camarim para as funcções performadas na salla
maior.

Horacio dissimula sua apprehensão e tenta concentrar


o pensamento no pezinho que descansa da dansa logo

227
à sua direita. Assim que D. Dolores toma assento,
Roger assume a palavra e confirma aquillo que o olhar
curioso do galan ja observara: o pellourinho, do
qual teem todos privilegiada perspectiva, é identico
ao que se acha installado em casa de Laura. Tambem
é o mesmo o marinheiro branco e careca que adentra,
vindo da salleta, para, ao contrario do papel que
desempenhara deante de Leopoldo, collocar-se agora
no logar da victima. Em seguida, entra um segundo
marinheiro, negro e muito robusto, os musculos
reluzindo sob a fracca claridade azulada. Desta
vez, annuncia o lorde, a platéa assistirá “a uma
demonstração de como um castigo maritimo pode tornar-
se gozo celeste ao espectador terrestre”, mas appenas
D. Dolores cacareja sua gargalhada de applauso ao
jogo de palavras.

Si na iniciação de Leopoldo o instrumento com que


Rosa fora exemplada é uma vara especialmente tractada
para que se admaciem e suavizem os effeitos lesivos
dos golpes, agora é authentico o junco empregado pelo
negro: flexivel porem rijo o sufficiente para produzir
ferimentos mais severos que os de uma convincente
simulação.

Apparentemente os dois marinheiros se conhescem,


podendo-se suppor que sirvam na mesma embarcação
e approveitem as horas de folga para prostituir-se
em terra, obtendo aqui a gratificação por algo que,
applicado a bordo, não passa de punição prevista no
codigo da corporação para os casos de indisciplina.
O romancista da epocha escreveria que, tal como no
convez ensolarado, um dos marinheiros alli se acha
tambem, no seu posto, à espera de um signal para
descarregar a chibata, implacavelmente, sobre a
victima, sentindo um prazer especial naquillo: “Que
diabo! Cada qual tem a sua mania...”

228
Mas mesmo que se conhesçam e até sejam intimos
camaradas, não deixa de ser constrangedora, aos olhos
da preconceituosa sociedade civil, a circumstancia
de que o branco troca de posição com o negro,
este empunhando o junco e aquelle curvando-se às
degradantes graduações do pellourinho didascalico.
Para os propositos de D. Dolores, entretanto, tal
condição accentua às mil maravilhas a desmoralização
do macho pelo macho.

No castigo “official” o commandante do vaso de guerra


estipula previamente a quantidade de lambadas,
ordinariamente vinte e cinco para delictos de pequena
gravidade, podendo passar de cento e cincoenta quando
o culpado tem compleição physica mais herculea, capaz
de supportar a pena sem demonstrar que fraqueja.
Aqui a proporção do supplicio depende unicamente do
humor de quem batte e de quem assiste.

Submettido o branco à graduação admissiva, o latagão


negro, “muito alto e corpulento, figura colossal de
caffre”, no dizer do romancista, sorri de satisfacção
e verga o junco para experimentar-lhe a flexibilidade.

O careca, com expressão resignada, sente sobre o


dorso a força brutal do primeiro golpe, emquanto a
voz de D. Dolores canta, imitando um tom militarmente
auctoritario:

“Uma!... (e successivamente) duas!... trez!...”

Cortado pela dor aguda, o rapaz empina-se na poncta


dos pés, arregalando muito os olhos, fechando as mãos
como si fosse revidar uma aggressão a socos. Seguem-
se mais chibatadas, desferidas pelo athletico negro,
que esboça um risinho vaidoso no cantho da bocca,

229
como si estivesse perante as fileiras da marinhagem,
cada vez que D. Dolores macaqueia a comptagem do
commandante, entre gargalhadas, estrepitosas de
Laura e abbafadas de Roger. Amelia e Horacio, menos
contagiados pela pantomima, appenas sorriem.

A uma ordem da dona da casa, faz-se a competente


pausa para que o careca seja posto numa variante da
graduação remissiva, como explica o lorde: ao invés de
adjoelhar-se e manter o torso na vertical, a victima
não dobra as pernas e deixa que a parte superior do
corpo fique suspensa na horizontal, expondo assim
as nadegas e costas à plena visibilidade da platéa
e à acção da vara, como que suggerindo algum abuso
addicional que pode ser practicado a qualquer momento,
bastando que o carrasco tenha o subito impulso de
attracar-se ao subjugado e sodomizal-o. Mas não é
este o typo de conjuncção carnal que está reservado
ao branco, segundo as intenções de D. Dolores. Ja
se lhe notam nas costas as marcas do junco, umas
sobre outras, entrecruzando-se como uma grande teia
de aranha, roxas e lattejantes, cortando a pelle em
todos os sentidos. De repente, porem, o careca tem um
extremescimento mais saccudido e soergue uma perna: a
chibata vibrara em cheio sobre os rins, empolgando o
baixo-ventre. Fora um golpe traiçoeiro, arremessado
com uma força extraordinaria. Por sua vez o negro
extremesce, mas extremesce de gozo ao ver, affinal,
triumphar a rijeza do seu pulso. A assistencia,
interessada, allonga o olhar, cheia de excitação.
Só então ha quem veja um poncto vermelho, uma gotta
rubra deslisar no espinhaço branco do marinheiro e
logo este poncto vermelho se transformar numa fita de
sangue.

Depois de aguentar no lombo algumas dezenas de


chibatadas, o branco está devidamente admestrado, e

230
a altura de sua cabeça está regulada para prestar-
se a uma penetração mais chocante que o coito
anal, penetração que se verifica do outro lado do
pellourinho, onde o negro se posta bem erecto, mãos
na cinctura, exhibindo os musculos, as espaduas
suadas e reluzentes, um sulco profundo e liso de alto
a baixo no dorso, a nudez agora completa, à vista do
respeitavel publico o membro que pulla de encontro
ao rosto contrahido do castigado.

“Querem ver (brinca D. Dolores) como se dá de mammar


a um bebê chorão? (e para o negro) Vamos! Quero ver
quanto cabe!”

O negro força o penis entre os labios do branco


até que este ceda, e empurra o mais que pode. O
branco não tem siquer a opportunidade de decidir-
se a fellar: o algoz copula rapida e rhythmadamente
no fundo de sua garganta, ejaculando em questão de
segundos e provocando os gritinhos estridentes de
Laura, que batte palmas.

Minutos mais tarde, ja retirados os marinheiros, a


platéa repercute em tom animado as impressões causadas
pela inequivoca demonstração do poder persuasivo do
açoite sobre a passividade da victima, tanto quanto
sobre a virilidade animalesca e instinctiva do
carrasco.

Horacio sente-se repugnado, não pela flagellação em


si, por mais nua e crua que possa resultar -- ja
que numa sociedade escravocrata e em tempo de guerra
o artigo 179 da Constituição pouco significa -- mas
pela sordidez daquella violenta inversão de papeis:
um branco deshonrado por um negro e ao mesmo tempo
trocando a masculinidade pela mais torpe das nodoas,

231
a polluição oral. Aquillo ultrapassa os limites da
mais degradante hypothese a que o galan admitte
subjeitar-se em troca do prazer de sentir nos labios
o pé de uma mulher. Amelia, de sua parte, tambem não
se compraz na comedia que tanto diverte a devassa
Dolores, o insaciavel Roger e a perversa Laura:
limita-se a sorrir desdenhosamente, seja de quem
practica ou de quem apprecia taes excessos. Quando,
pois, o pavão e a garça trocam olhares e cochichos sob
o impacto dos ultimos urros de gozo do negro, paresce
evidente aos outros trez espectadores que nenhum dos
dois papeis enscenados ao pellourinho teria Horacio
de Almeida como protagonista ou antagonista.

“A senhora não espera que eu...”, ia dizendo o galan


quando o lorde intervem.

“Não tema, Sr. Horacio! (diz o inglez) Basta-nos


que o senhor não se tenha retirado antes de finda a
sessão. A scena que accabamos de ver tem para cada
um de nós um significado e uma utilidade. Ao senhor
não é mais que uma prova de quão baixo pode um homem
chegar sob o effeito da flagellação. Pessoas de nivel
mais alto, como o senhor, não precisam degradar-se
tanto; appenas o bastante para aggradar D. Amelia...
Quanto a mim, posso lhe addeantar que não estarei
presente à sessão de admanhan.”

“Deixe-me pôr as coisas em prattos limpos... (attalha


D. Dolores) Estive a conversar com Amelia, que é uma
moça pura, incapaz de tocar num chicote, muito menos
de ser tocada; sabemos bem o que é que o senhor mais
apprecia nas mulheres. Pois bem, meu caro: admanhan
comparescerão à Cappella cinco senhoras para ver
Horacio de Almeida, o unico cavalheiro presente,
prompto a satisfazer este pequeno capricho nosso,
que comparado à funcção hoje executada não passa

232
de brincadeira infantil. Quer saber qual é o nosso
capricho, Sr. Horacio? Estamos todas dispostas a
sentir um pouco de cocegas na sola do pé. Inclusive
Amelia. (e voltando-se para a moça, que em outras
circumstancias teria corado) Não é mesmo?»

“Deveras! (responde Amelia, sorrindo) E o senhor


sabe perfeitamente a que especie de cocegas allude
D. Dolores, não sabe?”

Horacio assente com a cabeça, embaraçado.

“Mas fique sabendo (prosegue a dona da casa) que ao


menos uma de nós vae açoital-o antes, provavelmente
Laura, que é quem mais gosta de batter; só então
poderá o senhor tocar o pezinho da nossa amiga aqui.
Mas terá de provar a todas nós que seu maior desejo
foi alcançado, e refiro-me a uma prova concreta;
melhor dizendo, liquida e certa! Estou sendo clara,
Sr. Horacio? Decida-se: é admanhan ou nunca!”

O galan, meio alliviado pela perspectiva de estar


entre mulheres e meio perturbado pela proximidade do
contacto decisivo com seu fetiche, acceita o desaffio
promptamente.

Na noite seguinte, os vitraes coloridos da Cappella


filtram a luz accesa, que vista de longe dá impressão
de uma abbadia perdida em meio à floresta admeaçadora,
à medida que Horacio dirige-se para la, excoltado
pelo tetrico lacaio. Ao approximar-se mais, escuta
a animada conversa entre varias vozes femininas.
Mais alguns passos, e é recebido por D. Dolores e
conduzido ao circulo formado por Amelia, Laura, Rosa
e Vicentina, esta devidamente munida de seu caderno
de notas.

233
“Dispa-se aqui mesmo! (ordena Laura) Queremos vel-o
nessa operação; proceda com bastante calma, como si
estivesse a sós em sua alcova.”

Horacio acha-se fragilizado ao sentir todos aquelles


olhares sobre si, sobre sua nudez, sobre sua
belleza masculina, que até então fora plenamente
exhibida appenas ao espelho, pois nem siquer suas
amantes a tinham contemplado por inteiro. Mas sua
inhibição é justamente o que as vingativas senhoras
pretendem provocar, cruelmente decididas que estão
a impor obstaculos à erecção do garanhão, como
para testar-lhe a virilidade e a vehemencia do
impulso fetichista. Mas o instincto vaidoso do
macho accaba por prevalescer sobre o pudor, e o
rapaz posa ao natural frente às physiognomias cuja
expressão varia do rubor ao cynismo, da ironia à
cobiça. Mesmo o cacarejo sarcastico de D. Dolores
ja não desconcerta o desvanescido varão. Somente
quando, a chamado de Laura, tem de encaminhar-se ao
pellourinho, a sensação de vulnerabilidade volta a
assaltal-o.

O açoite empregado ja não é a terrivel chibata da


marinha, mas a leve vara adequada à mãozinha enluvada
da rapariga. Ainda assim os golpes parescem estar
sendo applicados com o maximo de energia, e os
gritos de “Ya! Ya!” encontram echo nos differentes
tymbres vocaes emittidos pela exfuziante platéa,
num colorido allarido de feira popular.

Successivamente graduado nas posições admissiva,


remissiva, permissiva e submissiva, o corpo do
galan extremesce agora na situação mais critica,
extirado ao comprido, nadegas para o chão, rosto
e penis para cyma. Laura venda-lhe os olhos e
annuncia:

234
“Agora, meu caro senhor, quero só ver a vitalidade
daquelle potrinho! (e cutuca-lhe o membro com a
poncta da vara, fazendo-o oscillar como um boneco
de mola que pulla da caixa) Uma de cada vez, vamos
nos sentar aqui (e approxima uma cadeira da cabeça
de Horacio) e usar seu rosto como tapete; quanto
ao senhor, tracte de usar a lingua como esponja de
banho, entendeu bem?”

E a ingleza dá o exemplo, sendo a primeira a


refestelar-se na cadeira estoffada, a descalçar a
chinella chilena e a appoiar a base de seu pé numero
39 sobre o rosto do galan, cujo penis saltita de
encontro ao ventre.

“O senhor adivinhará, pelo tamanho do pé, quem


serão as proximas a servir; agora tracte de mostrar
serviço!”, determina a dominadora.

E a planta deslisa de alto a baixo, de lado a lado


da cara attordoada do rapaz, que tenta alcançar
com a lingua cada intersticio, cada curva, cada
centimetro de pelle, para addicionar humidade à
humidade, calor ao calor, maciez à maciez, prazer ao
prazer. Narinas dilatadas, o suor a porejar da testa
em grossos bagos, o bigode crispado, accompanhando
as contorções labiaes, assim Horacio suppõe haver
lavado em saliva, na sequencia, o calloso pé 36 de D.
Dolores (que emitte sua gallinacea gargalhada em tom
agudo, como si fora uma cantora lyrica) e o suarento
pé 38 de D. Rosa, que sem o menor escrupulo introduz-
lhe os artelhos bocca addentro, mexendo-os em todas
as direcções e zombando da soffreguidão com que o
moço tenta, ora lamber, ora chupar. Entre uma e outra
que se reveza na cadeira, elle consegue a tregua
mental sufficiente para calcular que Amelia ter-se-a
programmado para ser a ultima da fila. Portanto, a

235
vez é de D. Vicentina. Occorre que a escriptora
prefere deixar-se ficar onde está, entretida com seus
apponctamentos, e cede a opportunidade para que
D. Dolores, mancommunada com Amelia, commetta uma
pequena deslealdade no tracto que fizera com o pavão.

Eis que, sahindo do camarim onde agguardava o momento


propicio, Leopoldo caminha até a cadeira, assenta-
se tranquillamente, olha para o rosto amarfanhado
de Horacio com extremo rancor e sorri maldosamente;
então curva-se para descalçar a botina direita e
a respectiva meia de tecido grosseiro; em seguida,
sem dizer palavra e sob as gargalhadas estrepitosas
da mulherada em delirio, appruma-se na poltrona
e accachapa aquella larga placa de carne sobre o
rosto do rival, fazendo-o desapparescer debaixo da
sola acchatada. O simples peso que pressiona os
labios vale como ordem inequivoca para que a lingua
trabalhe, e não resta outra alternativa ao perplexo
pavão a não ser exforçar-se para cumprir, o mais
rapida e rasteiramente possivel, a ingloria tarefa
de ensaboar o pé do palmipede. Na surpresa do
momento, Horacio ainda se debatte na duvida de que
aquella prancha possa pertencer a D. Rosa e que os
dedos do outro pé, que lhe invadiram attrevidamente
a bocca pouco antes, fossem de D. Vicentina... Mas
os risos estridentes denunciam que elle está sendo
victima de uma boa cilada, da qual agora é tarde
para excappar. Felizmente o proprio Leopoldo cansa-
se logo daquelle jogo abjecto e dá por encerrada
sua participação, calçando novamente a meia e a
bota, e voltando para a salleta de onde viera.
Ainda apparvalhado com a sensação de exmagamento
e guardando nas fossas nasaes o halito daquelle
masculo suor, para não fallar no gosto salgado que
lhe trava a garganta, o pavão ouve a voz de Amelia,
mais nitida a cada palavra, à medida que as risadas
arrefescem:

236
“Então, Sr. Horacio? Como a natureza é variada e
caprichosa, não é mesmo? Vivendo e apprendendo! Eu
não lhe advisei que para chegar ao céu é preciso
passar pelo purgatorio? Como costumam dizer Laura e
o lorde, {no pain, no gain}...”

237
20
A CHINELLA CHILENA

Refere o historiador como se idealizava, no seculo


XIX, “os pés pequenos, bonitos e bem calçados das
mulheres senhoris em objectos quasi de culto ou de
devoção da parte dos homens: culto social e sexual
que assumiu adspecto francamente religioso, ao mesmo
tempo que symbolico, na devoção pelos chamados {sapatos
de Nossa Senhora}. Ewbank ainda encontrou no Rio de
Janeiro do meado do seculo XIX, o culto da {sola do
sapato de Nossa Senhora}, sola que era beijada por
homens de cor tanto quanto por senhores brancos e
respeitaveis. Viu o observador norte-americano um
devoto beijar {the framed pattern of Mary’s shoe-
sole}: o devoto {putting his hands against the
white-washed wall, pressed his mouth and rubbed his
nose against it}. O culto -- talvez reminiscencia do
Oriente na vida ou na cultura portugueza do Brazil
-- paresceu a Ewbank, {unctuoso}.”

Quando, emfim, se appresenta aquelle momento


magico que Horacio tanto almeja e que esperava
fosse romantico e privado, para que delle pudesse
desfructar o erotismo em todos os adspectos, eis que
as circumstancias em nada favorescem a desenvoltura
do conquistador, immobilizado que está naquella
machina didascalica e ridicularizado por damas de
pouco ou nenhum pudor, que lhe excarnescem da nudez
e da potencia. Mas assim que Amelia occupa o assento

238
ha pouco deixado por Leopoldo e pousa suavemente o
solado da chinellinha chilena sobre a testa do pavão,
o penis, que apponctava para o céu como um canhão e
que desapponctara temporariamente sob o effeito do
pezão do mancebo, desabando como uma arvore sob o
machado do lenhador, reergue-se promptamente, dando
pullos de alegria como um menino travesso que pede
para brincar.

A mulherada applaude com palminhas nervosas e


assobios, que Horacio interpreta como incentivo
e transforma em estimulo physico, concentrado na
idéa de que seu vexame como cavalheiro presta-se a
completar o quadro de submissão do homem ao pé do
sexo fragil, tal como succede agora.

O pezinho, ainda calçado, deslisa pelo nariz abbaixo


e appoia appenas a poncta entre os labios do rapaz,
que percebe a suggestão do gesto e tenta abboccanhar
o bicco da chinella, mas Amelia ri e desvia o pé
para o lado, passando-o numa e noutra bochecha antes
de pisar no queixo. Então, usa o proprio queixo
como appoio e pressiona-o com a parte trazeira do
calcanhar, empurrando assim a chinella, que se solta
do pé e cae juncto à orelha do galan, o qual offega
e aspira o ar, tonto de soffreguidão. O aroma, mixto
de perfume e exsudação, que se desprende do pezinho
penetra-lhe nas narinas, e o penis corcoveia como
um cavalo bravio, provocando gritinhos nas demais
senhoras e grugulejos em D. Dolores.

Então Horacio sente na epiderme o contacto daquella


cutis lisa como o rosto de um bebê: é a planta
da donzella, que vae appalpando, aqui e alli,
cada poncto do rosto do galan, ora cutucando com
o calcanhar ou o dedão, ora accommodando o arco
contra as maçans do rosto ou as temporas do macho

239
indefeso. Por fim a solinha se posiciona ao longo do
bigode e cobre por inteiro a bocca do rapaz, cuja
lingua ja se prepara para projectar-se bocca affora,
mas cujos labios retardam esse gesto, desejosos de
beijar, incansavelmente, aquella almofadinha de
carne, tenra e fofa. Amelia interrompe essa serie
de beijos, antes que o penis não consiga conter
o jacto, e ordena que Horacio lamba. Recebida a
permissão, a lingua entra em scena e percorre sem
exforço a pequena distancia que separa o calcanhar
dos artelhos, em cujos intersticios se intromette,
degustando-os como si fossem fructinhas silvestres.
Amelia ri, quasi gargalha, em parte pelas cocegas,
em parte pelo gostinho da superioridade da femea
sobre o predador vencido. A moça ainda cogita si fará
como a despudorada Rosa, que mettera os dedos entre
os dentes do moço, obrigando-o a chupar a poncta do
pé como si fora uma fructa maior e mais succulenta,
mas ja não ha tempo para pôr em practica esse extremo
recurso: o penis, depois dos incessantes saltos e
solavancos, exguicha o leitoso jacto que salpicca o
peito do rapaz e a madeira do pellourinho, golfada
appós golfada, chorando copiosamente sua agonia sem
communhão, seu ecstase solitario e intacto.

Sob o impacto do orgasmo, exvae-se aquelle sabor


de puddim que a planta de Amelia transmitte, e as
vozes se distanciam. Com os sentidos, Horacio perde
a consciencia e mergulha num torpor lethargico.
Quando desperta, tem a impressão de haver hibernado
por longo tempo, como si estivesse dopado por algum
forte soporifero.

Ouve vozes, mas veem da rua, mixturadas aos ruidos


urbanos matinaes. À sua volta ja não ha ninguem. Aos
primeiros movimentos verifica que seu corpo acha-se
livre do pellourinho, exparramado sobre uma cama de

240
casal. Occorre-lhe estar accordando de um pesadello,
mas ao sentar-se no leito vê que aquelle quarto não
é o seu, nem qualquer alcova que lhe seja familiar.
Ainda tonto, exforça-se para ficar em pé e olhar em
torno. Ja não se acha completamente nu, mas não vê
suas roupas em nenhuma das poltronas que rodeiam a
cama.

Horacio advista a porta e vae experimentar a


maçaneta: trancada, mas a chave está na fechadura.
Suspira, tentando entender, lembrar-se dos ultimos
accontescimentos. Perscrutando o ambiente, percebe
que se encontra num quarto de hotel.

A cama é muito larga, com um grande colchão de


molas, onde o corpo se abysma; os travesseiros
monstruosos e enfeitados de rendas e fitas; e por cyma
um immenso cortinado de labyrintho, enxovalhado de
pó. Sobre o marmore do lavatorio vê-se a bacia de
gigantescas proporções, ao lado de algumas vasilhas
de porcellana; e, em contraste com o resto, um
pequeno pedaço de sabão barato fornescido pelo
estabelescimento. Ao cantho da pedra, exquescida
sobre os rebordos do lavatorio, ha uma escova de
dentes, suja de opiato.

E todo esse adspecto de abbandono e desleixo, todo


esse falso comforto sem dono e sem o acconchego
domestico, tudo isso ainda mais o assusta e
attemoriza. Disposto a sahir dalli, o pavão começa a
abrir gavetas e portas de armario, à procura de suas
roupas. Subitamente, sua affobação dá logar a um novo
accesso de vertigem, que o obriga a sentar-se na cama
para não perder o equilibrio. Poucos segundos mais,
e tomba para traz, extatellado sobre o colchão, que
vae ballançando cada vez mais levemente até que o
corpo se immobiliza.

241
Não necessariamente nesse mesmo lapso de tempo, em
outro apposento daquelle edificio, varios commensaes
conversam descontrahidamente ao redor de uma farta
mesa. Pouco antes, como de habito, Lord Steppingstone
chega accompanhado de D. Dolores e pede um gabinete
particular, onde se installa à espera de alguns
convidados. Logo em seguida entram D. Rosa, D.
Vicentina e Solano Vargas. Por ultimo, Laura e
Leopoldo, que vinham caminhando pela rua Septe de
Septembro até o Rocio, junctam-se aos demais.

Leopoldo está maravilhado, como sóe accontescer sempre


que transpõe as portas desses ambientes requinctados.
O adspecto daquellas sallas affestoadas, cheias
de espelhos, de cortinas e douraduras, no estylo
pretensioso dos hoteis, o ar parisiense dos creados,
vestidos de preto e avental branco; a cor estridente
do gabinete; o perfume das flores que guarnescem
jarras de proporções luxuosas; o alvoroço palavroso
e alegre dos que fazem a sobremesa; o crepitar do
riso das mulheres, cujos penteados branquejam sobre
o escuro dos tapetes; a reverberação dos crystaes;
a exspectativa de um bom almosso, que será devorado
com appetite, e finalmente a circumstancia de que o
mancebo sente-se, como nunca, disposto a commemorar
uma occasião festiva; tudo isso lhe refresca o
humor e o faz feliz naquelle momento. Laura paresce
compartilhar aquella sensação.

“Garçon! (cantarola D. Dolores assim que todos tomam


assento) La carte!”

O creado dispara. A irman do marquez encarrega-se do


menu como quem rege uma orchestra. Está radiante;
orgulha-se de ser, a qualquer hora e em qualquer
logar, a eterna amphitryan solenne. Excolhe prattos
exquisitos e determina os vinhos que os devem

242
accompanhar. O lorde, cavalheirescamente, concorda
com tudo.

Os convivas vão-se animando na proporção das garrafas


que se enxugam. O almosso acquesce. O Vargas propõe um
brinde a Leopoldo e Laura, e declara, depois de tecer
muitos elogios ao professor, que folgaria immenso com
ser recebido no rol de seus amigos, como si fizesse
questão de desfazer alguma impressão negativa que
o mancebo guardasse delle. A ostensiva amabilidade
do mestiço não passa despercebida ao agudo senso de
observação de D. Rosa, que logo pilheria:

“Não caia na labia deste moço, Sr. Castro. É malandro


como elle só! Agora lambe-lhe os pés, mas na primeira
opportunidade elle estará tripudiando sobre suas
costas, como faz com todo mundo!” E todos desaptam a
rir da cara fingidamente offendida do Vargas.

“Vejam quem falla! (retruca D. Dolores) Quem a ouve


dando conselhos pode suppor que aquella bocca é
um poço de virtudes...” Novo coro de gargalhadas,
accompanhadas das palmas do Vargas.

O almosso chega ao poncto em que os commensaes fallam


todos ao mesmo tempo e em voz alta. Affogueiam-se as
faces ao reflexo vermelho das paredes do gabinete.
Àquella altura varios “toasts” foram levantados ao
casal, que ja se prepara para batter em retirada,
allegando serem agguardados em outro festivo
compromisso e aqui estarem appenas para cumprimentar
os amigos. Sem esperar pela sobremesa, Leopoldo toma
a iniciativa de levantar-se, no que é accompanhado
pela inglezinha. Mais felicitações e nova troca de
saudações. Por fim, os dois deixam a salla privada,
para allivio de Leopoldo, que não consegue ficar

243
inteiramente à vontade naquelle recincto artificial
e abbafado.

“Deixa estar! (diz o Vargas, palitando os dentes


-- para incommodo do lorde -- como si dirigisse
a palavra a Leopoldo, voltando-se para a cadeira
vazia) Tu não me excappas! Ainda vamos celebrar com
uma boa pandega, quando chegar a hora!”

“Devemos deixal-os a sós. (intervem D. Dolores) Elles


decidirão qual o melhor momento para convocar-nos a
participar de suas alegrias...”

“Elle encontrou um collegio do melhor padrão em


Sancta Thereza (informa D. Rosa a D. Vicentina) e
pretende mudar-se para aquellas redondezas. Vão lhe
dar optimo ordenado, com a condição de que elle, alem
do serviço de professor, passe tambem a fiscalizar
os rapazes à hora do recreio e faça a escripturação
da casa. E Laura o está incentivando bastante nessa
mudança, até porque será quasi vizinha delle...”

O lorde, sempre muito pragmatico em suas considerações,


observa que, com a futura linha de bondes funccionando
até a meia-noite, a disponibilidade de conducção irá
proporcionar maior comforto a quem vive ou trabalha
naquelle pittoresco bairro carioca, do qual tem
motivos para orgulhar-se.

O creado traz a sobremesa -- uma salada de fructas.


Vargas pede gelados e quer que lhe sirvam umas truffas
ao rhum. Não pode passar sem isso no almosso, repete
com arremedada formalidade, para expiccaçar o lorde,
que sorri phleugmaticamente.

“E Amelia? (pergunta D. Vicentina a D. Rosa, no seu

244
habitual tom sussurrante que dá impressão de estar
assoprando algum segredo) Ja acceitou o pedido do
filho do barão?”

“Ah, quem sabe della é D. Dolores!”, responde a


poetiza em voz bem alta, como para puxar novo assumpto
que fizesse parte da pauta geral de festividades.

“A novidade sobre Amelia é essa mesma. (confirma D.


Dolores) O pae ja respondeu affirmativamente à charta
do Caio, e agora só falta annunciarem o casamento.
Pelo que fiquei sabendo, devem ser as maiores pompas
que esta Corte ja viu nos ultimos annos... Mas Rosa
tambem tem uma noticia para nos communicar, não é
mesmo, querida?”

“Bem... é verdade. Estou de malas promptas. Embarco


no proximo paquete para Buenos Aires... (e ante a
reacção de surpresa do Vargas e de D. Vicentina)
Ando muito extenuada com tantas actividades, e tão
diversas! Preciso descansar e reflectir. Não sei
quando voltarei à Corte, nem com qual das minhas
multiplas personalidades...”

Dolores dispara seu cacarejo e os outros gargalham


em coro, não se sabe si achando graça na ironia da
poetiza ou na risada da illustre dama, ou ainda do
commentario do Vargas accerca de cansaços physicos e
psychologicos.

Nisso abre-se a porta do gabinete e entra o gordo


gerente do hotel, figura ja bem conhescida dos
frequentadores dos saraus de Mme. Fragonard. Sem a
menor ceremonia, toma assento na cadeira à esquerda
do lorde, desoccupada por Laura, e indaga deste si
estão todos satisfeitos; em seguida, cochicha algo

245
ao ouvido do inglez, que sorri e pisca para D.
Rosa. A poetiza ja conhesce esse signal, mas suspira
como si a senha representasse um fardo do qual está
prestes a se livrar.

Lord Steppingstone, que pouco se pronuncia mas quando


o faz é sempre accaptado, suggere que D. Rosa seja
deixada a sós com o Sr. Oliveira -- e dá o exemplo,
levantando-se e puxando a cadeira de D. Dolores, que
o accompanha. Vargas, meio tonto, procura mostrar-
se allerta e agil, e ergue-se precipitadamente,
ainda segurando o coppo, perdendo o equilibrio e
quasi attingindo, com o braço esticado, os globos
do candeeiro. Por pouco não lança o resto de vinho
do coppo sobre o damasco da cortina. D. Vicentina,
sempre observadora, ainda olha em torno, como para
photographar na mente o scenario de mais uma de suas
minuciosas paginas memorialisticas, cujo destino não
pode calcular que será tão fertil: vertida, annos
depois, ao francez pelo Vargas, renderá a Pauline
Réage, no proximo seculo, uma scena do livro HISTORIA
DE O, e ao quadrinhista Guido Crepax uma interpretação
ainda mais fielmente graphica daquillo que se passa
entre o gordo e a poetiza.

O gerente affasta a cadeira da mesa e refestela-se,


pernas bem abertas. Alcança o paliteiro e põe-se a
cutucar o vão do dente, corpo extendido para traz, em
uma posição de homem farto: barriga ao vento, braços
molles e um olhar muito pando, que se lhe entorna
por todo o rosto em sorrisos de preguiça. Rosa ja
sabe o que fazer: a um signal do gordo, adjoelha-
se deante delle, abbaixa a cabeça entre suas coxas
e faz desapparescer dentro da bocca a cabeçorra que
se projecta pela braguilha aberta. O gordo allarga o
sorriso, observando pachorrentamente os movimentos
da cabeça da poetiza. Em questão de segundos a mulher

246
recua, engasgada, sem tirar da boccarra a glande
gottejante. Só a deixa sahir depois de tel-a enxugado
com a lingua. Quando ella se põe de pé, o gerente
repara no sulco azulado que lhe marca a pelle clara
do pescoço, talvez produzido por alguma chibatada
que errasse a ponctaria. Dentro em breve, aquellas
marcas não serão mais que reminiscencias e themas de
versos fescenninos, pelo menos na intenção de Rosa
de Albuquerque, cuja correspondencia com Vicentina
de Paula Guedes manter-se-a assídua durante decadas,
visto que a independente protofeminista jamais
regressaria à Corte.

Horacio volta a si e sente na bocca secca um gosto


extranho. A luz que vem da janella é do dia que começa
a admanhescer. Agora tudo está quieto. A lembrança
do quarto de hotel assalta-lhe a mente, e elle senta-
se na cama, ja bem allerta. Mas aquelle é seu proprio
quarto, bem familiar e accolhedor. Ao affastar as
cobertas, acha a botina de Amelia, que jamais fora
devolvida e que lhe faz companhia nas noites mais
hallucinadas.

Pouco depois, lavado o rosto e saciada a sede, o


galan ja raciocina com mais clareza. Não resta duvida
que accaba de sahir de um pesadello, mas até que
poncto todas aquellas nitidas lembranças são fructo
do delirio e da fixação erotica?

Durante a leitura dos jornaes, appós um lauto desjejum,


recapitula os dias que se seguiram ao baile em casa
dos Azevedo Camargo. Sua preoccupação concentra-
se na sanidade mental, talvez muito perturbada
ultimamente por causa daquella obsessiva perseguição
a um objectivo cada vez mais abstracto e idealizado.
Seu maior temor, neste momento, é o de que esteja
perdendo a memoria e tenha practicado actos dos

247
quaes não consiga lembrar-se. Ja ouvira fallar de
casos semelhantes, provocados não só por estados de
embriaguez, mas por algum disturbio mental. “Estarei
eu ficando louco? Será que toda esta phantasia em
torno do pezinho adorado não me tem feito perder o
senso da realidade?”

Só ha um jeito de descobrir o que de facto tem


succedido e o que se passa appenas na sua imaginação
desvairada: fallar com Amelia. Mas e si aquillo tudo
houver mesmo accontescido e sua reputação estiver
irremediavelmente compromettida? Horacio chega a
achar preferivel a hypothese de estar psychicamente
desequilibrado. Ainda assim, pensa elle, si é certo
que o erotismo pode ser algo que se situa numa
vaga zona entre a phantasia e a amnesia, quantos
outros, nesta sociedade hypocrita, vivem em identica
situação de duvida?

São dez horas da manhan. O sol brilha, segundo o


romancista, em céu limpido; uma aragem fresca sussurra
entre as folhas; os colleiros trinam nas ramas das
laranjeiras. Esse concerto de perfumes e harmonias
convida o coração a abrir-se e cantar o seu hymno
de amor. Para Horacio aquelle convite soa como um
encorajamento. Pouco depois, faz o tilbury passar em
frente ao sobrado de D. Dolores, não muito distante
de sua casa. Reconhescendo a fachada e vislumbrando,
ao fundo do jardim, o pomar attraz do qual se occulta
a Cappella à vista de quem olha da rua, confirma
as impressões guardadas em suas visitas nocturnas,
e sente-se inclinado a rever aquelle templo da
mundanidade em cujo interior estaria o pellourinho de
seus pesadellos. Outra idéa admaduresce-lhe na mente:
extender o passeio até Sancta Thereza e verificar si
realmente exsiste a casa de Laura, o outro altar dos
seus sacrificios.

248
Com effeito, la está a casa, appequenada pelas
descommunaes proporções das coppas das arvores que
a cercam. Por entre as grades, sentada no jardim e
occupada em fazer um ramo de flores, Horacio até julga
advistar a inglezinha. Sente vontade de entrar e ir
ter com ella, à sombra de uma lattada de madresilvas,
sentar-se a seu lado e perguntar tudo o que lhe vae
pela cabeça. Mas o tilbury affasta-se e com elle a
disposição de deter-se e conversar.

O pavão desce em direcção ao centro da cidade. Pretende


almossar no Versalhes e fazer um reconhescimento,
pelo menos, do restaurante, ja que não ha sentido em
revisitar um quarto no qual suppõe ter pernoitado;
mas falta-lhe animo para encarar alguma physiognomia
conhescida, e elle muda de itinerario. Mais tarde,
resolve procurar o pae de Amelia no local de trabalho,
a pretexto de approveitar a opportunidade de haver
passado, a negocios, alli por perto, e rever o amigo.

Ja não está o negociante no escriptorio; nesse dia


se retirara mais cedo. Mallograda sua esperança,
o pavão vae caminhando pela rua Direita sem rumo,
como quem não sabe o que fazer. O instincto o conduz
naturalmente para a rua do Ouvidor.

Nem bem chega à esquina, quando passa defronte um


moço, que segue pela calçada Carceller. Horacio
accompanha-o com a vista, querendo nelle reconhescer
seu rival Leopoldo, a quem ja não dirige a palavra.
Si com effeito o moço é Leopoldo, deve ter soffrido
grande transformação. Em vez do taciturno rapaz,
descuidado no seu traje, brusco em suas maneiras,
sempre de cabellos desgrenhados e barba desleixada,
apparesce um cavalheiro de boa presença, com a sobria
elegancia que tão bem assenta nos homens sisudos. Essa
especie de elegancia, nas palavras do romancista, é

249
appenas um ligeiro perfume, e não uma incrustação
como a que usam os moços à moda.

Com seu fino tacto e longa experiencia, Horacio,


reconhescendo o mancebo, adivinha o segredo daquella
subita metamorphose. Elle sabe que só ha um condão
capaz de produzir taes encantos: é o olhar da mulher
amada e amante. Como diz o romancista, “Ame alguem
e não saiba si é retribuido. Toda sua exsistencia
se projecta nesse impulso d’alma, que se arroja para
outro ser e anxeia por nelle infundir-se. Vive-se
fora de si mesmo, alheio a seu proprio eu; como o
peregrino perdido longe da patria, o homem exsilado
de sua pessoa erra no espaço, em demanda de um
abrigo. Desde, porem, que o homem tem certeza de
ser amado, em vez de expandir-se, recolhe-se e
concentra-se para saturar-se de felicidade. Ja não
se alheia e exquesce de si; ao contrario, sente-se
elevado accyma do que era; respeita em sua pessoa
o homem amado. Nessa occasião é natural a cada
um observar-se constantemente e julgar de si com
extrema severidade. Surgem adspirações extranhas;
o fraco lembra-se de ser um heroe; o philosopho
inveja a belleza do casquilho; o espirito positivo
habituado a voar terra a terra batte o coto das asas
para remontar-se ao ideal da poesia. Não é só no
homem que se opera essa metamorphose: mas em toda a
natureza. Quando se arreiam os passaros de sua mais
bella plumagem, quando gorgeiam as melodias mais
brilhantes, si não é na quadra dos amores?”

Vendo Leopoldo parado na calçada Carceller, Horacio


dirige-se com disfarse para aquella parte, com
intenção de seguil-o e talvez exclarescer um pouco
daquelle mysterio. “Será que Amelia e elle...? (vae
elucubrando) Então o que me fizeram na Cappella não
terá sido illusão...?”

250
Mas sobrevem um providencial desfecho para trazer
o galan de volta à vida real: Leopoldo accaba de
encontrar-se com Laura, que o tracta ternamente, com
a intimidade de uma noiva, e ambos embarcam em um
tilbury, que roda ja pela praça de Pedro II.

Alliviado, volta Horacio sobre os passos.

“Si Laura e elle se amam, Amelia ainda pode ser


minha... e meu seu pezinho!”

Um sorriso frisa o labio do pavão.

“Ella me desdenha... mas o que é o desdem sinão o


desejo de possuir? O affecto suave e terno é como o
moscatel de Setubal ou o vinho de Constança. Ja o
desdem fero e vaidoso é como a champanhe que ferve e
espuma. E não ha nada melhor do que beber champanhe
numa botina de mulher!”

Chegando à casa, Horacio escreve a Amelia uma charta,


que appenas contem palavras appaixonadas e puras,
para captivar-lhe o espirito e despistar o verdadeiro
interesse do galan, que volta a sentir-se confiante
em seu poder de seducção.

Sahindo o pavão a expairescer, dirige os passos para


a casa do Salles; espera encontrar algum creado que
se incumba de entregar a charta. Quem sabe? Talvez
nessa mesma occasião se decida de sua sorte. A moça
lhe permittirá fallar-lhe, e tudo se accommodará.

Ja é noite fechada; o céu, carregado de nuvens,


annuncia proxima borrasca. A frente da casa do
negociante está às escuras; comtudo, quem observe

251
bem perceberá a coar-se pelas frestas das janellas um
tênue reflexo de luz interior. No portão da chacara a
meio cerrado, ninguem apparesce.

O pavão penetra no jardim. Nesse momento um carro para à


porta da casa: trez pessoas saem delle. Em uma Horacio
vê, extremescendo, as roupas e os bigodes do notorio Caio
de Azevedo Camargo. Inquieto, sobresaltado, addeanta-
se pelo jardim na esperança de não ser visto pelo filho
do barão. As janellas lateraes estão exclarescidas; e
pelo jogo das sombras no quadro illuminado, conhesce o
moço que reina no interior alguma agitação. Que fazer?
Appresentar-se na casa, depois do que passara, e antes
de qualquer explicação, não é razoavel.

A dois passos fica uma frondosa mangueira, em cujos


galhos tinham fabricado uma especie de belvedere ou
caramanchão. Conduz ao alto uma escadinha de caracol
cingindo o tronco da arvore. Por acaso advista o
pavão a mangueira e, subindo sem hesitar, acha-se
justamente fronteiro às janellas illuminadas. A
principio a claridade subita offusca-lhe a vista, e
não pode elle distinguir o que se passa la dentro.
Mas affinal o deslumbramento dos olhos cede ao
deslumbramento d’alma.

Elle vê, e ja não duvida. Amelia e Caio... sentados


lado a lado, trocando sorrisos, accompanhados do
Salles e de D. Leonor, compondo um perfeito retracto
de familia... eis o quadro que se offeresce aos
olhos de Horacio. Tinha visto na comedia da vida
muitos lances previsiveis, mas nenhum tão ironico e
exemplar. Emquanto o pavão se occupa em prevalescer
sobre o rival palmipede, a garça acceita a proposta
mais vantajosa do gallo dos ovos de ouro, que lhe
arrasta a asa como quem programma pela manhan o
negocio que irá fechar à tarde...

252
A surpresa do pavão provem de um enganno seu. Elle
accreditava que Amelia o tinha amado, quando a moça
não sentira por elle mais do que o desvanescimento
de ver captivo de seus encantos o rei da moda, o
feliz conquistador dos salões. Quanto a Leopoldo,
Amelia não tivera por elle mais que compaixão de
seu platonismo, talvez. Na hora de tomar a resolução
que decidiria seu futuro, porem, a moça segue a
lei da natureza humana e procura, mais que emoções
ou sentimentos, a estabilidade e o comforto, sinão
espiritual, ao menos material, como convem à vida em
sociedade.

O temporal, desabando nesse momento, batte com


violencia nos vidros da janella, que fecha. Horacio
desce do seu observatorio; escalando a grade de ferro
do jardim, ganha a rua. Chega em casa todo molhado,
e, emquanto o creado lhe prepara um cha bem quente
e calmante, recorda-se da noite em que retornara
do theatro e precisara de algo mais que o contacto
physico da botina para accalmar a excitação. Desta
vez a excitação não é tão urgente, e os pensamentos
pedem prioridade.

Ao que paresce, as coisas retomam sua roptina, como


si nada de abnormal houvesse occorrido. Laura e
Leopoldo, Amelia e Caio, todos seguem seus caminhos
sem se importarem com o decahido conquistador do
circuito bohemio... Talvez até D. Dolores esteja
compromettida com Lord Steppingstone, sabe-se la!
O mundo continua a gyrar indifferentemente à crise
exsistencial de um galan prestes a virar a casa dos
vinte para os trinta annos...

Então o pavão põe-se a reflectir si ja não estaria na


hora de passar uma temporada na casa dos paes, em
Petropolis, e quem sabe dar por encerrado o cyclo de

253
estroinices, e até pensar seriamente em casamento,
com alguma herdeira de latifundios (para cumprir
a prophecia de D. Dolores)... emquanto ainda não
creara barriga, como o Caio.

Antes de recolher-se, Horacio sente saudades de


reviver um ritual que até outro dia ainda practicava:
accender velas de cada lado da almofada de velludo
sobre a qual repousa a botina, e ficar fumando charuto,
a contemplar da poltrona seu objecto de adoração,
seu idolo pagão... Emquanto prepara o altar, põe-se
a imaginar como será a noite de núpcias de Amelia...
Na alcova, sentada em uma conversadeira, ella sorri
para seu marido; porem attravés das largas dobras do
roupão de cambraia, percebe-se o tremor involuntario
que agita seu lindo talhe. “É meu presente!”, diz
ella com timidez, e appresenta ao noivo um objecto
envolto em papel de seda, aptado com fita azul.
Abrindo, acha Caio dois mimosos pantufos de setim
branco, os mesmos que Amelia estivera a bordar. Ante
a expressão de surpresa do rapaz, cujo olhar desce
insensivelmente à fimbria do roupão, Amelia impõe
suas condições. Sobre a almofada de velludo e entre
os folhos da cambraia, apparescem as unhas rosadas
de dois pezinhos divinos. Uma onda de rubor derrama-
se pelo semblante da moça, cujos labios balbuciam
uma palavra: “Calce!” Caio adjoelha-se aos pés da
noiva e obedesce...

Horacio ja está farto de dar asas à imaginação.


Sabe que as coisas não transcorrem à sua maneira
e que na vida real aquella hallucinação não seria
siquer materia de conversa entre pessoas normaes.
Deprimido, vae buscar o cofre de platina para, nem
que seja pela ultima vez, retirar delle a botina e
deposital-a sobre a almofada, ja admittindo que tudo
não tenha passado de um mirabolante, um phantastico

254
faz-de-compta. Porem, ao abrir o cofre, não encontra
explicação -- e nem importa explicar -- para o facto
de, ao lado da endeusada botina, estar alli dentro
uma chinellinha chilena do mesmo tamanho de pezinho,
que não pode ser outra sinão aquella usada pela moça
durante as sessões didascalicas...

E o pavão, com pena de si mesmo e de sua triste


memoria, deixa-se abbatter na poltrona, a fumar seu
charuto e a contemplar a fumaça que se perde no
tempo. Admanhan fará anniversario, e não ha como
exquescer esta data...

255
256
FICHA TECHNICA E PLANO DA OBRA

[1] Glauco Mattoso finaliza, entre março e maio de


2004, um romance cujo projecto estava accalentado
desde meados da decada de 1980, quando escrevera o
MANUAL DO PODOLATRA AMADOR: recyclar posmodernamente
o classico oitocentista de José de Alencar, A
PATTA DA GAZELLA. A empreitada, iniciada naquella
opportunidade, fora mantida “in progress” até que
o aggravamento do glaucoma suspendeu as actividades
litterarias de GM, em principios dos 90. Retomada
conclusivamente appós duas decadas, a obra ganha
corpo definitivo sob o titulo de A PLANTA DA DONZELLA,
lançada pela Lamparina Editora (Rio de Janeiro) em
2005.

[2] Eis a orelha que Italo Moriconi assignava para


o volume:

“Que Glauco Mattoso é um mestre na practica do pastiche


litterario, disso sabem muito bem seus leitores e
admiradores. Como exemplo recente, mencione-se a serie
de sonnettos em que nosso auctor reescreve contos de
Machado de Assis. Agora é a vez de José de Alencar
e do classico A PATTA DA GAZELLA, aquella deliciosa
phantasia romantica sobre a idolatria fetichista
do pé. O pezinho da donzella, objecto de desejo
lascivo. Pelas aguas turvas da podolatria, Glauco
sempre navegou desenvolto, narinas e lingua em riste,
espinha dobrada na paixão de servir, invertendo a seu
favor os termos das relações de poder, transformando
perda em lucro. A physiologia dessa dynamica, como se
sabe, é exposta à luz no MANUAL DO PODOLATRA AMADOR,
um classico contemporaneo. Classico maldicto? Que

257
seja. Alguem ja disse que com boas intenções não
se faz boa litteratura. Pois agora nos reapparesce
o Glauco com este A PLANTA DA DONZELLA. Nelle, o
pastiche se combina com a parodia. Como ja mostrou
a critica universitaria mais antennada, o pastiche
contemporaneo, ou posmoderno, pode ter um que de
transgressivo em relação a seus modellos. Não é
pura repetição. Utiliza-se do espirito sardonico da
parodia para collocar a nu themas e percepções que os
textos romanticos e os classicos modernistas deixavam
na sombra. E nessa area da parodia litteraria,
Glauco tambem é mestre, como se pode observar em sua
outra obra, que muitos consideram prima -- o JORNAL
DOBRABIL. Em relação ao decoro de Alencar, este novo
livro de Glauco Mattoso é uma abertura desenfreada
dos sentidos. É a liberação em acto. É a revelação
do inconsciente obsceno dos romanticos e até mesmo
de historiadores de alta estirpe, como Gilberto
Freyre. É o grito de {iá, iá} da mulher devassa que
chicoteia seu parceiro submisso. Este, na phantasia
de Glauco, perde até o anonymato. A PLANTA DA DONZELLA
refaz o jogo d’A PATTA DA GAZELLA, reapproveitando
scenas inteiras do livro de Alencar, {o romancista
da epocha}, mas modificando completamente o perfil
sexual dos personagens e o typo de intriga em que
se envolvem. O leitor accompanha a narrativa com
a respiração suspensa. E olhe: haja follego para
encarar o final defrente. É assim que o cego pode
fazer ver.”

[3] Eis como o critico carioca Pedro Ulysses Campos


commenta o projecto:

“Neste romance intertextual, Glauco Mattoso reescreve


A PATTA DA GAZELLA, de José de Alencar. Partindo da
mesma trama fetichista, em torno de um cobiçado pé
feminino, e situando a acção no mesmo scenario imperial

258
do Rio de Janeiro no seculo XIX, Mattoso distorce
o character dos personagens alencarianos, constroe
seus proprios typos para contrascenar com Horacio
e Amelia, introduz na narrativa o imprescindivel
componente sadomasochista e desvia o enredo para
outro desfecho, sem que se perca o clima de suspense
originalmente pretendido.

Si o romance de Alencar ja era obra para adultos, a


paraphrase de Mattoso attende ao gosto exigente do
leitor interessado não appenas na ficção erotica de
alto nivel, mas tambem na pesquisa historica e no
experimentalismo narrativo.

São innumeras as citações litterarias entremeadas


ao texto: ao lado de poemas do proprio Mattoso e
attribuidos aos personagens, desfilam Castro Alves,
Alvares de Azevedo, Joaquim Manuel de Macedo e
outros, explicitamente ou camuflados nas entrelinhas;
as referencias epigraphicas são de Rocha Pombo,
Pedro Calmon e Gilberto Freyre; algumas scenas são
evocativas de outros ficcionistas da epocha, sejam
Aluizio Azevedo, Adolpho Caminha ou Machado de Assis.

Attravés das adventuras de um conquistador podolatra


e de sua musa adorada, o leitor mergulhará no magico
universo das phantasias sexuaes mais exoticas
e clandestinas, numa sociedade patriarchal e
conservadora.”

[4] O processo de “desconstrucção” e de “remontagem”


dessa urdidura romantica resulta, na mão do
fetichista do pé, em radical transformação: embora
attendo-se à syntaxe e ao vocabulario oitocentista,
GM subverte e perverte a esthetica e a ethica
do original, alterando a ordem dos capitulos,

259
duplicando o elencho com a introducção de seus
próprios personagens e “desencaminhando” a conducta
dos personagens que ja exsistiam. O effeito se
concretiza numa nova trama entre protagonistas
que Alencar não reconhesceria e coadjuvantes que
nenhum leitor actual extranharia, tal o grau de
identificação com os typos mais contraculturaes do
seculo XX. O poncto chave para uma deciphração do
enigma (si é que este subsiste ao final da trama)
é o momento em que Salles communica à filha ter
recebido uma charta pedindo- a em casamento.

O dialogo faz suppor que o remettente seria Horacio,


mas, si a charta for realmente de Caio (hypothese
tambem cabivel no dialogo), evidencia-se o character
onirico-onanistico do fetichismo phantasiado pelo
primeiro protagonista. Ao contrario de Alencar, que
appenas numera seus capitulos, GM os intitula como
si constituissem contos avulsos. Eis o elencho, de
accordo com o fichamento alphabetico do auctor:

- Adolpho de Campos, segundo marido de Clementina


Fragonard.

- Alfredo, nascido em 1855, filho de Clementina


Fragonard com o primeiro marido.

- Amelia Pereira Salles, protagonista, nascida em


1851, filha de Paulo Pereira Salles e de Leonor
Treadmill Pereira Salles.

- Caio de Azevedo Camargo, nascido em 1842, filho do


barão de Baruery.

- Clementina Fragonard, viuva de um francez, hoje


casada com Adolpho de Campos; mãe de Alfredo, filho

260
do primeiro casamento.

- Dirceu Amoroso Lyra, poeta, frequentador da casa


de Mme. Fragonard.

- Dolores da Costa, irman do marquez de Utinga,


frequentadora da casa dos Salles e socia do Club
Propedeutico.

- Glycerio de Mattos, sapateiro.

- Horacio de Almeida, protagonista, nascido no Rio


em 1841.

- Laura Lawrence, protagonista, nascida na Inglaterra


em 1845, prima de Amelia e filha de George Lawrence.

- Leonor Treadmill Pereira Salles, mãe de Amelia,


casada com Paulo Pereira Salles.

- Leopoldo de Castro, protagonista, nascido no


interior de São Paulo em 1844.

- Marquez de Tatuapé, amigo dos Salles e dos Lawrence.

- Mauro de Moura, poeta, frequentador da casa de Mme.


Fragonard.

- Oliveira, o gordo que frequenta os saraus de Mme.


Fragonard e é gerente do hotel Versalhes e confrade
do lord no Club Propedeutico.

- Paulo Pereira Salles, pae de Amelia, casado com

261
Leonor Treadmill Pereira Salles.

- Plinio Pederneiras, medico e bibliophilo,


frequentador da casa de Mme. Fragonard.

- Roger Steppingstone, conhescido como “Lord”, nascido


na Inglaterra em 1830. Primo de George Lawrence e
socio do Club Propedeutico.

- Rosa de Albuquerque, poetiza e pianista,


frequentadora da casa de Mme. Fragonard.

- Severina, frequentadora da casa de Mme. Fragonard.

- Solano Vargas, mestiço nordestino nascido em 1851,


frequentador da casa de Mme. Fragonard e membro do
Club Propedeutico.

- Thereza, frequentadora da casa de Mme. Fragonard.

- Vicentina de Paula Guedes, sobrinha do visconde de


Itaquera e viuva de um heroe da guerra do Paraguay.

- A filha do marquez de Tatuapé, frequentadora da casa


dos Salles e da casa de Dolores da Costa.

- A filha do visconde de Poá, frequentadora da casa


dos Salles e da casa de Dolores da Costa.

- O coppeiro de Mme. Fragonard, um negro alto, magro


e grisalho.

- O creado de Dolores da Costa, um velho bruxo.

262
- O creado dos Pereira Salles, responsavel pela perda
da botina de Amelia.

- O creado de Horacio de Almeida, fiel e discreto.

- O marinheiro branco, que actua como submisso ao


negro.

- O marinheiro negro, que actua como dominador do


branco.

[5] Recopila-se a seguir o poemario que figura em


meio à trama, attribuido a alguns dos personagens. O
sonnetto “A Borralheira” (de Luiz Guimarães Junior)
é um dos dois casos de “appropriação debita” e
apparesce attribuido ao sapateiro Mattos; o outro
caso de “cannibalização” (como diria Italo Moriconi)
é o sonnetto “O Camarim” (de Gonçalves Crespo),
que passa pela penna do poeta Dirceu Amoroso Lyra;
todos os demais poemas são do proprio GM, ou por
elle parodiados (como “Oração ao latego”, sobre
“Desenganno”, de José Maria do Amaral), e soam como si
fossem de auctoria dos respectivos poetas ficticios:

[5.1] A BORRALHEIRA [Glycerio de Mattos]

Meigos pés, pequeninos, delicados,


como um duplo lilaz, si os beijaflores
vos descobrissem entre as outras flores,
que seria de vós, pés adorados?

Como dois gemeos sylphos animados,


vi-vos hontem pairar entre os fulgores

263
do baile, ariscos, brancos, temptadores,
mas -- Ai de mim! -- como os mais pés, calçados!

Calçados como os mais! Que desaccapto! --


disse eu... Vou ja talhar-lhes um sapato
leve, ideal, phantastico, secreto...

Eil-o. Resta saber, anjo faceiro,


si accertou na medida o sapateiro:
Mimosos pés, calçae este sonnetto!

[5.2] SEPTILHA ANONYMA [recolhida por Glycerio de


Mattos]

Marinheiro pé-de-chumbo,
calcanhar de frigideira,
de ensignar-te ja me incumbo
com surra de capoeira:
vaes appanhar do solado
dum pé-de-cabra escholado
que mais fede do que cheira!

[5.3] CANÇÃO TRIUMPHAL [Rosa de Albuquerque] (*)

Tu, gaucho cavallar,


não perdes por esperar:
vou mostrar-te como soa
esta musica tão boa!
Repara na partitura

264
e consolo em Deus procura,
pois teu fim não ha quem chore-o
nem quem reze em teu velorio!

Quando aggarro um unitario


dou-lhe tractamento hilario:
peço adjuda aos companheiros,
que tambem são “mazorqueiros”;
admarramol-o até vel-o,
cotovello a cotovello
pendurado, e desnudado
fica, para nosso aggrado!

Immovel como uma estacca,


piccado à poncta de faca
em desespero elle berra,
mas cantamos “guerra é guerra”
e sem accompanhamento
fazemos um barulhento
concerto, animando a festa
a que a victima se presta!

Cutucado de cutello,
seu contorcionismo é bello
e risadas nos desperta;
quando a ponctaria é certa
a pedra lhe attinge um olho;
mas alvo diverso excolho
e os colhões, com que successo
por estrepes attravesso!

265
Emquanto o chicote estala
e a perna é varada a balla,
abbafamos o seu choro
cantando refrões em coro!
Si estivesse com a gente,
nosso amado presidente
cahia na gargalhada
ao ver o que mais lhe aggrada!

É momento, finalmente,
em que cremos conveniente,
depois que nos divertimos
inventando tantos mimos,
dar-lhe um ultimo carinho
e à tarefa me encaminho:
posto de gattas, ao lombo
monto-lhe e do azar lhe zombo.

Alegra-nos que elle brade


aos sanctos, por piedade,
que seu fim lhe chegue breve
mas em versos quem descreve
a scena não pode dar
idéa de quanto esgar
de dor o rosto lhe entorta
emquanto a lamina corta!

Abbaixo da orelha cravo


meu punhal, e escuto um “Bravo!”
da bocca dos companheiros,
e com dois golpes certeiros

266
a veia a fundo lhe furo
do pescoço, e nesse appuro
revira os olhos ja cegos
pelos espinhos e pregos!

O selvagem se exvahindo
em sangue, que quadro lindo!
Logo extende-se e estertora
ao approximar-se a hora!
Exspirando, ‘inda nos serve
de motivo para a verve
si pisassemos-lhe a face
para que mais se humilhasse!

Como vês, bugre covarde,


não excappas, cedo ou tarde,
de teres cortada a orelha
que, de sangue ‘inda vermelha,
servir-nos-a de trophéu
E, antes de no belleléu
ires dar com o costado,
darás “Viva!” ao Federado...

[5.4] MEU FLAGELLO [Mauro de Moura]

Som mais typico e excitante


não conhesço, nem mais bello
que na carne toque e cante:
os estalos do flagello!

267
Quando está sob o meu guante,
com seus golpes desmantello
o orgulho mais arrogante,
que se humilha ao meu flagello!

Heroes choram num instante


quando a seu recurso appello:
são covardes ja, perante
as lambadas do flagello!

Seja o couro que eu levante,


seja a vara de marmelo,
não ha valente ou gigante
quando desce o meu flagello!

Eis por que sou governante,


este algoz que me revelo:
não achei lei que supplante
o poder do meu flagello!

[5.5] ORAÇÃO AO LATEGO [Dirceu Amoroso Lyra]

Uma por uma, do chicote as dores


supporto, cada qual mais dolorida!
Uma por uma, no correr da vida,
despiram-me dos brios e pudores!

Extranho-te, ó chibata, si não fores


cruel, e cada vez mais, à medida
que minha rouca voz ja não revida

268
teus golpes com meus odios e rancores!
Do mundo as illusões perdi, funestas,
Ao noitejar da edade, na tortura...
Só tu, severo latego, me restas!

Comtigo a vida eterna em mim perdura!


Ninguem traz cicatrizes que nem estas
que guardo e levo alem da sepultura!

[5.6] O CAMARIM [Dirceu Amoroso Lyra]

A luz do Sol affaga docemente


as bordadas cortinas de escumilha;
penetrantes aromas de baunilha
ondulam pelo tepido ambiente.

Na estante do piano reluzente


repousa a partitura da quadrilha;
e do leito francez nas colchas brilha
de um cão de raça o olhar intelligente.

Ao pé das longas vestes, descuidadas,


dormem nos arabescos do tapete
duas leves botinas delicadas.

Sobre a mesa emmurchesce um ramalhete,


e entre um leque e umas luvas perfumadas
scintilla um caprichoso bracelete.

269
(*) Versão, thematicamente livre e estrophicamente
diversa, dum poema conhescido como “La Refalosa”
(e reconhescido como sendo de Hilario Ascasubi),
que teria sido escripto por occasião do sitio de
Montevidéu. O auctor descrevia os requinctes de
crueldade com que um “unitario” capturado pelos
federalistas seria submettido a uma ludica sessão
de tortura. A recreação em portuguez oitocentista
toma o original gauchesco-dialectal como motte e
glosa-o em dez oitavas medidas pela redondilha maior,
mantendo o ambiente cisplatino da epocha de Rosas,
arejado pelo clima tropical da piccardia brazileira.
Ao original cabe annotar que “mazorquero”, a par do
sentido de “bagunceiro” que tem em portuguez, allude
mais propriamente à Mazorca, especie de Gestapo do
dictador argentino:

“LA REFALOSA” [Hilario Ascasubi]

Mirá, gaucho salvajón,


que no pierdo la esperanza, y no es chanza,
de hacerte probar qué cosa
es Tin tin y Refalosa.
Ahora te diré cómo es:
escuchá y no te asustés;
que para ustedes es canto
más triste que un viernes santo.

Unitario que agarramos lo estiramos;


o paradito nomás, por atrás,
lo amarran los compañeros
por supuesto, mazorqueros, y ligao
con un maniador doblao,

270
ya queda codo con codo
y desnudito ante todo. ¡Salvajón!
Aquí empieza su aflición.
Luego después a los pieses
un sobeo en tres dobleces se le atraca,
y queda como una estaca
lindamente asigurao, y parao
lo tenemos clamoriando;
y como medio chanciando lo pinchamos,
y lo que grita, cantamos
la refalosa y tin tin, sin violín.

Pero seguimos el son


en la vaina del latón, que asentamos
el cuchillo, y le tantiamos
con las uñas el cogote.
¡Brinca el salvaje vilote que da risa!
Cuando algunos en camisa
se empiezan a revolcar, y a llorar,
que es lo que más nos divierte; de igual suerte
que al Presidente le agrada,
y larga la carcajada de alegría, al oir la musiquería
y la broma que le damos
al salvaje que amarramos.

Finalmente: cuando creemos conveniente,


después que nos divertimos
grandemente, decidimos que al salvaje
el resuello se le ataje; y a derechas
lo agarra uno de las mechas, mientras otro
lo sujeta como a potro de las patas,

271
que si se mueve es a gatas.

Entretanto, nos clama por cuanto santo tiene el


cielo;
pero ahi nomás por consuelo a su queja:
abajito de la oreja,
con un puñal bien templao y afilao,
que se llama el quita penas,
le atravesamos las venas del pescuezo.
¿Y qué se le hace con eso?
Larga sangre que es un gusto, y del susto
entra a revolver los ojos.

¡Ah! Hombres flojos


hemos visto algunos de éstos
que se muerden y hacen gestos, y visajes
que se pelan los salvajes,
largando tamaña lengua;
y entre nosotros no es mengua el besarlo,
para medio contentarlo.

¡Qué jarana!
nos reimos de buena gana y muy mucho,
de ver que hasta les da chucho;
y entonces lo desatamos y soltamos;
y lo sabemos parar para verlo refalar
¡en la sangre!
hasta que le da un calambre y se cai a patalear, y
a temblar
muy fiero, hasta que se estira
el salvaje: y, lo que espira,
le sacamos una lonja que apreciamos el sobarla,

272
y de manea gastarla.

De ahi se le cortan orejas,


barba, patilla y cejas; y pelao
lo dejamos arrumbao,
para que engorde algún chancho, o carancho.

Con que ya ves, Salvajón;


nadita te ha de pasar
después de hacerte gritar:
¡Viva la Federación!

273
274
FORTUNA CRITICA

Por Antonio Vicente Seraphim Pietroforte, em


postfacio ao livro TRIPÉ DO TRIPUDIO E OUTROS CONTOS
HEDIONDOS, de Mattoso:

{Publicado em 2005, o romance A PLANTA DA DONZELLA


é inspirado explicitamente no romance A PATTA DA
GAZELLA, de José de Alencar. Considerado o melhor
romancista do seculo XIX, inclusive por Machado
de Assis, Alencar é bem menos recaptado do que
leituras, muitas vezes appressadas e desattentas,
feitas durante a adolescencia, parescem encaminhar.
Thematizando a sexualidade quasi tanto quanto Glauco
Mattoso, ha na prosa de Alencar homens rusticos cujas
primeiras companheiras são do mundo animal - Manuel
Canho, d’O GAUCHO, e sua egua Morena, ou Arnaldo,
d’O SERTANEJO, e sua onça malhada - polygamia -
Ubirajara tem duas esposas, Aracy e Jandyra - sexo
regado a drogas hallucinogenas - Iracema faz amor
com Martim appós beberem o caldo da jurema - scenas
de sexo bastante piccantes - LUCIOLA – bellissimas
descripções de orgasmos - ENCARNAÇÃO - mulheres
dominadoras - Emilia, de DIVA, e Aurelia Camargo,
de SENHORA - e podolatria explicita - A PATTA
DA GAZELLA. José de Alencar, porem, constroe a
realidade de seus romances em funcção do imitativo
elevado, proprio de obras do romantismo; seus
heroes e heroinas ou são essencialmente “bons”,
ou mostram-se assim, revelando que suas eventuaes
villanias seriam da ordem do parescer. Manuel
Canho e Arnaldo terminam envolvidos com mulheres,
respectivamente, Catita e Flor; a polygamia de
Ubirajara se justifica nas dynastias indigenas
fundadas por elle; as acções de Iracema e Martin

275
são justificadas pela mythologia lusosylvicola
inaugurada pelo casal; Lucia encontra sua redempção
na morte, emquanto Emilia e Aurelia, no casamento,
assim como o par romantico de ENCARNAÇÃO; em A
PATTA DA GAZELLA, Horacio, o avido podolatra, é
preterido por Amelia, a dona dos pés disputados,
que, mesmo com suas futilidades de moça, excolhe
casar-se com Leopoldo, o qual não deixa de ter por
premio, no final do romance, os pés delicados da
esposa. Valendo-se das mesmas personagens, Glauco
Mattoso desenvolve, em A PLANTA DA DONZELLA, uma
trama bastante differente daquella de Alencar: dos
salões das casas de familia, a historia se desloca
para clubes sadomasochistas da epocha do imperio;
Leopoldo se envolve com Laura, prima de Amelia, que
de personagem secundaria no texto original torna-
se activista de um daquelles clubes, iniciando
Leopoldo nas practicas SM; Amelia permanesce futil
ao longo do texto, casando-se com Caio de Azevedo
Camargo - um gallo de ovos de ouro, como descreve
o proprio Glauco; Horacio termina só, appós fazer
o papel de submisso perante Leopoldo em uma das
reuniões daquelle selecto gruppo; a podolatria,
que ja é bastante explicita no romance de Alencar,
é extendida aos pés das demais personagens alem
dos de Amelia. Todavia, embora negue o imitativo
alto de José de Alencar, Glauco não deriva, como se
poderia falsamente concluir, devido à convocação
do sadomasochismo e da podolatria, para o imitativo
baixo, proprio de estheticas como o naturalismo,
tambem do seculo XIX - em outras palavras, Glauco
não rebaixa suas personagens revelando pessoas
perversas por traz de pessoas apparentemente nobres,
appenas as substancializa tornando-as mais humanas
e menos romanescas. Para tanto, as personagens se
valem de suas practicas sexuaes, que, do poncto de
vista justificado na obra, não constituem defeitos
ou desvios de conducta, como faz Alencar quando

276
diagnostica o comportamento fetichista de Horacio;
salvos pelo prazer, Leopoldo e Laura teem um final
feliz regado a podolatria e sadomasochismo.}

Por Christina Zarur, em O GLOBO:

{Pés, perversões e prazer attiçam a imaginação


de Glauco Mattoso. Foi sob esta perspectiva que
o auctor paulista escreveu A PLANTA DA DONZELLA
(editora Lamparina), baseando-se numa releitura
de José de Alencar. Ao accrescentar condimentos
piccantes ao seu romance elle parodia A PATTA DA
GAZELLA, do auctor cearense, devassa personagens
e excancara alcovas. Mattoso subverte o moralismo
romantico e desconstroe a narrativa alencariana. No
livro não faltam taras e ferramentas posmodernas:
satyra, pastiche, paraphrases. Plagio? Não, uma
anthropophagia litteraria bem brazileira. [...] A
PLANTA DA DONZELLA é um intertexto dialogando com
varios auctores de epocha. Numa minuciosa pesquisa
Mattoso characteriza a topographia carioca e
recapitula modos e costumes do seculo XIX. Alencar
não foi a unica fonte, ha outras não explicitas, o
escriptor deixa a auctoria occulta nas entrelinhas.
Nessa recyclagem de textos transitam Aluisio de
Azevedo, Rocha Pombo e Gilberto Freyre, entre outros.
Mattoso diverte-se ao revirar de cabeça para baixo
a historia de Alencar. Tripudia ao collocar os pés
e a irreverencia em cyma do conservadorismo. Embora
o livro não seja mero entretenimento, é habil no
humor. Os pezinhos de Amelia, protagonista de ambos
os romances, continuam bibelôs, mas haja differença
nos modos da donzella. A mocinha pudica que saltitava
na obra de Alencar se entrega à libertinagem nas
paginas de Mattoso. Como sua ficção, Glauco Mattoso
é plural, aggrega muitas interpretações.}

277
Por Gustavo Bernardo, no JORNAL DO BRAZIL:

{Alimentando a fama de auctor maldicto, assumindo o


fetiche pessoal por pés (e por pés masculinos), GM
publica em 1986 uma “pseudoautobiographia littero-
erotica”, como a chamou um critico, intitulada MANUAL
DO PODOLATRA AMADOR: ADVENTURAS E LEITURAS DE UM TARADO
POR PÉS. Esse trabalho se desdobra agora no romance
A PLANTA DA DONZELLA, quando se somma ao fetiche por
pés o fetiche da propria ficção. O auctor se dedica
a reescrever um livro marginal (talvez por isso, um
dos mais interessantes) de José de Alencar, A PATTA
DA GAZELLA. Outros -- como o resenhista que vos falla
-- ja se dedicaram a reescrever Alencar trazendo-o
para o seculo seguinte, mas Mattoso ousa mais: elle
reescreve o romance mantendo a syntaxe oitocentista
e as mesmas circumstancias de tempo e espaço. Volta
e meia o narrador faz rapidas referencias ao cinema
e a uma banda de rock, Kinks, famosa por suas lettras
sobre o ciume mas tambem pelas brigas entre os dois
irmãos que della faziam parte. As referencias trazem
o leitor ao presente para o devolverem logo ao Rio de
Janeiro imperial. O narrador recorre “ao historiador”
[Gilberto Freyre] para mostrar o contexto e detalhar
a historia dos pés no Brazil, como o costume do
lavapés e a differença entre o pé largo do negro e
o pé mehudo do mulato, o famoso “pé-de-cabra” que
adjudou a desenvolver a lucta de capoeira. Usando
Alencar contra Alencar e o moralismo burguez contra
o proprio moralismo burguez, Mattoso é minucioso:
retoma paginas inteiras de A PATTA DA GAZELLA,
conforme conta “o romancista de epocha”, mas conduz
o enredo a seu avesso, expondo o inconsciente obsceno
dos romanticos. O quadrado amoroso se mantem: Horacio
e Leopoldo, Amelia e Laura. No romance de Alencar,
Amelia tem os pés minimos e mimosos, provocando o
interesse dos dois rapazes, um conquistador e o outro
timido, emquanto Laura tem pés “inglezes”, isto é,

278
razoavelmente grandes. No romance de Mattoso, Amelia
continua com os seus pés mimosos, mas é Leopoldo
quem os tem enormes e deformados como um alleijão,
padescendo por compta delles enorme vergonha. Só esta
alteração provoca mudanças substanciaes no enredo: os
mesmos accontescimentos geram peripecias diversas.
Taes peripecias accompanham dialogos typicamente
romanticos, mas que se vão subvertendo aos poucos. O
leitor habitual de Glauco Mattoso extranha, porque a
subversão narrativa é lenta e cuidadosa. O erotismo,
presente desde Alencar, se accirra. Laura, como
mestra, conduz a falsa ingenua, Amelia, ao mundo
dos mais perversos. Horacio, no affan de tocar e ser
tocado pelos pezinhos de Amelia, deixa-se conduzir
a uma sessão explicita de sadomasochismo. Os pés
enormes de Leopoldo lhe servem, emfim, para humilhar
o rival com todo o requincte. O final é tão excitante
quanto profundamente perturbador. Não cabe contar o
final. Mas cabe especular que o podolatrismo permitte
uma reviravolta dos que se encontram “por baixo”:
deficientes physicos em particular, excluidos sociaes
em geral. Dobrando a espinha antes que outros a dobrem,
o adorador dos pés alheios representa a submissão
e assim, na sagaz observação de Italo Moriconi nas
orelhas, inverte a seu favor a relação de poder
para transformar sua perda em lucro. O fetiche dos
pés desta maneira se justifica plenamente (como si
precisasse) mas deixa envolto no mysterio o fetiche
maior. O fetiche maior é o da propria ficção. O que faz
um escriptor se dedicar por annos a fio a reescrever
um auctor do seculo retrazado? Não se tracta de
paixão pelo phantasma do Alencar porque Mattoso, ao
contrario, quer combatter o seu moralismo. Mas se
tracta de paixão pela litteratura mesma, com tudo o
que essa paixão possa ter de pathos, de doença e de
vicio. Foi o vicio da ficção que levou o escriptor a
construir um livro de leitura difficil, um livro para
ser lido forçosamente devagar. O livro lido ainda

279
exige do leitor que o releia, ou melhor, que os releia
junctos, A PATTA DA GAZELLA e A PLANTA DA DONZELLA,
para descobrir então como se reescreve a historia
e como as semelhanças se transformam em differenças
capitaes. Não é pouco trabalho. Mas a perda (de tempo
ou da ingenuidade) logo se transforma novamente em
lucro. Si a alma não for pequena, o livro de Glauco
Mattoso vale a pena.}

Por Henrique Marques Samyn, em www.speculum.art.br

{Agora, a incansavel insolencia de Glauco Mattoso


levou-o a comprar briga com um dos maiores nomes da
historia da litteratura brazileira: ninguem menos
que José de Alencar, cujo romance A PATTA DA GAZELLA
foi usurpado e subvertido pela implacavel penna
glauquiana. Em A PLANTA DA DONZELLA, Glauco desmonta,
distorce e retorce a narrativa de Alencar, creando
um romance que soterra o moralismo alencariano sob
uma ardorosa apologia do fetichismo. Ja no prefacio
de A PLANTA DA DONZELLA, o poeta, sem meias palavras,
diz a que vem -- revelando que a obra, longe de
ser uma releitura elogiosa, fica mais proxima de um
enfrentamento descarado. [...] No romance hodierno,
o labor glauquiano distorce e radicaliza a thematica
alencariana, construindo uma obra em que tudo gyra em
torno de podolatrias e fetichismos. Glauco Mattoso
subverte o texto alencariano sobretudo a partir
de dois principios: a intervenção e a inversão.
Quanto à primeira, é realizada de uma forma dupla.
Por vezes, Glauco age nos silencios da narrativa
de Alencar, tractando de expor minuciosamente -- e
despudoradamente -- aquillo que, no texto deste, era
mero detalhe. É este o caso, por exemplo, do sapateiro
Mattos, personagem que, no romance glauquiano, não
excappa ao mundo de perversão do qual faz parte,

280
colleccionando obras de Sade e Restif e assignando
poemas obscenos. Outras vezes, Glauco intervem no
proprio texto alencariano, alterando as innumeras
passagens das quaes se appropria, mudando e inserindo
phrases inteiras de modo a adaptal-as ao seu interesse.
Por outro lado, tambem a inversão é empregada de
diversas maneiras na narrativa glauquiana. Embora a
inversão mais notavel do texto, presente na relação
entre Amelia e Horacio, não possa ser aqui descripta
por representar um elemento essencial no desfecho
do romance, ha que se destaccar que Glauco tambem
actua modificando estructuras do romance de Alencar,
fazendo com que Horacio passe por situações nas quaes
o envolvido, na obra alencariana, era Leopoldo, e
vice-versa. A inversão mais importante, no entanto,
emerge nas paginas finaes da obra -- quando,
consummados os desejos e reveladas as vontades,
A PLANTA DA DONZELLA revela-se como uma inversão
total do moralismo alencariano, destruindo quaesquer
resquicios de platonismo e offerescendo sceptro e
coroa ao mais impudico hedonismo. Si José de Alencar
tencionou escrever uma “fabula” de cunho moralizante,
com o ficto de educar desejos e sentimentos, a Glauco
Mattoso mais interessa questionar esta moralidade,
demonstrando que, quando se tracta de assumptos
tão subjectivos, as tentativas de normatização
difficilmente podem lograr algum successo. Será que
appenas o delicado e mimoso pé de Amelia poderia
ser objecto de desejo? Será que appenas o amor
platonico, à maneira do que sente Leopoldo na obra
alencariana, vale a pena? Glauco Mattoso responde a
ambas as perguntas com um emphatico “não”, retomando
a defesa da differença que ja fizera em seu “Sonnetto
Pluralista”: “Si formos deduzindo com cuidado, /
nenhum egual ao proximo será.”}

Por José Carlos Vieira, no CORREIO BRAZILIENSE e no


DIARIO CATHARINENSE:

281
{Os mundos parallelos de Glauco Mattoso são muitos
e muitos não teem volta. Como si fosse um daquelles
loucos cineastas do expressionismo allemão, o
prosador e poeta paulistano approveita historias ja
contadas e conhescidas, como A PATTA DA GAZELLA, do
romancista cearense José de Alencar, para reinventar
uma trama com angulos e lentes differentes, mas
de olho no mesmo foco: o pé. O scenario da obra
recemlançada pela Lamparina editora é o mesmo
de Alencar -- o Rio de Janeiro do seculo 19, do
Romantismo --, mas o transgressor Mattoso dirige
um mundo em outra dimensão, assim como fez Robert
Wiene, no filme O GABINETE DO DOUTOR CALIGARI (1919),
no qual os personagens brigam com a realidade dentro
de um hospicio para attingir em cheio a cabeça do
espectador. E o real para Mattoso é a obra de José de
Alencar, que tinha o suggestivo appellido de Cazuza
na infancia. A PATTA DA GAZELLA é uma historieta
romantica, um conto de fadas à brazileira em que
dois jovens mancebos, Horacio e Leopoldo, um rico e
outro pobre, disputam o pé (a mão) da bella e rica
Amelia, a Cinderella tropical. E é o pé que tambem
vae nortear toda a narrativa de A PLANTA DA DONZELLA,
com citações directas ou indirectas de auctores
classicos do Romantismo, como o poeta Alvares de
Azevedo. Para justificar a releitura de A PATTA DA
GAZELLA, o poeta se autodenomina um podolatra --
é auctor do autobiographico MANUAL DO PODOLATRA
AMADOR: ADVENTURAS E LEITURAS DE UM TARADO POR PÉS.
A submissa e desejada donzella é transformada numa
pessoa dominadora de um jogo com nuances de perversão
e fetichismo da Inglaterra no periodo victoriano. É
um livro que dá tesão, desejo, mesmo aos que não
sonham com um pé maravilhoso desfilando em nuvens de
seda branca. Resultado de um escriptor maduro que
optou pela transgressão. Indagado si ainda carrega
nos oculos escuros algum rotulo litterario, como
o de “marginal” por ser contemporaneo da geração

282
de poetas loucos dos annos 70, disse que a sua
“exquisitice” o libera desses carimbos.}

Por Sebastião Nunes, em www.cronopios.com.br:

{O livro de Alencar foi publicado, sob o pseudonymo


de Senio, em 1870, como informa na introducção o
releitor. O de Glauco sahiu 135 annos depois e é uma
extraordinaria combinação de rigor, parodia, pastiche
e -- como não poderia deixar de ser -- sadomasochismo.
Não tenho espaço, nesta columna, para mostrar todos
os desvios com que Glauco tira a historia de Alencar
dos eixos e a transforma num romance modernissimo.
Tambem não tenho espaço para mostrar o que pode
crear um talento excepcional a partir de um breve
romance, appenas trocando alguns nomes e fazendo
gyrar vertiginosamente as situações, que no entanto
se passam na mesma epocha, no mesmo logar e com os
mesmos personagens, ou quasi os mesmos. Appesar da
manutenção da estructura e até da linguagem, que
differença de um livro para o outro! Digamos, sem
desmerescer o alto nivel de fabulação do grande José
de Alencar, que seria como Villa-Lobos tomar uma
valsinha qualquer do seculo 19 e transformal-a numa
de suas bachianas, coisa de que seria perfeitamente
capaz. Admirador phrenetico do JORNAL DOBRABIL,
da prodigiosa producção glauquiana de sonnettos e
de tudo o mais que brota de sua usina creativa,
obras que mostram com sobras tudo aquillo de que um
grande escriptor é capaz, sou mais uma vez obrigado a
adjoelhar-me aos pés de Glauco Mattoso para lamber-
lhe as botinas. Para terminar, accrescento que o
effeito é ainda mais surprehendente e desbundante
quando os dois livros, A PATTA DA GAZELLA e A PLANTA
DA DONZELLA, são lidos (ou relidos) ao mesmo tempo,
ou quasi.}

283
São Paulo
Casa de Ferreiro
2020
E

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