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ANGOLA

As terras sentidas
(Agostinho Neto - 1922-1979)

As terras sentidas de África


nos ais chorosos do antigo e do novo escravo
no suor aviltante do batuque impuro
de outros mares
sentidas

As terras sentidas de África


na sensação infame do perfume estonteante da flor
esmagada na floresta do ferro e do fogo
as terras sentidas

As terras sentidas de África


no sonho logo desfeito em tinidos de chaves carcereiras
e no riso sufocado e na voz vitoriosa dos lamentos
e no brilho inconsciente das sensações escondidas
das terras sentidas de África

Vivas
em si e connosco vivas

Elas fervilham-nos em sonhos


ornados de danças de embondeiros sobre equilíbrios
de antílope
na aliança perpétua de tudo quanto vive

Elas gritam o som da vida


gritam-no
mesmo nos cadáveres devolvidos pelo Atlântico
em oferta pútrida de incoerência e morte
e na limpidez de rios

Elas vivem
as terras sentidas de África
no som harmonioso das consciências
incluída no sangue honesto dos homens
no forte desejo dos homens
na sinceridade dos homens
na razão pura e simples da existência das estrelas
Elas vivem
as terras sentidas de África
porque nós vivemos
e somos as partículas imperecíveis
das terras sentidas de África.

Certeza
(Agostinho Neto)

Não me peças sorrisos


que ainda transpiro
os ais
dos feridos nas batalhas

Não me exijas glórias


que sou eu o soldado desconhecido
da humanidade

As honras
cabem aos generais

A minha glória
é tudo o que padeço
e que sofri
Os meus sorrisos
tudo o que chorei

Nem sorrisos, nem glória

Apenas um rosto duro


de quem constrói a estrada
por que há de caminhar
pedra após pedra
em terreno difícil

Um rosto triste
pelo tanto esforço perdido
- o esforço dos tenazes
que à tarde se cansam

Uma cabeça sem louros


porque não me encontrei
no catálogo
das glórias humanas
Não me descobri na vida
e selvas desbravadas
escondem os caminhos
por que hei-de passar

Mas hei-de encontrá-los


e segui-los
seja qual for o preço

Então
num novo catálogo
mostrar-te-ei o meu rosto
coroado de ramos de palmeira

E terei para ti
os sorrisos que me pedes.

Declaração
(António Jacinto - 1924-1991)

As aves, como voam livremente


num voar de desafio!
Eu te escrevo, meu amor,
num escrever de libertação.

Tantas, tantas coisas comigo


adentro do coração
que só escrevendo as liberto
destas grades sem limitação.
Que não se frustre o sentimento
de o guardar em segredo
como liones, correm as águas do rio!
corram límpidos amores sem medo.

Ei-lo que to apresento


puro e simples - o amor
que vive e cresce ao momento
em que fecunda cada flor.

O meu escrever-te é
realização de cada instante
germine a semente, e rompa o fruto
da Mãe-Terra fertilizante.

Não conheço nada do país do meu amado


(Ana Paula Tavares - 1952-)

Não conheço nada do país do meu amado


Não sei se chove, nem sinto o cheiro das laranjas.
Abri-lhe as portas do meu país sem perguntar nada
Não sei que tempo era
O meu coração é grande e tinha pressa
Não lhe falei do país, das colheitas, nem da seca
Deixei que ele bebesse do meu país o vinho o mel a carícia
Povoei-lhe os sonhos de asas, plantas e desejo
O meu amado não me disse nada do seu país
Deve ser um estranho país
o país do meu amado
pois não conheço ninguém que não saiba
a hora da colheita
o canto dos pássaros
o sabor da sua terra de manhã cedo
Nada me disse o meu amado
Chegou
Mora no meu país não sei por quanto tempo
É estranho que se sinta bem
e parta.
Volta com um cheiro de país diferente
Volta com os passos de quem não conhece a pressa.

MOÇAMBIQUE
África
(José Craveirinha - 1922-2003)

Em meus lábios grossos fermenta


a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África
e meus ouvidos não levam ao coração seco
misturado com o sal dos pensamentos
a sintaxe anglo-latina de novas palavras.

Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos


a mística das suas missangas e da sua pólvora
a lógica das suas rajadas de metralhadora
e enchem-me de sons que não sinto
das canções das suas terras
que não conheço.

E dão-me
a única permitida grandeza dos seus heróis
a glória dos seus monumentos de pedra
a sedução dos seus pornográficos Rolls Royce
e a dádiva quotidiana das suas casas de passe.
Ajoelham-me aos pés dos seus deuses de cabelos lisos
e na minha boca diluem o abstracto
sabor da carne de hóstias em milionésimas
circunferências hipóteses católicas de pão.

E em vez dos meus amuletos de garras de leopardo


vendem-me a sua desinfectante benção
a vergonha de uma certidão de filho de pai incógnito
uma educativa sessão de «strip-tease» e meio litro
de vinho tinto com graduação de álcool de branco
exacta só para negro
um gramofone de magaíça
um filme de heróis de carabina ao vencer traiçoeiros
selvagens armados de penas e flechas
e o ósculo das balas e aos gases lacrimogéneos
civiliza o meu casto impudor africano.

Efígies de Cristo suspendem ao meu pescoço


rodelas de latão em vez dos meus autênticos
mutovanas da chuva e da fecundidade das virgens
do ciúme e da colheita de amendoim novo.
E aprendo que os homens que inventaram
A confortável cadeira eléctrica
a técnica de Buchenwald e as bombas V2
acenderam fogos de artifício nas pupilas
de ex-meninos vivos de Varsóvia
criaram Al Capone, Hollywood, Harlem
a seita Ku-Klux Klan, Cato Mannor e Sharpeville
e emprenharam o pássaro que fez o choco
sobre o ninho morno de Hiroshima e Nagasaki
conheciam o segredo das parábolas de Charlie Chaplin
lêem Platão, Marx, Gandhi, Einstein e Jean-Paul Sartre
e sabem que Garcia Lorca não morreu mas foi
assassinado
são os filhos dos santos que descobriram a Inquisição
perverteram de labaredas a crucificada nudez
da sua Joana D’Arc e agora vêm
arar os meus campos com charruas «made in Germany»
mas já não ouvem a subtil voz das árvores
nos ouvidos surdos do espasmo das turbinas
não lêem nos meus livros de nuvens
o sinal das cheias e das secas
e nos seus olhos ofuscados pelos clarões metalúrgicos
extingiu-se a eloquente epidérmica beleza de todas
as cores das flores do universo
e já não entendem o gorjeio romântico das aves de casta

instintos de asas em bando nas pistas do éter


infalíveis e simultâneos bicos trespassando sôfregos
a infinta côdea impalpável de um céu que não existe.
E no colo macio das ondas não adivinham os vermelhos
sulcos das quilhas negreiras e não sentem
como eu sinto o prenúncio mágico sob os transatlânticos
da cólera das catanas de ossos nos batuques do mar.
E no coração deles a grandeza do sentimento
é do tamanho cow-boy do nimbo dos átomos
desfolhados no duplo rodeo aéreo do Japão.

Mas nos verdes caminhos oníricos do nosso desespero


Perdôo-lhes a sua bela civilização à custa do sangue
ouro, marfim, améns
e bíceps do meu povo.

E ao som másculo dos tantãs tribais o eros


do meu grito fecunda o húmus dos navios negreiros...
E ergo no equinócio da minha Terra
o moçambicano rubi do mais belo canto xi-ronga
e na insólita brancura dos rins da plena Madrugada
a necessária carícia dos meus dedos selvagens
é a táctica harmonia de azagaias no cio das raças
belas como altivos falos de ouro
erectos no ventre nervoso da noite africana.

Nossa voz
(Noémia de Sousa - 1926-2002)
Ao J. Craveirinha

Nossa voz ergueu-se consciente e bárbara


sobre o branco egoísmo dos homens
sobre a indiferença assassina de todos.
Nossa voz molhada das cacimbadas do sertão
nossa voz ardente como o sol das malangas
nossa voz atabaque chamando
nossa voz lança de Maguiguana
nossa voz, irmão,
nossa voz trespassou a atmosfera conformista da cidade
e revolucionou-a
arrastou-a como um ciclone de conhecimento.

E acordou remorsos de olhos amarelos de hiena


e fez escorrer suores frios de condenados
e acendeu luzes de esperança em almas sombrias de desesperados...

Nossa voz, irmão!


nossa voz atabaque chamando.

Nossa voz lua cheia em noite escura de desesperança


nossa voz farol em mar de tempestade
nossa voz limando grades, grades seculares
nossa voz, irmão! nossa voz milhares,
nossa voz milhões de vozes clamando!

Nossa voz gemendo, sacudindo sacas imundas,


nossa voz gorda de miséria,
nossa voz arrastando grilhetas
nossa voz nostálgica de ímpis

nossa voz África


nossa voz cansada da masturbação dos batuques da guerra
nossa voz gritando, gritando, gritando!
Nossa voz que descobriu até ao fundo,
lá onde coaxam as rãs,
a amargura imensa, inexprimível, enorme como o mundo,
da simples palavra ESCRAVIDÃO:

Nossa voz gritando sem cessar,


nossa voz apontando caminhos
nossa voz xipalapala
nossa voz atabaque chamando
nossa voz, irmão!
nossa voz milhões de vozes clamando, clamando, clamando.

SÃO TOME E PRÍNCIPE

Canção do mestiço
(Francisco José Tenreiro - 1921-1963)

Mestiço!

Nasci do negro e do branco


e quem olhar para mim
é como que se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande


uma alma feita de adição
Foi isso que um dia
o branco cheio de raiva
cantou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
- mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah! Mas eu me danei…


e muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor!…

Mestiço!

Quando amo a branca


sou branco…
Quando amo a negra
sou negro.

Pois é…

Cantares santomenses
(Caetano de Costa Alegre 1864-1890)

(A meu tio Jerónimo José da Costa)


Branca a espuma e negra a rocha,
Qual mais constante há-de ser,
A espuma indo e voltando,
A rocha sem se mexer?
*
Não creias que em teu jazigo
Alguém parta o coração,
No mundo quem morre, morre,
Quem cá fica come pão.
*
Não me dizem quanto tempo
Tenho ainda que viver,
Ficava ao menos sabendo
Quando finda o meu sofrer.
*
Se eu me casasse contigo,
Fazia um voto de ferro,
De deixar-te unicamente
No dia do meu enterro.
*
Todos me dizem: “esquece
Essa paixão, que te abrasa”.
Que serve fechar a porta
Ao fogo que tenho em casa?

Não havia tanta cara


De asno, de tolo e pedante,
Se falasse, quem censura,
Com um espelho adiante.
*
Brotam espinhos da rosa,
O incêndio brota do lume.
A traição brota das juras,
Brota do amor o ciúme.
*
Numa loja conhecida
O que é cem custa duzentos,
Levam dinheiro em fazendas
E o tempo nos cumprimentos.
*
Macaco, chamaste tolo
Ao meu pequeno sagüi.
Também queria que ouvisses
O que ele disse de ti.
*
Por teu desdém não me mato,
Não faço tamanha asneira,
Se o meu amor tu não queres,
Há muita gente que o queira.
*
Quem pode num campo vasto
O joio apartar dos trigos?
Quem conhece dentre os falsos
Os verdadeiros amigos?

Angolares
Canoa frágil, à beira da praia,
panos preso na cintura,
uma vela a flutuar…
Caleima, mar em fora
canoa flutuando por sobre as procelas das águas,
lá vai o barquinho da fome.
Rostos duros de angolares
na luta com o gandu
por sobre a procela das ondas
remando, remando
no mar dos tubarões
p’la fome de cada dia.
Lá longe, na praia,
na orla dos coqueiros
quissandas em fila,
abrigando cubatas,
izaquente cozido
em panela de barro.

Hoje, amanhã e todos os dias


espreita a canoa andantepor sobre a procela das águas.
A canoa é vida
a praia é extensa
areal, areal sem fim.
Nas canoas amarradas
aos coqueiros da praia.
O mar é vida.
P’ra além as terras do cacau
nada dizem ao angolar
“Terras tem seu dono”.

E o angolar na faina do mar,


tem a orla da praia
as cubatas de quissandas
as gibas pestilentas
mas não tem terras.

P’ra ele, a luta das ondas,


a luta com o gandu,
as canoas balouçando no mar
e a orla imensa da praia.

A AMADOR VIEIRA, de Olinda Beja (são Tomé e Príncipe)

Como Amador seremos se quisermos

ter a força que lhe deu

a luz do dia em plena noite de breu

o grito da revolta foi mais forte

que o grilhão da escravatura acorrentado à morte

Como Amador faremos se soubermos colher o fruto e replantar

a semente da esperança em cada olhar

Por isso ficará na nossa História

a ultrapassar o tempo

da memória e do esquecimento

Como Amador seremos se tivermos a coragem de enfrentar

a nossa solidão de ilhéus e o nosso amor pelo mar!

II
Era Rei e era seu o porvir

o eco repetido despojado e nu de vida longa

como a fragilidade do silêncio

era Rei e era seu o paraíso

cada manhã cada orvalho cada sol

como a firmeza da corrente ou o riso das crianças do obô!

era Rei e era sua a vida

o voo das garças a astúcia da lagaia o cheiro do mar

como a força de gigante que dormia no seu peito

era Rei e foi sua a morte

a glória de resistir

a paz de quem vence o abraço longínquo da certeza!

BEJA, Olinda. Aromas de Cajamanga. São Paulo: Escrituras, 2009.

DE CORAÇÃO EM ÁFRICA

Agora compreendo a tua frase em toda a extensão

do sentimento

palavras escritas com a ânsia que oprimiu a ternura

do teu coração ilhéu

de coração em África estão os filhos

que trilham os caminhos da aventura

e partem sempre convencidos que o regresso

espreita em cada esquina


mas o mundo não tem as mesmas cores do mato virginal

da nossa infância

e ficam suspensas na memória as saudades

da voz da mãe da nossa mãe

de coração em África vamos percorrendo as estradas da velha Europa e tropeçando nas


lágrimas que vertemos

a 200Km. por hora

ficam escritos nas planícies, nos montes, nos vales, nos rios

os segredos da nossa africanidade

por isso eu vou como tu Francisco José Tenreiro afogando

a eternidade da nossa vida dupla

neste papel que recebe o meu inesgotável pranto.

BEJA, Olinda. Aromas de Cajamanga. São Paulo: Escrituras, 2009.

GUINÉ-BISSAU

Não posso adiar a palavra


(Helder Proença - 1956-)

Quando te propus
um amanhecer diferente
a terra ainda fervia em lavas
e os homens ainda eram bestas ferozes

Quando te propus
a conquista do futuro
vazias eram as mãos
negras como breu o silêncio da resposta
Quando te propus
o acumular de forças
o sangue nómada e igual
coagulava em todos os cárceres
em toda a terra
e em todos os homens

Quando te propus
um amanhecer diferente, amor
a eternidade voraz das nossas dores
era igual a “Deus Pai todo poderoso criador dos céus e da terra”

Quando te propus
olhos secos, pés na terra, e convicção firme
surdos eram os céus e a terra
receptivos as balas e punhais
as amaldiçoavam cada existência nossa

Quando te propus
abraçar a história, amor
tantas foram as esperanças comidas
insondável a fé forjada
no extenso breu de canto e morte

Foi assim que te propus


no circuito de lágrimas e fogo, Povo meu
o hastear eterno do nosso sangue
para um amanhecer diferente!

CABO VERDE

Crioulo
(Manuel Lopes - 1907-2005)

Há em ti a chama que arde com inquietação


e o lume íntimo, escondido, dos retolhos,
- que é o calor que tem mais duração.
A terra onde nasceste deu-te a coragem e a resignação.
Deu-te a fome nas estiagens dolorosas.
Deu-te a dor para que nela
sofrendo, fosses mais humano.
Deu-te a provar da sua taça o agridoce da compreensão,
e a humildade que nasce do desengano...

E deu-te esta esperança desenganada


em cada um dos dias que virão
e esta alegria guardada
para a manhã esperada
em vão...

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