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Renata Felis Bazzo Repa
Renata Felis Bazzo Repa
Renata Felis Bazzo Repa
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AGRADECIMENTOS
The present study sought to examine the concept of sense of reality in the work of
Sigmund Freud. Although widely used in psychoanalytic research, there are few
definitions of the concept, leaving many questions about their assignments in the
function of apprehending reality. Contributes to that the fact that Freud uses it only
once, under that name in the text The malaise in civilization (1930), when he states that
there is a development of the sense of reality. This Freudian thesis has become common
in many subsequent researches in psychoanalysis which sought to establish the ways in
which this development would occur. The present study aimed to investigate whether
and how the sense of reality could develop. For this, we define the concept by
investigating the notion of reality feeling. Subsequently, the study conducts a survey of
the use of this concept in the psychoanalytic tradition, his constant connection with that
development and the problems that this junction could bring to psychoanalytic
treatment. In the next phase, we established what could be the psychic development for
Freud. The last step consists, in its turn, an intersection of the hypotheses about the
meaning of reality sense with the development modes found in Freud. This work
suggests the following results: it is possible to find different conceptions of
development for the sense of reality in Freud, but none of them suggests the existence
of a development along the lines of epigenesis or as a totalizing process.
Introdução ................................................................................................................p. 10
Bibliografia............................................................................................................p. 189
10
Introdução
psicologia humana (Perres, 1989). Como exemplo, citamos o artigo de Bernard Baas,
cuja tese consiste em que o conceito de realidade psíquica marca a distinção e a
novidade da teoria freudiana das demais teorias sobre o homem. Segundo ele, o
conceito de inconsciente não representa a inovação freudiana, uma vez que já existia em
autores anteriores, ainda que em diferente acepção, mas que Freud, ao postular “a
realidade psíquica (...), rompe com toda a tradição filosófica e psicológica que precede a
invenção da psicanálise” (Baas, 2001, p.23). Além disso, o debate a respeito da
realidade também apresenta grande relevância para as discussões clínicas e técnicas
terapêuticas (Dayan, 1985). No interior da formulação freudiana a respeito dos quadros
psicopatológicos, um dos critérios de diagnóstico diferencial seria a relação do sujeito
com a realidade, seus modos de negá-la, perdê-la e substituí-la. No que se refere às
técnicas analíticas e suas reformulações ao longo da obra, as concepções de realidade
estiveram presentes e foram determinantes para o que se articulou sobre a transferência,
a construção da fantasia, o papel da rememoração e da repetição no tratamento.
Diante dessa composição bastante diversa de conceitos que envolvem a
realidade na obra freudiana, a presente pesquisa selecionou como tema de estudo o
conceito de sentido de realidade. Embora tal conceito não tenha sido criado por Freud,
mas por Ferenczi em texto intitulado O desenvolvimento do sentido de realidade e seus
estágios (1913), não se pode esquecer que ele foi derivado de uma questão apresentada
por Freud, e foi posteriormente incorporado a sua obra, que o menciona tardiamente.
Assim, a questão da qual parte Ferenczi se desenrola a partir das teses
anunciadas por Freud sobre o estabelecimento do princípio de realidade no aparelho
psíquico, as quais foram apresentadas no texto de 1911, intitulado Formulações sobre
os dois princípios do funcionamento mental. Nesse texto, Freud procura apresentar ao
leitor a hipótese da existência de um princípio de prazer presente no início do
funcionamento do aparelho psíquico, cuja finalidade seria a obtenção de prazer e a
evitação do desprazer. Por não conseguir obter satisfação das necessidades dentro dos
moldes desse funcionamento inicial, Freud afirma a necessidade do estabelecimento de
outra forma de funcionamento que pudesse retificar os procedimentos do princípio de
prazer, que levaria o aparelho a considerar devidamente as exigências impostas pela
realidade. Esse segundo modo de operar será denominado o princípio de realidade.
Segundo Ferenczi, nesse texto de 1911, Freud estaria interessado nas
modificações necessárias para que o princípio de realidade pudesse passar a operar, nas
causas para seu surgimento, nas suas características principais, nas regiões e nos
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aspectos do acontecer psíquico que resistiriam a sua implementação. No entanto, ele não
teria descrito as etapas da passagem do princípio de prazer ao princípio de realidade.
Visando sanar essa deficiência do texto freudiano, Ferenczi escreve o referido artigo de
1913 na tentativa de conseguir definir as etapas desse desenvolvimento do que ele
chama “estágio-prazer” ao “estágio-realidade” e, assim, conseguir esclarecer as fases do
percurso que estão ausentes do texto de Freud. O sentido de realidade seria resultado
desse processo de instalação do princípio de realidade com todas as modificações que
este traz ao aparelho.
A expressão “sentido de realidade” aparecerá em Freud somente em 1930,
mencionada apenas uma vez no texto O mal-estar na civilização. Assim como em
Ferenczi, ele se apresenta em associação com a concepção de desenvolvimento, quando
Freud lista os métodos de evitação de sofrimento adotado pelos homens:
lado está a sensação de realidade despertada pelo sonho, que Freud não julga ser um
problema ocasionado por um erro de julgamento. Apesar de alguns comentadores
aproximarem esses conceitos como sendo equivalentes, não há muitas indicações
textuais a respeito da possibilidade de tal diferença terminológica (sentido e sentimento)
indicar uma conexão conceitual clara. O fato de haver tão poucas ocorrências dos dois
termos nas obras de Freud, agravado pelo fato de, nas poucas aparições, serem
mencionados no interlúdio, no fluxo de outras e maiores discussões conceituais,
colaborou para aprofundar o desconhecimento de sua distinção ou de sua eventual
articulação. Dessa forma, os alcances e limites de suas definições não foram explorados,
de modo que conceito de sentido de realidade acabou permanecendo em uma zona
nebulosa, entre os conceitos de sentimento, juízo, convicção, consciência, sem ser
possível conferir uma equivalência evidente entre eles ou sem que se possa separá-los
devidamente.
Essa falta de precisão na demarcação do conceito é facilmente identificável
mesmo nos trabalhos dos autores que tomaram o sentido de realidade como objeto de
estudo. Nesses textos, não é possível encontrar uma definição unívoca do termo, que
aparece algumas vezes como sendo uma espécie de adaptação à realidade; outras vezes
significa o abandono da ilusão advinda do sentimento de onipotência e aceitação das
contingências, também como sendo a capacidade de objetivação ou a capacidade de
considerar a realidade do mundo externo e, ainda, como sendo a capacidade do eu de
distinguir-se do ambiente que o circunda.
A razão de nossa opção por um conceito que, como dissemos, aparece de modo
tão pontual na obra de Freud consiste em que acreditamos que ele possa guardar
referências importantes para se entender a concepção freudiana das relações do aparelho
psíquico com a realidade.
É visível que o conceito tem apresentado uma recorrência cada vez maior nos
estudos a respeito da personalidade borderline, das formações psicossomáticas e dos
chamados transtornos de pânico, ou seja, três quadros em que os sintomas de
desrealização e sintomas de estranhamento da realidade do corpo seriam frequentes.
Usualmente, nesses trabalhos, a abordagem feita em relação ao sentido de realidade
refere-se a sua ausência ou falha, fatores que poderiam estar na origem dos fenômenos
de despersonalização. Além disso, autores como Abend (1982) têm ressaltado a
importância de definir com mais precisão os conceitos que concernem à relação com a
realidade. Ele se refere às noções de teste de realidade e, justamente, o sentido de
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realidade. Com isso, as intervenções clínicas poderiam se tornar mais precisas nos casos
em que apresentam problemas nessa relação.
Em nossa pesquisa, abordaremos o problema do sentido de realidade tomando
como fio condutor a questão que, como anunciamos acima, esteve presente desde a sua
origem, isto é, a suposição da existência de um desenvolvimento, no aparelho psíquico,
do sentido de realidade. Ainda que apresente apenas uma menção textual ao conceito,
nosso interesse se concentrará na obra freudiana. Isso porque, primeiramente,
pretendemos examinar a interpretação de muitos comentadores de sua obra, que,
baseados nos textos como Formulações sobre os dois princípios do funcionamento
mental (1911) e Totem e tabu (1913), afirmaram ser possível encontrar uma lógica
desenvolvimentista para o sentido de realidade, usualmente relacionada ao
desenvolvimento do eu e das pulsões. Portanto, apesar da raridade textual, o conceito
não deixou de ser objeto de uma interpretação de longo alcance entre os comentadores.
Uma interpretação que, como pretendemos mostrar, envolve uma série de dificuldades.
Assim, pode-se dizer que o sentido de realidade aparece na maior parte da
literatura de comentário como incorporado a uma lógica de desenvolvimento. Mais
exatamente, como uma modificação do aparelho psíquico após o surgimento do
princípio de realidade ou o abandono da onipotência do pensamento, modificação esta
que poderia levar o aparelho a estabelecer relações mais adaptadas e objetivas com a
realidade. Não importando quais as modificações específicas estão envolvidas nesse
desenvolvimento, a hipótese mais frequente entre os comentadores é que ela sempre
resulta em progresso para a relação com a realidade e em abandono das formas
primitivas e precárias.
A admissão da hipótese de um desenvolvimento do sentido de realidade segundo
um modelo progressista e teleológico não fica restrita a concepções teóricas apenas,
podendo interferir diretamente nas resoluções a respeito da prática clínica da
psicanálise. Por exemplo, no artigo intitulado Impairment of the Sense of Reality as
Manifested in Psychoneurosis and Everyday Life (1953), Frumkes sugere o
funcionamento integral do sentido de realidade como um objetivo para análise e um dos
critérios para determinar o final do tratamento. Algo análogo se aplica, como veremos
também no terceiro capítulo, a uma série de autores que tratam da questão da
transferência com a realidade. Dentre eles, mencionemos desde já o artigo de Nunberg,
Transference and reality (1951). Nele o autor afirma ser a transferência uma distorção
da percepção da realidade, de modo que o tratamento deveria encaminhar-se na direção
15
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próximo ao sentido de realidade, poderia lançar luz sob nosso tema de estudo.
Tentaremos aqui elucidar se a existência da diversidade na nomenclatura apenas indica
diferentes denominações para o mesmo significado teórico, se ela suscita um problema
de tradução ou se, em si mesma, já seria um indício da existência de diferentes
interpretações desse tópico no interior da literatura psicanalítica.
No terceiro capítulo procuramos mapear a produção bibliográfica sobre o tema
do sentido de realidade na literatura de comentário e autores da psicanálise. Os autores
consultados e os artigos selecionados para serem analisados aqui são os seguintes:
Ferenczi (O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios – 1913), Edward
Glover (The Relation of Perversion-Formation to the Development of Reality-Sense –
1933), Zilboorg (The Sense of Reality – 1941), Frumkes (Impairment of the Sense of
Reality as Manifested in Psychoneurosis and Everyday Life – 1953), Abend (Some
Observations on Reality Testing as a Clinical Concept – 1982), e Hurvich (On the
Concept of Reality Testing – 1970). Além disso, procuramos apresentar alguns
problemas clínicos que envolvem a hipótese do desenvolvimento do sentido de
realidade nos textos de Balint (The Final Goal of Psycho-Analytic Treatment – 1936),
Bénassy (Fantasy and Reality in Transference – 1960), Nunberg (Transference and
reality – 1951).
Para ter um acesso mais consistente ao que poderia significar desenvolvimento
na obra de Freud, realizamos, no quarto capítulo, uma investigação sobre o quadro de
referência histórico-conceitual em que emerge a categoria de desenvolvimento. Em um
primeiro momento, são patentes os múltiplos sentidos que a categoria do
desenvolvimento recebeu, principalmente nas últimas décadas do século XVIII. De
modo geral, esse termo agregou novas significações com a instauração da lógica
temporal judaico-cristã e a crescente importância da noção de progresso. Na segunda
parte do capítulo, buscamos nos estudos de embriologia e zoologia importantes balizas
para a compreensão do que passou a se entender por desenvolvimento no século XIX.
Temos como referência aqui uma indicação de Canguilhem e outros autores (2003), em
estudo dedicado ao tema, segundo a qual o campo das investigações da biologia poderia
fornecer coordenadas importantes para apreender a problemática do desenvolvimento
em suas condensações e deslocamentos junto com o conceito de evolução.
Apresentamos essas concepções nas teses da epigênese, da pré-formação e nas teorias
darwinistas. Na terceira parte do capítulo, fizemos uma breve recapitulação de como as
ciências humanas se apropriaram dessas teorias e dos sentidos conferidos aí ao termo
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Parte I
mesmo que não esteja identificado com esse termo pelo autor. Quanto ao vocábulo
Realitätssinnes, que significa “sentido (ou senso) de realidade” é possível encontrá-lo
mencionado somente uma vez e em apenas um texto Freud, mais exatamente, em O
mal-estar na civilização. Ao compararmos com o primeiro termo, observamos não
apenas uma mudança de sentimento (Gefühl) para sentido (Sinn), como também uma
mudança na própria designação da realidade, que passa da forma germânica
Wirklichkeit para a versão latina Realität2.
Nesses poucos textos freudianos em que aparecem, os termos não são definidos
mas, ainda sim, é possível extrair bastante a seu respeito pelo contexto de inserção e
pelos debates condensados à sua volta. Nos dois primeiros capítulos dessa seção,
expomos nossa investigação, que objetiva elucidar se estamos diante de uma dupla
denominação para um mesmo conceito ou se são conceitos diferentes. O resultado a que
chegamos consiste, fundamentalmente, na ideia de que o sentido de realidade é a
capacidade de julgar a respeito das qualidades de um fenômeno. Essa capacidade possui
a finalidade de determinar sua existência e de tentar evitar o desprazer suscitado pela
tentativa de obter satisfação das necessidades mediante o reinvestimento de traços
mnêmicos de experiências de satisfações passadas de modo alucinatório. A formação
desse juízo, atribuído à consciência e ao eu, envolve não apenas a percepção e a
cognição como também as sensações corporais. Quanto ao sentimento de realidade,
trata-se de um sentido de realidade que se tem diante de fenômenos psíquicos que, de
algum modo, remetam o indivíduo a suas fantasias inconscientes. Nesse caso, a situação
é julgada como sendo real por já ter sido uma realidade um dia, mas que apenas pode
ser relembrada mediante as distorções oníricas, por estar relacionada a conteúdos
recalcados.
Nos dois capítulos seguintes, o percurso que permite e sedimenta esse resultado
não deixa de ser um pouco incômodo, já que não partimos de definições iniciais, mas
sim de um conjunto de inferências que possibilitarão reunir as diversas peças, como em
um quebra-cabeças. Para isso, vamos apresentar os textos freudianos em que estes
termos aparecem e as constelações de problemas com os quais se encontram ligados.
Além disso, comentaremos alguns outros textos de Freud que, embora não façam
2
Alguns autores na filosofia, Hegel (1830/1995) principalmente, fazem uma diferenciação entre essas
duas formas da palavra realidade na língua alemã. Enquanto Realität serviria para designar uma realidade
fenomênica e transitória, a forma Wirklichkeit significaria a realidade efetiva, verdadeira. No que diz
respeito aos problemas da psicanálise freudiana, na leitura de Lacan (1936/1998), Freud não utiliza os
termos de modo equivalente também, reservando a forma Realität para se referir à realidade psíquica.
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menção a nenhum dos termos, estão relacionados a eles de alguma maneira. E isso ou
por serem citados nos estudos pós-freudianos a respeito do tema ou por lançarem luz
aos problemas presentes que os termos envolvem.
Nesses capítulos, procuramos destacar do texto freudiano toda alusão que fosse
feita ao problema do desenvolvimento tanto para o sentido quanto para o sentimento de
realidade. Veremos que só é possível falar de desenvolvimento no que concerne ao
sentido de realidade, ao passo que não foi possível encontrar nenhuma indicação que
permitisse pensar em um desenvolvimento do sentimento de realidade.
No terceiro capítulo dessa seção, apresentaremos algumas discussões a respeito
do sentido de realidade nos estudos de psicanalistas e também de comentadores da
psicanálise. Como se notará, a questão da indefinição do conceito é um dos problemas
levantados por alguns autores. Mas, apesar disso, a tentativa de estabelecer uma
abordagem desenvolvimentista para o sentido de realidade é praticamente onipresente
nas diversas interpretações. Ao final do capítulo, procuramos deixar indicado ao leitor
alguns problemas clínicos que poderiam advir da adoção da hipótese de existência de
um desenvolvimento linear e progressivo do sentido de realidade no aparelho psíquico.
22
Capítulo 1
Como afirmamos na introdução dessa seção, existe apenas uma menção à noção
de sentido de realidade na obra de Freud, em 1930, no texto O mal-estar na civilização:
Convém lembrar que antes dessa passagem Freud aventava a questão dos
propósitos da vida humana, questão rapidamente abandonada por ser considerada uma
questão ambiciosa e de domínio da religião. Ao invés disso, ele se propõe investigar
uma questão mais modesta, não mais a respeito do propósito da vida para os homens,
mas a respeito do propósito dos homens para suas vidas, ou seja, o que eles almejam
realizar e receber ao longo de sua existência. Para Freud não há dúvidas de que o
propósito dos homens é conseguir obter prazer e evitar o desprazer, o que significa para
ele, seguir o programa do que ele denominou ser o princípio do prazer:
proporcionado pela arte, para aqueles que não são artistas e que apenas apreciam o
trabalho artístico dos criadores.
A questão do desenvolvimento do sentido de realidade aparece na explicação da
razão que torna possível a atividade de fantasiar. Segundo Freud, existe uma região do
aparelho psíquico que não foi submetida ao desenvolvimento do sentido de realidade e
que a leva a ficar “expressamente isentada das exigências do teste de realidade e posta
de lado a fim de realizar desejos difíceis de serem levados a termo” (p. 88). Freud não
entra aqui em detalhes a respeito do que seria o sentido de realidade, como também não
define o que seria esse desenvolvimento a que ele está submetido, em qual época da
vida humana se efetua, qual sua causa ou quais elementos do aparelho psíquico estão
envolvidos nessa transformação. Apenas podemos inferir, dessa parte do texto e por
oposição às características que são atribuídas à região que não passou por esse
desenvolvimento, que a modificação que ele opera consiste em levar uma região da
mente a obedecer ao teste de realidade e operar alguma regulação na satisfação dos
desejos.
Nesse contexto, cabe lembrar que a relação entre o fantasiar e a obra de arte já
havia sido teorizada por Freud em Escritores criativos e devaneios (1908[1907]),
escrito em que também é possível encontrar indicações a respeito dessa região que ficou
isenta do desenvolvimento do sentido de realidade. O texto tem início com a questão
sobre qual seria a fonte de criação do escritor e de que capacidade ele dispõe para
conseguir criar e emocionar seu público. Mesmo que esteja longe de querer transformar
todos os indivíduos em escritores, Freud considera que sua pesquisa poderia indicar
algum solo comum entre os escritores e os demais seres humanos em termos de
atividades que permitem a criação literária. Dessa maneira, ele afirma que “os próprios
escritores criativos gostam de diminuir a distância entre a sua classe e o homem comum,
assegurando-nos com muita frequência de que todos, no íntimo, somos poetas” (Freud,
1908[1907]/1996, p.135).
Freud parte, inicialmente, das atividades que poderiam ser similares à criação
imaginativa presentes na infância, que são os jogos e o brincar.
São esses desejos difíceis de serem realizados e suas características que irão
demarcar algumas diferenças entre o brincar e o fantasiar. Ainda que seja similar ao
brincar infantil e também às invenções dos escritores em sua relação com a realidade e
ao prazer que pode propiciar ao sujeito, as fantasias do adulto não são compartilhadas
publicamente como as outras duas formas de imaginação por motivo de vergonha.
Freud observa que isso se deve ao conteúdo das fantasias adultas e suas características
“infantis e proibidas”, animadas por desejos de ambição ou eróticos, desejos infantis
pertencentes ao passado, mas que encontram alguma realização nos devaneios, fazendo
uso dos elementos que o presente fornece.
realidade, que é vista por aqueles que empregam esse meio como a “única inimiga e
fonte de todo sofrimento” (p. 88). Freud cita como exemplo o eremita que se afasta
totalmente do convívio social para viver retirado e solitário, mas afirma que há uma
saída ainda mais radical que consiste não apenas em se esquivar do mundo como
também em recriá-lo de acordo com os seus próprios desejos. No entanto, para Freud,
essa tentativa é ineficiente, visto que a realidade se impõe e, com ela, o sofrimento. No
início do comentário a respeito desse método, Freud classifica como louco quem dele
lança mão para administrar o sofrimento causado pelas condições da realidade,
parecendo indicar com isso que o método da tentativa de recriar a realidade nos moldes
do próprio desejo seja um método ligado somente à loucura. No entanto, sem demora
Freud universaliza essa tentativa:
Assim, não sendo esse método apanágio da loucura, afirma-se que todos tentam
efetuar remodelações em aspectos do mundo que vão de encontro aos seus desejos,
ainda que não o façam com a realidade como um todo. Cabe perguntar, então, como se
daria o sentido de realidade nesse caso? A passagem acima parece indicar que não
apenas existe um espaço para a atividade de devaneio, como também para a recriação de
ao menos um aspecto da realidade de acordo com o próprio desejo do sujeito. Ora, para
isso as exigências do teste de realidade devem ser colocadas de lado, ao menos no que
se refere a esse aspecto da realidade que será reconstruído. Isso indica que também em
regiões em que o desenvolvimento do sentido de realidade ocorreu os desejos difíceis
também podem tentar impor sua realização.
Isso é tudo que há sobre o conceito do sentido de realidade e seu
desenvolvimento em O mal-estar na civilização. Mas, ainda que as descrições mais
detalhadas a respeito do sentido de realidade estejam ausentes do texto em que ele é
apresentado, a forma de sua menção não deixa de nos dar algumas pistas. Sabemos até
agora que o conceito emerge em um momento em que se discute o princípio de prazer e
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Em 1891, Freud já havia ido à Paris para seu estágio na Salpêtrière. Ele também
já havia traduzido para o alemão a obra de Charcot sobre a histeria (Neue Vorlesungen
über die Krankheitendes Nervensystems, insbesondere über Hysterie) e escrito o verbete
sobre histeria para a Enciclopédia Villaret. Desse modo, os problemas da clínica e da
teorização da neurose já lhe eram familiares. Segundo Simanke (1994), o texto das
afasias pode ser lido como uma tentativa de Freud de fornecer uma teoria neurológica
que fundamentasse a existência objetiva dos fenômenos da neurose, não apenas como
epifenômeno de lesões no sistema nervoso, como pretendiam as teorias localizacionistas
da época.
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Esse hiato permanece até o fim. Em Esboço de Psicanálise: “Em nossa ciência, tal como nas outras, o
problema é sempre o mesmo: por trás dos atributos (qualidades) do objeto em exame que se apresenta
diretamente à nossa percepção, temos que descobrir algo que é mais independente da capacidade
receptiva particular de nossos órgãos sensoriais e que se aproximam mais do que se poderia supor ser o
estado real das coisas. Não temos esperança de poder atingir esse estado em si mesmo visto ser evidente
que tudo de novo que inferirmos deve, não obstante, ser traduzido de volta para a linguagem das nossas
percepções, da qual nos é simplesmente impossível libertar-nos. (...). A realidade sempre permanecerá
sendo “incognoscível”.” (Freud, 1940[1938]/1996, p. 210).
34
fora das muralhas” (Freud, 1891/2003, p. 34). Ao contrário disso, Freud considera que
todas as novas aquisições estão localizadas nas mesmas áreas da primeira língua
aprendida.
Publicado apenas nos anos 50, após ser descoberto entre os documentos e as
cartas pertencentes à correspondência entre Freud e Fliess, é possível inferir do
conteúdo das missivas que Freud esteve envolvido com a elaboração dos conceitos com
a escritura do Projeto para uma psicologia científica ao longo de todo o ano de 1895.
Na carta datada em 20 de Outubro desse ano, Freud afirma:
ele tentará dar novos contornos a essa explicação em outros textos, mas principalmente
em Uma nota sobre o bloco mágico, de 1925.
Assim, o aparelho pensado por Freud será formado por sistemas neuronais com
funções diferentes de tratamento dos estímulos. Aquele composto por neurônios
permeáveis, com barreiras de contato inativas, e constantes em sua forma foi
denominado sistema Φ, o sistema da percepção, que estará voltado para trabalhar as
quantidades advindas do mundo externo. Quanto ao outro sistema de neurônios, aquele
destinado à memória do aparelho, será chamado sistema ψ, composto pelos neurônios
cujas barreiras de contato estão ativas e que por isso se tornam diferentes após a
passagem da quantidade. Essa modificação permanente nos neurônios do sistema de
memória foi denominada conceitualmente de Bahnung (facilitação ou trilhamento) e são
os caminhos abertos após a passagem da quantidade. Entretanto, os caminhos abertos
não têm a mesma valência para o sistema, de modo que se impõe uma diferenciação
entre eles. Segundo Freud, de acordo com a magnitude de uma impressão e a quantidade
de vezes que ela se repete no sistema, destacam-se espécies de caminhos preferenciais a
serem trilhados pela quantidade quando o aparelho é excitado novamente. Ou seja, além
de existirem vias de facilitação na memória, o sistema conta também com diferenças de
valor entre esses caminhos, para que não sejam indistintos. Segundo Freud, esse sistema
de memória estará destinado a receber quantidades do sistema Φ, através dos neurônios
pallium (ou manto), e de dentro do organismo, através dos neurônios nucleares, não
estando em contato direto com o mundo externo.
Mas, além de ser capaz de descrever memória e percepção, Freud afirma que
uma teoria do funcionamento psíquico deve também poder responder o que seria a
consciência. De acordo com Freud, a seara da consciência deverá ser aquela responsável
pela atribuição de qualidades em um aparelho no qual os demais sistemas trabalham
apenas com quantidades. No entanto, logo de saída, Freud já anuncia a dificuldade que
encontra ao tentar teorizar sobre a consciência e que apenas conseguiu responder a
alguns aspectos muito básicos da questão com o seu modelo teórico.
não será possível evitá-las através do mecanismo de fuga, exigindo que se efetue uma
ação específica para poder escoar a energia crescente.
Diante desse cenário de excitação constante e crescente, a tendência inicial do
aparelho é descarregar toda a energia através do aparelho motor, como através do chorar
por exemplo. Essa descarga produzirá um alívio, mas não o suficiente para que o
processo de somação cesse, exigindo que algum trabalho seja feito no mundo externo
para obter a satisfação. Mas, para isso, é necessário a presença da ajuda de um outro ser
humano, uma vez que o organismo ainda não consegue fazê-lo sozinho na primeira vez
em que isso ocorre, devido à extrema dependência da criança em seus primeiros anos.
Feito este trabalho no mundo externo, por alguém que poderá oferecer o objeto
para que a satisfação seja alcançada e o estímulo cesse momentaneamente, o processo
da somação é finalizado. Freud enumera três consequências oriundas desse processo,
denominado experiência de satisfação, que são a descarga permanente que causava o
desprazer no sistema ω, o surgimento na parte do pallium do sistema ψ do investimento
dos neurônios que correspondem ao objeto da satisfação – produzindo uma memória
desse objeto –, e o surgimento no pallium das informações sobre a descarga do
movimento reflexo (uma imagem motora) que ocorre após a ação específica. O quarto
resultado da experiência de satisfação advém como um desdobramento das três
consequências imediatas ao processo, já que, ao surgirem no sistema ψ, os
investimentos de um objeto de satisfação e da imagem motora que ocorreu após a ação
específica, esses neurônios investidos estarão em conexão por simultaneidade. Esta
conexão estabelece entre esses neurônios uma via de facilitação, um trilhamento,
produzindo alguns vínculos preferenciais de passagem da energia entre os neurônios do
sistema de memória.
Esses neurônios investidos de energia no pallium sofrem um desinvestimento
quando ocorre a satisfação. Entretanto, quando em nova situação de necessidade e de
processo de somação resultantes da estimulação endógena, o aparelho tende a reinvestir
esses neurônios do pallium referentes ao movimento reflexo e ao objeto de satisfação,
que estão em conexão. Dessas representações, Freud supõe que a primeira a ser
reinvestida seja a imagem do objeto pertencente à primeira vivência de satisfação,
seguida pelo investimento da imagem motora. O organismo colocaria então em ação
esse movimento reflexo, mas, como o objeto está ausente na realidade externa, fazendo-
se presente apenas enquanto representação ativada pelo investimento dos neurônios do
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colaterais não poderão arcar sozinhas com o ônus dessa tarefa. Além delas, será preciso
que o aparelho possa recorrer ainda a mais um sistema que consiga trabalhar com
critérios de qualidade para auxiliar na diferenciação. Como vimos anteriormente, é o
sistema ω, a consciência, o único que produz a geração de sinais de qualidades.
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A possibilidade de investir uma ideia ao invés de satisfazer a necessidade não será eliminada do
funcionamento do aparelho com o surgimento dessa nova organização. Freud afirma que ela continuará
ocorrendo posteriormente, mas não necessariamente de modo automático, podendo ser fruto de uma
escolha. Por exemplo, no caso dos sonhos, o eu pode se livrar de uma necessidade e pode manter o sono,
realizando o desejo nos sonhos para continuar dormindo. De modo que, ao sentir fome durante o sono, a
pessoa pode sonhar com a refeição. Freud afirma que “estava aberta a essa pessoa a escolha de despertar e
comer algo ou de continuar o sono” (1940 [1938]/1996, p. 184). Mas acrescente que, em algum momento,
a necessidade pode ficar muito grande e a pessoa terá que acordar.
44
Essa seria a realidade de pensamento, que Dayan afirma ser uma espécie de
protótipo do que mais tarde receberá o nome de realidade psíquica. No texto de 1911,
esse tipo de pensamento, que funciona de acordo com outras leis e obedece a outras
regras, será novamente mencionado por Freud.
Quanto às questões sobre o desenvolvimento, elas se encontram
fundamentalmente no contexto de discussão da transformação que ocorre no aparelho
com a gênese do eu, impulsionada pela regra biológica do desprazer. Como foi
apontado, o motivo para que esse desenvolvimento ocorra é a sensação de desprazer,
7
Refere-se à regra biológica de que a pessoa se deixe guiar pelas indicações de qualidade e indicações de
realidade, pois estas levarão o aparelho à satisfação. A regra biológica é evitar o desprazer.
47
Após essa passagem por dois outros textos anteriores de Freud, poderemos agora
retornar ao texto de 1911. Como veremos agora, nesse texto alguns dos pontos a
respeito da teoria da realidade que são apresentados no Projeto reaparecem, mesmo que
de modo mais condensado, e também são apresentas as considerações teóricas a respeito
do funcionamento do princípio de prazer e do princípio de realidade.
Como afirmamos anteriormente, com o texto intitulado Formulações sobre os
dois princípios do funcionamento mental, Freud retorna a muitas das questões
anunciadas e teorizadas no Projeto. Ainda que o vocabulário neurológico tenha sido
abandonado e a concepção de aparelho psíquico tenha sido transformada, a ideia de
regulação dos processos primários pelos processos secundários ainda se faz presente na
estrutura da argumentação do texto.
Havíamos deixado em suspenso o texto de 1911 no momento em que Freud
anunciava que iria expor sua teoria da realidade. É justamente nesse ponto que ele
expõe o que será o tema principal dessa obra: as características dos dois princípios de
funcionamento mental, denominados princípio de prazer e princípio de realidade.
Os processos psíquicos mais antigos de nossa mente, os processos inconscientes,
seriam processos regulados por um tipo de preceito de funcionamento que visaria
unicamente à obtenção de prazer e que evitaria qualquer elemento que provocasse
desprazer. Tal funcionamento encontra-se organizado nessa disposição devido à
submissão desses processos a um regime de funcionamento denominado Princípio de
Prazer e do Desprazer que, tal como descrito no texto anterior, traduz o excesso de
energia pulsional no interior do aparelho como desprazer e sua eliminação como prazer.
Freud retoma a ideia de que haveria uma tendência no aparelho psíquico que, quando
em estado de urgência das necessidades internas e em busca de obtenção de prazer
imediato, acaba por investir as representações psíquicas dos objetos que outrora
puderam trazer satisfação ao organismo. Esse reinvestimento seria uma tentativa de se
satisfazer de maneira alucinatória e que apenas cessa devido à frustração em alcançar
seus objetivos.
Assim, o que até então parecia ser um texto destinado a versar sobre a
progressiva instalação do princípio de realidade em um aparelho que funcionava apenas
53
considerando o prazer, mesmo que este fosse inútil e nocivo, começa a sofrer uma
inversão em seus objetivos. É possível constatar que Freud passa, aos poucos, a
descrever como os espaços do princípio de realidade vão sendo novamente invadidos
pelo princípio do prazer. Como observado, Freud foi pouco a pouco inserindo as
ressalvas: primeiramente uma parcela do pensamento fica apartada, em seguida ele
acrescenta que uma parte das pulsões também, e, por último, é o próprio domínio do
pensamento racional que naufraga. Tem-se a impressão de que estamos situados em um
campo de soberania instável e não em uma cidade bem delimitada, com o tranquilo
funcionamento de sua agricultura, indústria e comunicações e apenas com uma reserva
natural, nociva e inútil, em seu centro. Como o próprio texto indica, as fronteiras entre
esses espaços são bastante móveis, mesmo no que se refere aos domínios do eu: “Tal
como o ego-prazer nada pode fazer a não ser querer, trabalhar para produzir prazer e
evitar o desprazer, assim o ego-realidade nada necessita fazer senão lutar pelo que é útil
e resguardar-se contra danos.” (Freud, 1911/1996, p. 241).
Mas, ainda que as fronteiras sejam instáveis, isso não significa que se esteja em
um campo de batalhas quando se trata da relação entre os dois princípios. A hipótese de
Freud é de que não haveria oposição entre os princípios do funcionamento mental, e sim
que o princípio de prazer é protegido pelo princípio de realidade, que consiste apenas
em um modo de obter os objetivos de prazer por meios mais seguros e eficazes.
Essa citação de Freud levou alguns comentadores de sua obra, como Perres
(1989), a afirmar que, se tomarmos o termo princípio em seu sentido de lei e
fundamento, o princípio de realidade, no modo como está apresentado nessa passagem,
não poderia ser considerado um princípio na plena acepção do termo. Pois este
consistira apenas em ser um ajuste, uma transformação, do princípio de prazer. O
princípio de realidade visaria à mesma meta (evitar desprazer através da diminuição da
quantidade de energia livre presente no aparelho psíquico) que o princípio de prazer e
apenas faria alterações no método por meio do qual poderia alcançá-la.
Portanto, se considerarmos que o princípio de prazer nunca é suplantado no
aparelho psíquico e que o princípio de realidade estaria funcionando a serviço de seus
54
8
Ainda que não se saiba as razões da passagem de um sistema a outro, há hipóteses sobre a razão da
invenção do sistema de pensamento e quais problemas humanos ele tenta resolver. Em Totem e Tabu
(1913[1913-12]), Freud faz uma apresentação das hipóteses antropológicas para a origem do totemismo e
as classifica em três grupos: teorias nominalistas, sociológicas e psicológicas. A hipótese nominalista
estaria representada pelas teorias de autores como Garcilasso de la Vega, Max-Müller, Herbert Spencer e
Andrew Lang que, através de diferentes argumentos, afirmam que o surgimento do fenômeno totêmico se
deu pela necessidade dos clãs estabelecerem nomes que tornassem possíveis sua diferenciação. Já as
hipóteses sociológicas para a explicação da origem do totemismo estariam representadas pelas obras de
Durkheim, Reinach, Frazer, que admitem que o sistema totêmico seria uma primeira forma de
organização social, que a disposição dos clãs de acordo com os totens auxiliaria as trocas econômicas,
que poderia ser considerado como primeiro sistema religioso de que se tem notícia além de já fornecer
uma noção de hierarquia para os grupos. Finalmente, as hipóteses psicológicas estão expostas nas teorias
de Wundt, Wilken, Rivers e Frazer. Figuram aqui as teorias do totemismo como crença na transmigração
das almas, também no totem como um lugar de proteção para as almas.
Nessa obra, Freud apresenta a hipótese da psicanálise para o totemismo, baseada no mito da
morte sacrificatória do pai do clã.
58
Dentre os três sistemas do pensamento, a fase científica seria a única “que nos
pode levar a um conhecimento da realidade externa a nós mesmos.” (1927/1996, p.40),
59
Além disso, em Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1921) Freud afirma que
o processo de idealização tem o poder de interferir na faculdade de julgamento da
realidade, podendo falsificá-la ao inabilitar a função do teste de realidade. No caso da
religião, pode-se afirmar que o líder é idealizado, já que é um objeto que se tornou
engrandecido psiquicamente a ponto de tornar-se um ser perfeito. Para que o processo
de enaltecimento ocorra é preciso que alguns traços do objeto sejam recalcados e
desconsiderados. Além disso, o eu irá tomar como real os fatos que forem ratificados
pela pessoa ou pela ideia que esteja ocupando a posição de ideal do eu, não sendo mais
capaz de realizar o teste de realidade de modo autônomo.
Segundo Freud, tanto os sistemas de pensamento anímico quanto o pensamento
religioso seriam ilusões derivadas de desejos humanos e, tal como um delírio, a “ilusão
não dá valor à verificação” (Freud, 1927/1996, p. 40), não podendo ser testadas,
refutadas ou confirmadas. Apenas o pensamento científico poderia ter uma outra relação
com a realidade, já que seria a única das visões de mundo não fundamentada nos
desejos infantis, de forma a não produzir conhecimentos ilusórios. Ainda que também
possa cometer erros de interpretação, o conhecimento e as teorias criadas pela ciência
não seriam simples fruto do pensamento desejante.
Como afirmamos no início desse item, Freud admitia a hipótese de que essas
etapas do pensamento da humanidade seriam repetidas na história de cada indivíduo, de
modo que, em Totem e Tabu (1913[1913-12]), ele compara, por exemplo, o pensamento
anímico ao pensamento das crianças que “satisfazem seus desejos de maneira
alucinatória” (p.94). Esses tipos de pensamento também serão cruzados com os
sintomas da neurose e delírios da psicose9.
Se retomarmos agora o problema do desenvolvimento do sentido de realidade e
dos princípios do funcionamento psíquico, pode-se dizer que os sistemas anímico e
religioso estariam mais próximos da característica do pensar submetido ao princípio de
prazer, enquanto o pensamento científico estaria mais próximo ao funcionamento do
9
Os cruzamentos entre as formas de sintomas da neurose com as duas visões de mundo são bastante
explorados no texto Totem e Tabu, mas essa passagem do texto O Futuro de uma Ilusão (1927) ilustra
bem essa aproximação entre o pensamento anímico e religioso e as formas de psicopatologia, sem,
contudo, deixar de apresentar uma importante observação ao final: “Se, por um lado, a religião traz
consigo restrições obsessivas, exatamente como, num indivíduo, faz a neurose obsessiva, por outro, ela
abrange um sistema de ilusões plenas de desejo juntamente com um repúdio da realidade, tal como
encontramos, em forma isolada, em parte alguma senão na amência, num estado de confusão alucinatória
beatífica. Mas tudo isso não passa de analogias, com a ajuda das quais nos esforçamos por compreender
um fenômeno social; a patologia do indivíduo não nos provê de um correspondente plenamente válido.”
(p. 52).
63
***
de prazer, que não perde nunca seu predomínio. Essas que pareciam ser características
somente da mente dos neuróticos, em Totem e Tabu, foram apresentadas como fato
universal, questão maior para a humanidade que, ao que tudo indica, não conseguiu
ainda desligar-se dos seus desejos infantis que a impedem de pensar e de conhecer a
realidade externa.
Tudo isso nos leva a afirmar que há um sentido de realidade. Porém, trata-se de
um sentido que constitui representações compostas por diversos elementos (acústicos,
visuais, sensórios, motores), a partir de uma instância que não é imparcial em sua
investigação, influenciado por desejos que ainda querem se satisfazer a seu modo. Além
disso, a realidade será apreendida, mas algo dela irá se manter totalmente inacessível e
incompreendido. No entanto, ainda com todas essas ressalvas, o sentido de realidade
seria uma função que auxiliaria o aparelho psíquico na tentativa de retificação da
relação com a realidade. Em terra de quem alucina, o sentido de realidade pode servir
como uma boa retificação.
67
Capítulo 2
Após o relato da paciente, feito sob hipnose, Freud não se atém a esse aspecto da
afirmação de realidade imiscuída ao sonho, passando a perguntar a ela sobre seus
68
sintomas de dores gástricas. Em uma nota de rodapé, Freud afirma que não investigou
as visões de animais que a paciente relatava para conseguir diferenciar o que era
“simbólico em seu medo de animais daquilo que era horror primário” (p.95).
Posteriormente no texto, ele retorna à discussão a respeito da fobia de animais da
paciente, mas não à afirmação dela de que em meio ao sonho ou ao delírio haveria
elementos que julgava pertencerem a eventos da realidade.
O fenômeno volta a ser mencionado em A Interpretação dos Sonhos, agora já
colocado em relevo dentro do conjunto de problemas relativos aos sonhos. Nesse trecho
Freud sublinha que é frequente nos relatos de sonho a asserção de realidade de alguns
de seus elementos. A passagem encontra-se em uma nota de rodapé datada de 1909 e
está descrita da seguinte maneira:
acordar foi justificado, pois sua mãe realmente o amamentara e, a rigor, fizera-o por
muito mais tempo que de hábito; e os seios da mãe ainda lhe eram disponíveis” (p. 405,
grifos nossos). A aparição nos sonhos de conteúdos ou cenas que supostamente teriam
sido vivenciadas na realidade pelo sonhador, teria como efeito a produção de convicção
de que a cena representada no sonho (ou pelo menos algum de seus elementos)
realmente aconteceu no passado.
Esse problema é retomado por Freud no texto em que comenta a obra Gradiva,
de W. Jensen, mas agora sob a denominação de crença na realidade (Realitätsglaube). A
certa altura do romance de Jensen, o personagem Hanold tem um sonho em que está em
Pompéia durante a erupção do vulcão Vesúvio e encontra a mulher objeto de seu
interesse caminhando na cidade em meio à destruição. Na narrativa de Jensen, mesmo
após despertar e ainda por muito tempo depois, o personagem continua a acreditar “na
realidade de seu sonho” (p.23). Ao analisar essa passagem do romance e tentar
interpretar o sonho de Hanold, Freud afirma:
Nesta última obra, também conhecida como O Caso do Homem dos Lobos,
Freud apresenta o histórico de análise de um jovem homem que o buscou o tratamento
psicanalítico após ter passado por alguns sanatórios e recebido o diagnóstico de
insanidade maníaco-depressiva. Segundo o paciente, ele já sofrera de distúrbios
neuróticos dos quatro anos aos dez anos de idade, iniciado com sintomas fóbicos que
foram sucedidos por uma neurose obsessiva. Será a respeito do relato do paciente
concernente a esse momento que o texto de Freud irá versar: a análise de uma neurose
infantil realizada “somente quinze anos depois de haver terminado” (p.20).
Há duas passagens do caso que nos interessam diretamente. Aqui, além de
existir novamente o problema da sensação de realidade advinda de um sonho, há
também uma série de acontecimentos que conduzirão o paciente à convicção da
realidade da castração. Embora a convicção não seja equivalente à sensação de
realidade, a sua aproximação com a crença na realidade – que anteriormente fora
utilizada como sinônimo – nos induz a investigá-la também. Mas, diferentemente dos
outros exemplos mencionados, o problema da convicção da realidade não aparecerá
entrelaçado ao sonho. Passemos aos dados do caso que nos fornecem os elementos para
nossa investigação.
O paciente relata que aqueles que lhe eram próximos na infância, anos depois,
costumavam contar-lhe que ele fora uma criança amável e tranquila, mas que em algum
momento tivera seu caráter transformado, tornando-se uma criança violenta e irritável.
Começara a ter fobia de vários animais que, segundo ele, poderiam ser desde borboletas
a besouros, lagartas, cavalos, lobos, não importando se eram grandes ou pequenos, para
o seu medo isso era indiferente. Sofria medo quando a irmã mais velha lhe mostrava em
um livro a figura de um lobo, que estava de pé; nessa ocasião gritava muito, pois temia
que o lobo viesse comê-lo. Entretanto, lembra-se também de que costumava incomodar
os bichos submetendo-os a violências físicas. Por exemplo, recorda-se de gritar ao ver
alguém batendo em cavalos, mas ele próprio gostava de fazê-lo. Após esse período de
fobia de animais, passou a apresentar sintomas obsessivos, tornando-se muito religioso
e preocupado com a execução meticulosa de rituais.
O início do relato do historial clínico do caso começa com duas lembranças,
qualificadas por Freud como sendo lembranças encobridoras. Na primeira dessas
recordações, o paciente lembra-se da cena em que a governanta da casa passa pelas
crianças e diz: “Olhem o meu rabinho”, enquanto na segunda recordação, o paciente
relata que, em um passeio de carro, o chapéu da governanta voou e as crianças riram.
71
Freud afirma que o conteúdo das lembranças está relacionado ao complexo de castração
e faz uma construção, que é comunicada ao paciente, segundo a qual talvez a lembrança
estivesse ligada à ameaça de castração que a governanta teria feito ao menino. O
paciente então sonha que está sendo cruel com a governanta da casa e com sua irmã
mais velha. Freud interpreta esses sonhos como sendo fantasias elaboradas na infância.
A associação seguinte do paciente, após essa interpretação, é uma lembrança de que a
irmã o iniciara nas práticas sexuais, quando ele tinha por volta de três anos, e de que ela
segurara seu pênis e lhe dissera que a babá costumava fazer isso com muitas pessoas.
Freud assinala como a posição ativa do paciente, no sonho de crueldade com a irmã e a
governanta, é resultado de uma operação de inversão. Pois na cena de sedução por ele
recordada é a irmã que tem a posição ativa, seduzindo, ao passo que o menino ocupa a
posição passiva.
O paciente relata que, após essa situação com a irmã, ele então tentou seduzir a
babá e começou a brincar com o pênis em sua presença. Ela, então, demoveu-o da ideia
de fazê-lo, dizendo-lhe que as crianças que manipulam seus genitais ficam com uma
ferida no lugar. Nesse momento, Freud considera que houve ao menos duas
consequências importantes advindas dessa situação e da advertência da babá. Uma delas
é que o menino passa a se ocupar com o problema da castração, ainda que não acredite
na sua existência:
Assim, a resposta que dera ao que vira, como sendo um ‘traseiro frontal’, não
soluciona totalmente a questão, de modo que continuará às voltas com o problema da
castração. Por exemplo, em uma festa, ao ganhar confeitos em forma de bastão e ouvir
da governanta que aqueles confeitos eram pedaços de cobra cortada, ele lembrou-se de
que o pai fizera uma cobra em pedaços em um passeio. Também se recorda de ouvir a
história do livro infantil segundo a qual o lobo vai à pesca, tem seu rabo congelado pelo
frio e o rabo se parte, ficando o lobo sem o seu rabo. Esses exemplos ilustram como os
72
ter ouvido os relatos dessas histórias, “o sonho parece apontar para uma ocorrência cuja
realidade foi intensamente enfatizada como estando em marcado contraste com a
irrealidade dos contos de fadas” (p.45). Ou seja, apenas esses relatos das histórias
infantis não poderiam elucidar a sensação de realidade que o sonhou causou, devendo
existir outro fato a que o sonho estivesse remetido.
Em seguida então o paciente destaca em suas associações duas partes do sonho
que mais lhe chamam a atenção: a imobilidade dos lobos e a forma como eles o
olhavam fixamente. Freud deduz que esses dois elementos devam remeter à cena, ao
fato real que teria causado a sensação de realidade para as imagens do sonho. Ao
continuar a associação e relacionar o conteúdo do sonho a uma das histórias que ouvira
sobre lobos, o paciente deduz que talvez a imagem da janela abrindo-se no sonho
signifique que, na verdade, foram os seus próprios olhos que se abriam e não a janela.
Em sua interpretação, Freud supõe que possivelmente, nesse ponto, o trabalho do sonho
tivesse operado uma inversão. De acordo com isso, o paciente talvez estivesse
dormindo, acordara, abrira os olhos e tenha visto alguma coisa, de modo que o olhar que
no sonho aparece como atributo dos lobos, na verdade seja o olhar do próprio paciente.
O outro aspecto que causou maior impressão ao sonhador, a imobilidade dos lobos,
também poderia ter sofrido uma inversão, de modo que a cena a que se assiste não seja
caracterizada por imobilidade, mas antes por um movimento intenso. Essas seriam as
duas inversões operadas pelo trabalho do sonho: inversão do sujeito em objeto – é ele
quem olha e não os lobos – e uma inversão entre passividade e atividade, o que é olhado
não está imóvel, mas em mobilidade violenta.
Após essas interpretações, o paciente então se lembra de uma cena que fora
presenciada muito tempo antes desse sonho angustiante. Trata-se de uma cena que,
segundo Freud, viera “do caos dos traços de memória inconscientes”: quando tinha um
ano e meio, ele teria presenciado o coito a tergo de seus pais. Na cena recordada pelo
paciente, ele acordara e vira seu pai ereto enquanto sua mãe está curvada, de modo que
pode ver o genital dos dois. É essa cena primitiva do coito dos pais que é recordada por
meio do sonho de forma distorcida e que explicaria a sensação de realidade dele
derivada.
Segundo Freud, os elementos da cena do coito dos pais foram percebidos e
mantiveram-se como traços mnêmicos inscritos no aparelho psíquico, mas só foram
ativados no momento do sonho, três anos mais tarde. É mediante a ativação dessa cena
distorcida no sonho que a percepção dos genitais dos pais, somada à experiência de
74
ameaça da castração pela babá e dos pensamentos sobre castração com os quais a
criança esteve ocupada, são ressignificados. Com isso, produz-se a convicção da
realidade da castração para o menino, fonte de temor e angústia. Dessa maneira, a
realidade da diferença sexual que até antes do sonho era interpretada pelo menino em
termos de atividade e passividade, passa a ser, desde o sonho, uma diferença entre
castrados e fálicos.
É importante notar que nem sempre a sensação ou a convicção de realidade seja
algo que se dê no momento de sua percepção. No presente caso, é possível acompanhar
que a eficácia da cena, no que se refere à questão da diferença sexual, não se deu na
época de sua percepção, mas apenas três anos mais tarde, a posteriori. Em uma nota de
rodapé, Freud afirma que esse:
Além disso, cabe marcar que o que ocorre é a convicção de uma realidade
interpretada. Não se trata da convicção da realidade que advém simplesmente dos dados
da percepção, uma realidade finalmente conhecida – ou reconhecida a posteriori – pelo
menino. A convicção da realidade da castração, nesse momento, é apenas mais uma das
interpretações que foi dada por ele para a diferença sexual, e não um momento de
reconhecimento da realidade a partir de puros fatos da observação. De modo que não se
trata do fim de uma ilusão ou da retificação de um erro de percepção, mas apenas mais
uma das suas versões para um fato e que organiza a percepção que se tem dele. A
realidade da diferença sexual é interpretada agora como a confirmação da existência da
ferida a que a babá havida se referido. Pois ele já havia interpretado aquela realidade
como sendo uma questão de atividade e passividade e, posteriormente, quando assiste as
meninas urinando, supôs a presença nas meninas de um “traseiro frontal”.
Freud já havia tematizado essa questão em 1908, no texto Sobre as teorias
sexuais das crianças (1908). Nesse artigo, Freud supõe que, se um ser de outro planeta
viesse à Terra e observasse os seres animados, talvez nada causasse tanta surpresa
10
Tradução da Standard Edition para o termo alemão Nachträglich.
75
quanto a existência de dois sexos. Por mais que para os adultos isso pareça ser um dado
ordinário, para a criança, assim como para o suposto extraterrestre, o fato da diferença
sexual é um enigma. Em um primeiro momento, ele é colocado para os pais, mas, diante
da decepção com as respostas inautênticas e dada a suspeita de que algo seja escondido
pelos adultos, a criança buscará criar suas próprias teorias. Serão três as teorias sexuais
típicas que Freud descreve nesse texto e que admite compartilharem uma característica
curiosa:
Assim, de acordo com Freud, as teorias infantis estão ligadas às pulsões sexuais
e às zonas erógenas relacionadas a elas. Não são, portanto, um conjunto de hipóteses
puramente especulativas, e a isso se deve seu elemento de verdade. As teorias são
fantasias que vão sendo construídas a partir de dados da impressão sensorial (algo visto
ou ouvido), das organizações libidinais de uma época e das experiências oriundas do
próprio corpo do indivíduo.
As três teorias típicas serão descritas a partir do ponto de vista do menino. A
primeira delas consiste em atribuir a todos os seres a posse de um pênis. Segundo Freud,
o alto valor que o menino atribui a essa parte de seu corpo o impede de imaginar que
existam outras pessoas ou seres que estejam desprovidos desse órgão. Ainda que possa
ver essa diferença e a ausência de pênis nos outros seres, “o seu preconceito já é
suficientemente forte para falsear uma percepção” (p.196). Também nesse texto, Freud
considera que a ameaça de castração tem forte efeito na vida emocional devido ao
grande valor que o pênis representa na economia psíquica da criança, levando ao
complexo de castração. Após a ameaça de castração ter ocorrido, os genitais femininos,
quando observados, serão interpretados como sendo um órgão mutilado.
A segunda teoria sexual infantil, a teoria cloacal, está ligada à primeira, já que é
o desconhecimento da vagina que a engendra. Em busca da resposta sobre a origem dos
bebês, a criança, em suas observações, chega a compreender que o bebê se desenvolve
76
no corpo da mãe, mas não consegue entender como ela poderia de lá sair. Ela então
formula a teoria segundo a qual o bebê pode sair através da passagem anal, como um
excremento.
Por fim, a terceira das teorias sexuais é a concepção sádica do coito, que faz com
que a criança interprete a relação sexual como um ato de violência, não conseguindo
distinguir os atos sexuais dos atos agressivos.
É importante notar que essas construções e sua aceitação pela criança não são
fruto de um desconhecimento ou falta de informação, pois, segundo Freud, é
significativo que as crianças não deem “ouvidos a nada”, quando vão receber as
informações sobre a sexualidade e consigam “permanecer ignorantes mesmo na vida
adulta – aparentemente ignorantes, pelo menos” (p.203). No texto Moisés e o
Monoteísmo (1939 [1934-38]), Freud aponta como essa espécie de recusa em abandonar
uma teoria por uma nova é um processo existente também no domínio das teorias
científicas e não apenas nas teorias sexuais infantis, válido tanto para a psicologia de
grupo quanto para a psicologia individual. Pois a teoria anterior, “com base em certas
provas, teria de reconhecer [a nova] como sendo verdadeira, mas que contradiz alguns
de seus desejos e choca algumas convicções que lhe são preciosas” (p.81). Ao comentar
sobre a rejeição que, por exemplo, a teoria da evolução de Darwin sofreu no início de
sua divulgação, Freud afirma que “a nova verdade desperta resistências emocionais;
estas encontram expressão em argumentos pelos quais as provas em favor da teoria
impopular não podem ser discutidas; o combate de opiniões toma um certo período de
tempo (...).” (p.81). Também no texto Análise terminável e interminável (1937), Freud
retorna à questão das teorias sexuais infantis, seu esclarecimento e a comparação com as
crenças religiosas adultas. Nesse texto, ele novamente afirma que o esclarecimento das
crianças a respeito da sexualidade não é algo prejudicial, mas que certamente é um fator
superestimado, uma vez que as crianças não abandonam suas teorias – teorias estas que
dizem respeito a seus conflitos e fornecem uma resposta a eles de certo modo – para
fazer uso desses novos conhecimentos que lhe são dados. Freud, que anteriormente
fizera comparações com as teorias científicas, agora estabelece a comparação entre essa
disposição das crianças de não abandonarem suas teorias com a atitude dos povos
primitivos e suas crenças religiosas: “Por longo tempo após receberem esclarecimentos
sexuais, elas se comportam como as raças primitivas que tiveram o cristianismo enfiado
nelas, mas que continuam a adorar em segredo seus antigos ídolos” (p.250).
77
Dessas passagens, pode-se deduzir que essas teorias sexuais são sustentadas por
uma convicção em sua realidade e que não são abaladas pelos dados externos ou pelas
provas de realidade, apenas sendo abaladas por outras teorias que emergem do mesmo
modo, também apoiada em elementos pulsionais e representações.
do tratamento. Por esse motivo, Freud dedicará poucas linhas à última das questões
colocadas, pois o cerne do debate não é a técnica da psicanálise e suas possibilidades.
Assim, ele responde rapidamente que seria sim possível tornar consciente a cena com o
método investigativo utilizado pela psicanálise. É quanto aos dois primeiros pontos que
as divergências estão postas e contra os quais irá argumentar, afirmando que revelam
uma concepção diferente da causa da neurose e da força do fator infantil em sua
etiologia.
Segundo Freud, essas suposições que colocam em dúvida a possibilidade de a
criança assimilar a cena e revê-las transformadas em sonhos seriam oriundas de uma
“baixa estimativa da importância das primitivas impressões infantis e da recusa a
atribuir-lhes efeitos duradouros” (p. 59). Segundo essas suposições, as cenas relativas à
infância produzidas na análise seriam apenas fruto da tendência neurótica no adulto em
expressar os problemas atuais por meio de representações significadas como
pertencendo ao período da infância. Porém, seriam, segundo essas suposições, apenas
fantasias, “símbolos regressivos” (p. 67), fantasias retrospectivas (p.69) criados com
elementos não ligados à infância. De acordo com Freud, uma das consequências de se
assumir essa hipótese consiste em que, dessa maneira, “podemos certamente poupar-nos
a necessidade de atribuir uma substância tão surpreendente à vida mental e capacidade
intelectual de crianças da mais tenra idade” (p. 60).
A teoria sobre os símbolos regressivos, contra a qual Freud passará a argumentar
até o final da parte V, foi publicada por Jung em 1912, na obra Símbolos da
transformação, momento de ruptura teórica entre os dois autores. Para Jung, a hipótese
freudiana da regressão que ocorre no aparelho psíquico durante os sonhos e que é capaz
de reativar percepções antigas está correta. No entanto, ainda que admita que os sonhos
sejam reminiscências modificadas, o conteúdo dessas lembranças não é composto por
material oriundo da infância dos indivíduos, mas antes são cenas e composições
recapituladas da história da humanidade. Ou seja, Jung admite que haja uma
reatualização do passado nos sonhos, mas trata-se de um passado muito mais longínquo
do que aquele da infância do indivíduo. No entanto, ele reitera que tampouco se trata de
recordações oriundas da infância pertencente a outros períodos da humanidade ou
também de recordações de construções patológicas de outras eras, ainda que não
aparentem ou compartilhem da mesma racionalidade do pensamento consciente.
79
Durante diversas passagens na obra, Jung faz questão de reiterar que o que é
recuperado não são as heranças simbólicas infantis, mesmo que de outros períodos
históricos. Embora, segundo ele, as crianças possuam uma forte tendência a fantasiar,
esse acervo simbólico transmitido não é uma criação da infância, mas algo referente ao
mundo adulto.
Ou seja, o fato de as cenas aparecerem não como uma recordação, mas antes se
repetirem nos sonhos sob formas distorcidas dos mesmos elementos poderia ser o
indício de sua realidade. Já em A Interpretação dos Sonhos Freud havia chamado
atenção para a relação entre a repetição e a sensação de realidade.
Em sua segunda consideração do problema, Freud irá conjugar o problema da
realidade da cena com fator infantil na qualidade de uma possível causa da neurose. De
acordo com Freud, há tempos em sua teoria a questão regressiva era afirmada como
elemento constituinte da neurose. No entanto, ele declara que esse fator não é o único a
ter participação, já que também existe mais uma vertente, voltada para o futuro e é um
potencial fator na causação da neurose também. Ou seja, embora considere que, na
neurose, dada a fuga da realidade, existe a possibilidade de criação de cenas em que o
conflito atual seja colocado no passado, ou que traços da herança filogenética possam
ser reinvestidos, haveria ainda outro vetor determinante. Trata-se da possibilidade de
utilizar o material proveniente da infância para fabricação de uma neurose futura. Desse
modo, pode-se afirmar que há uma sobreposição de fatores causais atuando ao mesmo
tempo, com vetores regressivos e progressivos, sem mútua exclusão.
Em Moisés e o Monoteísmo (1939[1934-38]), Freud utiliza uma metáfora
interessante e esclarecedora para elucidar esse fenômeno das impressões infantis que se
manifestam anos mais tarde: “podemos torná-lo mais compreensível comparando-o a
uma exposição fotográfica que pode ser revelada após qualquer intervalo de tempo e
transformada num retrato” (p.140). De modo que, para Freud, o fator causal na neurose
não fica restrito apenas ao fator regressivo, mas também para aqueles que operam em
direção ao futuro, da infância para a vida adulta. Nas considerações sobre essa hipótese
nos comentários sobre o caso do Homem dos Lobos, ele afirma que “a influência da
infância já se faz sentir na situação com que se inicia a formação de uma neurose, de
vez que desempenha um papel decisivo na ação de determinar se, e em que ponto, o
indivíduo deixa de dominar os verdadeiros problemas da vida.” (p. 64).
É a “significação do fator infantil” (p.65) que está em jogo nesse momento,
como Freud faz questão de sublinhar. Não se trata de um destaque fortuito. Como
pudemos acompanhar, ainda que de modo breve, no texto de Jung, é justamente esse
fator que é duplamente negado em Símbolos da transformação, já que a negação não
82
está restrita ao fator infantil na ontogênese como também para o material herdado da
filogênese.
E, por fim, a terceira consideração de Freud para afirmar a realidade da cena
funda-se no pressuposto de que a construção de uma fantasia que se tornou irredutível
na análise e que está relacionada a todos os sintomas da neurose precisa
necessariamente contar com alguns elementos oriundos da experiência e não apenas
elementos imaginários.
Assim, ainda que se admita que a memória tenha uma função produtiva e não
apenas reprodutiva, como sugere a tese das lembranças encobridoras, ao menos alguns
elementos da cena, no caso de estarem ligados aos sintomas do paciente e serem
relembrados e repetidos através dos sonhos, deverão estar, de algum modo, ligados à
experiência, ou, ao menos, a alguns elementos fornecidos por ela.
Com o texto História de uma neurose infantil encerra-se a série de citações do
conceito de sentimento de realidade nos textos de Freud. Como foi possível
acompanhar, diferentemente do que aconteceu em Gradiva e A Interpretação dos
Sonhos, no histórico do caso do Homem dos Lobos, Freud amplia e complexifica a
discussão a respeito da natureza da cena que teria causado o sentimento de realidade do
sonho. Nesse texto, a passagem da sensação de realidade do sonho para a realidade
como fato deixa de ser um passo simples, como a passagem do sonho com as pêras
descrito em A Interpretação dos Sonhos poderia sugerir.
Além disso, também é possível destacar que, nas quatro passagens que fazem
referência ao sentimento de realidade advindo do sonho, exceto por um dos exemplos –
o sonho das pêras de A Interpretação dos Sonhos –, todos os sonhos que estiveram
acompanhados do sentimento de realidade eram sonhos de angústia. Essa característica
esteve presente nos sonhos e delírios com animais no caso de Emmy Von R., no sonho
83
via regressiva, tem como consequência para o aparelho psíquico não apenas conduzir os
desejos inconscientes recalcados para a consciência, mas também, e por essa razão,
levar o indivíduo “com toda a crença” a tomar esses desejos como satisfeitos.
Mas, nesse ponto, Freud apresenta mais um paradoxo na teoria. Ainda que a
regressão apresente à percepção consciente imagens mnêmicas muito claras, fruto de
um investimento de impulsos de desejo inconscientes intensos, a maioria dos casos,
mesmo diante dessas condições, não apresenta a crença na realidade dessas fantasias de
desejo. Isso invalidaria a eficácia teórica da hipótese regressiva como explicação para a
alucinação. Logo, deveria haver outro requisito, não exclusivamente baseado na
regressão topográfica, para que a crença na realidade e a alucinação da satisfação do
desejo ocorram.
Freud considera que existe uma função psíquica que é responsável por distinguir
entre o que é a realidade e o que é somente pensamento ou desejo. Essa função foi
denominada de teste de realidade e tem também como tarefa “orientar o indivíduo no
mundo pela discriminação entre o que é interno e o que é externo” (p. 239). Freud é
taxativo ao afirmar que o exercício dessa função é um atributo exclusivo do sistema da
consciência11.
11
Nesse texto, Freud faz algumas considerações a respeito da Consciência, no entanto, avisa ao leitor que
deixará em suspenso muitas considerações a respeito desse sistema para serem examinados depois.
Segundo nota do editor, essa seria uma provável referência ao artigo sobre a consciência que deveria ter
sido publicado junto com os demais artigos sobre metapsicologia que estavam sendo escritos por Freud
durante o período da Primeira Guerra Mundial. Tal artigo nunca foi publicado e, assim, muitos aspectos a
respeito da consciência, que poderiam elucidar algumas das questões da relação com a realidade, nunca
foram elucidadas. No artigo de 1917 que estamos analisando, no momento em que vai explicar a respeito
da relação entre alucinação e teste de realidade, Freud anuncia que “a resposta poderá ser dada se agora
passarmos a definir mais precisamente o terceiro de nossos sistemas psíquicos, o sistema Cs., que até o
momento não distinguimos nitidamente do Pcs. Em A Interpretação dos Sonhos já tínhamos sido levados
a considerar a percepção consciente como a função de um sistema especial, ao qual atribuímos certas
propriedades curiosas, e ao qual teremos agora bons motivos para atribuir também outras características.
(...). Não obstante, mesmo assim, o fato de uma coisa se tornar consciente ainda não coincide
inteiramente com o fato de ela pertencer a um sistema, pois aprendemos que é possível estarmos cônscios
de imagens sensórias mnêmicas às quais de forma alguma podemos permitir uma localização psíquica nos
sistemas Cs. ou Pcpt. Devemos, contudo, adiar o exame dessa dificuldade até que possamos focalizar
nosso interesse no próprio sistema Cs.” (Freud, 1917/1996, p. 238).
87
“(...) é a reação a uma perda que a realidade afirma, mas que o ego
tem de negar, por achá-la insuportável. Portanto, o ego rompe sua
relação com a realidade; retira a catexia do sistema de percepções, Cs.
(...). Com esse desvio da realidade, o teste de realidade é posto de
lado, as fantasias carregadas de desejo (irreprimidas, inteiramente
conscientes) são capazes de exercer pressão avançando para dentro do
sistema, sendo por ali consideradas como uma realidade melhor.”
(Ibid. p.240).
para que o sono aconteça e o estado de narcisismo primário possa se instalar. De modo
que, para dormir, os seres humanos se despiriam não apenas de seus óculos e dentes
postiços, como também de seu teste de realidade, fruto do desinvestimento do eu na
consciência e no mundo externo.
Se voltarmos agora ao problema do qual partimos, poderemos avaliar que, ao
longo do texto que acabamos de analisar, a equivalência semântica entre os termos
crença na realidade e sentimento de realidade, uma vez estabelecida no texto Delírios e
sonhos na Gradiva de Jensen (1907[1906]), não se mantém. O sentimento de realidade
tal como empregado nos textos A Interpretação dos Sonhos e História de uma neurose
infantil não era fruto da falha do teste de realidade, tampouco uma alucinação uma vez
que se contava com a distinção entre o sonho e a realidade. Os pacientes relatam saber
que as imagens pertenciam ao sonho, entretanto, alguns fragmentos do sonho causam no
sonhador a sensação de serem reais, ainda que o sonhador conseguisse distinguir entre o
sonho e a realidade. Freud afirma tanto ao comentar os sonhos de Delírios e sonhos na
Gradiva de Jensen e História de uma neurose infantil que o sentimento de realidade
proveniente dos sonhos não deveria ser considerado como um erro de julgamento da
realidade.
Além disso, as descrições do sentimento de realidade que aparecem nesses
textos de Freud, exceto pelo caso de Emmy Von R. que afirma não ser um sonho ou um
delírio as situações com os animais em sua narrativa, em todos os outros três casos, os
pacientes conseguem reconhecer que tiveram um sonho e que, apenas ao despertar,
surgiu o sentimento de que algo no sonho era real. Desse modo, nos casos relatados em
que o sentimento de realidade ocorreu, a função do teste de realidade parece ter sido
preservada não havendo alteração no reconhecimento do externo e interno por parte do
eu e tampouco houve alucinação. Logo, poderíamos afirmar que o fenômeno do
sentimento de realidade e o teste de realidade não se encontram diretamente
relacionados, como vimos ocorrer com o teste de realidade e a alucinação no texto
freudiano de 1917.
Mas não deixa de ser intrigante a possibilidade de uma sensação de realidade
permanecer mesmo após o teste de realidade haver ocorrido e ter sido certificado que se
tratava apenas de um sonho.
89
Capítulo 3
12
A grande maioria dos textos que serão abordados foram consultados em versão inglesa, ainda que
pudessem estar orginalmente em alemão. A maioria dos autores refere-se ao sentido de realidade como
reality sense, e apenas alguns autores se referem ao termo do sentimento de realidade, reality feeling.
95
13
Em nota de rodapé Ferenczi informa que seu artigo foi escrito antes que pudesse entrar em contato com
o trabalho de Freud Totem e Tabu, também escrito em 1913. Como vimos no capítulo anterior, Freud
apresenta junto com a análise sobre o pensamento animista, outras formulações a respeito da onipotência
do pensamento que ainda não estavam presentes no caso mencionado por Ferenczi.
14
Ferenczi deixa claro que não se trata de um impulso espontâneo o que leva o eu a se desenvolver.
Segundo o autor, seria a necessidade e a frustração que exigiriam do eu uma mudança para adaptar e
então poder sobreviver.
97
15
Não conseguimos encontrar nesse texto de Ferenczi a explicação para a existência ou gênese de vida
psíquica inconsciente e presença de desejo no feto. O autor apenas afirma que “seria absurdo acreditar
que o psiquismo só começa a funcionar no momento do nascimento” (p.42).
98
“Se até então o ser ‘onipotente’ podia sentir-se uno com o universo
que lhe obedecia e seguia os seus sinais, uma discordância dolorosa
vai produzir-se pouco a pouco no seio de sua vivência. É obrigado a
distinguir do seu ego, como constituindo o mundo externo, certas
coisas malignas que resistem à sua vontade, ou seja, separar os
conteúdos psíquicos subjetivos (sentimentos) dos conteúdos objetivos
(impressões sensoriais).” (Ferenczi, 1913/1992, p. 46).
16
De acordo com o Vocabulário da Psicanálise de Laplanche e Pontalis (2001), Ferenczi foi o primeiro a
teorizar a respeito do conceito de introjeção a partir do conceito de projeção, em 1909, com o texto
Transferência e Introjeção.
99
expressão de desejos e permite à criança fazer seus pedidos, de modo mais rápido e
fácil, aos adultos que dela estão encarregados. Por sua vez, os sinais da mímica facial,
que acompanham o pensamento da criança, seriam facilmente lidos pelos adultos, em
uma espécie de “leitura dos pensamentos” da criança, de modo que seus desejos seriam
assim facilmente interpretados e satisfeitos por quem dela cuida. Esse estágio foi
denominado por Ferenczi como Período dos pensamentos e palavras mágicos.
Em todos os períodos indicados por Ferenczi, é possível constatar como o
sentimento de onipotência do eu infantil seria um derivado do modo de relação que se
estabelece entre a criança e o adulto cuidador, dado que, diante da simples manifestação
de desejo da criança, o adulto agiria para satisfazê-la. Em virtude disso, Ferenczi supõe
que é apenas quando essa relação termina que poderia cessar o princípio de prazer e
ocorrer uma queda no sentimento de onipotência. Nesse momento a criança poderia
conceber que entre seu desejo e a possibilidade de sua satisfação são necessários ação,
espera, compreensão dos condicionamentos, determinações e cadeias de causa e
consequência.
No entanto, mesmo supondo que o processo de ontogênese pudesse vir a ser uma
repetição da filogênese do sentido de realidade, Ferenczi não acreditava que o processo
de conquista da percepção objetiva da realidade resultasse de uma espécie de “tendência
para a evolução” natural e instintiva do psiquismo. Segundo ele, para que o
desenvolvimento do sentido de realidade ocorresse, era indispensável que houvesse
pressões e frustrações, impostas pelo meio externo, que pudessem forçar a criança a
recalcar seus modos de satisfação dos períodos iniciais – processo este contra o qual a
criança resistiria. Essa aparente contradição no texto de Ferenczi talvez encontre uma
explicação na concepção mesma que o autor apresenta em seu texto a respeito do motor
da evolução da humanidade enquanto espécie. Segundo o autor, seriam as catástrofes
naturais e geológicas ocorridas ao longo da história que teriam impulsionado a
humanidade enquanto espécie a abandonar seus modos de organização sociais
estabelecidos e evoluírem construindo novas formas de civilização. Desse modo, não
teria sido a constituição biológica ou natural do homem a explicação para os processos
de ontogênese ou filogênese, mas sempre as mudanças do meio externo como hipótese
causal para as sucessivas ondas de recalcamento. Nesse sentido, o desenvolvimento
filogenético está sempre aberto às contingências.
Ao menos no que se refere à ontogênese, o recalcamento não eliminaria do
aparelho psíquico os traços mnêmicos dos períodos superados, sendo possível a eles
retornar por caminhos normais ou patológicos. O retorno normal se daria através dos
sonhos, em alguns gestos simbólicos e alguns pensamentos filosóficos otimistas que
preservariam vestígios do pensamento onipotente no campo da normalidade. Fora
dessas cercanias estariam as fixações nos estágios de onipotência do desenvolvimento,
as quais determinam os quadros psicopatológicos das neuroses e psicoses,
principalmente as alucinações. Entre esses dois terrenos, a zona de fronteira formada
pela fantasia, pela arte e a vida sexual, zona em que, de acordo com Ferenczi,
“coexistem os dois princípios do funcionamento psíquico” (p.40).
É possível notar como, nesse texto, Ferenczi retoma muitas das teses freudianas
presentes em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental e Totem e
tabu. A separação da criança em relação aos pais no plano psíquico é novamente
tomada como um referencial importante para a instalação do princípio de realidade, uma
vez que seria o momento em que “cessa o reinado do princípio de prazer”. Além disso, a
assim como em Freud, Ferenczi afirma que é necessário que haja frustração para que o
101
libidinal correspondente. Em outros termos, ele teria conseguido apenas estabelecer para
cada estágio do sentido de realidade um tipo de relação com o mundo externo e seus
objetos, mas não teria sido capaz de formular uma descrição correspondente da natureza
dos objetos pulsionais envolvidos. Para Glover, a solução parcial para esse problema
surgiu com o texto de Abraham, que descreveu a série de desenvolvimento de objetos
libidinais17 e poderia ser relacionada ao desenvolvimento do sentido de realidade. Além
disso, Glover não concorda com a separação feita por Ferenczi entre o desenvolvimento
do eu e o desenvolvimento da libido para o estudo do desenvolvimento do sentido da
realidade, isolando-os em duas séries de desenvolvimento independentes. Glover
considera que essa disjunção não é legítima e tampouco encontra respaldo clínico, uma
vez que, em sua experiência, nunca atendeu um caso em que a regressão da libido e a
regressão do eu não ocorressem juntas.
A segunda perspectiva de investigação do sentido de realidade teria sido aberta
por Federn, relatada no texto Narcissism in the structure of the ego (1927), em pesquisa
junto a pacientes com sintomas de despersonalização e alienação. Por meio de métodos
introspectivos, ele tenta aí “estabelecer os limites de um eu narcisista” (p.487), limites
estes que auxiliariam a analisar a capacidade de reconhecimento de objeto e de
avaliação da realidade. Segundo Glover, Federn conseguiu assim estabelecer uma
gradação da sensação de limites do eu corporal e correlacioná-la com variações na
regressão do eu. Glover acredita que mais estudos a respeito da sensação de limites do
eu comparados com a regressão do eu possam ser relacionados com um
desenvolvimento do sentido de realidade, mas aponta que essa vertente de investigação
17
Glover refere-se à teoria de Karl Abraham a respeito dos estágios de desenvolvimento da libido,
presente em diversos de seus escritos, mas apresentada de modo mais detalhado no texto Breve estudo do
desenvolvimento da libido, visto à luz das perturbações mentais, de 1924. Essa teoria foi criada quando
Abraham tentava estabelecer um modelo explicativo mais amplo para as neuroses e as psicoses, no qual
estivessem relacionados a gênese e o quadro clínico das psicopatologias com as fixações e as regressões a
determinadas etapas do desenvolvimento libidinal. De acordo com o modelo proposto por Abraham,
haveria, no caminho da evolução libidinal, três etapas principais a serem percorridas, cada qual
subdividida em outros dois estágios, dispostas em ordem cronológica e progressiva: fase oral (fase oral
primitiva e fase oral posterior), fase sádico-anal (fase sádico-anal primitiva e fase sádico-anal posterior) e
a fase genital (fase genital inicial- fálica e fase genital final). Comparadas pelo autor “a um horário de
trens expressos, no qual figuram apenas as estações de maiores paradas” (p.155), cada um desses tempos
da organização libidinal corresponde a um determinado tipo de relação com o objeto, indo do auto-
erotismo (ausência de objetos externos) até chegar à relação com o objeto exterior ao eu, passando pelo
narcisismo.
103
18
Não encontramos qualquer indicação no texto de Glover que pudesse esclarecer essa afirmação a
respeito da rigidez do conceito de narcisismo que vinha sendo adotado. O autor não cita nenhum teórico
ou linha da psicanálise que exemplificasse sua assertiva.
104
com o desenvolvimento normal. No entanto, ele frisa que, afim de que os estágios que
compõem a linha de desenvolvimento do sentido de realidade sejam melhor
discriminados, é necessário que a classificação das patologias também fique mais bem
elaborada, não se limitando apenas à neurose e à psicose.
Glover busca chegar a essa classificação, incluindo em sua pesquisa também os
transtornos do caráter. Isso lhe teria permitido traçar séries de desenvolvimento
paralelos de acordo com a predominância dos mecanismos de projeção ou introjeção e
entender o que haveria em termos de estágios de desenvolvimento entre os pólos
representados pela neurose e psicose. Segundo ele, esses transtornos poderiam ser
entendidos como estados transicionais entre essas patologias.
Como exemplo desse estudo, ele fornece os dados da pesquisa com a adição em
drogas, que seria, no que se refere ao mecanismo de projeção, um estado situado entre
as paranoias e as formações de caráter obsessivas. Isso porque, na adição, o mecanismo
de projeção estaria mais bem localizado e disfarçado do que ao se fazer presente nos
casos de paranoia – uma vez que se encontra focado apenas nas substâncias nocivas –,
mas apareceria na adição com mais força do que nos distúrbios obsessivos. Segundo o
autor, o viciado, ao localizar seu sistema paranoico na droga, “está apto para preservar
seu sentido de realidade do distúrbio paranoico absoluto” (p. 490). Glover afirma que,
na ausência de uma escala de desenvolvimento do sentido de realidade estabelecida
pelos psicanalistas, ele vai expressar o que ocorreria nesses casos nos termos de estágios
libidinais: enquanto o paranoico regressa para o estágio oral-anal de realidade, o viciado
regressa ao ponto em que a criança está saindo desse estágio. Essa etapa do
desenvolvimento é caracterizada por ele do seguinte modo:
“Em outras palavras, até esse ponto o mundo externo foi representado
como uma combinação de açougue, lavatório público sob um
bombardeio, e um quarto post-mortem. E um viciado converte isto em
uma farmácia tranquilizadora e fascinante, na qual, no entanto, o
armário de veneno é mantido destrancado. Tendo neste momento
reduzido os perigos paranoicos do mundo imediato, a criança (ou o
dependente) ganha espaço suficiente para olhar para fora da janela (e
avaliar a realidade objetiva).” (Glover, 1933, p. 491, nossa tradução).
peculiar nos casos de dependência química, a questão de Glover até aqui não é tanto
analisar esse efeito da substância na relação do dependente com a realidade, mas como
poder utilizar essa descoberta na construção de uma série classificatória.
Glover afirma que esse estudo com os dependentes químicos “revelou um outro
problema na classificação que é a significação das formações perversas e fenômenos
fetichistas que comumente acompanham adições com drogas” (p.491). Segundo Glover,
sempre houve problema, para ele, em conseguir situar as perversões em uma escala de
desenvolvimento psicopatológica, mas que sua ideia inicial era fazer uma única série de
desenvolvimento que iria da psicose à neurose, com formações perversas intercalando
essas psicopatologias em diversos pontos. A série inicial que havia imaginado ficaria
assim disposta: psicoses, os fenômenos transitórios e as formas mais primitivas de
perversões polimorfas, a neurose obsessiva, os fetiches e a perversão homossexual e
então a histeria, inibições sexuais e sociais e as ansiedades sociais. Entretanto, Glover
afirma que essa classificação não se sustentou por muito tempo, por diversas razões,
mas principalmente porque “a análise de perversões homossexuais, neurose obsessiva e
de estados psicóticos evidenciou de forma direta e indireta uma ordem regressiva e de
desenvolvimento muito mais complicada” (p.492).
A fim de elucidar essa ordem regressiva complexa, ele apresenta um caso de
perversão homossexual que, após um trauma, apresentou como efeito imediato não
somente um reforço de suas características esquizofrênicas anteriores como também
uma regressão a uma fase passiva da homossexualidade e então a uma fase mais
primitiva de um cerimonial de excreção, com componentes ativos e passivos. Segundo
Glover a característica principal dessa regressão era o enfraquecimento de uma
verdadeira relação de objeto em favor de relações de objetos parciais. Entretanto, para
além dessa diferença com a relação com o objeto, Glover afirma que,
representação de objeto formada. Ele afirma que as imagens dos objetos que estão
presente no aparelho aparato psíquico não são equivalentes às imagens fotográficas
estáticas, mas sim representações do objeto que estão investidas de libido e
correlacionadas ao nosso sistema sensório-motor. Além disso, a capacidade de fazer
representações não seria um resultado primário e espontâneo da atividade psíquica, mas
um processo que levaria tempo – nos níveis filogenético e ontogenético – para se
estabelecer.
Zilboorg afirma que no estágio animista, em que se encontrariam os primitivos e
as crianças, as imagens do mundo externo não produziriam representações psíquicas e
seriam apreendidas como se fossem os objetos eles mesmos. Nessa etapa, o sonho e as
fantasias teriam o mesmo peso que a realidade, uma vez que, nesse período, o
psiquismo, além de apreender o fenômeno externo apenas por suas aparências, também
projetaria para o mundo externo as próprias imagens que produziu.
Na etapa seguinte, que o autor denomina “fase de realidade objetiva”, ainda se
realizariam, de alguma forma, projeções animistas características da fase anterior,
apesar de já se demonstrar uma nova forma de percepção, capaz de diferenciar as ideias
e as percepções. Segundo o autor, essa nova fase se caracteriza pela percepção melhor
da realidade e pelo estabelecimento de diferenciações com a fantasia. Porém, quando
uma imagem concreta é percebida e incorporada, ela ainda estaria envolvida em uma
luta de combinações de impulsos destrutivos, de identificações, de reações de auto-
preservação e projeções mágico animistas, todos esses elementos influenciando na
representação dos objetos. Dessa forma, embora o ser humano aprimore sua visão da
realidade ao passar da fase animista para a fase realista, nunca haveria uma
representação puramente objetiva da realidade. Zilboorg enfatiza que, para que fosse
possível haver esse estado ideal de apreensão da realidade, seria preciso que não
houvesse fantasias, desejos, sentimentos ou contradições na mente humana.
Assim, de acordo com a concepção de Zilboorg, o ser humano estaria localizado
em um ponto entre dois estados absolutos representados pelo pensamento animista e
realista. Existiriam diversas gradações entre os estados, transições imperceptíveis,
misturas de elementos dos dois em várias proporções. Ele afirma que uma mistura
harmônica de elementos dos dois estados constituiria a saúde do aparelho psíquico,
impedindo a ocorrência dos distúrbios de apreensão de realidade – distúrbios estes que,
segundo ele, não seriam necessariamente patológicos.
109
de perdas das fronteiras do eu. Quanto a esta última definição, o texto indica que seria a
demonstração mais clara do alcance do sentido de realidade: a capacidade plena de
diferenciação entre o eu e o ambiente externo.
Na concepção de Frumkes, o sentido de realidade é resultado do estabelecimento
do princípio de realidade e do funcionamento do teste de realidade que se estabelecem
como um crescimento natural do organismo, para evitar a dor e gratificar o instinto.
Ainda que o comportamento humano seja determinado pelo princípio de prazer, o
princípio de realidade deverá começar a funcionar como um controle e uma
consideração da realidade, que poderá facilitar o comportamento a conseguir alcançar o
prazer e fugir da dor.
No entanto, Frumkes admite que essa transformação natural que leva o
organismo a abandonar o princípio do prazer e começar a se interessar por uma
adaptação realista não é um processo fácil. Esse crescimento ocorreria na forma de um
desenvolvimento que requer tempo e esforço para que se aprenda a adiar, alterar e até
mesmo sacrificar o prazer em alguns casos. Além disso, a maturação do sentido de
realidade não dependeria apenas do indivíduo, sendo também fruto da educação que lhe
é dada por seus cuidadores desde a infância, que podem treinar e ensinar as crianças
sobre os modos de funcionamento e os fatos do ambiente externo. Além disso, a
educação promoveria o princípio de realidade usando o amor como recompensa, e
poderia falhar caso a criança receba esse prêmio independentemente do seu
comportamento. Entretanto, é necessário que haja uma espécie de equilíbrio, pois, se o
desenvolvimento do princípio de realidade pode ser retardado se houver muita
indulgência, poderá também ser prejudicado se, por outro lado, a criança ficar muito
ansiosa com os excessos de comandos e de ensinamentos.
O autor então apresenta os dez critérios para avaliar as condições do
desenvolvimento individual do sentido de realidade. Não são dez etapas do
desenvolvimento, mas dez critérios que devem constar no bom sentido de realidade de
uma pessoa. O primeiro critério de avaliação consiste em verificar se está presente a
capacidade de retardar as ações e assim conseguir pensar e repensar para avaliar se a
ação é possível e qual é o momento para executá-la.
O segundo critério é a habilidade para empregar a ação de modo correto, a fim
de buscar as mudanças desejadas no ambiente e conseguir a satisfação. É importante
que a pessoa consiga agir com o objetivo de conseguir a satisfação e não somente para
descarregar a tensão.
111
Caber agora examinar dois textos importantes para o contexto de nossa pesquisa:
aquele de Marvin Hurvich, On the Conceptof Reality Testing (1970), e o de Sander
Abend, Some Observations on Reality Testing as a Clinical Concept (1982). Como
atestam os títulos, tratam-se de textos dedicados ao tema do teste de realidade.
Procuraremos examinar aqui não o argumento integral de seus textos, mas apenas o que
se pode extrair deles a respeito do conceito de sentido e sentimento de realidade. Este
último termo é citado apenas por Abend.
Como veremos, a questão principal que surge na afluência dos conceitos de
sentido de realidade e teste de realidade é essencialmente o problema de definição e
delimitação entre os conceitos. Nos trechos em que fazem menção ao sentido de
realidade, os autores estão interessados em demarcar qual seria a diferença dele para o
teste e o que caberia a cada um deles em termos de função no aparelho psíquico. Essa
tarefa é bem mais evidente no texto de Hurvich, pois o autor se dedica a elencar todos
113
os elementos que compõem o teste de realidade e, a fim de ganhar mais precisão nessa
tarefa, a separação dos conceitos torna-se importante.
Marvin Hurvich começa seu artigo afirmando que, embora as funções do eu
tenham sido já bastante discutidas em psicanálise, pouco se conseguiu em termos de
explicações a respeito de funções específicas do eu. Ele apresenta seu objeto de estudo,
o teste de realidade, através de uma revisão deste conceito nas obras de Freud desde o
Projeto até O Mal-estar na civilização. Em seguida, ele destina toda uma seção de seu
texto para apresentar uma revisão bibliográfica de autores que procuraram estabelecer
diferenciações entre o sentido e o teste de realidade.
Hurvich inicia apresentando o texto de Ferenczi (1913) e Glover (1933). Em
seguida, comenta um livro de Federn, intitulado Ego Psychology and the Psychoses
(1952), no qual o autor, para versar sobre o estabelecimento das fronteiras do eu,
estabelece diferenciações teóricas mais precisas entre o sentido e o teste de realidade.
Hurvich afirma que, para Federn, “o conhecimento do organismo humano a respeito do
que ele sente como sendo pertencente ao ego em oposição ao não-ego está baseado na
sensação, que ele denominou sentido de realidade, mais do que no mecanismo ou
função do teste de realidade” (p. 300). Segundo Hurvich, o conceito do ego para Federn
está baseado na experiência corporal e mental e que ele concordava com a noção
freudiana segundo a qual a distinção original entre o interno e o externo resultava de
movimentos corporais e sensações motoras. Com o tempo, essa base motora que
diferencia o externo e o interno seria substituída pelas fronteiras do eu. Caberia ao
sentido de realidade, e não ao teste de realidade, fazer a distinção entre o interno e o
externo.
Em seguida, Hurvich apresenta a definição de Frosch (1964), segundo a qual o
teste de realidade seria a capacidade de chegar a uma conclusão lógica a partir de uma
série de fenômenos observáveis. Por seu turno, o sentido de realidade seria a sensação
de que os fenômenos do ambiente externo e as sensações internas são reais.
Hurvich também cita a obra de Weisman (1958), autor que classifica o teste de
realidade como uma capacidade intelectual e racional, que trabalha com os objetos
como materiais de análise, dados condicionais e aproximados. Por outro lado, o sentido
de realidade seria uma função emocional e intuitiva, essencialmente privada e que não é
passível de ser compartilhada, que não precisa de confirmação, já que seu critério é a
intensidade da experiência.
114
Finalmente, o autor cita a diferenciação dos termos feita por Novey (1966), que
afirma que o sentido de realidade é uma experiência interior a respeito da existência do
mundo e de si, enquanto o teste seria a sondagem do ambiente para que se possa lidar
com ele.
Ao menos nesse texto, Hurvich não traça considerações sobre concordâncias e
ou discordâncias com essas definições que apresentou. O texto parece ser uma extensa
revisão da literatura a respeito do teste de realidade, já que, em seguida a essa seção
sobre o teste e o sentido de realidade, Hurvich busca fazer outra revisão da literatura,
bem mais extensa que a anterior, a respeito dos elementos que poderiam compor a
função de teste de realidade.
Quanto ao texto de Sander Abend, Some Observations on Reality Testing as a
Clinical Concept (1982), novamente se apresenta o problema que envolve a
conceituação e suas definições, mas alguns outros aspectos são acrescentados à
discussão. Primeiramente, é preciso ressaltar que, dentre todos os textos que
consultamos nessa revisão da literatura, Abend é o único autor a mencionar o
sentimento de realidade (reality feeling), ainda que não estabeleça qualquer
consideração sobre a equivalência ou não deste termo com o sentido de realidade. Em
seu artigo, sentimento e sentido de realidade são tratados como conceitos análogos.
O interesse de Abend se dirige para a clínica com pacientes borderline, pacientes
que apresentariam alguns graus de distúrbio no teste de realidade (p. 228). Abend
afirma que, nas discussões a respeito desses casos, ainda que os termos do teste, sentido
e relação com a realidade sejam bastante utilizados, são pouco definidos e acabam
sendo indistintamente apresentados.
fim de servir como uma espécie de orientação para o paciente em direção ao mundo
real. Isso o auxiliaria a abandonar seus fantasmas e seu mundo infantil, podendo então
se situar na realidade. Quanto mais estiver inserido na realidade com sua presença, mais
o analista poderá orientar o paciente a ter contato com a realidade, que seria “para Nacht
como para Nunberg e muitos outros, o objetivo principal do empreendimento
terapêutico” (Dayan, 1985, p. 78).
Em seguida, Dayan (1985) aborda a proposta de Maurice Bénassy, apresentada
em Fantasy and Reality in Transference (1960). A questão em jogo aí consiste em
saber como poderia funcionar a presença do analista para que o paciente pudesse ter
acesso à realidade e pudesse perceber a ilusão da transferência. De acordo com Dayan
(1985), o programa de cura para Bénassy seria o analista conseguir permanecer
invariável diante dos fantasmas do paciente e assim permitir ao analisante ir medindo a
realidade, já que o analista real não muda de acordo com seus desejos. Segundo
Bénnassy, a transferência é uma experiência sem sentido e só haveria uma forma de o
paciente entender isso: “o analista não pode ser modificado pelos pensamentos, desejos
ou sentimentos do paciente” (p. 387).
Para isso, o paciente deveria perceber a presença do analista, mas Bénassy,
comentando o artigo de Nacht, faz questão de salientar que, em sua leitura, a presença
do analista não deve ser entendida como uma variação na técnica da psicanálise. A
técnica que deveria ser empregada consistiria em o analista se tornar real para o
paciente, o que, em sua concepção, apenas significa que “o paciente estará ciente que
seus pensamentos não podem modificar o analista” (Bénassy, p. 397). Ele afirma que, se
por acaso, o analista vier a responder inconscientemente os desejos de seu paciente, “ele
se torna parte do mundo fantástico do seu paciente, ele não mais é real” (p.397). Desse
modo, para que o analista pudesse auxiliar o paciente a perceber a realidade, ele deveria
manter-se invariável (p.398), no sentido matemático do termo, funcionando como um
representante da realidade para o paciente.
Como é possível constatar, os textos sobre a transferência e sobre a realidade
também já indicavam, de alguma maneira, uma proposta para o término da análise.
Para outros analistas que procuraram relacionar as linhas de desenvolvimento do
sentido de realidade com o desenvolvimento da libido, a proposta de final de análise
derivada normalmente envolverá, junto ao alcance da realidade, também o alcance da
capacidade total para amar. É o que indica o artigo de Michael Balint, The Final Goal of
Psycho-Analytic Treatment (1936). A afirmação logo no início de texto de Balint é que
119
Parte II
Os sentidos de desenvolvimento
e o desenvolvimento do sentido
Capítulo 4
Regimes de temporalidade
e o conceito de desenvolvimento.
19
No pensamento cristão, os acontecimentos da vinda e da ressurreição de Cristo não são passíveis de
repetição ou identidade com qualquer outro acontecimento, tornando assim impossível uma interpretação
cíclica da história. Tanto para os judeus quanto para os cristãos, a história estaria disposta em uma ordem
que tem seu início na criação e cujo sentido aponta para um fim necessário, qual seja, a vinda ou o retorno
do messias.
20
Essa interpretação que relaciona a instauração da ideia progresso com o tempo judaico-cristão não é
hegemônica. Para conferir os debates a respeito da ideia de progresso no tempo grego-romano, conferir
Terra (2004) e Nisbet (1895).
21
Em Vigiar e Punir (1975), Foucault destina um item da terceira parte do livro para analisar como essa
concepção temporal também foi determinante para o regime disciplinar. Intitulado A organização das
gêneses, essa terceira parte do livro versa sobre como uma nova forma de organizar o tempo nas
instituições cumpria a função de “organizar durações rentáveis” (p.133), capitalizando o tempo. Segundo
o autor, essa nova administração conferiu novos predicados ao tempo que se tornava então “serial,
orientado e cumulativo: descoberta de uma evolução em termos de progresso”. (p. 136).
125
22
Trata-se aqui do exame das teorias biológicas que versam sobre problema da geração a partir de um
gérmen ou ovo, estando excluídos, portanto, os debates sobre geração espontânea no campo das ciências
biológicas.
126
23
O termo epigênese não foi criado por Aristóteles, mas por William Harvey, em 1651, e passou a
denominar a concepção de desenvolvimento iniciada por Aristóteles (Botelho, 2007).
127
26
Darwin exemplifica o modelo de desenvolvimento regressivo: “No curso de seu desenvolvimento,
geralmente o embrião vai crescendo no que se refere a sua organização – uso este termo apesar de estar
certo de ser bastante difícil definir claramente o que significaria uma organização maior ou menor,
posto que, provavelmente, ninguém irá discutir que a borboleta tenha organização superior à da
130
Nesse breve percurso no interior dos debates no campo da biologia, vimos como
não há unicidade na indicação do sentido do conceito de desenvolvimento, de seu
fundamento e realização, podendo significar: crescimento das medidas iniciais,
passagem do homogêneo ao heterogêneo, transformação estrutural, estar ou não dirigido
para um fim, dar-se por conflito ou de modo harmônico, ser progressivo ou não.
lagarta. Em certos casos, porém, o animal adulto costuma ser considerado como situado numa escala
inferior à da sua larva, como se vê com determinados crustáceos parasitas, por exemplo.” (Darwin,
1859/1985, p. 335).
131
27
No caso da Sociologia, Lévi-Strauss (1950) chama a atenção para o fato de que os modelos de evolução
importados da biologia apenas serviram como justificativa para um problema já existente na disciplina.
Ele afirma que o evolucionismo sociológico já era teoria presente e apenas fez uso das teorias
evolucionistas da biologia para justificá-lo. Nos dizeres do autor “é a maquiagem falsamente científica
para um velho problema” (1950/1976, p.62).
132
28
Segundo Bolens (2001/2) e Gould (1977), Haeckel não foi o primeiro autor a teorizar sobre a
recapitulação. As primeiras concepções dos biólogos alemães sobre o assunto advêm das ideias do
romantismo e da Naturphilosophie, e começam a surgir nos últimos anos do sec. XVIII e primeiros anos
do século seguinte. Para uma visão mais aprofundada do assunto, a referida obra de Gould contém um
capítulo dedicado a esse tópico intitulado Origens Transcendentais1793-1860.
134
“(...) Nägeli, von Baer e outros que preferiam uma força ortogenética
interna no sentido da perfeição à operação cega da seleção natural
sobre as variações casuais. O primeiro tradutor alemão de Darwin,
Bronn, achava uma força ortogenética interna de mais fácil
compreensão que a seleção natural.” (Ritvo, 1992, p. 251).
Desse modo, além da disposição para se regredir aos pontos de fixação presentes
na história do desenvolvimento do sujeito, há também a disposição de regressão aos
pontos de fixação que foram herdados e estão presentes na história do desenvolvimento
da espécie. Mais do que isso, Freud afirma a seguir que os pontos de fixação da
ontogênese seriam reproduções dos pontos de fixação da filogênese. Ainda que afirme
29
Alguns comentadores da obra preferem, para o título Übersicht der Übertragungsneurosen, a tradução
Visão de conjunto das neuroses de transferência e não o título dado na tradução brasileira de Abram
Eksterman publicada pela editora Imago em 1987 (Monzani, 1991).
137
que “ainda não é possível ter uma visão de conjunto sobre até que ponto a disposição
filogenética pode contribuir para a compreensão das neuroses” (p.71), a seguir Freud
afirma que “ainda é legítimo supor que também as neuroses têm de prestar seu
testemunho sobre a história do desenvolvimento da alma humana.” (p.72). Apresenta-se
aqui, portanto, que o modo como a neurose poderá prestar um testemunho a respeito da
história do desenvolvimento da alma humana será através da repetição do
desenvolvimento filogenético.
A partir dessa hipótese, Freud primeiro estabelece uma ordem cronológica de
aparecimento das neuroses para a ontogênese e, a seguir, tenta relacioná-la com uma
possível sequência de acontecimentos filogenética. Ou seja, Freud supõe um paralelo
entre as duas séries cronológicas – a série ontogenética e a série filogenética – e procura
encontrar, nos pontos de fixação de cada tipo de neurose, a repetição dos pontos de
fixação da história da humanidade, as fases que foram marcantes por algum motivo ou
que deixaram resíduos ao longo da história da espécie. Portanto, cada uma das neuroses,
narcísicas e de transferência, repetiria uma das situações filogenéticas30.
Nesse ponto, Freud recorre às ideias de Fritz Wittel para poder teorizar a
respeito de tais situações e fases da história da humanidade, teoria que afirma que “o
primata teria passado sua existência num ambiente extremamente rico, satisfazendo
todas as suas necessidades” (p. 74), teoria esta que Freud aproxima de um mito do
paraíso original. Seguindo a teoria de Wittel, Freud afirma que teria havido um
momento inicial no qual a humanidade conseguia satisfazer todas as suas necessidades,
tanto as sexuais quanto as de auto conservação, uma espécie de paraíso original no qual
a humanidade vivia sob a égide do princípio do prazer. Freud aceita também a tese de
Ferenczi, apresentada em O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios,
segundo a qual o fim desse estado de prazer da humanidade ocorreu devido aos
problemas e intempéries do meio externo, iniciados na era Glacial. A primeira reação da
humanidade aos problemas do começo da era glacial foi a angústia frente ao perigo
externo. Posteriormente, devido à diminuição da disponibilidade dos artigos para
subsistência, surgiu o conflito entre a auto preservação e o prazer de procriar, sendo
necessário, então, o controle da função genital. Em seguida, para continuar garantindo
30
Essa teoria freudiana influenciou a obra do médico psiquiatra alagoano Arthur Ramos em sua obra
intitulada Primitivo e loucura (1926). De acordo com Pereira e Gutman (2007), “Arthur Ramos
considerava que os fenômenos psicóticos consistiriam em expressões mórbidas do primitivo sufocado em
cada sujeito e, para além do sujeito, da própria cultura, tal como Freud o proporia em seus estudos sobre
as relações entre o inconsciente e a história das civilizações” (p. 520).
138
sua sobrevivência perante o meio hostil uma vez já tendo aprendido controlar sua libido,
Freud descreve que o homem teria desenvolvido sua inteligência para pesquisar a
natureza do mundo externo para dominá-lo; um equivalente próximo às descrições da
instalação de um princípio de realidade feita no texto Formulações sobre os dois
princípios do funcionamento mental, de 1911. Freud passa a descrever a formação da
horda liderada pelo pai, a castração dos filhos, fases que foram posteriormente
apresentadas em Totem e Tabu, relacionando-as sempre com as neuroses de
transferência e narcísicas. Portanto, enquanto reações aos problemas da era glacial, as
neuroses seriam a repetição desta criação humana, o que leva Freud a afirmar que “a
neurose também é uma aquisição cultural” (p.80). Ou seja, os sintomas específicos que
cada uma das neuroses apresenta, seria uma repetição das soluções encontradas pela
humanidade perante os problemas que o meio externo lhe impôs.
Essa interpretação da neurose como repetição da reação da humanidade à
catástrofe nos levaria, na leitura de Berlink (1999), a supor que, para Freud, a
humanidade possuiria uma psicopatologia que lhe é fundamental:
Castração.
Capítulo 5
ambientais seriam agora evocados pela humanidade que ainda enfrenta as mesmas
pressões e frustrações. Enfatizamos aqui que a hipótese freudiana não consiste na
transmissão de ideais ou desejos – tal como está expresso, por exemplo, no texto Sobre
o Narcisismo: Uma introdução (1914b) –, mas sim na transmissão, para o indivíduo, de
conteúdos “inatamente presentes nele, quando de seu nascimento, elementos com uma
origem filogenética – uma herança arcaica” (Freud, 1939[1934-38]/1996, p.112).
Em Moisés e o Monoteísmo (1939[1934-38]/1996), Freud reitera a posição
assumida desde o início de sua obra, ou seja, a de que não se trata de conteúdos cuja
transmissão se faria operar através da educação, da comunicação direta ou tradição de
um povo, mas insiste na ideia de um conteúdo reprimido, inconsciente e hereditário.
Ele, porém, não deixa de reconhecer os problemas dessa posição e assume se tratar de
uma “audácia” necessária. O problema na assunção dessa posição é que, no entender de
Freud, ela dependia da aceitação da hipótese lamarckista da herança de caracteres31
adquiridos, hipótese esta que, segundo ele, já havia sido ultrapassada pela biologia na
época:
“Minha posição, sem dúvida, é tornada mais difícil pela atitude atual
da ciência biológica, que se recusa a ouvir falar na herança dos
caracteres adquiridos por gerações sucessivas. Devo, contudo, com
toda modéstia, confessar que, todavia, não posso passar sem esse fator
na evolução biológica.” (Freud, 1939[1934-38]/1996, p. 114).
Freud reitera que o fator determinante para que uma experiência se tornasse
elemento do conjunto de recordações que farão parte da herança filogenética é seu grau
de importância ou a frequência de sua repetição32 na história da espécie. A repetição
31
Segundo Ritvo (1992), no entender dos estudos biológicos, a admissão da teoria da recapitulação de
Haeckel não depende necessariamente da aceitação da hipótese dos caracteres adquiridos lamarckista.
Para maiores esclarecimentos sobre a autonomia da teoria da recapitulação em relação à tese de Lamarck,
indicamos ao leitor conferir o quinto capítulo da referida obra de Ritvo.
32
Mas, novamente de acordo com Ritvo (1992), ainda que o debate da biologia no período pudesse
descartar a admissão da teoria dos caracteres adquiridos lamarckista como fator essencial para a aceitação
da tese de Haeckel, não poderia eliminar outro fator como essencial para fundamentar a existência de
experiências herdadas: a repetição (p.254). Esse fator é admitido por Freud em O Ego e o Id (1923) e
explicado em uma passagem que talvez seja a mais clara a respeito do mecanismo de transmissão a
respeito desse conteúdo herdado: “(...) não é possível falar de herança direta no ego. É aqui que o abismo
entre um indivíduo concreto e o conceito de uma espécie se torna evidente. (...). As experiências do ego
parecem, a princípio, estar perdidas para a herança; mas, quando se repetem com bastante frequência e
com intensidade suficiente em muitos indivíduos, em gerações sucessivas, transformam-se, por assim
dizer, em experiências do id, cujas impressões são preservadas por herança. Dessa maneira, no id, que é
capaz de ser herdado, acham-se abrigados resíduos das existências de incontáveis egos; e quando o ego
forma o seu superego a partir do id, pode talvez estar apenas revivendo formas de antigos egos e
ressuscitando-as.” (Freud, 1923, p.51).
145
146
filhos. Essa herança inata é resquício do que um dia foi um acontecimento, tornou-se
um conteúdo inconsciente recalcado e justamente por isso, segundo Freud, “dai provém
a força de seu tom emocional” (p. 136), algo que não ocorreria com conteúdos externos
ao sujeito que lhe seriam transmitidos pela educação e pela tradição cultural.
Essa espécie de recapitulação resumida da história da humanidade, que acarreta
a reatualização dos conflitos psíquicos e suas soluções na ontogênese, como já dito
acima, é um modelo que será aplicado por Freud tanto para teorizar o desenvolvimento
do eu quanto o desenvolvimento libidinal. Mas, segundo esse modelo teórico, a
atualização da série de recapitulações não estaria garantida de ocorrer na ontogênese,
podendo haver inibições e regressões que atrapalhariam a realização desse programa.
Na Conferência XXII (1917), Freud apresenta uma explicação para essa espécie de
tropeço desenvolvimentista, alegando que “em vista da tendência geral dos processos
biológicos à variação, não há como fugir do fato de que nem todas as fases preparatórias
são ultrapassadas com igual êxito e superadas completamente” (p.343). A essa espécie
de permanência sistemática em um dos modos de organização constituintes do caminho
de desenvolvimento a ser recapitulado, Freud deu o nome de fixação. No entanto,
mesmo aqueles que passaram por diversas etapas desse caminho ainda assim não
estariam a salvo, pois Freud afirma que “o segundo perigo de um desenvolvimento por
etapas desse tipo reside no fato de que as partes que prosseguiram adiante podem
também, com facilidade, retornar a um desses estádios precedentes (...)” (p.344),
movimento esse que denominou de regressão. Vimos em nosso segundo capítulo como
em Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1917[1915]) é possível encontrar
um exemplo do movimento de regressão temporal aplicado à elucidação do que
ocorreria durante o estado de sono com o desenvolvimento do eu, cujo ponto de
restauração seria o narcisismo primitivo, e com o desenvolvimento da libido, que
retornaria à etapa da satisfação alucinatória dos desejos (p. 229). Como a manta que é
tecida por Penélope durante o dia e desmanchada durante a noite, as progressões na
organização que ocorreram poderiam ser desfeitas durante o estado de sono,
regressando às etapas anteriores para novamente serem tecidas.
Retomando o problema dos modelos temporais e as definições de
desenvolvimento apresentadas no capítulo anterior, nos perguntamos se haveria
possibilidade de classificar essa concepção freudiana para o desenvolvimento
ontogenético do eu e da libido como repetição filogenética em algum dos esquemas
desenvolvimentistas apresentados. Parece ser possível descrever a série como etapista,
148
organizações iniciais seria não apenas possível como recorrente, não apenas em casos
patológicos, mas sempre em que o homem está, por exemplo, no estado de sono, de
acordo com a sugestão de Freud em Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos,
referida acima. Assim, seguindo esse modelo freudiano, na esfera mental, a regressão às
organizações iniciais do desenvolvimento seria um evento universal e frequente no
aparelho psíquico tal como ele o descreve, ou seja, em que os traços passados subsistem
com os traços presentes.
Mas antes de analisarmos a hipótese freudiana da simultaneidade dos traços
psíquicos e suas implicações para o desenvolvimento, voltemos à ideia de recapitulação
da filogênese, pois, de acordo com alguns autores como Lebrun (1983)33 e Mezan
(1985), a aceitação da tese segundo a qual a reatualização da filogênese seria a
explicação para muitos fenômenos sociais – tal como a existência do terror ao incesto, a
exogamia, a importância dada ao pai em muitas religiões e outros fundamentos éticos e
33
Em 1979, o filósofo Gerard Lebrun escreve para o Jornal da Tarde o texto O selvagem e o neurótico, no
qual tece comentário sobre o texto freudiano Totem e Tabu. Ao examinar as diversas concepções que
servem de base para as teses da obra referida, Lebrun centrará suas críticas de modo mais incisivo sobre o
emprego que Freud faz da lei biogenética de Haeckel, segundo a qual a ontogênese repete a filogênese.
De acordo com Lebrun, ao aplicar esse postulado desenvolvimentista para pensar as instituições sociais,
Freud estaria naturalizando sua origem, transformando uma construção sócio-histórica em padrões
biológicos indispensáveis à espécie. Para além da confusão entre “valores sócio-culturais e normas vitais”
na explicação das instituições sociais, a admissão desse princípio levaria também ao estabelecimento de
balizas de normalidade para desenvolvimento psicológico do indivíduo:
“Que a infância seja uma corrida biocultural de obstáculos com um programa fixado em linhas
gerais pelo passado da espécie – esta é uma crença que provém da psicologia genética. Mas foi o
freudianismo um dos seus melhores divulgadores. E deve-se também em parte a ele a invasão, há tempos,
de nossos costumes e nossa crença, derivada daquela – a saber, a opinião de que todo desvio relativo ao
optimum cultural, todo afastamento dos desempenhos minimais que a comunidade aguarda de mim
podem apenas significar que faltei à minha destinação psicobiológica – e que esta falta é passível de
diagnóstico e medida. Em outras palavras, a normalidade mental é testável, por princípio. (...) O próprio
Édipo (esquecemos quase sempre) é também o nome de um teste – em que são os neuropatas os que
ficaram para a segunda época.” (Lebrun, 1983, p. 102).
Portanto, a interpretação que Lebrun faz da obra freudiana é que esta, ao incorporar a lógica do
postulado de Haeckel às concepções psicanalíticas, assumiria como autoevidentes uma gênese biológica
das instituições sociais e a existência de um princípio universal da espécie – representado pelo complexo
de Édipo –, o qual serviria de parâmetro valorativo para medir normalidades e desvios no
desenvolvimento individual. No entanto, os argumentos do autor da crítica à suposta lógica de
desenvolvimentismo em Freud, que não se trataria mais e apenas de um princípio que poderia implicar
segregação neuropatas e todo o conjunto de indivíduos que não chegaram ao estágio final do
desenvolvimento, essa “projeção abreviada da história da civilização” (p. 101). Desse modo, e como
desdobramento dessa hipótese de leitura, cabe ao psicanalista em seu exercício ser “o engenheiro de
integração social” ou o “consertador de Desejo para garantir que a liquidação do Édipo esteja no rumo
certo” (Lebrun, 1983, p.103) para poder garantir a maturação do paciente para poder assim adaptá-lo ao
meio e reconciliá-lo “com os valores (e pouco importa sejam estes de direita ou de esquerda)” (Lebrun,
1983, p.103).
150
34
Não debateremos aqui as implicações sociais dessa concepção, mas sim as implicações dessa visão para
o indivíduo e seu desenvolvimento com o intuito de responder a questão que norteia esse trabalho.
Indicamos o texto de Mezan (1985) e Monzani (1991) como referências para um encaminhamento mais
aprofundado dessa questão.
35
Em uma passagem do texto A história do movimento psicanalítico (1914), Freud comenta a visão de
Jung a respeito da evolução das sociedades e se contrapõe a ela:
“O argumento ad captandam benevolentiam de Jung repousa na suposição demasiado otimista de que o
progresso da raça humana, da civilização e do conhecimento sempre seguiu uma linha ininterrupta, como
se não tivesse havido períodos de decadência, reações e restaurações após cada revolução, e gerações não
tivessem dado um passo atrás e abandonado as vantagens de seus antecessores.” (Freud, 1914/1996,
p.67).
151
de leite devem cair, tal como o organismo está destinado a morrer, o complexo de Édipo
também deveria chegar ao seu termo.
XXIII passagens textuais que podem nos auxiliar a entender a afirmação de Freud da
existência de uma experiência universal de ameaça de castração.
No trecho acima, Freud afirma que não apenas a ameaça de castração é uma
experiência incontornável para o neurótico, mas que também o são a observação da cena
de coito dos pais e a sedução por um adulto. Em seguida, Freud irá debater a respeito da
possibilidade de que esses eventos de fato ocorram e afirma que o testemunho dos
parentes próximos aos pacientes comprovou que, ao menos em alguns casos, as três
cenas ocorreram incontestavelmente. No entanto, como explicar sua presença nos
demais testemunhos neuróticos, ou seja, nos casos em que não há vestígios que
comprovem o caráter indubitável da existência dessas cenas? Freud afirma que,
realmente, seria “altamente improvável” que todos os neuróticos tivessem passado por
essas experiências, mas que, ainda assim, é possível ouvir nos relatos de análises as
lembranças desses eventos que, nesses casos, seriam resultado de construções cujos
elementos seriam diversos estilhaços de fatos ocorridos e que teriam como resultado
narrativo final uma das três cenas neuróticas típicas. Mais adiante nessa conferência,
Freud esclarece mais um aspecto sobre as cenas: “Se ocorreram na realidade, não há o
que acrescentar; mas, se não encontram apoio na realidade, são agregados a partir de
determinados indícios e suplementados pela fantasia. O resultado é o mesmo.” (p.372).
Ou seja, se a experiência não ocorreu realmente, ela será construída a partir de
elementos de outras experiências vividas e constará no conjunto de memórias
partilhando da mesma eficácia do que realmente ocorreu.
Qual seria o efeito desejado que essas cenas devam cumprir para que, mesmo em
sua ausência, um trabalho psíquico deva ser exercido para garantir sua presença? A que
necessidade elas responderiam? Esse é o passo seguinte na argumentação freudiana
nesse texto, mas que recebe uma resposta rápida e sucinta nessa afirmação: “uma
fantasia de ser seduzido, quando não ocorreu sedução nenhuma, geralmente é utilizada
153
por uma criança para encobrir o período auto-erótico de sua atividade sexual” (p.372).
Destacaríamos nessa passagem que a função, apontada por Freud, que essa cena vem
cumprir é a de efetuar, para o sujeito, uma espécie de defesa contra o seu desejo, mesmo
que não se explique aqui a razão para essa defesa. No entanto, em outro texto freudiano,
intitulado Sobre as teorias sexuais das crianças (1908), as mesmas três cenas são
citadas, e a explicação para sua função e presença é que elas visariam responder o
“interesse pelos problemas do sexo nos anos anteriores à puberdade” (p.191). Como
visto no primeiro capítulo desse trabalho, nesse texto Freud afirma que a primeira
questão formulada pela criança é “de onde vêm os bebês?”, seguida pelo interesse sobre
a diferença entre os sexos e pelo coito. Perante a decepção com as repostas que os
adultos fornecem para esses enigmas, a criança criaria suas próprias respostas,
formuladas em acordo com as organizações pulsionais já alcançadas nas respectivas
fases, e que irão constituir o cerne das cenas primitivas. Assim, essas cenas seriam
elaboradas para esclarecer a respeito dos enigmas sobre a sexualidade e suas origens, de
modo que a invenção de cena primária abordaria as origens do sujeito, a cena de
sedução abordaria as origens do desejo e a fantasia da castração explicaria a origem da
diferença entre os sexos. Desse modo, além de ter uma função defensiva contra o desejo
no período do auto-erotismo, elas cumpririam uma função epistemológica, em sentido
amplo, ao elaborar teorias sexuais.
Entretanto, não deixa de ser intrigante a presença e a construção dessas cenas
com o mesmo conteúdo expressado. Não seria possível encontrar respostas diferentes
para esses enigmas ou defender-se do próprio desejo a partir das mais diferentes formas
de construções fantasmáticas? Se voltarmos a Conferência XXIII, veremos que é essa a
pergunta que Freud coloca ao leitor: “por que são sempre geradas as mesmas fantasias
com o mesmo conteúdo”? (1917b, p.372). A resposta nos traz de volta a uma espécie de
ponto zero da fundamentação freudiana para o conteúdo universal do aparelho psíquico:
a herança filogenética. As chamadas fantasias primitivas (ou originárias), como Freud
as intitula, partilham das mesmas características do restante do conteúdo herdado e,
como afirma Assoun (2010), são fantasias originárias que visam dar respostas aos
enigmas sobre a origem.
Se retrocedermos ainda mais na obra freudiana, veremos que a primeira aparição
do termo fantasias primitivas foi em 1915 no texto Um caso de paranoia que contraria
154
36
“Entre o acervo de fantasias inconscientes de todos os neuróticos, e provavelmente de todos os seres
humanos, existe uma que raramente se acha ausente e que pode ser revelada pela análise: é a fantasia de
observar as relações sexuais dos pais. Chamo tais fantasias – da observação do ato sexual dos pais, da
sedução, da castração e outras – de ‘fantasias primevas´(...)” (Freud, 1915/1996, p.276).
155
Essa passagem, extraída da análise do caso do Homem dos Lobos, é uma das
poucas em que é possível encontrar – para além da afirmação sobre a impossibilidade
de sobreposição das séries ontogenética e filogenética presente no manuscrito para
Ferenczi – indicações sobre a importância do que é vivenciado na ontogênese e que ela
traz para um cenário de pura repetição do arcaico. Talvez por essa razão, ou seja, dos
raros comentários freudianos a esse respeito, é que alguns autores tenham apontado a
importação do modelo de recapitulação filogenética como uma forma de exclusão da
vertente histórica.
Mais adiante no mesmo texto, já nos últimos comentários sobre o caso, Freud
pontua que ainda restam problemas não solucionados que merecem destaque:
É conhecida a metáfora de Roma criada por Freud para aludir à mente humana
em O Mal estar na civilização (1930[1929]). Na descrição freudiana, as edificações que
outrora foram destruídas para dar lugar a novas construções, encontram-se conservadas
157
no mesmo solo, no mesmo ponto e no mesmo tempo que as suas sucessoras, sem que
para isso seja necessário desarranjar o que está em seu lugar. Para fazer sua metáfora da
mente, Freud monta um cenário incomum, no qual, todas as construções, das mais
diversas eras, coexistem exatamente no mesmo ponto, sem que nada se perca.
Ainda que nos pareça muito engenhoso utilizar a Cidade Eterna como figuração
de um sistema em que os traços jamais são destruídos, Freud julga que sua tentativa foi
somente um “jogo ocioso”, um insucesso que apenas revela “quão longe estamos de
dominar as características da vida mental através de sua representação em termos
pictóricos” (p.79). Porém, há que se notar que, se a metáfora utilizada Freud por seu
juízo estivesse longe de ter alcançado o objetivo pretendido, isso não se deu por falta de
tentativas. Em 1915, no texto Pulsões e Destino da Pulsão, Freud buscou através da
figuração da erupção vulcânica e suas sucessivas ondas de lava ilustrar o que poderia ser
o desenvolvimento da pulsão:
Destacamos que não apenas Freud se vale de recursos pictóricos para expressar
sua concepção da vida mental, como os busca, a nosso ver, para tentar dar conta
principalmente de uma concepção específica e persistente: como descrever a
coexistência no mesmo espaço dos elementos antigos e recentes e, além disso, como
descrever a coexistência da forma primeira de representações e pulsões com sua forma
posterior. Ou seja, a presença simultânea na vida psíquica da primeira inscrição de um
elemento com a forma que assumiu em seu desenvolvimento ulterior. Se retomarmos a
passagem em que Freud descreve o desenvolvimento do corpo e aplicarmos a lei de não
eliminação da versão primeira do mesmo elemento coexistindo com todas as suas outras
formas assumidas ao longo de uma história, válida para a vida psíquica, poderíamos
imaginar um corpo que ao mesmo tempo apresenta o embrião, a forma infantil e a forma
adulta, a sequência inteira de transformações da medula óssea, a glândula do timo da
infância lado a lado com os tecidos de ligação, todas as etapas de evolução coexistindo
lado a lado.
159
Essa metáfora presente no texto sobre as afasias, ainda que não abarque a
questão do desenvolvimento do mesmo elemento coabitando com suas versões
posteriores, já consiste em uma tentativa de representar um sistema em que as
aquisições mais antigas não se perdem ou são subsumidas às novas aquisições. Como
pudemos verificar, a ideia de indestrutibilidade das inscrições psíquicas permaneceu e
persistiu na obra freudiana até os anos 3037. Em 1919, em A Interpretação dos Sonhos
(1900), Freud faz um acréscimo ao texto original para enfatizar que não apenas os
traços advindos de percepção externa são indestrutíveis na vida mental, mas que
também são todos os atos anímicos, construções, fantasias e os sonhos que, uma vez
criados, continuariam existindo: “Os sonhos que ocorrem nos primeiros anos da infância
e são retidos na memória por dezenas de anos, muitas vezes com vividez sensorial
completa, são quase sempre de grande importância para nos permitir entender a história
do desenvolvimento psíquico do sujeito e de sua neurose” (p. 554).
37
A última menção a ela está em Análise terminável e interminável (1937) e será citada ao final desse
capítulo.
160
Ainda que esses novos contornos sejam adicionados à antiga comparação entre o
ofício do psicanalista e a arqueologia, há um ponto no texto de 1937 em que Freud não
inova absolutamente: trata-se do modo como define a composição e situação dos traços
no sistema inconsciente:
inconsciente. Se pesarmos que nesse sistema os registros não estão dispostos dentro de
uma lógica temporal cronologicamente organizada, parece não haver meios de postular
uma regressão a formas ou a organizações psíquica que lhes são antecessoras. Se a
forma anterior está constantemente presente, simultaneamente aos traços mais recentes,
nos perguntamos que tipo de regressão seria essa. Nas palavras de Monzani, para o
inconsciente, “o passado não é potencial, uma possibilidade de volta, ele é, em certas
esferas, atual” (p.289).
Além da questão da possibilidade da regressão temporal, a hipótese da
atemporalidade inconsciente nos coloca diante de mais uma questão teórica
aparentemente de difícil articulação. Ao consultarmos o item B do capítulo VII em A
Interpretação dos Sonhos (1900), encontraremos a seguinte afirmação: “A rigor, não há
necessidade da hipótese de que os sistemas psíquicos realmente se disponham numa
ordem espacial. Bastaria que uma ordem fixa fosse estabelecida pelo fato de, num
determinado processo psíquico, a excitação atravessar os sistemas numa dada sequência
temporal” (1900/1996, p.567). Como seria possível conciliar o conteúdo das duas
asserções, ou seja, de que se trata de uma tópica temporal, mas de um inconsciente
atemporal? A princípio, poderia parece que estamos diante novamente de um paradoxo
teórico. Contudo, tanto Gueller (2005) como Gondar (1995), em seus respectivos
estudos a respeito da temporalidade em Freud, nos chamam atenção para a palavra
processo que está presente na afirmação freudiana “os processos nesse sistema são
atemporais”. De acordo com essas autoras, a ideia de processo implica a ideia de uma
série de ações dispostas em temporalidade, comportando uma imagem de desenrolar de
eventos. Em sua concepção, a atemporalidade inconsciente não significaria negação
total da presença de uma espécie de temporalidade e desenvolvimento nesse sistema.
Capítulo 6
ser capaz de representar o objeto nele mesmo e estar constituído por complexos
associativos que, por sua vez, são formados por múltiplos traços mnêmicos (acústicos,
visuais, motores, tácteis, sensoriais).
Até aqui, portanto, não haveria desenvolvimento do sentido de realidade já que
os modos de apreensão não se transformam em suas condições mais marcantes.
No entanto, como vimos no Projeto para uma psicologia científica e também no
texto Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, a hipótese de
existência de um segundo regime de funcionamento vai sendo cada vez mais ampliada e
relevante, atingido seu ápice conceitual com o anúncio da existência do princípio de
realidade.
que, diferentemente do que fora teorizado no texto das Afasias, aqui há uma nova
versão no modo de se apreender a realidade que não é estruturalmente idêntica àquela
presente no início, com pendores à alucinação.
Em nosso primeiro capítulo, ao analisarmos as teses principais do texto de 1911,
foi possível acompanhar como a linha apresentada em Projeto foi mantida e
aprofundada por Freud. Novamente, está presente a suposição de que haveria no
aparelho psíquico a tendência a se satisfazer, reinvestindo os traços mnêmicos da
primeira experiência de satisfação, levando à alucinação. Por esse modelo produzir
experiências seguidas de desprazer, é premente que modificações sejam feitas para que
os investimentos libidinais e as tentativas de satisfação se pautem segundo um modo
mais seguro e cauteloso. Esse processo de instalação dessa nova tendência de
funcionamento, denominada princípio de realidade, envolverá o surgimento da
memória, do pensamento, da atenção, da possibilidade de se efetuar ações que não
sigam exclusivamente o modelo do arco-reflexo, com o intuito de evitar as experiências
de desprazer.
Assim, diferentemente do que ocorre com o texto das Afasias, julgamos que
estão presentes, tanto em Projeto para uma psicologia científica como também no texto
Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, hipóteses a respeito de
um desenvolvimento para o aparelho psíquico. Segundo nossa leitura, é possível
acompanhar nos dois textos o esforço de Freud para conseguir demonstrar de que modo
a experiência de desprazer poderia acarretar grandes transformações na economia do
funcionamento do aparelho com a realidade. É importante destacar que, segundo a
lógica dos dois textos, a modificação que ocorre no aparelho está condicionada pela
experiência, e, portanto, não é o fruto simplesmente da passagem cronológica e
tampouco está programada para ocorrer automaticamente com o crescimento do
organismo. A modificação é fruto da algo que o aparelho aprende através das
experiências de desprazer, que Freud afirma no Projeto serem as únicas capazes de
educar o aparelho.
Aproximando esse modo de desenvolvimento, que ocorre no aparelho psíquico
com o advento do princípio de realidade, das classificações temporais que listamos no
capítulo anterior, acreditamos ser possível afirmar que a metáfora da retranscrição,
presente na carta 52, seja a que melhor se aplica nesse caso. Lembramos que a hipótese,
desenvolvida no conteúdo presente nesta carta a Fliess, era que as inscrições psíquicas
passariam por diversas movimentações e traduções, que ocorrem em momentos
174
Seria possível levantar uma objeção contra nossa hipótese, de que não há em
Freud um desenvolvimento do sentido de realidade teleológico, fazendo uso das
passagens que apresentamos sobre Totem e tabu (1913) e O futuro de uma ilusão (1927)
em nosso primeiro capítulo.
Ao afirmar que os sistemas de pensamento animista e religioso estavam mais
próximos ao regime do princípio de prazer e deveriam ser abandonados enquanto o
pensamento científico, mais próximos do predomínio do princípio de realidade, deveria
ser a meta que poderia direcionar os caminhos para a humanidade, poderíamos
considerar que haveria nessa afirmação a ideia de um desenvolvimento de sentido de
realidade com um fim pré-estabelecido e perfectibilista.
Seria possível, inclusive, lembrar a passagem no texto de 1927, em que Freud
sugere que seja feita uma educação para a realidade de modo a se passar dos sistemas
de pensamento animista e religioso em direção ao pensamento científico, no qual
finalmente as ilusões seriam abandonadas.
Mas há outra afirmação de Freud a respeito também da arte, que, segundo Freud,
“quase sempre é inócua e benéfica; não procura ser nada mais do que uma ilusão”
(Ibid., p.157).
Nossa resposta para a segunda questão se pauta na interpretação de Ines
Loureiro, no capítulo três, intitulado “A Guerra às ilusões”, da terceira parte de seu livro
O carvalho e o pinheiro (2002). A tese da autora, com a qual concordamos, afirma que
a defesa de Freud da necessidade do abandono das ilusões do pensamento religioso não
implica o fim dos conflitos pulsionais e a possibilidade de convivência harmônica entre
os homens. Tampouco a passagem do pensamento religioso ao pensamento racional
científico significaria o fim do sofrimento humano. Como afirma Loureiro, (2002),
Freud deixa claro em O mal-estar na civilização que os avanços científicos e seus
resultados tecnológicos não iriam garantir a eliminação do sofrimento humano, “até
porque o próprio progresso traz consigo novas formas de sofrimento.” (Loureiro, 2002,
p. 318).
A autora também retoma a seguinte passagem da resposta de Freud a Einstein no
texto Por que a guerra? (1933) que visa justamente responder a essa questão. Ao
considerar os recursos dos quais a humanidade poderia se valer para impedir a
ocorrência de outra grande guerra, Freud chega a sugerir, entre as suas considerações, a
importância da educação para a autonomia da razão:
Esse trecho citado acima deixa ainda mais consistente a hipótese de que não
poderíamos sustentar com Freud a hipótese de um desenvolvimento teleológico que
comportasse a ideia de aperfeiçoamento totalizante.
Considerações finais
Como dissemos de início, nossa pesquisa não pretende outra coisa que
estabelecer os limites de uma instância vestibular, a partir da qual poderemos levar
adiante a questão sobre o sentido de realidade e de seu desenvolvimento no interior e
para além da obra freudiana. Essa dissertação gostaria que não se perdesse de vista essa
perspectiva que, se de fato restringe a abordagem, confia, por conta justamente de seus
limites, na possibilidade de se tornar futuramente mais frutífera.
190
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