Renata Felis Bazzo Repa

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL

Renata Felis Bazzo Repa

O desenvolvimento do sentido de realidade em Freud

MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

São Paulo 2013


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA SOCIAL

Renata Felis Bazzo Repa

O desenvolvimento do sentido de realidade em Freud

Dissertação apresentada à Banca Examinadora


da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Psicologia Social, sob a
orientação do Prof. Dr. Raul Albino Pacheco
Filho.

Área de concentração: Psicologia Social.

São Paulo 2013.


BANCA EXAMINADORA

____________________________

____________________________

____________________________

____________________________
AGRADECIMENTOS

Ao CNPQ pelo financiamento deste projeto durante o período de realização.


Ao orientador deste trabalho, Raul Pacheco Filho, pelo apoio a este projeto e por
me dar a oportunidade de aprofundar os estudos em Psicanálise.
Aos colegas do Núcleo de Psicanálise e Sociedade, pelas discussões e leituras
realizadas nesse período, especialmente a Karla, Lilian e Patrícia.
À Profa. Elisa Cintra e Paulo Marcos Rona, que compuseram a banca de
qualificação, pelas pontuações precisas e fundamentais que me auxiliaram no
desenvolvimento do objeto dessa dissertação.
Às coordenadoras da Rede de Pesquisa Psicanálise e Infância do Fórum do
Campo Lacaniano de São Paulo, Ana Laura Prates Pacheco e Beatriz Oliveira.
Ao Prof. Christian Dunker por sua generosidade e pelas sugestões nas discussões
iniciais desse trabalho.
Às amigas Thayssa e Makau pela parceria, ajuda e incentivo durante todo o
percurso.
A Léla, Elô, Allis, Nanci, Humberto, Carla, Camila, Carlinhos, Vini, Thayná,
Ana Beatriz, Gabi, Pedrinho, Lúcia, Lourdes, Bertha, Laura, Zéca, Monique e Maurício,
Henri, Espê e Branca.
A André Gellis.
A Vittorio Trevisan (in memoriam), pela herança do corte e da costura.
Para Dida, Sueli, Oswaldo e Luiz.
RESUMO

REPA, R.F.B. O desenvolvimento do sentido de realidade em Freud. 2013. 199f.


Dissertação (mestrado), Psicologia Social, PUCSP, São Paulo, 2013.

O presente estudo procurou examinar o conceito de sentido de realidade na obra de


Sigmund Freud. Ainda que bastante utilizado nas pesquisas psicanalíticas, há poucas
definições sobre o conceito, restando muitas dúvidas a respeito de suas atribuições na
função da apreensão da realidade. Contribui para isso o fato de Freud utilizá-lo apenas
uma vez, sob essa denominação, no texto O mal-estar na civilização (1930), quando
afirma haver um desenvolvimento do sentido de realidade. Esta tese freudiana tornou-se
frequente em muitas pesquisas posteriores em psicanálise que procuraram estabelecer os
modos como esse desenvolvimento ocorreria. A presente pesquisa visou investigar se e
como o sentido de realidade poderia se desenvolver. Para isso, procuramos definir o
conceito, investigando também a noção de sentimento de realidade. Posteriormente, o
estudo faz um levantamento da utilização desse conceito na tradição psicanalítica, sua
constante ligação com aquele de desenvolvimento e os problemas que essa junção
poderia acarretar para o tratamento psicanalítico. Na fase seguinte, estabelecemos o que
poderia ser desenvolvimento psíquico para Freud. A última etapa consistiu, por sua vez,
no cruzamento das hipóteses a respeito do sentido de realidade com os modos de
desenvolvimento encontrados em Freud. Este trabalho sugere os seguintes resultados:
que é possível encontrar diferentes concepções de desenvolvimento para o sentido de
realidade em Freud, mas que nenhuma delas sugere a existência de um desenvolvimento
nos moldes da epigênese ou como um processo totalizante.

Palavras chave: sentido de realidade; sentimento de realidade; desenvolvimento;


temporalidade; Psicanálise; Sigmund Freud (1856-1939).
REPA, R.F.B. The development of the reality sense in Freud. 2013. 199f. Dissertação
(mestrado), Psicologia Social, PUCSP, São Paulo, 2013.

The present study sought to examine the concept of sense of reality in the work of
Sigmund Freud. Although widely used in psychoanalytic research, there are few
definitions of the concept, leaving many questions about their assignments in the
function of apprehending reality. Contributes to that the fact that Freud uses it only
once, under that name in the text The malaise in civilization (1930), when he states that
there is a development of the sense of reality. This Freudian thesis has become common
in many subsequent researches in psychoanalysis which sought to establish the ways in
which this development would occur. The present study aimed to investigate whether
and how the sense of reality could develop. For this, we define the concept by
investigating the notion of reality feeling. Subsequently, the study conducts a survey of
the use of this concept in the psychoanalytic tradition, his constant connection with that
development and the problems that this junction could bring to psychoanalytic
treatment. In the next phase, we established what could be the psychic development for
Freud. The last step consists, in its turn, an intersection of the hypotheses about the
meaning of reality sense with the development modes found in Freud. This work
suggests the following results: it is possible to find different conceptions of
development for the sense of reality in Freud, but none of them suggests the existence
of a development along the lines of epigenesis or as a totalizing process.

Keywords: reality sense; reality feeling; development; temporality; psychoanalysis;


Sigmund Freud (1856-1939).
SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................p. 10

Parte I - Realidade: sentido ou sentimento?.....................................................p. 19

Capítulo 1 - O sentido de realidade em Freud ......................................................p. 22


1.1 Freud e a função do real.................................................................................. p. 28
1.1.1 A realidade em Sobre as afasias............................................................ p. 30
1.1.2 A realidade no Projeto para uma psicologia científica..........................p. 34
1.2 A realidade em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento
mental......................................................................................................................p. 48
1.3 Totem e tabu e os três sistemas de pensamento................................................p. 55

Capítulo 2 - O sentimento de realidade em Freud ................................................p. 67


2.1 A crença na realidade........................................................................................p. 83
2.2 Um fenômeno insólito.......................................................................................p. 89

Capítulo 3 - O debate para além de Freud..............................................................p. 94


3.1 Ferenczi: sentido de realidade e o fim da onipotência......................................p. 95
3.2 Edward Glover – o sentido de realidade e a perversão...................................p. 101
3.3 Zilboorg e Frumkes: dois modelos de desenvolvimento para o sentido de
realidade. ...............................................................................................................p.107
3.4 Hurvich e Abend – o sentido e o teste de realidade.........................................p.112
3.5 A psicanálise como reeducação para realidade................................................p.115
Parte II - Os sentidos de desenvolvimento
e o desenvolvimento do sentido ......................................................................p. 120

Capítulo 4 - Regimes de temporalidade e o conceito de desenvolvimento......p.122


4.1 Desenvolvimento e Biologia...........................................................................p. 125
4.2 A incorporação do conceito de desenvolvimento pelas ciências....................p. 130
4.3 Freud e a fantasia filogenética.........................................................................p.134

Capítulo 5 - Metáforas do tempo em Freud..........................................................p.141


5.1 Heranças pré-históricas: repetição e progresso................................................p.142
5.2 Metáforas arqueológicas: permanência e eternidade......................................p. 156
5.3 Passagem do tempo e a metáfora da retranscrição.........................................p. 164

Capítulo 6 - Os desenvolvimentos do sentido de realidade................................p.169


6.1 Afasias e a hipótese da ausência de desenvolvimento. ...................................p.169
6.2 Um desenvolvimento para o sentido de realidade...........................................p.171
6.2.1 Um desenvolvimento teleológico para o sentido de realidade..............p.175
6.3 Totem e tabu e a hipótese perfectibilista..........................................................p.179
6.4 O fim da análise: a realidade polimorfa..........................................................p. 183

Considerações finais............................................................................................p. 186

Bibliografia............................................................................................................p. 189
 
10  
 

Introdução

É possível afirmar que, se os escritos freudianos fossem dispostos em um


terreno, não se poderia caminhar longas distâncias por ali sem se deparar com o termo
realidade nas mais diferentes formas de seu aparecimento: signo de realidade, realidade
material, realidade psíquica, perda da realidade, realidade de pensamento, crença na
realidade, negação da realidade, valor da realidade, coação da realidade, exigência da
realidade, parte da realidade, sentimento de realidade, prova de realidade, princípio de
realidade, realidade objetiva, realidade poética, realidade fingida, realidade factual,
realidade histórica, frustração na realidade, educação para a realidade, pedaço de
realidade, pressão da realidade (Coelho Jr, 1995). Todos estes termos encontram-se
espraiados sem contar com um lócus que reúna ou articule ao mesmo tempo todos esses
sentidos para conforto do leitor.
Além disso as concepções que envolvem a realidade aparecem sempre
vinculadas a outros conceitos, de forma a compor um quadro de referência reticular no
qual elas por vezes exercem predomínio, em outros são coadjuvantes, como conceitos
auxiliares de pouca repercussão, mas que estão sempre em associação. Apenas para citar
alguns dos conceitos psicanalíticos que, com bastante frequência, formam uma
constelação com as múltiplas formas de “realidade”, lembremos o prazer, a
representação, a pulsão, as formas de negação, as neuroses de defesa, a fantasia.
A frequente aparição do termo realidade nos textos e sua relação multifacetada
com outros conceitos fundamentais mostrariam a importância do problema da realidade,
assim como a concentração em torno da concepção de realidade no interior dos debates
a respeito de pontos cruciais da psicanálise freudiana. Alguns comentadores e
historiadores da psicanálise, por exemplo, relacionam o deslocamento no problema
etiológico – da sedução à fantasia –, exposto na carta 69 a Fliess, com o próprio
nascimento da Psicanálise. Outros ainda consideram a divisão entre realidade material e
a realidade psíquica, particularmente a instituição dessa última, como o traço distintivo,
a fronteira radical entre o sistema explicativo freudiano e os demais estudos sobre a
11  
 

psicologia humana (Perres, 1989). Como exemplo, citamos o artigo de Bernard Baas,
cuja tese consiste em que o conceito de realidade psíquica marca a distinção e a
novidade da teoria freudiana das demais teorias sobre o homem. Segundo ele, o
conceito de inconsciente não representa a inovação freudiana, uma vez que já existia em
autores anteriores, ainda que em diferente acepção, mas que Freud, ao postular “a
realidade psíquica (...), rompe com toda a tradição filosófica e psicológica que precede a
invenção da psicanálise” (Baas, 2001, p.23). Além disso, o debate a respeito da
realidade também apresenta grande relevância para as discussões clínicas e técnicas
terapêuticas (Dayan, 1985). No interior da formulação freudiana a respeito dos quadros
psicopatológicos, um dos critérios de diagnóstico diferencial seria a relação do sujeito
com a realidade, seus modos de negá-la, perdê-la e substituí-la. No que se refere às
técnicas analíticas e suas reformulações ao longo da obra, as concepções de realidade
estiveram presentes e foram determinantes para o que se articulou sobre a transferência,
a construção da fantasia, o papel da rememoração e da repetição no tratamento.
Diante dessa composição bastante diversa de conceitos que envolvem a
realidade na obra freudiana, a presente pesquisa selecionou como tema de estudo o
conceito de sentido de realidade. Embora tal conceito não tenha sido criado por Freud,
mas por Ferenczi em texto intitulado O desenvolvimento do sentido de realidade e seus
estágios (1913), não se pode esquecer que ele foi derivado de uma questão apresentada
por Freud, e foi posteriormente incorporado a sua obra, que o menciona tardiamente.
Assim, a questão da qual parte Ferenczi se desenrola a partir das teses
anunciadas por Freud sobre o estabelecimento do princípio de realidade no aparelho
psíquico, as quais foram apresentadas no texto de 1911, intitulado Formulações sobre
os dois princípios do funcionamento mental. Nesse texto, Freud procura apresentar ao
leitor a hipótese da existência de um princípio de prazer presente no início do
funcionamento do aparelho psíquico, cuja finalidade seria a obtenção de prazer e a
evitação do desprazer. Por não conseguir obter satisfação das necessidades dentro dos
moldes desse funcionamento inicial, Freud afirma a necessidade do estabelecimento de
outra forma de funcionamento que pudesse retificar os procedimentos do princípio de
prazer, que levaria o aparelho a considerar devidamente as exigências impostas pela
realidade. Esse segundo modo de operar será denominado o princípio de realidade.
Segundo Ferenczi, nesse texto de 1911, Freud estaria interessado nas
modificações necessárias para que o princípio de realidade pudesse passar a operar, nas
causas para seu surgimento, nas suas características principais, nas regiões e nos
12  
 

aspectos do acontecer psíquico que resistiriam a sua implementação. No entanto, ele não
teria descrito as etapas da passagem do princípio de prazer ao princípio de realidade.
Visando sanar essa deficiência do texto freudiano, Ferenczi escreve o referido artigo de
1913 na tentativa de conseguir definir as etapas desse desenvolvimento do que ele
chama “estágio-prazer” ao “estágio-realidade” e, assim, conseguir esclarecer as fases do
percurso que estão ausentes do texto de Freud. O sentido de realidade seria resultado
desse processo de instalação do princípio de realidade com todas as modificações que
este traz ao aparelho.
A expressão “sentido de realidade” aparecerá em Freud somente em 1930,
mencionada apenas uma vez no texto O mal-estar na civilização. Assim como em
Ferenczi, ele se apresenta em associação com a concepção de desenvolvimento, quando
Freud lista os métodos de evitação de sofrimento adotado pelos homens:

“(...) a distensão do vínculo com a realidade vai mais longe; a


satisfação é obtida através de ilusões, reconhecidas como tais, sem que
se verifique permissão para que a discrepância entre elas e a realidade
interfira na sua fruição. A região onde essas ilusões se originam é a
vida da imaginação; na época em que o desenvolvimento do senso de
realidade se efetuou, essa região foi expressamente isenta das
exigências do teste de realidade e posta de lado a fim de realizar
desejos difíceis de serem levados a termo.” (Freud, 1930[1929]/1996,
p. 88, grifos nossos).

O desenvolvimento do sentido de realidade (Entwicklung des Realitätssinnes)


não volta a ser mencionado posteriormente. No entanto, é possível encontrar em alguns
textos freudianos um termo muito próximo a ele que é o sentimento de realidade
(Wirklichkeitsgefühl). Presente nas obras A Interpretação dos sonhos (1900) e História
de uma neurose infantil (1918), o sentimento de realidade designará o fenômeno ligado
à experiência onírica. Trata-se do fenômeno que ocorre quando, ao despertar de um
sonho, tem-se a sensação de que algo nele é real, ainda que se reconheça tratar de um
sonho, por vezes de conteúdo absurdo e pouco realístico. Sob outra denominação,
“crença na realidade” (Realitätsglaube), o fenômeno também se apresenta em Delírios e
sonhos na Gradiva de Jensen (1907) e Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos
(1917).
É possível constatar uma grande mudança na constelação conceitual em que o
sentido de realidade e o sentimento de realidade estariam inseridos. Enquanto de um
lado se encontram o problema do princípio de realidade e do desenvolvimento, do outro
13  
 

lado está a sensação de realidade despertada pelo sonho, que Freud não julga ser um
problema ocasionado por um erro de julgamento. Apesar de alguns comentadores
aproximarem esses conceitos como sendo equivalentes, não há muitas indicações
textuais a respeito da possibilidade de tal diferença terminológica (sentido e sentimento)
indicar uma conexão conceitual clara. O fato de haver tão poucas ocorrências dos dois
termos nas obras de Freud, agravado pelo fato de, nas poucas aparições, serem
mencionados no interlúdio, no fluxo de outras e maiores discussões conceituais,
colaborou para aprofundar o desconhecimento de sua distinção ou de sua eventual
articulação. Dessa forma, os alcances e limites de suas definições não foram explorados,
de modo que conceito de sentido de realidade acabou permanecendo em uma zona
nebulosa, entre os conceitos de sentimento, juízo, convicção, consciência, sem ser
possível conferir uma equivalência evidente entre eles ou sem que se possa separá-los
devidamente.
Essa falta de precisão na demarcação do conceito é facilmente identificável
mesmo nos trabalhos dos autores que tomaram o sentido de realidade como objeto de
estudo. Nesses textos, não é possível encontrar uma definição unívoca do termo, que
aparece algumas vezes como sendo uma espécie de adaptação à realidade; outras vezes
significa o abandono da ilusão advinda do sentimento de onipotência e aceitação das
contingências, também como sendo a capacidade de objetivação ou a capacidade de
considerar a realidade do mundo externo e, ainda, como sendo a capacidade do eu de
distinguir-se do ambiente que o circunda.
A razão de nossa opção por um conceito que, como dissemos, aparece de modo
tão pontual na obra de Freud consiste em que acreditamos que ele possa guardar
referências importantes para se entender a concepção freudiana das relações do aparelho
psíquico com a realidade.
É visível que o conceito tem apresentado uma recorrência cada vez maior nos
estudos a respeito da personalidade borderline, das formações psicossomáticas e dos
chamados transtornos de pânico, ou seja, três quadros em que os sintomas de
desrealização e sintomas de estranhamento da realidade do corpo seriam frequentes.
Usualmente, nesses trabalhos, a abordagem feita em relação ao sentido de realidade
refere-se a sua ausência ou falha, fatores que poderiam estar na origem dos fenômenos
de despersonalização. Além disso, autores como Abend (1982) têm ressaltado a
importância de definir com mais precisão os conceitos que concernem à relação com a
realidade. Ele se refere às noções de teste de realidade e, justamente, o sentido de
14  
 

realidade. Com isso, as intervenções clínicas poderiam se tornar mais precisas nos casos
em que apresentam problemas nessa relação.
Em nossa pesquisa, abordaremos o problema do sentido de realidade tomando
como fio condutor a questão que, como anunciamos acima, esteve presente desde a sua
origem, isto é, a suposição da existência de um desenvolvimento, no aparelho psíquico,
do sentido de realidade. Ainda que apresente apenas uma menção textual ao conceito,
nosso interesse se concentrará na obra freudiana. Isso porque, primeiramente,
pretendemos examinar a interpretação de muitos comentadores de sua obra, que,
baseados nos textos como Formulações sobre os dois princípios do funcionamento
mental (1911) e Totem e tabu (1913), afirmaram ser possível encontrar uma lógica
desenvolvimentista para o sentido de realidade, usualmente relacionada ao
desenvolvimento do eu e das pulsões. Portanto, apesar da raridade textual, o conceito
não deixou de ser objeto de uma interpretação de longo alcance entre os comentadores.
Uma interpretação que, como pretendemos mostrar, envolve uma série de dificuldades.
Assim, pode-se dizer que o sentido de realidade aparece na maior parte da
literatura de comentário como incorporado a uma lógica de desenvolvimento. Mais
exatamente, como uma modificação do aparelho psíquico após o surgimento do
princípio de realidade ou o abandono da onipotência do pensamento, modificação esta
que poderia levar o aparelho a estabelecer relações mais adaptadas e objetivas com a
realidade. Não importando quais as modificações específicas estão envolvidas nesse
desenvolvimento, a hipótese mais frequente entre os comentadores é que ela sempre
resulta em progresso para a relação com a realidade e em abandono das formas
primitivas e precárias.
A admissão da hipótese de um desenvolvimento do sentido de realidade segundo
um modelo progressista e teleológico não fica restrita a concepções teóricas apenas,
podendo interferir diretamente nas resoluções a respeito da prática clínica da
psicanálise. Por exemplo, no artigo intitulado Impairment of the Sense of Reality as
Manifested in Psychoneurosis and Everyday Life (1953), Frumkes sugere o
funcionamento integral do sentido de realidade como um objetivo para análise e um dos
critérios para determinar o final do tratamento. Algo análogo se aplica, como veremos
também no terceiro capítulo, a uma série de autores que tratam da questão da
transferência com a realidade. Dentre eles, mencionemos desde já o artigo de Nunberg,
Transference and reality (1951). Nele o autor afirma ser a transferência uma distorção
da percepção da realidade, de modo que o tratamento deveria encaminhar-se na direção
15  
 

do reforço da função do eu com a realidade a fim de conseguir desfazer essas relações


que, para ele, revelavam um erro na identidade das percepções. Há vários outros
testemunhos de acordo com os quais a transferência tem de ser vista como uma ilusão
que caberia desfazer ao longo da análise mediante uma reeducação para a realidade, a
fim de que o paciente consiga desenvolver uma visão mais apurada dos objetos. Tais
textos indicam que, uma vez realizado esse desenvolvimento, seria possível sanar as
falhas na percepção.
Além disso, cabe mencionar desde já os textos de Edward Glover (1933) e
Abend (1982), os quais tecem algumas considerações a respeito da relação entre a
psicopatologia e o desenvolvimento de sentido realidade. O artigo de Glover procura
estabelecer, paralelamente à série de desenvolvimento do sentido de realidade, uma
linha classificatória da psicopatologia que lhe fosse correspondente. Ao contrário disso,
o texto de Abend defenderá a posição, quase única, segundo a qual os fenômenos de
desrealização e despersonalização não devem ser compreendidos como falhas no
desenvolvimento do sentido de realidade que precisariam ser sanadas pela análise.
Portanto, devido à importância epistemológico-conceitual e também clínica da
suposição do desenvolvimento do sentido de realidade, buscaremos investigar o estado
dessa questão em Freud. Trata-se aí de investigar o conceito de sentido da realidade
tendo em vista a hipótese majoritária de que haveria um desenvolvimento teleológico
inscrito na relação do aparelho psíquico com a realidade. Entretanto, para além da
investigação e da decisão a respeito da existência de um desenvolvimento do sentido de
realidade, pensamos ser importante também definir qual seria o modo (ou os diversos
modos) como esse desenvolvimento poderia ocorrer segundo Freud.
Esta questão revelou-se muito importante ao verificarmos que há variações na
concepção de desenvolvimento nas interpretações da obra freudiana, as quais poderiam
determinar diferenças fundamentais nas descrições a respeito do processo e do resultado
final do desenvolvimento, aplicando-se possivelmente também para o sentido de
realidade. Ao consultarmos os comentadores e os autores da psicanálise acerca da
questão, pudemos identificar as mais diversas descrições a respeito desse processo, com
significativas alterações no que seria entendido como seu resultado. Em nossa leitura do
problema, o conceito de desenvolvimento parecia ser objeto de consenso, quando, na
realidade, processos muito diversos estavam sendo descritos com esse termo.
Assim, impôs-se a nós a tarefa de buscar uma definição ou mapear a constelação
conceitual do termo “sentido de realidade”, de investigar sua relação com a hipótese de
16  
 

seu desenvolvimento, bem como as concepções de desenvolvimento que poderiam estar


em jogo.
Nossa hipótese fundamental consiste em que é possível afirmar a existência de
concepções de desenvolvimento para o sentido de realidade na obra freudiana, mas que
este seria um desenvolvimento não totalizante, não perfectibilista, não teleológico, ou
seja, não se daria de modo gradual e regular, guiado por um fim predeterminado. Ao
contrário, o desenvolvimento do sentido de realidade é um desenvolvimento tal, que
comportaria a existência de resíduos marcantes, ou seja, nunca seria completo e jamais
poderia ser qualificado como uma conquista estável.
Além disso, acreditamos que é importante acentuar o fato de que partimos da
suposição de que um estudo concentrado na obra de Freud oferece-nos um fecundo
quadro de referências para a discussão posterior do tema, mesmo para além dos limites
da psicanálise freudiana. A limitação do nosso enfoque visa a um aprofundamento e a
um amadurecimento do quadro conceitual que, para nós, é o mais profícuo, ou no
mínimo o mais sólido, para uma decisão teórica ulterior a respeito de como se deve
encaminhar o tratamento desse problema no horizonte mais amplo da psicanálise.

***

Tendo mostrado a relevância, a perspectiva de leitura e o âmbito teórico da


questão, cabe apresentar o percurso que essa dissertação tomou ao longo da pesquisa.
Ela se divide em seis capítulos.
No primeiro capítulo, apresentamos a menção que Freud faz ao conceito de
sentido de realidade no texto O mal-estar na civilização. Considerando a escassez de
dados na obra, buscamos nos apoiar na análise de outros textos para realizar nossa
pesquisa a respeito do tema. Procuramos apresentar os textos freudianos que
estabelecem uma conexão com os problemas a que se refere o conceito de sentido de
realidade no texto O mal-estar na civilização. Além disso, é preciso lidar também com
os textos que mais foram citados pelos comentadores e pelos teóricos do sentido de
realidade, ou seja, Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental
(1911) e Totem e tabu (1913).
No segundo capítulo, procuramos examinar todas as ocorrências do termo
“sentimento de realidade” ao longo da obra de Freud, analisando os seus contextos
teóricos. Com isso, será possível investigar se esse conceito, que às vezes aparece tão
17  
 

próximo ao sentido de realidade, poderia lançar luz sob nosso tema de estudo.
Tentaremos aqui elucidar se a existência da diversidade na nomenclatura apenas indica
diferentes denominações para o mesmo significado teórico, se ela suscita um problema
de tradução ou se, em si mesma, já seria um indício da existência de diferentes
interpretações desse tópico no interior da literatura psicanalítica.
No terceiro capítulo procuramos mapear a produção bibliográfica sobre o tema
do sentido de realidade na literatura de comentário e autores da psicanálise. Os autores
consultados e os artigos selecionados para serem analisados aqui são os seguintes:
Ferenczi (O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios – 1913), Edward
Glover (The Relation of Perversion-Formation to the Development of Reality-Sense –
1933), Zilboorg (The Sense of Reality – 1941), Frumkes (Impairment of the Sense of
Reality as Manifested in Psychoneurosis and Everyday Life – 1953), Abend (Some
Observations on Reality Testing as a Clinical Concept – 1982), e Hurvich (On the
Concept of Reality Testing – 1970). Além disso, procuramos apresentar alguns
problemas clínicos que envolvem a hipótese do desenvolvimento do sentido de
realidade nos textos de Balint (The Final Goal of Psycho-Analytic Treatment – 1936),
Bénassy (Fantasy and Reality in Transference – 1960), Nunberg (Transference and
reality – 1951).
Para ter um acesso mais consistente ao que poderia significar desenvolvimento
na obra de Freud, realizamos, no quarto capítulo, uma investigação sobre o quadro de
referência histórico-conceitual em que emerge a categoria de desenvolvimento. Em um
primeiro momento, são patentes os múltiplos sentidos que a categoria do
desenvolvimento recebeu, principalmente nas últimas décadas do século XVIII. De
modo geral, esse termo agregou novas significações com a instauração da lógica
temporal judaico-cristã e a crescente importância da noção de progresso. Na segunda
parte do capítulo, buscamos nos estudos de embriologia e zoologia importantes balizas
para a compreensão do que passou a se entender por desenvolvimento no século XIX.
Temos como referência aqui uma indicação de Canguilhem e outros autores (2003), em
estudo dedicado ao tema, segundo a qual o campo das investigações da biologia poderia
fornecer coordenadas importantes para apreender a problemática do desenvolvimento
em suas condensações e deslocamentos junto com o conceito de evolução.
Apresentamos essas concepções nas teses da epigênese, da pré-formação e nas teorias
darwinistas. Na terceira parte do capítulo, fizemos uma breve recapitulação de como as
ciências humanas se apropriaram dessas teorias e dos sentidos conferidos aí ao termo
18  
 

“desenvolvimento”. Como um pequeno exemplo, apresentamos uma comunicação de


Hughlins Jackson e a disseminação da teoria darwinista feita por Haeckel. Na quarta
parte do capítulo, apresentamos a influência das ideias de Lamarck e de Haeckel no
manuscrito freudiano intitulado “Neuroses de transferência: uma síntese”, a fim de
investigar e apontar um dos efeitos dessas concepções de desenvolvimento advindas da
biologia em sua obra.
É no quinto capítulo, no entanto, que buscamos aprofundar o entendimento a
respeito do que possa significar desenvolvimento diretamente na obra freudiana,
apresentando algumas das noções de temporalidade que ele aborda ou pressupõe em
seus escritos e a relação dos modelos de organização temporal com a organização dos
traços psíquicos. Assim, procuramos analisar algumas das metáforas temporais
freudianas, não para estudar como o aparelho psíquico percebe o tempo, mas antes para
verificar se haveria em Freud descrições de modificações na organização dos traços
psíquicos que apontassem para um certo desenvolvimento. Isto é, modificações
determinadas pela passagem do tempo, as quais poderiam eventualmente ser
classificadas como desenvolvimentistas. Em caso afirmativo, a questão que se põe é
saber de que tipo de desenvolvimento se trataria. Desse modo, dividimos esse capítulo
em três partes que analisam, de maneira sucessiva, as metáforas de herança e repetição,
as metáforas arqueológicas, e a metáfora da transcrição nos textos freudianos, tentando
extrair delas possíveis modelos de desenvolvimento.
Finalmente, no sexto capítulo, tentaremos cruzar os resultados alcançados,
principalmente aqueles derivados do primeiro e quinto capítulos, a fim de analisar qual
seria, então, a descrição mais adequada de desenvolvimento do sentido de realidade em
Freud. Utilizaremos fundamentalmente os textos que já foram analisados nos outros
capítulos, com o intuito de aproximá-los e reorganizá-los de outras formas a fim de
responder de maneira mais definitiva e precisa a nossa questão de partida.
19  
 

Parte I

Realidade: sentido ou sentimento?

Para o leitor que aprecia definições teóricas precisas, o conceito de sentido de


realidade não deixa de causar certa perplexidade. Não há em Freud qualquer definição
para ele, o vocábulo também não consta nos dicionários de psicanálise e, já na
introdução de seus textos a respeito do tema, muitos comentadores anunciam que irão
adotar definições provisórias e operacionais para seu objeto de estudo.
Além disso, ao iniciarmos a pesquisa a respeito do sentido de realidade na obra
de Freud, deparamo-nos com outro vocábulo bastante parecido, que, por vezes, era
utilizado como um termo equivalente ao sentido de realidade tanto nas traduções da
obra de Freud, quanto nos comentários sobre o sentido de realidade. Trata-se do termo
“sentimento de realidade”. Como poderemos acompanhar no terceiro capítulo dessa
seção da pesquisa, ainda que o termo sentido de realidade seja o mais utilizado, muitos
comentadores e psicanalistas também adotam em seus textos a versão “sentimento de
realidade”; outros, as duas simultaneamente, como sendo termos equivalentes, sem que
a razão da escolha por um ou outro dos termos fique clara. Muitas vezes, diante desses
textos, é de perguntar se, afinal, estaríamos diante de um conceito que possui dupla
denominação, de uma imprecisão terminológica ou diante de dois conceitos que são, de
fato, totalmente distintos.
Os dois termos, que, ao menos na tradução da Edição Standard Brasileira,
sofrem uma imprecisão de tradução ao serem vertidos para o mesmo significado em
português, são, em alemão, claramente distintos: Wirklichkeitsgefühl e Realitätssinnes.
O primeiro deles, Wirklichkeitsgefühl1, que significa literalmente “sentimento de
realidade”, aparecerá em apenas dois textos, A Interpretação dos Sonhos, nas suas
revisões a partir de 1919, e História de uma neurose infantil (1918[1914]). No entanto,
de acordo com nossa leitura, o termo expressa um fenômeno que também será descrito
em outras obras de Freud, como em Estudos sobre a Histeria (1893), A Psicopatologia
da Vida Cotidiana (1901) e Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907 [1906]),
                                                                                                                       
1
Segundo Dicionário de Alemão-Português (2009), na língua alemã Wirklich significa real, verdadeiro,
efetivo. A palavra Wirklichkeitsgefühl é composta por Wirklichkeit, que significa realidade, e Gefühl que
significa sentimento, sensibilidade.
20  
 

mesmo que não esteja identificado com esse termo pelo autor. Quanto ao vocábulo
Realitätssinnes, que significa “sentido (ou senso) de realidade” é possível encontrá-lo
mencionado somente uma vez e em apenas um texto Freud, mais exatamente, em O
mal-estar na civilização. Ao compararmos com o primeiro termo, observamos não
apenas uma mudança de sentimento (Gefühl) para sentido (Sinn), como também uma
mudança na própria designação da realidade, que passa da forma germânica
Wirklichkeit para a versão latina Realität2.
Nesses poucos textos freudianos em que aparecem, os termos não são definidos
mas, ainda sim, é possível extrair bastante a seu respeito pelo contexto de inserção e
pelos debates condensados à sua volta. Nos dois primeiros capítulos dessa seção,
expomos nossa investigação, que objetiva elucidar se estamos diante de uma dupla
denominação para um mesmo conceito ou se são conceitos diferentes. O resultado a que
chegamos consiste, fundamentalmente, na ideia de que o sentido de realidade é a
capacidade de julgar a respeito das qualidades de um fenômeno. Essa capacidade possui
a finalidade de determinar sua existência e de tentar evitar o desprazer suscitado pela
tentativa de obter satisfação das necessidades mediante o reinvestimento de traços
mnêmicos de experiências de satisfações passadas de modo alucinatório. A formação
desse juízo, atribuído à consciência e ao eu, envolve não apenas a percepção e a
cognição como também as sensações corporais. Quanto ao sentimento de realidade,
trata-se de um sentido de realidade que se tem diante de fenômenos psíquicos que, de
algum modo, remetam o indivíduo a suas fantasias inconscientes. Nesse caso, a situação
é julgada como sendo real por já ter sido uma realidade um dia, mas que apenas pode
ser relembrada mediante as distorções oníricas, por estar relacionada a conteúdos
recalcados.
Nos dois capítulos seguintes, o percurso que permite e sedimenta esse resultado
não deixa de ser um pouco incômodo, já que não partimos de definições iniciais, mas
sim de um conjunto de inferências que possibilitarão reunir as diversas peças, como em
um quebra-cabeças. Para isso, vamos apresentar os textos freudianos em que estes
termos aparecem e as constelações de problemas com os quais se encontram ligados.
Além disso, comentaremos alguns outros textos de Freud que, embora não façam

                                                                                                                       
2
Alguns autores na filosofia, Hegel (1830/1995) principalmente, fazem uma diferenciação entre essas
duas formas da palavra realidade na língua alemã. Enquanto Realität serviria para designar uma realidade
fenomênica e transitória, a forma Wirklichkeit significaria a realidade efetiva, verdadeira. No que diz
respeito aos problemas da psicanálise freudiana, na leitura de Lacan (1936/1998), Freud não utiliza os
termos de modo equivalente também, reservando a forma Realität para se referir à realidade psíquica.
21  
 

menção a nenhum dos termos, estão relacionados a eles de alguma maneira. E isso ou
por serem citados nos estudos pós-freudianos a respeito do tema ou por lançarem luz
aos problemas presentes que os termos envolvem.
Nesses capítulos, procuramos destacar do texto freudiano toda alusão que fosse
feita ao problema do desenvolvimento tanto para o sentido quanto para o sentimento de
realidade. Veremos que só é possível falar de desenvolvimento no que concerne ao
sentido de realidade, ao passo que não foi possível encontrar nenhuma indicação que
permitisse pensar em um desenvolvimento do sentimento de realidade.
No terceiro capítulo dessa seção, apresentaremos algumas discussões a respeito
do sentido de realidade nos estudos de psicanalistas e também de comentadores da
psicanálise. Como se notará, a questão da indefinição do conceito é um dos problemas
levantados por alguns autores. Mas, apesar disso, a tentativa de estabelecer uma
abordagem desenvolvimentista para o sentido de realidade é praticamente onipresente
nas diversas interpretações. Ao final do capítulo, procuramos deixar indicado ao leitor
alguns problemas clínicos que poderiam advir da adoção da hipótese de existência de
um desenvolvimento linear e progressivo do sentido de realidade no aparelho psíquico.
22  
 

Capítulo 1

O sentido de realidade em Freud

Como afirmamos na introdução dessa seção, existe apenas uma menção à noção
de sentido de realidade na obra de Freud, em 1930, no texto O mal-estar na civilização:

“(...) a distensão do vínculo com a realidade vai mais longe; a


satisfação é obtida através de ilusões, reconhecidas como tais, sem que
se verifique permissão para que a discrepância entre elas e a realidade
interfira na sua fruição. A região onde essas ilusões se originam é a
vida da imaginação; na época em que o desenvolvimento do senso de
realidade se efetuou, essa região foi expressamente isenta das
exigências do teste de realidade e posta de lado a fim de realizar
desejos difíceis de serem levados a termo.” (Freud, 1930[1929]/1996,
p. 88, grifos nossos).

Convém lembrar que antes dessa passagem Freud aventava a questão dos
propósitos da vida humana, questão rapidamente abandonada por ser considerada uma
questão ambiciosa e de domínio da religião. Ao invés disso, ele se propõe investigar
uma questão mais modesta, não mais a respeito do propósito da vida para os homens,
mas a respeito do propósito dos homens para suas vidas, ou seja, o que eles almejam
realizar e receber ao longo de sua existência. Para Freud não há dúvidas de que o
propósito dos homens é conseguir obter prazer e evitar o desprazer, o que significa para
ele, seguir o programa do que ele denominou ser o princípio do prazer:

“Esse princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o


início. Não pode haver dúvida sobre sua eficácia, ainda que o seu
programa se encontre em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o
macrocosmos quanto com o microcosmos. Não há possibilidade
alguma de ele ser executado; todas as normas do universo são-lhe
contrárias.” (Freud, 1930[1929]/1996, p.84).

Assim, ainda que o programa do princípio de prazer tenha relevância no


aparelho psíquico, na opinião de Freud ele está em desacordo com o mundo externo e
não conseguirá realizar seu propósito com facilidade. O trecho acima deixa claro que
este princípio do aparelho psíquico não é um modo de operar que esteja em ajuste e
acomodado às condições do mundo externo. Mas, se a busca de prazer não pode ser
23  
 

realizada sem empecilhos, o homem tentará realizar ao menos a segunda parte


constituinte do princípio do prazer, evitando o sofrimento que advém de três fontes: do
próprio corpo, do mundo externo e dos relacionamentos com os outros homens. Assim,
se a meta de buscar o prazer é um propósito impossível de realizar, ainda existe a
possibilidade de evitar o sofrimento.

“Não admira que, sob a pressão de todas essas possibilidades de


sofrimento, os homens se tenham acostumado a moderar suas
reivindicações de felicidade – tal como, na verdade, o próprio
princípio de prazer, sob a influência do mundo externo, se
transformou no mais modesto princípio da realidade –, que um
homem pense ser ele próprio feliz, simplesmente porque escapou à
infelicidade ou sobreviveu ao sofrimento, e que, em geral, a tarefa de
evitar o sofrimento coloque a de obter prazer em segundo plano.”
(Ibid., p. 85).

Têm-se então duas modificações nas metas do princípio do prazer. A primeira


delas é a transformação que ocorre com a instalação do princípio de realidade, e a
segunda delas consiste na restrição do princípio de prazer, limitado agora em seu
propósito de evitar o sofrimento. Quanto aos métodos para essa tarefa, eles podem ser
bastante diversos. Por exemplo, o afastamento da vida social, a fim de evitar o
sofrimento que a convivência com seus pares causa ao homem; o afastamento do mundo
externo ou a tentativa de controle através da ciência para que se possa “passar para o
ataque à natureza e sujeitá-la à vontade humana” (p. 85); além dos métodos para se
evitar os sofrimentos que têm origem no próprio organismo.
Freud também menciona e comenta outros métodos de evitação de sofrimento,
como a utilização de substâncias químicas intoxicantes, a tentativa de domínio das
necessidades internas e das pulsões, a sublimação e o amor. É no interior desta lista de
métodos para evitar os sofrimentos que se situa a menção ao sentido de realidade, citada
logo. No trecho em questão, Freud está comentando o método de evitação de sofrimento
e conquista de algum prazer que a ilusão da imaginação e do devaneio podem
proporcionar ao homem, isolando-o temporariamente dos sofrimentos do mundo
externo. Esse seria um tipo de afastamento da realidade que não deixa de considerá-la,
já que o sujeito consegue reconhecer que o conteúdo da fantasia não é real e está
distante das condições atuais, mas isso não impede a obtenção de uma satisfação,
mesmo que branda. Freud afirma que esse é o método de afastamento de sofrimento
24  
 

proporcionado pela arte, para aqueles que não são artistas e que apenas apreciam o
trabalho artístico dos criadores.
A questão do desenvolvimento do sentido de realidade aparece na explicação da
razão que torna possível a atividade de fantasiar. Segundo Freud, existe uma região do
aparelho psíquico que não foi submetida ao desenvolvimento do sentido de realidade e
que a leva a ficar “expressamente isentada das exigências do teste de realidade e posta
de lado a fim de realizar desejos difíceis de serem levados a termo” (p. 88). Freud não
entra aqui em detalhes a respeito do que seria o sentido de realidade, como também não
define o que seria esse desenvolvimento a que ele está submetido, em qual época da
vida humana se efetua, qual sua causa ou quais elementos do aparelho psíquico estão
envolvidos nessa transformação. Apenas podemos inferir, dessa parte do texto e por
oposição às características que são atribuídas à região que não passou por esse
desenvolvimento, que a modificação que ele opera consiste em levar uma região da
mente a obedecer ao teste de realidade e operar alguma regulação na satisfação dos
desejos.
Nesse contexto, cabe lembrar que a relação entre o fantasiar e a obra de arte já
havia sido teorizada por Freud em Escritores criativos e devaneios (1908[1907]),
escrito em que também é possível encontrar indicações a respeito dessa região que ficou
isenta do desenvolvimento do sentido de realidade. O texto tem início com a questão
sobre qual seria a fonte de criação do escritor e de que capacidade ele dispõe para
conseguir criar e emocionar seu público. Mesmo que esteja longe de querer transformar
todos os indivíduos em escritores, Freud considera que sua pesquisa poderia indicar
algum solo comum entre os escritores e os demais seres humanos em termos de
atividades que permitem a criação literária. Dessa maneira, ele afirma que “os próprios
escritores criativos gostam de diminuir a distância entre a sua classe e o homem comum,
assegurando-nos com muita frequência de que todos, no íntimo, somos poetas” (Freud,
1908[1907]/1996, p.135).
Freud parte, inicialmente, das atividades que poderiam ser similares à criação
imaginativa presentes na infância, que são os jogos e o brincar.

“Acaso não poderíamos dizer que, ao brincar, toda criança se


comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou
melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que
lhe agrade? Seria errado supor que a criança não leva esse mundo a
sério; ao contrário, leva muito a sério a sua brincadeira e despende na
25  
 

mesma muita emoção. A antítese de brincar não é o que é sério, mas o


que é real.” (Freud, 1908[1907]/1996, p.135).

Segundo Freud, tanto a brincadeira quanto a criação do escritor constroem um


mundo de fantasia que é investido de afeto e suficientemente separado da vida real. Essa
distinção entre a realidade e a fantasia faz com que situações que normalmente causam
desprazer na vida real se transformem nas brincadeiras ou nas fantasias e nas invenções
dos escritores, causando prazer nos inventores ou nos espectadores, já que há uma
distância segura que separa esses enredos da realidade efetiva.
Por sua vez, na vida adulta, os indivíduos param de brincar, “após esforçar-se
por algumas décadas para encarar as realidades da vida com a devida seriedade”
(p.136), mas ainda assim, segundo Freud, eles continuam a obter o prazer que outrora
desfrutaram por meio do humor. Pois o humor também é uma forma de o eu relacionar-
se com a realidade sem desconsiderar seus limites, conseguindo extrair prazer e afastar
o sofrimento. Além desse recurso, Freud ressalta a existência de mais uma atividade a
que os adultos se dedicam, a fantasia, por meio da qual obtêm o prazer outrora
alcançado no brincar e que demonstra que a capacidade de criar devaneios investidos de
afeto ainda continua em funcionamento.

“Ao crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao


prazer que obtinham do brincar. Contudo, quem compreende a mente
humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de
um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca renunciamos a
nada; apenas trocamos uma coisa por outra. O que parece ser uma
renúncia é, na verdade, a formação de um substituto ou sub-rogado.
Da mesma forma, a criança em crescimento, quando para de brincar,
só abdica do elo com os objetos reais; em vez de brincar, ela agora
fantasia.” (Ibid., p. 136).

Freud afirma que na vida adulta o brincar é abandonado e que há um esforço


para “encarar as realidades da vida”. Porém, ainda assim, o prazer da infância não é
abandonado, o que nos remete diretamente ao que é afirmado no trecho de O mal-estar
na civilização que estamos tentando analisar. Pois ali a consideração apresentada por
Freud é que, justamente quando houve o desenvolvimento do sentido de realidade, algo
ficou apartado dessa transformação, conservando uma região que “foi expressamente
isenta das exigências do teste de realidade e posta de lado a fim de realizar desejos
difíceis de serem levados a termo.” (Freud, 1930[1929]/1996, p. 88).
26  
 

São esses desejos difíceis de serem realizados e suas características que irão
demarcar algumas diferenças entre o brincar e o fantasiar. Ainda que seja similar ao
brincar infantil e também às invenções dos escritores em sua relação com a realidade e
ao prazer que pode propiciar ao sujeito, as fantasias do adulto não são compartilhadas
publicamente como as outras duas formas de imaginação por motivo de vergonha.
Freud observa que isso se deve ao conteúdo das fantasias adultas e suas características
“infantis e proibidas”, animadas por desejos de ambição ou eróticos, desejos infantis
pertencentes ao passado, mas que encontram alguma realização nos devaneios, fazendo
uso dos elementos que o presente fornece.

“A relação entre a fantasia e o tempo é, em geral, muito importante. É


como se ela flutuasse entre três tempos – os três momentos abrangidos
pela nossa ideação. O trabalho mental vincula-se a uma impressão
atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de
despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali, retrocede à
lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na
qual esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao
futuro que representa a realização do desejo. O que se cria então é um
devaneio ou fantasia, que encerra traços de sua origem a partir da
ocasião que o provocou e a partir da lembrança. Dessa forma o
passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que
os une.” (Ibid., p. 138)

Segundo a formulação apresentada acima, a fantasia fornece o protótipo que é


preenchido com elementos do presente e que poderá se realizar no futuro, mobilizada
por desejos do passado. Freud afirma que, se todos os desejos estivessem satisfeitos,
não haveria motivo para o fantasiar, uma vez que essa atividade se alimenta de desejos
insatisfeitos. Mediante essa capacidade de fantasiar que foi mantida longe do teste de
realidade, é possível realizar o que a realidade não permite e assim efetuar a “correção
da realidade insatisfatória” (p.137).
Esse aspecto de correção da realidade insatisfatória nos remete de volta ao texto
de O mal-estar na civilização, para a continuação das descrições dos modos de evitação
do sofrimento suscitado pela realidade do mundo externo. Ainda que o sentido de
realidade não volte a ser citado, abordamos aqui o método posterior que é apresentado
no texto, já que ele também diz respeito às relações do sujeito com a realidade e,
portanto, tangencia o tema de nossa investigação.
Agora, trata-se de uma forma de evitar o sofrimento mais radical que a operada
pelo método anterior do fantasiar, a qual consiste em romper as relações com a
27  
 

realidade, que é vista por aqueles que empregam esse meio como a “única inimiga e
fonte de todo sofrimento” (p. 88). Freud cita como exemplo o eremita que se afasta
totalmente do convívio social para viver retirado e solitário, mas afirma que há uma
saída ainda mais radical que consiste não apenas em se esquivar do mundo como
também em recriá-lo de acordo com os seus próprios desejos. No entanto, para Freud,
essa tentativa é ineficiente, visto que a realidade se impõe e, com ela, o sofrimento. No
início do comentário a respeito desse método, Freud classifica como louco quem dele
lança mão para administrar o sofrimento causado pelas condições da realidade,
parecendo indicar com isso que o método da tentativa de recriar a realidade nos moldes
do próprio desejo seja um método ligado somente à loucura. No entanto, sem demora
Freud universaliza essa tentativa:

“Torna-se um louco; alguém que, a maioria das vezes, não encontra


ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio. Afirma-se, contudo,
que cada um de nós se comporta, sob determinado aspecto, como um
paranoico, corrige algum aspecto do mundo que lhe é insuportável
pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade.
Concede-se especial importância ao caso em que a tentativa de obter
uma certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através
de um remodelamento delirante da realidade, é efetuada em comum
por um considerável número de pessoas.” (Freud, 1930[1929]/1996, p.
89).

Assim, não sendo esse método apanágio da loucura, afirma-se que todos tentam
efetuar remodelações em aspectos do mundo que vão de encontro aos seus desejos,
ainda que não o façam com a realidade como um todo. Cabe perguntar, então, como se
daria o sentido de realidade nesse caso? A passagem acima parece indicar que não
apenas existe um espaço para a atividade de devaneio, como também para a recriação de
ao menos um aspecto da realidade de acordo com o próprio desejo do sujeito. Ora, para
isso as exigências do teste de realidade devem ser colocadas de lado, ao menos no que
se refere a esse aspecto da realidade que será reconstruído. Isso indica que também em
regiões em que o desenvolvimento do sentido de realidade ocorreu os desejos difíceis
também podem tentar impor sua realização.
Isso é tudo que há sobre o conceito do sentido de realidade e seu
desenvolvimento em O mal-estar na civilização. Mas, ainda que as descrições mais
detalhadas a respeito do sentido de realidade estejam ausentes do texto em que ele é
apresentado, a forma de sua menção não deixa de nos dar algumas pistas. Sabemos até
agora que o conceito emerge em um momento em que se discute o princípio de prazer e
28  
 

sua transformação, e que também ocorre a menção ao aparecimento do teste de


realidade.
Dado esse vínculo do conceito com o princípio do prazer e com o princípio de
realidade, é preciso agora abordar as Formulações sobre os dois princípios do
funcionamento mental (1911). Além disso, é preciso, em um passo posterior, examinar
alguns aspectos de Totem e tabu (1913 [1912-13]), já que aí Freud estabelece uma
relação entre o pensamento animista e o religioso e o princípio de prazer, e, por outro
lado, uma relação entre o pensamento científico e o princípio de realidade. Aliás, a
maior parte dos intérpretes e teóricos em psicanálise se apoia justamente nesses textos
para balizarem suas respectivas concepções de sentido de realidade e de seu eventual
desenvolvimento.

1.1 Freud e a função do real.

Freud inicia o texto Formulações sobre os dois princípios do funcionamento


mental afirmando que “toda a neurose tem como resultado e, portanto, provavelmente,
como propósito arrancar o paciente da vida real, aliená-lo (Entfremden) da realidade”
(p. 237); logo em seguida ele faz menção ao termo utilizado por Pierre Janet para
figurar essa que é uma das características principais da neurose: a perda de la fonction
du réel (da função da realidade)3. Segundo Freud, embora Janet tivesse conseguido
circunscrever corretamente esse traço da neurose, não conseguiu vinculá-lo
corretamente aos seus fundamentos. Já a psicanálise, por ter estabelecido o conceito de
recalque como processo fundamental para o entendimento da gênese da neurose, teria
conseguido ultrapassar o vão explicativo deixado por Janet.
Para Freud, o neurótico se afasta de realidade por “achá-la insuportável”, e o
recurso utilizado para fazê-lo é negá-la. Essa negação da realidade pode ser parcial ou
mesmo total. A possibilidade de negar apenas uma parte da realidade parece indicar
que, segundo a concepção de Freud, a realidade não é um bloco monolítico de entes. A
concepção freudiana até esse momento, e que está anunciada nesse texto, consiste na
ideia de que psicose seria um caso em que a operação de negação se daria de modo mais
extremo, enquanto na neurose se negaria apenas uma parte da realidade.
                                                                                                                       
3
Segundo Dayan (1985b), a função do real em Janet era uma função importante para a adaptação às
circunstâncias concretas do presente. A sua perda levava à “ineficácia, indecisão, dúvida, alheamento da
vida prática e social, propensão à metafísica e ao ascetismo, importância excessiva concedida ao futuro e,
sobretudo ao passado” (p.59).
29  
 

Esses modos de negação da realidade não serão abordados no texto de 1911.


Freud avisa ao leitor que vai destinar o texto à procura do modo como os neuróticos e a
humanidade em geral se relacionam com a realidade, a fim de “trazer a significação
psicológica do mundo externo e real para a estrutura de nossas teorias” (p.237). Para
isso, buscará determinar quais seriam as bases psíquicas para o estabelecimento da
função da realidade no aparelho psíquico. A preocupação em destinar algumas obras
para versar sobre como se dá esse estabelecimento e a própria premissa de que um
estabelecimento da realidade seja necessário, já indicam dois aspectos fundamentais da
teoria freudiana em relação à realidade para o aparelho psíquico: a relação com a
realidade não é consequência e garantia do funcionamento dos órgãos sensoriais como
também não é fruto de uma tendência ou aquisição inata do organismo em busca de
adaptação ao seu meio.
Essas questões, que aparecem em Formulações sobre os dois princípios do
funcionamento mental de forma muito resumida, como um esboço de opiniões no dizer
de Freud (1911/1996, p. 244), já estavam sendo trabalhadas pelo autor há muito tempo.
Elas já aparecem de uma maneira ou de outra em textos anteriores de sua obra, como no
capítulo VII de A Interpretação dos sonhos, publicada em 1900. Entretanto, desde 1950,
quando foi publicado o manuscrito escrito por Freud e intitulado Projeto para uma
psicologia científica, viemos a saber que Freud já estava às voltas com a elaboração
dessas questões em 1895, portanto, antes de sua obra sobre os sonhos. Dentre os muitos
temas abordados nesses textos, a linha argumentativa que os costura todos em uma peça
única consiste na tentativa de construção de uma teoria a respeito da apreensão da
realidade pelo aparelho psíquico. Segundo essa teoria, essa apreensão não é o resultado
dos processos fisiológicos e tampouco resultado de uma tendência natural de adaptação.
Bem ao contrário disso, argumentação freudiana justifica a premissa de que a tendência
primeira do aparelho é alucinar. Esse aspecto encontra-se claramente indicado por
Lacan, em seus comentários no Seminário 7 sobre articulação entre os princípios do
funcionamento psíquico, quando sublinha a característica inovadora na obra freudiana
de caracterizar a relação precária do aparelho psíquico com a realidade. Segundo ele,
Freud:

“(...) parte de um aparelho cujos dados são os mais opostos a um


resultado de adequação e de equilíbrio. Ele parte de um aparelho que,
por sua própria tendência, se dirige ao engodo e ao erro. Esse
organismo inteiro parece feito não para satisfazer a necessidade, mas
30  
 

para aluciná-la. Convém, portanto, que um outro aparelho, que se


oponha a ele, entre em jogo para exercer uma instância de realidade e
se apresente, essencialmente, como um princípio de correção, de
chamada à ordem.” (Lacan, 1959-60/1997, p. 40).

Perante essa situação primeira do organismo caracterizada pela inadaptação à


realidade, Freud terá que explicar de quais mecanismos e recursos este organismo
poderá lançar mão para que a alucinação não ocorra e se consiga alcançar a satisfação.
A questão se impõe, já que, desde o início de sua obra, para o aparelho psíquico a
alucinação é antes a regra que a exceção.
Mas, retomemos esses passos do estabelecimento da realidade com vagar,
recorrendo-se a outros textos freudianos a fim de acompanhar a construção das
concepções acerca da realidade que irão desembocar no princípio de prazer e de
realidade, tal como serão apresentados posteriormente, em 1911. Além disso,
tentaremos rastrear as hipóteses a respeito da existência de um desenvolvimento nas
formas de apreensão da realidade nesses textos.

1.1.1 A realidade em Sobre as afasias

Começaremos por Sobre as afasias: um estudo crítico, de 1891, texto bastante


remoto mas importante para a compreensão da teoria da representação da realidade. As
formulações freudianas do funcionamento do aparelho de linguagem ali descritas já
rompem com um postulado importante, ao dissociar a apreensão da realidade da
percepção da realidade enquanto fruto de processos fisiológicos do organismo.
Apesar de não publicado na organização de suas obras completas por tratar-se de
um texto neurológico, esse escrito de Freud, a dar razão a alguns comentadores
(Forrester, 1983; Garcia-Roza, 1991; Rudge, 1998), já anuncia algumas questões
psicanalíticas fundamentais, ainda que de modo incipiente tais como: a teoria do lapso,
chiste e ato falho; a superação da distinção entre normal e patológico; um ensaio sobre o
funcionamento das representações no psiquismo a partir da descrição do aparelho de
linguagem. Além disso, o fato de Freud retomar muitos pontos discutidos em Afasias
vinte e quatro anos depois em O inconsciente (1915), artigo central da metapsicologia,
também é índice da pertinência dos temas de seu estudo para além do campo da
neurologia.
31  
 

Em 1891, Freud já havia ido à Paris para seu estágio na Salpêtrière. Ele também
já havia traduzido para o alemão a obra de Charcot sobre a histeria (Neue Vorlesungen
über die Krankheitendes Nervensystems, insbesondere über Hysterie) e escrito o verbete
sobre histeria para a Enciclopédia Villaret. Desse modo, os problemas da clínica e da
teorização da neurose já lhe eram familiares. Segundo Simanke (1994), o texto das
afasias pode ser lido como uma tentativa de Freud de fornecer uma teoria neurológica
que fundamentasse a existência objetiva dos fenômenos da neurose, não apenas como
epifenômeno de lesões no sistema nervoso, como pretendiam as teorias localizacionistas
da época.

“Com sua viagem de estudos à França, em 1885, Freud entrara em


contato com uma psiquiatria que se afastava do mecanicismo estrito
da academia alemã, do qual Meynert, seu antigo professor, era um dos
principais defensores. Contudo, se o ensino de Charcot permitiu o
surgimento do conceito de neurose (...) encontrava-se ainda
demasiadamente comprometido com uma psicologia abstrata das
faculdades mentais, que tendia mais a uma tipologia dos indivíduos do
que à produção de categorias objetivas de análise. É, pois, como um
esforço no sentido de prover a clínica da neurose de um fundamento
conceitual mais sólido, que pode ser entendido o trabalho
desenvolvido por Freud em Zur Auffassung der Aphasien.” (Simanke,
1994, p. 02).

Serão as teses localizacionistas de explicação das afasias as primeiras a


receberem as críticas de Freud, especialmente os escritos de Wernicke, uma vez que ali
estavam reunidos os pressupostos principais da vertente anato-patológica de
interpretação das patologias, quais sejam: a afasia resultaria da destruição dos centros
cerebrais da linguagem (o centro motor, o centro sensorial ou o sistema de fibras
associação que os une); as representações estariam localizadas no interior das células
neuronais; os processos de associação e percepção ocorrem em lócus separados.
Após passar em revisão diversos casos clínicos e explicações na literatura sobre
afasias, Freud anuncia: “(...) repetimos para nossa segurança que fomos obrigados a
abandonar a explicação da localização na medida em que ela foi contraditada pelas
verificações de autópsia.” (Freud, 1891/2003, p. 17). Segundo Freud, a tese da
localização da atividade psíquica da linguagem em diferentes áreas cerebrais deveria ser
substituída por uma abordagem funcionalista que, sem deixar de referir-se à anatomia,
daria mais ênfase aos processos globais de funcionamento neuronal.
32  
 

Essa mudança de perspectiva na abordagem do fenômeno deve-se à segunda


hipótese teórica de Freud em seu entendimento do fenômeno estudado: o pressuposto de
que os processos psíquicos não são causados pelos processos fisiológicos. Ou seja, os
fatos psíquicos resultam, mas não são o efeito mecânico do processo fisiológico, de
modo que seria impossível deduzir um processo do outro, na forma de um decalque.
Nos dizeres do autor:

“(...) a cadeia de processos fisiológicos no sistema nervoso não está


em relação de causalidade com os processos psíquicos. Os processos
fisiológicos não cessam mal se iniciam os psíquicos, pelo contrário, a
cadeia fisiológica prossegue, só que, a partir de um certo momento, a
cada seu elemento (ou a cada um dos elementos isoladamente)
corresponde um fenômeno psíquico. O psíquico é assim um processo
paralelo ao fisiológico (“a dependent concomitant”)”. (Freud,
1891/2003, p. 31).

Essa tese freudiana vai implicar duas consequências importantes na teoria da


representação elaborada então por ele, de modo a operar duas modificações essenciais
quando comparadas à teoria anterior. Se o processo psíquico não equivale ao processo
fisiológico, a representação não equivale à sensação. Ainda que esteja ligada à
percepção, a representação psíquica não será um correspondente, de ponta a ponta, dos
dados físicos da percepção. Abandona-se, portanto, a concepção da representação como
uma projeção do mundo externo. A segunda derivação do abandono das teses
localizacionistas consiste no postulado de que a representação não está isolada dentro
das células nervosas e apartada das vias onde ocorreriam as associações. Em acordo
com a concepção funcionalista, representação e associação não serão entendidas mais
como processos separados espacialmente e, tampouco, temporalmente.
A divisão estanque entre esses processos será totalmente refutada com a
disposição do aparelho de linguagem tal como desenhada por Freud. Nesse modelo, a
própria representação será um complexo associativo de imagens mnêmicas acústicas,
visuais, motoras, tácteis que se relaciona a outros complexos representacionais,
formando uma “superassociação”, na expressão de Freud. Ele estabelece dois tipos de
complexos representacionais no aparelho de linguagem – representação-palavra
(Wortvorstellung) e representação-objeto (Objektvorstellung) – que, quando articulados,
produzem a significação. É fundamental ressaltar que a representação-objeto não é o
objeto nele mesmo (Ding), apenas a sua representação imagética. Segundo Simanke,
33  
 

“Fica claro como a linguagem, nesta concepção, não representa o


mundo da percepção: o objeto da representação de palavra é uma
outra representação – a de objeto -, ambas configurando complexos
cujos elementos são de origem perceptiva, mas não pertencem,
enquanto tais, à esfera representacional.” (Simanke, 1991, p.05).

De certo modo, parece que estamos diante de uma variante do kantismo, no


sentido de que a representação-objeto tem semelhanças com o conceito kantiano de
fenômeno. Embora resulte de uma afecção da coisa sobre o aparelho sensível do sujeito,
o fenômeno não coincide, segundo Kant, com a própria coisa, pois ele, ou essa afecção,
é determinado pelas condições da natureza cognitiva do sujeito.
Portanto, pode-se concluir que já de início, em Freud, o problema da realidade é
marcado por pelo menos dois hiatos. Um hiato que diz respeito à representação da
realidade e a realidade em si mesma4 – nesse aspecto, é visível a aproximação com a
abordagem kantiana do problema da coisa em si. Mas também um hiato já no campo
representacional, visto que a representação se diferencia do elemento sensorial dada a
sua composição como um complexo associativo.
De outro lado, os elementos para investigar a questão dos modos de
desenvolvimento dessa estrutura são, é verdade, escassos, mas vale lembrar que eles são
ainda assim bastante frutíferos. Pois, em primeiro lugar, em nenhum momento do texto
encontramos uma avaliação do funcionamento representacional escalonado em etapas
de desenvolvimento, ou seja, ele parece ser independente de um estágio maduro ou
imaturo. Ainda que utilize a Teoria da Evolução de Hughlings Jackson na explicação
das afasias, a estrutura do aparelho de linguagem, bem como seu modo de
funcionamento, parece independer da passagem do tempo.
Em segundo lugar, de uma maneira mais positiva, Freud recusa a teoria de
Wernicke, segundo a qual os centros da linguagem estariam separados por vazios livres
de funções, de modo “que não só o desenvolvimento infantil mas também a aquisição
de ulteriores conhecimentos (...) se baseiam na ocupação de um terreno até então vago
do córtex, mais ou menos como uma cidade que se estende pela ocupação de terrenos

                                                                                                                       
4
Esse hiato permanece até o fim. Em Esboço de Psicanálise: “Em nossa ciência, tal como nas outras, o
problema é sempre o mesmo: por trás dos atributos (qualidades) do objeto em exame que se apresenta
diretamente à nossa percepção, temos que descobrir algo que é mais independente da capacidade
receptiva particular de nossos órgãos sensoriais e que se aproximam mais do que se poderia supor ser o
estado real das coisas. Não temos esperança de poder atingir esse estado em si mesmo visto ser evidente
que tudo de novo que inferirmos deve, não obstante, ser traduzido de volta para a linguagem das nossas
percepções, da qual nos é simplesmente impossível libertar-nos. (...). A realidade sempre permanecerá
sendo “incognoscível”.” (Freud, 1940[1938]/1996, p. 210).  
34  
 

fora das muralhas” (Freud, 1891/2003, p. 34). Ao contrário disso, Freud considera que
todas as novas aquisições estão localizadas nas mesmas áreas da primeira língua
aprendida.

1.1.2 A realidade no Projeto para uma psicologia científica.

Publicado apenas nos anos 50, após ser descoberto entre os documentos e as
cartas pertencentes à correspondência entre Freud e Fliess, é possível inferir do
conteúdo das missivas que Freud esteve envolvido com a elaboração dos conceitos com
a escritura do Projeto para uma psicologia científica ao longo de todo o ano de 1895.
Na carta datada em 20 de Outubro desse ano, Freud afirma:

“Tudo pareceu encaixar-se, as engrenagens se entrosaram e tive a


impressão de que a coisa passara realmente a ser uma máquina que
logo funcionaria sozinha. Os sistemas de neurônios; os estados livres e
ligados de Qn; os processos primário e secundário; a tendência
principal e a tendência de compromisso do sistema nervoso; as duas
regras biológicas da atenção e da defesa; as características de
qualidade, realidade e pensamento; o estado do grupo psicossexual; a
determinação sexual do recalcamento; e, por fim, os fatores que
determinam a consciência como função da percepção – tudo ficou e
continua correto até hoje!” (Freud, 1950[1895]/1986, p.147).

Na carta de 8 de Novembro desse mesmo ano, Freud afirma ter engavetado os


textos sobre psicologia para desenvolver outros trabalhos que requeriam urgência. No
entanto, algumas passagens da carta fornecem indícios de que não apenas os
compromissos profissionais levaram ao engavetamento do esboço de uma psicologia
científica, como também a constatação de problemas conceituais presentes no artigo,
que nunca foi enviado para publicação. Ele escreve a Fliess: “Desde que pus a ΦΨω de
lado, sinto-me abatido e desencantado; creio não estar de modo algum à altura de suas
congratulações” (p.151).
Ainda que engavetado e nunca publicado, o sistema que Freud expõe no Projeto
é apontado por comentadores de sua obra como sendo de grande relevância para
compreensão de suas ideias posteriores, não apenas na qualidade de documento
histórico de suas ideias, mas também em um sentido sistemático-conceitual. No que diz
respeito diretamente a nosso objeto de investigação, essa obra apresenta pela primeira
vez o regime do que será posteriormente denominado como princípio do prazer e
também os primeiros esboços teóricos sobre a instalação do teste de realidade. Além
35  
 

disso, Dayan (1985) aponta que é no Projeto que se encontram as premissas da


distinção entre realidade psíquica e realidade material na obra de Freud, sendo o
conceito de realidade de pensamento (Denkrealität) apresentado aqui, um percussor do
que viria a ser posteriormente o conceito de realidade psíquica.
No texto em questão, encontra-se desenhado o primeiro modelo explicativo do
aparelho psíquico e os princípios de seu funcionamento. Baseado nos pressupostos da
escola de Helmholtz e de Du Bois-Reymond, que buscavam estabelecer explicações em
termos exclusivamente físico-químicos para o funcionamento do organismo (Monzani,
1989), já na introdução do texto é possível encontrar a adesão a esse parâmetro,
anunciada na seguinte forma: “A intenção é prover uma psicologia que seja ciência
natural; isto é, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente
determinados de partículas materiais especificáveis, tornando assim esses processos
claros e livres de contradição.” (p.347). Seguindo esses preceitos, o Projeto é sustentado
por dois elementos básicos que lhe servem de alicerce: o neurônio |N|, unidade mínima
constituinte do aparelho e que é animado por uma quantidade |Qn| que deve obedecer
às leis gerais do movimento, mas cuja natureza não é indicada ao longo do texto.
Freud anuncia que a decisão pela inserção do fator quantitativo como um dos
elementos básicos para o modelo está diretamente relacionada às observações advindas
da clínica das neuroses, casos de histeria e neurose obsessiva nos quais “a característica
quantitativa emerge com mais clareza do que seria normal” (p.347). Essa excitação
neuronal representada pelo fator quantitativo não é uma propriedade fixa e estável dos
neurônios, mas uma atribuição móvel, em estado de fluxo, e que está submetida a duas
leis de funcionamento. O princípio inicial de regimento do fluxo de Q é denominado
princípio de inércia, princípio que especifica que toda a quantidade que entrar no
sistema neuronal deverá sair através de descargas motoras, tal como o modelo do arco
reflexo determina. No entanto, quanto mais a complexidade do organismo for
aumentando, o sistema neuronal passa a receber estímulos de dentro do próprio
organismo que reclamam satisfação para que ele possa se manter vivo, tal como a
nutrição, reprodução, respiração. O sistema neuronal não pode lidar com o estímulo
exógeno do mesmo modo como o estímulo endógeno, já que não é suficiente e possível
livrar-se da quantidade advinda de dentro do organismo de forma total. Isso ocorre
devido ao fato de que os estímulos endógenos só cessam após ser satisfeitos diante uma
ação do organismo no mundo externo – uma ação específica – que demanda do sistema
uma quantidade de energia para ser realizada. O sistema deve agora reter alguma
36  
 

quantidade para poder trabalhar na ação específica quando os estímulos endógenos


reclamarem por ela. Entretanto, ainda que comece a existir essa diferenciação, que exige
a manutenção de uma certa quantidade no interior do sistema, essa quantidade não
poderá sofrer grande incremento. Ou seja, ainda que o sistema consiga tolerar alguma
quantidade em seu interior, ela não pode ferir e se afastar muito do que estava
estabelecido pelo princípio anterior, exigindo que a quantidade se mantenha constante e
ao nível mais baixo possível. A esse novo princípio Freud denominou princípio de
constância.
Quanto aos neurônios, Freud os caracteriza como possuindo duas extremidades:
receptora e de descarregamento, de modo que não haveria neurônios específicos para
recepção e outros para descarga da quantidade, sendo cada neurônio um “modelo de
todo o sistema nervoso, com sua dicotomia de estrutura” (p. 350). A quantidade advinda
tanto de dentro quanto de fora do organismo que alcançar o sistema nervoso passa do
polo receptor ao polo de descarga dos neurônios que estão em conexão uns com os
outros, formando assim uma espécie de tecido de comunicação neuronal através do qual
a quantidade poderá fluir. No entanto, como a presença dos estímulos endógenos
necessita de uma quantidade permanente dentro do sistema para a realização da ação
específica que leva à satisfação, é preciso que os neurônios possam contar com um
mecanismo para a retenção, e não apenas para a passagem livre da quantidade. Essa
função será operada pelas barreiras existentes nos contatos entre os neurônios, as
barreiras de contato.
Nesse momento, Freud insere uma diferenciação funcional nos elementos que
compõem o tecido neuronal do sistema, tornando assim mais complexa as suas
atribuições. Embora cada neurônio seja igual ao outro morfologicamente, eles serão
divididos em duas classes de acordo com suas funções: os neurônios que deixam passar
a quantidade “como se não tivessem barreiras de contato” e que se mantêm inalterados
após esses processos, e os neurônios em que as barreiras de contato são atuantes,
permitindo a passagem da quantidade com dificuldade ou parcialmente e que são
transformados após o trajeto de passagem das quantidades ter sido realizado. Esses dois
tipos de neurônios irão formar sistemas distintos dentro do aparelho: os neurônios que
são permeáveis à passagem da quantidade irão compor o sistema da percepção,
enquanto os neurônios que são modificáveis após o contato com as quantidades irão
formar a memória do aparelho. Para Freud, a explicação para as funções de percepção e
memória era algo que não poderia faltar em uma teoria científica do aparelho psíquico e
37  
 

ele tentará dar novos contornos a essa explicação em outros textos, mas principalmente
em Uma nota sobre o bloco mágico, de 1925.
Assim, o aparelho pensado por Freud será formado por sistemas neuronais com
funções diferentes de tratamento dos estímulos. Aquele composto por neurônios
permeáveis, com barreiras de contato inativas, e constantes em sua forma foi
denominado sistema Φ, o sistema da percepção, que estará voltado para trabalhar as
quantidades advindas do mundo externo. Quanto ao outro sistema de neurônios, aquele
destinado à memória do aparelho, será chamado sistema ψ, composto pelos neurônios
cujas barreiras de contato estão ativas e que por isso se tornam diferentes após a
passagem da quantidade. Essa modificação permanente nos neurônios do sistema de
memória foi denominada conceitualmente de Bahnung (facilitação ou trilhamento) e são
os caminhos abertos após a passagem da quantidade. Entretanto, os caminhos abertos
não têm a mesma valência para o sistema, de modo que se impõe uma diferenciação
entre eles. Segundo Freud, de acordo com a magnitude de uma impressão e a quantidade
de vezes que ela se repete no sistema, destacam-se espécies de caminhos preferenciais a
serem trilhados pela quantidade quando o aparelho é excitado novamente. Ou seja, além
de existirem vias de facilitação na memória, o sistema conta também com diferenças de
valor entre esses caminhos, para que não sejam indistintos. Segundo Freud, esse sistema
de memória estará destinado a receber quantidades do sistema Φ, através dos neurônios
pallium (ou manto), e de dentro do organismo, através dos neurônios nucleares, não
estando em contato direto com o mundo externo.
Mas, além de ser capaz de descrever memória e percepção, Freud afirma que
uma teoria do funcionamento psíquico deve também poder responder o que seria a
consciência. De acordo com Freud, a seara da consciência deverá ser aquela responsável
pela atribuição de qualidades em um aparelho no qual os demais sistemas trabalham
apenas com quantidades. No entanto, logo de saída, Freud já anuncia a dificuldade que
encontra ao tentar teorizar sobre a consciência e que apenas conseguiu responder a
alguns aspectos muito básicos da questão com o seu modelo teórico.

“A consciência nos dá o que se convencionou chamar de qualidades –


sensações que são diferentes numa ampla gama de variedades e cuja
diferença se discerne conforme suas relações com o mundo externo.
Nessa diferença existem séries, semelhanças etc., mas, na realidade,
ela não contém nada de quantitativo. Pode-se perguntar como se
originam as qualidades e onde. Trata-se de perguntas que exigem um
38  
 

exame extremamente atento e que aqui só pode ser abordado


superficialmente.” (Freud, 1950[1895]/1996, p. 360, grifos do autor).

No modelo de Freud, o funcionamento da consciência será contemplado pelos


neurônios que formam o sistema ω, aquele capaz de converter a quantidade em
qualidade (sensações conscientes), até então ausente nos outros sistemas. Para Freud, é
necessário que um sistema no aparelho esteja responsável por atribuir as qualidades de
uma impressão, visto que, segundo ele, elas não serão inerentes aos estímulos advindos
do mundo externo:

“Onde se originam as qualidades? Não no mundo externo. Lá segundo


o parecer da nossa ciência natural, à qual também devemos submeter a
psicologia aqui [no Projeto], só existem massas em movimento e nada
mais” (Ibid., p. 360).

Tampouco as qualidades ou sensações conscientes poderiam vir do sistema de


memória, cuja função é a de rememoração, processo que é desprovido de qualidades.
Apesar de relacionar-se à percepção, a consciência também não poderia ser confundida
com ela, pois de acordo com Freud isso contrariaria a concepção de o sistema de
consciência estar em níveis mais altos do sistema nervoso. Nesse modelo descrito por
Freud, as sensações conscientes não são, portanto, equivalentes aos dados do mundo
externo ou algo que é responsabilidade e produto do sistema de percepção. Torna-se
então necessário criar um novo sistema para explicar o funcionamento da consciência.
As características da consciência segundo Freud seriam a mutabilidade do
conteúdo, seu caráter transitório e a combinação de qualidades percebidas, mas ele
observa que a sensação consciente só poderia ocorrer mediante níveis muito baixos de
quantidade. Freud presume que os neurônios que constituem o sistema da consciência
não recebam muita quantidade, e que estejam expostos aos denominados períodos de
excitação, um fator temporal do estímulo e do movimento neuronal dos outros sistemas:

“Os órgãos do sentido não só funcionam como telas de Q, a exemplo


de todos os dispositivos de terminações nervosas, mas também como
peneiras; pois só deixam passar estímulos provenientes de certos
processos de um período particular. É provável que eles então
transfiram essa diferença a f, por comunicar ao movimento neuronal
períodos que diferem de algum modo análogo (energia específica); e
são essas modificações que passam através de Φ, via ψ, até ω, e aí
onde estão quase desprovidos de quantidades, geram sensações
conscientes de qualidades. Essa transmissão da qualidade não é
39  
 

duradoura; não deixa rastro e não pode ser reproduzida.” (Ibid., p.


363).

Não há muitos dados mais a respeito da ideia de período de excitação5 no texto,


mas sabemos que somente os neurônios do sistema ω seriam capazes de decodificar
esse caráter temporal proveniente da estimulação. Ou seja, para os outros sistemas cujos
neurônios são aptos a trabalhar com quantidades, o período da excitação seria monótono
e sua função seria transmiti-lo para o sistema ω, o único capaz de decodificar essa
informação, podendo criar as qualidades sensoriais. Em nota de rodapé mais adiante (p.
365), Freud novamente refere-se ao período da seguinte maneira:

“(...) nem os “processos” do mundo externo nem os “estímulos” que


passam através dos “aparelhos de extremidades nervosas” para Φ, nem
as catexias em Φ ou em ψ possuem “qualidade”, mas apenas uma
característica qualitativa – um “período” – que, quando chega a ω,
converte-se em qualidade.” (Ibid., p.365).

Há mais uma classe de sensações conscientes que seria sensível ao período e ao


aumento de quantidade em ψ, que são as sensações de prazer e desprazer. Nesse caso, o
sistema ω seria sensível ao aumento ou diminuição de quantidade no sistema ψ, o que
seria significado como desprazer e prazer, respectivamente. A consciência possui então
uma função central nesse sistema, uma vez que ajuda na sua regulação ao indicar o
desprazer.
Freud anuncia que “não se pode tentar explicar como é que os processos
excitatórios dos neurônios ω levam à consciência” (p.363). Apenas um paralelo entre as
atividades do sistema com os fenômenos da consciência seria possível, mas não seria
possível a dedução de um por outro. Tal como Freud já havia afirmado no texto das
Afasias, haveria uma dependência concomitante, mas não uma determinação causal
linear:
“Segundo uma avançada teoria mecanicista, a consciência é um mero
apêndice aos processos fisiológico-psíquicos e sua omissão não
acarretaria alteração na passagem psíquica [dos acontecimentos]. De
acordo com outra teoria, a consciência é o lado subjetivo de todos os
eventos psíquicos, e é assim inseparável do processo mental
fisiológico. A teoria aqui elaborada situa-se entre essas duas. A
consciência é aqui o lado subjetivo de uma parte dos processos físicos
do sistema nervoso, isto é, dos processos ω; e a omissão da
                                                                                                                       
5
Em Esboço de Psicanálise (1940[1938]/1996), escrito por Freud, essa ideia do período está presente: “É
provável, contudo, que aquilo que é sentido como prazer ou desprazer não seja a altura absoluta dessa
tensão, mas sim algo no ritmo das suas modificações” (p.159).    
40  
 

consciência não deixa os eventos psíquicos inalterados, mas acarreta a


falta de contribuição de ω.” (Freud, 1950[1895]/1996, p. 363).

É possível constatar como esse problema de construir uma teoria da consciência


irá permanecer ao longo da obra freudiana até um de seus últimos textos
metapsicológicos Esboço de Psicanálise (1940[1938]/1996), no qual afirma que o fato
da consciência “desafia toda a explicação ou descrição” (p.171). De todo modo, temos
novamente um modelo de aparelho psíquico no qual a formação psíquica não está
subsumida a atividade neurológica. Segundo Monzani, embora no Projeto o aparelho
psíquico esteja:

“(...) ancorado e mesmo enraizado em seus contornos na realidade


neuronal, enquanto totalidade, ele escapa dessa identificação. Em
outros termos, esse lugar não é mais “estritamente assimilável ao
espaço dos tecidos do sistema nervoso”, o que provoca a emergência,
então, de uma dimensão de lugar que não se confunde com a realidade
neuroanatômica. Assim, de agora em diante, toma corpo a ideia da
possibilidade de articular um discurso que leva em conta a dimensão
do lugar sem que isso necessariamente implique localizar esse lugar.”
(Monzani,1989, p. 135).

Assim como no texto das Afasias, novamente a explicação localizacionista é


abandonada, e a percepção da realidade não será apenas uma função neurológica pura.
Se retornarmos ao sistema ω, veremos como ele é responsável por uma função
importante nesse sistema no que diz respeito às relações com a realidade, já que ele
produzirá os chamados sinais de realidade. A importância desses sinais deve-se a já
referida tendência do aparelho a alucinar.
Como já explicamos anteriormente, enquanto para a estimulação que provém de
fora do organismo este pode realizar uma descarga no tipo arco-reflexo, para os
estímulos oriundos de dentro do organismo, isso não é possível. Isto porque os
estímulos endógenos são gerados constantemente e atingem o sistema ao se transformar
em estímulo psíquico após a obtenção de um determinado limiar de excitação. Essa
espécie de acréscimo constante foi denominada somação. Já nesse texto, Freud anuncia
que, quando a Q se faz presente no aparelho através do sistema de neurônios ψ, elas
constituem as vontades, “o derivado das pulsões” (p. 369). Contra essas quantidades
provenientes de dentro do organismo, não haverá tela protetora que possa reduzi-las
(algo possível para estímulos exteriores ao organismo e os órgãos sensoriais) e também
41  
 

não será possível evitá-las através do mecanismo de fuga, exigindo que se efetue uma
ação específica para poder escoar a energia crescente.
Diante desse cenário de excitação constante e crescente, a tendência inicial do
aparelho é descarregar toda a energia através do aparelho motor, como através do chorar
por exemplo. Essa descarga produzirá um alívio, mas não o suficiente para que o
processo de somação cesse, exigindo que algum trabalho seja feito no mundo externo
para obter a satisfação. Mas, para isso, é necessário a presença da ajuda de um outro ser
humano, uma vez que o organismo ainda não consegue fazê-lo sozinho na primeira vez
em que isso ocorre, devido à extrema dependência da criança em seus primeiros anos.
Feito este trabalho no mundo externo, por alguém que poderá oferecer o objeto
para que a satisfação seja alcançada e o estímulo cesse momentaneamente, o processo
da somação é finalizado. Freud enumera três consequências oriundas desse processo,
denominado experiência de satisfação, que são a descarga permanente que causava o
desprazer no sistema ω, o surgimento na parte do pallium do sistema ψ do investimento
dos neurônios que correspondem ao objeto da satisfação – produzindo uma memória
desse objeto –, e o surgimento no pallium das informações sobre a descarga do
movimento reflexo (uma imagem motora) que ocorre após a ação específica. O quarto
resultado da experiência de satisfação advém como um desdobramento das três
consequências imediatas ao processo, já que, ao surgirem no sistema ψ, os
investimentos de um objeto de satisfação e da imagem motora que ocorreu após a ação
específica, esses neurônios investidos estarão em conexão por simultaneidade. Esta
conexão estabelece entre esses neurônios uma via de facilitação, um trilhamento,
produzindo alguns vínculos preferenciais de passagem da energia entre os neurônios do
sistema de memória.
Esses neurônios investidos de energia no pallium sofrem um desinvestimento
quando ocorre a satisfação. Entretanto, quando em nova situação de necessidade e de
processo de somação resultantes da estimulação endógena, o aparelho tende a reinvestir
esses neurônios do pallium referentes ao movimento reflexo e ao objeto de satisfação,
que estão em conexão. Dessas representações, Freud supõe que a primeira a ser
reinvestida seja a imagem do objeto pertencente à primeira vivência de satisfação,
seguida pelo investimento da imagem motora. O organismo colocaria então em ação
esse movimento reflexo, mas, como o objeto está ausente na realidade externa, fazendo-
se presente apenas enquanto representação ativada pelo investimento dos neurônios do
42  
 

pallium associados aos neurônios do movimento, não há possibilidade de haver


descarga de energia.

“É provável que a imagem mnêmica do objeto seja a primeira a ser


afetada pela ativação do desejo. Não tenho dúvida de que na primeira
instância essa ativação do desejo produz algo idêntico a uma
percepção – a saber, uma alucinação. Quando uma ação reflexa é
introduzida em seguida a esta, a consequência inevitável é o
desapontamento.” (Freud, 1950[1895]/1996, p. 372).

Portanto, há nesse modelo a suposição de que, em estado de desejo, a tendência


primordial do aparelho psíquico é a alucinação dos objetos de satisfação, sem
diferenciar os objetos da memória dos objetos de percepção. Se relacionarmos o que se
afirma no texto do Projeto com o que veremos no próximo capítulo, isto é, na análise
dedicada ao texto Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1917[1915]),
podemos inferir que a crença na realidade é um fenômeno universal nesse momento.
Uma vez que apenas a presença de um objeto real pode possibilitar uma
experiência de satisfação que faça cessar o processo de somação e o desprazer por ele
causado, surge a necessidade do aparelho de estabelecer uma diferenciação entre um
objeto real (percepção) e uma lembrança (ideia) de objeto. Para realizar essa tarefa,
alguns neurônios do sistema ψ devem ser organizados para interferir na tendência
primeira do sistema que permite a passagem de energia diretamente para os neurônios já
facilitados. Essa nova organização neuronal dentro do aparelho é denominada por Freud
de eu, que vai conseguir inibir a tendência à descarga imediata ao conseguir estabelecer
outras vias de investimentos colaterais à via estabelecida pela vivência de satisfação, e,
assim, modificar o curso da quantidade que, primordialmente, estaria direcionada ao
investimento da representação do objeto de satisfação.
Mas, alerta Freud, o recurso dos investimentos colaterais não será um critério
suficientemente eficaz para a diferenciação. Vejamos por quê. O aparelho conquistou
uma nova organização neuronal, ou eu, para auxiliar na diferenciação dos investimentos
e que está situado no sistema ψ, sistema que apenas conta com critérios quantitativos
para seu funcionamento. O critério do eu, para auxiliar na inibição dos investimentos, se
realiza apenas gerenciando quantidades de energia, através de suas vias colaterais. No
entanto, se a alucinação ocorre justamente devido ao sistema ψ apenas poder contar com
o critério quantitativo – critério este que não é suficiente para estabelecer a
diferenciação entre percepção e lembrança – temos aqui um problema, pois as vias
43  
 

colaterais não poderão arcar sozinhas com o ônus dessa tarefa. Além delas, será preciso
que o aparelho possa recorrer ainda a mais um sistema que consiga trabalhar com
critérios de qualidade para auxiliar na diferenciação. Como vimos anteriormente, é o
sistema ω, a consciência, o único que produz a geração de sinais de qualidades.

“Provavelmente, são os neurônios ω que fornecem essa indicação: a


indicação de realidade (Realitätszeichen). No caso de cada percepção
externa, produz-se em ω uma excitação qualitativa que, na primeira
situação, porém, não tem nenhuma importância para ψ. Deve-se
acrescentar que a excitação de ω conduz a uma descarga em ω e que
desta, como de qualquer descarga, chega a informação a ψ. Desse
modo, a informação da descarga proveniente de ω constitui a
indicação da qualidade ou da realidade para ψ.” (Ibid., p.378).

Mas também o sistema ω não conseguirá trabalhar sozinho nessa diferenciação.


Freud afirma que, se o investimento no objeto for muito grande, a ponto de poder causar
a alucinação, a indicação de realidade será gerada da mesma forma no sistema ω, e não
haverá critério para fazer a diferenciação. Quando se trata das quantidades exógenas,
sempre a indicação de realidade é conseguida, não importa o tamanho dessa quantidade
que atinge o sistema. No entanto, quando se trata das estimulações endógenas, se elas
forem muito intensas, o sistema ω mantém a indicação de realidade do mesmo modo. É
preciso que a inibição dos investimentos ocorra por meio dos investimentos colaterais,
ou seja, que o critério quantitativo do eu também funcione para que o critério qualitativo
da consciência possa ser eficaz e a indicação da realidade ser produzida.
Segundo Freud, essa operação conjunta entre eu e consciência torna-se um
sistema de defesa destinado a evitar o desprazer da não satisfação6. O eu e o sistema da
consciência trabalhando juntos para evitar a alucinação nos remete diretamente às teses
freudianas do texto Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1917[1915]), que
apresentaremos no próximo capítulo. Além de contar com a inibição, o eu irá
desenvolver outros recursos para auxiliar o processo de estabelecimento da

                                                                                                                       
6
A possibilidade de investir uma ideia ao invés de satisfazer a necessidade não será eliminada do
funcionamento do aparelho com o surgimento dessa nova organização. Freud afirma que ela continuará
ocorrendo posteriormente, mas não necessariamente de modo automático, podendo ser fruto de uma
escolha. Por exemplo, no caso dos sonhos, o eu pode se livrar de uma necessidade e pode manter o sono,
realizando o desejo nos sonhos para continuar dormindo. De modo que, ao sentir fome durante o sono, a
pessoa pode sonhar com a refeição. Freud afirma que “estava aberta a essa pessoa a escolha de despertar e
comer algo ou de continuar o sono” (1940 [1938]/1996, p. 184). Mas acrescente que, em algum momento,
a necessidade pode ficar muito grande e a pessoa terá que acordar.
 
44  
 

diferenciação entre o objeto mnêmico e o objeto da percepção, como a memória, o


pensamento, atenção e o juízo.
Aqui vamos nos ater à função de julgamento. No texto do Projeto, o julgamento
é uma função que atua para que se possa comparar uma ideia e a percepção e avaliar se
há identidade entre elas para que se possa, então, iniciar a descarga. Nas palavras de
Freud, o juízo é “originalmente um processo de associação entre catexias que chegam
do exterior e catexias oriundas do próprio corpo” (p. 386). Freud insere uma
informação adicional a respeito dos neurônios que representam a ideia e a percepção do
objeto: não se trata de neurônios individuais, mas complexos neuronais que compõem
estas representações. Estes complexos são formados por neurônios que representam
uma espécie de núcleo constante da representação, denominado coisa, e pelos neurônios
que representam os atributos variáveis da coisa, o seu predicado. A atividade judicativa
irá, em um primeiro momento, comparar esses atributos para então julgar se eles são ou
não idênticos, para então poder dar início à descarga. Freud acrescenta que o que é
verdadeiramente julgado nesse processo são os predicados e não o núcleo permanente,
“o que chamamos coisas são resíduos que fogem de serem julgados” (p.386). Em outra
passagem, Freud afirma que a coisa é a parte “constante e incompreendida”, enquanto
os atributos e os predicados são a parte “variável e compreensível” (p.439).
Após o julgamento, se a imagem perceptiva for diferente da imagem da
memória, pode-se ter o interesse em conhecê-la, dando início ao processo de
pensamento cognitivo. De qualquer forma, após essas investigações do eu a respeito do
objeto, o julgamento sobre a realidade pode se estabelecer: “Quando uma vez concluído
o ato de pensamento, a indicação da realidade chega à percepção, obtém-se então um
juízo de realidade, uma crença, atingindo-se com isso o objetivo de toda a atividade” (p.
385). É interessante notar como, ao menos nessa passagem do texto de Freud, não há
diferenciação entre o juízo e a crença de realidade, parecendo haver uma espécie de
equivalência entre eles. Esse uso diverge bastante do que estará afirmado no texto
Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1917[1915]), quando a crença na
realidade será descrita como estando em estreita relação com a alucinação. Deste modo,
não deixa de atrair atenção a menção à crença de realidade estar aqui sendo feita
justamente em associação ao juízo de realidade após a indicação de realidade já ter
ocorrido.
Além disso, há mais um aspecto importante a ser ressaltado nas observações
freudianas sobre a função do juízo descrita no Projeto, o qual diz respeito à afirmação
45  
 

da participação do componente corporal como elemento decisivo na avaliação da


realidade. Para Freud, o julgamento da realidade precisa passar pelas sensações
corporais do eu para ser efetivo, salientando que “a presença de experiências corporais,
sensações e imagens motoras de si próprio” (p. 385) são a base para que o julgamento
ocorra, já que, se não existirem essas informações corporais a respeito de uma
experiência, ela não poderá ser avaliada. Freud atenta para o fato de que, enquanto não
há elementos de sensação corporal, não há como julgar os predicados de um complexo,
oferecendo como exemplo a experiência da sexualidade, da qual diz que “nenhuma
experiência sexual produz qualquer efeito enquanto o sujeito ignora toda e qualquer
sensação sexual” (p.385).
Se relembrarmos que um dos termos de investigação nessa seção também é o
sentimento ou sensação de realidade na obra de Freud, essa afirmação encontrada no
Projeto, segundo a qual os fundamentos do julgamento de realidade encontram-se nas
sensações corporais, assumirá um caráter central. Embora, como será possível constatar
no próximo capítulo, nas passagens em que Freud menciona o sentimento de realidade,
essa questão não seja discutida, essa passagem no Projeto permite entender a razão da
escolha terminológica de sensação ou sentimento de realidade, uma vez que, segundo a
interpretação freudiana, a relação do aparelho psíquico com a realidade consiste em um
julgamento que envolve o próprio corpo e suas sensações, não estando restrita a uma
atividade de comparação e avaliação puramente cognitiva.
Todas essas modificações no aparelho psíquico que visam à correção nos
investimentos neuronais para distinguir entre ideia e percepção serão atividades
relacionadas ao desenvolvimento do eu e de suas percepções e sensações corporais.
Freud denomina a forma inicial de tratamento de energia no aparelho como processo
primário, e o novo regime instaurado com as funções do eu como processo secundário.
No entanto, Freud anuncia que, ainda que o eu consiga cumprir sua tarefa de inibir os
processos primários, há um problema nesse percurso. Pois, mesmo contando com as
modificações do juízo, da cognição, da atenção para fazer a investigação da realidade
com o objetivo de encaminhar uma satisfação mais segura, o eu também tem elementos
que o descaracteriza em seus propósitos de isenção:

“Pois é muito difícil para o ego colocar-se na situação de mera


“investigação”. O ego quase sempre tem catexias intencionais ou de
desejo, cuja presença durante a investigação, como veremos,
46  
 

influencia a passagem da associação, produzindo assim um falso


conhecimento das percepções.” (Freud, 1950[1895]/1996, p.429).

Além dessa incapacidade do eu em se manter imparcial, há um segundo


obstáculo atravessando o estabelecimento do processo secundário para o sistema em sua
totalidade. Freud aponta que nesse processo de diferenciação entre ideias e percepções o
desprazer é “o único meio de educação” (p.426). A qualidade de desprazer, que é gerada
pelo sistema ω, funciona como indicação de que não houve a descarga e exige que as
adequações do processo secundário se instalem, eduquem o sistema para que consiga se
satisfazer. No entanto, haveria um tipo de pensamento que consegue satisfação por meio
de descargas da fala, e não de objetos do mundo externo. Ora, se este tipo de
pensamento independe dos objetos externos para a descarga, todo o desprazer causado
pela não satisfação advinda da indiferenciação entre ideia e percepção não ocorrerá
nesse caso, e, consequentemente, não haverá educação. Uma vez que não precisam de
indicações da realidade do mundo externo para se satisfazer, já que conseguem sua
descarga por meio da fala, eles não são educáveis do mesmo modo como são as
necessidades, por exemplo.

“Também as indicações de descarga por meio da fala são, de certo


modo, indicações da realidade – mas da realidade do pensamento, e
não da realidade externa, e de modo algum se pode impor para essas
indicações da realidade do pensamento uma regra biológica7 como a
que estamos considerando, já que sua violação não acarretaria
nenhuma ameaça constante de desprazer. O desprazer produzido ao se
negligenciar a cognição não é tão flagrante como o que advém de
ignorar o mundo externo, embora, no fundo, eles sejam o mesmo.”
(Ibid., p.428).

Essa seria a realidade de pensamento, que Dayan afirma ser uma espécie de
protótipo do que mais tarde receberá o nome de realidade psíquica. No texto de 1911,
esse tipo de pensamento, que funciona de acordo com outras leis e obedece a outras
regras, será novamente mencionado por Freud.
Quanto às questões sobre o desenvolvimento, elas se encontram
fundamentalmente no contexto de discussão da transformação que ocorre no aparelho
com a gênese do eu, impulsionada pela regra biológica do desprazer. Como foi
apontado, o motivo para que esse desenvolvimento ocorra é a sensação de desprazer,

                                                                                                                       
7
Refere-se à regra biológica de que a pessoa se deixe guiar pelas indicações de qualidade e indicações de
realidade, pois estas levarão o aparelho à satisfação. A regra biológica é evitar o desprazer.
47  
 

indicada pelo sistema ω quando a descarga de energia não é realizada em função do


investimento de um traço mnêmico do objeto e não de um objeto real. As barreiras que
impedem o aparelho de tentar realizar a descarga por esse meio só são conquistadas
através de um processo de aprendizado trazido pelas experiências de desprazer. Assim,
o desenvolvimento do aparelho ocorre devido às constantes experiências de desprazer
diante da não satisfação da necessidade, quando investidos apenas traços mnêmicos do
objeto que outrora trouxe a satisfação, e este seria o potencial educador do organismo:

“Tudo o que chamo de aquisição biológica do sistema nervoso é, na


minha opinião, representado por uma ameaça de desprazer dessa
espécie, cujo efeito consiste no fato de não serem catexizados os
neurônios que levam à liberação do desprazer. Isso constitui a defesa
primária, consequência compreensível da tendência básica do sistema
nervoso. O desprazer permanece como o único meio de educação.
Confesso, porém, que não sei explicar como a defesa primária, a não-
catexização devido a uma ameaça de desprazer, pode ser representada
mecanicamente.” (Freud, 1950[1895]/1996, p. 426).

Não se trata de um desenvolvimento inato e previamente programado do


aparelho, mas de um desdobramento das experiências de desprazer e uma primeira
defesa do aparelho contra essas experiências de desprazer. Podemos assim afirmar que,
no texto do Projeto, o aparelho psíquico se desenvolve para se defender do sofrimento,
meta bastante afim aos métodos que Freud listou em O mal- estar na civilização,
justamente na passagem em que o desenvolvimento do sentido de realidade é
mencionado, ainda que tal desenvolvimento não esteja configurado como um dos
métodos para evitar o sofrimento. No entanto, se pudermos considerar a passagem do
processo primário ao processo secundário e a instalação das modificações no
pensamento e no juízo e atenção – que mais tarde serão alguns elementos do teste de
realidade – como o desenvolvimento do sentido de realidade, este poderia ser
considerado o primeiro método ou o método primordial, do qual dependem aqueles que
iniciam a série descrita em O mal- estar na civilização, na tarefa de evitar o sofrimento.
Seguindo essa linha de raciocínio, o desenvolvimento do sentido de realidade seria o
primeiro meio de defesa do aparelho psíquico contra o sofrimento.
48  
 

1.2 A realidade em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento


mental

Após essa passagem por dois outros textos anteriores de Freud, poderemos agora
retornar ao texto de 1911. Como veremos agora, nesse texto alguns dos pontos a
respeito da teoria da realidade que são apresentados no Projeto reaparecem, mesmo que
de modo mais condensado, e também são apresentas as considerações teóricas a respeito
do funcionamento do princípio de prazer e do princípio de realidade.
Como afirmamos anteriormente, com o texto intitulado Formulações sobre os
dois princípios do funcionamento mental, Freud retorna a muitas das questões
anunciadas e teorizadas no Projeto. Ainda que o vocabulário neurológico tenha sido
abandonado e a concepção de aparelho psíquico tenha sido transformada, a ideia de
regulação dos processos primários pelos processos secundários ainda se faz presente na
estrutura da argumentação do texto.
Havíamos deixado em suspenso o texto de 1911 no momento em que Freud
anunciava que iria expor sua teoria da realidade. É justamente nesse ponto que ele
expõe o que será o tema principal dessa obra: as características dos dois princípios de
funcionamento mental, denominados princípio de prazer e princípio de realidade.
Os processos psíquicos mais antigos de nossa mente, os processos inconscientes,
seriam processos regulados por um tipo de preceito de funcionamento que visaria
unicamente à obtenção de prazer e que evitaria qualquer elemento que provocasse
desprazer. Tal funcionamento encontra-se organizado nessa disposição devido à
submissão desses processos a um regime de funcionamento denominado Princípio de
Prazer e do Desprazer que, tal como descrito no texto anterior, traduz o excesso de
energia pulsional no interior do aparelho como desprazer e sua eliminação como prazer.
Freud retoma a ideia de que haveria uma tendência no aparelho psíquico que, quando
em estado de urgência das necessidades internas e em busca de obtenção de prazer
imediato, acaba por investir as representações psíquicas dos objetos que outrora
puderam trazer satisfação ao organismo. Esse reinvestimento seria uma tentativa de se
satisfazer de maneira alucinatória e que apenas cessa devido à frustração em alcançar
seus objetivos.

“Retorno a linhas de pensamento já desenvolvidas noutra parte


quando sugiro que o estado de repouso psíquico foi originalmente
49  
 

perturbado pelas exigências peremptórias das necessidades internas.


Quando isto aconteceu, tudo o que havia sido pensado (desejado) foi
simplesmente apresentado de maneira alucinatória, tal como ainda
acontece hoje com nossos pensamentos oníricos a cada noite. Foi
apenas a ausência da satisfação esperada, o desapontamento
experimentado, que levou ao abandono desta tentativa por meio da
alucinação.” (Freud, 1911/1996, p. 238).

Assim, diante do insucesso de sua tarefa, o aparelho precisaria começar a levar


em conta a realidade externa para só então conseguir investir um objeto real, realizar
uma ação específica adequada no mundo externo e finalmente alcançar a descarga que
leva à satisfação pulsional. Mas, para que toda essa operação seja possível, um novo
princípio deve ser instituído: o princípio de realidade. Os processos psíquicos a ele
submetidos seguem agora um método para obterem satisfação e exigem uma adaptação
no aparelho psíquico para que seu funcionamento possa ocorrer. Ou seja, como a
realidade externa terá que ser considerada, isso exigirá do aparelho uma série de
transformações sem as quais a aplicação desse novo regimento não seria possível.
Assim como estava anunciado no Projeto, aqui também Freud insere o desenvolvimento
do eu, a inibição, os mecanismos de atenção, memória, julgamento, atividade de
consciência para as qualidades sensoriais, todos como formas de ajustes do aparelho
para operar em acordo com o princípio de realidade. Além disso, também frisa a
necessidade de modificações da atividade motora. Durante o predomínio do princípio
do prazer, ela consiste apenas em uma atividade de pura descarga, funcionando dentro
do mecanismo de arco-reflexo. Agora, no entanto, precisará estar apropriada para operar
com a realidade, tornando-se de fato uma ação para alcançar seus fins, e não apenas
uma pura descarga motora.
Todas essas modificações levariam o aparelho psíquico a obter a satisfação
almejada com uma margem maior de segurança e algum planejamento. Lacan, no livro
2 do seminário, comenta do seguinte modo esse novo princípio:

“O princípio de realidade é em geral introduzido por este simples


reparo que, quando se busca demais o prazer, acontecem acidentes de
todos os tipos – queimam-se os dedos, apanha-se gonorreia, quebra-se
a cara. É assim que nos descrevem a gênese daquilo que se chama
aprendizagem humana. E nos dizem que o princípio de prazer se opõe
ao princípio de realidade. Na perspectiva que é a nossa isto adquire,
evidentemente, um outro sentido. O princípio de realidade consiste em
fazer com que o jogo dure, ou seja, que o prazer se renove, que o
combate não termine por falta de combatentes. O princípio de
realidade consiste em resguardar nossos prazeres, estes prazeres cuja
50  
 

tendência é justamente atingir o cessamento”. (Lacan, 1954-55/1985,


p. 112).

Mas, além dessas modificações já descritas, há mais uma transformação


importante no aparelho para alinhar-se ao princípio de realidade e retificar o princípio
de prazer que envolve especificamente a atividade do pensamento. Esta atividade que,
até então, era provavelmente inconsciente e apenas se dirigia às representações de
objeto, agora conta com representações de palavras para atingir a consciência,
conseguindo tolerar o aumento de energia pulsional enquanto espera para poder
satisfazer a pulsão. Freud afirma que o pensamento passa, desse modo, a ser uma
atividade “experimental de atuação acompanhado por quantidades relativamente
pequenas de catexia” (p. 240). É como se agora, podendo suportar a tensão advinda do
aumento de quantidade pulsional, o aparelho, mediante a atividade do pensamento,
conseguisse operar uma espécie de cálculo e estimativas para só então se encaminhar
para a ação.
Todavia, Freud considera nesse texto, como já o fizera no Projeto, a existência
de um tipo do pensamento que permanece apartado dessas transformações que foram
operadas no aparelho para funcionar de acordo com os métodos do princípio da
realidade. Essa parcela de pensamento que permanece funcionando de acordo com as
leis do princípio de prazer foi denominada como o fantasiar. Ela revela a tendência do
aparelho psíquico em manter, ao menos em alguma parte de seus domínios, a forma de
prazer no modo como este era alcançado anteriormente. Dessa maneira, ao fantasiar, o
aparelho “abandona a dependência de objetos reais” (p.241) e se satisfaz de acordo com
os princípios de seu modo mais antigo de funcionamento.
Em uma passagem das Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1917),
Freud apresenta uma imagem que ilustra muito bem essa concepção da fantasia como
atividade do pensamento apartada das modificações posteriores.

“A criação do reino mental da fantasia encontra um paralelo perfeito


no estabelecimento das ‘reservas’ ou ‘reservas naturais’, em locais
onde os requisitos apresentados agricultura, pelas comunicações e pela
indústria ameaçam acarretar modificações do aspecto original da terra
que em breve o tornarão irreconhecível. Uma reserva natural preserva
seu estado original que, em todos os demais lugares, para desgosto
nosso, foi sacrificado à necessidade. Nesses locais reservados, tudo,
inclusive o que é inútil e até mesmo nocivo, pode crescer e proliferar
como lhe apraz. O reino mental da fantasia é exatamente uma reserva
51  
 

desse tipo, apartada do princípio de realidade.” (Freud, 1917b/1996, p.


374).

Novamente, no trecho acima, podemos sublinhar a característica do aparelho


descrito por Freud, a qual apontamos ao início dessa seção, quando afirmamos que não
há uma adaptação desse organismo ao meio. A descrição do “estado original” de Freud
é o terreno no qual o inútil e o nocivo podem ser reeditados continuamente sem
necessitarem das modificações posteriores, essas sim destinadas à criação. No texto de
1911, encontramos uma descrição de Freud para esses processos e suas qualidades:

“A característica mais estranha dos processos inconscientes


(reprimidos), à qual nenhum pesquisador se pode acostumar sem o
exercício de grande autodisciplina, deve-se ao seu inteiro desprezo
pelo teste de realidade; eles equiparam a realidade do pensamento com
a realidade externa e os desejos com sua realização – com o fato – tal
como acontece automaticamente sob o domínio do antigo princípio do
prazer.” (Freud, 1911/1996, p. 243).

Além dessa cisão que ocorre nos domínios do pensamento em relação ao


processo de instauração do princípio de realidade, Freud declara que há mais uma
objeção a ser colocada em sua explicação. Ainda que tenha tentado fazer uma
apresentação esquemática para o leitor a respeito do processo de instauração do
princípio de realidade, é preciso assumir que esse processo não ocorre em um só
momento e tampouco em todas as regiões da mente. Além da exceção representada pelo
fantasiar, Freud admite que também há uma ressalva a ser feita em relação às pulsões.
Segundo ele, há uma diferença de estabelecimento do princípio de realidade para as
pulsões de Eu e para as pulsões sexuais, não ocorrendo um processo equivalente nas
duas vertentes pulsionais.
De fato, o processo que foi descrito de substituição e modificação operado pelo
princípio de realidade é inicialmente válido apenas para o que passa a ocorrer com
pulsões do Eu. Quanto às pulsões sexuais, Freud afirma que elas desligam-se desse
desenvolvimento “de modo muito marcante” (p. 241). Essa diferenciação ocorreria
devido ao fato de, por sua característica auto-erótica inicial, as pulsões sexuais ficariam,
por um longo período, sem deparar-se com a frustração da satisfação pulsional que
reclama ao aparelho operar modificações para considerar a realidade e poder alcançar
sua meta. Quando finalmente a pulsão sexual encontra um objeto, ela é interrompida
52  
 

pelo período de latência, o que retardaria ainda mais a modificação em funcionamento.


Desse modo, o processo de substituição de um regime por outro na esfera das pulsões
sexuais fica retardado e, acrescenta Freud, para muitas pessoas pode nunca chegar a
ocorrer. Segundo Freud, surge assim uma relação estreita entre as pulsões sexuais e a
fantasia e de outro lado as pulsões do eu e a consciência, mas que trata-se apenas de
uma vinculação de menor valor para as explicações sobre os destinos dessas pulsões. O
que se mostra ser de fato relevante é a possibilidade de satisfação auto erótica das
pulsões sexuais. É esse o fator determinante para que elas se desprendam das exigências
que são impostas para as pulsões do eu, que requerem adiamento e modificações no
modo de operar a fim de alcançar a satisfação.
Até aqui, parece que estamos pisando em um campo bem demarcado. De um
lado o pensamento racional e as pulsões do eu submetendo-se ao regimento do princípio
de realidade, de outro lado a fantasia e as pulsões sexuais permanecem sob domínio do
antigo regime. No entanto, nesse momento do texto, Freud faz uma observação
importante que embaralha essa divisão que parecia, até então, estar muito bem
estabelecida. Ele considera que o pensamento da fantasia interfere no modo de pensar
racional. Pois o pensamento fantasmático, por ainda dar um tratamento ao pensamento
nos modos do princípio de prazer, tende a recalcar qualquer pensamento que seja
desprazeroso, impedindo o acesso das representações que possam gerar desprazer à
consciência. Ainda que algumas passagens do texto levem à interpretação de que o
pensamento racional e o pensamento da fantasia seriam dois campos apartados devido a
seu modo de funcionar distinto – interpretação que encontra bastante fundamento na
metáfora das fantasias como reservas naturais – a seguinte passagem do texto freudiano
indica que não é isso que de fato ocorre, e que esses modos de pensamento continuam
em comunicação, influenciando um ao outro:

“No campo da fantasia, a repressão permanece todo-poderosa; ela


ocasiona a inibição de ideias in statu nascendi antes que possam ser
notadas pela consciência, se a catexia destas tiver probabilidade de
ocasionar uma liberação de desprazer. Este é o ponto fraco de nossa
organização psíquica; e ele pode ser empregado para restituir ao
domínio do princípio de prazer processos de pensamento que já se
haviam tornado racionais.” (Freud, 1911/1996, p. 241).

Assim, o que até então parecia ser um texto destinado a versar sobre a
progressiva instalação do princípio de realidade em um aparelho que funcionava apenas
53  
 

considerando o prazer, mesmo que este fosse inútil e nocivo, começa a sofrer uma
inversão em seus objetivos. É possível constatar que Freud passa, aos poucos, a
descrever como os espaços do princípio de realidade vão sendo novamente invadidos
pelo princípio do prazer. Como observado, Freud foi pouco a pouco inserindo as
ressalvas: primeiramente uma parcela do pensamento fica apartada, em seguida ele
acrescenta que uma parte das pulsões também, e, por último, é o próprio domínio do
pensamento racional que naufraga. Tem-se a impressão de que estamos situados em um
campo de soberania instável e não em uma cidade bem delimitada, com o tranquilo
funcionamento de sua agricultura, indústria e comunicações e apenas com uma reserva
natural, nociva e inútil, em seu centro. Como o próprio texto indica, as fronteiras entre
esses espaços são bastante móveis, mesmo no que se refere aos domínios do eu: “Tal
como o ego-prazer nada pode fazer a não ser querer, trabalhar para produzir prazer e
evitar o desprazer, assim o ego-realidade nada necessita fazer senão lutar pelo que é útil
e resguardar-se contra danos.” (Freud, 1911/1996, p. 241).
Mas, ainda que as fronteiras sejam instáveis, isso não significa que se esteja em
um campo de batalhas quando se trata da relação entre os dois princípios. A hipótese de
Freud é de que não haveria oposição entre os princípios do funcionamento mental, e sim
que o princípio de prazer é protegido pelo princípio de realidade, que consiste apenas
em um modo de obter os objetivos de prazer por meios mais seguros e eficazes.

“Na realidade, a substituição do princípio de prazer pelo princípio de


realidade não implica a deposição daquele, mas apenas a sua proteção.
Um prazer momentâneo, incerto quanto a seus resultados, é
abandonado, mas apenas a fim de ganhar mais tarde, ao longo do novo
caminho, um prazer seguro.” (Freud, 1911/1996, p. 242).

Essa citação de Freud levou alguns comentadores de sua obra, como Perres
(1989), a afirmar que, se tomarmos o termo princípio em seu sentido de lei e
fundamento, o princípio de realidade, no modo como está apresentado nessa passagem,
não poderia ser considerado um princípio na plena acepção do termo. Pois este
consistira apenas em ser um ajuste, uma transformação, do princípio de prazer. O
princípio de realidade visaria à mesma meta (evitar desprazer através da diminuição da
quantidade de energia livre presente no aparelho psíquico) que o princípio de prazer e
apenas faria alterações no método por meio do qual poderia alcançá-la.
Portanto, se considerarmos que o princípio de prazer nunca é suplantado no
aparelho psíquico e que o princípio de realidade estaria funcionando a serviço de seus
54  
 

interesses, poderíamos pensar na hipótese de que as características de funcionamento do


fantasiar e do recalcado seriam não apenas a reserva natural apartada do território
ocupado pela civilização transformada pelo princípio de realidade no aparelho, mas sim
o que esse aparelho teria de mais fundamental. Ou seja, talvez essas atividades não
sejam a exceção dentro do psiquismo, mas sua própria prerrogativa.
No entanto, há uma passagem do texto de Freud que indica ser possível uma
mudança nessa configuração, ao afirmar que, em paralelo ao desenvolvimento do eu-
prazer em eu-realidade, as pulsões sexuais também estão em um processo de
desenvolvimento que as leva “(...) de seu auto-erotismo original, através de diversas
fases intermediárias, ao amor objetal a serviço da procriação” (p.243). Parece ser
possível supor, então, a partir dessa concepção, que no momento em que essa meta de
desenvolvimento é alcançada, as interferências da fantasia e das pulsões sexuais que
antes estavam sob domínio estrito do princípio de prazer possam finalmente passar a
considerar a realidade, submetendo-se ao princípio que organiza essa outra forma de
relação.
Entretanto, essa meta de desenvolvimento não seria alcançada pela neurose, que
apresentará fixações em pontos específicos no curso do desenvolvimento do eu e da
pulsão. Freud afirma que a escolha da neurose estará relacionada à “fase específica de
desenvolvimento do ego e da libido na qual a inibição disposicional do
desenvolvimento ocorreu” (p.243). Ao menos essa passagem do texto permite supor que
haveria um momento possível em que o desenvolvimento do eu e das pulsões poderia
um dia alcançar seu termo, restando apenas os neuróticos no meio do caminho dessa
evolução.
Ainda a respeito das considerações sobre o desenvolvimento e a instalação do
princípio de realidade, há uma nota de rodapé no texto na qual é possível encontrar mais
uma indicação para seu término: “(...) o predomínio do princípio de prazer só pode
realmente terminar quando a criança atingiu um completo desligamento psíquico dos
pais” (p.239). Há duas especificações a respeito do desenvolvimento nessa passagem.
Primeiramente, percebe-se que realmente parece não haver formas de eliminar o
princípio de prazer, mas apenas seu predomínio. A segunda delas é a de que não há um
parâmetro cronológico ou já programado naturalmente, uma vez que não há nenhum
critério de idade para definir quando esse desligamento psíquico em relação aos pais
será conquistado.
55  
 

Passaremos agora a investigação do texto Totem e Tabu e veremos como


conseguir desligar-se dos pais pode ser considerada uma das tarefas inconclusas da
humanidade.

1.3 Totem e tabu e os três sistemas de pensamento.

“A experiência nos ensina que o mundo não é um


aposento de crianças.” Freud, A Questão de uma
Weltanschauung.

Passemos agora à análise do texto de Totem e Tabu (1913), fundamentalmente


da parte III intitulada Animismo, magia e a onipotência de pensamentos, quando Freud
apresenta três sistemas de pensamento: as fases animista, religiosa, científica e as
relaciona com o conhecimento da realidade. Uma vez que esse texto apresenta com mais
detalhes as fases animista e religiosa, importaremos também as descrições feitas por
Freud em O futuro de uma ilusão (1927) e na Conferência XXXV – A Questão de uma
Weltanschauung (1933[1932]) para aprofundar o terceiro sistema, chamado de
científico.
Segundo Freud, essas são três visões de mundo pelas quais a humanidade teria
passado ao longo de sua história e que, por motivos que explicaremos mais adiante
nesse trabalho, podem ser repetidas no desenvolvimento de cada indivíduo. Como
veremos a seguir, assim como as teorias infantis, estas visões de mundo expressadas
pelas fases do pensamento também estão relacionadas ao desejo e às pulsões. Freud
inclusive afirma que “o protótipo de todos esses sistemas é aquilo que denominamos de
revisão secundária do conteúdo dos sonhos” (Freud, 1913[1912-13]/1996, p. 78).
Veremos também de que forma os sistemas se relacionam com o princípio de prazer e o
princípio de realidade.
Freud segue a tese de Schopenhauer para quem “o problema da morte se
encontra no começo de toda filosofia” (Freud,1913[1912-13]/1996, p. 98) e afirma que
foi possivelmente em torno desse problema que o primeiro sistema de pensamento,
denominado animismo, teve origem (Freud, 1913[1912-13]/1996, p. 88) ainda que sua
resposta tenha sido uma negação. Para essa visão de mundo, afirma-se a imortalidade
dos seres, todos possuidores de uma alma, que é uma substância imaterial, móvel, que
garante a continuidade da vida e pode habitar animais, plantas, fenômenos naturais,
56  
 

objetos inanimados e o homem. A essência da alma continua sendo a mesma, não


importa o ser ou objeto que ela venha a habitar.
Ainda de acordo com essa visão, as almas (ou espíritos) poderiam ser boas ou
más, e a direção dos eventos naturais e o destino estariam sob seu controle. Uma vez
que não existe ainda a concepção de que as almas tenham sido criadas ou estejam
submetidas ao comando de um ser poderoso, a quem devam obediência, coube ao
próprio homem, a fim de conseguir controlá-las e se defender, desenvolver meios para
realizar esse domínio: as palavras e atos mágicos. Essa tentativa de controlar os
espíritos, e assim influenciar o curso dos eventos, fez com que a visão anímica do
universo não fosse apenas uma teoria puramente especulativa como também uma forma
de proceder para influenciar e controlar a natureza, de modo que esses atos mágicos
seriam, “o mais antigo precursor da tecnologia de hoje” (Freud, 1933[1932]/1996,
p.161). Seriam dois os tipos de magia empregados. A magia por semelhança, ou
imitativa, em que a realização do ato mágico é semelhante ao resultado que ela espera
produzir com ele; assim, por exemplo, se o homem deseja chuva, irá executar um ato de
modo a levar a natureza a imitar a sua ação: “se desejava chuva, ele mesmo derramava
água; se queria exortar a terra a ser dadivosa, mostrava à terra, nos campos, uma vívida
execução do ato sexual” (Freud, 1933[1932]/1996, p. 162). Há também a magia por
afinidade, ou contiguidade, como, por exemplo, o canibalismo, em que comer parte do
corpo significaria incorporar as qualidades daqueles que foi ingerido.
Como já mencionamos, essa teria sido uma fase em que ainda não há deuses,
apenas os demônios ou almas, que serão controlados pelos próprios homens. Dessa
prática e visão de mundo, Freud infere que esta é uma fase em que os homens possuem
grande autoconfiança em suas palavras e ações, além de supervalorizarem o poder de
seus pensamentos e desejos. A etapa de animismo precederia a fase religiosa, mas,
mesmo com o advento desta, ainda permanece em alguns modos de pensamento:

“Os senhores sabem como é difícil algo desaparecer após haver


alguma vez conseguido expressão psíquica. Assim, não se
supreenderão ao ouvir dizer que muitas das expressões do animismo
persistiram até hoje, na maior parte segundo o que chamamos
superstição, paralelamente e por trás da religião. E, mais ainda,
dificilmente os senhores poderão rejeitar o raciocínio de que a
filosofia de hoje conservou alguns aspectos essenciais do modo
animista de pensamento – a supervalorização da magia das palavras e
a crença segundo a qual os fatos reais do mundo tomam o rumo que
nosso pensamento deseja impor-lhes.” (Freud, 1933[1932]/1996, p.
162).
57  
 

Na Conferência XXXV – A Questão de uma Weltanschauung (1933[1932]),


Freud novamente tece considerações a respeito das visões de mundo outrora
apresentadas em Totem e Tabu. Ele acresce que são obscuras as razões que motivaram a
passagem da fase animista à fase religiosa na história da humanidade, além de afirmar a
existência da hipótese de que sua forma primeira de manifestação teria sido o
totemismo8.
No sistema religioso de pensamento, passa-se da crença na existência das almas
e demônios como os responsáveis pelas manifestações naturais que poderiam ser
controladas pelos homens através de seus gestos mágicos à eleição de um animal e,
posteriormente, de seres com forma humana, que serão adorados e tornados deuses. O
sacramento desses seres exige a obediência a mandamentos éticos e deveres morais que,
ao serem cumpridos, garantem aos homens a proteção contra as ameaças do destino.
Dentro do próprio sistema religioso haveria uma evolução que consiste em passar da
crença em vários deuses para a crença em um único deus, normalmente um deus do
sexo masculino.
No que concerne ao problema da morte, pode-se deduzir que algum grau de
vulnerabilidade já foi admitido pelos homens, dado que para esse sistema de
pensamento já existe a necessidade da criação de seres superiores a quem cabe
obediência de seus mandamentos éticos em troca de proteção. Desse modo,
diferentemente da fase anterior, em que a morte é negada, aqui ela é reconhecida.
Entretanto, a morte será reconhecida com a condição de não representar a extinção total
da vida.

                                                                                                                       
8
Ainda que não se saiba as razões da passagem de um sistema a outro, há hipóteses sobre a razão da
invenção do sistema de pensamento e quais problemas humanos ele tenta resolver. Em Totem e Tabu
(1913[1913-12]), Freud faz uma apresentação das hipóteses antropológicas para a origem do totemismo e
as classifica em três grupos: teorias nominalistas, sociológicas e psicológicas. A hipótese nominalista
estaria representada pelas teorias de autores como Garcilasso de la Vega, Max-Müller, Herbert Spencer e
Andrew Lang que, através de diferentes argumentos, afirmam que o surgimento do fenômeno totêmico se
deu pela necessidade dos clãs estabelecerem nomes que tornassem possíveis sua diferenciação. Já as
hipóteses sociológicas para a explicação da origem do totemismo estariam representadas pelas obras de
Durkheim, Reinach, Frazer, que admitem que o sistema totêmico seria uma primeira forma de
organização social, que a disposição dos clãs de acordo com os totens auxiliaria as trocas econômicas,
que poderia ser considerado como primeiro sistema religioso de que se tem notícia além de já fornecer
uma noção de hierarquia para os grupos. Finalmente, as hipóteses psicológicas estão expostas nas teorias
de Wundt, Wilken, Rivers e Frazer. Figuram aqui as teorias do totemismo como crença na transmigração
das almas, também no totem como um lugar de proteção para as almas.
Nessa obra, Freud apresenta a hipótese da psicanálise para o totemismo, baseada no mito da
morte sacrificatória do pai do clã.
58  
 

Freud afirma em O Futuro de uma Ilusão (1927/1996) que o pensamento


religioso tem a tríplice função de acabar com os terrores da natureza, harmonizar os
homens aos seus destinos e compensá-los pelos sofrimentos da vida, inclusive o
sofrimento trazido pela convivência com os outros homens na civilização (p.26). A
religião está entre um dos métodos de que o homem lança mão para contornar o
sofrimento e que está citado por Freud em O mal-estar na civilização. Na lista de
métodos que elencamos no início desse capítulo, a religião se encontra, segundo Freud,
entre os métodos que procuraram negar as condições da realidade que causam
sofrimento e tentam recriar a realidade de modo a corrigi-la. Isso faria da religião uma
das formas de delírio, um delírio de massa.
Assim como no caso da passagem da fase animista para a fase religiosa, na
Conferência XXXV – A Questão de uma Weltanschauung (1933[1932]) Freud também
afirma que, por mais que as causas que levaram à passagem da fase religiosa à fase
científica não estejam totalmente esclarecidas e que “as diferentes forças que
concorreram para o despertar do espírito científico não foram rastreadas” (1933/1996,
p.164), o espírito científico teria sido estimulado pela observação da natureza e por se
ter começado “a tratar a religião como um assunto humano e a submetê-la a exame
crítico” (1933/1996, p.162).
Na concepção de Freud, o pensamento científico estaria marcado pelas seguintes
características: é um pensamento que procura evitar influências afetivas e individuais
quando observa a realidade; realiza um exame mais rigoroso do senso de percepção no
qual irá basear suas teorias; desenvolve aparelhos e métodos que tornam possível
examinar com mais acuidade os fenômenos que não estão acessíveis à percepção
normal; elabora experiências para identificar variáveis que compõe o fenômeno. Todo
esse método desenvolvido pela ciência teria como objetivo conhecer o verdadeiramente
o mundo real:

“Seu esforço é no sentido de chegar à correspondência com a


realidade – ou seja, com aquilo que existe fora de nós e
independentemente de nós, e, segundo nos ensinou a experiência, é
decisivo para a satisfação ou a decepção de nossos desejos. A essa
correspondência com o mundo externo real chamamos de ‘verdade’.”
(Freud, 1933/1996, p.166).

Dentre os três sistemas do pensamento, a fase científica seria a única “que nos
pode levar a um conhecimento da realidade externa a nós mesmos.” (1927/1996, p.40),
59  
 

pois, diferentemente da religião, a ciência estaria disposta a rever suas concepções e


conhecimentos e submetê-los à crítica, enquanto a religião, por seu caráter delirante,
não conseguiria fazer essa avaliação.
Além disso, a ciência seria o único entre os sistemas de pensamentos que não
caberia propriamente bem na definição de visão de mundo que Freud apresenta na
Conferência de 1933. De acordo com essa definição, a visão de mundo
(Weltanschauung) é um tipo de construção de pensamento destinada a resolver enigmas
fundamentais sobre o funcionamento do universo e sobre a própria existência humana.
Desse modo, ela forma uma interpretação global que conforta e dá segurança aquele que
nela acredita, além de prover o sujeito de um conhecimento prático para conduzir suas
ações em momentos cruciais da vida. As dúvidas sobre a natureza, sobre a vida e a
morte e também sobre os sentimentos humanos seriam solucionadas por uma visão de
mundo, razão pela qual conseguir uma teoria como essa estaria entre os principais
desejos humanos, já que ela permite uma pacificação dos medos ao dotar os eventos
contingenciais de algum sentido (Freud, 1933[1932]/1996). Desse modo, ainda que o
animismo tenha como seu principal ponto de partida o problema da morte, esse sistema
não visa apenas essa questão e sim respostas globais para a existência como um todo: “o
animismo, o primeiro a ser criado, é talvez o mais coerente e completo e o que dá uma
explicação verdadeiramente total da natureza do universo.” (Freud, 1913[1913-
12]/1996, p. 89). A religião também se encaixaria nessa definição de visão de mundo,
por ser um sistema que também elaborou uma concepção a respeito da criação e
funcionamento do universo, dotou o destino humano de sentido apaziguador e também
equipou os homens de um sistema moral.
No entanto, o caso da ciência seria um exemplo atípico de visão de mundo.
Ainda que forneça explicações para diversos fenômenos da natureza e do universo e
equipe a humanidade para se defender de diversos problemas, essas explicações são
provisórias e parciais, constituindo uma visão de mundo com traços negativos. Ao
exercer a crítica, submeter-se à verdade e rejeitar as ilusões do pensamento, a ciência
seria uma Weltanschauung bastante singular (Freud, 1933[1932]/1996).
Essa diferenciação entre a ciência e as outras duas visões de mundo não se deve
propriamente ao seu método ou ao tipo de explicação a que chegam. Há uma marca que
as distingue que é anterior a esses procedimentos e mais fundamental: a sua origem
psíquica. A diferenciação mais profunda, e que acaba sendo determinante nos resultados
diferentes a que chegam os três sistemas de pensamento em relação ao conhecimento do
60  
 

mundo e o modo de proceder diz respeito aos desejos da humanidade. O pensamento


animista e o pensamento religioso teriam sua origem em antigos e fortes desejos, algo
que não ocorre com o pensamento científico. Os desejos que o pensamento científico
abandona são a ilusão de onipotência do pensamento animista e a ilusão de ser amado e
protegido por um deus-pai protetor, que caracteriza o pensamento religioso.
Freud explica que a onipotência do pensamento e do desejo humano passa por
um desenvolvimento ao longo do tempo. Na fase animista, os homens se acreditariam
totalmente onipotentes, acreditando que todos os acontecimentos devam ocorrer tal
como eles desejaram. Na fase religiosa, ainda que um pouco dessa onipotência tenha
sido moderada, já que boa parte da onipotência agora é atribuída ao deus, os homens
ainda se sentem com algum poder, pois são capazes de agradar e respeitar esse deus
para, assim, conseguir seu amor e garantirem sua proteção. Seria apenas na fase
científica que o desejo de onipotência seria abandonado:

“Na fase animista, os homens atribuem a onipotência a si mesmos. Na


fase religiosa, transferem-na para os deuses, mas eles próprios não
desistem dela totalmente, porque se reservam o poder de influenciar
os deuses através de uma variedade de maneiras, de acordo com seus
desejos. A visão científica do universo já não dá lugar à onipotência
humana; os homens reconheceram sua pequenez e submeteram-se
resignadamente à morte e às outras necessidades na natureza. Não
obstante, um pouco da crença primitiva na onipotência ainda
sobrevive na fé dos homens no poder da mente humana, que entra em
luta com as leis da realidade.” (Freud, 1913[1912-13]/1996, p. 99).

Segundo Freud, a crença na onipotência dos pensamentos e dos desejos, que


caracteriza a fase animista, torna-se patente na utilização de palavras e atos mágicos
como técnica de controle, uma vez que “seu princípio consiste em tomar
equivocadamente uma conexão ideal por uma real” (Ibid., p. 90). Isso leva os homens a
crer que seus desejos e pensamentos têm realmente o poder de se realizarem exatamente
de acordo com os modos de sua manifestação.
Para conseguir efetivar esse propósito, o mecanismo psíquico principal de que se
lança mão é a projeção, um primeiro modo de lidar com os sentimentos de prazer e
desprazer. Esse mecanismo levaria o aparelho psíquico a tratar as percepções e
sensações internas, que causam desprazer, como algo externo, não as reconhecendo
como sendo próprias. No exemplo do animismo, esses sentimentos eram identificados
como manifestação dos maus espíritos, os demônios, enquanto que o tratamento dado
ao que é prazeroso consiste em significá-lo como sendo um atributo do sujeito, nesse
61  
 

caso, a manifestação dos bons espíritos. Essa operação característica do pensamento


animista faz com que não seja possível “apresentar qualquer prova objetiva do
verdadeiro estado de coisas” (Ibid., p.95), já que a percepção do mundo externo se dá
como um espelhamento invertido das sensações de prazer.

“A projeção de percepções internas para fora é um mecanismo


primitivo, ao qual, por exemplo, estão sujeitas nossas percepções
sensoriais, e que, assim, normalmente desempenha um papel muito
grande na determinação da forma que toma no nosso mundo exterior.
Sob condições cuja natureza não foi ainda suficientemente
estabelecida, as percepções internas de processos emocionais e de
pensamento podem ser projetadas para o exterior da mesma maneira
que as percepções sensoriais.” (Ibid., p. 77).

Quanto ao pensamento religioso, como já mencionamos acima, ele não apenas


manteria, em alguma medida, a crença na onipotência dos desejos e pensamento, mas,
sobretudo, estaria fundado em um desejo infantil de ser amado e protegido pela figura
de um pai benevolente. Para esse sistema de pensamento, já existe o reconhecimento do
desamparado frente às forças do Destino e a figura do deus-pai todo poderoso será cada
vez mais solicitada para acalmar a angústia e trazer garantias apaziguadoras.

“Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a


permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem
proteção contra estranhos poderes superiores, empresta esses poderes
as características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os
deuses a quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não obstante,
confia sua própria proteção. Assim, seu anseio por um pai constitui
um motivo idêntico a sua necessidade de proteção contra as
consequências da debilidade humana. É a defesa contra o desamparo
infantil que empresta suas feições características à reação do adulto ao
desamparo que ele tem de reconhecer – reação que é, exatamente, a
formação da religião.” (Freud, 1927/1996, p. 33).

Assim como no animismo, também no sistema religioso a possibilidade de


conhecimento das condições efetivas da realidade externa e o acesso à verdade estariam
impedidos devido à constituição desejante dessa forma de pensamento. O impedimento
aqui se daria por duas vias. Primeiramente, para que essa arquitetura funcione, os pilares
do sistema não podem ser colocados em dúvida ou serem criticados, caso contrário a
crença no deus poderoso e protetor ruiria. Segundo Freud, para que possa se manter, o
sistema religioso impõe um impedimento ao pensamento e, quando questionado, afirma
sua validade apoiando-se em argumentos sustentados na autoridade da tradição.
62  
 

Além disso, em Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1921) Freud afirma que
o processo de idealização tem o poder de interferir na faculdade de julgamento da
realidade, podendo falsificá-la ao inabilitar a função do teste de realidade. No caso da
religião, pode-se afirmar que o líder é idealizado, já que é um objeto que se tornou
engrandecido psiquicamente a ponto de tornar-se um ser perfeito. Para que o processo
de enaltecimento ocorra é preciso que alguns traços do objeto sejam recalcados e
desconsiderados. Além disso, o eu irá tomar como real os fatos que forem ratificados
pela pessoa ou pela ideia que esteja ocupando a posição de ideal do eu, não sendo mais
capaz de realizar o teste de realidade de modo autônomo.
Segundo Freud, tanto os sistemas de pensamento anímico quanto o pensamento
religioso seriam ilusões derivadas de desejos humanos e, tal como um delírio, a “ilusão
não dá valor à verificação” (Freud, 1927/1996, p. 40), não podendo ser testadas,
refutadas ou confirmadas. Apenas o pensamento científico poderia ter uma outra relação
com a realidade, já que seria a única das visões de mundo não fundamentada nos
desejos infantis, de forma a não produzir conhecimentos ilusórios. Ainda que também
possa cometer erros de interpretação, o conhecimento e as teorias criadas pela ciência
não seriam simples fruto do pensamento desejante.
Como afirmamos no início desse item, Freud admitia a hipótese de que essas
etapas do pensamento da humanidade seriam repetidas na história de cada indivíduo, de
modo que, em Totem e Tabu (1913[1913-12]), ele compara, por exemplo, o pensamento
anímico ao pensamento das crianças que “satisfazem seus desejos de maneira
alucinatória” (p.94). Esses tipos de pensamento também serão cruzados com os
sintomas da neurose e delírios da psicose9.
Se retomarmos agora o problema do desenvolvimento do sentido de realidade e
dos princípios do funcionamento psíquico, pode-se dizer que os sistemas anímico e
religioso estariam mais próximos da característica do pensar submetido ao princípio de
prazer, enquanto o pensamento científico estaria mais próximo ao funcionamento do

                                                                                                                       
9
Os cruzamentos entre as formas de sintomas da neurose com as duas visões de mundo são bastante
explorados no texto Totem e Tabu, mas essa passagem do texto O Futuro de uma Ilusão (1927) ilustra
bem essa aproximação entre o pensamento anímico e religioso e as formas de psicopatologia, sem,
contudo, deixar de apresentar uma importante observação ao final: “Se, por um lado, a religião traz
consigo restrições obsessivas, exatamente como, num indivíduo, faz a neurose obsessiva, por outro, ela
abrange um sistema de ilusões plenas de desejo juntamente com um repúdio da realidade, tal como
encontramos, em forma isolada, em parte alguma senão na amência, num estado de confusão alucinatória
beatífica. Mas tudo isso não passa de analogias, com a ajuda das quais nos esforçamos por compreender
um fenômeno social; a patologia do indivíduo não nos provê de um correspondente plenamente válido.”
(p. 52).
63  
 

princípio de realidade. É exatamente essa a equação estabelecida por Freud, quando


afirma que a etapa do pensamento científico seria aquela “em que o indivíduo alcança a
maturidade, renuncia ao princípio de prazer, ajusta-se à realidade e volta-se para o
mundo externo em busca do objeto de seus desejos.” (p. 100). Seguindo esse raciocínio,
podemos deduzir que apenas nos domínios do sistema de pensamento científico estaria
desenvolvido o sentido de realidade, com o teste de realidade em funcionamento.
Quanto aos modos de ocorrência desse desenvolvimento, no texto O Futuro de
uma Ilusão (1927), encontramos ao menos duas possibilidades enunciadas por Freud.
Na primeira delas, parece que estamos diante do processo de evolução da humanidade
que segue um destino previamente estipulado, cujo curso continuará e chegará a seu
termo natural, cabendo ao homem apenas auxiliar a realização de um percurso que já
está previamente traçado. O tipo de auxílio possível aqui é apenas o não impedimento
da evolução já programada, deixando que ela ocorra por suas próprias vias:

“A ser correta essa conceitualização, o afastamento da religião está


fadado a ocorrer com a fatal inevitabilidade de um processo de
crescimento, e nos encontramos exatamente nessa junção, no meio
dessa fase de desenvolvimento. Nosso comportamento, portanto,
deveria modelar-se no de um professor sensato que não se opõe a um
novo desenvolvimento iminente, mas que procura facilitar-lhe o
caminho e mitigar a violência de sua irrupção.” (Freud, 1927/1996,
p.52).

No entanto, em outro momento do texto, encontramos uma posição diferente.


Freud assume então que a humanidade apenas conseguiria abandonar esse modo
supersticioso ou religioso de se relacionar com o mundo e com os fatos da realidade se
escolher deixar a ilusão da infância e conseguir desligar-se dos pais. A passagem de um
sistema de pensamento a outro não seria um percurso natural ou já programado, mas
uma posição que pode ser tomada ou não, uma escolha:

“Terão de admitir para si mesmos toda a extensão de seu desamparo e


insignificância na maquinaria do universo; não podem mais ser o
centro da criação, o objeto de terno cuidado por parte de uma
Providência beneficente. Estarão na mesma posição de uma criança
que abandonou a casa paterna, onde se achava tão bem instalada e
confortável. Mas não há dúvida de que o infantilismo está destinado a
ser superado. Os homens não podem permanecer crianças para
sempre; têm de, por fim, sair para a ‘vida hostil’. Podemos chamar
isso de ‘educação para a realidade’.” (Freud, 1927/1996, p. 57).
64  
 

Na passagem acima, podemos constatar como a posição do professor hipotético


mudaria quando comparada à citação anterior. Entre a posição daquele que apenas não
interfere no curso de uma tendência natural de realização, que seria a do professor
sensato, para aquele que terá que educar para a realidade. Ainda que Freud continue
afirmando, nessa última citação, que “o infantilismo está destinado a ser superado”, não
fica claro se essa superação irá ocorrer obedecendo a uma programação involuntária ou
se precisará contar com a decisão subjetiva dos envolvidos. De qualquer modo, os
textos freudianos apresentados acima que versam a respeito dos sistemas de
pensamento, parecem indicar que, quer se trate de um programa automático ou de uma
tomada de decisão, as mudanças nesses registros de pensamento estariam relacionadas
aos desejos humanos.

***

No texto O mal-estar na civilização, pouco antes de apresentar o


desenvolvimento do sentido de realidade (Entwicklung des Realitätssinnes), Freud
escreve: “Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se a nós como o
método mais tentador de conduzir nossas vidas; isso porém, significa colocar o gozo
antes da cautela, acarretando logo o seu próprio castigo.” (p.85).
Como foi possível acompanhar nos textos que trabalhamos aqui, não há
definições claras a respeito do que seria o sentido de realidade. A partir das
considerações de Freud, não existem elementos sólidos que permitam diferenciá-lo com
exatidão do conceito de princípio de realidade. Entretanto, os textos freudianos
analisados nos auxiliam a sustentar a hipótese de que o sentido de realidade seja um
juízo perceptivo consciente sobre a realidade. Ele teria sua origem no aparelho psíquico
junto com o teste de realidade e o princípio de realidade, a fim de auxiliar justamente na
tarefa de conseguir evitar o castigo advindo da tentativa de satisfação irrestrita das
necessidades. Assim, em nossa leitura, o sentido de realidade poderia figurar entre as
demais funções do eu e da consciência que procuram estabelecer a realidade para, então,
agir sobre ela, considerando suas condições.
No entanto, foi possível acompanhar ao longo desse capítulo como na obra
freudiana, desde A interpretação das afasias (1891), esse estabelecimento da realidade
possui alguns fundamentos básicos. Primeiramente, Freud deixa clara sua tese de que a
65  
 

apreensão da realidade no aparelho não será equivalente à percepção da realidade


advinda das sensações fisiológicas, uma vez que não considera que os fenômenos
psíquicos consistam em ser simplesmente epifenômenos dos processos físicos. Como
vimos, nem mesmo o complexo associativo do objeto, denominado de representação-
objeto (Objektvorstellung), seria a representação do objeto mesmo, mas uma
representação imagética. Algo bastante próximo do que será afirmado no Projeto,
quando Freud afirma que no julgamento da realidade o que é verdadeiramente julgado
são apenas os predicados de uma coisa, mas nunca a coisa mesma, que permanece sendo
a parte “constante e incompreendida” dos fenômenos.
Além disso, acompanhamos como Freud, ampliando ainda mais os ângulos da
questão, afirma que a representação não é um traço simples mas um composto de
associações das mais variadas origens– acústicas, visuais, motoras, tácteis – e que estão
em associação com outras representações.
No texto do Projeto, já propriamente uma tentativa freudiana de descrever um
aparelho psíquico, a teoria da relação do aparelho com a realidade ganhou maiores
contornos como, por exemplo, o estabelecimento do sistema da consciência e a tentativa
de uma descrição para a origem do eu. Assim como no texto anterior, afirma-se que
simples sensação dos estímulos externos não é equivalente ao que o sistema apreende da
realidade, uma vez que acompanhamos como Freud considera claramente ser tarefa do
aparelho, especificamente da consciência, atribuir as qualidades para as impressões do
mundo externo. Esse fato é importante para considerarmos a função do sentido de
realidade, já que, se ele for mesmo uma função da consciência, como estamos supondo,
caberá a ele estabelecer as qualidades para os fenômenos através dos juízos. Lembremos
que também esteve presente em nossa análise do Projeto a consideração de Freud
segundo a qual o julgar é uma função que precisa contar com a presença de experiências
e sensações corporais para ocorrer, pois, uma vez que estejam ausentes, faltam dados
para que a situação possa ser avaliada. Desse modo, se considerarmos que o sentido de
realidade está relacionado à operação de juízo que estabelecerá essas qualidades, ele não
poderá ser considerado um fenômeno de pura racionalidade já que envolverá sensações
e estímulos motores que estão para além do pensamento cognitivo.
Outra ressalva importante ligada ao texto do Projeto diz respeito ao fato de que
o eu não consegue ser imparcial em sua atividade investigativa da realidade. Essa
ressalva vai ao encontro dos problemas do texto de 1911, no qual são abordados os
problemas do aparelho em conseguir eliminar as nada eventuais incursões do princípio
66  
 

de prazer, que não perde nunca seu predomínio. Essas que pareciam ser características
somente da mente dos neuróticos, em Totem e Tabu, foram apresentadas como fato
universal, questão maior para a humanidade que, ao que tudo indica, não conseguiu
ainda desligar-se dos seus desejos infantis que a impedem de pensar e de conhecer a
realidade externa.
Tudo isso nos leva a afirmar que há um sentido de realidade. Porém, trata-se de
um sentido que constitui representações compostas por diversos elementos (acústicos,
visuais, sensórios, motores), a partir de uma instância que não é imparcial em sua
investigação, influenciado por desejos que ainda querem se satisfazer a seu modo. Além
disso, a realidade será apreendida, mas algo dela irá se manter totalmente inacessível e
incompreendido. No entanto, ainda com todas essas ressalvas, o sentido de realidade
seria uma função que auxiliaria o aparelho psíquico na tentativa de retificação da
relação com a realidade. Em terra de quem alucina, o sentido de realidade pode servir
como uma boa retificação.
67  
 

Capítulo 2

O sentimento de realidade em Freud

Vamos agora analisar o segundo dos nossos termos.


Em Freud não é possível encontrar um texto que unifique todas as determinações
do conceito de sentimento de realidade. O termo Wirklichkeitsgefühl aparece em apenas
dois textos de toda a obra freudiana: A Interpretação dos sonhos (1900) e História de
uma neurose infantil (1918[1914]). Nelas, ele aparece com as seguintes designações:
sentimento de realidade, sensação de realidade, convicção de realidade. Em Delírios e
sonhos na Gradiva de Jensen (1907[1906]) e Suplemento metapsicológico à teoria dos
sonhos (1917[1915]), encontraremos sob o termo crença na realidade (Realitätsglaube)
a problematização de fenômenos que contêm elementos do conceito anterior, ainda que
sob outra denominação. Por último, mas não menos importante, é a menção feita ao
fenômeno em A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), que abordaremos ao final do
capítulo.
Consideramos que uma das primeiras aparições do sentimento de realidade
como fenômeno, ainda sem uma designação conceitual, pode ser encontrada em Estudos
sobre a Histeria (1893), dentro do historial clínico do caso de Emmy Von R., nos
seguintes termos:

“Ela tivera alguns sonhos de horror. Os pés e braços das cadeiras


haviam transformado todos em cobras; um monstro com bico de
abutre estraçalhava e comia todo o seu corpo; outros animais
selvagens saltavam sobre ela, etc. Passou então a outros delírios com
animais, que, contudo, qualificou acrescentando: “Isso foi real” (não
um sonho).” (Freud, 1893/1996, p. 95).

Após o relato da paciente, feito sob hipnose, Freud não se atém a esse aspecto da
afirmação de realidade imiscuída ao sonho, passando a perguntar a ela sobre seus
68  
 

sintomas de dores gástricas. Em uma nota de rodapé, Freud afirma que não investigou
as visões de animais que a paciente relatava para conseguir diferenciar o que era
“simbólico em seu medo de animais daquilo que era horror primário” (p.95).
Posteriormente no texto, ele retorna à discussão a respeito da fobia de animais da
paciente, mas não à afirmação dela de que em meio ao sonho ou ao delírio haveria
elementos que julgava pertencerem a eventos da realidade.
O fenômeno volta a ser mencionado em A Interpretação dos Sonhos, agora já
colocado em relevo dentro do conjunto de problemas relativos aos sonhos. Nesse trecho
Freud sublinha que é frequente nos relatos de sonho a asserção de realidade de alguns
de seus elementos. A passagem encontra-se em uma nota de rodapé datada de 1909 e
está descrita da seguinte maneira:

“A experiência posterior leva-me a acrescentar que não é nada raro as


ações inocentes e sem importância do dia anterior se repetirem num
sonho: por exemplo, atos como arrumar uma mala, preparar comida na
cozinha, e assim por diante. O que o próprio sonhador frisa nessa
espécie de sonhos, porém, não é conteúdo da lembrança, mas o fato de
ela ser ‘real’, ‘Realmente fiz tudo isso ontem’.” (Freud, 1900/1996, p.
58, nota de rodapé inserida em 1909).

Dez anos depois, em 1919, Freud acrescenta um item intitulado “Sentimento de


realidade e a representação da repetição” no capítulo O trabalho do sonho. O item
começa com o relato feito por um homem de trinta e cinco anos sobre um sonho que
teve aos quatro anos de idade. Eis o relato do sonho segundo Freud:

“(...) o advogado que estava encarregado do testamento de seu pai


trouxera duas pêras grandes. Deram-lhe uma para comer; a outra ficou
no parapeito da janela da sala de estar. Ele acordou com a convicção
de realidade do que havia sonhado e se pôs a pedir obstinadamente a
segunda pêra a mãe, insistindo em que estava no parapeito da janela.
Sua mãe rira disso.” (Ibid., p. 405, grifos nossos).

Ao iniciar a interpretação do sonho, Freud, por não poder contar com as


associações do paciente, lança mão de outro método. Ele conduz a interpretação por
meio de substituição simbólica, cuja equação faz com que as pêras e o parapeito da
janela que aparecem no sonho sejam interpretados, respectivamente, como sendo a
representação dos seios e o busto da mãe. Tal interpretação leva Freud a explicar que
essa convicção de realidade que o paciente sentiu ao recordar o sonho estava baseada no
fato de que a cena realmente teria acontecido: “seu sentimento de realidade depois de
69  
 

acordar foi justificado, pois sua mãe realmente o amamentara e, a rigor, fizera-o por
muito mais tempo que de hábito; e os seios da mãe ainda lhe eram disponíveis” (p. 405,
grifos nossos). A aparição nos sonhos de conteúdos ou cenas que supostamente teriam
sido vivenciadas na realidade pelo sonhador, teria como efeito a produção de convicção
de que a cena representada no sonho (ou pelo menos algum de seus elementos)
realmente aconteceu no passado.
Esse problema é retomado por Freud no texto em que comenta a obra Gradiva,
de W. Jensen, mas agora sob a denominação de crença na realidade (Realitätsglaube). A
certa altura do romance de Jensen, o personagem Hanold tem um sonho em que está em
Pompéia durante a erupção do vulcão Vesúvio e encontra a mulher objeto de seu
interesse caminhando na cidade em meio à destruição. Na narrativa de Jensen, mesmo
após despertar e ainda por muito tempo depois, o personagem continua a acreditar “na
realidade de seu sonho” (p.23). Ao analisar essa passagem do romance e tentar
interpretar o sonho de Hanold, Freud afirma:

“Outra regra diz que, se uma crença na realidade das imagens


oníricas persistir por um espaço de tempo invulgarmente prolongado,
de modo que o indivíduo não consiga desligar-se do sonho, esse
fenômeno não deve ser considerado como um erro de julgamento
provocado pela vividez das imagens oníricas, mas um ato psíquico
independente: uma garantia, em relação ao conteúdo do sonho, de que
algo nele é realmente tal como foi sonhado, e pode-se confiar nessa
garantia” (Freud, 1907[1906]/1996, p. 58, grifos nossos).

Analisando o sonho do personagem, Freud identifica que o elemento de verdade


que está presente na cena é que Hanold realmente está na mesma cidade e na mesma
época em que está a mulher de seu interesse. No entanto, o trabalho de deslocamento
do sonho conseguira transformar esses elementos em outra cidade que não aquela na
qual ele de fato reside, modificando igualmente o tempo para outro momento histórico
que não o seu. De fato, a crença da realidade advinda do sonho não teria sido um erro de
julgamento.
Ainda que este termo seja diferente do que fora utilizado em A Interpretação dos
sonhos, o fenômeno descrito e a estrutura da explicação são similares ao que foi
utilizado para explicar o problema do sentimento de realidade dos sonhos nesta obra.
Como veremos a seguir, também estarão presentes em História de uma neurose infantil
(1918[1914]), com maior complexidade e expansão explicativa.
70  
 

Nesta última obra, também conhecida como O Caso do Homem dos Lobos,
Freud apresenta o histórico de análise de um jovem homem que o buscou o tratamento
psicanalítico após ter passado por alguns sanatórios e recebido o diagnóstico de
insanidade maníaco-depressiva. Segundo o paciente, ele já sofrera de distúrbios
neuróticos dos quatro anos aos dez anos de idade, iniciado com sintomas fóbicos que
foram sucedidos por uma neurose obsessiva. Será a respeito do relato do paciente
concernente a esse momento que o texto de Freud irá versar: a análise de uma neurose
infantil realizada “somente quinze anos depois de haver terminado” (p.20).
Há duas passagens do caso que nos interessam diretamente. Aqui, além de
existir novamente o problema da sensação de realidade advinda de um sonho, há
também uma série de acontecimentos que conduzirão o paciente à convicção da
realidade da castração. Embora a convicção não seja equivalente à sensação de
realidade, a sua aproximação com a crença na realidade – que anteriormente fora
utilizada como sinônimo – nos induz a investigá-la também. Mas, diferentemente dos
outros exemplos mencionados, o problema da convicção da realidade não aparecerá
entrelaçado ao sonho. Passemos aos dados do caso que nos fornecem os elementos para
nossa investigação.
O paciente relata que aqueles que lhe eram próximos na infância, anos depois,
costumavam contar-lhe que ele fora uma criança amável e tranquila, mas que em algum
momento tivera seu caráter transformado, tornando-se uma criança violenta e irritável.
Começara a ter fobia de vários animais que, segundo ele, poderiam ser desde borboletas
a besouros, lagartas, cavalos, lobos, não importando se eram grandes ou pequenos, para
o seu medo isso era indiferente. Sofria medo quando a irmã mais velha lhe mostrava em
um livro a figura de um lobo, que estava de pé; nessa ocasião gritava muito, pois temia
que o lobo viesse comê-lo. Entretanto, lembra-se também de que costumava incomodar
os bichos submetendo-os a violências físicas. Por exemplo, recorda-se de gritar ao ver
alguém batendo em cavalos, mas ele próprio gostava de fazê-lo. Após esse período de
fobia de animais, passou a apresentar sintomas obsessivos, tornando-se muito religioso
e preocupado com a execução meticulosa de rituais.
O início do relato do historial clínico do caso começa com duas lembranças,
qualificadas por Freud como sendo lembranças encobridoras. Na primeira dessas
recordações, o paciente lembra-se da cena em que a governanta da casa passa pelas
crianças e diz: “Olhem o meu rabinho”, enquanto na segunda recordação, o paciente
relata que, em um passeio de carro, o chapéu da governanta voou e as crianças riram.
71  
 

Freud afirma que o conteúdo das lembranças está relacionado ao complexo de castração
e faz uma construção, que é comunicada ao paciente, segundo a qual talvez a lembrança
estivesse ligada à ameaça de castração que a governanta teria feito ao menino. O
paciente então sonha que está sendo cruel com a governanta da casa e com sua irmã
mais velha. Freud interpreta esses sonhos como sendo fantasias elaboradas na infância.
A associação seguinte do paciente, após essa interpretação, é uma lembrança de que a
irmã o iniciara nas práticas sexuais, quando ele tinha por volta de três anos, e de que ela
segurara seu pênis e lhe dissera que a babá costumava fazer isso com muitas pessoas.
Freud assinala como a posição ativa do paciente, no sonho de crueldade com a irmã e a
governanta, é resultado de uma operação de inversão. Pois na cena de sedução por ele
recordada é a irmã que tem a posição ativa, seduzindo, ao passo que o menino ocupa a
posição passiva.
O paciente relata que, após essa situação com a irmã, ele então tentou seduzir a
babá e começou a brincar com o pênis em sua presença. Ela, então, demoveu-o da ideia
de fazê-lo, dizendo-lhe que as crianças que manipulam seus genitais ficam com uma
ferida no lugar. Nesse momento, Freud considera que houve ao menos duas
consequências importantes advindas dessa situação e da advertência da babá. Uma delas
é que o menino passa a se ocupar com o problema da castração, ainda que não acredite
na sua existência:

“Nessa época conseguiu observar duas meninas – a irmã e uma amiga


dela – enquanto urinavam. Sua sagacidade pode muito bem ter-lhe
permitido deduzir os verdadeiros fatos desse espetáculo, mas
comportou-se como sabemos que se comportam outras crianças do
sexo masculino nessas circunstâncias. Rejeitou a ideia de que via
diante dele uma confirmação da ferida com a qual a babá o ameaçara e
explicou a si mesmo que aquilo era o ‘traseiro frontal’ das meninas. O
tema da castração não se estabeleceu por essa decisão; encontrou
novas alusões a ele em tudo o que ouvia.” (Freud, 1918 [1914]/1996,
p. 36).

Assim, a resposta que dera ao que vira, como sendo um ‘traseiro frontal’, não
soluciona totalmente a questão, de modo que continuará às voltas com o problema da
castração. Por exemplo, em uma festa, ao ganhar confeitos em forma de bastão e ouvir
da governanta que aqueles confeitos eram pedaços de cobra cortada, ele lembrou-se de
que o pai fizera uma cobra em pedaços em um passeio. Também se recorda de ouvir a
história do livro infantil segundo a qual o lobo vai à pesca, tem seu rabo congelado pelo
frio e o rabo se parte, ficando o lobo sem o seu rabo. Esses exemplos ilustram como os
72  
 

pensamentos a respeito da castração passaram a ser constantes para o garoto. No


entanto, Freud destaca que, ainda que o pensamento sobre a castração estivesse se
tornando cada vez mais constante, o menino “ainda não acreditava nela, nem a temia”
(p.36). Não há, portanto, crença no evento e tampouco algo que indicasse a
possibilidade de sua eficácia.
A segunda consequência da cena com a babá e sua advertência será o início dos
sintomas neuróticos na criança. Segundo Freud, uma vez que a atividade sexual sofrera
um obstáculo externo com a recusa da babá, houve um retorno da libido da fase fálica à
fase anterior de organização sádico-anal, fato que leva o menino a começar a torturar os
animais e pessoas, tornando-se uma criança cruel e irritável. Pouco tempo depois de o
menino transformar-se em uma criança sádica, agora contando quatro anos de idade, um
novo evento faz com que ele se torne uma criança não apenas sádica como também
fóbica: um sonho com lobos que irá desencadear sentimentos de angústia que, até então,
eram inexistentes.
O paciente relata o sonho no qual estava deitado em sua cama que ficava voltada
para a janela. Então, esta janela se abre e o menino pode ver, na nogueira que se situava
justamente em frente à janela, uma fileira de lobos brancos sentados nos galhos e que o
olham fixamente. Com medo de que os lobos pudessem comê-lo, ele acorda
aterrorizado, aos gritos e muito assustado com a cena do sonho. Sua babá foi até sua
cama e, segundo ele, “levou muito tempo até que me convencesse de que fora apenas
um sonho” (p.41). Novamente, Freud recorre à explicação segundo a qual tal sensação
de realidade despertada por alguns elementos do sonho se deve à sua relação com um
evento real. Este apenas se tornou irreconhecível para o sonhador em função das
operações de trabalho do sonho e da elaboração secundária.

“Sabemos por nossa experiência na interpretação de sonhos que essa


sensação de realidade traz consigo um significado particular. Isso
certifica-nos que determinada parte do material latente do sonho
reivindica, na memória do sonhador, possuir a qualidade de realidade,
isto é, que o sonho relaciona-se com uma ocorrência que realmente
teve lugar e não foi simplesmente imaginada.” (Ibid., p. 45, grifos
nossos).

As primeiras associações do paciente sobre o sonho com os lobos estavam


ligadas aos livros infantis, suas histórias e figuras. Freud explica que, ainda que a
sensação de realidade do sonho pudesse ser proveniente do fato de um dia ele realmente
73  
 

ter ouvido os relatos dessas histórias, “o sonho parece apontar para uma ocorrência cuja
realidade foi intensamente enfatizada como estando em marcado contraste com a
irrealidade dos contos de fadas” (p.45). Ou seja, apenas esses relatos das histórias
infantis não poderiam elucidar a sensação de realidade que o sonhou causou, devendo
existir outro fato a que o sonho estivesse remetido.
Em seguida então o paciente destaca em suas associações duas partes do sonho
que mais lhe chamam a atenção: a imobilidade dos lobos e a forma como eles o
olhavam fixamente. Freud deduz que esses dois elementos devam remeter à cena, ao
fato real que teria causado a sensação de realidade para as imagens do sonho. Ao
continuar a associação e relacionar o conteúdo do sonho a uma das histórias que ouvira
sobre lobos, o paciente deduz que talvez a imagem da janela abrindo-se no sonho
signifique que, na verdade, foram os seus próprios olhos que se abriam e não a janela.
Em sua interpretação, Freud supõe que possivelmente, nesse ponto, o trabalho do sonho
tivesse operado uma inversão. De acordo com isso, o paciente talvez estivesse
dormindo, acordara, abrira os olhos e tenha visto alguma coisa, de modo que o olhar que
no sonho aparece como atributo dos lobos, na verdade seja o olhar do próprio paciente.
O outro aspecto que causou maior impressão ao sonhador, a imobilidade dos lobos,
também poderia ter sofrido uma inversão, de modo que a cena a que se assiste não seja
caracterizada por imobilidade, mas antes por um movimento intenso. Essas seriam as
duas inversões operadas pelo trabalho do sonho: inversão do sujeito em objeto – é ele
quem olha e não os lobos – e uma inversão entre passividade e atividade, o que é olhado
não está imóvel, mas em mobilidade violenta.
Após essas interpretações, o paciente então se lembra de uma cena que fora
presenciada muito tempo antes desse sonho angustiante. Trata-se de uma cena que,
segundo Freud, viera “do caos dos traços de memória inconscientes”: quando tinha um
ano e meio, ele teria presenciado o coito a tergo de seus pais. Na cena recordada pelo
paciente, ele acordara e vira seu pai ereto enquanto sua mãe está curvada, de modo que
pode ver o genital dos dois. É essa cena primitiva do coito dos pais que é recordada por
meio do sonho de forma distorcida e que explicaria a sensação de realidade dele
derivada.
Segundo Freud, os elementos da cena do coito dos pais foram percebidos e
mantiveram-se como traços mnêmicos inscritos no aparelho psíquico, mas só foram
ativados no momento do sonho, três anos mais tarde. É mediante a ativação dessa cena
distorcida no sonho que a percepção dos genitais dos pais, somada à experiência de
74  
 

ameaça da castração pela babá e dos pensamentos sobre castração com os quais a
criança esteve ocupada, são ressignificados. Com isso, produz-se a convicção da
realidade da castração para o menino, fonte de temor e angústia. Dessa maneira, a
realidade da diferença sexual que até antes do sonho era interpretada pelo menino em
termos de atividade e passividade, passa a ser, desde o sonho, uma diferença entre
castrados e fálicos.
É importante notar que nem sempre a sensação ou a convicção de realidade seja
algo que se dê no momento de sua percepção. No presente caso, é possível acompanhar
que a eficácia da cena, no que se refere à questão da diferença sexual, não se deu na
época de sua percepção, mas apenas três anos mais tarde, a posteriori. Em uma nota de
rodapé, Freud afirma que esse:

“É simplesmente mais um exemplo de ação preterida10. Com um ano


e meio, o menino recebe uma impressão à qual é incapaz de reagir
adequadamente; só consegue compreendê-la e ser afetado por ela
quando a impressão é revivida por ele aos quatro anos; e somente
vinte anos mais tarde, durante a análise, está apto a compreender, com
processos mentais conscientes, o que então acontecia com ele.” (Ibid.,
p.56).

Além disso, cabe marcar que o que ocorre é a convicção de uma realidade
interpretada. Não se trata da convicção da realidade que advém simplesmente dos dados
da percepção, uma realidade finalmente conhecida – ou reconhecida a posteriori – pelo
menino. A convicção da realidade da castração, nesse momento, é apenas mais uma das
interpretações que foi dada por ele para a diferença sexual, e não um momento de
reconhecimento da realidade a partir de puros fatos da observação. De modo que não se
trata do fim de uma ilusão ou da retificação de um erro de percepção, mas apenas mais
uma das suas versões para um fato e que organiza a percepção que se tem dele. A
realidade da diferença sexual é interpretada agora como a confirmação da existência da
ferida a que a babá havida se referido. Pois ele já havia interpretado aquela realidade
como sendo uma questão de atividade e passividade e, posteriormente, quando assiste as
meninas urinando, supôs a presença nas meninas de um “traseiro frontal”.
Freud já havia tematizado essa questão em 1908, no texto Sobre as teorias
sexuais das crianças (1908). Nesse artigo, Freud supõe que, se um ser de outro planeta
viesse à Terra e observasse os seres animados, talvez nada causasse tanta surpresa

                                                                                                                       
10
Tradução da Standard Edition para o termo alemão Nachträglich.  
75  
 

quanto a existência de dois sexos. Por mais que para os adultos isso pareça ser um dado
ordinário, para a criança, assim como para o suposto extraterrestre, o fato da diferença
sexual é um enigma. Em um primeiro momento, ele é colocado para os pais, mas, diante
da decepção com as respostas inautênticas e dada a suspeita de que algo seja escondido
pelos adultos, a criança buscará criar suas próprias teorias. Serão três as teorias sexuais
típicas que Freud descreve nesse texto e que admite compartilharem uma característica
curiosa:

“Embora cometam equívocos grotescos, cada uma delas contém um


fragmento de verdade no que se assemelham às tentativas dos adultos,
que consideramos geniais, para decifrar os problemas do universo, que
são tão complexos para a compreensão humana. A parte dessas teorias
que é correta e atinge o alvo provém dos componentes do instinto
sexual que já atuam no organismo infantil. Não surge de um ato
mental arbitrário ou de impressões casuais, mas das necessidades da
constituição psicossexual da criança, motivo pelo qual podemos falar
das teorias sexuais infantis típicas (...).” (Freud, 1908/1996, p. 195).

Assim, de acordo com Freud, as teorias infantis estão ligadas às pulsões sexuais
e às zonas erógenas relacionadas a elas. Não são, portanto, um conjunto de hipóteses
puramente especulativas, e a isso se deve seu elemento de verdade. As teorias são
fantasias que vão sendo construídas a partir de dados da impressão sensorial (algo visto
ou ouvido), das organizações libidinais de uma época e das experiências oriundas do
próprio corpo do indivíduo.
As três teorias típicas serão descritas a partir do ponto de vista do menino. A
primeira delas consiste em atribuir a todos os seres a posse de um pênis. Segundo Freud,
o alto valor que o menino atribui a essa parte de seu corpo o impede de imaginar que
existam outras pessoas ou seres que estejam desprovidos desse órgão. Ainda que possa
ver essa diferença e a ausência de pênis nos outros seres, “o seu preconceito já é
suficientemente forte para falsear uma percepção” (p.196). Também nesse texto, Freud
considera que a ameaça de castração tem forte efeito na vida emocional devido ao
grande valor que o pênis representa na economia psíquica da criança, levando ao
complexo de castração. Após a ameaça de castração ter ocorrido, os genitais femininos,
quando observados, serão interpretados como sendo um órgão mutilado.
A segunda teoria sexual infantil, a teoria cloacal, está ligada à primeira, já que é
o desconhecimento da vagina que a engendra. Em busca da resposta sobre a origem dos
bebês, a criança, em suas observações, chega a compreender que o bebê se desenvolve
76  
 

no corpo da mãe, mas não consegue entender como ela poderia de lá sair. Ela então
formula a teoria segundo a qual o bebê pode sair através da passagem anal, como um
excremento.
Por fim, a terceira das teorias sexuais é a concepção sádica do coito, que faz com
que a criança interprete a relação sexual como um ato de violência, não conseguindo
distinguir os atos sexuais dos atos agressivos.
É importante notar que essas construções e sua aceitação pela criança não são
fruto de um desconhecimento ou falta de informação, pois, segundo Freud, é
significativo que as crianças não deem “ouvidos a nada”, quando vão receber as
informações sobre a sexualidade e consigam “permanecer ignorantes mesmo na vida
adulta – aparentemente ignorantes, pelo menos” (p.203). No texto Moisés e o
Monoteísmo (1939 [1934-38]), Freud aponta como essa espécie de recusa em abandonar
uma teoria por uma nova é um processo existente também no domínio das teorias
científicas e não apenas nas teorias sexuais infantis, válido tanto para a psicologia de
grupo quanto para a psicologia individual. Pois a teoria anterior, “com base em certas
provas, teria de reconhecer [a nova] como sendo verdadeira, mas que contradiz alguns
de seus desejos e choca algumas convicções que lhe são preciosas” (p.81). Ao comentar
sobre a rejeição que, por exemplo, a teoria da evolução de Darwin sofreu no início de
sua divulgação, Freud afirma que “a nova verdade desperta resistências emocionais;
estas encontram expressão em argumentos pelos quais as provas em favor da teoria
impopular não podem ser discutidas; o combate de opiniões toma um certo período de
tempo (...).” (p.81). Também no texto Análise terminável e interminável (1937), Freud
retorna à questão das teorias sexuais infantis, seu esclarecimento e a comparação com as
crenças religiosas adultas. Nesse texto, ele novamente afirma que o esclarecimento das
crianças a respeito da sexualidade não é algo prejudicial, mas que certamente é um fator
superestimado, uma vez que as crianças não abandonam suas teorias – teorias estas que
dizem respeito a seus conflitos e fornecem uma resposta a eles de certo modo – para
fazer uso desses novos conhecimentos que lhe são dados. Freud, que anteriormente
fizera comparações com as teorias científicas, agora estabelece a comparação entre essa
disposição das crianças de não abandonarem suas teorias com a atitude dos povos
primitivos e suas crenças religiosas: “Por longo tempo após receberem esclarecimentos
sexuais, elas se comportam como as raças primitivas que tiveram o cristianismo enfiado
nelas, mas que continuam a adorar em segredo seus antigos ídolos” (p.250).
77  
 

Dessas passagens, pode-se deduzir que essas teorias sexuais são sustentadas por
uma convicção em sua realidade e que não são abaladas pelos dados externos ou pelas
provas de realidade, apenas sendo abaladas por outras teorias que emergem do mesmo
modo, também apoiada em elementos pulsionais e representações.

“Em nossa opinião, a convicção – advenha sob a forma de teoria


sexual infantil, de lembrança ou de simples intuição – é provida ao
mesmo tempo das qualidades do afeto e da representação, sem ser
nenhum dos dois. Vivenciada como sentimento, ela se impõe como a
imagem do sonho; vinda do interior, provoca o impacto de uma
percepção”. (Botella e Botella, 2002, p. 45).

Voltemos agora ao texto História de uma neurose infantil para analisar a


sensação de realidade do sonho com os lobos. Diferentemente dos exemplos presentes
nos textos Gradiva e A Interpretação dos Sonhos, no exame do caso do homem dos
lobos, a realidade da cena que poderia ser a origem da sensação de realidade do sonho
não está assegurada logo de saída como algo simples e será motivo para um longo
debate. Segundo Freud, o motivo que ocasiona a dúvida sobre a realidade da cena não
poderia ser explicado por seu conteúdo, pois não há nada de extraordinário no
acontecimento do coito a tergo dos pais. A dúvida residiria em três outros motivos. O
primeiro deles é sobre a possibilidade de uma criança tão pequena conseguir assimilar a
percepção da cena e conservá-la em seu inconsciente; o segundo motivo consiste em
estar sob suspeita a possibilidade de que essas impressões tivessem sido revistas em um
sonho que ocorre anos depois; e, finalmente, o terceiro motivo para se duvidar da
hipótese da realidade da cena refere-se à possibilidade de tornar essa recordação
consciente mediante algum procedimento investigativo. Freud pede ao leitor para que
tenha uma convicção provisória da realidade da cena (p.50), a fim de que ele possa
analisá-la e colocá-la em relação com o sonho dos lobos. Só então poderá responder a
essas questões, para as quais destina toda uma parte do texto (Parte V: Algumas
questões), na que, como veremos a seguir, será conduzida uma longa discussão a
respeito da realidade da cena primária e a “significação do fator infantil” (p.65).
Já nas primeiras linhas da parte V do texto, Freud informa ao leitor que o debate
que será desenvolvido não está destinado a confrontar ideias de autores de outras áreas
da psicologia. Antes, ele tem em vista um debate no campo interno da psicanálise, com
autores que, embora aceitem o método da psicanálise, não concordam com alguns de
seus postulados teóricos fundamentais e extraem outras concepções do material retirado
78  
 

do tratamento. Por esse motivo, Freud dedicará poucas linhas à última das questões
colocadas, pois o cerne do debate não é a técnica da psicanálise e suas possibilidades.
Assim, ele responde rapidamente que seria sim possível tornar consciente a cena com o
método investigativo utilizado pela psicanálise. É quanto aos dois primeiros pontos que
as divergências estão postas e contra os quais irá argumentar, afirmando que revelam
uma concepção diferente da causa da neurose e da força do fator infantil em sua
etiologia.
Segundo Freud, essas suposições que colocam em dúvida a possibilidade de a
criança assimilar a cena e revê-las transformadas em sonhos seriam oriundas de uma
“baixa estimativa da importância das primitivas impressões infantis e da recusa a
atribuir-lhes efeitos duradouros” (p. 59). Segundo essas suposições, as cenas relativas à
infância produzidas na análise seriam apenas fruto da tendência neurótica no adulto em
expressar os problemas atuais por meio de representações significadas como
pertencendo ao período da infância. Porém, seriam, segundo essas suposições, apenas
fantasias, “símbolos regressivos” (p. 67), fantasias retrospectivas (p.69) criados com
elementos não ligados à infância. De acordo com Freud, uma das consequências de se
assumir essa hipótese consiste em que, dessa maneira, “podemos certamente poupar-nos
a necessidade de atribuir uma substância tão surpreendente à vida mental e capacidade
intelectual de crianças da mais tenra idade” (p. 60).
A teoria sobre os símbolos regressivos, contra a qual Freud passará a argumentar
até o final da parte V, foi publicada por Jung em 1912, na obra Símbolos da
transformação, momento de ruptura teórica entre os dois autores. Para Jung, a hipótese
freudiana da regressão que ocorre no aparelho psíquico durante os sonhos e que é capaz
de reativar percepções antigas está correta. No entanto, ainda que admita que os sonhos
sejam reminiscências modificadas, o conteúdo dessas lembranças não é composto por
material oriundo da infância dos indivíduos, mas antes são cenas e composições
recapituladas da história da humanidade. Ou seja, Jung admite que haja uma
reatualização do passado nos sonhos, mas trata-se de um passado muito mais longínquo
do que aquele da infância do indivíduo. No entanto, ele reitera que tampouco se trata de
recordações oriundas da infância pertencente a outros períodos da humanidade ou
também de recordações de construções patológicas de outras eras, ainda que não
aparentem ou compartilhem da mesma racionalidade do pensamento consciente.
79  
 

“As bases inconscientes dos sonhos e fantasias só aparentemente são


reminiscências infantis. Na realidade, trata-se de formas de
pensamento primitivas ou arcaicas, que naturalmente aparecem mais
claramente na infância do que mais tarde. Mas, em si, de modo algum
são infantis e muito menos patológicas. Para caracterizá-las não se
deveriam usar, portanto, expressões derivadas da patologia. Assim
também o mito baseado em fantasias inconscientes, quanto ao seu
sentido, conteúdo e forma de modo algum é infantil ou a expressão de
uma atitude auto-erótica ou autista, embora forneça uma imagem do
mundo que dificilmente pode ser comparada com nossa percepção
racional e objetiva.” (Jung, 1912/1986, p. 25).

Segundo Jung, a possibilidade de acessar e repetir tais formas de pensamento


primitivo nada tem a ver com aprendizado ou transmissão advinda pelo processo
educacional, de modo que pudessem estar relacionadas à história pregressa e à infância
da pessoa que as recorda. Ele enfatiza que se trata de uma herança que não depende da
experiência. Para justificar e explicar a forma de transmissão desses dados da vida
simbólica primitiva, Jung irá se apoiar no pressuposto das ciências biológicas do século
XIX segundo o qual a ontogênese repete o desenvolvimento da filogênese.

“Assim como nosso corpo em muitos órgãos conserva ainda os


resquícios de antigas funções e estados, também nosso espírito, que
parece ter ultrapassado todos os instintos primitivos, traz ainda as
marcas do desenvolvimento por que passou e repete o arcaico ao
menos em sonhos e fantasias.” (Ibid., p. 24).

Durante diversas passagens na obra, Jung faz questão de reiterar que o que é
recuperado não são as heranças simbólicas infantis, mesmo que de outros períodos
históricos. Embora, segundo ele, as crianças possuam uma forte tendência a fantasiar,
esse acervo simbólico transmitido não é uma criação da infância, mas algo referente ao
mundo adulto.

“A tendência de formação de mitos na criança, a colocação de


fantasias como realidades, fantasias essas que em parte têm aura de
história, de fato pode ser descoberta sem dificuldade nas crianças. No
entanto, um grande ponto de interrogação merece a afirmação de que
o mito procede da vida espiritual ‘infantil’ do povo. Pelo contrário, é o
que há de mais adulto na produção da humanidade primitiva. Aqueles
antepassados do homem providos de brânquias em hipótese alguma
eram embriões, e sim animais adultos; assim também o homem que
pensava e vivia no mito era uma realidade adulta e não uma criança de
quatro anos. Pois o mito não é uma fantasia pueril, mas um dos
requisitos mais importantes da vida primitiva.” (Ibid., p. 21).
80  
 

Novamente, Jung reitera nessa passagem que nega a realidade da experiência


infantil como fonte e material dessas fantasias. De fato, trata-se de uma dupla negação
da realidade da experiência infantil, visto que a origem das fantasias não está nem nas
reminiscências da infância na ontogênese como também não está na recuperação de
criações infantis da filogênese. No que se refere ao conteúdo das fantasias, trata-se
sempre da realidade e criações dos adultos. No entanto, ainda que descarte a origem
infantil e as características de seu modo de pensamento como elementos formadores da
fantasia, Jung atribui algum caráter de realidade e verdade a essas formações psíquicas.
Segundo ele, embora elas não sejam fatos ou realidade na ontogênese, foram verdade
para outras eras: “a ambiciosa fantasia escolhe portanto uma forma que é clássica e
outrora era tida como verdadeira”. (p. 23). Assim, diante de uma fuga da realidade no
adulto, o aparelho psíquico cria fantasias e cenas que sugerem terem ocorrido na
infância. No entanto, seriam percepções antigas e traços passados reanimados nos
sonhos e nas fantasias, os quais foram para as gerações anteriores um pensamento
consciente de “convicção geral” (p.23) que não se perdeu com o passar do tempo.
A resposta de Freud ao problema da realidade da cena – em nossa leitura, uma
resposta que visa principalmente fundamentar o atributo de realidade ontogenética da
cena – está construído em torno de três argumentos principais. Freud considera que, em
sua teoria, a concepção de lembrança encobridora até poderia ser entendida como um
argumento que concorda com a tese de que as cenas são fantasias regressivas, pois
realmente as cenas recordadas poderiam não ser puras e verdadeiras recordações, mas
construções e distorções da verdade. No entanto, no caso clínico que está em discussão,
Freud afirma que a cena não apareceu nas associações do paciente como uma
recordação, mas sim dentro do contexto de associações a partir de um sonho. O fato da
cena se repetir no sonho de modo distorcido poderia ser um indício de sua realidade e de
que não se trata de uma fantasia construída.

“No entanto, não sou de opinião que essas cenas devam


necessariamente ser fantasias, porque não reaparecem na forma de
recordações. Parece-me absolutamente equivalente a uma recordação,
se as lembranças são substituídas (como no presente caso) por sonhos,
cuja análise conduz invariavelmente de volta à mesma cena, e que
reproduzem cada parte do seu conteúdo numa inesgotável variedade
de novas formas. Na verdade, sonhar é outra maneira de lembrar,
embora sujeita às condições que governam à noite e às leis das
formações de sonhos. É essa recorrência nos sonhos que considero
como a explicação do fato de que os próprios pacientes adquirem
gradativamente uma convicção profunda da realidade dessas cenas
81  
 

primárias, uma convicção que não é, em nenhum aspecto, inferior à


que se fundamenta na recordação” (Freud, 1918 [1914]/1996, p. 62).

Ou seja, o fato de as cenas aparecerem não como uma recordação, mas antes se
repetirem nos sonhos sob formas distorcidas dos mesmos elementos poderia ser o
indício de sua realidade. Já em A Interpretação dos Sonhos Freud havia chamado
atenção para a relação entre a repetição e a sensação de realidade.
Em sua segunda consideração do problema, Freud irá conjugar o problema da
realidade da cena com fator infantil na qualidade de uma possível causa da neurose. De
acordo com Freud, há tempos em sua teoria a questão regressiva era afirmada como
elemento constituinte da neurose. No entanto, ele declara que esse fator não é o único a
ter participação, já que também existe mais uma vertente, voltada para o futuro e é um
potencial fator na causação da neurose também. Ou seja, embora considere que, na
neurose, dada a fuga da realidade, existe a possibilidade de criação de cenas em que o
conflito atual seja colocado no passado, ou que traços da herança filogenética possam
ser reinvestidos, haveria ainda outro vetor determinante. Trata-se da possibilidade de
utilizar o material proveniente da infância para fabricação de uma neurose futura. Desse
modo, pode-se afirmar que há uma sobreposição de fatores causais atuando ao mesmo
tempo, com vetores regressivos e progressivos, sem mútua exclusão.
Em Moisés e o Monoteísmo (1939[1934-38]), Freud utiliza uma metáfora
interessante e esclarecedora para elucidar esse fenômeno das impressões infantis que se
manifestam anos mais tarde: “podemos torná-lo mais compreensível comparando-o a
uma exposição fotográfica que pode ser revelada após qualquer intervalo de tempo e
transformada num retrato” (p.140). De modo que, para Freud, o fator causal na neurose
não fica restrito apenas ao fator regressivo, mas também para aqueles que operam em
direção ao futuro, da infância para a vida adulta. Nas considerações sobre essa hipótese
nos comentários sobre o caso do Homem dos Lobos, ele afirma que “a influência da
infância já se faz sentir na situação com que se inicia a formação de uma neurose, de
vez que desempenha um papel decisivo na ação de determinar se, e em que ponto, o
indivíduo deixa de dominar os verdadeiros problemas da vida.” (p. 64).
É a “significação do fator infantil” (p.65) que está em jogo nesse momento,
como Freud faz questão de sublinhar. Não se trata de um destaque fortuito. Como
pudemos acompanhar, ainda que de modo breve, no texto de Jung, é justamente esse
fator que é duplamente negado em Símbolos da transformação, já que a negação não
82  
 

está restrita ao fator infantil na ontogênese como também para o material herdado da
filogênese.
E, por fim, a terceira consideração de Freud para afirmar a realidade da cena
funda-se no pressuposto de que a construção de uma fantasia que se tornou irredutível
na análise e que está relacionada a todos os sintomas da neurose precisa
necessariamente contar com alguns elementos oriundos da experiência e não apenas
elementos imaginários.

“Suponhamos, como premissa incontestada, que uma cena primária


dessa natureza tenha sido corretamente reduzida do ponto de vista
técnico, que seja indispensável para uma solução inclusiva de todos os
enigmas colocados pelos sintomas do distúrbio infantil, que todas as
consequências irradiem dela, assim como todas as linhas da análise
conduziram a ela. Então, em face de seu conteúdo, é impossível que
possa ser outra coisa além da reprodução de uma realidade
experimentada pela criança. Pois a criança, como o adulto, só pode
produzir fantasias a partir do material que foi adquirido, de uma fonte
ou de outra (...).” (Freud, 1918 [1914]/ 1996, p. 65).

Assim, ainda que se admita que a memória tenha uma função produtiva e não
apenas reprodutiva, como sugere a tese das lembranças encobridoras, ao menos alguns
elementos da cena, no caso de estarem ligados aos sintomas do paciente e serem
relembrados e repetidos através dos sonhos, deverão estar, de algum modo, ligados à
experiência, ou, ao menos, a alguns elementos fornecidos por ela.
Com o texto História de uma neurose infantil encerra-se a série de citações do
conceito de sentimento de realidade nos textos de Freud. Como foi possível
acompanhar, diferentemente do que aconteceu em Gradiva e A Interpretação dos
Sonhos, no histórico do caso do Homem dos Lobos, Freud amplia e complexifica a
discussão a respeito da natureza da cena que teria causado o sentimento de realidade do
sonho. Nesse texto, a passagem da sensação de realidade do sonho para a realidade
como fato deixa de ser um passo simples, como a passagem do sonho com as pêras
descrito em A Interpretação dos Sonhos poderia sugerir.
Além disso, também é possível destacar que, nas quatro passagens que fazem
referência ao sentimento de realidade advindo do sonho, exceto por um dos exemplos –
o sonho das pêras de A Interpretação dos Sonhos –, todos os sonhos que estiveram
acompanhados do sentimento de realidade eram sonhos de angústia. Essa característica
esteve presente nos sonhos e delírios com animais no caso de Emmy Von R., no sonho
83  
 

da destruição de Pompéia de Hanold e também no sonho de angústia com os lobos no


caso do Homem dos Lobos.
Outra característica a ser ressaltada é que, exceto pelo caso de Emmy Von R.,
que não pode ser avaliado devido à ausência de elementos no texto sobre a interpretação
de seus sonhos com os animais, nos outros três casos o sonho acompanhado do
sentimento de realidade estava relacionado a elementos da vida sexual: os seios da mãe
no sonho relatado em A Interpretação dos Sonhos, o objeto do desejo de Hanold que
está em sua cidade em destruição e a cena de coito dos pais e o sonhos dos lobos no
caso do Homem dos lobos.

2.1 A crença na realidade

Como mencionamos no início do capítulo, também foi possível encontrar, ao


menos em Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907[1906]), a utilização do
conceito de crença na realidade aplicado de modo equivalente ao que se deu com o
conceito de sentimento de realidade nos outros textos. Gostaríamos agora de investigar
um pouco mais sobre o conceito da crença na realidade a fim de verificar se são sempre
utilizados desse mesmo modo em Freud, designando sempre o mesmo fenômeno.
Na continuação do texto Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (1907[1906]),
encontramos mais uma aplicação do conceito de crença de realidade além daquela que
mencionamos ao início desse capítulo. Agora, a utilização do termo está voltada à
explicação da crença que o paciente tem em seu delírio, crença esta que não poderia ser
facultada à incapacidade de julgamento, mas à parcela de verdade que existe nos
delírios, “um elemento digno de fé, que é a origem da convicção do paciente” (p.75). O
passo seguinte de Freud nesse texto é explicar como toda a convicção é formada da
reunião de elementos verdadeiros com elementos falsos, não apenas a convicção
proveniente do delírio, como também a convicção de qualquer formação normal de
pensamento:

“Todos nós emprestamos nossa convicção a conteúdos de pensamento


em que se combinam a verdade e o erro, deixando-a estender-se da
primeira ao último. É como se a convicção se propagasse da verdade
ao erro a ela ligado, protegendo-o das merecidas críticas, embora não
tão vigorosamente como no caso de um delírio. Assim, também na
psicologia normal, ser bem relacionado – ‘ter influência’, por assim
dizer – pode substituir um valor real.” (Freud, 1907[1906]/1996,
p.75).
84  
 

O termo crença na realidade volta a aparecer no texto Suplemento


metapsicológico à teoria dos sonhos (1917[1915]), agora relacionado ao problema da
alucinação onírica e nas alucinações de estados patológicos. Como poderemos
acompanhar, e como já avisa o título, boa parte da análise das alucinações será realizada
a partir do fenômeno do sonho.
Freud afirma que os seres humanos, quando vão dormir, se despem de seus
“invólucros” e suplementos corporais, como os óculos, dentes postiços, mas também
despem suas mentes de boa parte das aquisições psíquicas e do seu interesse pelo
mundo externo, aproximando-se “consideravelmente da situação na qual começaram a
vida” (p.229). No estado de sono, algumas transformações aconteceriam no aparelho
psíquico: a retirada de investimentos no mundo externo e da motilidade voluntária e
também a regressão temporal que atinge o desenvolvimento do eu. Essa linha de
desenvolvimento retorna a um de seus estágios iniciais, levando o aparelho psíquico a
condições muito próximas aquelas de um narcisismo primário. Isso significa, em termos
econômicos, a retirada de investimento de todas as representações de objeto presentes
nos sistemas inconscientes e pré-conscientes, a retirada de investimento nos objetos
externos e o investimento libidinal no eu. Desse modo, todas as sensações corporais
durante o sono, são excessivamente investidas, fazendo com que “todas as sensações
costumeiras do corpo assumam proporções gigantescas. Essa amplificação é por
natureza hipocondríaca; depende da retirada de todas as catexias psíquicas do mundo
externo para o ego (...).” (p. 230).
No entanto, esse cenário de quietude psíquica, no qual o eu pode dormir sem ser
incomodado, só poderia existir, de fato, em um aparelho psíquico no qual não houvesse
qualquer conflito entre suas instâncias de funcionamento. Será esse o problema
apontado por Freud na passagem seguinte do texto, quando afirma que, se a explicação
sobre o sono estivesse restrita apenas a sua condição narcísica, estaríamos diante de um
paradoxo e já não haveria como elucidar que os impulsos de desejo inconsciente se
manifestem formando os sonhos:

“Se o estado narcisista do sono tiver resultado num retração de todas


as catexias dos sistemas Ics. e Pcs., então já não haverá qualquer
possibilidade de que os resíduos pré-conscientes do dia venham a ser
reforçados por impulsos instituais inconscientes, visto que estes
cederam suas catexias ao ego. Aqui, a teoria da formação dos sonhos
termina numa contradição, a menos que possamos salvá-la novamente
85  
 

mediante uma modificação em nossa suposição sobre o narcisismo do


sono” (Freud, 1917[1915]/1996, p. 232).

A resposta de Freud para esse impasse é simples: os impulsos de desejo, da


parcela inconsciente recalcada, não atendem ao desejo de dormir do eu e sua exigência
de abandono dos investimentos, passando a investir os traços mnêmicos diurnos e
conseguindo, assim, se manifestar e ter acesso à consciência. Freud adverte que é por
isso que “quanto mais fortes forem as catexias instintuais do Ics., mais instável será o
sono.” (p. 232). No entanto, esse acesso dos impulsos de desejo à consciência não deixa
de ocorrer sem embaraços, pois mesmo que diminuída em razão da via motora estar
desinvestida, a censura entre os sistemas ainda existe. Devido a esse fato, os traços
investidos pelos impulsos de desejo inconscientes deverão estar submetidos aos
mecanismos de distorção, como deslocamento, condensação e a transformação de
representação de palavras em representações de coisas, para só então poderem ter
acesso à consciência.
Essa via de acesso que os traços mnêmicos investidos pelos impulsos de desejos
recalcados seguem para chegarem à consciência possui um sentido contrário ao que
ocorre normalmente, uma vez que vão dos traços pré-conscientes ao inconsciente e só
então à percepção. Freud denomina essa inversão no caminho da excitação de regressão
topográfica e afirma que, um pensamento, ao seguir o caminho da regressão topográfica
e tornar-se consciente, é aceito como uma percepção sensorial real. É essa percepção
sensorial aceita como real que faz com que a satisfação do impulso de desejo que
animou os traços mnêmicos diurnos torne-se crível.

"A conclusão do processo onírico consiste no conteúdo do


pensamento – regressivamente transformado e elaborado numa
fantasia carregada de desejo –, tornando-se consciente como uma
percepção sensorial; enquanto isso ocorre, ele passa por uma revisão
secundária, à qual todo conceito perceptual está sujeito. O desejo
onírico, como dizemos, é alucinado, e, como uma alucinação,
encontra-se com a crença na realidade (Realitätsglaube) de sua
satisfação.” (FREUD, 1917[1915]/1996, p.236).

Podemos notar que Freud sublinha tratar-se da crença na realidade da satisfação


do desejo. Essa crença na satisfação dos desejos ocorre também nas alucinações dos
estados patológicos, que percorrem a mesma via da regressão topográfica para se
tornarem conscientes. A alucinação investida por impulsos de desejo, que percorre essa
86  
 

via regressiva, tem como consequência para o aparelho psíquico não apenas conduzir os
desejos inconscientes recalcados para a consciência, mas também, e por essa razão,
levar o indivíduo “com toda a crença” a tomar esses desejos como satisfeitos.

“É de todo impossível sustentar que os desejos inconscientes devem


necessariamente ser considerados como realidades tão logo se tenham
tornado conscientes, pois, como sabemos, somos capazes de distinguir
as realidades de ideias e desejos, por mais intensos que possam ser.
Por outro lado, parece justificável presumir que a crença na realidade
está vinculada à percepção através dos sentidos.” (Ibid., p. 237).

Mas, nesse ponto, Freud apresenta mais um paradoxo na teoria. Ainda que a
regressão apresente à percepção consciente imagens mnêmicas muito claras, fruto de
um investimento de impulsos de desejo inconscientes intensos, a maioria dos casos,
mesmo diante dessas condições, não apresenta a crença na realidade dessas fantasias de
desejo. Isso invalidaria a eficácia teórica da hipótese regressiva como explicação para a
alucinação. Logo, deveria haver outro requisito, não exclusivamente baseado na
regressão topográfica, para que a crença na realidade e a alucinação da satisfação do
desejo ocorram.
Freud considera que existe uma função psíquica que é responsável por distinguir
entre o que é a realidade e o que é somente pensamento ou desejo. Essa função foi
denominada de teste de realidade e tem também como tarefa “orientar o indivíduo no
mundo pela discriminação entre o que é interno e o que é externo” (p. 239). Freud é
taxativo ao afirmar que o exercício dessa função é um atributo exclusivo do sistema da
consciência11.

                                                                                                                       
11
Nesse texto, Freud faz algumas considerações a respeito da Consciência, no entanto, avisa ao leitor que
deixará em suspenso muitas considerações a respeito desse sistema para serem examinados depois.
Segundo nota do editor, essa seria uma provável referência ao artigo sobre a consciência que deveria ter
sido publicado junto com os demais artigos sobre metapsicologia que estavam sendo escritos por Freud
durante o período da Primeira Guerra Mundial. Tal artigo nunca foi publicado e, assim, muitos aspectos a
respeito da consciência, que poderiam elucidar algumas das questões da relação com a realidade, nunca
foram elucidadas. No artigo de 1917 que estamos analisando, no momento em que vai explicar a respeito
da relação entre alucinação e teste de realidade, Freud anuncia que “a resposta poderá ser dada se agora
passarmos a definir mais precisamente o terceiro de nossos sistemas psíquicos, o sistema Cs., que até o
momento não distinguimos nitidamente do Pcs. Em A Interpretação dos Sonhos já tínhamos sido levados
a considerar a percepção consciente como a função de um sistema especial, ao qual atribuímos certas
propriedades curiosas, e ao qual teremos agora bons motivos para atribuir também outras características.
(...). Não obstante, mesmo assim, o fato de uma coisa se tornar consciente ainda não coincide
inteiramente com o fato de ela pertencer a um sistema, pois aprendemos que é possível estarmos cônscios
de imagens sensórias mnêmicas às quais de forma alguma podemos permitir uma localização psíquica nos
sistemas Cs. ou Pcpt. Devemos, contudo, adiar o exame dessa dificuldade até que possamos focalizar
nosso interesse no próprio sistema Cs.” (Freud, 1917/1996, p. 238).
 
87  
 

O mecanismo funcionaria da seguinte forma. Como explicamos acima, na


alucinação, traços mnêmicos investidos de impulsos de desejo atingem a consciência via
regressão topográfica. Se o teste de realidade, que é capaz de estabelecer a diferença
entre interno e externo, não estiver atuante, não há como o aparelho psíquico distinguir
se aquela percepção que está atingindo a consciência o faz por vias internas ou externas.
Já que isso não ocorre, essas fantasias de desejo que atingem a consciência pela via
regressiva interna passam a ser críveis e ganhar estatuto de realidade assim como os
traços que tiveram origem externa.
Contudo, Freud se pergunta de que forma poderia a alucinação suspender o teste
de realidade, respondendo que isso só ocorre porque foram retirados os investimentos
do sistema de percepções da consciência. Ou seja, uma vez que a função do teste de
realidade é atributo exclusivo da consciência, apenas quando esse sistema está investido
pelo eu é que o teste de realidade poderia operar. Mas, se o eu rompe suas relações com
a realidade, por julgá-la de algum modo insuportável, e dela se desvia retirando os
investimentos do sistema Cs, o teste de realidade não pode mais ser acionado, e outra
realidade, a realidade dos desejos, passaria então a reinar.
No texto, existem duas explicações diferentes para cada tipo de alucinação:
alucinação que ocorre nos estados patológicos e aquela que ocorre no sonho. Nos dois
casos, há um desligamento do mundo externo pelo eu, esse desinvestimento libidinal
que causa a inatividade do teste de realidade. No entanto, enquanto nos casos
patológicos isso ocorre por uma negação da realidade, no caso dos sonhos isso só ocorre
para que o sono aconteça. Freud explica que quando se trata dos casos patológicos, o
que ocorre:

“(...) é a reação a uma perda que a realidade afirma, mas que o ego
tem de negar, por achá-la insuportável. Portanto, o ego rompe sua
relação com a realidade; retira a catexia do sistema de percepções, Cs.
(...). Com esse desvio da realidade, o teste de realidade é posto de
lado, as fantasias carregadas de desejo (irreprimidas, inteiramente
conscientes) são capazes de exercer pressão avançando para dentro do
sistema, sendo por ali consideradas como uma realidade melhor.”
(Ibid. p.240).

No caso do sonho, a retirada de investimentos da consciência pelo eu não se


daria pelo caráter insuportável de uma parte da realidade que precisa ser negada para dar
espaço a uma nova realidade fantasmática substitutiva. O desinvestimento do mundo
externo e da consciência pelo eu ocorreria apenas em função das condições exigidas
88  
 

para que o sono aconteça e o estado de narcisismo primário possa se instalar. De modo
que, para dormir, os seres humanos se despiriam não apenas de seus óculos e dentes
postiços, como também de seu teste de realidade, fruto do desinvestimento do eu na
consciência e no mundo externo.
Se voltarmos agora ao problema do qual partimos, poderemos avaliar que, ao
longo do texto que acabamos de analisar, a equivalência semântica entre os termos
crença na realidade e sentimento de realidade, uma vez estabelecida no texto Delírios e
sonhos na Gradiva de Jensen (1907[1906]), não se mantém. O sentimento de realidade
tal como empregado nos textos A Interpretação dos Sonhos e História de uma neurose
infantil não era fruto da falha do teste de realidade, tampouco uma alucinação uma vez
que se contava com a distinção entre o sonho e a realidade. Os pacientes relatam saber
que as imagens pertenciam ao sonho, entretanto, alguns fragmentos do sonho causam no
sonhador a sensação de serem reais, ainda que o sonhador conseguisse distinguir entre o
sonho e a realidade. Freud afirma tanto ao comentar os sonhos de Delírios e sonhos na
Gradiva de Jensen e História de uma neurose infantil que o sentimento de realidade
proveniente dos sonhos não deveria ser considerado como um erro de julgamento da
realidade.
Além disso, as descrições do sentimento de realidade que aparecem nesses
textos de Freud, exceto pelo caso de Emmy Von R. que afirma não ser um sonho ou um
delírio as situações com os animais em sua narrativa, em todos os outros três casos, os
pacientes conseguem reconhecer que tiveram um sonho e que, apenas ao despertar,
surgiu o sentimento de que algo no sonho era real. Desse modo, nos casos relatados em
que o sentimento de realidade ocorreu, a função do teste de realidade parece ter sido
preservada não havendo alteração no reconhecimento do externo e interno por parte do
eu e tampouco houve alucinação. Logo, poderíamos afirmar que o fenômeno do
sentimento de realidade e o teste de realidade não se encontram diretamente
relacionados, como vimos ocorrer com o teste de realidade e a alucinação no texto
freudiano de 1917.
Mas não deixa de ser intrigante a possibilidade de uma sensação de realidade
permanecer mesmo após o teste de realidade haver ocorrido e ter sido certificado que se
tratava apenas de um sonho.
89  
 

2.2 Um fenômeno insólito

Em A Psicopatologia da vida cotidiana (1901), na seção intitulada


Determinismo, crença no acaso e superstição, Freud destina alguns parágrafos à
tentativa de elucidar os fenômenos do déjà vu e da fausse reconnaissance, definidos por
ele como sendo sensações de que algo na situação vivenciada é uma repetição uma
ocorrência anterior. Esse falso reconhecimento, que pode ocorrer diante de eventos,
lugares, pessoas, falas, causa estranheza por seu caráter paradoxal, já que, ao mesmo
tempo em que se está certo de estar diante de algo pela primeira vez, ao mesmo tempo,
tem-se a sensação de que esse algo, que parece ser inédito, é algo que um dia já foi
conhecido. Além disso, há mais um dado no fenômeno que também causa estranheza.
Trata-se do fato de que aquele que sente a sensação de já ter vivido anteriormente a
situação, como se estivesse repetindo a mesma cena, não consegue se lembrar da
suposta cena original. Ele apenas sente que ela já lhe é familiar. Freud descreve assim o
fenômeno:

“Na categoria do milagroso e do ‘insólito’ devemos também incluir a


peculiar sensação que se tem, em certos momentos e situações, de já
ter vivenciado exatamente aquilo um dia, de já ter estado antes
naquele mesmo lugar, sem que se consiga, apesar de todos os
esforços, recordar claramente a ocasião anterior que assim se
manifesta. Sei que estou apenas seguindo o uso linguístico
descompromissado ao chamar de ‘sensação’ aquilo que brota na
pessoa nesses momentos; trata-se sem dúvida de um juízo e, mais
exatamente, um juízo perceptivo, mas esses casos têm um caráter
inteiramente peculiar e não se deve desconsiderar que aquilo que se
procura nunca é lembrado.” (Freud, 1901/1996, p. 260).

O esquecimento da situação primeira, que poderia revelar ao sujeito o que


haveria nela de familiar e assim, finalmente, conseguir explicar a sua sensação de
repetição, torna-se um indício para Freud da presença da operação de recalque atuando
como um dos mecanismos psíquicos que levam à sensação déjà vu. Cabe lembrar aqui
que Freud inicia seu livro apresentando uma explicação sobre o mecanismo de
esquecimento de nomes próprios que, segundo ele, envolve não apenas o esquecimento
de um nome como também a lembrança de um nome errado. Ele afirma que além de um
nome ser recalcado, outro nome substituto aparece como resultado da operação de
90  
 

deslocamento. Vejamos como essa indicação é utilizada por ele na interpretação de um


relato de déjà vu feito por uma paciente em análise.
Agora na idade de trinta e sete anos, a paciente conta que, quando tinha doze
anos, foi visitar algumas amigas em uma casa de campo e que, ao chegar ao local e
passar pelo jardim da casa, tivera a sensação de já ter estado ali. Ela conta que, não
apenas com o jardim, mas com os cômodos da casa, teve a sensação de déjà vu tão
intensa que pensou que conseguiria descrever de antemão como seria a casa inteira. No
entanto, adverte Freud, “a possibilidade de que esse sentimento de familiaridade
devesse sua origem a uma visita anterior à casa e ao jardim, talvez na primeira infância,
foi absolutamente excluída e refutada pelas indagações que ela fez a seus pais” (Freud,
1901/1996, p. 261).
Na análise a respeito do fenômeno, a paciente relata que sabia que as amigas, a
quem fora visitar, tinham um irmão que estava doente. Ao vê-lo, na situação da visita,
pensou que ele logo iria morrer. A seguir, a paciente declara que ela mesma também
tivera o irmão doente meses antes da visita, e que ele conseguiu se recuperar. Freud
afirma que “para o conhecedor não haverá dificuldade em concluir desses indícios que,
naquela época, a expectativa de que o irmão morresse desempenhara um papel
importante nos pensamentos da menina” (ibid., p.262). Ao chegar à casa das amigas,
sabendo que estas tinham um irmão doente e que ela própria já havia passado pela
mesma situação, o reconhecimento dos pensamentos sobre a doença do irmão foi
recalcado. No lugar de surgir uma sensação de reconhecimento em relação à situação
com o irmão, que, por algum motivo, estava recalcada, a sensação de reconhecimento e
de familiaridade foi deslocada para o reconhecimento do ambiente externo a sua volta,
como se ela já houvesse estado naquela situação. Freud considera que a presença do
recalque e o deslocamento da sensação de familiaridade permitem supor que algum
pensamento a respeito da situação com o irmão estaria recalcado. Além disso, outros
dados de sua análise permitiam supor que o conteúdo afastado da consciência era uma
fantasia desejante da morte do irmão, para que ela finalmente pudesse vir a ser filha
única:

“Pelo fato de ter ocorrido o recalcamento podemos concluir que sua


expectativa anterior da morte do irmão não estivera muito afastada do
caráter de uma fantasia desejante. Nesse caso, ela teria ficado como
filha única. Em sua neurose posterior, ela sofria com a mais extrema
intensidade a angústia de perder os pais, por trás da qual, como de
91  
 

costume, a análise pode revelar um desejo inconsciente com o mesmo


conteúdo.” (Ibid., p.262).

Assim, para Freud, a explicação para o fenômeno do déjà vu poderia ser


encontrada nas fantasias inconscientes. Embora elas nunca tenham sido conhecidas pelo
sistema da consciência, são eventos psíquicos conhecidos de outras instâncias, por isso
a sensação de familiaridade e repetição. O que aconteceria é que, em uma situação nova
e que está, de algum modo, relacionada à fantasia inconsciente, a fim de que esse
conteúdo recalcado mantenha-se afastado da consciência, o sentimento de se estar
diante de algo familiar é deslocado para outros elementos presentes. Dessa forma, Freud
faz questão de afirmar que o sentimento de repetição que ocorre nos casos de déjà vu
não está baseado em um julgamento errado, um equívoco da memória. Ele é apenas um
sentimento que está deslocado de seu conteúdo original para a manutenção do recalque.

“No meu entender, é errôneo chamar de ilusão o sentimento de já se


ter vivenciado alguma coisa antes. É que nesses momentos realmente
se toca em algo que já se vivenciou antes, só que isso não pode ser
lembrado conscientemente porque nunca foi consciente. Dito em
termos sucintos, a sensação do déjà vu corresponde à recordação de
uma fantasia inconsciente.” (Ibid., p. 261).

Não deixa de chamar a atenção o fato de que o juízo perceptivo de familiaridade


possa advir de uma situação vivenciada apenas no pensamento e não como um fato da
realidade externa. Nesse ponto, poderemos nos remeter ao que fora estabelecido por
Freud desde o Projeto para uma psicologia científica quando afirmava que: “Também
as indicações de descarga por meio da fala são, de certo modo, indicações da realidade –
mas da realidade do pensamento, e não da realidade externa (...)”. (Freud, 1950
[1895]/1996, p.428). O exemplo do déjà vu deixa claro como é possível derivar juízos
perceptivos corretos a partir da realidade de pensamento, a realidade psíquica, e não
apenas da realidade externa.
Aqui retornamos aos nossos problemas de origem.
Primeiramente, se retomarmos a definição de sentido de realidade que derivamos
ao final do capítulo anterior, quando o classificamos como uma espécie de juízo
perceptivo consciente, fundado também nas sensações corporais, e aproximarmos ao
que está sendo explicado aqui a respeito do fenômeno de déjà vu, poderemos afirmar
que o sentido de realidade não está apenas referido à realidade externa, mas a qualquer
realidade, também aquela referente aos eventos da realidade psíquica.
92  
 

Quanto ao que poderíamos derivar dessas conclusões a respeito do sentimento de


realidade, acreditamos que algumas analogias entre os fenômenos podem ser feitas, de
modo a trazer elucidações a nossa questão.
Acompanhando as explicações de Freud para o déjà vu, vimos se tratar de um
sentimento, um juízo perceptivo, que havia sido deslocado de seu conteúdo original, por
isso a sensação de familiaridade ocorreria com elementos não familiares, mas não era
um erro.
No caso do sentimento de realidade também existe um sentimento de
reconhecimento, mas, aqui, é o conteúdo a que ele está ligado que sofre condensação e
deslocamento e fica irreconhecível devido às ações da revisão secundária dos sonhos.
Ainda que os processos sejam diferentes, os dois fenômenos envolvem algo que precisa
ser recalcado, ainda que os sentimentos de familiaridade, repetição e realidade os
denunciem. Se no caso do sentimento de realidade o conteúdo a que esse sentimento
está associado apenas pode ser relembrado através dos mecanismos de distorção dos
sonhos, poderíamos afirmar que, de algum modo, esse sentimento também está
relacionado a algo recalcado, apenas possível de ser acessado após a interpretação.
Assim, não é por acaso que, na grande maioria dos exemplos analisados por Freud, o
sentimento de realidade se originava de sonhos angustiantes, cujos conteúdos, após
interpretação, revelavam estar conectados a questões sobre castração e sexualidade.
Mesmo que Freud considere que os conteúdos que causam o sentimento de realidade
não sejam apenas uma fantasia inconsciente, as cenas a que eles estavam ligados
poderiam remeter ao conteúdo dessas fantasias e, por essa razão, só podem ser
relembrados mediante a atividade onírica.
Em meio às explicações a respeito dos fenômenos do déjà vu e da fausse
reconnaissance, encontramos uma contribuição de Ferenczi sobre o tema, considerada
por Freud como sendo uma contribuição valiosa. A princípio inserida por Freud em
uma nota de rodapé em 1910, em 1924 a passagem do texto de Ferenczi será integrada
ao corpo do texto. Não há indicação da origem da referência citada, Freud apenas afirma
que Ferenczi lhe escreveu as seguintes considerações sobre o assunto:

“Tanto em mim mesmo como em outras pessoas, convenci-me de que


o inexplicável sentimento de familiaridade deve ser rastreado a sua
origem em fantasias inconscientes, dentre as quais uma é
inconscientemente lembrada numa situação atual. Num de meus
pacientes aconteceu algo aparentemente diferente, mas, na realidade,
inteiramente análogo. Esse sentimento retornava nele com muita
93  
 

frequência, mas mostrava regularmente ter-se originado de um


fragmento esquecido (recalcado) de um sonho da noite anterior.
Portanto, parece que o déjà vu não só pode derivar-se dos sonhos
diurnos, como também dos sonhos noturnos.” (Ferenczi,1910 apud
Freud, 1901/1999, p.262).

A última frase de Ferenczi parece reforçar as inferências que nos levam a


aproximar os fenômenos do sentimento de realidade e o déjà vu. Assim, a nossa
hipótese é que é possível estender as conclusões de Freud a respeito do déjà vu e o
sentimento de familiaridade para o que ocorre nos fenômenos de sentimento de
realidade, de modo que esse também tenha como explicação causal os desejos
inconscientes.
O sentimento de realidade seria a denominação aplicada ao sentido de realidade
quando o julgamento perceptivo, fundado não apenas na cognição, mas também nas
sensações corporais, está voltado para eventos que mantém relação com a realidade
psíquica e aos desejos inconscientes.
94  
 

Capítulo 3

O debate para além de Freud

Veremos agora de que modo comentadores e teóricos dentro da tradição


psicanalítica trataram os termos do sentido e do sentimento de realidade a fim de
apresentar um panorama dos principais debates em torno da questão que apareceram
para além de Freud. Já adiantamos que o termo sentido de realidade aparece com mais
frequência e muitas vezes os termos “sentido” e “sentimento” são tratados de forma
equivalente12.
De início, cabe observar que em sua maior parte os comentários e as teorias em
questão não se referem, como bibliografia fundamental, às obras até aqui analisadas, A
Interpretação dos Sonhos, História de uma neurose infantil e O mal-estar na
civilização. Além disso, o problema relacionado ao sentimento de realidade advindo dos
sonhos não é mencionado por nenhum dos autores.
Cabe mencionar desde já que a perspectiva teórica desenvolvimentista do
sentido de realidade é quase onipresente nessas abordagens, mesmo que os autores não
concordem a respeito da forma como esse desenvolvimento ocorre. Esta perspectiva de
desenvolvimento, que parece ser a chave maior de leitura para o sentido de realidade,
usualmente procurará estabelecer linhas paralelas de desenvolvimento entre o suposto
progresso do sentido de realidade e a progressão do desenvolvimento libidinal e/ou do
desenvolvimento do eu. Ao final do capítulo, indicaremos como a adoção da hipótese de
desenvolvimento do sentido de realidade não deixou de ter consequências nas decisões a
respeito da condução do tratamento psicanalítico para alguns autores. Apresentaremos
apenas dois aspectos: os que envolvem a transferência e o final do tratamento.

                                                                                                                       
12
A grande maioria dos textos que serão abordados foram consultados em versão inglesa, ainda que
pudessem estar orginalmente em alemão. A maioria dos autores refere-se ao sentido de realidade como
reality sense, e apenas alguns autores se referem ao termo do sentimento de realidade, reality feeling.
95  
 

Ainda que nosso recorte esteja mais interessado no problema do


desenvolvimento do sentido de realidade, apresentaremos também ao menos algumas
partes de textos em que esteve relacionado ao teste de realidade e à perda de realidade.

3.1 Ferenczi: sentido de realidade e o fim da onipotência.

O primeiro autor da psicanálise a estudar o conceito de sentido de realidade foi


Sándor Ferenczi, médico húngaro participante da primeira geração de psicanalistas, que,
em 1913, publicou o texto O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios,
intitulado originalmente Entwicklungsstufen des Wirklichkeitssinnes. Embora em seu
artigo, ele não forneça uma definição exata para o conceito, é possível encontrar ao
longo de suas linhas algumas indicações do que seria o sentido de realidade segundo sua
concepção: adaptação à realidade; abandono da ilusão advinda do sentimento de
onipotência e aceitação das contingências; capacidade de objetivação; capacidade de
considerar a realidade do mundo externo; pensamento consciente que retarda a descarga
motora reflexa; capacidade de desfazer os vínculos entre eu e não-eu; capacidade de
representar o real mesmo este seja sentido como desagradável. Nessa lista de operações
é possível identificar como o sentido de realidade envolveria de uma só vez as
faculdades de perceber, de sentir e julgar.
A premissa básica do texto de Ferenczi consiste em que o princípio de prazer se
desenvolveria até o estabelecimento do princípio de realidade e à adaptação à realidade.
No início da vida humana, haveria o que ele denomina estágio-prazer, que deveria ser
substituído pelo estágio-realidade. Além disso, existiriam formações psíquicas nas quais
ocorreria uma espécie de mistura entre esses dois estágios, representadas pela fantasia, a
arte e a vida sexual, em que os dois princípios do funcionamento mental coexistiriam. O
objetivo do texto é investigar o desenvolvimento que levaria a organização psíquica de
um estágio a outro.

“Freud mostrou que o desenvolvimento das formas de atividade


psíquica própria ao indivíduo consiste na substituição do princípio de
prazer, predominante na origem, e do mecanismo de recalcamento que
lhe é específico, pela adaptação à realidade, ou seja, à prova de
realidade fundamentada num julgamento objetivo. Do estágio psíquico
primário, tal como se manifesta nas atividades psíquicas dos seres
primitivos (animais, selvagens, crianças) e nos estados psíquicos
primários (sonho, neurose, fantasia), surgirá, portanto, o estágio
96  
 

secundário, o do homem normal em estado vígil.” (Ferenczi,


1913/1992, p. 39).

Ferenczi afirma que buscará investigar quais seriam os estados intermediários


entre os dois modos de funcionamento e também responder sob que modos essa
mudança se daria, se seria através de uma progressão ou por etapas. Na opinião de
Ferenczi, ainda que Freud tenha lançado as bases dessa tese do desenvolvimento do
estágio-prazer para o estágio-realidade, no texto Formulações sobre os dois princípios
do funcionamento mental, os detalhes a respeito dos modos como essa mudança
ocorreria não estão demonstrados no texto. Seria preciso então buscá-los em outros
lugares do pensamento freudiano. Em sua leitura, o conceito de crença na onipotência
dos pensamentos, apresentado no caso do Homem dos Ratos13, poderia servir como
conceito chave para explorar os estados intermediários, fornecendo indicações dos
processos que ocorreriam até que o estágio do eu-realidade fosse atingido. Isso porque
se trataria de um sintoma em que “a atividade de inibição, de adiantamento e de
elaboração do pensamento, ainda não se interpôs entre o desejo e a ação” (p.41). A
crença na onipotência dos pensamentos e desejos é, então, a categoria escolhida para
fundamentar todo o sistema de desenvolvimento do sentido de realidade. Além dessa
decisão metodológica, Ferenczi também estipula que, primeiramente, irá resolver como
poderia se dar o desenvolvimento das pulsões do eu, para só então discorrer sobre as
pulsões sexuais – o desenvolvimento da realidade erótica. Para ele, a preocupação do eu
com autoconservação levaria a tarefa de agenciamento da realidade a ter “relações mais
profundas com o ego do que com a sexualidade” (p.50), e que, portanto, o estudo do
desenvolvimento do eu mereceria mais atenção devido a essa importância de sua relação
com a realidade.
Em um primeiro momento, ele se dedica, então, à elaboração de uma ontogênese
do sentido de realidade (p.51) a ser trilhada pelas pulsões do eu, através de sucessivos
impulsos de recalcamento14. Desse modo, ocorreria o abandono do sentimento de
onipotência do eu presente no estágio inicial e seria possível reconhecer a realidade

                                                                                                                       
13
Em nota de rodapé Ferenczi informa que seu artigo foi escrito antes que pudesse entrar em contato com
o trabalho de Freud Totem e Tabu, também escrito em 1913. Como vimos no capítulo anterior, Freud
apresenta junto com a análise sobre o pensamento animista, outras formulações a respeito da onipotência
do pensamento que ainda não estavam presentes no caso mencionado por Ferenczi.
14
Ferenczi deixa claro que não se trata de um impulso espontâneo o que leva o eu a se desenvolver.
Segundo o autor, seria a necessidade e a frustração que exigiriam do eu uma mudança para adaptar e
então poder sobreviver.
97  
 

contingencial da existência, ou ainda, “a substituição, imposta pela experiência, da


megalomania infantil pelo reconhecimento do poder das forças da natureza” (p.41).
Explorando o conceito de onipotência, Ferenczi se pergunta qual poderia ser a
origem dessa ilusão, expressa como sintoma na neurose obsessiva, e responde que se
trata de um “retorno da vida psíquica a uma etapa infantil do desenvolvimento” (p.40).
Trata-se de um momento da vida em que o estado ideal de estar sob domínio apenas do
prazer efetivamente acontece. Quando a criança está no útero materno, a sua condição
psíquica seria exatamente de onipotência total, já que teria os seus desejos inteiramente
assegurados pela mãe, não tendo a criança que fazer qualquer trabalho ou modificação
no mundo externo para conseguir satisfazê-los. Essa condição daria ao psiquismo da
criança a impressão de que é totalmente onipotente e pleno15. Este seria o Período de
onipotência incondicional por que passa o ser humano.
O próximo período seria o Período da onipotência alucinatória mágica em que,
agora recém-nascido, o bebê começa a ter experiências de desprazer e perturbação em
função de o estado de plenitude anterior ter sido desfeito. Nessa situação, começa a
ocorrer, então, o reinvestimento alucinatório das experiências de satisfação anteriores, a
fim de recriar a situação de plenitude da vida intra-uterina. Nesse período, a criança
continuaria a se acreditar onipotente, porque não percebe que seus desejos são
realizados pelos adultos que dela se encarregam. Por não possuir ainda a noção do
encadeamento de causas e efeitos, a criança acredita que a satisfação de seus desejos
depende apenas de seu modo de representação alucinatório e não das modificações que
as ações dos adultos produzem para satisfazê-la.
Após essa etapa, Ferenczi descreve o que seria o terceiro período, denominado
Período da onipotência com a ajuda de gestos mágicos. Nesta etapa, diante da
impossibilidade de ter todos os seus desejos satisfeitos pelo mundo externo, a criança
começaria a fazer uso de movimentos ainda descoordenados, mas que poderiam
funcionar como sinais para se obter o que deseja. Ferenczi afirma que, como ao gritar
ou se movimentar a criança usualmente acaba por receber do mundo externo o que
necessita para satisfazer seu desejo, ela, sem perceber a existência dessa ajuda, acredita
que seus sinais e movimentos são mágicos e possuem, eles mesmos, o poder de realizar
os desejos.

                                                                                                                       
15
Não conseguimos encontrar nesse texto de Ferenczi a explicação para a existência ou gênese de vida
psíquica inconsciente e presença de desejo no feto. O autor apenas afirma que “seria absurdo acreditar
que o psiquismo só começa a funcionar no momento do nascimento” (p.42).  
98  
 

Esses seriam, então, os três períodos que compõem o estágio da onipotência.


Ele também é denominado por Ferenczi de fase de introjeção do eu16, visto que durante
esse período o eu ainda não conta com a diferenciação entre seus domínios e o mundo
externo, de modo que “todas as experiências ainda estão incluídas no ego” (p.46). A
passagem para a etapa seguinte, denominada de estágio de realidade, marca uma
diferença notável em relação à anterior:

“Se até então o ser ‘onipotente’ podia sentir-se uno com o universo
que lhe obedecia e seguia os seus sinais, uma discordância dolorosa
vai produzir-se pouco a pouco no seio de sua vivência. É obrigado a
distinguir do seu ego, como constituindo o mundo externo, certas
coisas malignas que resistem à sua vontade, ou seja, separar os
conteúdos psíquicos subjetivos (sentimentos) dos conteúdos objetivos
(impressões sensoriais).” (Ferenczi, 1913/1992, p. 46).

As experiências de insatisfação fariam, portanto, com que o eu começasse a


estabelecer uma diferenciação, ainda que incipiente, entre o eu e o mundo externo e,
com ela, um novo modo de relação entre sujeito e objeto. Denominada por Ferenczi de
fase de projeção do ego, tem-se como referência o momento em que o eu começaria a
projetar no mundo externo o seu próprio modo de funcionamento como uma primeira
forma de objetivação da realidade. Não por acaso, Ferenczi define como primeiro
período desse novo estágio o modo animista de apreender a realidade, “em que todas as
coisas se lhe apresentam como animadas e em que tenta reencontrar em cada coisa seus
próprios órgãos” (p.47).
Progressivamente, a criança começaria a supor que a satisfação de seus desejos
está condicionada a determinados fatores, acarretando, assim, o decréscimo em sua
sensação de onipotência e a criação sucessiva de métodos que a auxiliem no
agenciamento e na representação do mundo externo. Para Ferenczi, o modo privilegiado
de figuração encontrado pela criança é a linguagem verbal, a qual possibilita expressar
de forma mais econômica os desejos, além de permitir a formação de processos de
pensamento consciente.
Porém, Ferenczi considera que mesmo nessa nova configuração psíquica de
representação da realidade ainda existiriam traços do sentimento de onipotência do eu.
Isso porque a aquisição da linguagem verbal e gestual possibilita uma facilitação da

                                                                                                                       
16
De acordo com o Vocabulário da Psicanálise de Laplanche e Pontalis (2001), Ferenczi foi o primeiro a
teorizar a respeito do conceito de introjeção a partir do conceito de projeção, em 1909, com o texto
Transferência e Introjeção.
99  
 

expressão de desejos e permite à criança fazer seus pedidos, de modo mais rápido e
fácil, aos adultos que dela estão encarregados. Por sua vez, os sinais da mímica facial,
que acompanham o pensamento da criança, seriam facilmente lidos pelos adultos, em
uma espécie de “leitura dos pensamentos” da criança, de modo que seus desejos seriam
assim facilmente interpretados e satisfeitos por quem dela cuida. Esse estágio foi
denominado por Ferenczi como Período dos pensamentos e palavras mágicos.
Em todos os períodos indicados por Ferenczi, é possível constatar como o
sentimento de onipotência do eu infantil seria um derivado do modo de relação que se
estabelece entre a criança e o adulto cuidador, dado que, diante da simples manifestação
de desejo da criança, o adulto agiria para satisfazê-la. Em virtude disso, Ferenczi supõe
que é apenas quando essa relação termina que poderia cessar o princípio de prazer e
ocorrer uma queda no sentimento de onipotência. Nesse momento a criança poderia
conceber que entre seu desejo e a possibilidade de sua satisfação são necessários ação,
espera, compreensão dos condicionamentos, determinações e cadeias de causa e
consequência.

“Só depois que a criança fica completamente desligada de seus pais no


plano psíquico é que, diz Freud, cessa o reinado do princípio do
prazer. É também nesse momento, extremamente variável segundo os
casos, que o sentimento de onipotência cede lugar ao pleno
reconhecimento do peso das circunstâncias. O sentido de realidade
atinge o seu apogeu na ciência onde, em contrapartida, a ilusão de
onipotência cai para o seu nível mais baixo; a antiga onipotência
dissolve-se em meras “condições” (condicionalismo, determinismo).
Encontramos, porém, na teoria do livre-arbítrio, uma doutrina
filosófica otimista que ainda realiza as fantasias de onipotência.”
(Ibid., p. 49).

É interessante notar, nessa passagem, uma espécie de correlação existente,


mesmo que incipiente, entre a ontogênese do sentido de realidade e as formas de
conhecimento científico e filosófico, e mesmo formas de sociedade, como as chamadas
primitivas e civilizadas. Ainda que sustentasse que a confirmação de uma filogênese do
sentido de realidade era, na época, apenas uma profecia científica, Ferenczi não
duvidava que a psicanálise conseguiria, um dia, “estabelecer um paralelo entre, por um
lado, os diferentes estágios evolutivos do eu, bem como seus tipos de regressão
neuróticos, e, por outro lado, as etapas percorridas pela história da espécie humana”
(p.51).
100  
 

No entanto, mesmo supondo que o processo de ontogênese pudesse vir a ser uma
repetição da filogênese do sentido de realidade, Ferenczi não acreditava que o processo
de conquista da percepção objetiva da realidade resultasse de uma espécie de “tendência
para a evolução” natural e instintiva do psiquismo. Segundo ele, para que o
desenvolvimento do sentido de realidade ocorresse, era indispensável que houvesse
pressões e frustrações, impostas pelo meio externo, que pudessem forçar a criança a
recalcar seus modos de satisfação dos períodos iniciais – processo este contra o qual a
criança resistiria. Essa aparente contradição no texto de Ferenczi talvez encontre uma
explicação na concepção mesma que o autor apresenta em seu texto a respeito do motor
da evolução da humanidade enquanto espécie. Segundo o autor, seriam as catástrofes
naturais e geológicas ocorridas ao longo da história que teriam impulsionado a
humanidade enquanto espécie a abandonar seus modos de organização sociais
estabelecidos e evoluírem construindo novas formas de civilização. Desse modo, não
teria sido a constituição biológica ou natural do homem a explicação para os processos
de ontogênese ou filogênese, mas sempre as mudanças do meio externo como hipótese
causal para as sucessivas ondas de recalcamento. Nesse sentido, o desenvolvimento
filogenético está sempre aberto às contingências.
Ao menos no que se refere à ontogênese, o recalcamento não eliminaria do
aparelho psíquico os traços mnêmicos dos períodos superados, sendo possível a eles
retornar por caminhos normais ou patológicos. O retorno normal se daria através dos
sonhos, em alguns gestos simbólicos e alguns pensamentos filosóficos otimistas que
preservariam vestígios do pensamento onipotente no campo da normalidade. Fora
dessas cercanias estariam as fixações nos estágios de onipotência do desenvolvimento,
as quais determinam os quadros psicopatológicos das neuroses e psicoses,
principalmente as alucinações. Entre esses dois terrenos, a zona de fronteira formada
pela fantasia, pela arte e a vida sexual, zona em que, de acordo com Ferenczi,
“coexistem os dois princípios do funcionamento psíquico” (p.40).
É possível notar como, nesse texto, Ferenczi retoma muitas das teses freudianas
presentes em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental e Totem e
tabu. A separação da criança em relação aos pais no plano psíquico é novamente
tomada como um referencial importante para a instalação do princípio de realidade, uma
vez que seria o momento em que “cessa o reinado do princípio de prazer”. Além disso, a
assim como em Freud, Ferenczi afirma que é necessário que haja frustração para que o
101  
 

desenvolvimento ocorra. A repetição da filogênese na ontogênese só poderá se dar se


for impelida pelas condições do meio externo.

3.2. Edward Glover – o sentido de realidade e a perversão.

Outro texto importante para a história dos estudos do conceito do sentido de


realidade entre os teóricos da psicanálise é o artigo de Edward Glover, publicado em
1933 no International Journal of Psycho-Analysis, intitulado The Relation of Perversion
- Formation to the Developmentof Reality-Sense. Embora o artigo de Glover esteja mais
voltado para a discussão os caminhos de investigação que pudessem descobrir e
estabelecer uma escala de estágios no percurso do desenvolvimento do sentido de
realidade, é na sua hipótese, segundo a qual a perversão poderia ser um modo de
manutenção do sentido de realidade nos momentos em que essa função falha, que reside
a originalidade de seu texto.
Glover parte da dificuldade de definir os conceitos que são objetos de sua
pesquisa, e afirma que “os termos ‘realidade’, ‘sentido de realidade e ‘teste de
realidade’ são frequentemente utilizados na literatura psicanalítica, mas muito raramente
definidos” (p. 486). Ele propõe então uma distinção operacional entre os termos, apenas
com a finalidade de estudar o conceito do sentido de realidade. Em sua opinião, a
definição de tais conceitos poderia ser estabelecida do seguinte modo: o sentido de
realidade como uma capacidade que pode ser inferida analisando o processo do teste de
realidade; por sua vez, o teste de realidade efetivo, “para qualquer sujeito que passou a
idade de puberdade” (p.486), seria a capacidade de manter o contato psíquico com os
objetos que têm a capacidade de satisfazer o instinto; e, por fim, a objetividade é a
capacidade de avaliar corretamente a relação entre os impulsos do instinto e os objetos
do instinto, além de capacidade de avaliar se o instinto pode ser satisfeito no momento
presente ou no futuro. Portanto, na definição de Glover, o sentido de realidade seria um
produto do teste de realidade.
O autor apresenta, então, um quadro geral a respeito dos estudos mais relevantes
sobre o tema do sentido de realidade feitos até aquele momento, detectando três
perspectivas principais. A primeira delas teria sido a inaugurada por Ferenczi, com o
texto acima mencionado, mas que é, na avaliação de Glover, incompleta em muitos
aspectos. Em primeiro lugar, a teoria de Ferenczi não teria sido capaz de estabelecer
para cada etapa do desenvolvimento do sentido de realidade um sistema de organização
102  
 

libidinal correspondente. Em outros termos, ele teria conseguido apenas estabelecer para
cada estágio do sentido de realidade um tipo de relação com o mundo externo e seus
objetos, mas não teria sido capaz de formular uma descrição correspondente da natureza
dos objetos pulsionais envolvidos. Para Glover, a solução parcial para esse problema
surgiu com o texto de Abraham, que descreveu a série de desenvolvimento de objetos
libidinais17 e poderia ser relacionada ao desenvolvimento do sentido de realidade. Além
disso, Glover não concorda com a separação feita por Ferenczi entre o desenvolvimento
do eu e o desenvolvimento da libido para o estudo do desenvolvimento do sentido da
realidade, isolando-os em duas séries de desenvolvimento independentes. Glover
considera que essa disjunção não é legítima e tampouco encontra respaldo clínico, uma
vez que, em sua experiência, nunca atendeu um caso em que a regressão da libido e a
regressão do eu não ocorressem juntas.
A segunda perspectiva de investigação do sentido de realidade teria sido aberta
por Federn, relatada no texto Narcissism in the structure of the ego (1927), em pesquisa
junto a pacientes com sintomas de despersonalização e alienação. Por meio de métodos
introspectivos, ele tenta aí “estabelecer os limites de um eu narcisista” (p.487), limites
estes que auxiliariam a analisar a capacidade de reconhecimento de objeto e de
avaliação da realidade. Segundo Glover, Federn conseguiu assim estabelecer uma
gradação da sensação de limites do eu corporal e correlacioná-la com variações na
regressão do eu. Glover acredita que mais estudos a respeito da sensação de limites do
eu comparados com a regressão do eu possam ser relacionados com um
desenvolvimento do sentido de realidade, mas aponta que essa vertente de investigação

                                                                                                                       
17
Glover refere-se à teoria de Karl Abraham a respeito dos estágios de desenvolvimento da libido,
presente em diversos de seus escritos, mas apresentada de modo mais detalhado no texto Breve estudo do
desenvolvimento da libido, visto à luz das perturbações mentais, de 1924. Essa teoria foi criada quando
Abraham tentava estabelecer um modelo explicativo mais amplo para as neuroses e as psicoses, no qual
estivessem relacionados a gênese e o quadro clínico das psicopatologias com as fixações e as regressões a
determinadas etapas do desenvolvimento libidinal. De acordo com o modelo proposto por Abraham,
haveria, no caminho da evolução libidinal, três etapas principais a serem percorridas, cada qual
subdividida em outros dois estágios, dispostas em ordem cronológica e progressiva: fase oral (fase oral
primitiva e fase oral posterior), fase sádico-anal (fase sádico-anal primitiva e fase sádico-anal posterior) e
a fase genital (fase genital inicial- fálica e fase genital final). Comparadas pelo autor “a um horário de
trens expressos, no qual figuram apenas as estações de maiores paradas” (p.155), cada um desses tempos
da organização libidinal corresponde a um determinado tipo de relação com o objeto, indo do auto-
erotismo (ausência de objetos externos) até chegar à relação com o objeto exterior ao eu, passando pelo
narcisismo.
103  
 

apenas será profícua se o conceito de narcisismo utilizado e aceito pelos psicanalistas


não fosse tão rígido quanto adotado até aquele momento (p.487)18.
A terceira linha de estudo considerada por Glover teria sido aberta por Melanie
Klein, beneficiada com o atendimento psicanalítico com crianças, o que lhe teria
possibilidade acessar mais dados para a teorização do problema. Segundo Glover, a
pesquisa inaugurada por Klein teria sido a primeira tentativa de descrição dos estágios
de estabelecimento da relação com a realidade acompanhado do conteúdo mental
característico de cada uma dessas fases e suas relações com as formações neuróticas e
psicóticas. Haveria também, nessa linha, a ênfase na importância dos mecanismos de
projeção e introjeção, na consideração da dinâmica entre o id e o superego e a
importância do papel da angústia como motivadora de defesas contra a realidade. Esse
último aspecto seria fundamental para o estudo dos estágios de desenvolvimento do
sentido de realidade, que não deveria se restringir a tentar relacionar tais estágios com o
desenvolvimento de objetos libidinais, como também inserir na pesquisa as questões a
respeito da ansiedade e do controle da ansiedade. Para Glover, é evidente que “os
estágios do desenvolvimento do sentido de realidade deveriam ser considerados não
apenas em termos de pulsão e objeto, mas deveriam estar relacionados aos estágios de
dominação da ansiedade” (p.487), às fantasias primárias e aos mecanismos para lidar
com a ansiedade. Glover considera que, para Klein, as relações estáveis com a realidade
e a conquista da objetividade não podem ser estabelecidas enquanto as ansiedades
primitivas não tiverem sido dominadas. O sentido de realidade dependeria, assim, da
emancipação dos sistemas corporais e ambientais de percepção da interferência
excessiva dos mecanismos de projeção e introjeção. Como resultado do processo
alternado de projeção e introjeção, a relação da criança com a realidade objetiva se torna
distorcida e irreal.
Em termos de pesquisa, entretanto, Glover defende que seja possível conseguir
estabelecer os dados a respeito dos estágios evolutivos do sentido de realidade não
somente através do estudo com crianças, mas também com adultos, especificamente os
casos que apresentem alguma forma de psicopatologia. A proposta do autor consiste em
que os estudos com as psicopatologias possam fornecer dados a respeito do
desenvolvimento, funcionando como uma espécie de reflexo distorcido do que ocorreria

                                                                                                                       
18
Não encontramos qualquer indicação no texto de Glover que pudesse esclarecer essa afirmação a
respeito da rigidez do conceito de narcisismo que vinha sendo adotado. O autor não cita nenhum teórico
ou linha da psicanálise que exemplificasse sua assertiva.
104  
 

com o desenvolvimento normal. No entanto, ele frisa que, afim de que os estágios que
compõem a linha de desenvolvimento do sentido de realidade sejam melhor
discriminados, é necessário que a classificação das patologias também fique mais bem
elaborada, não se limitando apenas à neurose e à psicose.
Glover busca chegar a essa classificação, incluindo em sua pesquisa também os
transtornos do caráter. Isso lhe teria permitido traçar séries de desenvolvimento
paralelos de acordo com a predominância dos mecanismos de projeção ou introjeção e
entender o que haveria em termos de estágios de desenvolvimento entre os pólos
representados pela neurose e psicose. Segundo ele, esses transtornos poderiam ser
entendidos como estados transicionais entre essas patologias.
Como exemplo desse estudo, ele fornece os dados da pesquisa com a adição em
drogas, que seria, no que se refere ao mecanismo de projeção, um estado situado entre
as paranoias e as formações de caráter obsessivas. Isso porque, na adição, o mecanismo
de projeção estaria mais bem localizado e disfarçado do que ao se fazer presente nos
casos de paranoia – uma vez que se encontra focado apenas nas substâncias nocivas –,
mas apareceria na adição com mais força do que nos distúrbios obsessivos. Segundo o
autor, o viciado, ao localizar seu sistema paranoico na droga, “está apto para preservar
seu sentido de realidade do distúrbio paranoico absoluto” (p. 490). Glover afirma que,
na ausência de uma escala de desenvolvimento do sentido de realidade estabelecida
pelos psicanalistas, ele vai expressar o que ocorreria nesses casos nos termos de estágios
libidinais: enquanto o paranoico regressa para o estágio oral-anal de realidade, o viciado
regressa ao ponto em que a criança está saindo desse estágio. Essa etapa do
desenvolvimento é caracterizada por ele do seguinte modo:

“Em outras palavras, até esse ponto o mundo externo foi representado
como uma combinação de açougue, lavatório público sob um
bombardeio, e um quarto post-mortem. E um viciado converte isto em
uma farmácia tranquilizadora e fascinante, na qual, no entanto, o
armário de veneno é mantido destrancado. Tendo neste momento
reduzido os perigos paranoicos do mundo imediato, a criança (ou o
dependente) ganha espaço suficiente para olhar para fora da janela (e
avaliar a realidade objetiva).” (Glover, 1933, p. 491, nossa tradução).

Entretanto, a questão de Glover aqui é ainda classificatória. O problema reside,


segundo ele, em como localizar o vício em substâncias na série de desenvolvimento das
psicopatologias, de modo a ser possível estruturar a linha de desenvolvimento do
sentido de realidade. Embora tenha sido revelada uma forma de relação com a realidade
105  
 

peculiar nos casos de dependência química, a questão de Glover até aqui não é tanto
analisar esse efeito da substância na relação do dependente com a realidade, mas como
poder utilizar essa descoberta na construção de uma série classificatória.
Glover afirma que esse estudo com os dependentes químicos “revelou um outro
problema na classificação que é a significação das formações perversas e fenômenos
fetichistas que comumente acompanham adições com drogas” (p.491). Segundo Glover,
sempre houve problema, para ele, em conseguir situar as perversões em uma escala de
desenvolvimento psicopatológica, mas que sua ideia inicial era fazer uma única série de
desenvolvimento que iria da psicose à neurose, com formações perversas intercalando
essas psicopatologias em diversos pontos. A série inicial que havia imaginado ficaria
assim disposta: psicoses, os fenômenos transitórios e as formas mais primitivas de
perversões polimorfas, a neurose obsessiva, os fetiches e a perversão homossexual e
então a histeria, inibições sexuais e sociais e as ansiedades sociais. Entretanto, Glover
afirma que essa classificação não se sustentou por muito tempo, por diversas razões,
mas principalmente porque “a análise de perversões homossexuais, neurose obsessiva e
de estados psicóticos evidenciou de forma direta e indireta uma ordem regressiva e de
desenvolvimento muito mais complicada” (p.492).
A fim de elucidar essa ordem regressiva complexa, ele apresenta um caso de
perversão homossexual que, após um trauma, apresentou como efeito imediato não
somente um reforço de suas características esquizofrênicas anteriores como também
uma regressão a uma fase passiva da homossexualidade e então a uma fase mais
primitiva de um cerimonial de excreção, com componentes ativos e passivos. Segundo
Glover a característica principal dessa regressão era o enfraquecimento de uma
verdadeira relação de objeto em favor de relações de objetos parciais. Entretanto, para
além dessa diferença com a relação com o objeto, Glover afirma que,

“(...) esses cerimoniais atuavam como uma proteção contra as


ansiedades suscetíveis de induzir o processo esquizofrênico. Em
outras palavras, eles auxiliavam em manter em algum grau o sentido
de realidade do paciente. O cerimonial perverso não era constante:
eles alternavam com as fases de depressão esquizofrênica. Entre os
cerimoniais ele tornava-se nitidamente esquizofrênico: o seu sentido
de realidade sofria uma extrema diminuição.” (Ibid., p.493, nossa
tradução).

Glover então retoma os casos em que há regressão aos interesses fetichistas,


tanto em casos de estados transitórios como nos casos de dependência com drogas. Essa
106  
 

regressão também teria efeito estabilizador no sentido de realidade do paciente ao


operar alguma espécie de tratamento da ansiedade:

“Previamente, eu já relatei um caso no qual um neurótico obsessivo


passou por uma fase de vício em drogas, cujo término foi sinalizado
por uma regressão paranoica transitória. Durante a recuperação da fase
paranoica, uma formação fetichista temporária foi observada. Isso
evidentemente funcionou como um substituto da reação paranoica
com a realidade. Ao localizar a ansiedade em um conjunto neutro e
simbólico de um órgão corporal (pernas), e ao combatê-la por um
processo de libidinização (formação fetichista), o paciente estava apto
a recuperar as relações com a realidade”. (Ibid., p.494, nossa
tradução).

Segundo Glover, ao localizar a ansiedade numa parte do organismo


simbolicamente neutra e tendo neutralizado essa parte através do processo de
libidinização, o paciente poderia então recuperar as suas relações com a realidade. A
importância do estudo das perversões na relação com o sentido de realidade reside em
que o retorno aos fenômenos fetichistas ou formações perversas representariam
tentativas do paciente de se proteger contra a ansiedade, conseguindo assim manter uma
relação estável com a realidade.
Após apresentar essa tese sobre o caráter estabilizador da regressão a formas
perversas primitivas e fenômenos fetichistas para o sentido de realidade, Glover retorna
ao problema da classificação das séries de desenvolvimento. Ele sugere então que a
perversão teria uma série própria de desenvolvimento que é paralela à série das
psicoses, estados transicionais, neuroses e inibições sociais. Ou seja, a hipótese inicial
de uma série única de classificação das psicopatologias em relação ao sentido de
realidade não se mantém e é substituída por essa segunda hipótese das séries paralelas
de desenvolvimento. A questão de Glover que permanece até o fim do texto consiste em
saber se a série da perversão apenas ajudaria os casos patológicos presentes na outra
série a manter o sentido de realidade, ou se a própria série da perversão indicaria a
forma como o sentido de realidade se desenvolveria.
Essa tese de Glover se conecta um pouco com um artigo de Obendorf, intitulado
On Retaining the Sense of Reality in States of Depersonalization, também publicado no
International Journal of Psycho-Analysis . Aparecido em 1939, esse texto inicia a série
de pesquisas que têm como tema principal a relação do sentido de realidade com a
despersonalização e que será cada vez mais frequente ao longo dos anos. Na realidade,
107  
 

não há nenhuma afirmação sobre a existência ou não de um desenvolvimento do sentido


de realidade, mas também não há nenhuma definição para o que seria o sentido de
realidade ao longo de todo o texto. O artigo está voltado à revisão da literatura sobre a
despersonalização, mas apresenta uma hipótese que parece estar relacionada com o
artigo de Glover, ainda que não o mencione. Em uma das considerações sobre a
despersonalização, Obendorf declara que muitos pacientes com esses sintomas elegeram
alguns objetos ou situações que teriam a capacidade de funcionar como recursos para
“manter a realidade” (p. 140). Esses objetos, que seriam sempre inofensivos, segundo
Obendorf, ainda não tiveram sua função simbólica profundamente estudada, mas
poderiam levar a esclarecer as causas que levaram à despersonalização.

3.3 Zilboorg e Frumkes: dois modelos de desenvolvimento para o sentido de


realidade.

O artigo de Gregory Zilboorg, The Sense of Reality, publicado no


Psychoanalytic Quarterly em 1941, consiste em uma comunicação feita à Sociedade
Psicanalítica de New York. Ele tece aí comentários a respeito do rumo das pesquisas
sobre o tema da realidade, apresentando alguns textos freudianos e expondo sua
concepção de desenvolvimento do sentido de realidade. Na avaliação do autor, embora a
psicanálise tivesse feito progressos nos últimos anos nas pesquisas a respeito das
funções do eu e seus mecanismos de defesa, pouco havia avançado em termos de
conhecimento sobre a relação entre o eu com a realidade. O autor tampouco se atém a
essa questão a respeito do estado atual das pesquisas, e passa a revisar alguns textos de
Freud sobre a questão da realidade, como Formulações sobre os dois princípios do
funcionamento mental e Totem e tabu. Seu argumento ao longo da comunicação se
fundamenta essencialmente sobre o segundo texto freudiano, uma vez que irá traçar
paralelos entre a questão do sentido de realidade e as fases do pensamento animista e
científico, nos quais tocamos indiretamente quando analisamos, no primeiro capítulo, as
relações entre os sistemas de pensamento e os princípios de prazer e o de realidade.
Em sua definição, o sentido de realidade não é um resultado estático derivado de
um desenvolvimento psicológico, mas uma qualidade do aparelho psíquico que é fluida,
mutável e inconstante, uma qualidade que nos permite dominar e modificar o que é
factual e concreto a nosso favor. Essa qualidade dependeria dos elementos pulsionais
que geram a realidade psíquica e que se tornam uma parte integral de cada nova
108  
 

representação de objeto formada. Ele afirma que as imagens dos objetos que estão
presente no aparelho aparato psíquico não são equivalentes às imagens fotográficas
estáticas, mas sim representações do objeto que estão investidas de libido e
correlacionadas ao nosso sistema sensório-motor. Além disso, a capacidade de fazer
representações não seria um resultado primário e espontâneo da atividade psíquica, mas
um processo que levaria tempo – nos níveis filogenético e ontogenético – para se
estabelecer.
Zilboorg afirma que no estágio animista, em que se encontrariam os primitivos e
as crianças, as imagens do mundo externo não produziriam representações psíquicas e
seriam apreendidas como se fossem os objetos eles mesmos. Nessa etapa, o sonho e as
fantasias teriam o mesmo peso que a realidade, uma vez que, nesse período, o
psiquismo, além de apreender o fenômeno externo apenas por suas aparências, também
projetaria para o mundo externo as próprias imagens que produziu.
Na etapa seguinte, que o autor denomina “fase de realidade objetiva”, ainda se
realizariam, de alguma forma, projeções animistas características da fase anterior,
apesar de já se demonstrar uma nova forma de percepção, capaz de diferenciar as ideias
e as percepções. Segundo o autor, essa nova fase se caracteriza pela percepção melhor
da realidade e pelo estabelecimento de diferenciações com a fantasia. Porém, quando
uma imagem concreta é percebida e incorporada, ela ainda estaria envolvida em uma
luta de combinações de impulsos destrutivos, de identificações, de reações de auto-
preservação e projeções mágico animistas, todos esses elementos influenciando na
representação dos objetos. Dessa forma, embora o ser humano aprimore sua visão da
realidade ao passar da fase animista para a fase realista, nunca haveria uma
representação puramente objetiva da realidade. Zilboorg enfatiza que, para que fosse
possível haver esse estado ideal de apreensão da realidade, seria preciso que não
houvesse fantasias, desejos, sentimentos ou contradições na mente humana.
Assim, de acordo com a concepção de Zilboorg, o ser humano estaria localizado
em um ponto entre dois estados absolutos representados pelo pensamento animista e
realista. Existiriam diversas gradações entre os estados, transições imperceptíveis,
misturas de elementos dos dois em várias proporções. Ele afirma que uma mistura
harmônica de elementos dos dois estados constituiria a saúde do aparelho psíquico,
impedindo a ocorrência dos distúrbios de apreensão de realidade – distúrbios estes que,
segundo ele, não seriam necessariamente patológicos.
109  
 

Segundo as considerações do texto de Zilboorg a respeito dos modos de


disposição das fases do pensamento, mesmo o pensamento científico apresentaria traços
heterogêneos de pensamento anímico e realista. O autor dedica boa parte do artigo a
ilustrar, através de dados biográficos de cientistas e também através das próprias teorias
científicas, sua hipótese de que as duas formas de pensamento estariam sempre
enlaçadas. Para ele, as dificuldades básicas que a ciência encontra para atingir seu
objetivo de conhecer o mundo seriam as mesmas dificuldades encontradas no
desenvolvimento do sentido de realidade. Trata-se para ele dos seguintes obstáculos: a
constante pressão do hedonismo, que faz com que o homem veja-se como o fenômeno
mais singular da natureza; as tendências animistas que sempre ameaçam invadir o eu; as
projeções animistas e fantasias antropocêntricas que sempre levam o eu a perceber o
mundo externo de um modo narcísico. Ele conclui afirmando que o sentido de
realidade, embora tenha um desenvolvimento da fase animista para a fase científica e
realista, por sofrer as ações de fantasias e pulsões, nunca será totalmente uma percepção
objetiva da realidade, sendo sempre um sentido incerto devido ao seu “estado eterno de
equilíbrio instável” (p.209).
Ao final do artigo de Zilboorg, o que resulta mais importante de suas afirmações
não parece ser propriamente um desenvolvimento do sentido de realidade, mas uma
espécie de combinação harmônica de elementos das duas fases que deve se manter
estável para que os distúrbios não ocorram. Na maneira como está exposto, o
desenvolvimento do sentido de realidade envolveria algumas modificações para o
aparelho psíquico, mas manteria os elementos da fase animista inicial e não formaria
uma estrutura totalmente inovadora.
Uma concepção bem diferente será delineada no texto de Frumkes, intitulado
Impairment of the Sense of Reality as Manifested in Psychoneurosis and Everyday Life
(1953). Nele o autor procura fazer uma apresentação da relação de dez pontos que
poderiam servir como indicações para a avaliação de um sentido de realidade maduro.
Novamente, os textos freudianos mais aludidos serão Formulações sobre os dois
princípios do funcionamento mental (1911) e Totem e Tabu (1913), os quais analisamos
no primeiro capítulo.
A definição que encontramos para o termo sentido de realidade na concepção de
Frumkes é apenas aquela que pode ser deduzida do catálogo de suas dez funções. Logo,
o sentido de realidade será a presença de um eu forte; a diminuição do poder dos
instintos; a capacidade de conseguir estabelecer boas relações de objeto; a inexistência
110  
 

de perdas das fronteiras do eu. Quanto a esta última definição, o texto indica que seria a
demonstração mais clara do alcance do sentido de realidade: a capacidade plena de
diferenciação entre o eu e o ambiente externo.
Na concepção de Frumkes, o sentido de realidade é resultado do estabelecimento
do princípio de realidade e do funcionamento do teste de realidade que se estabelecem
como um crescimento natural do organismo, para evitar a dor e gratificar o instinto.
Ainda que o comportamento humano seja determinado pelo princípio de prazer, o
princípio de realidade deverá começar a funcionar como um controle e uma
consideração da realidade, que poderá facilitar o comportamento a conseguir alcançar o
prazer e fugir da dor.
No entanto, Frumkes admite que essa transformação natural que leva o
organismo a abandonar o princípio do prazer e começar a se interessar por uma
adaptação realista não é um processo fácil. Esse crescimento ocorreria na forma de um
desenvolvimento que requer tempo e esforço para que se aprenda a adiar, alterar e até
mesmo sacrificar o prazer em alguns casos. Além disso, a maturação do sentido de
realidade não dependeria apenas do indivíduo, sendo também fruto da educação que lhe
é dada por seus cuidadores desde a infância, que podem treinar e ensinar as crianças
sobre os modos de funcionamento e os fatos do ambiente externo. Além disso, a
educação promoveria o princípio de realidade usando o amor como recompensa, e
poderia falhar caso a criança receba esse prêmio independentemente do seu
comportamento. Entretanto, é necessário que haja uma espécie de equilíbrio, pois, se o
desenvolvimento do princípio de realidade pode ser retardado se houver muita
indulgência, poderá também ser prejudicado se, por outro lado, a criança ficar muito
ansiosa com os excessos de comandos e de ensinamentos.
O autor então apresenta os dez critérios para avaliar as condições do
desenvolvimento individual do sentido de realidade. Não são dez etapas do
desenvolvimento, mas dez critérios que devem constar no bom sentido de realidade de
uma pessoa. O primeiro critério de avaliação consiste em verificar se está presente a
capacidade de retardar as ações e assim conseguir pensar e repensar para avaliar se a
ação é possível e qual é o momento para executá-la.
O segundo critério é a habilidade para empregar a ação de modo correto, a fim
de buscar as mudanças desejadas no ambiente e conseguir a satisfação. É importante
que a pessoa consiga agir com o objetivo de conseguir a satisfação e não somente para
descarregar a tensão.
111  
 

O terceiro critério de avaliação consiste, como mencionamos acima, uma das


mais importantes funções do sentido de realidade para o autor: a capacidade de
diferenciação entre o eu e o não-eu. O estabelecimento dessa competência conseguiria
levar o aparelho a conseguir diferenciar as ideias internas dos objetos externos,
evitando, assim, a ocorrência de alucinações e do pensamento mágico. Segundo o autor,
é preciso que o organismo entenda que a onipotência incondicional não funciona como
método para obtenção de satisfação (esse seria o quarto critério), e que a presença da
necessidade da satisfação não garante que a satisfação ocorra (quinto critério).
O sexto critério de avaliação seria a compreensão de que as ações simbólicas não
trazem satisfação e que os objetos externos não são influenciados pelas mesmas, sendo
necessário agir de modo correto para ser gratificado. O sétimo critério consiste em ser
quase um desdobramento do anterior: conseguir separar o símbolo do objeto e também
conseguir entender que objetos que possuem características similares não são
necessariamente o mesmo objeto.
Frumkes apresenta como oitavo critério a capacidade de se estar atento para a
tentação de negar a realidade (p. 124), porque ela traria dor para o organismo. Segundo
ele, “a pessoa com um bom senso da realidade está apta a tolerar uma boa parcela de
tensão” (p. 124). O nono critério é o “alerta contínuo” (p. 124) para não atribuir
onipotência a qualquer coisa, pois quando um objeto é considerado como onipotente a
pessoa pode, por identificação, considerar que ela própria é onipotente e, assim, reviver
a ilusão da identidade com o mundo externo, perdendo novamente os limites de seu eu.
O último critério seria a capacidade do eu de conseguir reconhecer não apenas as
demandas dos impulsos do id, mas também as demandas do superego e da realidade
externa. Esse critério seria uma forte evidência de que o eu estaria realmente
conseguindo realizar a sua função de forma integral. Segundo Frumkes, esse critério
seria de difícil descrição, pois seus detalhes só poderiam ser obtidos através de relato de
pacientes que já terminaram suas análises.
Nesse texto, há uma orientação clara para a análise, já que o seu término deveria
levar o paciente a conseguir alcançar o sentido de realidade de modo integral. Isso
significaria, segundo o autor, não apenas conseguir minimizar os sintomas e dotar o
paciente da capacidade de usufruir da vida sexual plena e do trabalho. Também seria
possível para o paciente formar fantasias, fazer chistes e brincadeiras, indicando que a
pessoa se sente segura para abandonar temporariamente a realidade, já que estaria certa
a respeito de sua capacidade de encontrar o caminho de volta.
112  
 

Para Frumkes, o desenvolvimento do sentido de realidade nunca é um processo


que se completa totalmente em função das limitações do homem para enfrentar o
mundo, um ambiente que está em constante estado de fluxo e mudança. Uma vez que o
organismo biológico precisa de recursos do mundo externo para sobreviver, e uma vez
que o universo externo possui infinitos problemas e mudanças constantes, o sentido de
realidade não deve assumir posições rígidas, para melhor se adaptar a esse cenário e
conseguir a gratificação para o organismo, De acordo com Frumkes, este é um processo
de equilíbrio variável.
Portanto, o conceito de sentido de realidade parece ser, afinal das contas, um
modo de adaptação do organismo ao ambiente, funcionando como uma forma de bom
senso e controle para fins de garantia de sobrevivência e gratificação. Dessa maneira
Frumkes apreende o sentido de realidade e seu desenvolvimento de maneira bem
diferente daquela realizada por Zilboorg. Para este o sentido de realidade nunca poderia
tornar-se absoluto em função das características do aparelho psíquico, que não
permitiriam obter uma visão totalmente realista do mundo externo. Já para Frumkes é o
próprio mundo externo, por sua característica de estar em constante transformação, que
leva o sentido de realidade a não assumir uma forma fixa.

3.4 Hurvich e Abend – o sentido e o teste de realidade.

Caber agora examinar dois textos importantes para o contexto de nossa pesquisa:
aquele de Marvin Hurvich, On the Conceptof Reality Testing (1970), e o de Sander
Abend, Some Observations on Reality Testing as a Clinical Concept (1982). Como
atestam os títulos, tratam-se de textos dedicados ao tema do teste de realidade.
Procuraremos examinar aqui não o argumento integral de seus textos, mas apenas o que
se pode extrair deles a respeito do conceito de sentido e sentimento de realidade. Este
último termo é citado apenas por Abend.
Como veremos, a questão principal que surge na afluência dos conceitos de
sentido de realidade e teste de realidade é essencialmente o problema de definição e
delimitação entre os conceitos. Nos trechos em que fazem menção ao sentido de
realidade, os autores estão interessados em demarcar qual seria a diferença dele para o
teste e o que caberia a cada um deles em termos de função no aparelho psíquico. Essa
tarefa é bem mais evidente no texto de Hurvich, pois o autor se dedica a elencar todos
113  
 

os elementos que compõem o teste de realidade e, a fim de ganhar mais precisão nessa
tarefa, a separação dos conceitos torna-se importante.
Marvin Hurvich começa seu artigo afirmando que, embora as funções do eu
tenham sido já bastante discutidas em psicanálise, pouco se conseguiu em termos de
explicações a respeito de funções específicas do eu. Ele apresenta seu objeto de estudo,
o teste de realidade, através de uma revisão deste conceito nas obras de Freud desde o
Projeto até O Mal-estar na civilização. Em seguida, ele destina toda uma seção de seu
texto para apresentar uma revisão bibliográfica de autores que procuraram estabelecer
diferenciações entre o sentido e o teste de realidade.
Hurvich inicia apresentando o texto de Ferenczi (1913) e Glover (1933). Em
seguida, comenta um livro de Federn, intitulado Ego Psychology and the Psychoses
(1952), no qual o autor, para versar sobre o estabelecimento das fronteiras do eu,
estabelece diferenciações teóricas mais precisas entre o sentido e o teste de realidade.
Hurvich afirma que, para Federn, “o conhecimento do organismo humano a respeito do
que ele sente como sendo pertencente ao ego em oposição ao não-ego está baseado na
sensação, que ele denominou sentido de realidade, mais do que no mecanismo ou
função do teste de realidade” (p. 300). Segundo Hurvich, o conceito do ego para Federn
está baseado na experiência corporal e mental e que ele concordava com a noção
freudiana segundo a qual a distinção original entre o interno e o externo resultava de
movimentos corporais e sensações motoras. Com o tempo, essa base motora que
diferencia o externo e o interno seria substituída pelas fronteiras do eu. Caberia ao
sentido de realidade, e não ao teste de realidade, fazer a distinção entre o interno e o
externo.
Em seguida, Hurvich apresenta a definição de Frosch (1964), segundo a qual o
teste de realidade seria a capacidade de chegar a uma conclusão lógica a partir de uma
série de fenômenos observáveis. Por seu turno, o sentido de realidade seria a sensação
de que os fenômenos do ambiente externo e as sensações internas são reais.
Hurvich também cita a obra de Weisman (1958), autor que classifica o teste de
realidade como uma capacidade intelectual e racional, que trabalha com os objetos
como materiais de análise, dados condicionais e aproximados. Por outro lado, o sentido
de realidade seria uma função emocional e intuitiva, essencialmente privada e que não é
passível de ser compartilhada, que não precisa de confirmação, já que seu critério é a
intensidade da experiência.
114  
 

Finalmente, o autor cita a diferenciação dos termos feita por Novey (1966), que
afirma que o sentido de realidade é uma experiência interior a respeito da existência do
mundo e de si, enquanto o teste seria a sondagem do ambiente para que se possa lidar
com ele.
Ao menos nesse texto, Hurvich não traça considerações sobre concordâncias e
ou discordâncias com essas definições que apresentou. O texto parece ser uma extensa
revisão da literatura a respeito do teste de realidade, já que, em seguida a essa seção
sobre o teste e o sentido de realidade, Hurvich busca fazer outra revisão da literatura,
bem mais extensa que a anterior, a respeito dos elementos que poderiam compor a
função de teste de realidade.
Quanto ao texto de Sander Abend, Some Observations on Reality Testing as a
Clinical Concept (1982), novamente se apresenta o problema que envolve a
conceituação e suas definições, mas alguns outros aspectos são acrescentados à
discussão. Primeiramente, é preciso ressaltar que, dentre todos os textos que
consultamos nessa revisão da literatura, Abend é o único autor a mencionar o
sentimento de realidade (reality feeling), ainda que não estabeleça qualquer
consideração sobre a equivalência ou não deste termo com o sentido de realidade. Em
seu artigo, sentimento e sentido de realidade são tratados como conceitos análogos.
O interesse de Abend se dirige para a clínica com pacientes borderline, pacientes
que apresentariam alguns graus de distúrbio no teste de realidade (p. 228). Abend
afirma que, nas discussões a respeito desses casos, ainda que os termos do teste, sentido
e relação com a realidade sejam bastante utilizados, são pouco definidos e acabam
sendo indistintamente apresentados.

“A questão é que todas as sutilezas de nomenclaturas parecem ser


ignoradas na prática atual. Os analistas nos grupos de estudos e nas
conferências clínicas, grupos de discussão, seminários a que
participei, em grande medida tendem a ignorar essas distinções na
qual entrou a literatura e apenas falam do teste de realidade do
paciente quando eles discutem material clínico. Eles usam esse
conceito para expressar se julgam que a visão que o paciente tem
sobre o mundo, situações ou outras pessoas parece ser irrealista”.
(Abend, 1982, p. 223, tradução nossa.).

Assim como Hurvich, Abend também percorre os textos a respeito do teste de


realidade em Freud e também apresenta os textos de Ferenczi (1913), Glover (1933),
Federn (1952), Frosh (1964), a fim de procurar definições mais precisas para os
115  
 

conceitos psicanalíticos que versam a respeito da relação com a realidade. Segundo


Abend, o problema da indefinição desses conceitos, nesse caso, é que ela poderia levar
também a indefinições nas práticas e técnicas clínicas. Ou seja, para além dos objetivos
teóricos do texto de Hurvich, a busca de definições a que visa o artigo de Abend tem um
aspecto claramente clínico. Ele tem como meta principal apresentar um mapa mais
claro desses conceitos a fim de que isso possa levar a outros desdobramentos referentes
à condução do tratamento dos pacientes que apresentam falhas na função do teste de
realidade.
Mas, para além das questões quanto ao estabelecimento dos conceitos, Abend
apresenta duas hipóteses interessantes em seu texto. A primeira é que, em sua
concepção, os distúrbios de teste de realidade e as alterações no sentimento de realidade
não estariam necessariamente relacionados, ele desvincula os dois conceitos. A segunda
hipótese, é que esses distúrbios e alterações no sentimento de realidade poderiam ser
entendidos como sintomas, produtos de uma formação de compromisso, e não como
manifestações de deficiências no desenvolvimento do sentimento de realidade (p.232).
Segundo Abend, assumir essa segunda hipótese, aumentaria as possibilidade de
intervenções clínicas com pacientes que apresentam distúrbios na relação com a
realidade.
Se relacionarmos o que vimos a respeito do sentimento de realidade no capítulo
anterior, poderíamos sublinhar que Abend é o único a aproximar-se da questão de um
sentimento de realidade ligado a conteúdos recalcados dentre os comentadores aqui
abordados.

3.5 A psicanálise como reeducação para realidade.

Ainda que nem todos os autores se refiram à existência de um desenvolvimento


do sentido de realidade é possível constatar que sua afirmação está presente na maior
parte dos textos. Além disso, foi possível constatar no capítulo anterior que ela está
também presente na obra de Freud, ainda que sem maiores elucidações a respeito de
como ela se daria.
Em ao menos dois artigos, de Frumkes e Abend, foi possível encontrar relações
mais diretas entre a concepção de desenvolvimento do sentido de realidade e a proposta
de uma aplicação clínica correspondente. No texto de Frumkes, não apenas o autor
afirma que o sentido de realidade é uma função do eu que se desenvolve
116  
 

progressivamente, como também afirma que a conquista do funcionamento integral


dessa capacidade poderia servir como um dos critérios principais para se determinar o
final de uma análise.
Quanto a Abend, embora não faça muitas considerações a respeito da existência
ou não de um desenvolvimento do sentido de realidade e não estabeleça a diferença com
o sentimento de realidade, é possível perceber que sua proposta clínica correspondente
seria bastante diferente da existente em Frumkes. Isso porque sua interpretação sugere
que as ocorrências de falhas no sentimento e no teste de realidade não resultariam de
problemas no desenvolvimento dessas funções, mas seriam sintomas.
Em outros termos, a proposta de Abend levaria a analisar essas manifestações
nos distúrbios do sentimento de realidade apenas como mais um dos sintomas do
paciente. Por sua vez, a proposta de Frumkes para a condução da análise poderia ser a
de encaminhar progressivamente esse paciente à conquista de uma função integral do
sentido de realidade, como se a análise fosse uma espécie de educação para a realidade e
de correção das percepções ilusórias do paciente.
Entretanto, a concepção assumida por Frumkes não se limitou a ele mesmo, e
tampouco esteve limitada a uma aplicação do que poderia ser o final de análise. Ao
contrário, essa concepção esteve presente na obra de outros psicanalistas e foi aplicada a
outros elementos da clínica, como, por exemplo, o entendimento do que seria o
fenômeno da transferência. De acordo com Maurice Dayan (1985), muitos foram os
analistas que sublinharam a oposição entre a transferência e a realidade (p.75), ao
assinalar o caráter irreal do amor de transferência, que deveria ser consertado pelo
analista ao longo do tratamento. Essa concepção da transferência não deixou de ter
efeitos sobre a concepção de final de tratamento, uma vez que era proposto que o
processo de análise devesse terminar com a compreensão do caráter irreal da
transferência pelo analisante (p. 75).
O primeiro texto comentado por Dayan, de autoria de Herman Nunberg, intitula-
se Transference and reality (1951). Na concepção de Nunberg, a transferência é a
projeção de uma relação de objeto pertencente ao passado para um objeto atual, baseada
em um equívoco na identidade das percepções, e caberia ao analista apontar esse
equívoco ao paciente ao longo do tratamento.

“Eu ainda concordo com o Dr. de Saussure que a transferência é uma


projeção. O termo ‘projeção’ significa que as relações internas e
117  
 

inconscientes do paciente com seus primeiros objetos libidinais são


externalizadas. Na situação de transferência o analista tenta
desmascarar as projeções e externalizações onde quer que elas
apareçam durante o tratamento.” (Nunberg, 1951, p. 01, tradução
nossa).

Segundo essa concepção, a transferência seria uma forma de o paciente tentar


substituir os objetos reais de sua vida atual (por exemplo, o analista) por objetos que
pertencem ao passado do paciente e para os quais destinava sentimentos que precisaram
ser recalcados. Uma vez que esses objetos, e os sentimentos a eles relacionados,
pertencem ao passado e a infância do paciente, a transposição desses afetos para os
objetos atuais seria uma espécie de equívoco que poderia levar o paciente a confusões e
novas frustrações e, portanto, deveria ser corrigido (p. 01). Para Nunberg, na situação
transferencial, o modelo de relação de objeto pertencente ao passado do paciente
“obscurece a percepção consciente de um evento atual e produz uma ilusão” (p. 04).
Nunberg também se refere à situação transferencial como uma realidade artificial
(p.05), que deve ser revelada ao paciente, no sentido mesmo de uma “reeducação”
(p.05).
Essa reeducação do paciente deveria ser feita da seguinte forma: o analista
deveria, no decorrer do tratamento, auxiliar o paciente a se conscientizar dessa ilusão
que é a transferência enquanto fenômeno de projeção dos objetos do passado para os
objetos do presente; assim que essa conscientização ocorresse, o paciente se tornaria
cada vez mais capaz de distinguir entre os objetos do passado e do presente e além de
ser capaz de “testar a realidade melhor do que fazia antes” (p.04). Desse modo, o
analista, ao desvendar para o paciente o que ocorre na situação transferencial, poderia
auxiliá-lo a desfazer essa ilusão, a discernir melhor entre os sentimentos do passado
infantil das percepções atuais, através de um teste de realidade mais aprimorado. O
processo analítico funcionaria, então, como uma reeducação do paciente para a
realidade e um aprimoramento de seu teste de realidade.
Dayan (1985) afirma que outros autores, após a publicação do texto Nunberg,
continuaram a tematizar esse caráter irreal da transferência, mas agora opondo à
“irrealidade e o absurdo da transferência à realidade reassegurada do analista” (p.77).
Ele apresenta um artigo de Sacha Nacht intitulado A Presença do Psicanalista (1963),
no qual o autor sugere que a presença do analista poderia ter uma função reparadora e
realista para o paciente. Para isso, o analista deveria renunciar à regra da neutralidade
para ser presente, deixando de ser apenas uma tela em branco ou uma escuta neutra a
118  
 

fim de servir como uma espécie de orientação para o paciente em direção ao mundo
real. Isso o auxiliaria a abandonar seus fantasmas e seu mundo infantil, podendo então
se situar na realidade. Quanto mais estiver inserido na realidade com sua presença, mais
o analista poderá orientar o paciente a ter contato com a realidade, que seria “para Nacht
como para Nunberg e muitos outros, o objetivo principal do empreendimento
terapêutico” (Dayan, 1985, p. 78).
Em seguida, Dayan (1985) aborda a proposta de Maurice Bénassy, apresentada
em Fantasy and Reality in Transference (1960). A questão em jogo aí consiste em
saber como poderia funcionar a presença do analista para que o paciente pudesse ter
acesso à realidade e pudesse perceber a ilusão da transferência. De acordo com Dayan
(1985), o programa de cura para Bénassy seria o analista conseguir permanecer
invariável diante dos fantasmas do paciente e assim permitir ao analisante ir medindo a
realidade, já que o analista real não muda de acordo com seus desejos. Segundo
Bénnassy, a transferência é uma experiência sem sentido e só haveria uma forma de o
paciente entender isso: “o analista não pode ser modificado pelos pensamentos, desejos
ou sentimentos do paciente” (p. 387).
Para isso, o paciente deveria perceber a presença do analista, mas Bénassy,
comentando o artigo de Nacht, faz questão de salientar que, em sua leitura, a presença
do analista não deve ser entendida como uma variação na técnica da psicanálise. A
técnica que deveria ser empregada consistiria em o analista se tornar real para o
paciente, o que, em sua concepção, apenas significa que “o paciente estará ciente que
seus pensamentos não podem modificar o analista” (Bénassy, p. 397). Ele afirma que, se
por acaso, o analista vier a responder inconscientemente os desejos de seu paciente, “ele
se torna parte do mundo fantástico do seu paciente, ele não mais é real” (p.397). Desse
modo, para que o analista pudesse auxiliar o paciente a perceber a realidade, ele deveria
manter-se invariável (p.398), no sentido matemático do termo, funcionando como um
representante da realidade para o paciente.
Como é possível constatar, os textos sobre a transferência e sobre a realidade
também já indicavam, de alguma maneira, uma proposta para o término da análise.
Para outros analistas que procuraram relacionar as linhas de desenvolvimento do
sentido de realidade com o desenvolvimento da libido, a proposta de final de análise
derivada normalmente envolverá, junto ao alcance da realidade, também o alcance da
capacidade total para amar. É o que indica o artigo de Michael Balint, The Final Goal of
Psycho-Analytic Treatment (1936). A afirmação logo no início de texto de Balint é que
119  
 

“pode-se descrever com segurança o tratamento psicanalítico como sendo um processo


natural de desenvolvimento do paciente” (p. 206). Ele então se pergunta, no entanto, se
a experiência clínica até aquele momento era suficiente para definir o objetivo final da
análise, ou ao menos “a direção final desse desenvolvimento natural” (p. 206) e propõe
que esse final pudesse ser justamente o acesso à realidade e à capacidade de amar.
Como afirma Lacan, ao comentar os estranhos paradoxos da prática clínica a que
essas concepções poderiam levar, seria como se a maturação do desejo fosse o fator que
permitiria “ao mundo se completar em sua objetividade.” (Lacan, 1959, p.07).
Tentaremos na próxima seção de nossa pesquisa investigar se existe essa hipótese em
Freud.
120  
 

Parte II

Os sentidos de desenvolvimento
e o desenvolvimento do sentido

Na seção anterior, procuramos estabelecer o que seria o sentido de realidade


para Freud, para comentadores e para teóricos em psicanálise. Especificamente no
capítulo anterior, vimos como a categoria de desenvolvimento é quase onipresente na
abordagem do problema do sentido de realidade. Apesar de aparecer em apenas um
momento da obra de Freud em O mal-estar na civilização, a hipótese de um
desenvolvimento do sentido de realidade foi uma via interpretativa bastante explorada
posteriormente. Ao final do capítulo, citamos alguns possíveis problemas dessa
concepção para a clínica psicanalítica.
Entretanto, os autores que aceitam e utilizam a ideia de um desenvolvimento do
sentido de realidade não demonstram nenhum consenso a respeito do desenvolvimento.
Enquanto para alguns seria um desenvolvimento linear, para outros, um
desenvolvimento que mantém suas fases anteriores junto das posteriores, em modo de
sobreposição. Dessa maneira, o conceito de desenvolvimento é uma denominação para
diversos tipos de explicações nem sempre equivalentes. Assim, ainda que a ampla
maioria dos autores aceite a hipótese de um desenvolvimento para o sentido de
realidade, nem sempre parecem estar se referindo a mesma concepção. Essas diferentes
concepções poderiam levar a diferentes interpretações do que seria um desenvolvimento
do sentido de realidade.
Nessa seção, vamos tentar elucidar no primeiro capítulo alguns dados a respeito
da categoria de desenvolvimento e os sentidos que a categoria do desenvolvimento
recebeu, principalmente nas últimas décadas do século XVIII. Na segunda parte desse
capítulo, tentaremos promover uma rápida incursão sobre as definições de
desenvolvimento em estudos de embriologia e zoologia. Nesse contexto, seguimos uma
observação feita por Canguilhem e outros autores (2003), em estudos dedicados ao
tema, segundo a qual o campo dos estudos da biologia poderia fornecer coordenadas
121  
 

importantes para apreender a problemática do desenvolvimento em suas condensações e


deslocamentos com o conceito de evolução. Nosso objeto aqui serão as concepções de
desenvolvimento sobretudo nas teses da epigênese, da pré-formação e nas teorias
darwinistas.
Com isso, no quinto capítulo, poderemos aprofundar o entendimento a respeito
do que possa significar desenvolvimento na obra freudiana, apresentado algumas das
noções de temporalidade que ele supõe em seus escritos e a relação desses modelos de
organização temporal com a organização dos traços psíquicos. Assim, procuramos
analisar algumas das metáforas temporais freudianas visando descobrir se a passagem
do tempo implicaria modificações na organização psíquica, de sorte que estaríamos aí
diante de uma perspectiva desenvolvimentista ou se, havendo uma forma de
desenvolvimento, de qual natureza ela seria. Desse modo, dividimos esse capítulo em
três partes que analisam as metáforas de herança e repetição, as metáforas
arqueológicas, e a metáfora da transcrição nos textos freudianos, tentando extrair delas
possíveis modelos de desenvolvimento.
Por fim, no último capítulo dessa dissertação, iremos cruzar os dados desses três
capítulos principalmente com o conteúdo do primeiro capítulo a fim de extrair as
concepções de desenvolvimento do sentido de realidade na obra de Freud.
122  
 

Capítulo 4

Regimes de temporalidade
e o conceito de desenvolvimento.

“O que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara


e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só
com o pensamento para depois traduzir em palavras o
seu conceito? E que assunto mais batido nas nossas
conversas do que o tempo? Quando dele falamos,
compreendemos o que dizemos. Compreendemos
também o que nos dizem quando dele nos falam. O que
é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar,
eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta,
já não sei.” Santo Agostinho, Confissões-livro XI.

São diversos os modos de se representar o tempo, nenhum deles natural. De


acordo com Piqué (2010), o único dado manifesto e evidente aos sentidos humanos
seria a mera sucessão de fatos no agora, a constatação mesma da temporalidade
imediata que, por si só, é insuficiente para que modos de representação e organização do
tempo sejam estabelecidos. Assim, ao longo das eras, os homens precisaram inventar
regimes de temporalidade apoiados em outras balizas, como estruturas sociais e práticas
religiosas e econômicas. Assim, organizar os fatos em estruturas sucessivas ou
simultâneas, históricas ou a-históricas, lineares ou cíclicas, consecutivas ou
intermitentes, reversíveis ou irreversíveis é antes construto do pensamento especulativo
humano do que um mero catálogo de atributos inerentes aos objetos para os quais o
interesse humano se volta, ou inerente ao sujeito que conhece os objetos.
Assim, organizar os fatos em estruturas sucessivas ou simultâneas, históricas ou
a-históricas, lineares ou cíclicas, consecutivas ou intermitentes, reversíveis ou
irreversíveis é antes construto do pensamento especulativo humano do que um mero
catálogo de atributos inerentes aos objetos para os quais o interesse humano se volta, ou
inerente ao sujeito que conhece os objetos.
123  
 

Dentro do espectro de definições que compõe a organização temporal,


especificamente nos vocábulos destinados a descrever cursos e mudanças, encontra-se
inserida a categoria de desenvolvimento. Advinda do latim volver,que significa rolar,
revirar, mudar de posição, a palavra “desenvolver” é composta pela junção do verbo a
dois prefixos latinos: en - (prefixo que indica movimento para dentro) e des - (prefixo
latino de negação e afastamento). Desse étimo, então, tem-se a palavra “envolver”, que
significa enrolar para dentro, envelopar, velar, cobrir, esconder. Acrescentando o
prefixo de negação temos desenvolver: movimento de desenrolar, revelar, expor,
desfazer o envólucro. Ainda dentro das ramificações advindas do radical latino –vol,
temos também o termo evolução. Aqui, o prefixo latino e -,indicador de externalidade,
compõe o radical evolv - : rolar para fora, fazer sair, afastar-se, rolar para cima ou para
fora. Não à toa, os conceitos de desenvolvimento e evolução aparecem constantemente
em conjunto, não raras vezes como sinônimos.
Esta composição e sentido do verbo “desenvolver”, presente na maioria das
línguas latinas, encontra analogia no alemão entwickeln. Formado pela junção do
prefixo ent - , que em alemão, em geral, corresponde ao prefixo des - latino, e do verbo
wickeln que significa enrolar, bobinar, o verbo entwickeln significa desenvolver,
desdobrar (-se), avançar em um processo, revelar, surgir. Além disso, por volta de 1800,
o substantivo Entwicklung (desdobramento, desenvolvimento) receberá mais uma
significação ao ser proposto por Joachim Campe como germanização do termo de
origem latina Evolution. Desse modo, nota-se ocorrer o mesmo processo de
equivalência semântica entre os vocábulos desenvolvimento e evolução, tal como ocorre
nas línguas latinas.
A proposta de Campe no período citado não é fortuita. Segundo Koselleck
(2006; cf. também Habermas, 2000), em seu ensaio sobre teoria da história, intitulado
Sobre a semântica dos conceitos de movimento na modernidade, o século XIX
testemunhou o surgimento e também a reforma de termos que expressavam
transformações, movimentos e temporalidade. Expressões como modernidade, história
nova, espírito do tempo, revolução, progresso, desenvolvimento, evolução, crise, foram
inseridos no léxico ou ganharam significados até então inéditos. Exemplo paradigmático
do processo descrito por Koselleck é a palavra “revolução” que, a partir de 1789,
gradualmente aproxima-se do conceito de evolução como processo irreversível,
perdendo seu significado secular de volta ao ponto de partida do movimento.
124  
 

Esse novo inventário semântico, simultaneamente produto e condição de


possibilidade para novas experiências com o tempo, aparece em tratados de história,
jornais, dicionários e enciclopédias para se referir e teorizar sobre as mudanças e os
acontecimentos da Modernidade e para estabelecer os expedientes necessários ao
progresso, problema absoluto dessa época.
Com a instauração da lógica temporal judaico-cristã19 e sua a organização linear
do tempo, foi dada “a possibilidade de se pensar os acontecimentos (...) fora do
esquema do eterno retorno” (Terra, 2004, p. 25) que a concepção de tempo cíclica
impunha até então. Ainda que esta última tenha sido novamente reconhecida durante o
Renascimento, devido à valorização da Antiguidade característica do período (Terra,
2004), ela não mais será a concepção de tempo hegemônica no Ocidente a partir do
século XVII. Eventos dispostos em ordem diacrônica, uma noção histórico-linear
representada espacialmente por uma linha reta que aponta para um sentido e está
dividida em um passado irreversível, um presente fugidio e em futuro incerto para o
qual a humanidade se dirige e sobre o qual se deverá teorizar.
Começa-se a pensar sobre o progresso20, esse passo adiante da humanidade em
direção a uma suposta perfeição, passo este garantido pela perfectibilidade, pela
capacidade humana de se aperfeiçoar, como louvada por Condorcet em Esboços de um
quadro histórico dos progressos do espírito humano. São levantadas hipóteses sobre os
meios para melhor fazê-lo e planejá-lo, sua finalidade, seus ritmos e suas leis. No século
XIX, a ideia de progresso encontra seu apogeu, tornando-se, segundo Nisbet (1985), o
paradigma fundamental por meio do qual foram definidas as perspectivas e os termos do
debate a respeito de outros temas caros à modernidade, como liberdade, poder, justiça e
razão21.

                                                                                                                       
19
No pensamento cristão, os acontecimentos da vinda e da ressurreição de Cristo não são passíveis de
repetição ou identidade com qualquer outro acontecimento, tornando assim impossível uma interpretação
cíclica da história. Tanto para os judeus quanto para os cristãos, a história estaria disposta em uma ordem
que tem seu início na criação e cujo sentido aponta para um fim necessário, qual seja, a vinda ou o retorno
do messias.
20
Essa interpretação que relaciona a instauração da ideia progresso com o tempo judaico-cristão não é
hegemônica. Para conferir os debates a respeito da ideia de progresso no tempo grego-romano, conferir
Terra (2004) e Nisbet (1895).
21
Em Vigiar e Punir (1975), Foucault destina um item da terceira parte do livro para analisar como essa
concepção temporal também foi determinante para o regime disciplinar. Intitulado A organização das
gêneses, essa terceira parte do livro versa sobre como uma nova forma de organizar o tempo nas
instituições cumpria a função de “organizar durações rentáveis” (p.133), capitalizando o tempo. Segundo
o autor, essa nova administração conferiu novos predicados ao tempo que se tornava então “serial,
orientado e cumulativo: descoberta de uma evolução em termos de progresso”. (p. 136).
125  
 

A concepção de progresso como evolução torna-se, assim, no século XIX, uma


espécie de campo de força que atrai para seus domínios as interpretações, as
significações e as explicações das mais diversas áreas. Não aleatoriamente, portanto, as
palavras desenvolvimento e revolução tiveram seus significados alterados e equiparados
à evolução, como vimos acima. Deste modo, parece ser possível afirmar que a maneira
como se pensa o tempo e sua organização seja determinante para se conceber o
desenvolvimento.
Entretanto, as ideias de tempo e progresso da modernidade não seriam critérios e
valores únicos para situar a questão do desenvolvimento no século XIX. De acordo com
Canguilhem et al. (2003), em estudo epistemológico feito sobre o tema em número
especial da revista Thalès, seria somente no território dos estudos da biologia, mais
especificamente no interior do debate entre naturalistas, zoólogos e embriólogos, que
seria possível apreender a problemática do desenvolvimento em suas condensações e
deslocamentos com o conceito de evolução.

4.1 Desenvolvimento e Biologia.

As teorizações sobre a geração22, “o crescimento de um germe até o estado de


um novo indivíduo separado do indivíduo adulto, portador do germe gerador”
(Canguilhem et al., 2003, p. 14), objeto da embriologia ou biologia do
desenvolvimento, fundamentam-se desde seu aparecimento em dois modelos
explicativos principais e concorrentes: epigênese e pré-formação. Essas duas tradições
de leitura sobre o problema tiveram início da Grécia Antiga e mantiveram-se como
paradigmas da explicação do desenvolvimento em embriologia ao longo dos séculos,
apenas alternando entre si sua predominância em diferentes épocas (Botelho, 2007).
Presente nas obras de Anaxágoras, Demócrito e Empédocles, a hipótese teórica
preformacionista postula que as estruturas do indivíduo adulto já estariam presentes –
lógica e cronologicamente – na célula germinativa que lhe deu origem, tratando-se
apenas de aumentar de tamanho, forma e volume. Desse modo, desenvolver equivaleria
ao processo de crescimento, acréscimo quantitativo sem que estejam presentes

                                                                                                                       
22
Trata-se aqui do exame das teorias biológicas que versam sobre problema da geração a partir de um
gérmen ou ovo, estando excluídos, portanto, os debates sobre geração espontânea no campo das ciências
biológicas.
126  
 

mudanças estruturais ou rupturas que transformem qualitativamente o que estava


formado na célula inicial. Assim,

“A evolução ou desenvolvimento estabelecem uma mediação


sucessiva, mas logicamente reversível, entre dois estados da forma
orgânica distintas porém não diferentes, de tal sorte que se pode
definir o ser formado como a distensão do ser pré-formado, ou ainda o
ser pré-formado como a redução do ser formado”. (Canguilhem et al.,
2003, p. 14).

No século XVII, já contando com novas técnicas e descobertas da histologia,


ainda mantendo o mesmo pressuposto sobre o desenvolvimento, essa tradição teórica
divide-se em duas vertentes: a que afirma que o ser pré-formado estaria no
espermatozoide e a que defende a pré-existência no óvulo. Dentro da primeira linha,
talvez o modelo mais conhecido seja o modelo do homúnculo, apresentado por Nicolaas
Hartsoeker em 1694, segundo o qual haveria um pequeno homem enrolado em cada
espermatozoide, enquanto que, na segunda vertente, o chamado modelo da boneca russa
é que se tornou paradigmático. Criado por Nicolas Malebranche em De la recherche de
la vérité (1674), o modelo – também conhecido como emboitement ou “caixas dentro
das caixas” – postula que haveria dentro dos óvulos miniaturas de corpos, encaixados
uns dentro dos outros. Apesar dessa discordância quanto à localização celular do ser
pré-existente, essas vertentes mantêm a ideia de que o desenvolvimento implica apenas
uma operação – de crescimento, desenrolar ou desencaixe –, que obedeceria a uma
espécie de plano diretor pré-estabelecido, já contido na célula inicial (Botelho, 2007).
Por outro lado, o modelo da epigênese, concebido por Aristóteles em sua obra A
reprodução dos animais como resposta e contraponto à teoria da pré-formação23,postula
“(...) que o organismo não está formado no ovo, nem são todas as partes formadas de
uma só vez. O embrião, guiado pelas causas formais e finais, desenvolvia-se
epigeneticamente, gerando sucessivamente cada órgão, um após o outro, primeiro o
coração, depois os demais” (Botelho, 2007, p. 32). Diferentemente da hipótese anterior,
no modelo da epigênese não há apenas uma estrutura que se mantém ao longo do
processo de desenvolvimento, mas sim novas estruturas sendo formadas a partir da
célula germinativa. Caberia ressaltar que, para Aristóteles, esse processo seria composto
de mudanças graduais e regulares e não de uma série de transformações e rupturas

                                                                                                                       
23
O termo epigênese não foi criado por Aristóteles, mas por William Harvey, em 1651, e passou a
denominar a concepção de desenvolvimento iniciada por Aristóteles (Botelho, 2007).
127  
 

estruturais caóticas. Isso porque, de acordo com Botelho (2007), a teoria de


desenvolvimento aristotélica seria consonante com sua metafísica e teoria das quatro
causas. Assim sendo, o movimento geracional, guiado pelo telos, atualizaria a potência,
já presente no ovo, de tornar-se um indivíduo adulto da mesma espécie, realizando sua
finalidade predeterminada pela organização inicial. Ou seja, a causa final já estaria
inscrita no ser e orientaria as mudanças de posição até que o processo de vir a ser fosse
posto em ato e cumprisse a sua finalidade, mesmo que não esteja excluída a
possibilidade de ocorrência de acidentes nesse percurso.
Ainda que apresentem versões divergentes sobre o desenvolvimento e o modo
como este se dá, as duas tradições convergem em alguns pontos: o desenvolvimento
seria uma passagem gradual da organização menos complexa (em estrutura ou em
tamanho) para a mais complexa e cumpriria um programa previamente estabelecido
pela natureza. Haveria, portanto, afinidade quanto à perfectibilidade e teleologia no
desenvolvimento.
Com o passar dos séculos, os dois modelos teóricos não ficaram restritos aos
debates da filosofia e foram incorporados aos sistemas de pensamento nas ciências
biológicas, em que permaneceram recebendo novas roupagens, descrições e
demonstrações conforme a época e os autores que delas se apropriaram, mas sempre
mantendo o caráter teleológico e perfectibilista. Na modernidade, esses traços
componentes dos modelos teóricos da embriologia irão confluir e se justapor às
concepções de tempo linear e de progresso, conduzindo a uma equivalência entre os
termos desenvolvimento e evolução. Até esse momento, a palavra desenvolver
comportava em sua definição as ideias de crescimento, acréscimo, melhoria, movimento
destinado a cumprir um programa estabelecido a priori, mas esses processos eram em
sua maioria descritos como parte de um fenômeno natural repetitivo, inserido em uma
ordem temporal cíclica. Assim, longe de ser uma operação necessária, a transformação
de desenvolvimento em sinônimo absoluto de evolução é algo próprio de uma época e
do conjunto de concepções de tempo que a marcaram.
Desse modo, a partir do século XVIII, em uma metáfora espacial, o
desenvolvimento passa a ser um movimento que se dá em uma linha reta, contínua e
ascendente, direcionada para o futuro, na qual o ponto seguinte representa um
aperfeiçoamento em relação à posição anterior. Consequentemente, para essa
configuração, são atribuídos valores diferentes às etapas passadas e futuras, e os
128  
 

movimentos de retorno e paradas serão interpretados como retrocesso, retardo ou


fixação, portanto, avaliados como insuficientes no contexto dessa hierarquia valorativa.
Entretanto, no século seguinte, o encaixe outrora feito entre desenvolvimento e
evolução nos estudos sobre geração sofre um desalinho dentro do campo de estudos das
espécies, com a obra de Charles Darwin intitulada Origem das Espécies, de 185924.
Colocando-se ao lado dos cientistas que acreditavam na possibilidade de transformação
das espécies25, Darwin traz inovações com sua teoria ao propor a variabilidade e a
seleção natural como leis para pensar a modificação e adaptação das populações.
Em linhas gerais, a hipótese formulada por Darwin consiste que, dentro do
conjunto de seres de uma mesma espécie e seus descentes, seria possível constatar a
presença de variações morfológicas e funcionais entre os indivíduos, diversificação esta
que não significaria a existência de uma nova espécie como variante da primeira, mas
apenas indicaria a presença de diferenciações entre os seres de uma mesma população.
Para Darwin, as leis que regem o aparecimento da variabilidade são complexas e
desconhecidas e suas causas só podem ser diretamente explicadas pelas condições de
vida, hábitos ou uso em casos muito limitados, não tendo, portanto, uma finalidade ou
direção pré-determinada (Darwin, 1859/1985).
Aplicando a teoria populacional de Malthus ao reino vegetal e animal, Darwin
afirmou que os indivíduos (pertencentes a mesma espécie ou não), que convivem em
uma mesma área, lutam por sua sobrevivência e apenas aqueles que possuírem as
variações funcionais ou morfológicas que melhor os adapte ao meio serão selecionados
pela natureza e sobreviverão. Assim, a seleção natural só pode operar dentro da oferta
de variações já disponível, nos caracteres que já estavam desenvolvidos, em acordo com
as exigências do meio (Darwin, 1859/1985).
Em suma, na proposta darwinista para a transformação das espécies, o
organismo deixa de ser entendido como um sistema em evolução isolado para estar
referido ao seu meio ambiente, que também está em transformação, e com o qual terá
uma relação conflituosa, de luta pela existência (Jacob, 1985). Desse modo, a
combinação desses elementos – causas da variação não determinadas pelas condições
externas ou hábitos e a relação conflituosa entre organismo e um meio instável –permite
                                                                                                                       
24
De acordo com Canguilhem et. al. (2003), a mudança nas bases do conceito de desenvolvimento
também recebeu importante contribuição com a obra de C.F.Wolff, Theoria Generationis de 1759.
25
Conferir a apresentação da obra Origem das Espécies intitulada “Esboço histórico do progresso da
opinião acerca do problema da origem das espécies, até a publicação da primeira edição deste trabalho”,
na qual Darwin faz uma apresentação do estado da questão e de sua posição em relação às teorias que o
precederam na abordagem do assunto.
129  
 

afirmar que o modelo de desenvolvimento concebido envolve indeterminação e


imprevisibilidade: “entre a vida e o seu meio, não existe acordo pré-estabelecido”
(Canguilhem et. al., 2003, p. 66).
Nessa espécie de jogo do acaso da sobrevivência, em que o valor das variações
morfológicas ou funcionais só pode ser estabelecido em relação ao habitat, não havendo
portanto possibilidade de julgar uma variação como melhor ou pior sem antes
subordiná-la aos processos de interdependência entre o indivíduo e o meio, como seria
possível supor uma teleologia na transformação das espécies?

“Essa contingência, que distingue a doutrina de Darwin de todo outro


transformismo, foi necessária para que desaparecesse toda justificação
a priori das estruturas ou das espécies: a Vida não tem nem plano nem
preferências; ela não tende para nada, nem mesmo para sua própria
conservação. São os acasos do meio que, negativamente, a orientam e,
por momentos, a estabilizam. Assim, a aparência de predeterminação,
a imagem de uma mudança sustentada por estruturas transcendentes,
se são dificilmente eliminadas da embriologia, são radicalmente
excluídas do devir das espécies.” (Canguilhem et. al., 2003, p. 70).

Mas, além do modelo de desenvolvimento concebido por Darwin não incluir em


sua definição a realização de um programa já determinado em termos de um percurso a
ser cumprido, esse modelo tampouco concebe o desenvolvimento como realização de um
programa gradual de aperfeiçoamento das espécies. Como já apresentado acima, ao
deixar o organismo de ser entendido como um sistema isolado de evolução, será apenas
através da capacidade de garantir ou não a sobrevivência, na interação com o meio, que
suas características e atributos poderão ser julgados. Logo, possuir uma estrutura
orgânica mais avançada, mais complexa ou maior – qualidades que no julgo de outras
teorias de desenvolvimento poderiam vir a ser entendidas como sinônimo de
perfectibilidade – para a hipótese darwinista não possuem valor em si mesmo pois para
tanto ele precisar estar relacionado ao ambiente. A partir desse pressuposto conclui-se
que, segundo Darwin, o indício de desenvolvimento passa a ser apenas a capacidade de se
adaptar e sobreviver, não importando se o atributo que tornou isso possível é regressivo
ou progressivo26 quando comparado ao amplo conjunto de variabilidades possíveis
(Canguilhem et. al., 2003; Jacob, 1985; Monod, 1971).

                                                                                                                       
26
Darwin exemplifica o modelo de desenvolvimento regressivo: “No curso de seu desenvolvimento,
geralmente o embrião vai crescendo no que se refere a sua organização – uso este termo apesar de estar
certo de ser bastante difícil definir claramente o que significaria uma organização maior ou menor,  
posto que, provavelmente, ninguém irá discutir que a borboleta tenha organização superior à da
130  
 

É nesse ponto, portanto, que a teoria darwinista quebra a conexão entre


desenvolvimento, evolução e progresso presente nos modelos de desenvolvimento da
embriologia e de transformação das espécies que existiam até então:

“Enfim, o desenvolvimento embrionário era concebido sempre como


um progresso: perfeição crescente, para os defensores da série animal
unilinear; acabamento gradual de um ser mais e mais diferenciado,
segundo von Baer. A evolução que sugere o darwinismo não tem
termo previsível, e não conhece então conclusão. Se ela é progresso,
em que sentido o é? O critério de superioridade mudou: é o
crescimento da capacidade de sobreviver. De onde notavelmente, a
impossibilidade de hierarquizar as Formas coexistentes, se sua
respectiva sobrevida parece durável.” (Canguilhem et. al., 2003, p.
72).

Em suma, a recuperação sucinta desses três modelos de desenvolvimento


permite afirmar a inexistência de unicidade em sua definição no campo da biologia.
Vimos que, a partir de Darwin, é possível conceber uma forma de desenvolvimento não
necessariamente teleológica ou de evolução progressiva e, desse modo, pensar no
desenvolvimento como processo de modificação que pode se dar em diversas lógicas
temporais e não necessariamente em um esquema de hierarquia valorativa como estava
presente na epigênese ou pré-formação.

4.2 A incorporação do conceito de desenvolvimento pelas ciências.

“Desenvolvimento é, agora, a palavra mágica por


meio da qual solucionaremos os enigmas que nos
circundam, ou pelo menos caminharemos ao longo
da estrada em direção a sua solução.” Haeckel
(apud. Ritvo, 1992).

Nesse breve percurso no interior dos debates no campo da biologia, vimos como
não há unicidade na indicação do sentido do conceito de desenvolvimento, de seu
fundamento e realização, podendo significar: crescimento das medidas iniciais,
passagem do homogêneo ao heterogêneo, transformação estrutural, estar ou não dirigido
para um fim, dar-se por conflito ou de modo harmônico, ser progressivo ou não.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           
lagarta. Em certos casos, porém, o animal adulto costuma ser considerado como situado numa escala
inferior à da sua larva, como se vê com determinados crustáceos parasitas, por exemplo.” (Darwin,
1859/1985, p. 335).  

 
131  
 

Possivelmente devido à importância do paradigma do progresso na


modernidade, ao longo do século XVIII e XIX, o conceito de desenvolvimento foi
gradualmente sendo incorporado como uma espécie de esquema padrão, modelo de
entendimento e arranjo lógico das matérias em diversos outros campos de conhecimento
para além da Biologia. Assim, Sociologia, Economia, História, Pedagogia, Psicologia
começaram a conceber seus objetos, justificar teorias e organizar suas práticas conforme
esse esquema27. São representativos dessa tendência nomes como os de Auguste Comte,
Herbert Spencer, James Baldwin e John Fiske.
Os modelos desenvolvimentistas também conquistaram ascendência sobre as
teorias da neurologia, cujo representante inglês de maior relevo é Hughlins Jackson e
sua teoria sobre evolução e dissolução no sistema nervoso que resistiu às críticas de
Freud, tornando-se um dos alicerces de sua teoria das afasias. Jackson anuncia logo no
início de sua palestra, proferida no Royal College of Physicians, em 1884, que o
evolucionismo passou a ter cada vez mais abrangência na aplicação sistemática ao
entendimento dos diversos âmbitos da realidade, agora não mais se limitando aos
modelos explicativos darwinistas e reconhecendo no modelo de Herbert Spencer uma
nova possibilidade metodológica. Em seguida, ele afirma: “Penso, há muito tempo, que
seria de grande ajuda nas investigações das patologias do sistema nervoso, se as
considerássemos como reverso do processo de evolução, ou seja, como dissoluções.
Dissolução é o termo que empresto de Spencer para designar o reverso do processo de
evolução” (p. 155, 2003).
Antes de definir as patologias do sistema nervoso com os modelos de
dissolução, Jackson antes deixa claro aos ouvintes o que entende por evolução, esse
“desenvolvimento ascendente, dentro de uma ordem particular”. O autor utiliza a figura
da passagem em suas três definições do conceito, ou seja, é a passagem do automático
para o mais voluntário, do menos para o mais organizado, do mais simples para o mais
complexo, “colocando-se de outra forma, o progresso ocorre de centros
comparativamente melhor organizados ao nascimento em direção aos centros superiores
que, continuamente, se organizam ao longo da vida” (p. 155, 2003).

                                                                                                                       
27
No caso da Sociologia, Lévi-Strauss (1950) chama a atenção para o fato de que os modelos de evolução
importados da biologia apenas serviram como justificativa para um problema já existente na disciplina.
Ele afirma que o evolucionismo sociológico já era teoria presente e apenas fez uso das teorias
evolucionistas da biologia para justificá-lo. Nos dizeres do autor “é a maquiagem falsamente científica
para um velho problema” (1950/1976, p.62).
132  
 

Assim, é possível afirmar, mediante uma breve visada sobre definição de


evolução que Jackson admite, que a diferenciação e a opção por ele feita de saída entre
o evolucionismo de Spencer e o de Darwin não é ocasional ou indiscriminado. Como
visto acima, a teoria darwinista de evolução é oposta aos termos da definição de
Jackson. Enquanto esta equivale a uma passagem com direção definida e progressiva,
dentro de uma hierarquia valorativa do menos organizado para o mais organizado, do
automático para o voluntário, do simples ao complexo, as diretrizes darwinistas
apontam para um processo indeterminado em sua direção, cujo surgimento de novas
formas não está condicionado por um programa de aperfeiçoamento a ser cumprido
percorrendo um caminho composto por etapas de uma escala valorativa de
aperfeiçoamento.
No entanto, essa importante discriminação entre os modos de pensamento
evolucionista feita por Hughlins Jackson ao estabelecer as bases de sua teoria sobre as
patologias do sistema nervoso não foi o que se viu de modo geral na incorporação do
evolucionismo nas demais ciências. De modo geral, no movimento mesmo de migração
para outras áreas do conhecimento, toda a querela existente em torno conceito de
desenvolvimento e evolução que existia nos debates da Biologia parece sido deixada
para trás. Na amplitude de significação que outrora existiu, uma delas parece ter sido
elidida dos debates, restando apenas a que equivale desenvolvimento, evolução e
progresso.

“O desenvolvimento não consegue se desassociar das palavras com as


quais foi criado: crescimento, evolução, maturação. Da mesma forma,
os que hoje usam a palavra não conseguem libertar-se de uma teia de
significados que causam uma cegueira específica em sua linguagem,
pensamento e ação (...). A palavra sempre tem um sentido de mudança
favorável, de um passo do simples para o complexo, do inferior para o
superior, do pior para o melhor. Indica que estamos progredindo
porque estamos avançando segundo uma lei universal e inevitável e na
direção da meta desejável.” (Esteva, 2000 apud Ribeiro, 2003, p. 161).

Desse modo, constata-se que o sentido excluído, ou ao menos recalcado nos


debates sobre desenvolvimento e evolução, é aquele que foi dado por Darwin,
principalmente no que se refere à questão da teleologia. Parece haver restado,
sobretudo, apenas a divulgação de Darwin feita por Ernst Heinrich Haeckel,
amplamente aceita pelas outras ciências no início do século passado, mas cujo resultado
133  
 

e impacto sobre a concepção de desenvolvimento utilizada estão longe das


possibilidades oferecidas pelas teses darwinistas.
Professor de zoologia em Iena a partir de 1865, Haeckel foi não apenas um dos
principais divulgadores das ideias de Darwin na Alemanha, como também um dos
primeiros teóricos a fazer a junção das teorias darwinistas com outras ciências e com a
epistemologia da época, criando um sistema filosófico delas derivado que denominou
monismo (Assoun, 1983). Em 1866, na obra intitulada Generelle Morphologie der
Organismen, eleapresenta uma concepção de desenvolvimento denominada Lei
biogenética fundamental, também conhecida como teoria da recapitulação28, segundo a
qual a ontogênese repete a filogênese. Baseada no resultado das pesquisas de Fritz
Müller sobre embriões de crustáceos (biólogo que, por sua vez, tentava confirmar uma
hipótese de Darwin), a teoria da recapitulação formalizada na lei biogenética
fundamental pretende-se ser uma lei de causalidade universal, passível de ser estendida
para a natureza inteira, e considera a existência de uma isomorfia entre o
desenvolvimento do indivíduo e o desenvolvimento da espécie a qual ele pertence. Nas
palavras desse biólogo e naturalista alemão: “devemos traduzir essa breve fórmula
como segue: a série de formas pelas quais passa o organismo individual, a partir da
célula primordial até seu pleno desenvolvimento, não é mais que uma repetição em
miniatura da longa série de transformações sofridas pelos ancestrais do mesmo
organismo, desde os tempos mais remotos até os nossos dias” (Haeckel apud
Canguilhem et. al., 2003, p. 82). Assim, o indivíduo representante da espécie no tempo
presente, ao longo de sua existência, tem a potencialidade de repetir as etapas das
formas finais dos processos de desenvolvimento já ocorridos na espécie. Esse programa
desenvolvimentista seria o legado dos ancestrais conferindo uma sequência de
transformações simétricas e previsibilidade ao desenvolvimento do indivíduo. Embora
tenha sido criticada e acusada de fraude em seus dados fundamentais, tal teoria se
manteve vigente até a década de 1930 aproximadamente.
Ainda que a teoria da recapitulação tenha sido entendida como uma espécie de
apoio às teses darwinistas e uma confirmação para elas, muitos autores apontam suas
diferenças. Canguilhem, por exemplo, enfatiza que um dos extravios da teoria da

                                                                                                                       
28
Segundo Bolens (2001/2) e Gould (1977), Haeckel não foi o primeiro autor a teorizar sobre a
recapitulação. As primeiras concepções dos biólogos alemães sobre o assunto advêm das ideias do
romantismo e da Naturphilosophie, e começam a surgir nos últimos anos do sec. XVIII e primeiros anos
do século seguinte. Para uma visão mais aprofundada do assunto, a referida obra de Gould contém um
capítulo dedicado a esse tópico intitulado Origens Transcendentais1793-1860.
134  
 

recapitulação em relação à teoria darwinista – quando supostamente deveria ser sua


promotora (Canguilhem et. al., 2003) –, refere-se à desconsideração da importância do
meio. Segundo essa crítica, a ideia de recapitulação da filogênese, ao condicionar o
devir do organismo ao trajeto percorrido pelos seus ancestrais, desconsideraria o
presente, o seu meio atual e a importância da interação entre esses dois termos para o
desenvolvimento.
Outro ponto de dissensão entre as teorias, apontado por Bolens (2001/2) e
Canguilhem (2003), refere-se à noção de desenvolvimento nelas implicadas. Enquanto
para Darwin o curso da evolução é imprevisível, para Haeckel a recapitulação significa
passar por estágios das formas ancestrais adultas em ordem correta, hierárquica e
progressiva. As variações pelas quais o organismo recapitulativo irá passar ao longo de
sua vida estão preformadas pelo passado de sua espécie, no curso de uma ortogênese.
Desse modo, é possível constatar que o abandono da ideia de desenvolvimento
darwinista em favor de uma concepção progressista de transformação, já constatada
anteriormente nas outras ciências, também ocorreu no interior dos estudos da biologia.
Ritvo (1992), em seu estudo A influência de Darwin sobre Freud, cita também os
nomes de Karl Ernst von Baer e Karl Wilhelm von Nägeli dentre os biólogos que não
abriram mão da concepção de evolução “com base em uma tendência inata para a
perfeição” (p.56). Na passagem abaixo, Ritvo deixa isso evidente:

“(...) Nägeli, von Baer e outros que preferiam uma força ortogenética
interna no sentido da perfeição à operação cega da seleção natural
sobre as variações casuais. O primeiro tradutor alemão de Darwin,
Bronn, achava uma força ortogenética interna de mais fácil
compreensão que a seleção natural.” (Ritvo, 1992, p. 251).

4.3 Freud e a fantasia filogenética

“Espero que o leitor, tendo notado pela forma


maçante de muitos parágrafos como as
observações foram montadas de maneira penosa e
feitas com muito cuidado, seja tolerante,
permitindo que a crítica ceda lugar à fantasia na
apresentação de coisas incertas, embora
estimulantes, o que justifico, na medida em que se
pode, assim, abrir novas perspectivas.”, Sigmund
Freud, Neuroses de Transferência.
135  
 

Ao menos no que se refere às obras de Jung, Ferenczi e Zilboorg que foram


apresentadas nos capítulos anteriores, é possível encontrar a ideia principal da teoria da
recapitulação de Haeckel como um dos pressupostos teóricos fundamental. Abraham
também foi um teórico que utilizou essa ideia e afirma textualmente que a “(...)
psicanálise está constantemente encontrando confirmação do fato de que o indivíduo
recapitula a história de sua espécie, também em seus aspectos psicológicos” (1970, p.
158), não deixando dúvidas a respeito de sua posição.
A obra de Ferenczi, no entanto, apresenta nuances em relação à concepção de
desenvolvimento que tornam necessários maiores comentários para melhor apreendê-la.
Ainda que o texto comentado no capítulo anterior demonstre ter havido uma adesão do
autor às teses de Haeckel, nele também é possível notar um elemento estranho à teoria
da recapitulação quando Ferenczi insere a importância do meio externo para que o
desenvolvimento ontogenético ocorresse e houvesse a recapitulação da filogênese, fator
esse que, como visto acima, não estava posto como condição prévia de recapitulação na
teoria de Haeckel. Desse modo, no texto referido, o desenvolvimento não é o processo
que testemunha a manifestação de uma tendência inata seguindo seu curso sem
interferência externa rumo ao seu termo. Na hipótese apresentada por Ferenczi, o meio
impõe resistências, as chamadas ondas de recalque, que parecem cavar um leito no qual
o desenvolvimento do sentido de realidade pode seguir seu curso e alcançar sua meta
progressivamente, uma fez que a tendência original é a regressão e não a progressão.
Desse modo, é possível afirmar que há recapitulação, há etapas hierarquicamente
diferenciadas, há uma escatologia para a ontogênese do sentido de realidade, mas esse
processo não está garantido sem a determinação do meio.
Esse esquema explicativo se mantém na obra de Ferenczi e pode ser
reencontrado em Thalassa, texto de 1926, acrescido de novas gradações representadas
pela inserção das teses evolucionistas de Lamarck (citadas textualmente pelo autor) e do
relevo dado à regressão. A observação da correspondência entre Ferenczi e Freud
durante os anos iniciais primeira guerra mundial revelam que a importação para
Thalassa das ideias de Lamarck não foi fortuita. Primeiramente, entre 1915 e 1916, é
possível encontrar nas cartas entre os autores menções à teoria de Lamarck e a
manifestação de interesse dos dois autores em realizar um projeto denominado por eles
de o trabalho Lamarck, cujo objetivo era tecer conexões entre a psicanálise e as ideais
lamarckistas. Em cartas posteriores, que datam de 1917, Freud anuncia que vai ceder o
trabalho Lamarck a Ferenczi, que, de algum modo, parece tê-lo realizado em Thalassa.
136  
 

No entanto, há mais de Lamarck nas cartas trocadas entre Freud e Ferenczi.


Entre as cartas de 1914, há um manuscrito de Freud, recém descoberto, intitulado
Neuroses de Transferência: uma síntese29que também ficou conhecido como fantasia
filogenética. Tal escrito foi bastante influenciado pelo texto O desenvolvimento do
sentido de realidade e seus estágios de Ferenczi, a ponto de Freud anunciar na carta que
acompanha o manuscrito: “seus direitos autorais, no acima exposto, são evidentes”. Às
ideias contidas no manuscrito, Ferenczi respondera com entusiasmo: “minhas fantasias
ontogenéticas ganharam tão rapidamente uma irmã filogenética” (Grubrich-Simitis,
1987).
A irmã filogenética a que Ferenczi se refere está exposta no sexto item do
manuscrito de Freud que versa a respeito da disposição à neurose. Elemento mais
influente na escolha da neurose, a disposição seria uma espécie de inclinação a voltar a
um determinado ponto do desenvolvimento que se sobressaiu ou no qual se permaneceu
por muito tempo e que deixou resíduos, tal seria o ponto de fixação, que adviria de
fatores inatos ou suscitado por impressões prematuras. No entanto, Freud logo faz a
ressalva contra a alternância entre as duas origens da fixação – congênito ou adquirido –
e afirma que os fatores trabalham em conjunto: aos elementos constitucionais somam-se
os adquiridos precocemente.

“Onde se leva em consideração o elemento constitucional de fixação


não se afasta o adquirido: retroage para um passado ainda mais
remoto, já que se pode justamente afirmar que disposições herdadas
são restos das aquisições dos antepassados. Com isso, chega-se ao
problema da disposição filogenética atrás da individual, ou
ontogenética, e não há contradição quando o indivíduo adiciona às
suas disposições herdadas, baseadas em vivência anterior, as
disposições recentes derivadas de vivências próprias.” (Freud,
1914/1987, p. 71).

Desse modo, além da disposição para se regredir aos pontos de fixação presentes
na história do desenvolvimento do sujeito, há também a disposição de regressão aos
pontos de fixação que foram herdados e estão presentes na história do desenvolvimento
da espécie. Mais do que isso, Freud afirma a seguir que os pontos de fixação da
ontogênese seriam reproduções dos pontos de fixação da filogênese. Ainda que afirme

                                                                                                                       
29
Alguns comentadores da obra preferem, para o título Übersicht der Übertragungsneurosen, a tradução
Visão de conjunto das neuroses de transferência e não o título dado na tradução brasileira de Abram
Eksterman publicada pela editora Imago em 1987 (Monzani, 1991).
 
137  
 

que “ainda não é possível ter uma visão de conjunto sobre até que ponto a disposição
filogenética pode contribuir para a compreensão das neuroses” (p.71), a seguir Freud
afirma que “ainda é legítimo supor que também as neuroses têm de prestar seu
testemunho sobre a história do desenvolvimento da alma humana.” (p.72). Apresenta-se
aqui, portanto, que o modo como a neurose poderá prestar um testemunho a respeito da
história do desenvolvimento da alma humana será através da repetição do
desenvolvimento filogenético.
A partir dessa hipótese, Freud primeiro estabelece uma ordem cronológica de
aparecimento das neuroses para a ontogênese e, a seguir, tenta relacioná-la com uma
possível sequência de acontecimentos filogenética. Ou seja, Freud supõe um paralelo
entre as duas séries cronológicas – a série ontogenética e a série filogenética – e procura
encontrar, nos pontos de fixação de cada tipo de neurose, a repetição dos pontos de
fixação da história da humanidade, as fases que foram marcantes por algum motivo ou
que deixaram resíduos ao longo da história da espécie. Portanto, cada uma das neuroses,
narcísicas e de transferência, repetiria uma das situações filogenéticas30.
Nesse ponto, Freud recorre às ideias de Fritz Wittel para poder teorizar a
respeito de tais situações e fases da história da humanidade, teoria que afirma que “o
primata teria passado sua existência num ambiente extremamente rico, satisfazendo
todas as suas necessidades” (p. 74), teoria esta que Freud aproxima de um mito do
paraíso original. Seguindo a teoria de Wittel, Freud afirma que teria havido um
momento inicial no qual a humanidade conseguia satisfazer todas as suas necessidades,
tanto as sexuais quanto as de auto conservação, uma espécie de paraíso original no qual
a humanidade vivia sob a égide do princípio do prazer. Freud aceita também a tese de
Ferenczi, apresentada em O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios,
segundo a qual o fim desse estado de prazer da humanidade ocorreu devido aos
problemas e intempéries do meio externo, iniciados na era Glacial. A primeira reação da
humanidade aos problemas do começo da era glacial foi a angústia frente ao perigo
externo. Posteriormente, devido à diminuição da disponibilidade dos artigos para
subsistência, surgiu o conflito entre a auto preservação e o prazer de procriar, sendo
necessário, então, o controle da função genital. Em seguida, para continuar garantindo

                                                                                                                       
30
Essa teoria freudiana influenciou a obra do médico psiquiatra alagoano Arthur Ramos em sua obra
intitulada Primitivo e loucura (1926). De acordo com Pereira e Gutman (2007), “Arthur Ramos
considerava que os fenômenos psicóticos consistiriam em expressões mórbidas do primitivo sufocado em
cada sujeito e, para além do sujeito, da própria cultura, tal como Freud o proporia em seus estudos sobre
as relações entre o inconsciente e a história das civilizações” (p. 520).
138  
 

sua sobrevivência perante o meio hostil uma vez já tendo aprendido controlar sua libido,
Freud descreve que o homem teria desenvolvido sua inteligência para pesquisar a
natureza do mundo externo para dominá-lo; um equivalente próximo às descrições da
instalação de um princípio de realidade feita no texto Formulações sobre os dois
princípios do funcionamento mental, de 1911. Freud passa a descrever a formação da
horda liderada pelo pai, a castração dos filhos, fases que foram posteriormente
apresentadas em Totem e Tabu, relacionando-as sempre com as neuroses de
transferência e narcísicas. Portanto, enquanto reações aos problemas da era glacial, as
neuroses seriam a repetição desta criação humana, o que leva Freud a afirmar que “a
neurose também é uma aquisição cultural” (p.80). Ou seja, os sintomas específicos que
cada uma das neuroses apresenta, seria uma repetição das soluções encontradas pela
humanidade perante os problemas que o meio externo lhe impôs.
Essa interpretação da neurose como repetição da reação da humanidade à
catástrofe nos levaria, na leitura de Berlink (1999), a supor que, para Freud, a
humanidade possuiria uma psicopatologia que lhe é fundamental:

“Em outras palavras, Freud postula, a partir de Wittels e Ferenczi,


uma universalidade psicopatológica que, inicialmente, foi uma série
de soluções criativas diante da catástrofe glacial. O homem é, assim,
um ser da catástrofe e é a partir dela, e de uma capacidade criativa que
se transforma em repetição, que o ser humano é uma espécie
psicopatológica.” (Berlink, 1999, p.13).

Sequência Regressão libidinal Sequência Filogenética


Ontogenética
Histeria de angústia Privações impostas pela era glacial, a
humanidade ficou angustiada
Histeria de conversão Orienta-se contra o Conflito entre autopreservação e o prazer
primado dos genitais. de procriar, proibições da função genital.

Neurose obsessiva Contra a fase anterior Princípio da linguagem


sádica. Pensamento onipotente
Concepção anímica do mundo
Horda primitiva comandada pelo pai.
Demência precoce Regressão ao auto- Despojados da virilidade, por isso a volta
erotismo. ao auto-erotismo.
139  
 

Castração.

Paranoia Regressão à escolha Fuga dos filhos


homossexual e narcisista Satisfações sexuais homossexuais
de objeto.
Melancolia/ Mania Identificação narcisista Morte do pai
com o objeto. Trunfo e luto
Identificação com o pai

Tabela1: Descrição resumida das séries paralelas.

A admissão da tese de Haeckel na hipótese freudiana, apresentada no manuscrito


destinado a Ferenczi, parece ser fato evidente. Nele, por diversas vezes Freud afirma
que a ontogênese repete a filogênese. Entretanto, a explicação freudiana para as
neuroses vai além da tese da recapitulação de Haeckel uma vez que ele afirma que as
séries não podem ser totalmente sobrepostas, que há transformações nas neuroses, pois
ela é “um compromisso entre as coisas antigas dos tempos primitivos e a exigência do
culturalmente novo” (p.75), resultado do compromisso entre o que se conserva e o que
se renova, entre repetição e a mudança. Se há uma espécie de programa filogenético
pronto a ser repetido, a sua efetivação na ontogênese não se dá sem novas soluções e
escolhas. Assim, em nossa leitura, a teoria da recapitulação de Haeckel não explicaria
totalmente a origem das neuroses nesse manuscrito freudiano.
Contudo, Dunker (2002) afirma que a teoria que Freud expos no tópico sobre a
Disposição “deu origem a versões mais próximas da psicologia do desenvolvimento em
psicanálise” (p. 102). Não negamos que haja desenvolvimento em jogo nas teorias
psicanalíticas ou nas teorias de psicologia que derivaram das descobertas freudianas,
uma vez que não se trata de teorias que versam sobre esquemas ideais ou sobre um
aparelho psíquico que não esteja de nenhum modo submetido ao tempo. No entanto, de
que tipo de desenvolvimento se trata? Nessa afirmação, Dunker parece se referir às
versões teóricas de psicologia nas quais o conceito de desenvolvimento utilizado
aparece no sentido a que nos referimos acima como o mais divulgado e manifesto no
século XIX, ou seja, aquele que entende o desenvolvimento como uma modificação
gradual de uma organização menos complexa em direção a uma organização mais
complexa e mais perfeita que se dá em uma escala temporal linear e progressiva.
140  
 

Nosso próximo passo será verificar de que modo a teoria da recapitulação de


Haeckel, admitida por Freud no tópico que versa sobre a disposição às neuroses no
manuscrito, esteve presente ao longo de sua obra e se ela é o único modelo de
desenvolvimento presente em seus textos, pois assim poderemos conferir a legitimidade
da interpretação que levou à construção de teorias que adotam modelos
desenvolvimentistas lineares e progressistas a partir de sua obra.
141  
 

Capítulo 5

Metáforas do tempo em Freud

“E se apoderava do menino uma sensação já


muitas vezes experimentada, a impressão estranha,
entre sonhadora e angustiante, de algo que
desfilava sem se mover, que se mudava e contudo
permanecia, algo que era reiteração tanto como
vertiginosa monotonia – impressão que ele
conhecia de outras ocasiões, e cuja volta esperara e
desejara. Era em parte pelo prazer de senti-la mais
uma vez que pedia ao avô que lhe mostrasse a
relíquia da família, na sua imutável progressão.”
Thomas Mann, A montanha mágica.

Não deixa de surpreender o leitor que recorre à literatura de comentário de


estudos freudianos o fato de poder encontrar simultaneamente as interpretações que
apontam Freud como um autor desenvolvimentista enquanto outros textos enfatizam o
caráter atemporal do inconsciente. Como é possível conceber que um sistema possa ser
composto por traços psíquicos acrônicos, mas que, ao mesmo tempo, se desenvolvem
progressivamente? Poder-se-ia perguntar se esse paradoxo é apenas fruto de exegeses
opostas ou se realmente existem concepções diversas e complexas do tempo em Freud.
Como veremos ao longo do capítulo, possivelmente ambas as suposições sejam
verdadeiras.
Em seus estudos sobre a temporalidade em Freud, Gondar (1995) e Gueller
(2005) fizeram um levantamento das múltiplas concepções de tempo encontradas no
texto freudiano, que seriam pelo menos cinco: a atemporalidade, o tempo da memória
filogenética, o a posteriori, o tempo da pulsão, a regressão. Segundo Mezan (1985),
essa multiplicidade de abordagens em Freud, somada à dispersão das reflexões sobre o
tema – que aparece nos textos apenas em comentários adicionais ou secundários, não
recebendo uma reunião das concepções em jogo em um só trabalho –, dificultaria a
compreensão de suas nuances, fazendo do tempo uma das mais confusas e embaraçadas
questões do legado do pensamento freudiano para seus intérpretes.
142  
 

Outra característica do esquema freudiano de referência ao tempo é a frequente


utilização de metáforas para explicitar seus modelos teóricos. Existem as metáforas
arqueológicas de Roma e de Pompéia, a metáfora do sistema de transcrições e dos
fueros, as metáforas de herança. No entanto, nenhuma delas foi capaz de reunir em seu
sentido todas as concepções do tempo, o que possivelmente se deu não pela
insuficiência figurativa dessas metáforas, mas pela própria complexidade da matéria a
ser representada. Em seu estudo sobre o uso da metáfora por Freud, Spence (1992)
afirma que o emprego do recurso metafórico,

“(...) ressalta a natureza poética da linguagem de Freud e sublinha sua


luta para pôr em palavras o indizível e o impensável. Essas tentativas,
como ele deixou claro em muitas passagens, eram com frequência
tateantes, experimentais e exploratórias: primeiras aproximações a
fenômenos e experiências que, mesmo agora, conseguem escapar
entre nossos dedos. É em parte porque permanece difícil de apreender
que a experiência tende a ser substituída pela metáfora.” (Spence,
1992, p.23).

Seguindo a indicação da interpretação de Spence, a utilização frequente por


Freud da metáfora como recurso para expressar suas concepções de tempo poderia
indicar que essas teorias se encaixavam no conjunto das matérias de difícil aproximação
e apreensão. Ora, se admitirmos essa premissa como válida, logo teremos que supor
que as concepções de tempo em jogo na obra freudiana não podem ser reduzidas
facilmente aos sentidos mais corriqueiros e usuais, como, por exemplo, o de um tempo
linear, progressivo e irreversível, que caracterizam o desenvolvimentismo tout court.
Mas, respeitando a complexidade do tema, tenhamos cautela. Convém analisar
ao menos algumas dessas metáforas do tempo em Freud, não com o intuito de entender
suas explicações de como se daria a apreensão subjetiva do tempo, mas verificar se
haveria em Freud qualquer descrição que pudesse corroborar a tese de que a exposição à
ação de passagem do tempo cronológico possa implicar em modificações graduais e
cumulativas nas organizações dos traços psíquicos que pudessem ser entendidas como
aperfeiçoamento desse aparelho ou como a realização de uma meta pré-estabelecida.
143  
 

5.1 Heranças pré-históricas: repetição e progresso.

“(...) é nos conceitos biológicos que residem os


últimos vestígios de transcendência de que dispõe
o pensamento moderno.” Levi- Strauss, As
estruturas elementares do parentesco.

É possível afirmar que a importação da teoria da recapitulação para a


compreensão da teoria das neuroses, exposta por Freud no manuscrito para Ferenczi, de
modo algum foi episódica. A denominada fantasia filogenética, longe de se limitara
essa correspondência ou ao abandonado projeto Lamarck, esteve presente ao longo da
evolução do pensamento freudiano, do início ao fim, e foi elemento importante da
fundamentação freudiana para os caracteres supraindividuais e para a psicologia de
grupo em sua metapsicologia. É possível encontrar seus rastros já em A Interpretação
dos sonhos (1900), na passagem em que Freud afirma:

“Sempre que as neuroses se valem de disfarces, estão percorrendo


trilhas por onde passou toda a humanidade nas épocas mais remotas
da civilização – trilhas de cuja continuada existência em nossos dias,
sob o mais diáfano dos véus, encontram-se provas nos usos
linguísticos, nas superstições e nos costumes.” (Freud, 1900/1996, p.
378).

As trilhas a que Freud se refere na passagem acima estariam filogeneticamente


traçadas e explicariam o percurso das duas linhas de desenvolvimento no aparelho
psíquico, ou seja, as trilhas traçadas pelos antepassados da espécie seriam repetidas
resumidamente pelo indivíduo tanto em seu desenvolvimento libidinal quanto no
desenvolvimento de seu eu. Encontramos essa afirmação na conferência XXII das
Conferências Introdutórias, na qual Freud afirma que as duas linhas de
desenvolvimento seriam “heranças, recapitulações abreviadas do desenvolvimento pelo
qual toda a humanidade passou, desde épocas primitivas, por longos períodos de
tempo.” (1917/1996, p. 357). Freud afirma, seguindo a mesma linha argumentativa
presente no manuscrito sobre as Neuroses de Transferência, que teriam sido as
exigências impostas pelo ambiente externo as responsáveis por levar a humanidade a
criar formas de se defender dos conflitos suscitados pelo meio hostil, e encontrar novos
modos e novos objetos de satisfação. Esses artifícios criados diante das frustrações
144  
 

ambientais seriam agora evocados pela humanidade que ainda enfrenta as mesmas
pressões e frustrações. Enfatizamos aqui que a hipótese freudiana não consiste na
transmissão de ideais ou desejos – tal como está expresso, por exemplo, no texto Sobre
o Narcisismo: Uma introdução (1914b) –, mas sim na transmissão, para o indivíduo, de
conteúdos “inatamente presentes nele, quando de seu nascimento, elementos com uma
origem filogenética – uma herança arcaica” (Freud, 1939[1934-38]/1996, p.112).
Em Moisés e o Monoteísmo (1939[1934-38]/1996), Freud reitera a posição
assumida desde o início de sua obra, ou seja, a de que não se trata de conteúdos cuja
transmissão se faria operar através da educação, da comunicação direta ou tradição de
um povo, mas insiste na ideia de um conteúdo reprimido, inconsciente e hereditário.
Ele, porém, não deixa de reconhecer os problemas dessa posição e assume se tratar de
uma “audácia” necessária. O problema na assunção dessa posição é que, no entender de
Freud, ela dependia da aceitação da hipótese lamarckista da herança de caracteres31
adquiridos, hipótese esta que, segundo ele, já havia sido ultrapassada pela biologia na
época:

“Minha posição, sem dúvida, é tornada mais difícil pela atitude atual
da ciência biológica, que se recusa a ouvir falar na herança dos
caracteres adquiridos por gerações sucessivas. Devo, contudo, com
toda modéstia, confessar que, todavia, não posso passar sem esse fator
na evolução biológica.” (Freud, 1939[1934-38]/1996, p. 114).

Freud reitera que o fator determinante para que uma experiência se tornasse
elemento do conjunto de recordações que farão parte da herança filogenética é seu grau
de importância ou a frequência de sua repetição32 na história da espécie. A repetição

                                                                                                                       
31
Segundo Ritvo (1992), no entender dos estudos biológicos, a admissão da teoria da recapitulação de
Haeckel não depende necessariamente da aceitação da hipótese dos caracteres adquiridos lamarckista.
Para maiores esclarecimentos sobre a autonomia da teoria da recapitulação em relação à tese de Lamarck,
indicamos ao leitor conferir o quinto capítulo da referida obra de Ritvo.
32
Mas, novamente de acordo com Ritvo (1992), ainda que o debate da biologia no período pudesse
descartar a admissão da teoria dos caracteres adquiridos lamarckista como fator essencial para a aceitação
da tese de Haeckel, não poderia eliminar outro fator como essencial para fundamentar a existência de
experiências herdadas: a repetição (p.254). Esse fator é admitido por Freud em O Ego e o Id (1923) e
explicado em uma passagem que talvez seja a mais clara a respeito do mecanismo de transmissão a
respeito desse conteúdo herdado: “(...) não é possível falar de herança direta no ego. É aqui que o abismo
entre um indivíduo concreto e o conceito de uma espécie se torna evidente. (...). As experiências do ego
parecem, a princípio, estar perdidas para a herança; mas, quando se repetem com bastante frequência e
com intensidade suficiente em muitos indivíduos, em gerações sucessivas, transformam-se, por assim
dizer, em experiências do id, cujas impressões são preservadas por herança. Dessa maneira, no id, que é
capaz de ser herdado, acham-se abrigados resíduos das existências de incontáveis egos; e quando o ego
forma o seu superego a partir do id, pode talvez estar apenas revivendo formas de antigos egos e
ressuscitando-as.” (Freud, 1923, p.51).
145  
 

torna-se um fator importante pois, segundo a hipótese freudiana, além de marcar um


evento como apto a fazer parte do conjunto de lembranças a serem transmitidas, será a
repetição desse evento na ontogênese que fará essa recordação se manifestar, após seu
longo período inconsciente, como retorno do recalcado (Freud, 1939[1934-38]).
No entanto, ainda resta sem resposta uma questão anunciada acima: qual seria a
razão que levaria Freud a assumir uma tese tão arriscada cujos fundamentos não eram
corroborados pela ciência biológica de seu tempo? Como aponta Mezan (1985), no
texto intitulado Uma breve descrição da psicanálise (1924 [1923]), Freud ressalta a
existência de muitas analogias surpreendentes entre fenômenos individuais e
fenômenos da cultura como, por exemplo, o tratamento dado às contradições nos sonhos
e nos idiomas arcaicos, entre os atos e rituais dos neuróticos obsessivos e os ritos de
diversas religiões, o papel de importância dado ao pai nas neuroses e em muitas
religiões, o simbolismo no sonho que apresenta as mesmas imagens e significações em
diferentes indivíduos. Como é possível explicar a existência de conteúdos psíquicos
similares entre o indivíduo e algumas práticas sociais mesmo em diferentes épocas? Ou
ainda, o que explicaria que houvesse formas similares de retorno do recalcado em
diferentes indivíduos cuja interpretação revela sentidos afins?
A resposta, até onde podemos ver, se encontra no uso freudiano do conceito de
filogênese, uma vez que não seria possível fundamentar a existência de conteúdos
universais e trans-históricos na ontogênese, ou seja, nas experiências particulares de
cada indivíduo ou tempo histórico. Assim, será através desse conceito advindo das
ciências biológicas que Freud poderá explicar as analogias entre a psicologia individual
e alguns fenômenos culturais, os quais ele denominará psicologia de grupo:

“Se presumirmos a sobrevivência desses traços de memória na


herança arcaica, teremos cruzado o abismo existente entre a psicologia
individual e de grupo: podemos lidar com povos tal como fazemos
com um indivíduo neurótico. Sendo certo que, atualmente, não temos
provas mais fortes da presença de traços de memória na herança
arcaica do que os fenômenos residuais do trabalho da análise que
exigem uma derivação filogenética, ainda assim essas provas nos
parecem suficientemente fortes para postular que esse é o fato. Se não
for, não avançaremos, quer na análise quer na psicologia de grupo. A
audácia não pode ser evitada.” (Freud, 1939[1934-38]/1996, p. 114).

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           
 
 
146  
 

No entanto, ainda nos perguntamos a razão da insistência de Freud na utilização


de conceitos já ultrapassados pela biologia para fundamentar sua tese. Não haveria
outros meios de teorizar a respeito dos conteúdos que não são dados empiricamente mas
que são determinantes para a experiência sem recorrer à teoria dos caracteres adquiridos
já em desuso? Encontramos uma explicação profícua em Baas (2001), cuja hipótese
principal consiste em que a possibilidade da formulação por Freud de uma constituição
a priori do psiquismo sem aludir às filosofias idealistas, ao transcendental ou sem cair
em teses mitologizantes, só poderia ser levantada recorrendo-se à noção de herança
filogenética, a qual poderia a um só tempo fornecer um elo entre a psicologia de grupo e
a psicologia individual sem que fosse preciso para isso perder a materialidade e a
cientificidade da explicação, ainda que a teoria biológica importada já fosse considerada
controversa.
Entretanto, na concepção de Freud, o conteúdo da herança filogenética não
poderia ser igualado ao conteúdo ou ao funcionamento fisiológico. Em sua definição, o
herdado seria uma espécie de “simbolismo inato”, uma história importante da
humanidade que se tornou conteúdo recalcado que se reatualiza, opera e ganha
importância justamente por representar a renovação de um conflito. Um exemplo dessa
condição seria a explicação freudiana para a existência do horror ao incesto. No trecho
abaixo, retirado de Moisés e o Monoteísmo, Freud afirma que as provas da existência do
incesto em povos primitivos seriam um dos modos de confirmar que a determinação de
seu impedimento não seria fornecida por questões meramente biológicas, mas por um
evento na história da humanidade que foi adquirido e agora se repete.

“A evidência do incesto entre deuses, reis e heróis ajuda-nos também


a lidar com outra tentativa, que busca explicar biologicamente o
horror ao incesto e fazê-lo remontar a um obscuro conhecimento dos
danos causados pelo cruzamento consanguíneo. Sequer é certo,
entretanto, que exista algum perigo de danos por causa desse
cruzamento, quanto mais dizer que povos primitivos pudessem tê-lo
identificado e contra ele reagido.” (Ibid., p. 136).

Bem ao contrário, portanto, que uma determinação puramente biológica. Na


continuidade do texto, Freud afirma que o horror ao incesto e a exigência de exogamia,
alguns dos principais conteúdos da herança filogenética, tiveram sua origem na história
da humanidade que, quando na horda primitiva, obedeceu à manifestação da “vontade
do pai” primevo e que deu continuidade a essa vontade após assassinato do pai por seus
147  
 

filhos. Essa herança inata é resquício do que um dia foi um acontecimento, tornou-se
um conteúdo inconsciente recalcado e justamente por isso, segundo Freud, “dai provém
a força de seu tom emocional” (p. 136), algo que não ocorreria com conteúdos externos
ao sujeito que lhe seriam transmitidos pela educação e pela tradição cultural.
Essa espécie de recapitulação resumida da história da humanidade, que acarreta
a reatualização dos conflitos psíquicos e suas soluções na ontogênese, como já dito
acima, é um modelo que será aplicado por Freud tanto para teorizar o desenvolvimento
do eu quanto o desenvolvimento libidinal. Mas, segundo esse modelo teórico, a
atualização da série de recapitulações não estaria garantida de ocorrer na ontogênese,
podendo haver inibições e regressões que atrapalhariam a realização desse programa.
Na Conferência XXII (1917), Freud apresenta uma explicação para essa espécie de
tropeço desenvolvimentista, alegando que “em vista da tendência geral dos processos
biológicos à variação, não há como fugir do fato de que nem todas as fases preparatórias
são ultrapassadas com igual êxito e superadas completamente” (p.343). A essa espécie
de permanência sistemática em um dos modos de organização constituintes do caminho
de desenvolvimento a ser recapitulado, Freud deu o nome de fixação. No entanto,
mesmo aqueles que passaram por diversas etapas desse caminho ainda assim não
estariam a salvo, pois Freud afirma que “o segundo perigo de um desenvolvimento por
etapas desse tipo reside no fato de que as partes que prosseguiram adiante podem
também, com facilidade, retornar a um desses estádios precedentes (...)” (p.344),
movimento esse que denominou de regressão. Vimos em nosso segundo capítulo como
em Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1917[1915]) é possível encontrar
um exemplo do movimento de regressão temporal aplicado à elucidação do que
ocorreria durante o estado de sono com o desenvolvimento do eu, cujo ponto de
restauração seria o narcisismo primitivo, e com o desenvolvimento da libido, que
retornaria à etapa da satisfação alucinatória dos desejos (p. 229). Como a manta que é
tecida por Penélope durante o dia e desmanchada durante a noite, as progressões na
organização que ocorreram poderiam ser desfeitas durante o estado de sono,
regressando às etapas anteriores para novamente serem tecidas.
Retomando o problema dos modelos temporais e as definições de
desenvolvimento apresentadas no capítulo anterior, nos perguntamos se haveria
possibilidade de classificar essa concepção freudiana para o desenvolvimento
ontogenético do eu e da libido como repetição filogenética em algum dos esquemas
desenvolvimentistas apresentados. Parece ser possível descrever a série como etapista,
148  
 

direcionada para a finalidade de encontrar o último estágio de desenvolvimento


filogenético a ser recapitulado pelo indivíduo, estágio esse que parece envolver uma
complexidade maior que a primeira etapa da série. Talvez aqui possamos encontrar,
finalmente, uma resposta para a afirmação de Dunker (2002) com a qual terminamos o
capítulo anterior, segundo a qual a teoria freudiana exposta no tópico do manuscrito
Disposição e reencontrada na explicação sobre a etiologia da neurose em outros
momentos de sua obra “deu origem a versões mais próximas da psicologia do
desenvolvimento em psicanálise” (p. 102). Afinal, essa teoria parece muito próxima às
teorias da embriologia chamadas de epigênese e pré-formação que explicam o
desenvolvimento como um processo progressivo, processual e teleológico, como uma
passagem gradual de uma organização menos complexa para uma organização mais
complexa para que algo possa se constituir plenamente.
No entanto, a característica reversível do desenvolvimento que Freud inclui em
seu esquema com o nome de regressão temporal, parece embaralhar um pouco a
equivalência estabelecida acima entre o seu modelo de desenvolvimento e aqueles
descritos pela embriologia. Encontramos uma possível explicação para isso em uma
passagem do texto O Mal-estar na civilização, na qual Freud teoriza a respeito do
desenvolvimento do corpo e sua diferença com o desenvolvimento da mente:

“As primeiras fases do desenvolvimento já não se acham, em sentido


algum, preservadas; foram absorvidas pelas fases posteriores, às quais
forneceram material. O embrião não pode ser descoberto no adulto. A
glândula do timo da infância, sendo substituída, após a puberdade, por
tecidos de ligação, não mais se apresenta como tal (...). Permanece o
fato de que só na mente é possível a preservação de todas as etapas
anteriores, lado a lado com a forma final (...).” (Freud,
1930[1929]/1996, p.80).

Seguindo e aceitando a distinção estabelecida por Freud para o desenvolvimento


do corpo e da mente, deduzimos não ser possível aplicar de forma integral os modelos
de descrição desenvolvimentistas advindos da embriologia para compreender os
fenômenos mentais, já que, no entender de Freud, eles são constituídos por substratos
diversos. Os modelos de desenvolvimento embriológicos de pré-formação e epigênese
não abarcam a regressão em sua teorização. O destino para o qual se poderia retornar foi
abolido no movimento mesmo do desenvolvimento, dado que as fases anteriores vão
sendo consumidas pelas etapas que as sucedem. Na esfera mental, devido à existência
simultânea dos traços e das organizações psíquicas passadas com as atuais, o retorno às
149  
 

organizações iniciais seria não apenas possível como recorrente, não apenas em casos
patológicos, mas sempre em que o homem está, por exemplo, no estado de sono, de
acordo com a sugestão de Freud em Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos,
referida acima. Assim, seguindo esse modelo freudiano, na esfera mental, a regressão às
organizações iniciais do desenvolvimento seria um evento universal e frequente no
aparelho psíquico tal como ele o descreve, ou seja, em que os traços passados subsistem
com os traços presentes.
Mas antes de analisarmos a hipótese freudiana da simultaneidade dos traços
psíquicos e suas implicações para o desenvolvimento, voltemos à ideia de recapitulação
da filogênese, pois, de acordo com alguns autores como Lebrun (1983)33 e Mezan
(1985), a aceitação da tese segundo a qual a reatualização da filogênese seria a
explicação para muitos fenômenos sociais – tal como a existência do terror ao incesto, a
exogamia, a importância dada ao pai em muitas religiões e outros fundamentos éticos e

                                                                                                                       
33
Em 1979, o filósofo Gerard Lebrun escreve para o Jornal da Tarde o texto O selvagem e o neurótico, no
qual tece comentário sobre o texto freudiano Totem e Tabu. Ao examinar as diversas concepções que
servem de base para as teses da obra referida, Lebrun centrará suas críticas de modo mais incisivo sobre o
emprego que Freud faz da lei biogenética de Haeckel, segundo a qual a ontogênese repete a filogênese.
De acordo com Lebrun, ao aplicar esse postulado desenvolvimentista para pensar as instituições sociais,
Freud estaria naturalizando sua origem, transformando uma construção sócio-histórica em padrões
biológicos indispensáveis à espécie. Para além da confusão entre “valores sócio-culturais e normas vitais”
na explicação das instituições sociais, a admissão desse princípio levaria também ao estabelecimento de
balizas de normalidade para desenvolvimento psicológico do indivíduo:

“Que a infância seja uma corrida biocultural de obstáculos com um programa fixado em linhas
gerais pelo passado da espécie – esta é uma crença que provém da psicologia genética. Mas foi o
freudianismo um dos seus melhores divulgadores. E deve-se também em parte a ele a invasão, há tempos,
de nossos costumes e nossa crença, derivada daquela – a saber, a opinião de que todo desvio relativo ao
optimum cultural, todo afastamento dos desempenhos minimais que a comunidade aguarda de mim
podem apenas significar que faltei à minha destinação psicobiológica – e que esta falta é passível de
diagnóstico e medida. Em outras palavras, a normalidade mental é testável, por princípio. (...) O próprio
Édipo (esquecemos quase sempre) é também o nome de um teste – em que são os neuropatas os que
ficaram para a segunda época.” (Lebrun, 1983, p. 102).
 
Portanto, a interpretação que Lebrun faz da obra freudiana é que esta, ao incorporar a lógica do
postulado de Haeckel às concepções psicanalíticas, assumiria como autoevidentes uma gênese biológica
das instituições sociais e a existência de um princípio universal da espécie – representado pelo complexo
de Édipo –, o qual serviria de parâmetro valorativo para medir normalidades e desvios no
desenvolvimento individual. No entanto, os argumentos do autor da crítica à suposta lógica de
desenvolvimentismo em Freud, que não se trataria mais e apenas de um princípio que poderia implicar
segregação neuropatas e todo o conjunto de indivíduos que não chegaram ao estágio final do
desenvolvimento, essa “projeção abreviada da história da civilização” (p. 101). Desse modo, e como
desdobramento dessa hipótese de leitura, cabe ao psicanalista em seu exercício ser “o engenheiro de
integração social” ou o “consertador de Desejo para garantir que a liquidação do Édipo esteja no rumo
certo” (Lebrun, 1983, p.103) para poder garantir a maturação do paciente para poder assim adaptá-lo ao
meio e reconciliá-lo “com os valores (e pouco importa sejam estes de direita ou de esquerda)” (Lebrun,
1983, p.103).
150  
 

estéticos da cultura – poderia levar à interpretação de que as instituições sociais34 seriam


totalmente determinadas pela pura repetição de uma história passada. A hipótese
admitida por Mezan afirma que a concepção da herança filogenética seria um recurso
que permitiu Freud “(...) por entre parênteses, como irrelevantes, a dimensão histórica
propriamente dita – pois, se a História é a epifania do reprimido, tudo está dado desde o
início e a possibilidade do novo é inconcebível – e a dimensão social (...)” (1985, p.
555). Caso a tese de Mezan seja válida e o desenrolar histórico esteja realmente elidido
dentro do modelo filogenético, poderíamos afirmar talvez a existência de uma lógica
temporal cíclica coordenando o processo de repetição filogenética, lógica imposta pelo
retorno do recalcado que determinaria a constante repetição do mesmo conflito passado
que constitui uma espécie de sistema fechado de acontecimentos, contrariando desse
modo qualquer hipótese evolucionismo linear e progressista, tanto para a esfera das
instituições sociais, quanto para a esfera de desenvolvimento individual35.
Vimos no capítulo anterior, nos comentários sobre Neuroses de transferência:
uma síntese (1914/1987), a afirmação de Freud de que a série filogenética e
ontogenéticas não poderiam ser totalmente sobrepostas. Perguntamos a que ponto essa
concepção de Freud se estenderia para suas demais obras e qual seria a fração dessa
disjunção a fim de investigar se há apenas a presença pura do determinismo da repetição
filogenética ou se haveria a possibilidade da existência de alguma contingência advinda
da ontogênese.
No texto A Dissolução do Complexo de Édipo (1924b), encontramos um
comentário de Freud a respeito dessa questão. Já nas primeiras linhas, Freud afirma
ainda não estarem claros os fatores que levariam à queda do complexo e passa então a
investigar quais seriam as possíveis causas para isso. A segunda das causas apontadas
por Freud é justamente a hipótese da queda como parte constituinte de um programa
filogenético que está destinado a se realizar ao longo da ontogênese: tal como os dentes

                                                                                                                       
34
Não debateremos aqui as implicações sociais dessa concepção, mas sim as implicações dessa visão para
o indivíduo e seu desenvolvimento com o intuito de responder a questão que norteia esse trabalho.
Indicamos o texto de Mezan (1985) e Monzani (1991) como referências para um encaminhamento mais
aprofundado dessa questão.  
35
Em uma passagem do texto A história do movimento psicanalítico (1914), Freud comenta a visão de
Jung a respeito da evolução das sociedades e se contrapõe a ela:
“O argumento ad captandam benevolentiam de Jung repousa na suposição demasiado otimista de que o
progresso da raça humana, da civilização e do conhecimento sempre seguiu uma linha ininterrupta, como
se não tivesse havido períodos de decadência, reações e restaurações após cada revolução, e gerações não
tivessem dado um passo atrás e abandonado as vantagens de seus antecessores.” (Freud, 1914/1996,
p.67).
151  
 

de leite devem cair, tal como o organismo está destinado a morrer, o complexo de Édipo
também deveria chegar ao seu termo.

“Outra visão é a de que o complexo de Édipo deve ruir porque chegou


a hora para a sua desintegração, tal como os dentes de leite caem
quando os permanentes começam a crescer. Embora a maioria dos
seres humanos passe pelo complexo de Édipo como uma experiência
individual, ele constitui um fenômeno que é determinado e
estabelecido pela hereditariedade e que está fadado a findar de acordo
com o programa, o instalar-se a fase seguinte preordenada pelo
desenvolvimento. Assim sendo, não é de grande importância quais as
ocasiões que permitem tal ocorrência ou, na verdade, que ocasiões
desse tipo possam ser de algum modo descobertas. (...) Há lugar para a
visão ontogenética, lado a lado com a filogenética, de consequências
bem maiores. Também procede que, mesmo no nascimento, o
indivíduo está inteiramente destinado a morrer, e talvez sua disposição
orgânica já possa conter a indicação daquilo que deve morrer. Não
obstante, continua a ser de interesse acompanhar como esse programa
inato é executado e de que maneira nocividades acidentais exploram
sua disposição.” (Freud, 1924/1996, p.194).

A passagem acima parece indicar que a realização do programa do declínio,


determinado pela filogenética, ocorreria por seus próprios mecanismos internos,
obedecendo a um conjunto integrado de ações prévias e já estabelecidas, cujo resultado
independeria dos modos de sua consecução, que seria algo puramente circunstancial.
Passo seguinte, Freud destinará os parágrafos restantes de seu texto a demonstrar de que
forma a experiência de castração desencadearia o declínio do complexo de Édipo.
Poderia parecer ao leitor um verdadeiro paradoxo na explicação colocar a
fundamentação da realização de um programa filogenético na experiência, algo
aparentemente tão particular, caso Freud não afirmasse, na continuidade do texto, ser a
experiência de ameaça de castração uma vivência universal, “por que todas as crianças
passam” (p.195). Ainda que no penúltimo parágrafo do texto Freud afirme que as
“variações na ordem cronológica e na vinculação desses eventos estão fadados a ter um
sentido muito importante no desenvolvimento do indivíduo” (p.199), esse item não é
examinado a fundo por Freud, de tal modo que o texto parece imprimir pouca
importância à ontogênese e qualquer contingência que daí pudesse advir.
Porém, uma regressão temporal nos escritos freudianos, passando de 1924 a
1917, nos mostra como a questão é mais complexa do que parece a primeira vista,
podendo nos levar a uma conclusão absolutamente oposta. Encontramos na Conferência
152  
 

XXIII passagens textuais que podem nos auxiliar a entender a afirmação de Freud da
existência de uma experiência universal de ameaça de castração.

“Entre as ocorrências que aparecem repetidamente na história dos


anos iniciais da vida dos neuróticos – recordações que raramente estão
ausentes – existem algumas de especial importância, as quais, por esta
razão, penso, merecem maior relevo que o restante. Como exemplos
dessa categoria, enumero as seguintes: observação do coito dos pais,
sedução por um adulto e ameaça de ser castrado.” (Freud,
1917b/1996, p. 371).

No trecho acima, Freud afirma que não apenas a ameaça de castração é uma
experiência incontornável para o neurótico, mas que também o são a observação da cena
de coito dos pais e a sedução por um adulto. Em seguida, Freud irá debater a respeito da
possibilidade de que esses eventos de fato ocorram e afirma que o testemunho dos
parentes próximos aos pacientes comprovou que, ao menos em alguns casos, as três
cenas ocorreram incontestavelmente. No entanto, como explicar sua presença nos
demais testemunhos neuróticos, ou seja, nos casos em que não há vestígios que
comprovem o caráter indubitável da existência dessas cenas? Freud afirma que,
realmente, seria “altamente improvável” que todos os neuróticos tivessem passado por
essas experiências, mas que, ainda assim, é possível ouvir nos relatos de análises as
lembranças desses eventos que, nesses casos, seriam resultado de construções cujos
elementos seriam diversos estilhaços de fatos ocorridos e que teriam como resultado
narrativo final uma das três cenas neuróticas típicas. Mais adiante nessa conferência,
Freud esclarece mais um aspecto sobre as cenas: “Se ocorreram na realidade, não há o
que acrescentar; mas, se não encontram apoio na realidade, são agregados a partir de
determinados indícios e suplementados pela fantasia. O resultado é o mesmo.” (p.372).
Ou seja, se a experiência não ocorreu realmente, ela será construída a partir de
elementos de outras experiências vividas e constará no conjunto de memórias
partilhando da mesma eficácia do que realmente ocorreu.
Qual seria o efeito desejado que essas cenas devam cumprir para que, mesmo em
sua ausência, um trabalho psíquico deva ser exercido para garantir sua presença? A que
necessidade elas responderiam? Esse é o passo seguinte na argumentação freudiana
nesse texto, mas que recebe uma resposta rápida e sucinta nessa afirmação: “uma
fantasia de ser seduzido, quando não ocorreu sedução nenhuma, geralmente é utilizada
153  
 

por uma criança para encobrir o período auto-erótico de sua atividade sexual” (p.372).
Destacaríamos nessa passagem que a função, apontada por Freud, que essa cena vem
cumprir é a de efetuar, para o sujeito, uma espécie de defesa contra o seu desejo, mesmo
que não se explique aqui a razão para essa defesa. No entanto, em outro texto freudiano,
intitulado Sobre as teorias sexuais das crianças (1908), as mesmas três cenas são
citadas, e a explicação para sua função e presença é que elas visariam responder o
“interesse pelos problemas do sexo nos anos anteriores à puberdade” (p.191). Como
visto no primeiro capítulo desse trabalho, nesse texto Freud afirma que a primeira
questão formulada pela criança é “de onde vêm os bebês?”, seguida pelo interesse sobre
a diferença entre os sexos e pelo coito. Perante a decepção com as repostas que os
adultos fornecem para esses enigmas, a criança criaria suas próprias respostas,
formuladas em acordo com as organizações pulsionais já alcançadas nas respectivas
fases, e que irão constituir o cerne das cenas primitivas. Assim, essas cenas seriam
elaboradas para esclarecer a respeito dos enigmas sobre a sexualidade e suas origens, de
modo que a invenção de cena primária abordaria as origens do sujeito, a cena de
sedução abordaria as origens do desejo e a fantasia da castração explicaria a origem da
diferença entre os sexos. Desse modo, além de ter uma função defensiva contra o desejo
no período do auto-erotismo, elas cumpririam uma função epistemológica, em sentido
amplo, ao elaborar teorias sexuais.
Entretanto, não deixa de ser intrigante a presença e a construção dessas cenas
com o mesmo conteúdo expressado. Não seria possível encontrar respostas diferentes
para esses enigmas ou defender-se do próprio desejo a partir das mais diferentes formas
de construções fantasmáticas? Se voltarmos a Conferência XXIII, veremos que é essa a
pergunta que Freud coloca ao leitor: “por que são sempre geradas as mesmas fantasias
com o mesmo conteúdo”? (1917b, p.372). A resposta nos traz de volta a uma espécie de
ponto zero da fundamentação freudiana para o conteúdo universal do aparelho psíquico:
a herança filogenética. As chamadas fantasias primitivas (ou originárias), como Freud
as intitula, partilham das mesmas características do restante do conteúdo herdado e,
como afirma Assoun (2010), são fantasias originárias que visam dar respostas aos
enigmas sobre a origem.
Se retrocedermos ainda mais na obra freudiana, veremos que a primeira aparição
do termo fantasias primitivas foi em 1915 no texto Um caso de paranoia que contraria
154  
 

a teoria psicanalítica da doença36 para referir-se a um conteúdo típico, o da observação


da cena primária. No entanto, assim como nos textos apresentados anteriormente,
também nesse texto de 1915 não há elementos que nos permitam arriscar qualquer
consideração a respeito da conjunção ou não das séries ontogenéticas e filogenéticas e
assim poder confirmar a posição de Mezan (1985) a respeito da existência da pura
determinação que leva o aparelho psíquico a apenas repetir o passado. Mas nossa
digressão através do tema das fantasias filogenéticas não foi infrutífera uma vez que é
na divergência de Freud com Jung a respeito do assunto, em História de uma neurose
infantil (1918[1914]), que alguns indícios de solução poderão ser encontrados.
De acordo com Assoun (2010) e como vimos no segundo capítulo dessa
pesquisa, o entendimento de Jung a respeito das fantasias primitivas é que estas não
teriam sido criadas pela criança durante a infância para se defender ou responder às
questões sobre sexualidade, já que não haveria na infância experiência sexual de auto-
erotismo ou mesmo interesse pela sexualidade nos anos pré-puberdade. Desse modo, a
presença dessas fantasias no discurso do neurótico atestaria que se trata de fantasias
retrospectivas (Zurückphantasieren) criadas na idade adulta pelo neurótico e projetadas
retrospectivamente para a infância, sexualizando retroativamente o passado de acordo
com os recursos simbólicos do presente e determinadas pelo conteúdo filogenético.

“O fato de que na esquizofrenia uma fantasia arcaica vem ocupar o


lugar da realidade nada prova sobre a natureza da função do real, mas
apenas demonstra o fato biológico já conhecido de que, na perda de
um sistema recente, um sistema mais primitivo e por isso mais antigo,
pode vir a substituí-lo. Para usar a comparação de Freud: atira-se com
arco e flecha ao invés de armas de fogo. O desaparecimento das
últimas aquisições da função do real (ou adaptação) é substituído, se o
for, por um modo de adaptação mais primitivo. Já encontramos este
princípio na doutrina das neuroses: uma adaptação falha é substituída
por um modo de adaptação mais antigo, no caso, uma reavivação
regressiva da imago dos pais”. (Jung, 1912/1986, p.127).

É justamente nesse ponto, na resposta que Freud formula para se contrapor à


hipótese junguiana, que parece haver uma brecha na concepção freudiana da repetição
filogenética como um sistema fechado que não comporta novidades advindas da

                                                                                                                       
36
 “Entre o acervo de fantasias inconscientes de todos os neuróticos, e provavelmente de todos os seres
humanos, existe uma que raramente se acha ausente e que pode ser revelada pela análise: é a fantasia de
observar as relações sexuais dos pais. Chamo tais fantasias – da observação do ato sexual dos pais, da
sedução, da castração e outras – de ‘fantasias primevas´(...)” (Freud, 1915/1996, p.276).
 
155  
 

ontogênese. No caso do Homem dos Lobos, Freud, discutindo a possibilidade de a cena


primária relatada ter realmente ocorrido ou se apenas poderia ser considerada uma
fantasia retrospectiva, afirma:

“Tudo o que encontramos na pré-história das neuroses é que a criança


lança mão dessa experiência filogenética quando sua própria
experiência lhe falha. Ela preenche as lacunas da verdade individual
com a verdade pré-histórica; substitui as ocorrências da sua própria
vida por ocorrências na vida dos seus ancestrais. Concordo
plenamente com Jung ao reconhecer a existência dessa herança
filogenética; mas considero um erro metodológico agarrar-se a uma
explicação filogenética antes de esgotar as possibilidades
ontogenéticas.” (Freud, 1918[1914]/1996, p. 105).

Essa passagem, extraída da análise do caso do Homem dos Lobos, é uma das
poucas em que é possível encontrar – para além da afirmação sobre a impossibilidade
de sobreposição das séries ontogenética e filogenética presente no manuscrito para
Ferenczi – indicações sobre a importância do que é vivenciado na ontogênese e que ela
traz para um cenário de pura repetição do arcaico. Talvez por essa razão, ou seja, dos
raros comentários freudianos a esse respeito, é que alguns autores tenham apontado a
importação do modelo de recapitulação filogenética como uma forma de exclusão da
vertente histórica.
Mais adiante no mesmo texto, já nos últimos comentários sobre o caso, Freud
pontua que ainda restam problemas não solucionados que merecem destaque:

“O primeiro relaciona-se com os esquemas filogeneticamente


herdados, que, como as categorias da filosofia, dizem respeito ao
trabalho de ‘situar’ as impressões originadas da experiência real.
Inclino-me a assumir o ponto de vista de que são resíduos da história
da civilização humana. (...). Sempre que as experiências deixam de
ajustar-se ao esquema hereditário, elas se remodelam na imaginação –
um processo que poderia, com muito proveito, ser seguido
detalhadamente. São precisamente tais casos que se destinam a
convencer-nos da existência independente do esquema. Muitas vezes
conseguimos ver o esquema triunfar sobre a experiência do indivíduo;
como quando, no presente caso, o pai do menino tornou-se o castrador
e a ameaça à sua sexualidade infantil, apesar daquilo que era, em
outros aspectos, um complexo de Édipo invertido. (...). As
contradições entre a experiência e o esquema parecem suprir os
conflitos da infância com material abundante” (Freud,
1918[1914]/1996, p.125).
156  
 

Novamente aqui, Freud reafirma a existência de uma espécie de estrutura trans-


individual, denominada esquemas, que seriam resíduos de uma história passada que
organizam a experiência individual atual. No entanto, Freud parece admitir uma
margem de autonomia para a experiência ao afirmar nem sempre essa se ajustar ao
esquema hereditário, podendo então construir novos modelos, se remodelar. Se há
espaço para contradição entre a experiência e o esquema, haveria também espaço para
novas narrativas além da repetição dos resíduos da história passada da civilização, de
modo que discordamos da hipótese da existência de uma elisão do aspecto histórico no
modelo freudiano da recapitulação. A nosso ver, o problema que resta até o fim, tanto
no texto em questão quanto na obra de Freud, é como articular – ou ao menos manter
viva a contradição – o tempo do indivíduo à existência de um esquema universal que
impõe repetição de um tempo histórico que lhe é anterior, sem que o primeiro possa ser
anulado em sua significação ao ser tomado como mero epifenômeno dos resíduos da
história passada da civilização humana.
Portanto, é possível afirmar que encontramos nesse modelo da repetição da
filogênese pela ontogênese, utilizado por Freud ao longo de sua obra, uma conjunção de
diversas lógicas temporais e desenvolvimentistas. Ou seja, trata-se de um modelo que se
caracteriza por fazer coexistir em seu núcleo desde lógicas progressivas e teleológicas
às regressivas, como também um tempo circular e reversível, mas que se articula às
inovações em seu desenrolar, uma vertente histórica dentro de um esquema de repetição
que se pretendia pura determinação.

5.2 Metáforas arqueológicas: permanência e eternidade

“Em compensação, o tempo da história é “estatístico”:


não é reversível e comporta uma orientação
determinada. Uma evolução que reconduzisse a
sociedade italiana contemporânea à República romana
seria tão inconcebível quanta a reversibilidade dos
processos que dependem da segunda lei da
termodinâmica.” Levi-Strauss, A noção de estrutura em
etnologia.

É conhecida a metáfora de Roma criada por Freud para aludir à mente humana
em O Mal estar na civilização (1930[1929]). Na descrição freudiana, as edificações que
outrora foram destruídas para dar lugar a novas construções, encontram-se conservadas
157  
 

no mesmo solo, no mesmo ponto e no mesmo tempo que as suas sucessoras, sem que
para isso seja necessário desarranjar o que está em seu lugar. Para fazer sua metáfora da
mente, Freud monta um cenário incomum, no qual, todas as construções, das mais
diversas eras, coexistem exatamente no mesmo ponto, sem que nada se perca.

Permitam-nos agora, num vôo da imaginação, supor que Roma não é


uma habitação humana, mas uma entidade psíquica, com um passado
semelhantemente longo e abundante — isto é, uma entidade onde
nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases
anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à
última. Isso significaria que, em Roma, os palácios dos césares e as
Septizonium de Sétimo Severo ainda se estariam erguendo em sua
antiga altura sobre o Palatino e que o castelo de Santo Ângelo ainda
apresentaria em suas ameias as belas estátuas que o adornavam até a
época do cerco pelos godos, e assim por diante. Mais do que isso: no
local ocupado pelo Palazzo Cafarelli, mais uma vez se ergueria —
sem que o Palazzo tivesse de ser removido — o Templo de Júpiter
Capitolino, não apenas em sua última forma, como os romanos do
Império o viam, mas também na primitiva, quando apresentava formas
etruscas e era ornamentado por antefixas de terracota. Ao mesmo
tempo, onde hoje se ergue o Coliseu, poderíamos admirar a
desaparecida Casa Dourada, de Nero. Na Praça do Panteão
encontraríamos não apenas o atual, tal como legado por Adriano, mas,
aí mesmo, o edifício original levantado por Agripa; na verdade, o
mesmo trecho de terreno estaria sustentando a Igreja de Santa Maria
sobre Minerva e o antigo templo sobre o qual ela foi construída. E
talvez o observador tivesse apenas de mudar a direção do olhar ou a
sua posição para invocar uma visão ou a outra (Freud,
1930[1929]/1996, p.79).

Essa metáfora é apresentada logo no início do texto, pouco após Freud


discriminar três tipos de desenvolvimento – do reino animal, do corpo e da mente –,
apontando suas peculiaridades. Já apresentamos as palavras de Freud sobre o
desenvolvimento do corpo acima em nosso capítulo, passagem textual na qual afirma
que, ao se desenvolverem, as primeiras formações de ossos e órgãos são incorporadas
ao seu vir a ser, de modo a não sobrar vestígios da forma anterior separada da forma
posterior do resultado de transformação. Na concepção de Freud, essas circunstâncias
mudam quando se trata do desenvolvimento da mente, uma vez que “no domínio da
mente, por sua vez, o elemento primitivo se mostra tão comumente preservado, ao lado
da versão transformada que dele surgiu” (1930[1929], p.77). A metáfora de Roma,
apresentada acima, entra nessa parte do texto como uma tentativa de figurar essa forma
de desenvolvimento tão incomum, tentando conjugar traços do passado e do presente
nos mesmos espaços, circunstância que antes parecia impensável.
158  
 

Ainda que nos pareça muito engenhoso utilizar a Cidade Eterna como figuração
de um sistema em que os traços jamais são destruídos, Freud julga que sua tentativa foi
somente um “jogo ocioso”, um insucesso que apenas revela “quão longe estamos de
dominar as características da vida mental através de sua representação em termos
pictóricos” (p.79). Porém, há que se notar que, se a metáfora utilizada Freud por seu
juízo estivesse longe de ter alcançado o objetivo pretendido, isso não se deu por falta de
tentativas. Em 1915, no texto Pulsões e Destino da Pulsão, Freud buscou através da
figuração da erupção vulcânica e suas sucessivas ondas de lava ilustrar o que poderia ser
o desenvolvimento da pulsão:

“Poderíamos decompor o percurso de vida de cada pulsão em ondas


agrupáveis dentro de diferentes intervalos de tempo (adotando
unidades de tempo quaisquer). Consideremos que cada intervalo de
tempo contenha séries de ondas homogêneas entre si. Assim, essas
séries podem ser concebidas relacionadas umas com as outras de
modo análogo a sucessivas erupções de lava. Podemos então imaginar
que a primeira e mais original erupção pulsional tenha continuado a
ocorrer sem alteração e sem sofrer nenhum tipo de evolução. A série
de ondas seguinte experimentaria, desde o início, uma modificação,
talvez a transformação em passividade, e, tendo incorporado essa nova
característica, ela se somaria à onda anterior, e assim por diante.”
(Freud, 1915b/2006, p. 155).

Destacamos que não apenas Freud se vale de recursos pictóricos para expressar
sua concepção da vida mental, como os busca, a nosso ver, para tentar dar conta
principalmente de uma concepção específica e persistente: como descrever a
coexistência no mesmo espaço dos elementos antigos e recentes e, além disso, como
descrever a coexistência da forma primeira de representações e pulsões com sua forma
posterior. Ou seja, a presença simultânea na vida psíquica da primeira inscrição de um
elemento com a forma que assumiu em seu desenvolvimento ulterior. Se retomarmos a
passagem em que Freud descreve o desenvolvimento do corpo e aplicarmos a lei de não
eliminação da versão primeira do mesmo elemento coexistindo com todas as suas outras
formas assumidas ao longo de uma história, válida para a vida psíquica, poderíamos
imaginar um corpo que ao mesmo tempo apresenta o embrião, a forma infantil e a forma
adulta, a sequência inteira de transformações da medula óssea, a glândula do timo da
infância lado a lado com os tecidos de ligação, todas as etapas de evolução coexistindo
lado a lado.
159  
 

Recuando ainda mais no tempo, é possível encontrar mais uma tentativa de


Freud para falar dessa mesma ideia. Como vimos em nosso primeiro capítulo, no texto
A interpretação das afasias, a metáfora espacial da cidade é utilizada por Freud para
poder figurar a tese de Meynert sobre o desenvolvimento infantil e o desenvolvimento
da linguagem em sua relação com a ocupação dos centros de linguagem, tese essa a que
Freud irá se contrapor. Assim, enquanto para Meynert as novas aquisições de linguagem
implicariam a colonização de novos espaços em diferentes regiões cerebrais, Freud
propõe outro tipo de ocupação em que o que outrora foi adquirido deve coabitar com o
que foi recentemente adquirido, nos mesmos espaços:

“Esta última frase pode interpretar-se no sentido de que não só o


desenvolvimento infantil mas também a aquisição de ulteriores
conhecimentos (por exemplo, a aprendizagem de uma nova língua) se
baseiam na ocupação de um terreno até então vago do córtex, mais ou
menos como uma cidade que se estende pela ocupação de terrenos
fora das muralhas. (...) Mas aqui verificamos que se dá exatamente o
contrário daquilo que com base nessa hipótese poderíamos esperar.
(...) Todas as outras novas aquisições da função da linguagem (...)
estão evidentemente localizadas nas mesmas áreas que conhecemos
como centros da primeira língua aprendida.” (Freud, 1891/2003, p.35)

Essa metáfora presente no texto sobre as afasias, ainda que não abarque a
questão do desenvolvimento do mesmo elemento coabitando com suas versões
posteriores, já consiste em uma tentativa de representar um sistema em que as
aquisições mais antigas não se perdem ou são subsumidas às novas aquisições. Como
pudemos verificar, a ideia de indestrutibilidade das inscrições psíquicas permaneceu e
persistiu na obra freudiana até os anos 3037. Em 1919, em A Interpretação dos Sonhos
(1900), Freud faz um acréscimo ao texto original para enfatizar que não apenas os
traços advindos de percepção externa são indestrutíveis na vida mental, mas que
também são todos os atos anímicos, construções, fantasias e os sonhos que, uma vez
criados, continuariam existindo: “Os sonhos que ocorrem nos primeiros anos da infância
e são retidos na memória por dezenas de anos, muitas vezes com vividez sensorial
completa, são quase sempre de grande importância para nos permitir entender a história
do desenvolvimento psíquico do sujeito e de sua neurose” (p. 554).

                                                                                                                       
37
A última menção a ela está em Análise terminável e interminável (1937) e será citada ao final desse
capítulo.  
 
160  
 

Em princípio, o único modo de haver destruição ou desgaste desses traços que


foram inscritos na memória, e que se mantêm vigentes e atuais em todas as suas
versões, seria através de sua vinculação à consciência. Ou seja, apenas através da
pertença desses traços ao sistema consciente é que eles poderiam começar a perder seu
domínio e intensidade. Esse recurso para desgastar as inscrições é apresentado em Notas
sobre um caso de Neurose Obsessiva (1909), quando, ao ser questionado pelo paciente a
respeito dos mecanismos do tratamento que levam a um efeito terapêutico, Freud lhe
explica, utilizando o recurso da metáfora novamente, como esse efeito se daria.

“Fiz então algumas pequenas observações sobre as diferenças


psicológicas entre o consciente e o inconsciente, e sobre o fato de que
toda coisa consciente estava sujeita a um processo de desgaste, ao
passo que aquilo que era inconsciente era relativamente imutável; e
ilustrei meus comentários indicando as antiguidades que se
encontravam ao redor, em minha sala. Era, com efeito, disse eu,
apenas objetos achados num túmulo, e o enterramento deles tinha sido
o meio de sua preservação: a destruição de Pompéia só estava
começando agora que ela fora desenterrada.” (Freud, 1909/1996,
p.157).

É possível acompanhar nos escritos freudianos como Roma e Pompéia serão as


metáforas arqueológicas privilegiadas para se referir ao sistema inconsciente, sistema
este em que os traços encontram-se de certo modo eternizados. Contudo, as referências
à Pompéia contém uma particularidade – que a citação acima já indica –, pois passam a
indicar também a possibilidade de emergência e extração desse conteúdo pela análise,
para que possa ser desvelado e transformado em cinzas. A analogia entre o conteúdo
inconsciente e o conteúdo soterrado e entre o trabalho do analista com o trabalho do
arqueólogo é bastante proveitosa no texto freudiano Delírios e sonhos na Gradiva de
Jensen (1907[1906]) que comenta a novela Gradiva de Wilhem Jensen, por nós citado
em nosso segundo capítulo. No romance de Jensen, o personagem do jovem arqueólogo
Nobert Hanold viaja para Pompéia, cidade que será cenário de seus sonhos, fantasias e
delírios e onde conseguirá recuperar sua capacidade de amar através de suas pesquisas
delirantes em busca da moça retratada no relevo Gradiva e com a ajuda de sua amiga
Zoe Bertrang, que se revela ser seu verdadeiro objeto de amor. Freud aproveita o ensejo
dado pelo cenário da novela de Jensen para traçar diversos paralelos e equiparações
como, por exemplo, entre a operação de recalcamento e o soterramento de Pompéia:
“houve uma perfeita analogia entre o soterramento de Pompéia – que fez desaparecer
mas ao mesmo tempo preservou o passado – e a repressão” (p.53).
161  
 

Em 1937, a analogia entre a tarefa do analista e o trabalho do arqueólogo é


novamente estudada por Freud em Construções em Análise. Entretanto, embora
mantida, a comparação ganha renovação importante com o conceito de construção.
Ainda que estivesse presente na condução das análises de Freud já na descrição de casos
da primeira década dos anos 1900, a construção ganha outro estatuto ao ser mais bem
definida nesse texto. Conforme as linhas desse artigo, haveria diversas formas de o
conteúdo recalcado ser resgatado ou invocado seja através dos sonhos e das associações
como também pela repetição na transferência das relações das fantasias inconscientes.
No entanto, existiriam ligações entre os conteúdos recalcados que não se encontrariam
recalcadas para poderem ser recuperadas, de modo que se tornaria necessário que o
analista as reconstrua para que as associações do analisante continuem e a análise possa
prosseguir. Nesse momento do texto, Freud estabelece novamente então as comparações
entre o trabalho do analista e do arqueólogo:

“Seu trabalho de construção, ou, se se preferir, de reconstrução,


assemelha-se muito à escavação, feita por um arqueólogo, de alguma
morada que foi destruída e soterrada, ou de algum antigo edifício. Os
dois processos são de fato idênticos, exceto pelo fato de que o analista
trabalha em melhores condições e tem mais material à sua disposição
para ajudá-lo, já que aquilo com que está tratando não é algo
destruído, mas algo que ainda está vivo – e talvez por outra razão
também. Mas assim como o arqueólogo ergue as paredes do prédio a
partir dos alicerces que permaneceram de pé, determina o número e a
posição das colunas pelas depressões no chão e reconstrói as
decorações e as pinturas murais a partir dos restos encontrados nos
escombros, assim também o analista procede quando extrai suas
inferências a partir dos fragmentos de lembranças, das associações e
do comportamento do sujeito da análise. Ambos possuem direito
indiscutido a reconstruir por meio da suplementação e da combinação
dos restos que sobreviveram. Ambos, ademais, estão sujeitos a muitas
das mesmas dificuldades e fontes de erro” (Freud, 1937/1996, p. 277).

Ainda que esses novos contornos sejam adicionados à antiga comparação entre o
ofício do psicanalista e a arqueologia, há um ponto no texto de 1937 em que Freud não
inova absolutamente: trata-se do modo como define a composição e situação dos traços
no sistema inconsciente:

“Aqui, defrontamo-nos regularmente com uma situação que, com o


objeto arqueológico, ocorre apenas em circunstâncias raras, tais como
as de Pompéia ou da tumba de Tutancâmon. Todos os elementos
essenciais estão preservados; mesmo coisas que parecem
completamente esquecidas estão presentes, de alguma maneira e em
162  
 

algum lugar, e simplesmente foram enterradas e tornadas inacessíveis


ao indivíduo. Na verdade, como sabemos, é possível duvidar de que
alguma estrutura psíquica possa realmente ser vítima de destruição
total” (Freud, 1937/1996, p.278).

Porém, ainda que os traços inconscientes sejam indestrutíveis e que nesse


sistema os vestígios do passado se encontrem em simultaneidade com os traços atuais,
cabe perguntar como se organizam todos esses elementos. Estariam todos eles
encadeados em uma espécie de linha do tempo psíquica, responsável por organizar
todas essas inscrições segundo uma ordem temporal sucessiva que obedeceria às
medidas objetivas do tempo cronológico?
É aqui que uma das teses freudianas a respeito das características do
inconsciente pode fazer sua aparição. A afirmação freudiana da atemporalidade
inconsciente talvez seja uma das suas mais conhecidas asserções e está presente em seus
escritos desde o início até o fim de sua obra. Em 1915, no texto O inconsciente, ele
afirma: “atenhamo-nos ainda ao Ics e ressaltemos agora que os processos nesse sistema
são atemporais, eles não estão cronologicamente organizados, não são afetados pelo
tempo decorrido e não têm nenhuma relação com o tempo” (1915/2006, p.38). Em
seguida, Freud esclarece que a organização temporal cronológica está referida ao
sistema consciente apenas. Algumas linhas antes nesse mesmo texto, outra característica
do sistema inconsciente, não menos importante, já havia sido apresentada ao leitor: “No
âmbito do Ics não há lugar para a negação (...)” (1915/2006, p.37). Se tentarmos
relacioná-las, poderíamos concluir que, com efeito, para que os registros inconscientes
possam ser indestrutíveis é preciso que, de algum modo, estes não estejam submetidos à
ação temporal, caso contrário estariam sujeitos à mudança e à negação da identidade da
primeira inscrição. Ou seja, para que os traços não sejam negados com a possibilidade
de transformação, é preciso que estejam desligados do tempo. Desse modo, parece ser
essa a razão para que não possa haver negação ou temporalidade cronológica nesse
sistema, pois apenas isso poderia garantir que seus traços fossem, de certo modo,
eternos.
Agora, fazendo um breve retorno ao nosso item anterior, caberia perguntar como
se poderia justificativa teoricamente, nesse contexto de atemporalidade inconsciente,
que ocorram os retornos às organizações anteriores, expressos no conceito de regressão
temporal. Quanto a esse aspecto, concordamos com a posição de Monzani (1989) que
destaca a presença de um paradoxo na hipótese de uma regressão no sistema
163  
 

inconsciente. Se pesarmos que nesse sistema os registros não estão dispostos dentro de
uma lógica temporal cronologicamente organizada, parece não haver meios de postular
uma regressão a formas ou a organizações psíquica que lhes são antecessoras. Se a
forma anterior está constantemente presente, simultaneamente aos traços mais recentes,
nos perguntamos que tipo de regressão seria essa. Nas palavras de Monzani, para o
inconsciente, “o passado não é potencial, uma possibilidade de volta, ele é, em certas
esferas, atual” (p.289).
Além da questão da possibilidade da regressão temporal, a hipótese da
atemporalidade inconsciente nos coloca diante de mais uma questão teórica
aparentemente de difícil articulação. Ao consultarmos o item B do capítulo VII em A
Interpretação dos Sonhos (1900), encontraremos a seguinte afirmação: “A rigor, não há
necessidade da hipótese de que os sistemas psíquicos realmente se disponham numa
ordem espacial. Bastaria que uma ordem fixa fosse estabelecida pelo fato de, num
determinado processo psíquico, a excitação atravessar os sistemas numa dada sequência
temporal” (1900/1996, p.567). Como seria possível conciliar o conteúdo das duas
asserções, ou seja, de que se trata de uma tópica temporal, mas de um inconsciente
atemporal? A princípio, poderia parece que estamos diante novamente de um paradoxo
teórico. Contudo, tanto Gueller (2005) como Gondar (1995), em seus respectivos
estudos a respeito da temporalidade em Freud, nos chamam atenção para a palavra
processo que está presente na afirmação freudiana “os processos nesse sistema são
atemporais”. De acordo com essas autoras, a ideia de processo implica a ideia de uma
série de ações dispostas em temporalidade, comportando uma imagem de desenrolar de
eventos. Em sua concepção, a atemporalidade inconsciente não significaria negação
total da presença de uma espécie de temporalidade e desenvolvimento nesse sistema.

“Pois se não houvesse uma ordenação temporal qualquer com relação


a esses processos, o inconsciente seria caótico. E sabemos que não é
disso que se trata: o inconsciente possui leis próprias de articulação;
suas operações estão submetidas a uma determinada ordem e essa
ordem deve estar referida a alguma modalidade de tempo. Não é
necessário que uma tal modalidade seja de tipo linear-escoativo, na
qual os eventos se sucedem regularmente. Mas é preciso que alguma
modalidade temporal esteja em jogo, pois, caso contrário (...) nem
mesmo seria possível se falar em processos inconscientes.” (Gondar,
1995, p.30).
164  
 

Ou seja, segundo essa leitura da asserção freudiana, com a qual concordamos, a


temporalidade não pode ser totalmente elidida. Como já havíamos destacado acima,
Freud se valeu de recursos pictóricos para expressar não apenas sua concepção da vida
mental como espaço de coexistência dos elementos antigos e recentes mas também para
descrever a coexistência da forma primeira de representações e pulsões com a forma
que estas assumem posteriormente. Portanto, se estão presentes simultaneamente a
primeira inscrição de um elemento com sua forma segunda, algum tipo de
desenvolvimento deve haver no interior desse sistema atemporal.
Vejamos agora a que leis essas modificações obedecem de modo que seja
possível conciliar, em um mesmo sistema, a identidade dos traços com a série de
mudanças por quais esses passam.

5.3. Passagem do tempo e a metáfora da retranscrição

Como vimos no final do item anterior, a asserção de que o inconsciente é


atemporal não equivale a supor a ausência de processos e desenvolvimento, já que não
se trata de um sistema estático. Se esta hipótese não for assumida, seria necessário
afirmar que o aparelho psíquico é inato, já está pronto e acabado ao nascer, e que não se
modifica absolutamente ao longo da vida. Seria preciso ainda admitir que esse aparelho
consista em um sistema ou em uma estrutura ideal, totalmente pura e não afetável pela
experiência. Isso parece ser contrário à suposição freudiana exposta, por exemplo, em
Sobre o Narcisismo, em que admite a necessidade de uma nova ação psíquica para que
algo como o Eu possa ser fundado e desenvolvido.

“É uma suposição necessária a de que uma unidade comparável ao Eu


não esteja presente no indivíduo desde o início; o Eu precisa antes ser
desenvolvido. Todavia, as pulsões auto-eróticas estão presentes desde
seu início, e é necessário supor que algo tem de ser acrescentado ao
auto-erotismo, uma nova ação psíquica, para que se constitua o
narcisismo.” (Freud, 1914/2006, p. 99)

Também no conjunto de cartas que compõe a correspondência de Freud ao


médico Wilhem Fliess, há uma em especial que nos interessa para compreender nossa
questão e sustentar nossa hipótese da existência de algum tipo de desenvolvimento no
sistema inconsciente. Escrita em 6 de dezembro de 1896, a carta que ficou conhecida
entre os comentadores da obra freudiana como Carta 52, contém um interessante
165  
 

modelo explicativo de Freud para as regras de movimentação e mudança na organização


dos elementos na vida mental inconsciente. Longe de ser um sistema no qual os traços
inscritos são estáticos e sem dinâmica, Freud apresenta um modelo de sistema que se
reorganiza periodicamente. Novamente, sua descrição para a articulação entre a vida
mental e a transformação temporal é sustentada por uma metáfora tão complexa quanto
as já apresentada anteriormente.

“Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso


mecanismo psíquico tenha-se formado por um processo de
estratificação: o material presente sob a forma de traços mnêmicos
fica sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo, de acordo com
novas circunstâncias – a uma retranscrição. Assim, o que há de
essencialmente novo em minha teoria é a tese de que a memória não
se faz presente de uma só vez, e sim ao longo de diversas vezes, e que
é registrada em vários tipos de indicação.” (Freud, 1896/1986, p.208).

Pouco abaixo dessa passagem do texto, Freud apresenta um diagrama para


representar, em termos topográficos, os diferentes registros neuronais e sua função
específica dentro do sistema. Quase como um protótipo rudimentar do esquema do
pente apresentado em A Interpretação dos Sonhos, aqui também temos a percepção
como primeiro polo de entrada, polo não retentor dos traços para que seja mantida uma
espécie de permeabilidade constante para a continuidade de entrada de novas
percepções. A realização de inscrição dos traços será função de outro conjunto de
neurônios que irá constituir a memória. Em seguida a essa camada neuronal, está o
primeiro registro responsável pelas indicações de percepção como uma primeira
inscrição da percepção que, segundo Freud, “se organiza de acordo com associações por
simultaneidade” (p.209). O segundo registro é a inconsciência, cujos traços “talvez
correspondam a lembranças conceituais” e o terceiro registro é a pré-consciência. Freud
anuncia a Fliess que ainda não sistematizou rigorosamente esse que ainda é um esboço
de aparelho, de forma que não poderia fornecer, naquele momento, mais detalhes sobre
a composição e relação entre os registros.
Contudo, o que restaria de novo e importante para suas pesquisas, tal como está
anunciado no trecho do texto que recortamos e citamos acima, é a hipótese de que as
inscrições psíquicas não se dão em um único momento e de uma só vez, mas passam
por diversas marcações que ocorrem em momentos distintos e que cada uma dessas
movimentações e reinscrições implicam um rearranjo do sistema como um todo. Esse
166  
 

modelo de sistema de memória no qual os traços são primeiramente inscritos


(Niederschrift) para serem posteriormente transcritos (Umschrift), e ainda em outro
momento serem retranscritos, recebeu uma metáfora mais elaborada e aprimorada no
texto Bloco Mágico, escrito por Freud em1925. Se pudéssemos unir essa imagem de
rearranjo periódico exposta na carta a Fliess à imagem de Roma apresentada no início
do item anterior e fizermos um cruzamento entre as metáforas utilizadas por Freud para
descrever o estado e funcionamento do sistema inconsciente, poderíamos imaginar,
então, a cidade de Roma, com todas as construções existentes ao longo de sua história
presentes no mesmo solo, virando e revirando de tempos em tempos, sem cessar.
Vejamos agora o que definiria esse intervalo de tempo e quais as consequências
de seu insucesso.
“Gostaria de enfatizar o fato de que os registros sucessivos
representam conquistas psíquicas de fases sucessivas da vida. Na
fronteira entre duas dessas fases é preciso que ocorra uma tradução do
material psíquico. Explico as peculiaridades das psiconeuroses através
da suposição de que essa tradução não se tenha dado no tocante a uma
parte do material, o que acarreta certas consequências. E isso porque
nos atemos firmemente à crença numa tendência ao ajustamento
quantitativo. Cada transcrição posterior inibe sua predecessora e
esgota seu processo excitatório. Quando falta uma transcrição
posterior, a excitação é tratada de acordo com as leis psicológicas
vigentes no período psíquico precedente e seguindo as vias abertas
naquela época. Assim, persiste um anacronismo: numa determinada
província, ainda vigoram os fueros; estamos na presença de
“sobrevivências”.” (Ibid., p. 209).

Ainda que esteja suposto um intervalo temporal entre as retranscrições, Freud


não deixa exatamente definidos em quais momentos esse processo ocorreria ou o que
exatamente poderia desencadeá-lo, como vemos na passagem acima. Freud apenas
menciona que a tradução das inscrições possa ocorrer entre “fases sucessivas da vida”,
não fixando exatamente uma idade, um evento ou mesmo uma etapa específica para que
a passagem de uma organização a outra ocorra. Como efeito desse processo de
rearranjo, teria-se o esgotamento e mudança no aspecto econômico que rege o
funcionamento da inscrição anterior.
No entanto, é sobre as falhas que ocorrem nesse processo de tradução e
retranscrição entre os registros que Freud parece se ater com mais persistência e para
elas tentar determinar períodos e fases da vida. A razão principal encontrada por Freud
para explicar a não ocorrência das traduções está no desprazer que essa operação
causaria para o aparelho. A tradução de uma inscrição cujo conteúdo poderá ser causa
167  
 

de desprazer é evitada pelo aparelho, afirma Freud, “é como se esse desprazer


provocasse um distúrbio de pensamento que não permitisse o trabalho de tradução”
(p.209). Segundo sua hipótese, seriam as experiências sexuais prematuras as origens
principais causadoras de desprazer e falhas na tradução. Entretanto, Freud localiza um
ponto em sua explicação que ainda não consegue elucidar: por qual razão, em algumas
pessoas, o evento sexual precoce que inicialmente causa prazer, quando recordado em
uma fase posterior, torna-se fonte de desprazer? Por que o evento sexual precoce geraria
desprazer muito tempo depois de a experiência inscrita ter ocorrido?
De todo modo, qualquer que seja sua origem – se em experiências passadas ou
atuais, ou ainda em desprazeres passados que se atualizam –, a falha no trabalho de
tradução causada pela evitação da experiência de desprazer, manteria no aparelho uma
espécie de sítio regido pelas leis e pela distribuição da economia excitatória que eram
vigentes antes no período da primeira inscrição, criando uma espécie de anacronismo
entre esses traços com os demais traços do sistema.
Assim, a hipótese da Carta 52 e seus desdobramentos parecem indicar a
existência de dois descompassos de funcionamento no aparelho. Haveria aquele que se
instala com a interrupção das traduções, gerando um intervalo de inscrições que se
regulam por leis antigas e por um regime de excitação que não é mais vigente; como
também haveria outro descompasso, não totalmente explicado na carta, que se refere ao
efeito de desprazer que ocorre só muito depois da ocorrência do evento. Esse
descompasso entre as novas traduções e as velhas inscrições coabitando o mesmo
espaço nos remete novamente à metáfora de Roma e à presença de um jogo de
alternância constante entre sucessão e simultaneidade no aparelho psíquico que Freud
tentou descrever através de todas essas figurações.
Certamente, quando Freud afirma na passagem citada acima sua ênfase no “fato
de que os registros sucessivos representam conquistas psíquicas de fases sucessivas da
vida”, parece indicar um curso de desenvolvimento evolutivo para a ocorrência das
traduções. Entretanto, o material da carta 52 não nos permite afirmar que essas
conquistas possuam um telos que as guie rumo a um objeto já estabelecido. Talvez seja
mesmo possível especular que as traduções sejam um conjunto de variabilidades que
não têm finalidade, assim como as transformações no sistema darwinista.
Esse percurso por outras paragens da obra freudiana que se referem ao tempo,
mesmo que indiretamente ou apenas em fragmentos, nos serviu como recurso
investigativo para tentar encontrar lógicas desenvolvimentistas subjacentes a suas
168  
 

teorias, auxiliando na localização de alguns dos modelos de desenvolvimento


apresentados no capítulo anterior. No entanto, o que foi possível extrair das concepções
presentes nas diversas metáforas temporais que encontramos nos escritos de Freud
diversas vias que ora se cruzam, ora se complementam e em muitos momentos se
opõem.
Não esgotamos todas as concepções de temporalidade em Freud, mas nesses
fragmentos apresentados acima foi possível localizar, no regimento de um mesmo
sistema, desde ideias de regressão convivendo com a concepção de evolução a ideias de
sucessão e simultaneidade que coabitam o mesmo topos, tanto a indestrutibilidade dos
traços como também o desenvolvimento ao meio de anacronismos. Um relógio com
ponteiros que parecem indicar as composições de tempos mais extravagantes.
Como veremos em nosso próximo capítulo, em sua última menção sobre o
desenvolvimento em Análise Terminável e Interminável (1937), Freud afirma que em
sua primeira versão para o desenvolvimento – nesse caso, o desenvolvimento libidinal –
, a hipótese era de que uma fase sucederia a outra. Mas, em seguida, ele afirma que suas
pesquisas posteriores o levaram a reformular essa hipótese por aquela que apresentamos
na segunda parte desse capítulo, ou seja, de que os traços das organizações anteriores
estão presentes nas organizações posteriores. Segundo essa última consideração sobre
desenvolvimento que apresenta, “mesmo no desenvolvimento normal a transformação
nunca é completa e resíduos de fixações libidinais anteriores ainda podem ser mantidos
na configuração final” (p.245). Além disso, Freud afirma que esse modelo não é
aplicável somente ao desenvolvimento libidinal, mas para os demais domínios do
aparelho psíquico também. Nesse ponto, Freud traz de volta a sua concepção sobre as
fases do pensamento que estavam colocadas em Totem e Tabu, na Conferência XXXV e
O Futuro de uma Ilusão. Na passagem abaixo, Freud parece aludir novamente
principalmente ao pensamento animista e seu desenvolvimento na filogênese.

“De todas as errôneas e supersticiosas crenças da humanidade que


foram supostamente superadas não existe uma só cujos resíduos não
perdurem hoje entre nós, nos estratos inferiores dos povos civilizados
ou mesmo nos mais elevados estratos da sociedade cultura. O que um
dia veio à vida aferra-se tenazmente à existência. Fica-se às vezes
inclinado a duvidar se os dragões dos dias primevos estão realmente
extintos” (Freud, 1937/1996, p. 245).
169  
 

É interessante notar nessa última frase da passagem sobre a permanência dos


traços passados a repetição do recurso metafórico, ainda que aqui bastante reduzido
quando comparado aos outros exemplos.
No próximo capítulo, retornaremos ao problema do sentido de realidade para,
agora, com dados a respeito das concepções de Freud a respeito do desenvolvimento,
finalmente procurar estabelecer suas relações.
170  
 

Capítulo 6

Os desenvolvimentos do sentido de realidade

Ao fazer menção ao sentido de realidade em sua obra O mal-estar na civilização


(1930), Freud o apresentou como sendo uma função do aparelho que atravessa um
desenvolvimento. Acompanhamos no primeiro capítulo dessa pesquisa que havia
poucos dados a respeito desse conceito e também sobre seu desenvolvimento. Agora
que contamos com alguns elementos teóricos tanto a respeito do sentido de realidade
como também das hipóteses sobre desenvolvimento psíquico em Freud, tentaremos
cruzar os dados dessas investigações paralelas a fim de procurar indícios do que seria o
desenvolvimento do sentido de realidade e, desse modo, responder a nossa questão de
início.
Vamos retomar alguns pontos principais a respeito do sentido de realidade e as
hipóteses de seu desenvolvimento que foram extraídos dos quatro textos principais
analisados no primeiro capítulo da pesquisa: Sobre as afasias, Formulações sobre os
dois princípios do funcionamento mental, Projeto para uma psicologia científica e
Totem e tabu. Esses dados serão classificados em uma das três categorias de
temporalidade em Freud, que isolamos no capítulo anterior, e relacionados aos três
modos principais de desenvolvimento descritos pela biologia, presentes no capítulo
quatro. Além disso, iremos articular esses resultados com três trechos do texto Análise
terminável e interminável (1937), que ressignificam algumas de nossas conclusões.

6.1 Afasias e a hipótese da ausência de desenvolvimento.

Em nosso primeiro capítulo, ao comentarmos o texto Sobre as afasias


afirmamos dois aspectos a respeito do desenvolvimento que poderiam ser derivados das
teses freudianas a respeito da realidade.
171  
 

Na primeira de nossas considerações, afirmamos que não existia no texto


descrições que permitissem sustentar a tese de que os modos de representação da
realidade progredissem por etapas, resultando diferenças entre seu funcionamento
inicial e posterior. Assim, as características da ação de representar a realidade foram
descritas como marcadas pelo hiato entre a representação da realidade e a realidade em
si mesmo e pela constituição dos complexos associativos. Desse modo, elas diferenciam
ainda mais a representação da realidade dos dados iniciais originados do sistema
sensorial perceptivo, e seriam características constantes do aparelho. Portanto, eles não
sofreriam mudanças com o passar do tempo. Ou seja, não encontramos no texto Sobre
as afasias suposições de Freud que nos permitissem afirmar que a existência de hiatos
que marcam a relação do aparelho com a realidade pudesse ser transposta com o
crescimento.
Essa constatação vai ao encontro da segunda hipótese freudiana apresentada.
Como afirmamos em nosso primeiro capítulo e revimos no capítulo anterior, Freud
discordava da posição de Wernicke, que, quanto à organização dos conteúdos
aprendidos, afirmava que para cada novo conhecimento, uma nova área do aparelho
deveria ser ocupada. A citação do comentário de Freud sobre a hipótese de Wernicke
consistia em dizer “que não só o desenvolvimento infantil mas também a aquisição de
ulteriores conhecimentos (...) se baseiam na ocupação de um terreno até então vago do
córtex, mais ou menos como uma cidade que se estende pela ocupação de terrenos fora
das muralhas” (Freud, 1891/2003, p. 34).
Vimos como Freud se posicionava contrariamente à tese de Wernicke, ao
considerar que todas as novas aquisições do aparelho estariam localizadas nas mesmas
áreas da primeira língua aprendida. Essa tese, como demonstrado no capítulo anterior,
está em estreita aproximação com a classificação da temporalidade em Freud, que
denominamos como classe das metáforas arqueológicas, segundo a qual todos os traços,
recentes e antigos, ocupam os mesmo espaços, sem que a forma mais recente implique a
exclusão das formas antigas.
Além disso, se somarmos à primeira consideração a respeito do desenvolvimento
a hipótese segunda a respeito da coexistência dos traços, poderíamos concluir que não
apenas as antigas e novas aquisições partilharam o mesmo solo comum. Mais ainda:
elas também partilhariam o mesmo regime de funcionamento, ao menos no que se refere
às possibilidades de representação da realidade. Ou seja, não somente estariam dentro
dos mesmos domínios, como também do mesmo regimento que se caracteriza por não
172  
 

ser capaz de representar o objeto nele mesmo e estar constituído por complexos
associativos que, por sua vez, são formados por múltiplos traços mnêmicos (acústicos,
visuais, motores, tácteis, sensoriais).
Até aqui, portanto, não haveria desenvolvimento do sentido de realidade já que
os modos de apreensão não se transformam em suas condições mais marcantes.
No entanto, como vimos no Projeto para uma psicologia científica e também no
texto Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, a hipótese de
existência de um segundo regime de funcionamento vai sendo cada vez mais ampliada e
relevante, atingido seu ápice conceitual com o anúncio da existência do princípio de
realidade.

6.2 Um desenvolvimento para o sentido de realidade.

Vimos que os textos Projeto para uma psicologia científica e Formulações


sobre os dois princípios do funcionamento mental são os que revelam com mais clareza
as possibilidades de existência do desenvolvimento do sentido de realidade na obra de
Freud. Com isso, eles iriam ao encontro daquela passagem de O mal-estar na
civilização que nos serviu de ponto de partida para nossa análise.
Na análise que apresentamos, foi possível acompanhar como, para Freud, a
constituição inicial do aparelho psíquico no Projeto e em Formulações se transforma
bastante a fim de dar conta dos desafios que a realidade impõe a um aparelho cuja
tendência inicial é alucinar e errar. Nesse aspecto, a suposição freudiana nos remete à
teoria darwinista, apresentada no nosso quarto capítulo, que afirma que entre o
organismo e o meio, não há acordo pré-existente. Desse modo, da passagem da
satisfação das necessidades de modo alucinatório à consideração da realidade para
conseguir ser capaz de se satisfazer, há uma série de modificações estruturais que
precisarão ser desenvolvidas para que um pouco de adaptação possa ser conquistada.
Assim, no Projeto, é possível acompanhar o início dessas transformações com a
hipótese da gênese do eu, essa nova organização neuronal no sistema ψ que é capaz de
inibir a tendência às descargas imediatas modificando o percurso de investimentos da
energia dentro do aparelho. Junto a esse critério, surgem também as indicações de
realidade provenientes da consciência, as funções do juízo, da cognição, a atenção que
auxiliam o aparelho a instaurar um novo tipo de regime de funcionamento que foi
denominado por Freud como processo secundário. Em função disso é que afirmamos
173  
 

que, diferentemente do que fora teorizado no texto das Afasias, aqui há uma nova
versão no modo de se apreender a realidade que não é estruturalmente idêntica àquela
presente no início, com pendores à alucinação.
Em nosso primeiro capítulo, ao analisarmos as teses principais do texto de 1911,
foi possível acompanhar como a linha apresentada em Projeto foi mantida e
aprofundada por Freud. Novamente, está presente a suposição de que haveria no
aparelho psíquico a tendência a se satisfazer, reinvestindo os traços mnêmicos da
primeira experiência de satisfação, levando à alucinação. Por esse modelo produzir
experiências seguidas de desprazer, é premente que modificações sejam feitas para que
os investimentos libidinais e as tentativas de satisfação se pautem segundo um modo
mais seguro e cauteloso. Esse processo de instalação dessa nova tendência de
funcionamento, denominada princípio de realidade, envolverá o surgimento da
memória, do pensamento, da atenção, da possibilidade de se efetuar ações que não
sigam exclusivamente o modelo do arco-reflexo, com o intuito de evitar as experiências
de desprazer.
Assim, diferentemente do que ocorre com o texto das Afasias, julgamos que
estão presentes, tanto em Projeto para uma psicologia científica como também no texto
Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, hipóteses a respeito de
um desenvolvimento para o aparelho psíquico. Segundo nossa leitura, é possível
acompanhar nos dois textos o esforço de Freud para conseguir demonstrar de que modo
a experiência de desprazer poderia acarretar grandes transformações na economia do
funcionamento do aparelho com a realidade. É importante destacar que, segundo a
lógica dos dois textos, a modificação que ocorre no aparelho está condicionada pela
experiência, e, portanto, não é o fruto simplesmente da passagem cronológica e
tampouco está programada para ocorrer automaticamente com o crescimento do
organismo. A modificação é fruto da algo que o aparelho aprende através das
experiências de desprazer, que Freud afirma no Projeto serem as únicas capazes de
educar o aparelho.
Aproximando esse modo de desenvolvimento, que ocorre no aparelho psíquico
com o advento do princípio de realidade, das classificações temporais que listamos no
capítulo anterior, acreditamos ser possível afirmar que a metáfora da retranscrição,
presente na carta 52, seja a que melhor se aplica nesse caso. Lembramos que a hipótese,
desenvolvida no conteúdo presente nesta carta a Fliess, era que as inscrições psíquicas
passariam por diversas movimentações e traduções, que ocorrem em momentos
174  
 

distintos da vida, e implicam um rearranjo do sistema como um todo. Se voltarmos à


citação que fizemos do trecho da missiva no capítulo anterior, será possível encontrar a
afirmação de Freud de que “cada transcrição posterior inibe sua predecessora e esgota
seu processo excitatório” (Freud, 1896/1986, p. 209).
A nossa hipótese aqui consiste na ideia de que a instalação do funcionamento
psíquico do princípio de realidade no aparelho psíquico possa ser entendida como um
desses momentos da vida nos quais as inscrições sofrem modificações, são reinscritas e
traduzidas, passando a funcionar e se organizar de outro modo.
No entanto, na mesma carta, encontrávamos a seguinte consideração de Freud a
respeito dos processos de transcrição:

“Quando falta uma transcrição posterior, a excitação é tratada de


acordo com as leis psicológicas vigentes no período psíquico
precedente e seguindo as vias abertas naquela época. Assim, persiste
um anacronismo: numa determinada província, ainda vigoram os
fueros; estamos na presença de “sobrevivências”.” (Freud, 1896/1986,
p. 209).

A possibilidade da existência de anacronismo e da permanência de espaços


regidos por antigas leis, que não sofreram as modificações ulteriores, não invalida a
nossa aproximação desse modelo com as teses do Projeto ou do texto das Formulações,
pois, como vimos, nesses textos também essas possibilidades estavam contempladas e
justificadas como passíveis de ocorrer.
No Projeto, esse espaço que foi mantido fora do novo regime é a realidade de
pensamento (denkrealität), cujo aparecimento no texto das Formulações se faz sob a
denominação do fantasiar. A explicação para a manutenção desses espaços, que
funcionam de acordo com as leis anteriores, consiste na suposição de que estes teriam
conseguido manter-se afastados das experiências de desprazer, não tendo, portanto,
passado pelos processos de educação e modificação. Ao fantasiar e poder abandonar os
objetos da realidade, o aparelho poderia ser livre para se satisfazer de acordo com as
regras de funcionamento originais e antigas que não regem mais os outros espaços.
Vimos como essa posição de Freud volta a ser afirmada nas Conferências
introdutórias sobre Psicanálise (1917), recorrendo à metáfora das reservas naturais para
conotar as fantasias: “Nesses locais reservados, tudo, inclusive o que é inútil e até
mesmo nocivo, pode crescer e proliferar como lhe apraz. O reino mental da fantasia é
175  
 

exatamente uma reserva desse tipo, apartada do princípio de realidade.” (Freud,


1917b/1996, p. 374).
É importante considerarmos que, em sua única aparição na obra de Freud, em O
mal-estar na civilização, o termo desenvolvimento do sentido de realidade aparece
inserido em uma discussão que justamente destacava a função que esta parte, eximida
das influências advindas do processo de transformação, teria dentre os métodos de
evitação de sofrimento causados pelo mundo externo. Nesse trecho de O mal-estar na
civilização Freud refere-se ao fantasiar novamente evocando uma figuração espacial: “A
região onde essas ilusões se originam é a vida de imaginação; na época em que o
desenvolvimento do senso de realidade se efetuou, essa região foi expressamente
isentada das exigências do teste de realidade e posta de lado a fim de realizar desejos
difíceis de serem levados a termo” (p. 88).
Em 1911, esse espaço destinado ao fantasiar foi textualmente vinculado às
características das pulsões sexuais, que também se encontravam desligadas do
desenvolvimento que encaminha o aparelho da predominância de funcionamento do
princípio de prazer ao princípio de realidade. Como explicamos no primeiro capítulo,
esse fato ocorreria devido à característica auto-erótica inicial das pulsões sexuais, que as
permitiria permanecer, por um longo período, sem deparar-se com a frustração da
satisfação pulsional que reclama ao aparelho operar modificações para considerar a
realidade e alcançar sua meta. Nesse texto das Formulações, Freud sublinha que,
quando a pulsão sexual poderia finalmente encontrar um objeto, ela era interrompida
pela chegada ao período de latência, levando a mais atrasos na modificação de seu
funcionamento.
Esses apontamentos de Freud mostram a existência de dois anacronismos no
desenvolvimento do sentido de realidade: uma para o pensamento, o fantasiar, e a outra
que ocorre com as pulsões sexuais.
Ainda que a existência desses espaços e pulsões apartados do desenvolvimento,
como mostramos acima, seja assídua no texto de Freud, quando versa a respeito da
instalação do princípio de realidade e do desenvolvimento do sentido de realidade, nos
perguntamos se tal existência poderia ser considerada como fato inerente ao
desenvolvimento ou uma falha em seu percurso que poderia ser solucionada com
modificações posteriores nas suas configurações.
176  
 

6.2.1 Um desenvolvimento teleológico para o sentido de realidade

Há duas passagens no texto das Formulações sobre os dois princípios do


funcionamento mental, que indicam que, ao menos ao que se refere à relação entre as
pulsões sexuais e a instalação do princípio de realidade, haveria possibilidade de
encontrar um termo para seu desenvolvimento.
Quando Freud versa a respeito do retardamento desse desenvolvimento, ele
menciona que para muitas pessoas pode nunca chegar a ocorrer. Logo, estava suposto
que o desenvolvimento na esfera das pulsões e que as levasse ao sentido de realidade
era algo esperado, que poderia ocorrer. Lembramos que isso estava fundado na
concepção que Freud tinha do desenvolvimento pulsional, que deveria chegar a um fim
ao se atingir o amor objetal. No texto das Formulações, Freud afirmava que, quando as
pulsões sexuais passassem “(...) de seu auto-erotismo original, através de diversas fases
intermediárias, ao amor objetal a serviço da procriação” (p.243), seria possível então
ocorrer a finalização do percurso que levaria ao predomínio do princípio de realidade no
aparelho psíquico.
Essa hipótese de desenvolvimento libidinal, parecia indicar a possibilidade da
realização das metas de desenvolvimento do sentido de realidade que levariam ao fim
das interferências da fantasia uma vez que as pulsões sexuais que, antes estavam sob
domínio estrito do princípio de prazer, passariam a considerar a realidade, submetendo-
se ao princípio que organiza essa outra forma de relação.
Além disso, também estava presente nas Formulações a tentativa de estabelecer
o sentido de realidade em paralelo à classificação da psicopatologia, quando se afirmava
que essa meta de desenvolvimento não seria alcançada pela neurose, que apresenta
fixações em pontos específicos no curso do desenvolvimento do eu e da pulsão. Para
Freud, a escolha da neurose estava relacionada à “fase específica de desenvolvimento
do ego e da libido na qual a inibição disposicional do desenvolvimento ocorreu”
(p.243).
Ao menos essas passagens do texto permitem supor que haveria um momento
possível em que o desenvolvimento do eu e das pulsões faria com o desenvolvimento do
sentido de realidade atingisse seu fim e assim afirmar que, de fato, uma escatologia
estava presente. Isso demonstra que havia uma consideração de que a concepção de
desenvolvimento do sentido de realidade poderia se dar nos moldes da epigênese.
177  
 

Dessa forma, os espaços que ficaram fora, seriam falhas, problemas no


desenvolvimento.
No terceiro capítulo de nossa pesquisa, pudemos acompanhar como a concepção
de desenvolvimento linear e perfectibilista esteve na base de muitos dos modelos de
desenvolvimento do sentido de realidade que foram propostos por comentadores e
autores da psicanálise. Ainda que todos os autores considerem a participação e
importância das experiências vividas para que haja transformações no aparelho
psíquico, e não concebam que o desenvolvimento estivesse determinado geneticamente,
é possível verificar como, na maioria dos textos apresentados, existe a hipótese do
desenvolvimento do sentido de realidade dentro dos moldes da epigênese. Não por
acaso, a tentativa de Ferenczi (1913), Edward Glover (1933) e Frumkes (1953) em
estabelecer séries de etapas desenvolvimentistas ou critérios que pudessem servir como
balizas do processo de transformação no sentido de realidade rumo à adaptação ou o
abandono das ilusões de onipotência. No texto de Ferenczi, observamos como o autor
procurava estabelecer as etapas do desenvolvimento do sentido de realidade em acordo
com o desenvolvimento do eu. No texto de Glover, Ferenczi é criticado por não ter
conseguido estabelecer, junto à serie de desenvolvimento do eu, também uma série do
desenvolvimento libidinal, todos em paralelo. Além dessas séries, o texto de Glover
revelava sua insistência na tentativa de encontrar também um serie psicopatológica que
acompanhasse o desenvolvimento do sentido de realidade.
Entretanto, há uma modificação na hipótese em relação ao desenvolvimento das
pulsões sexuais na obra de Freud que transforma as conclusões deduzidas acima. Em
seu texto Análise terminável e interminável (1937), é possível encontrar declarada a
reconsideração dessa posição inicial que permitia uma interpretação epigenética para o
desenvolvimento pulsional:

“Nossa primeira descrição do desenvolvimento da libido foi a de que


uma fase oral original cedia caminho a uma fase anal sádica e que
esta, por sua vez, era sucedida por uma fase fálico-genital. A pesquisa
posterior não contradisse essa opinião, mas corrigiu-a acrescentando
que essas substituições não se realizam de modo repentino, mas
gradativamente, de maneira que partes da organização anterior sempre
persistem lado a lado da mais recente, e que mesmo no
desenvolvimento normal a transformação nunca é completa e resíduos
de fixações anteriores podem ser mantidos na configuração final.”
(Freud, 1937/1996, p. 244).
178  
 

A concepção, expressada na passagem acima, da existência de uma


transformação que nunca é completa e que é entendida agora como uma qualidade e
não mais como circunstancia patogênica, em nossa opinião, indica uma outra forma de
interpretação dos fatos do desenvolvimento do sentido de realidade quando relacionado
às pulsões sexuais.
Se pudermos comparar a passagem acima ao que havia sido afirmado por Freud
no texto das Formulações, poderíamos inferir que estarão presentes no sistema, mesmo
nas fases posteriores de organização libidinal, as formas que o sentido de realidade
apresentava quando a satisfação ainda era unicamente auto-erótica. A existência dos
resíduos no desenvolvimento do sentido de realidade seria fato inerente e esperado, não
mais significando atrasos e fixações. Dessa forma, acreditamos ser possível considerar
que, ao menos ao que se refere às pulsões sexuais, o desenvolvimento do sentido de
realidade não seguiria o modelo da epigênese.
Além disso, a continuidade do texto de Freud permite ampliar essa hipótese para
além do campo das pulsões sexuais:

“Ao estudar desenvolvimentos e mudanças, dirigimos nossa atenção


unicamente para o resultado; desprezamos prontamente o fato de que
tais processos são geralmente mais ou menos incompletos, o que
equivale a dizer que são, de fato, apenas alterações parciais. Um
arguto satirista da antiga Áustria, Johann Nestroy disse certa vez:
‘todo passo à frente tem somente a metade do tamanho que parece ter
a princípio’. É tentador atribuir uma validade bastante geral a esse
ditado malicioso. Há quase sempre fenômenos residuais, uma
pendência parcial.” (Freud, 1937/1996, p.244).

As considerações de Freud apresentadas nessa citação estão longe da


compreensão do processo de desenvolvimento enquanto uma transformação gradual e
regular, guiada por um telos predeterminado, e no qual se espera que, ao final do
processo, esteja-se diante de uma estrutura mais perfeita e completa que a sua forma
inicial, tal como preconiza a epigênese.
Ao contrário disso, acreditamos que a formulação apresentada acima por Freud,
segundo a qual o desenvolvimento não está dirigido para um fim pré-estabelecido e que
há uma transformação que se completa, ao ser comparada aos três modelos fornecidos
pela biologia, estaria mais próxima das teses darwinistas que afirma a ausência de um
plano de desenvolvimento voltado para uma meta de perfeição.
179  
 

A modificação que Freud apresenta no texto Análise terminável e interminável


evidencia que não há mais um plano pré-estabelecido de desenvolvimento para o
sentido de realidade que acompanharia o desenvolvimento das pulsões do eu e sexuais.
Talvez não possamos nem ao menos afirmar que Freud descreva a existência de um
desenvolvimento incompleto, já que sua completude não é mais sequer suposta como
esperada.
Desse modo, a presença dos fueros e das reservas naturais durante os processos
de retranscrições do sentido de realidade, é imanente a sua constituição e não acidental
na sua formação.
Desse modo, tendemos a concordar com Abend (1982) em sua hipótese de que
os modos de negação da realidade não ocorrem devido a falhas no desenvolvimento,
uma vez que, como estamos acompanhando na argumentação desse capítulo, para Freud
o desenvolvimento do sentido de realidade contaria sempre com os desarranjos
provenientes dos modos residuais que permanecem.
Já no texto das Formulações, Freud explicava de que forma os modos residuais,
os fueros e as reservas naturais, poderiam ter peso nas atividades dos conteúdos que já
foram transcritos e retranscritos. Essa explicação de Freud está no trecho desse texto de
1911, quando descreve a interferência que o modo de pensar racional poderia sofrer do
fantasiar, ilustrando bem como a forma residual continuaria presente e atuante nas
formas de funcionamento já desenvolvidas. Segundo Freud, por ainda funcionar nos
moldes do princípio de prazer, o pensamento característico do fantasiar, na tentativa de
recalcar qualquer representação que pudesse implicar desprazer para a consciência,
influenciava o fluxo do pensamento racional:

“No campo da fantasia, a repressão permanece todo-poderosa; ela


ocasiona a inibição de ideias in statu nascendi antes que possam ser
notadas pela consciência, se a catexia destas tiver probabilidade de
ocasionar uma liberação de desprazer. Este é o ponto fraco de nossa
organização psíquica; e ele pode ser empregado para restituir ao
domínio do princípio de prazer processos de pensamento que já se
haviam tornado racionais.” (Freud, 1911/1996, p. 241).

Esse processo de influência entre as formas atuais e residuais também foi


demonstrado ao longo de nosso segundo capítulo, nos exemplos do que Freud
denominou como sendo o sentimento de realidade. Lembramos ao leitor como nesses
exemplos relatados por Freud, o paciente tinha a sensação de realidade após despertar
180  
 

de um sonho, no entanto, esse sentimento não significava um erro de julgamento. Em


uma formação de compromisso, os conteúdos julgados como sendo reais apenas
puderam ter acesso à consciência após sofrerem a distorção onírica. Desse modo, o
sentido de realidade, já desenvolvido, pode julgar como real um conteúdo que, por estar
ligado ao conteúdo do pensamento fantasmático residual, apenas surgiu após a revisão
secundária do sonho, e pode então ser reconhecidos como real.
Nesses dois casos, é possível notar de que modo esses processos novos e antigos
convivem e se influenciam mutuamente, sem que um elimine o outro.

6.3 Totem e tabu e a hipótese perfectibilista.

Seria possível levantar uma objeção contra nossa hipótese, de que não há em
Freud um desenvolvimento do sentido de realidade teleológico, fazendo uso das
passagens que apresentamos sobre Totem e tabu (1913) e O futuro de uma ilusão (1927)
em nosso primeiro capítulo.
Ao afirmar que os sistemas de pensamento animista e religioso estavam mais
próximos ao regime do princípio de prazer e deveriam ser abandonados enquanto o
pensamento científico, mais próximos do predomínio do princípio de realidade, deveria
ser a meta que poderia direcionar os caminhos para a humanidade, poderíamos
considerar que haveria nessa afirmação a ideia de um desenvolvimento de sentido de
realidade com um fim pré-estabelecido e perfectibilista.
Seria possível, inclusive, lembrar a passagem no texto de 1927, em que Freud
sugere que seja feita uma educação para a realidade de modo a se passar dos sistemas
de pensamento animista e religioso em direção ao pensamento científico, no qual
finalmente as ilusões seriam abandonadas.

“Terão de admitir para si mesmos toda a extensão de seu desamparo e


insignificância na maquinaria do universo; não podem mais ser o
centro da criação, o objeto de terno cuidado por parte de uma
Providência beneficente. Estarão na mesma posição de uma criança
que abandonou a casa paterna, onde se achava tão bem instalada e
confortável. Mas não há dúvida de que o infantilismo está destinado a
ser superado. Os homens não podem permanecer crianças para
sempre; têm de, por fim, sair para a ‘vida hostil’. Podemos chamar
isso de ‘educação para a realidade’.” (Freud, 1927/1996, p. 57).
181  
 

Primeiramente, se pudéssemos classificar esse texto de Freud na série de


metáforas apresentadas no capítulo anterior, ele estaria junto das hipóteses da
ontogênese como repetição da série filogenética. Essa hipótese é explicitada por Freud
no texto de Totem e tabu (1913), quando considera, por exemplo, que essas etapas do
pensamento da humanidade seriam repetidas na história de cada indivíduo, e inclusive
chegava a comparar o pensamento infantil e o pensamento primitivo.
Vimos no capítulo anterior como, no interior dessa hipótese que afirma que as
trilhas traçadas pelos antepassados da espécie seriam repetidas resumidamente pelo
indivíduo, tanto em seu desenvolvimento libidinal quanto no desenvolvimento de seu
eu, havia também a consideração de que a atualização da série de recapitulações não
estaria garantida de ocorrer na ontogênese. Talvez essas duas possibilidades, a da
repetição regular da série mas também a possibilidade que isso não ocorra, expliquem as
duas passagens de O futuro de uma ilusão (1927), em que Freud propõe a figura do
professor sensato, que apenas não deve interferir na repetição de uma série de
crescimento, e a passagem que citamos novamente acima na qual propõe a necessidade
de uma educação para a realidade, para que a série possa ocorrer na ontogênese.
Perguntamo-nos se estaria sugerida a concepção da educação para a realidade
como uma forma de garantir que o desenvolvimento do sentido de realidade ocorresse e
colocasse um fim às ilusões do pensamento humano, de modo que não restassem mais
vestígios de outras fases. Não entraremos aqui nas discussões que aproximam ou
distanciam Freud de Augusto Comte ou do Iluminismo, ainda que essas questões
estejam no horizonte desse debate. Interessa-nos aqui apenas o problema da existência
da proposta de um fim perfectibilista para o desenvolvimento do sentido de realidade
nos moldes propostos pela epigênese. Ou seja, se há possibilidade de afirmar que existe
na obra freudiana a suposição de que o pensamento racional é a ultima forma do
pensamento que eliminaria os outros moldes e que consiste na forma mais perfeita e
harmônica de relação com a realidade.
A resposta para a possibilidade de convivência de traços residuais no
desenvolvimento desses sistemas de pensamentos já está presente em pelo menos duas
passagens da Conferência XXXV – A Questão de uma Weltanschauung (1933[1932]).
Há essa passagem que citamos em nosso primeiro capítulo,

“Os senhores sabem como é difícil algo desaparecer após haver


alguma vez conseguido expressão psíquica. Assim, não se
182  
 

supreenderão ao ouvir dizer que muitas das expressões do animismo


persistiram até hoje, na maior parte segundo o que chamamos
superstição, paralelamente e por trás da religião. E, mais ainda,
dificilmente os senhores poderão rejeitar o raciocínio de que a
filosofia de hoje conservou alguns aspectos essenciais do modo
animista de pensamento – a supervalorização da magia das palavras e
a crença segundo a qual os fatos reais do mundo tomam o rumo que
nosso pensamento deseja impor-lhes.” (Freud, 1933[1932]/1996, p.
162).

Mas há outra afirmação de Freud a respeito também da arte, que, segundo Freud,
“quase sempre é inócua e benéfica; não procura ser nada mais do que uma ilusão”
(Ibid., p.157).
Nossa resposta para a segunda questão se pauta na interpretação de Ines
Loureiro, no capítulo três, intitulado “A Guerra às ilusões”, da terceira parte de seu livro
O carvalho e o pinheiro (2002). A tese da autora, com a qual concordamos, afirma que
a defesa de Freud da necessidade do abandono das ilusões do pensamento religioso não
implica o fim dos conflitos pulsionais e a possibilidade de convivência harmônica entre
os homens. Tampouco a passagem do pensamento religioso ao pensamento racional
científico significaria o fim do sofrimento humano. Como afirma Loureiro, (2002),
Freud deixa claro em O mal-estar na civilização que os avanços científicos e seus
resultados tecnológicos não iriam garantir a eliminação do sofrimento humano, “até
porque o próprio progresso traz consigo novas formas de sofrimento.” (Loureiro, 2002,
p. 318).
A autora também retoma a seguinte passagem da resposta de Freud a Einstein no
texto Por que a guerra? (1933) que visa justamente responder a essa questão. Ao
considerar os recursos dos quais a humanidade poderia se valer para impedir a
ocorrência de outra grande guerra, Freud chega a sugerir, entre as suas considerações, a
importância da educação para a autonomia da razão:

“Um exemplo da desigualdade inata e irremovível dos homens é sua


tendência a se classificarem em dois tipos, o dos líderes e o dos
seguidores. Esses últimos constituem a vasta maioria; têm necessidade
de uma autoridade que tome decisões por eles e à qual, na sua maioria
devotam uma submissão ilimitada. Isto sugere que se deva dar mais
atenção, do que até hoje se tem dado, à educação da camada superior
dos homens dotados de mentalidade independente, não passível de
intimidação e desejosa de manter-se fiel à verdade, cuja preocupação
seja a de dirigir as massas dependentes. É desnecessário dizer que as
usurpações cometidas pelo poder executivo do Estado e a proibição
estabelecida pela Igreja contra a liberdade de pensamento não são
183  
 

nada favoráveis à formação de uma classe desse tipo. A situação ideal,


naturalmente, seria a comunidade humana que tivesse subordinado sua
vida instintual ao domínio da razão. Nada mais poderia unir os
homens de forma tão completa e firme, ainda que entre eles não
houvesse vínculos emocionais. No entanto, com toda a probabilidade
isto é uma expectativa utópica.” (Freud, 1933/1996, p. 206)

No entanto, como o final dessa passagem apresenta, a possibilidade da existência


do domínio da razão era para Freud uma expectativa utópica. A consideração de ser
utópica não invalida sua pertinência, mas aponta a possibilidade de criar outra ilusão
não-benéfica para a humanidade. Para Freud as respostas que proponham soluções que
se acreditem harmonizadoras para solucionar as questões do indivíduo com a
civilização, de modo a um dia ser possível atingir-se uma perfeição, eram apenas outra
ilusão que seria instaurada no lugar das ilusões religiosas destituídas.

“Como resultado do verdadeiro massacre a que submete as ilusões (o


que não quer dizer que tenham sido eliminadas, ao contrário...), o
mínimo que se pode dizer é que alguns ideais e valores profundamente
enraizados na civilização ocidental passam a ser vistos como utopias.
Convivência pacífica, perfectibilidade, e talvez não fosse inadequado
generalizar, o anseio de felicidade – tudo isso é reputado como
impossível. No entanto, nem por isso Freud abre mão de princípios e
valores como norteadores da vida individual e social: o ataque às
ilusões destrói certos ideais, abala outros, mas também conserva no
horizonte vários desses ideais.” (Loureiro, 2002, p. 345).

Assim, acreditamos que, embora a passagem da humanidade ou do indivíduo


para o pensamento científico represente para Freud muitos ganhos nos modos de relação
com a realidade e com a verdade (ao consentir com a condição humana mortal,
desamparada e precária), representando um avanço, não significaria a conquista de uma
fase na qual a perfeição foi alcançada. O problema residiria em interpretar essa mudança
como o final de um processo de desenvolvimento nos moldes de uma formação que se
complete e leve à perfectibilidade e a harmonia com a realidade.
Na passagem abaixo retirada do texto freudiano Além do princípio do prazer
(1920), o autor afirma que não há para os seres humanos uma pulsão para a perfeição,
fruto apenas de seus ideais narcísicos:

“Pode também ser difícil, para muitos de nós, abandonar a crença de


que existe em ação nos seres humanos um instinto para a perfeição,
instinto que os trouxe a seu atual alto nível de realização intelectual e
sublimação ética, e do qual se pode esperar que zele pelo seu
184  
 

desenvolvimento em super-homens. Não tenho fé, contudo, na


existência de tal instinto interno e não posso perceber por que essa
ilusão benévola deva ser conservada. A evolução atual dos seres
humanos não exige, segundo me parece, uma explicação diferente da
dos animais. Aquilo que, numa minoria de indivíduos humanos,
parece ser um impulso incansável no sentido de maior perfeição, pode
ser facilmente compreendido como resultado da repressão instintual
em que se baseia tudo o que é mais precioso na civilização humana. O
instinto reprimido nunca deixa de esforçar-se em busca da satisfação
completa, que consistiria na repetição de um experiência primária de
satisfação.” (Freud, 1920/1996, p. 52).

Esse trecho citado acima deixa ainda mais consistente a hipótese de que não
poderíamos sustentar com Freud a hipótese de um desenvolvimento teleológico que
comportasse a ideia de aperfeiçoamento totalizante.

6.4 O fim da análise: a realidade polimorfa.

Acreditamos que as considerações a respeito do problema do sentido de


realidade em sua relação com o final de análise mereceria um trabalho paralelo. No
entanto, ensaiaremos algumas conclusões a partir do material que apresentamos no
capítulo três.
Pudemos acompanhar, no item final do capítulo três, como alguns psicanalistas
propuseram como um dos principais objetivos para do tratamento orientar o paciente na
conquista de uma visão não ilusória da realidade. Esta era, por exemplo, a proposta que
estava indicada no artigo de Michael Balint The Final Goal of Psycho-Analytic
Treatment (1936), que, como vimos, além de considerar o tratamento psicanalítico
“como sendo um processo natural de desenvolvimento do paciente” (p. 206), propunha
como objetivo final que se alcançasse o acesso à realidade e à capacidade de amar. Ao
final do processo, supunha-se que a crença na onipotência dos desejos, as projeções e a
fantasia não mais poderiam determinar as relações deste com a realidade. A realidade,
que parece ser entendida como um bloco monolítico composto por coisas, poderia ser
desvelada e, finalmente, apresentada ao analisante para além dos limites impostos por
suas ilusões. Como afirma Lacan, seria como se a maturação do desejo, representada
pelo desenvolvimento pulsional, enfim permitisse o “mundo se completar em sua
objetividade” (Lacan, 1959, p.07).
185  
 

Já demonstramos acima a organização para o desenvolvimento pulsional que


Freud apresentou em Análise terminável e interminável (1937), de modo a retificar sua
proposta anterior de desenvolvimento linear e teleológico. Nesse mesmo texto, após
apresentar a sua hipótese de que o desenvolvimento psíquico comporta quase sempre
fenômenos residuais do que um dia já teve existência psíquica, Freud procura concluir
quais as relações entre essa concepção de desenvolvimento para a clínica psicanalítica e
em como poderia refletir no final de análise:

“Aplicando essas observações a nosso presente problema, penso que a


resposta à questão de como explicar os resultados variáveis de nossa
terapia analítica bem poderia ser a de que nós também, esforçando-nos
por substituir repressões, que são inseguras, por controles
egossintônicos dignos de confiança, nem sempre alcançamos nosso
objetivo em toda a sua extensão – isto é, não o alcançamos de modo
bastante completo. A transformação é conseguida, mas, com
frequência, apenas parcialmente: partes dos antigos mecanismos
permanecem intocadas pelo trabalho da análise.” (Freud, 1937/1996,
p. 245).

Em nossa leitura da passagem acima, a hipótese freudiana iria contra a


concepção de que um dia fosse possível acessar a realidade de forma pura, em sua plena
objetividade perceptual, sem a influência dos desejos e da fantasia. Ao contrário, a
passagem parece indicar que, ao final da análise, restaria o polimorfismo nos modos de
relação com a realidade.
Apenas para ficar nas teses apresentadas no Projeto, não encontramos na obra de
Freud qualquer indicação de que o eu poderia finalmente deixar de ser imparcial na sua
avalição da realidade. Bem ao contrário, as concepções a respeito da divisão do eu em
seu modo de considerar a realidade apenas se ampliam com o passar dos anos e atingem
seu ápice nos anos 30. Além disso, não encontramos qualquer comentário de Freud que
nos levasse a afirmar a possibilidade de que julgamento da realidade um dia ou em
alguma etapa do desenvolvimento do eu poderia vir a ser capaz de julgar não apenas os
predicados de uma coisa, mas a coisa mesma, que permanece até o fim sendo a parte
“constante e incompreendida” dos fenômenos.
Entretanto, não acreditamos que a proposta de um desenvolvimento parcial do
sentido de realidade, que implica o acesso não totalmente perfeito e objetivo à realidade,
signifique que Freud estivesse propondo uma indiferença com os modos anteriores do
princípio de prazer e da alucinação primordial, mas apenas a aceitação da presença
constante dos restos atuantes de suas fases anteriores e a presença constante das
186  
 

fantasias influenciando na interpretação dos fatos. A realidade humana seria construída


por esses elementos conjuntamente. Como afirma Soria (2010) ao comentar um dos
termos utilizados por Freud para se referir à realidade:

“Devemos notar que Wirklichkeit (efetividade) deriva do verbo


wirken, que significa, entre outras coisas, tecer. A efetividade do
mundo que nos cerca deve ser atribuída, desse modo, a um ato
completo de tessitura dos traços mnêmicos, ou ainda, ao tipo de
comunidade representacional que se tece. Podemos dizer que o que de
efetivo (wirken) se produz é a modificação dos sistemas psíquicos e o
seu enlace em uma malha mnêmica. A representação se fixa então ao
psiquismo de forma efetiva, verdadeira, ou ainda, com valor de
realidade”. (Soria, 2010, p. 89).

Reiteramos que não acreditamos que essa forma de interpretação seja um


incentivo às tentativas de satisfazer os desejos aos modos do princípio de prazer ou a
uma posição de passividade em relação ao mundo uma vez que não se poderia ter
acesso à realidade puramente objetiva. A posição de Freud não seria algo como: já que
estamos alucinando parcialmente, vamos delirar. Na passagem abaixo de O mal estar na
civilização, Freud não afirma que a saída delirante de negar a realidade e recriá-la ao
seu modo fosse a melhor alternativa, mas sim o convite a alterar o mundo, para adaptá-
lo a seus desejos.

“A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como


possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo.
Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem
de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo.
Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua
escolha. É uma questão de quanta satisfação real ele pode esperar
obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se
independente dele, e, finalmente, de quanta força sente a sua
disposição para alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos.
Nisso, sua constituição psíquica desempenhará papel decisivo,
independentemente das circunstâncias externas.” (Freud, 1930
[1929]/1996, p. 91).

É dentro desses limites na relação com a realidade, na impossibilidade de se


despojar os restos de ilusão e fantasia que sempre estarão presentes, que se poderia
tentar alterar o mundo a fim de adaptá-lo aos seus desejos.
187  
 

Considerações finais

Ao longo de nossa investigação a respeito do sentido de realidade pensamos


estar muitas vezes diante de um conceito cuja definição era impossível. Percebemos não
ser mero acaso o fato de não encontrarmos definições claras a seu respeito em muitos
dos comentadores consultados. Vimos como o conceito criado por Ferenczi em 1913,
mas derivado das teses anunciadas por Freud sobre o estabelecimento do princípio de
realidade no aparelho psíquico apresentadas no texto Formulações sobre os dois
princípios do funcionamento mental, quando posteriormente incorporado por Freud, foi
mencionado somente uma vez no texto em O mal-estar na civilização (1930), sem que
suas determinações estivessem claras. Mas a essa raridade somou-se também algumas
pré-decisões a respeito da noção, lançando sobre ela uma espécie de nuvem de fumaça.
De qualquer forma, mesmo sem definições precisas, pudemos acompanhar como
a questão do sentido de realidade organizava em torno de si o problema das
modificações por que passa o aparelho psíquico a fim de conseguir considerar a
realidade e poder satisfazer os desejos de modo mais seguro. Como essa modificação
aparece nos textos de Freud envolvida com a emergência do teste de realidade e do
princípio de realidade no aparelho psíquico, encontra-se aí a razão pela qual a distinção
do sentido de realidade em relação a esses conceitos está sempre marcada por um traço
de limitações borradas.
Além do problema de sua definição, do conjunto de suas determinações e de
suas articulações, vimos como o conceito estava sempre acompanhado por
interpretações a respeito de seu desenvolvimento. A hipótese frequente entre os
comentadores consistia em que haveria um desenvolvimento do sentido de realidade, a
qual sempre resulta em progresso na relação com a realidade e no abandono das formas
primitivas e precárias.
Nosso caminho então procurou investigar os conceitos em jogo, procurando
definições provisórias, articulando os dados disponíveis, de modo que, se não
dispúnhamos de uma determinação clara, ao menos tínhamos a organização de uma
constelação conceitual que poderia orientar a solução da questão.
188  
 

Assim, o resultado a que chegamos é que o sentido de realidade consiste


fundamentalmente na capacidade de julgar a respeito das qualidades de um fenômeno.
Com essa capacidade, é possível determinar a existência do fenômeno e tentar evitar o
desprazer que é causado ao se tentar obter satisfação das necessidades reinvestindo
traços mnêmicos de experiências de satisfações passadas de modo alucinatório. A
formação desse juízo, atribuído à consciência e ao eu, envolve não apenas a percepção e
a cognição como também as sensações corporais.
Quanto ao sentimento de realidade, tantas vezes completamente igualado de
maneira precipitada ao sentido de realidade, trata-se antes de uma espécie de sentido de
realidade, o qual se apresenta diante de fenômenos psíquicos que, de algum modo,
remetam o indivíduo a suas fantasias inconscientes. Nesse caso, a situação é julgada
como sendo real por já ter sido uma realidade, mas que apenas pode ser relembrada
mediante as distorções oníricas, por estar relacionada a conteúdos recalcados.
Posteriormente, aos reconstituirmos o estado dos estudos a respeito do sentido
de realidade, vimos que embora a leitura desenvolvimentista fosse bastante frequente,
percebemos que diferentes formas de modificação se escondiam sob uma mesma
denominação. Percebemos então que seria necessário investigar o conceito de
desenvolvimento no próprio Freud. Essa tarefa supôs uma outra, preliminar, a respeito
do horizonte teórico em que emerge esse conceito no século XVIII, tornando-se um
conceito chave de todo o século XIX. Essa investigação nos colocou diante de uma
diversidade de modelos, alguns deles rompendo com a orientação de progresso típica da
época.
Realizada essa tarefa, pudemos ver que no próprio Freud há, no percurso de sua
obra, uma variação de tratamento a respeito da hipótese sobre um possível
desenvolvimento do sentido de realidade. Conseguimos mostrar que, a não ser por um
certo momento, em que a noção de desenvolvimento se prende ao modelo da epigênese,
Freud está, no quadro geral dado pelo conceito, muito distante de um modelo de
desenvolvimento marcado pela teleologia e pelo perfectibilismo. Em geral, pode-se
dizer, a partir das suas concepções metafóricas do tempo, que o desenvolvimento do
sentido de realidade tem de conviver com uma espécie de presença simultânea de
tempos e estágios diferentes. Nesse contexto mais geral, o sentido de realidade jamais
pode ser absolutamente objetivo, como que depurado dos momentos de alucinação,
fantasia, desejo, que marcam o regime originário do princípio de prazer.
189  
 

Como dissemos de início, nossa pesquisa não pretende outra coisa que
estabelecer os limites de uma instância vestibular, a partir da qual poderemos levar
adiante a questão sobre o sentido de realidade e de seu desenvolvimento no interior e
para além da obra freudiana. Essa dissertação gostaria que não se perdesse de vista essa
perspectiva que, se de fato restringe a abordagem, confia, por conta justamente de seus
limites, na possibilidade de se tornar futuramente mais frutífera.
190  
 

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