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Introdução

O tempo da escravidão no Brasil é ainda recente. Cento e poucos anos separam desta época,
onde houve tantos amores e muitos ódios. Sentimentos de laços fortes que se perpetuam em
nossos dias. Ódios que geraram vinganças e obsessões dolorosas. Acontecimento
s que
marcaram todos nós, espíritos, que por mais de uma encarnação estamos no solo, tão amado,
brasileiro.

Apresento-lhes uma história verdadeira e espero que não só se distraiam com o meu relato,
mas eduquem -se também, instruam-se, levando a perdoar e am
ar a todos como irmãos.

Certamente, os tratamentos eram outros naquela época, e os escravos falavam de modo


peculiar. Também os termos que uso, muitos não eram conhecidos naquele tempo, mas achei
educativo empregá-los para substituir os termos que usavamque
e muitos, ao ter,
desconheceriam. Para facilitar a leitura escrevo como se a história acontecesse neste final de
século.

História de um amigo, mas poderia ser de qualquer um de nós. Quem pode dizer que não
possui uma história que poderia transformar em
romance? Seja desta encarnação, seja de
nosso passado? Creio que todos nós temos uma história e, por ser nossa, é deveras
interessante.

Antônio Carlos

São Carlos
- SP- 1993

Recordando

Estava amarrado, bem amarrado num tronco. Tinha muitas dores físicas
e estava humilhado e
envergonhado.

As chicotadas começavam. Estalavam zumbindo no ouvido. A primeira me pareceu separar em


dois. A dor era muita, uma mistura de ardido e dor de cortes me fez gemer alto. Era como se o
fogo me queimasse. Duas... três... Con
tei até cinco, depois tentei de todo sufocar meu grito de
amargura, dor de terror. Mas não foi possível evitar os gemidos. Minha cabeça rodou e
desmaiei.

Meio tonto vi que outros negros me desamarraram do tronco e me carregaram, ensopado de


sangue. Estavasem camisa, minhas calças de algodão cru molhadas, o sangue de minhas
costas descia pelas pernas.

Colocaram-me de bruços numa esteira e um preto velho foi cuidar de mim. Primeiro me deu
um chá amargo para tomar.

- Tome isto, tirará um pouco de suas dores


isse
d ele- e começou a limpar minhas costas.
A dor física era grande e a moral era igual.
-vou curar você.

- Não é melhor me deixar morrer?


- respondi com dificuldades. Talvez assim posso ficar perto
dos que amo.

- Como está, se morresse e ficasse pertoalguém,


de não ia fazer bem a ninguém. Se o Pai do
Céu não o desencarnou é porque tem que ficar aqui. Pense, filho, que tem que continuar vivo
para o seu próprio bem. Você vai ficar bom.

- Para quê?

- Para cumprir sua missão. Talvez, quem sabe, para aprender


a viver e dar valor a sua vida e a
dos outros. Descanse. Fique quieto que vou passar um remédio.

Tentei ficar quieto, o remédio doía muito. Os rostos da minha Mara e dos dois filhos meus
vieram forte em minha mente. Amava -os. E lembranças surgiram.

Viera da África, do meu lindo país de origem, com oito anos aproximadamente. Lugar onde fui
muito feliz, apesar de ter poucas lembranças. Mas tinha muitas saudades daquele tempo feliz,
dos meus pais, familiares e amigos. Tempo que corria livre pelo campo, pelas
atas, dos
m meus
banhos pelos rios e cachoeiras. Meu nome era lada, era filho do chefe de uma pequena aldeia.
Era livre como um passarinho, amava a vida, amava correr e brincar com outros meninos da
tribo.

Mas um dia tudo acabou, fomos atacados pelos homens brancos que sem dó e piedade vieram
atirando com suas poderosas armas. Nada se pôde fazer. Bem que nossos guerreiros tentaram,
mas foram mortos impiedosamente. Vi morrer meu pai, minha mãe, meus avós e muitos
amigos. lovens e crianças maiores foram presos.
Era grande e forte para minha idade, fui
separado com um grupo e amarrado, bem amarrado, fomos obrigados a andar. -osSegui
ao
curso do rio, todos sabiam que ia dar no mar. Andamos dias e os brancos não nos deixavam
conversar. Curioso, indaguei ao compa
- nheiro ao meu lado- era um garotâo forte e valente
com quinze anos:

- Onde vamos? Será que iremos pelo mar?

- Não sei ao certo para onde vamos. Pelo visto não é perto. lá distanciamos muito da aldeia e
se vamos pelo mar é porque é longe.

- Calem-se! - um branco disse- e deu uma chicotada no rosto dele que ficou marcado e saiu
sangue. Não entendi o porquê do castigo. Fiquei aborrecido, meu companheiro apanhou por
minha causa. Não ousei falar mais. Seguimos calados. Tomava água à vontade, mas
alimentávamos o puco.

O mar sempre é bonito, mas ao-lovênaquele dia que chegamos me deu um aperto no
coração. Ele parecia ser a causa da separação de uma vida feliz e livre que levávamos.

Fomos jogados no porão de um navio com muitos outros negros. Estávamos amontoados.
Minha irmã Maã, de treze anos, era muito bonita e bondosa; procurou ter calma, acalmar a
todos e reuniu para perto de si os membros, que ali estavam, da nossa aldeia. Assim ficamos
perto de conhecidos. Mas não deixava de indagar com muita dor:

"Por que tudo isto? Para onde vamos? Que será de nós?"

Eram perguntas que todos nós fazíamos sem respostas. Chorava muito a morte dos meus pais
e de todos que vi morrer.

Fizemos uma viagem horrível, comíamos pouco, estávamos amontoados. Vi com muita tristeza
muitos amigos e companheiros de infortúnio morrerem doentes, outros espancados. Mulheres
violentadas pelos homens brancos e algumas mortas, como minha irmã, Maã.os Todos
dias,
vinham homens e escolhiam meninas e mocinhas e as levavam para cima do navio. Às vezes,
escutávamos os gritos delas, quando voltavam estavam feridas, sangrando e sem roupas. Os
mais velhos cuidavam delas. Algumas não regressavam. Como me disse
pois uma
de mocinha
que havia subido com minha irmã:

- Mãe morreu nas mãos dos brancos. Eles a jogaram no mar.

Com a morte dela, tudo ficou mais triste ainda, ela era um anjo de consolo; chorei muito,
quando a desamarraram e a levaram, e ela não voltou mais.

Depois de algum tempo (nunca soube calcular quanto durou esta viagem de horror, que meus
olhos inocentes e infantis viam tudo sem entender, horrorizados) chegamos em terra, mas
bem diferente daquela que fora meu lar. Descer do navio foi um alívio a todos
ós. Pelo
n menos
podíamos respirar melhor, andar e ficar livres daquele incômodo balanço. Mas estávamos
muito bem amarrados; deixamos o navio, andando com dificuldades. Entramos num grande
galpão, onde fomos desamarrados, mas estávamos muito vigiadoscamos e lá fi trancados.
Pudemos tomar banho e fomos obrigados a vestir roupas, os homens calças e as mulheres
vestidos, e, depois, fomos alimentados. Pudemos conversar à vontade. Indaguei aos mais
velhos:

- Será que seremos separados? Voltaremos um dia para nossa


pátria?

- Será sorte ficarmos juntos


- disse um jovem guerreiro
- mas um dos mais velhos do grupo.
Quanto a voltar a nossa pátria não creio, só depois que o corpo morrer.

- Que tristeza!- suspirou uma jovem.

A comida era diferente da que estávamos acostu


mados, mas estava gostosa e pudemos comer
pela primeira vez, desde presos, à vontade. Comi bastante. Logo no outro dia fomos
acorrentados e levados a um local onde havia muitas pessoas e ali ficamos.

- É melhor ficarmos quietos


- disse Anon- um jovem valente da nossa tribo. Acho que não
vamos ser livres mais. Não sei o que nos espera, mas é melhor ter calma.

- Nem com bichos fazíamos isto! Somos piores que bichos?


- disse uma jovem tristemente.

- Calem a boca!
Conversávamos em nossa língua, não entendíamo
s a dos brancos e nem eles a nossa. Mas já
sabíamos que esta frase que tanto já ouvíamos era para ficarmos quietos.

Ali ficamos e muitos brancos nos olhavam. Entendi que nos comercializavam. E um por um foi
sendo separado e foi embora. Chegou a minha Comecei
vez. a chorar, quando um branco
começou a me examinar, olhando os meus dentes. Era o Sr. Ambrózio. Dei um pontapé nele e
ganhei uma forte bofetada, o sangue escorreu pelo meu rosto magro. Quietei, fui separado de
todos que conhecia, dos meus irmãos deangue
s e de aldeia. Com outros negros
desconhecidos fui levado para uma carroça e seguimos para a fazenda. Assustado, acomodei
-
me na senzala e recebi o nome de Bernardino.

- Que sou agora?


- indaguei amedrontado. Ninguém me entendia, foram buscar um preto
ue q

sabia falar muito mal minha língua. Foi ele que me respondeu como também quem me
ensinou a falar a sua língua.

- Você é agora um escravo, uma propriedade do senhor de fazenda.

- Como um animal?

- Pior, os animais são mais bem tratados.

- Meu Deus!

Nuncamais saí da fazenda. Cresci, não passei mais fome, fiz amizades, aprendi a falar a nova
linguagem e a trabalhar, servir aos brancos.

Com dezoito anos acasalei com Mara, então com quinze anos. Acasalei, digo isto porque os
negros não casavam, passavamver a vijuntos. Mara era muito bonita. Nós nos amávamos.
Tínhamos sentimentos que a maioria dos brancos ignoravam. Éramos tachados de diferentes,
só pela cor de nossa pele. Éramos escravos, só por sermos negros.

"Somos bichinhos que dão lucro aos nossos senhor


es!" Escutava sempre este comentário. De
fato eles faziam da nossa vida o que queriam.

Por três anos vivemos Mara e eu felizes nos nossos sonhos de jovens.

- Queria ser livre e branco


- dizia- queria ser empregado e ter uma casinha para nós.

- Talvez um ida a tenhamos, Bernardino


- dizia Mara. Sonho sempre que estamos numa
casinha, numa fazenda bonita e rodeados de filhos.

- Não vejo como!

Tivemos dois filhos, um casal. Amava


-os demais. Dormíamos todos juntos, cada família num
canto da senzala.

Lembrava bem daquela noite, quando as crianças ao nosso lado dormiam e Mara me disse
baixinho, muito preocupada:
- Bernardino, escutei hoje, na cozinha, o Coronel dizer ao Sr. Ambrózio que se as coisas
continuarem assim, ruins, vai ter que vender muitas coisas por
ui na
aqfazenda. Tenho a
impressão de que estas coisas somos nós.

- Calma, Mara, vamos dormir!

- Não posso, temo só em pensar o que nos poderá acontecer. Mara quietou e fiquei a pensar.
Coronel era nosso dono, havia herdado a fazenda de seu pai fazia três anos, quando este
falecera. Quando se viu dono, o Coronel começou a beber demais e a jogar,
tando
gas
muito
dinheiro. Era o Sr. Manoel, o administrador, que tomava conta da fazenda. Ele mesmo não
cuidava de nada, só em gastar. Sr. Ambrózio era um capataz, homem bom, honesto,
empregado de confiança. E esta conversa que Mara escutou era para preocupar
realmente,
porque a fazenda era de lavoura de café e este já fora vendido, como também alguns cavalos e
gado. Os animais que ficaram era só os indispensáveis à fazenda. Estas coisas que ele disse
bem podiam ser a gente. Senti um medo horrível de sermos didos
ven separados. Estava com
vinte e um anos, amava a vida e queria ser feliz ou pelo menos que continuasse a ser como
era. Achava ruim ser escravo, dormir na senzala, trabalhar muito, mas sabia que tinha outras
formas de viver pior; não reclamava e estava
bem com Mara, os filhos e amigos.

Levantei a cabeça, Mara dormia, passei a mão pelos seus cabelos, olhei os filhos.

"Amo-os muito, quero-os mais que a mim mesmo!"

Tentei não pensar mais, logo teria que levantar para trabalhar. Acabei por adormecer.

- Bernardino, levanta!

Era Mara me acordando, sorrindo. Levantei e juntos com os outros companheiros fomos para
a lavoura. Eram umas dez horas da manhã, quando o Sr. Ambrózio me pediu para voltar à
fazenda. Vi que ele mandou também a outros que voltassem à sede.

Cheguei no pátio e lá estavam vinte companheiros. Olhamos um para o outro sem saber o que
acontecia. Cheguei a pensar que podia ser algo de errado que alguém fez. Até mesmo pra
receber alguma ordem diferente. Mas sem explicar
-nos nada, dois homens brancos
que
desconhecíamos nos apontaram as armas e os empregados da fazenda nos acorrentaram os
tornozelos e punhos. Fomos colocados em dois carroções.

- Onde vamos? Por Deus, que está acontecendo?

- João perguntou aos gritos. Januário, um empregado cínico eantipatizado


mau, por todos nós,
respondeu sorrindo:

- Vão à feira, vão ser vendidos!

Um grito rouco, abafado, saiu do meu peito, acho que todos gritaram desesperados. Ali
estavam os melhores escravos da fazenda e separados de suas famílias; íamos emborao sem a
menos despedir. Vendo meus companheiros gritarem e chorarem, indaguei aflito, quando as
carroças partiram rumo à cidade:

- Por quê? Por que separamos da família?


- Como se chama?

- Bernardino.

- Foi vendido por quê?

- Porque o dono da fazenda, o Sinhô, faliu. Alguém aqui já ouviu falar da fazenda Santa Clara?

- Eu já ouvi. Você veio de lá? Fica uns dois dias de viagem a pé daqui. Ouvi esteutei
fato, esc
comentários. O Sinhô faliu e vendeu tudo.

- Pra que lado fica?

- Ah, isto não sei dizer não


- comentou um negro de olhar esperto.

Os escravos ali pareciam viver bem, eram sadios e bem alimentados. Tomei banho, ganhei
roupas e comi bastante. Deixaram escansar
d na senzala por três dias, depois foi me dado
trabalho. Ia para a lavoura trabalhar com café. Não era amarrado, mais muitos capatazes nos
vigiavam atentos.

Comecei a trabalhar, logo um dos companheiros avisou:

- Não, assim não, homem de Deus, maisdevagar. Veja, é assim como faço. A passo lento, tem
o dia todo pela frente. Devagar, senão cansa logo. E use trabalhar assim, logo um dos
capatazes nos obrigará a seguir seu ritmo.

- Obrigado. Farei como você.

Sorri agradecendo. Percebi que todos trabalh


avam cadenciado. Olhei em volta curioso,
observando tudo. Não seria difícil fugir dali. Deveria economizar forças para quando chegasse
a ocasião propícia. Forças para correr e ganhar liberdade. Passei a alimentar meu sonho de
fuga. Engordei, não estava tão
abatido, mas estava muito triste e saudoso. Não tinha muita
disposição para conversar, respondia somente às indagações feitas diretamente a mim. Nos
domingos não trabalhávamos. Nós nos reuníamos, como também algumas vezes, à noite na
frente das senzalas,
para conversar, cantar e até dançar. Às vezes, sentava perto deles, mas só
escutava, não conversava; chorava, sempre escondido, de saudade.

A idéia da fuga ia tomando forma na minha mente. Planejei tudo com cuidado e aguardava
ansioso por uma oportunidade. Este dia chegou. Chovia muito e os capatazes esforçavam para
proteger-se nos capotes. A caminho da lavoura, consegui me esconder numade moita
capim.
Nem os outros companheiros viram. Temi que algum deles pudesse me denunciar. Quando me
vi longe dos olhares dos capatazes, corri para o mato. No mato comecei a andar com cuidado.
Fugi de manhãzinha e logo a noite chegou. Estava cansado, com a sede,
muit faminto e cheguei
à triste conclusão que estava perdido. Arrependi
-me. Para fugir deveria saber para onde. Não
conhecia a região e não sabia aonde ir. Depois, fugir de quê? Como poderia fugir da minha
cor? Ser negro era ser escravo, nesta fazenda
u emo outra, ou na cidade. Mas a vontade de
chegar até Mara e as crianças me dava forças e continuava a andar, a correr.

Passei a noite debaixo de uma árvore. Logo pela manhã vi um riachozinho que estava num
local mais aberto. Olhei por todos os lados, não
vi ninguém, resolvi tomar água. Saí da mata e
- Bobagem, acharia sua família, ficaria junto dela e só os prejudicaria.

- Você diz que os ach


arei, se morrer, mas amoos e não quero prejudicá
-los.

- Quando a gente morre sem entender o que seja a morte do físico, pode ficar perto das
pessoas que amamos vivas no corpo, atrapalhando
-as. E depois você verá e eles não a você,
porque será ura espírito
e são poucos que vêem espíritos. Sofrerá muito vendo
-os em
dificuldades e não podendo fazer nada por eles.

- Há mortos que podem ajudar?


- perguntei curioso. Tião respondia com muita paciência.

- Não se fala mortos, estão vivos sem o corpo de carne e Estão


osso. desencarnados. Sim, os
bons, com entendimento, podem ajudar, sim, como os maus podem maltratar. Desde garoto
que escuto um bom espírito a me falar como tenho de ajudar as pessoas. Gosto muito dele e
ele de mim. Somos companheiros trabalhando juntos.

- Não tem medo dele?

- Claro que não, dos bons não se tem medo. Dos maus devemos ser precavidos.

- Você falou que nascemos muitas vezes, é verdade?

- Nosso espírito volta a nascer em corpos diferentes que são formados no ventre da mulher.
Sim, nós reencarnamos muitas vezes. Por isso, amigo, nada que nos acontece é injusto. Tudo é
certo!

- Aquele neguinho disse que ia vingar, é possível?

- Sim, Deus nos deu o livre


-arbítrio. É errado fazer maldades, também é errado vingar.

- Mas quem faz mal fica por isto mesmo?

- Não. Planta
-se o mal, colhem
-se sofrimentos. Seja você o nosso exemplo. Que fez de mal
nesta encarnação para sofrer assim? Certamente está colhendo da má plantação que plantou
em outra existência. Vingar também áestmuito errado, quem vinga planta o mal, sofre junto e
responderá pela maldade que fizer na vingança.

Os dias foram passando, melhorei muito, já andava e me sentia bem. Tião sempre cuidando de
mim com bondade. Ensinou-me a orar.

- Bernardino, ore como se


conversasse com o Pai do Céu. Fale o que vai no coração. Isto é que
é oração!

Nestes dias conversamos muito e Tião me ensinou muitas coisas.

- Você, meu filho, tem dons para fazer o que faço. Ensinei você a orar e espero que o faça
sempre para tentar ajudar outras pessoas. Se ficássemos mais tempo juntos, poderia ensinar a
você o que sei. Mas você terá oportunidades de aprender, basta querer. Você me admira e me
é grato. Mas não se pode ficar só na admiração, temos que seguir os bons exemplos.

- Que será demim, Tião?


- Você ainda terá a relativa felicidade reservada aos encarnados nesta Terra. Reencontrará sua
família, terá muitos filhos, viverá numa casinha simples, mas boa. Encontrará pessoas boas,
basta para isto ser humilde. Nem todos os brancos sãos.mauNão é a cor que nos faz bons ou
maus. Tanto há negros e brancos ruins como bons. O que somos é de dentro, do espírito.
Espero que você aprenda a ser grato.

No oitavo dia de manhãzinha, Tião ainda não viera me ver, um capataz veio me buscar.

- O Sinhô ma
ndou vender você. Vamos logo.

- Mas, por quê?

- Ele não gosta de fujões.

Amarrou-me só nos pulsos e mais uma vez subi na carroça.

Parti sem despedir de ninguém, nem do meu amigo Tião. Fomos à cidade, só eu e o capataz.
Suspirei triste e nada mais falei.

Fazenda SantAna

Durante a viagem, me deu um aperto no coração, fiquei mais triste ainda. Novamente ia para
um lugar desconhecido. O que me doía mais era não saber onde estava minha família, isto me
agoniava tanto que chegava a me doer fisicamente. Chorei
de soluçar. O capataz que me
levava nada falou. Escutando chorar, nem me olhou, ignorava
-me.

Novamente cheguei à feira. Desta vez nem curioso fiquei. Fui acorrentado e fiquei quieto onde
me mandaram, de cabeça baixa. Escutei que me compraram, mas nem para
olhei
quem o fez.

- Vem negro! Vamos para seu novo -lar


disse meu comprador.

Não respondi. Achei que a palavra lar era uma ironia. Entrei em outra carroça e partimos. Fui
calado de cabeça baixa, nem olhei para a paisagem. Depois de andar algumas horas,e para qu
mim foram longas, chegamos. Quase caí da carroça ao descer, -me
senti
tonto. Aí, viram
sangue na minha camisa, era dos ferimentos mal cicatrizados.

- Este escravo está ferido! Chico leve


-o para o galpão e peça à mãe Benta para cuidar -dele
gritou o capataz que me comprou e que me trouxe.

O branco, que atendeu por nome de Chico, e outros dois negros, ajudaram
-me, levaram-me
para o galpão que era grande e confortável.

- Sente-se aqui- disse Chico. Desamarraram


-me os pulsos e me tiraram as correntess do
pés.

- Quer água?- indagou um negro.

- Sim- respondi- estou sedento.


Logo uma preta velha de aspecto bondoso e agradável chegou, ajudou
-me a tirar a camisa e se
pôs a examinar meus ferimentos.

- Não é nada grave. Foi bem medicado. Quem cuidou defez você
com carinho. Talvez a viagem
tenha feito sangrar os ferimentos. Levou bastante chicotadas! Por que este castigo feio e
cruel?

- Por maldade, só por maldade


- respondi preferindo mentir; ninguém gostava de fujões.

- Só por maldade? Tem certeza? É estranho! Sinto que você não é mau. Mas, se for, será
vendido novamente.

Deu-me remédios, passou ervas nos meus ferimentos.

- Agora sente
-se assim, bem à vontade, não cruze as pernas ou as mãos. vou-lo.
benzê
Quer?
Pense noPai do Céu.

Colocou as mãos sobre minha cabeça e, às vezes, descia pelo corpo, orando baixinho

-. Senti-me bem melhor.

- Agora coma que deve estar com fome e depois descanse.

Estava realmente faminto e cansado. Senti


-me refeito pelo alimento, pois estava
quase dois
dias sem me alimentar, deitei numa esteira que me indicaram e adormeci. Acordei só no outro
dia com Mãe Benta me chamando.

- Acorda, negro! Acorda! já dormiu demais. Como se chama? Você está ainda bem machucado!

- Chamo Bernardino.

- Bem, vou u
cidar de você e ficará novinho, novinho...

Triste abatido, evitava falar, mas Mãe Benta falava por nós dois.

- Foi João quem comprou você, foi à feira só para ver o movimento, para passear. Viu você,
ficou com dó e comprou. A nossa Sinhá não gosta daefeira
nem de vender ou comprar
escravos, mas não achou ruim com João. Dificilmente ela fica brava com alguém. É boa nossa
Sinhá.

Um preto-velho, um escravo muito idoso, entrou no galpão, curioso, me olhando.

- Este é Tomás, veio ver você


- disse Mãe Benta.

- Como vai, fílho?

- Agora bem.

Respondia só o indispensável e quando me indagavam. Mas os dois amigos gostavam de falar,


conversavam entre si; eu só escutava, sem prestar muita atenção.
Tomás vinha me ver sempre, falava com muito amor da fazenda, dosefilhos
dos netos. Um dia
indaguei:

- Tomás, já ouviu falar da Fazenda Santa Clara?

- Não. Não fica nesta região, senão sabia. Percebi que me distanciava cada vez mais da minha
antiga morada, de Mara e dos meus filhos.

- Onde estou? Como chama esta fazenda?

- Fazenda SantAna. Um pedaço do céu na Terra

- respondeu Tomás orgulhoso.

O galpão ficava aberto, não saía de dentro dele. Mas via dali que de fato a fazenda era muito
bonita, era bem grande. Também via dali a casa
-grande. Era linda, rodeada de jardins, nos
fundos um grande pomar e do lado esquerdo, atrás do galpão, umas trinta casinhas, bem
feitas, cercadas com hortas, árvores e flores.

- Que casas são aquelas?


- indaguei curioso ao Tomás.

- São casas dos escravos. Aqui não há senzala, cada família mora
casa.
numa

- Que estranho!

- Por quê? Nunca viu isto? Aqui, meu filho, é o Paraíso dos escravos. Somos muito bem
tratados.

Não sabia quem era meu dono e nem me interessei em saber. Estava saudoso e triste, mas
admirei aquela fazenda, onde não havia troncos, pelourinho e os escravos moravam nas casas
com suas famílias. No domingo não trabalhavam e os escravos estavam sempre tentes,
con
dançavam e cantavam todas as noites no pátio da frente das casas. Na fazenda havia somente
três empregados brancos, o João, Chico e Pedro. Espantei
-me em ver que os escravos iam
sozinhos para as lavouras, para o trabalho, ninguém os vigiava. Também
não estava amarrado
e nem era vigiado. Embora tudo parecesse ser paz naquela fazenda, comecei a pensar
novamente em fugir.

Cinco dias se passaram e já estava recuperado. Sentia que estava bem para trabalhar, mas
ninguém me mandou fazer nada.

A vontade defugir foi ficando cada vez mais forte, decidi que seria naquela noite. Talvez,
pensei, tivesse mais sorte desta vez. Lembrei do meu amigo Tião e de suas previsões. Disse
convicto que ia encontrar minha família e ficar com ela. Precisava tentar. Achei
a ser
quebem
i
fácil fugir dali, não via ninguém vigiando, não estava amarrado ou trancado. Esperei ansioso
pela tarde. Tomás veio me trazer o jantar, comi depressa. Quando ele foi embora levando o
prato, saí devagar do galpão. Podia dizer, se alguém me quevisse,
estava andando um pouco.
Com o coração batendo forte, ansioso, com certo medo, fui caminhando rumo à porteira.
Ninguém me viu. Em minutos cheguei na divisa da fazenda, abri a porteira, passei e corri.
Fui pela estrada andando assustado, temendo cada rulho,
ba não sabia aonde ia. Andei a noite
toda. De manhã, tive que sair da estrada e entrar no mato.

No mato passei fome, sede, até que encontrei um pequeno filete d'água e fiquei caminhando
perto dele. O mato era cerrado e me perdi. A noite veio e dormi
baixo
em das árvores, sempre
assustado e com medo, sobressaltava com qualquer barulho.

Clareando, comecei a andar seguindo o filete d'água; logo avistei ao longe uma fazenda. Voltei
para o mato. Resolvi achar a estrada e andar nela. Caminhar de noite e er
escond
durante o dia.
Só comia algumas frutas que achava no mato, estava com fome e muito cansado.

Subindo nas árvores tentei achar a estrada. Só à tarde a encontrei e fiquei esperando
escurecer para caminhar. Enquanto esperava, escutei latidos de cães.uma Subiárvore
n
grande e tentei me esconder. Senti muito medo.

Logo os cães me encontraram, começaram a latir embaixo da árvore em que estava.

- Achamos o danado!
- gritou um dos homens. Aqui deve estar o negro fujão!

Avistaram-me.

- Desça daí, senão atiro!

Não tinha escolha e desci, os cães avançaram sobre mim, senti suas mordidas nas minhas
pernas. Rindo os dois homens afastaram os cães. Examinaram
-me.

- Mas veja só, Lourenço, estamos com sorte, é um fujão, mas não é nosso. Quem -é você?
perguntou

- e não esperando resposta me chicoteou no rosto e braços. Depois de cinco chicotadas, que
me fez sangrar, chegaram mais perto de mim.

- Quem é você? A quem pertence?

- Chamo Bernardino, sou da Fazenda Santa Ana

- respondi.

Ainda bem que se contentaram, pois eraosó


que eu sabia. Desconhecia a quem pertencia,
nunca vira meu dono ou dona. Não prestava atenção nas conversas de Tomás com Mãe Benta.
E eles diziam só Sinhá, Sinhá...

- Fazenda SantAna! - riam os dois- Que beleza! É da solteirona dos Castros! Quem diria
ue deq
lá fugiria um negro?

- Vamos levá
-lo e ver a cara da beata. Um negro seu fugiu, madame!

Amarraram-me muito bem numa árvore e deixando -me ali sozinho foram atrás do outro
negro. Meu corpo todo doía, as cordas me feriam, fiquei amarrado de tal forma
e nem
qu
mexer conseguia. Passei a noite em agonia. Logo que amanheceu os dois -de-mato
capitães
chegaram com o outro negro que como eu estava machucado e assustado. Desamarraram-me
Nada respondi, mas pensei, ele não estava armado, eu dava dois dele e Tomás era velho e
fraco. Eram dois contra mim em grande desvantagem paras. Segui
ele -os obediente. Entramos
no jardim da casa
-grande e paramos na varanda.

Abaixei a cabeça, tinha aprendido que escravo não podia ser valente e orgulhoso, a humildade
era o melhor meio de lidar com os brancos. Vi a Sinhá sentada, bordando. Esperei
eto que
qui
me dirigisse a palavra.

- Por que fugiu, escravo?

Nada respondi, estava com vontade de gritar. Para ser livre! Não era motivo forte? Ser livre!
Mas a Sinhá insistiu:

- Por que você fugiu? Quero saber!

- Ser escravo não é nada bom


- respondi continuando com a cabeça baixa.
- Ser negro é pior
ainda. Ninguém me perguntou se queria vir para cá. Sou um miserável, um...

- Ram... Ram...
- fez Chico, que estava sentado no cercado da varanda, olhando
-me atento.

Parei de falar. A Sinhá disse educadamente:

- Não temos culpa. É revoltado por ser escravo? Foi por isto que fugiu?

Tive vontade de responder mal. Então não é motivo para revolta, ser escravo? Quis indagar. A
Sinhá já foi escrava? Lembrei, então, das recomendações de Tião. Seja humilde, Bernardino!
Você encontrará pessoas boas na sua vida e que poderão-lo. ajudá
Senti uma grande tristeza e
suspirei. Enquanto pensava, -se
fez silêncio. Relutei. Por que não contar tudo? Porque não falar
da minha vida? Do motivo que me levou à fuga, de modo sincero? Era a primeira vez que um
branco se interessava por mim e queria saber oivomotda revolta em vez de me castigar pela
fuga. Falei com calma e humildade.

- Desculpe-me... A Sinhá não tem culpa. Nasci na África, era feliz, tinha pai e mãe, uma família.
Vivia livre pelos campos e matas.

Vieram os brancos, mataram, aprisionaram e me


rouxeram
t para o Brasil.

- Você ainda é novo! Este comércio está proibido há tempo. Que desalmados! Escutei
comentários que ainda fazem este comércio mesmo proibido. Que maldade!
- exclamou a
Sinhá indignada. Mas continue.

- Aqui no Brasil fui leiloado e ifu


morar numa fazenda
- continuei. Sempre fui trabalhador, bom
escravo, nunca tinha sido castigado. O Sinhô morreu. O Sinhozinho começou a jogar, fez
dívidas, vendeu muitas coisas e, entre estas coisas, estava eu. Deixei lá mulher, minha doce
Mara, e meus odis filhos.

Solucei, já não me importava de chorar na frente deles. Quando parei de chorar, falei das
minhas aventuras nas outras fazendas, falei tudo sem omitir nada e finalizei:

- Foi para achá


-los que fugi...
Chorei novamente, ninguém disse nada,-se
fezum grande silêncio. Quando parei de chorar,
me senti bem e calmo. A Sinhá indagou:

- Onde fica está fazenda? Como se chama?

Levantei a cabeça e olhei para minha dona que tinha parado de bordar e me olhava piedosa.
Pensei que ela fosse velha, mas deparei
om cuma mulher com seus trinta anos. Era magra,
vestia com elegância, cabelos negros presos em um coque. Sobressaíam os olhos castanhos e
bondosos.

- Onde fica não sei, não senhora. Chama


-se Fazenda Santa Clara.

- Ouvi na cidade esta história, D. Ambrozina


disse Chico- falando pela primeira vez.

- Sabe onde fica?


- indagou a Sinhá.

- Mais ou menos, mas posso indagar.

- Chico, quero que vá amanhã cedo com Pedro nesta fazenda e compre a família dele.
Bernardino, dê todos o os dados que sabe sobre a fazendasobre
e os seus ao Chico, para que
ele traga .sua família. Agora pode ir. Você, Chico, venha depois acertar os detalhes comigo.
-
Sim, Sinhá- respondeu Chico contente.

D. Ambrozina levantou e entrou na casa. Meu coração batia forte. Nem acreditava no que
ouvi. Os dois me olharam com bondade. Tomás me abraçou.

- Você sofreu muito, mas será feliz aqui.

Dei todos os dados para o Chico e voltei para o galpão que não foi mais trancado. Estava
incrédulo, mas esperançoso. Quando Mãe Benta veio trazer o meu jantar,
já sabia da minha
história, como todos da fazenda. Indaguei curioso:

- Mãe Benta, será verdade mesmo? Será que a Sinhá comprará eles mesmo?

- Confie, homem de Deus. Claro, Sinhá é assim mesmo, boa demais. Se disse que vai é porque
vai. E Pedro é esperto,
os dois saberão achá
-los e traze-los para cá.

Passei a noite entre ansioso e esperançoso. Logo de manhãzinha, vi Chico e Pedro partirem e
começou a aflitiva espera.

Eternamente Grato

Como esperar foi angustiante! Tomás e Mãe Benta, como os outrosvos,escra


me animavam.
Todos agora faziam questão de conversar comigo e me dizer palavras
-esperança.
de Agora,
gostava de conversar, de responder às perguntas. Contei não sei quantas vezes a minha
história e sempre acabava chorando. Temia a volta dos doisegados
empr sem eles. As horas
não passavam e a espera não foi fácil. Mãe Benta até que me recomendou:
- Calma homem, calma. Senão sua Mara o encontrará com aspecto de doente.

- Será que eles os encontrarão?


- indaguei aflito.

- Reze e pede ao Pai do Céu para


ue q
eles os encontrem, comprem e voltem todos juntos.
Sabe orar?

- Sei- respondi- e lembrei de Tião.

- Meu amigo disse que reuniria a minha família, talvez ele tivesse -razão
disse à Mãe Benta.
vou rezar. Mas reze você, Mãe Benta, por todos nós também.

- lá fiz e farei novamente um trabalhinho para abrir os caminhos para Chico e Pedro voltarem
com eles.

- Obrigado, Mãe Benta, você é tão boa!

- Boa aqui é só a Sinhá, mas tento ajudar a todos, é minha obrigação. Tudo o que a Sinhá está
fazendo custa muitodinheiro. Primeiro João o comprou, mas ela pagou. Deu uma grande
recompensa aos capitãesde-mato, pagou a viagem dos dois e ainda comprará sua família. Tudo
isto sem precisar de escravos.

- É verdade, Mãe Benta. Sou grato a ela, e saberei ser eternamente


ato. gr

- Eternamente é muito tempo. Sendo enquanto os dois estiverem vivos, é o bastante.

- Acha mesmo que nesta vida, ela Sinhá, eu escravo, posso-la?


ajudá
- indaguei admirado.

- Quem sabe. Mesmo se não tiver oportunidades de fazer o bem a ela, só aevontad
basta.

Nem dormi direito, rezei bastante. Cheguei até a sonhar. Ora com Mara e as crianças voltando,
ora só os dois regressando.

No outro dia, antes do almoço, uma confusão. Saí do galpão para ver. Havia uma negra
chorando e um negro que ia partir. O neg
ro despediu-se da mãe e tomou o rumo da estrada. Ia
a pé. Logo os poucos escravos que estavam presenciando voltaram ao trabalho. A negra que
chorava foi para sua casa. Quando Mãe Benta veio trazer o almoço, perguntei curioso o que
havia acontecido.

- O negro Tonho foi castigado, a mãe Maria chorou, coitada. Também Tonho já tinha sido
advertido muitas vezes, ele é vadio e briguento. Hoje de manhã aproveitando a ausência de
Chico e Pedro, tentou pegar a coitada da Aninha. A Sinhá ficou danada, isto elarmite.
não pe
Deu a ele a carta de alforria.

- Castigar com a carta de alforria?!


- indaguei assustado e incrédulo.

- Você assusta por quê? Se andou por aí ,não é para assustar. O negro vale pouco nesta terra.
O que você pensa? Não é porque é livre que deixaerdenegro.
s Tonho para comer, vestir, terá
que trabalhar, coisa que não gosta de fazer. Agora pergunto a você, quem lhe dará trabalho?
Ninguém. Todos preferem escravos e não empregados negros, emprego é só para brancos.
Então, para comer terá que pedir esmol
as, ninguém dará comida a um preto forte e moço.
Agora Tonho terá uma vida dura, coitado. Será enxotado como cachorro com peste. Isto se não
roubar e for para a prisão.

Mãe Benta tinha razão. Tonho não teria vida fácil. Sabia de fazendas onde os senhores
libertavam seus escravos e estes continuavam com eles como empregados, não fazendo
grandes diferenças. Quanto a empregar negro podia ser que nas cidades maiores o faziam,
mas nas fazendas era difícil. Se podiam ter escravos, por que empregá
-los?

Procurei andar pela fazenda, seus pomares eram sortidos com muitas frutas que os escravos
podiam comer à vontade. Procurei conversar com Tomás, mãe Benta e com outros escravos
para me distrair e diminuir a tensão. A espera me agonizava, não conseguia me alimentar ou
dormir direito. À noite, ficava sobressaltado por qualquer barulho. Durante o dia me punha a
vigiar a estrada.

No terceiro dia de espera à tarde, estava na porta do galpão.

Via D. Ambrozina. Gostava de olhá


-la, estava distraída e calma. Quando Maria, uma
retinha,
p
que acompanhava a Sinhá por todo lado, gritou:

- Bernardino! Bernardino! Eles vêm chegando!

Corri, olhei a estrada e lá estavam Pedro e Chico cada um num cavalo, Mara e as crianças
noutro cavalo. Meu coração disparou. Pulei de felicidade e asimas
lágrcorreram pelo meu
rosto. Mas não corri para eles. Entrei na varanda, ajoelhei aos pés da Sinhã e disse
emocionado:

- Sinhá, eu lhe serei eternamente grato, eternamente seu escravo!

Nem a esperei responder, saí correndo gritando com os braços abertos


fui com
e grande
felicidade encontrar com Mara e as crianças. Abraçamos, beijamos e choramos. A emoção
tomou conta de todos. Os que voltavam da lavoura vieram dar boas vindas a Mara.

Mãe Benta arrumou para que Mara e as crianças tomassem banho, alimentassem
e ajeitou os
leitos no galpão.

- Ficarão aqui até que a Sinhá arrume um lugar para vocês ficarem.

Depois que nos alimentamos, todos quiseram vir e conversar com a nova família da fazenda. O
galpão encheu de escravos.

Saíram todos já era noite, as crianças


cansadas dormiram. Abracei Mara e aí notei que ela
estava grávida.

- Mas como?! Olhei para ela admirado. Fazia um ano que partira. Mara chorou baixinho.

- Bernardino, não o traí. Amo


-o muito. Se sua vida neste tempo foi ruim, a minha também foi.
Fiquei desesperada, quando me contaram que tinha sido vendido com os outros escravos.
Senti muito sua falta. As outras companheiras e eu choramos desesperadas. E nos dias
seguintes foram vendidos mais escravos. Começaram a vender as negras e as crianças maiores.
O desespero era grande. Não saber de você, onde estava, agoniava. A fazenda ficou nas mãos
dos empregados e virou uma confusão. Januário, aquele capataz nojento, começou a engraçar
comigo. Ameaçou vender meus filhos

se não me entregasse a ele. Que poderia


zer?
fa

- Diga-me, Bernardino. Estava nas mãos dele e ele me teria de qualquer modo.

Abracei Mara e choramos juntos. Ela continuou a falar. A fazenda foi vendida, o novo dono,
homem bom, pôs ordem. Januário foi mandado embora. Necessitando de escravos para
trabalhar na fazenda, apiedou
-se de nós, e mandou seus empregados, pela redondeza,
comprar os escravos vendidos. Sofri tanto sua falta, chorei muito de saudades. A cada grupo
que chegava entristecia ao ver que você não viera. Muitos voltaram, mas não todos. Os que
voltaram não sabiam de você. Cheguei até a pensar que você havia morrido. omo éCterrível
não saber dos que amamos. já tinha perdido as esperanças, pois o Sinhô suspendeu as
compras, quando fui chamada pelo Sinhô e este me disse.
- "Mara, estes senhores vieram
comprar você e suas crianças, Eles dizem que têm o seu marido. Você r ir?"que

Senti muito medo. Se saísse da fazenda, talvez nunca mais o encontrasse, mas poderia ser
verdade e ousei perguntar:

"Como se chama este escravo?"

"Bernardino, é um negro alto,forte, com uma pinta grande na testa."

"É ele, sim. Se o Sinhô permitir,


uero
q ir sim."

Arrumei minhas poucas coisas num instante e parti esperançosa. Chico e Pedro me trataram
bem e aqui parece ser tão bom!

Tive raiva do Januário, mas não podia estragar aquele momento de agradecimento a Deus com
rancor. Levantei a cabeça de Mar
a, que a tinha abaixado envergonhada.
-

- Mara, não sinta vergonha. Você não teve culpa. Quanto à criança, já gosto dela. É meu filho!
Mara, se é seu, é meu. Aqui estou há mais de um mês. Ninguém sabe quanto tempo estivemos
longe. Graças a Deus, ninguémguntou
per o tempo. Se indagaram, foram meses somente.
Você sofreu, eu sofri, agora estamos os quatro juntos e seremos felizes aqui. Todos os escravos
daqui tambem são felizes. Esta criança não tem culpa, é nosso filho. Abraçamo
-nos
emocionados.

No dia seguin
te, senti-me outro homem, estava disposto, alegre, e, logo cedo, pedi ao Chico:

- Sr. Chico, quero trabalhar.

- Que sabe fazer? Sabe cuidar de animais?

- Sei- respondi contente.

- Então vai trabalhar na cocheira.


Mara foi trabalhar na cozinha da casa
-grande. Escrava grávida não ia para lavoura. As crianças
ficavam no pátio, no pomar ou no porão da casa
-grande, onde brincavam e faziam pequenas
tarefas.

Passou uma semana, adaptamos, estávamos todos contentes ali. Fazia meu trabalho com
muita atenção e capric
ho e fui elogiado por Chico. Mara numa tarde me contou os
acontecimentos da Fazenda Santa Clara.

- Logo que partiram, Jeremias começou a aparecer na fazenda como assombração. Muitos o
viram com uma corda no pescoço, sufocado, a gemer e a maldizer. Depois assaram
p a vê-lo só
perto do Sinhô. Este nosso patrão passou a sentir
-se mal, a ter falta de ar de chegar a bater a
cabeça na parede. Quando o Sinhô vendeu a fazenda e foi embora, o fantasma Jeremias
despediu-se de todos com a mão e foi embora com o Sinhô.
Quando vieram os escravos
recomprados, dois que ficaram com Jeremias contaram que este, logo que possível, tentou
fugir. Capturado, apanhou muito no tronco; vendo que era impossível fugir, suicidou
-se
enforcado na senzala.

- Jeremias quando estava comigo


a carroça,
n quando fomos embora, fez uma promessa de
vingança. Cumpriu o que prometeu.

- Foi isto que nos disse Pai Manolo. Que ele prometeu vingar e pelo jeito estava cumprindo.

- Só que sofria e, pelo jeito, muito. Não é agradável ficar sentindo a morte,
as dores dos
últimos instantes, como ele. Se aparecia aos outros como enforcado, é porque devia -sesentir
assim. Vingança não traz felicidade. Sofre
-se para fazer sofrer. Se ele tivesse esperado, voltaria
com os outros. Precipitou-se, coitado. Todos os momentos difíceis passam, é só saber esperar,
ter paciência. Tomara que Jeremias perdoe para que fique bem. Quem se suicida sofre muito,
este ato covarde não se deve fazer nunca.

O velho Tomás foi achado morto na sua cabana pela manhã. A fazenda parou. ito Foi
só ofe
serviço que não podia ser adiado. Todos choraram, até eu, que pouco convivi com ele, senti.
Todos os moradores da fazenda foram ao enterro. Até a Sinhá foi e chorou, para o meu
espanto.

Mãe Benta estava muito triste, à noite foi nos visitar nopão.
gal

- Você está triste porque ele morreu? Eram amigos, não


- indagou
é? Mara a ela.

- Não é pela morte dele que estou triste. É pela ausência física. Somos, seremos sempre
amigos. Não é porque ele morreu que deixaremos de ser amigos. Os sentimentos uam,
contin
depois que a morte nos leva a viver noutro plano.

- A Sinhá também ficou triste


- disse.

- Ela gostava muito de Tomás, que foi escravo do pai dela.

- Será que depois de mortos seremos escravos? Será que somos separados pela cor do lado de
lá? - indagou Mara, curiosa.
- Não, escravos somos, pela cor e só se tem aqui na Terra por este motivo. Porque, meus
amigos, no Plano Espiritual ruim também há escravos, mas lá são os maus que têm este
castigo. Do outro lado são separados bons e maus, independenteserem
de brancos ou pretos.
Muitos brancos orgulhosos vão levar susto em ver o lugar de destaque que Tomás irá ter por
lá.

- Será que ele ficará branco?


- perguntei.

- Não, a cor não importa, ele não se incomodava com este fato.

Mãe Benta saiu e Mara comentou:

- Tomás deve ter sido bom. Quando morre uma pessoa boa, todos sentem sua falta. Quando
morre o mau, sentem -se aliviados. Que Deus o tenha.

- Amém! - respondi com sinceridade. No outro dia, Chico me deu a ordem:

- D. Ambrozina mandou você ir limpar a casa que foi do Tomás, consertar o que estiver
estragado para você morar lá com a família.

- Morar numa casa? Que bom!

- Como eu sonhava!
- disse Mara a sorrir. Bernardino, nós numa casinha! Que felicidade!
Vamos fazer tudo parastar
e sempre bem aqui.

Dois dias depois, estávamos na nossa casinha. Ficamos bem instalados, havia dois quartos, sala
e cozinha. Estávamos contentes, felizes, fizemos amizade com todos na fazenda.

No tempo certo, Mara teve a criança, era uma linda menina


lata
muclara. Se alguém
desconfiou de alguma coisa nada comentou. Talvez alguns tivessem dúvidas, mas eu era
mulato e as crianças diziam ser parecida comigo. Amei a menina como se fosse minha. E nunca
a tratei diferente, como também nunca contamos a ninguém.
Ficou sendo segredo só meu e
de Mara.

Todos os escravos eram batizados na fazenda SantAna. Logo que chegamos, o padre em visita
à fazenda nos batizou. Todos tinham um filho de quem a era a madrinha. Resolvemos- convidá
la para batizar a menina. Envergonhad
os, Mara e eu fomos à varanda e a convidamos.

- Aceito - disse a Sinhá contente


- serei a madrinha da menina. Já tem nome?

Mara negou com a cabeça.

- Por que não colocam o nome de Maraína. É o nome da mãe e um pedaço do meu.

- Obrigado, Sinhá, obrigado.menina


A chamará Maraína
- disse feiiz.

O tempo foi passando. Eu trabalhando com os animais. Mara na cozinha -grande.


da casa
Outros filhos foram nascendo. Éramos felizes com a vida simples, sem problemas, entre os
amigos da fazenda. Trabalhava com gosto.ratidão
A g pela Sinhá não foi em palavras. Era
grato, profundamente grato. E com o tempo aprendi a respeitá
-la e a amá
-la como uma
bondosa mãe. A ela devia tudo, nossa felicidade e tranqüilidade.
5

O Pretendente

A fazenda Sant'Ana fazia divisa com a dosntesparede D. Ambrozina, menos de um lado, o da


direita da casa
-grande. A divisa ficava longe da sede. Agora, todos os escravos por lá eram bem
tratados, mas dizem que nem sempre foi assim. Nesta fazenda havia uma assombração. Era
um antigo senhor de escravos que fora muito malvado. Sua visão não era agradável.
Certamente nem todos o viam. Uma grande parte dos homens da fazenda já tinha-loido e vê
muitos, os mais corajosos, iam sempre. Quando ficamos sabendo desta história, Mara, curiosa
e medrosa, indagou Mãe
a Benta:

- Por que nem todos que vão lá o vêem? Mara se referia ao lugar em que o fantasma aparecia,
nas ruínas da antiga sede. Mãe Benta como sempre respondeu gentilmente:

- Para vê-lo é necessário ter dom especial. Mas a visão é tão forte que basta
pouquinho
um
deste dom para vê -lo. Assim muitos têm visto.

- Por que ele aparece?


- continuou a perguntar Mara.

N.A.E.- Ser médium, ter certa sensibilidade.

- Porque o espírito deste antigo senhor está lá, mora nas ruínas. Ali tem muitos fluidos
propícios, anatureza que facilita sua aparição. Também porque espírito que muito se dedicou
à matéria a ela se encontra preso.

- Aparece só à noite?
- indaguei.

- Aqui na fazenda eles só vão-lo


vêà noite. As aparições normalmente são feitas mais no
período noturno.E muitos que vão lá para -lo
vê são médiuns; o espírito usa destes fluidos da
mediunidade, para se tornar visível.

- Por que ele virou assombração?


- indagou Mara.

- Este homem cometeu muitas maldades e vaga pela antiga fazenda sem sossego.

- Sofre?- indaguei.

- Claro. Todos que morrem querem estar em bons lugares. Mas estes lugares maravilhosos são
para quem fez por merecer e não para os que querem. Este espírito sofre muito o reflexo das
suas maldades.

Seis companheiros resolveram ir até a outra fazenda, na -feira,


sexta para tentar vê
-lo. Muitos
já tinham ido várias vezes, iam sempre como se fossem ver um espetáculo. Convidaram
-me,
hesitei, depois acabei aceitando de tanta curiosidade. Saímos logo oiteceu.
que an Fomos
andando até o lugar onde diziam que aparecia, comentando, pelo caminho, as proezas deste
antigo senhor de escravos.
traremos alimentos e roupas. Aqu i estÆ a
ajuda desse mŒs.
Ana recebeu a caixa, alegrou -se e agradeceu, comovida. O auxlio era uma bŒnªo,
agora
poderia alimentar melhor os filhos. Assim, passou a receber a cesta todo mŒs, com
alimentos e roupas. S que ela temia que aquelas senhoras d escobrissem que
Gilberto
bebia, que freqentava bares. Teve medo de que elas nªo entendessem sua
situaªo, que ela
tinha medo dele, que era surrada, nªo queria ser tachada de mulher de malandro.
Nªo gostava
da vida que levava, mas nªo tinha como modific Æ-la.
"Tempos atrÆs - pensou - nªo acreditaria se me dissessem que alguØm poderia
agentar
tudo o que tenho passado. Certa mente eu diria que essa pessoa estava assim
porque queria,
e que se quisesse realmente mudar daria um jeito. Mas quando Ø conosco Ø que
vemos que
nªo Ø tªo fÆcil assim. Se sair de casa para onde irei? Quem me darÆ emprego com
duas
crianas? Ou onde deixÆ -las? Se pelo menos aqui nessa cidade tivesse locais onde
elas
pudessem ficar, como nas metrpoles grandes. Ou se meus familiares me
aceitassem!"
Um dia, logo cedo, bateram sua porta. Era uma mulher.
- A senhora Ø Ana Silva?
Ana observou -a, nªo a conhecia, nªo era das redondezas.
- Sou, sim! - Respondeu, curiosa.
23
- Seu irmªo Carlos me pagou para procurÆ -la e lhe dar urr recado. Trabalho no
hospital,
sou faxineira. Seu pai estÆ internado
e quer vΠ-la.
- Papai! O que meu pai tem? - Perguntou, aflita.
- Ele estÆ doente e seu caso Ø grave. Aqui estÆ o nœmero do quarto dele. Seu irmªo
mandou lhe dizer que pode ir a qualquer hora e, se possvel, para ir hoje. E que ele
nªo estÆ
nada bem - respondeu a mulher.
Ana pegou o papel. S estava escrito o nœmero do quarto
teve uma ligeira tontura, tentou sorrir e disse baixinho:
- Obrigada!
Ficou com o papel na mªo sem saber o que fazer. Lemb rou
de DØlia e correu atØ sua casa. Ela estava lavando roupa. Con
tou -lhe tudo.
- DØlia, que fao?
- VÆ ver seu pai - respondeu a amiga.
- Se falar isso a Gilberto, ele nªo deixarÆ!
- Pois nªo fale! Apresse seu servio que apresso o meu. VÆ tarde visitar s eu pai e
deixe as
crianas comigo.
- Vou fazer isso. Obrigada, DØlia!
Fez seu trabalho aflita, pensou no pai o tempo todo. Como
estaria ele? SerÆ que iria morrer? O que ele queria com ela?
A tarde foi ao hospital. Na portaria, a atendente pediu que
aguard asse um instante. Foram minutos que lhe pareceram horas
A moa sorriu ao retornar e lhe disse:
- Venha, senhora, a levarei atØ o quarto.
Com o coraªo batendo forte, acompanhou a moa. Tentava
inutilmente se acalmar.
- Ø aqui. Pode entrar, seu pai estÆ agu ardando -a.
A moa abriu a porta, ela entrou, seu pai estava sozinho no
quarto. Ana observou -o, teve vontade de chorar, ele estava pÆlido
e muito magro.
- Papai! - Conseguiu finalmente balbuciar.
Ele abriu os olhos e sorriu.
- Minha filha! Aproxime -se!
Ela o fez timidamente. O pai a olhou bem e lÆgrimas escorreram pelo rosto.
- Filha, queria vΠ-la!
- Como estÆ o senhor? - Perguntou ela.
- Mal, acho que irei morrer. Morrer? Nªo sei! Ana, tenl sentido muito sua mªe ao
meu
lado e isso me dÆ a certeza que nªo m orremos. Morrer deve ser s para o corpo; a
almaØ
eterna, vai viver noutro lugar. NinguØm acredita que eu sinto sua mªe comigo. Ela
quer que a
perdoe e tem me falado em sono.h
24
Ontem, ao acordar, atØ senti suas mªos me afagando os cabelos. Isso me tem dado
muita
fora; tenho sentido dores, mal - estar, mas nªo reclamo. Rita me falou, nªo sei
explicar
como, mas a escuto, que vocŒ, filha, Ø infeliz, que se arrependeu, mas que ainda
ficarÆ bem,
terÆ dias tranqilos. Acredito nela, minha esposa nunca ment iu.
O senhor Alberto cansou, fez muito esforo para falar, ficou quieto, descansou por
minutos.
Ana se segurou para nªo chorar,
ficou ali ao lado do leito sem saber o que fazer, s o olhando.
- DŒ-me sua mªo, filha!
Ana segurou a mªo do pai com fora.
- Papai, me perdoe!
- Perdo, filha! Perdo -a sim! TambØm fui intransigente. E vocŒ nunca me
procurou.
Queria conhecer seus filhos, meus
netos. Eles sªo bonitos?
- Sªo, sim! Posso beijar o senhor?
- Sim! - O senhor Alberto falou, suspirando.
Ana o beijou na testa e recebeu outro beijo no rosto. Sorri ram entre lÆgrimas.
- VocŒ acredita, filha, que eu escuto sua mªe? - Perguntou o senhor Alberto.
- Sim, papai, acredito - respondeu Ana com sinceridade.
- Ela me fala que ficaremos juntos num lugar bonito e terem os muitas alegrias.
Obrigado
por ter vindo, necessitava conversar com vocŒ.
- Eu amo o senhor! - Exclamou Ana, comovida.
Bateram de leve na porta e uma enfermeira entrou.
- Hora da injeªo! Por favor, senhora, ele terÆ de dormir.
- JÆ vou! A bŒnªo, papai ! Fique com Deus!
- Deus a abenoe filha! Seja feliz!
Nªo queria ir, sentiu vontade de ficar mais ao lado do pai, esse lhe sorria
docemente, ela o
beijou de novo e saiu rÆpido. No corredor viu Lœcio, que lhe virou as costas. Ana foi
embora, as lÆgrimas t eimaram em escorrer pelo rosto. A reconciliaªo lhe fez bem,
tirou
um peso do seu coraªo, estar de bem com o prximo nos faz bem.
"Voltarei - pensou. - Depois de amanhª Ø domingo e virei
vŒ-lo de novo. Carlos nªo contou ao papai que fui vŒ -lo aquela
vez. E melhor que ele nªo saiba que nªo me deixaram visitÆ -lo".
Domingo pela manhª, bateram na porta. Ana se assustou,
mas, em seguida, alegrou -se, pois era seu sobrinho. Havia tempo que nªo o via,
estava
moo e bonito.
- Romeu, que prazer em vΠ-lo!
Abriu os braos querendo abraÆ -lo, mas ele se esquivou.
25
- A senhora mora aqui! - Disse o mocinho, espantado.
- Entre! - Convidou ela.
- Nªo posso, tia. S vim avisÆ -la que vov faleceu nessa madrugada. EstÆ sendo
velado na
capela do cemitØrio, o enterro serÆ s dezessete horas. Estou com pressa, tenho de
avisar os
outros parentes. AtØ logo!
Saiu apressado. Ana ficou olhando -o. Seu sobrinho Romeu lhe era muito querido, o
mais
velho e que muito pajeara. Agora, uma pessoa indiferente, viera ali s para
cumprir u ma
obriga ªo, avisÆ -la da morte do pai. Ao se lembrar de seu genitor, entristeceu:
"Nªo fui boa filha! - Pensou. - Sempre reclamei de tudo, exigia, e a vida me
ensinou,
poderia bem ter aprendido pelo carinho, amor, a dar valor ao que tinha. Espero ter
aprendido! Vou vŒ -lo. Nªo, s irei ver o seu corpo, foi no hospital que o vi pela
œltima
vez."
Gilberto jÆ havia sado e dessa vez recorreu Antonia, que ficou com os meninos
para ela ir
ao cemitØrio. No caminho foi pensando nos momentos felizes em que viveu no lar
de seus
pais. No seu aniversÆrio era sempre uma festa, ganhava presentes dos irmªos, os
pais
faziam uma festinha para seus amigos. Mesmo depois da morte da mªe, o pai fez
questªo
de continuar fazendo festa. Nªo podia dizer que estava sentin do uma dor que o pai
logo ia
fazer chÆs e lhe dar remØdio.
"Estava sempre sendo mimada. Agora tudo Ø diferente, atØ cheguei a esquecer o
meu
aniversÆrio este ano, nunca mais ninguØm me deu presentes. E se reclamo de
alguma dor
para Gil berto, ele reage grosseiramente. Pior sªo as agressıes. Quanta
dificuldades tenho
enfrentado! Que anos difceis!"
Chegou um tanto encabulada, entrou na capelinha. NaqueLa Øpoca era costume
velar em
casa, mas alguns ficavam na pequena capela do cemitØrio. Ana nªo sabia se foi seu
pai qu
tinha escolhido ou os irmªos. Aproximou -se do caixªo, seu pai parecia dormir.
Lembrou o
que ele lhe disse sobre sua mªe.
"Os dois devem estar agora juntos e felizes" - pensou.
S alguns tios vieram cumprimentÆ -la. Ana tinha a certeza de q ue todos ali
presentes
deveriam saber de suas dificuldade Sentiu -se observada, teve vontade de chorar,
esforou -
se e conseguiu segurar as lÆgrimas. Teve a sensaªo de que muitos dviam achar
bem -feito
ela ter se dado mal. Parecia que os pensamentos deles chegavam atØ ela: "Bem -
feito! Ana
escolheu! Viver com um homem sem ser casada!"
Sentindo -se deslocada, envergonhada, ficou num canto qui
tinha, orou para seu pai com fØ, pediu a Deus que ele fosse acolhido
26
num bom lugar. Sem saber explicar por que, te ve certeza, sentiu que seu querido
genitor
nªo estava ali e que deveria guar dar dentro dela os momentos de carinho da
reconciliaªo.
Achan do que nªo deveria permanecer mais ali, foi embora antes do que planejara.
Ana teve uma sensaªo estranha, nªo fic ou com vontade de
chorar pela morte do pai, achou que ele estaria bem e que ele a
amava.
Andou depressa e logo chegou em casa.
- Nªo ficou para o enterro, Ana? - Perguntou Antonia. - Os meninos estªo bem.
- Senti -me deslocada lÆ, Antonia - respondeu Ana. - Meus irmªos e sobrinhos nem
me
olharam.
- Nªo fique triste por isso. O importante Ø que seu pai a perdoou e que fizeram as
pazes.
- Ø! - Exclamou Ana, emocionada. - Sou grata a Deus por isso, por me ter dado essa
oportunidade.
A noite, quando Gilberto c hegou, contou a ele, que nada comentou. Ana se
esforou para
nªo ficar triste, e quando lembrava do pai, o fazia com carinho, recordando os
beijos que
trocaram.
Cinco dias depois, Gilberto chegou furioso em casa.
- Ana, fui lÆ em sua casa, a que foi do s eu pai. Encontrei seus irmªos e eles me
ameaaram, quase me bateram! MiserÆveis!
- O que vocŒ foi fazer lÆ? - Indagou, espantada.
- Reclamar o que Ø seu! Espertos! Sabe o que eles fizeram? Devem ter forado seu
pai a
passar em vida tudo para eles. VocŒ n ªo tem direito a nada! Nªo vai receber nem
um
centavo. Eles me mostraram os documentos, todos registrados. Para saber se de
fato eram
verdadeiros aqueles papØis, perguntei a um funcionÆrio da fÆbrica que trabalha no
escritrio e que entende disso, ele m e confirmou. VocΠfoi deserdada!
Depois de ter xingado muito, foi para o bar. Ana suspirou
aliviada, ainda bem que nªo lhe bateu.
"Gilberto nªo deveria ter ido lÆ - lamentou. - Nªo queria
mesmo nada deles. Nªo fiquei magoada por papai ter feito isso,
meus irmªos mereciam".
Nªo se falou mais nisso e sua vida continuou do mesmo jeito. Havia Øpocas em que
Gilberto parecia estar de melhor humor, em outras pior, e por qualquer motivo lhe
batia.
Era exigente com sua roupa, queria estar sempre com ela limpa e be m-passada.
Um dia, ao ir entregar os doces e salgadinhos no bar, um
homem a olhou atrevidamente.
27
- Entªo vocŒ Ø a mulher do Gilberto? O malandro nªo sabe dar valor belezura de
mulher
que tem. Meu nome Ø Miguel,
muito prazer!
- Prazer! - Respondeu Ana , virando o rosto e deixando -o de mªo estendida. - Estou
com pressa. Senhor Matias, pegue as
bandejas que tenho de ir embora.
- Que pena! - Falou o homem cinicamente. - Poderia ficar um pouco mais e beber
comigo, eu pago!
- Obrigada! Nªo bebo nem gosto d e ficar em bar. Por favor! Pegou as bandejas e
saiu
apressada. Logo aps ter passado
a porta, chegando calada, a toalha caiu e ela abaixou -se para apanhÆ -la. As
pessoas que
estavam dentro do bar nªo conseguiam vŒ -la. Pensando que ela estava longe,
com entaram
e Ana escutou:
- Miguel - disse o dono do bar -, dona Ana Ø mulher direita, trabalhadeira. Deixe a
coitada em paz!
- Ora, serÆ que ela quer paz como vocŒ diz? Bem que poderia nªo ser tªo honesta.
O
marido a trai, estÆ cada dia com uma! E ainda b ate nela! Se ela me desse atenªo
atØ que
gostaria de lhe dar uns tabefes. Pelo jeito ela gosta!
Riram...
Ana sentiu o rosto queimar, voltou rÆpido e triste para casa.
Desconfiava de que falavam dela, mas ter certeza doeu. Todos
pela vizinhana sabiam de seus problemas, sentiu -se humilhada.
’Sou orgulhosa ainda - pensou -, mas orgulho por quŒ?"
Havia muito tinha percebido que Gilberto, quando tinha caso com alguØm,
melhorava seu
humor, e estava preferindo que ele sempre tivesse amantes, porque alØm de nªo
amÆ-lo
mais, tinha -lhe nojo.
"Amar? - pensou. - SerÆ que algum dia amei Gilberto? Foi
s uma paixªo que com o tempo nªo restou nada...
Em casa consolou -se, abraando os filhos. Rodrigo estava
com trŒs anos e Marcelo com quase dois. Eram lindos e ela o
am ava muito
"Ainda bem - pensou que Gilberto nªo bate neles".
Ele nªo lhes dava atenªo, via -os pouco, porque rarament ficava em casa, vinha
para jantar,
tomar banho, chegava tarde saa cedo, horÆrio que os meninos estavam sempre
dormindc
As vezes brincava com eles, falava com orgulho:
"VocŒs, quando crescerem, vªo ser doutores! Vªo ser ricos
o pai irÆ aconselhÆ-los."
Ana ajeitou os filhos junto ao coraªo e beijou -os. ElEs
riram alegres. Rogou a Deus:
"Pai, me dŒ foras para criÆ -los, para protegŒ -los!"
28
3
As Meninas

O almoo ainda nªo estava pronto quando Gilberto chegou nervoso. Ana assustou -
se, ele
fazia a refeiªo no trabalho e nunca viera naquele horÆrio para casa.
- O que aconteceu, Gilberto? - Perguntou ela preocupada.
- Recebi na fÆbrica o recado de que Ana, a minha esposa, morreu... - Respondeu
ele,
empalidecendo.
- O quŒ? Mas ela era tªo jovem! Estava doente? - Perguntou Ana, preocupada.
- Nªo sei, s me avisaram que ela faleceu. Acho que nªo estava doente, nªo se
queixou de
nada na œltima vez e m que a vi. Tenho de ir lÆ cuidar de tudo, vou logo, no
primeiro horÆrio
do trem. Arrume uma sacola com uma troca de roupa, talvez eu tenha de dormir
por lÆ -
respondeu ele.
- E as meninas? O que serÆ delas? - Indagou Ana. - Devem estar sozinhas e sofrendo !
- Claro! - Falou Gilberto, aborrecido. - Perderam a mªe. Ana foi uma mÆ esposa,
nªo
tenho sorte mesmo, duas Anas,
duas pestes. Mas era boa mªe.
- Traga as meninas para cÆ, Gilberto, vocŒ Ø o pai - disse Ana com d delas. - Tªo
novinhas e sem mªe!
- Nªo p recisa me lembrar de que eu sou o pai. AtØ que gostaria de nªo ser. O que
farei
com tantas mulheres para sustentar?
- Eu o ajudo, nªo reclame! - Falou ela, tentando animÆ -lo.
- Ajuda? Ganha tªo pouco! Ø melhor eu ir logo, senªo perco o trem.
Ana ficou tris te com a notcia. Era a primeira vez que via Gilberto tªo preocupado.
Ela
sabia pouco sobre as meninas, ele raramente ia vŒ -las. Pelo que sabia, elas nªo
tinham
muitos parentes, podiam contar s com a mªe, jÆ que o pai nªo se impor tava com
nada.
Teve d d elas e orou para que tudo pudesse se resolver da melhor maneira e
pensou:
"Se as meninas vierem para cÆ, vou agradÆ -las, tratÆ -las
bem, vou amÆ -las..."
Aguardou preocupada a volta de Gilberto. TrŒs dias depois
ele veio com as garotas. Ana as olhou com cari nho, eram muito
bonitas, estavam assustadas e tristes.
29
- Venham conhecer os seus irmªos - disse Gilberto a elas. - Este Ø Rodrigo, este Ø
Marcelo. A casa Ø pequena, mas mudaremos para outra maior. Acomodaremos
vocŒs esta
noite aqui na sala. Amanhª irei estaªo buscar as coisas de vocŒs que despachei
pelo
trem.
Gilberto falava, queria distrai -las, mas elas ficaram paradas,
olhando tudo quietas e temerosas.
Os meninos se aproximaram delas, comearam a conversar e a fazer perguntas,
mas as duas
s resp ondiam com monosslabos. Gilberto fez um sinal para Ana ir com ele
cozinha e
cochichou:
- A mªe delas morreu de repente, do coraªo. Sentiu -se mal, a vizinha chamou o
mØdico,
mas quando ele chegou ela jÆ
estava morta.
Ana tratou de tomar as providŒncia s para acomodÆ -las, pediu emprestado um
colchªo a
uma vizinha e colocou na sala para que elas dormissem. Fez uma sopa da melhor
maneira,
com o que tinha, porØm elas comeram pouco. Foram dormir. Ana comoveu -se ao
vŒ-las
abraadinhas, deitadas no colchªo. Uma dava fora outra.
No outro dia, Gilberto foi cedo estaªo e voltou em uma
charrete com alguns objetos. Ele comentou com Ana:
- Peguei isso da casa delas, tinham pouco, as meninas tŒm s o necessÆrio, poucas
roupas,
duas camas e uma mÆquina de
cos tura.
- Era da mamªe - disse Livia. - Ela costurava para as freguesas.
- Vou ver se arrumo comprador para esta mÆquina. Comc aqui ninguØm costura, Ø
melhor
vender para termos dinheiro para
nos mudar - disse Gilberto.
As meninas trocaram olhares, Ana senti u que elas queriam
ficar com a mÆquina, mas nada falaram. Falou com carinho para
elas:
- Lvia e Vanessa, quero que se sintam vontade, Ø a casa de seu pai, Ø de vocŒs
de agora
em diante. Nªo sintam medo Sei que Ø difcil ser rfª de mªe, a minha faleceu
tambØm e
com preendo a dor de vocŒs. Ns nos daremos bem.
- SerÆ que ela nªo volta mesmo? - Indagou a menor, Vanessa.
- Nªo - respondeu Lvia -, jÆ nos falaram muito sobre isso Mamªe foi e nªo voltarÆ
mais!
- Duvido! - Exclamou Vanessa. - Mamªe nos ama e darÆ ui jeitinho de vir nos ver.
Ana saiu da sala, mas escutou Lvia dizer:
30
- Bem que mamªe achava que esta outra Ana deveria ser uma boba como ela. Sªo
bem
pobres, tanto quanto ns, e ela
trabalha muito.
- Sinto falta da mamªe e quero chorar! - Falo u Vanessa.
- Nªo chore, irmªzinha, cuidarei de vocŒ.
- VocŒ Ø tªo pequena quanto eu! - Choramingou a menor.
Ana emocionou -se e chorou. Prometeu a si mesmo:
"Sªo tªo pequenas e sofrem tanto. Vou ajudÆ -las! Vou ser a segunda mªe delas.
Coitadinhas!"
Lvia e ra bem parecida com o pai: cabelos escuros, olhos verdes, traos delicados,
tinha
oito anos. Vanessa estava com seis anos e era bem diferente da irmª; a menor
tinha algo,
uma delicadeza que cativava logo a todos, era mais clara, olhos pretinhos, traos
delicados,
nariz pequeno e arrebitado.
"Vanessa deve parecer com a mªe, Ana deve ter sido muito
bonita" - pensou.
A casa era pequena e tornou -se minœscula. Ana tudo fez
para acomodÆ -las e para que se sentissem vontade, mas elas
estavam muito tristes.
- Ana - falou alegre Gilberto -, arrumei uma outra casa, agora ficaremos mais bem
acomodados.
No domingo se mudaram. Embora a nova casa fosse perto, Ana se entristeceu por
deixar
DØlia e Antonia, suas vizinhas e amigas. A casa para a qual se mudaram era maio r,
tinha
dois quartos. Gilberto vendeu o bero e comprou uma cama de solteiro.
- Os irmªos juntos! - Falou ele. - As crianas, os quatro, ficam acomodados neste
quarto maior. Rodrigo e Marcelo, que sªo
pequenos, dormirªo na mesma cama e as meninas nas de las.
Ficaram mais bem instalados, embora a casa fosse tªo simples quanto a outra.
Ana foi com Lvia escola, Gilberto havia trazido sua transferŒncia. Ao ver os
documentos, a moa que fazia a matrcula
disse:
- Dona Ana, sua filha poderÆ vir na segunda -feira.
Ao sarem, Lvia comentou:
- Por causa do nome, a moa achou que eu era sua filha.
Ana a abraou e ela nªo repeliu.
Logo as meninas estavam brincando na rua com as outras crianas e passaram a
ajudÆ-la
cuidando de Rodrigo e Marcelo.
- Ana, vΠse tra balha mais, as despesas aumentaram - resmungou Gilberto.
- Ø verdade, aumentaram, mas em compensaªo teremos o dinheiro que vocŒ
mandava
para elas e que agora nos ajudarÆ.
- Hum... - Ele resmungou e saiu.
31
Ana estava na cozinha enrolando doces. Lvia a ajudava
Vanessa brincava com Rodrigo. Quando ele saiu, a pequena disse
- Papai quase nªo pÆra em casa.
- Escutei o que vocŒs falaram - falou Livia. - Ana, papai nªo deu dinheiro para ns,
nunca
deu. Mamªe, algumas vezes, pediu, mas ele nªo deu. Minha mªe trabalhava como
vocŒ, ela
costurava o tempo todo.
Ana sentiu raiva de Gilberto, mas nada comentou, e pensou
"Entªo ele nªo as ajudava, nªo dava dinheiro para as filhas
Gastava tudo no bar, com certeza."
As meninas ficaram conversando.
- Nªo sei se gosto d o papai - disse Vanessa.
- Fique quieta, Vanessa - repreendeu Lvia. - Ø melhor ser mos boazinhas como
aconselhou dona Dalva, a nossa antiga vizinha que era amiga de mamªe. Quando
nossa mªe
morreu dona Dalva nos disse: "Ø melhor vocŒs irem com seu pai e serem obedientes
para
se dar bem com a madrasta. VocŒs nªo tŒn escolha! Se sua tia ficar com vocŒs..."
Lvia parou de enrolar o doce, ficou quieta, com o olhar dis
tante.
- VocŒs nªo gostam de sua tia? - Perguntou Ana.
- Nªo conheo a irmª do papai - resp ondeu Lvia -, s a de longe. Mamªe nªo
gostava
dela. Tenho outros dois tios que sªo muito pobres, acho que mais do que ns.
Depois tenho
um primo meio louco, bobo, sei lÆ, que olhava para mim e para Vanessa de um
jeito de que
mamªe nªo gostava, ela tin ha medo de que ele se aproximasse de ns.
"Elas nªo tinham mesmo com quem ficar - pensou Ana. - tia, a irmª de Gilberto, Ø
uma
prostituta, e pelo que ele fala dela, Ø uma pessoa mÆ. Os irmªos da mªe, segundo
Gilberto,
um alcolatra e om outro tem a mulher invÆlida, sªo muito pobres para ficar com
elas".
Ana passou a dar mais atenªo, a conversar com as meninas, tentou cativÆ -las pela
amizade.
Contava -lhes histrias, casos engraados. Queria que elas gostassem dali, dos
irmªos dela, e
nªo as deixava trabalh ar. Quando a ajudavam era porqi queriam. Nªo foi difcil:
elas,
carentes, logo estavam gostando dela e Ana passou a querΠ-las muito.
Lvia ia escola, era inteligente e aprendia rÆpido. As duas fizeram muitas
amizades,
passaram a ser alegres. Comentava mu ito sobre a mªe com Ana. Achando que fazia
bem s
meninas, ela atØ as incentivava.
- Mamªe - falava Lvia - trabalhava atØ tarde da noite. Quando amos deitar ela
ficava
trabalhando e quando levantÆvamos
estava costurando.
32
- Saa pouco de casa, s vezes ia s casas das freguesas e eu gostava de ir junto.
Estou
com saudade dela - dizia Vanessa, comeando a chorar
Sempre que falavam sobre a mªe se emocionavam, e Ana as abraava.
Rodrigo e Marcelo passaram a querer bem as irmªs e, se nªo fosse por Gilberto,
seriam
uma famlia feliz.
- Mamªe tambØm chamava Ana - disse Livia. - O pai dela, meu av, que eu nem
conheci, a chamava de Aninha.
"Aninha - pensou Ana. - SerÆ assim que me referirei a ela, a mªe dessas meninas
lindas"
No dia em que as senhoras trariam a cesta do mŒs, Ana ficou atenta; assim que as
viu,
correu atØ sua antiga casa. Aps os cumprimentos, explicou:
- Mudei, moramos logo ali. A mulher do meu marido faleceu as meninas, filhas
dele,
vieram morar conosco.
- Bem - disse uma senhora -, agora q ue ele nªo tem de dar a pensªo delas, talvez
vocŒ
nªo precise da nossa ajuda.
- Ø que aumentou nossa despesa tambØm. A casa para a qual mudamos Ø tªo pobre
como
esta, s tem um quarto a mais
- disse Ana, triste, temendo que elas nªo a ajudassem mais.
Mas elas deixaram a cesta e ficaram de resolver se continuariam ajudando ou nªo.
A noite, quando Gilberto chegou, Ana estava nervosa e o
acusou:
- VocŒ, Gilberto, Ø um miserÆvel, me dizia sempre que ajudava as filhas, que dava
dinheiro para o sustento delas, mas descobri que nunca deu nada a elas. Deve ter
gastado
esse dinheiro no bar, com suas amantes.
- Nªo fale assim! O que pensa que Ø? Menti sim! Como vocŒ quer que eu viva assim
miseravelmente? Se nªo fossem meus amigos, o bar, iria morrer de tØdio! Voc Œ estÆ
abusada! Quem Ø vocŒ para me dirigir a palavra nesse tom? Isso Ø porque ficou uns
tempos
sem apanhar! Toma!
Ana sufocou os gemidos, nªo queria que as crianas escutassem, mas nªo pde
abafar o
som das pancadas. Depois de alguns instantes, Gilbert o resolveu deixÆ -la em paz,
acomodou - se na cama e dormiu. Ana nªo quis chorar, temendo acordar as crianas
ou
Gilberto, porque ele fatalmente recomearia com a agressªo. Deixou apenas
lÆgrimas
escorrerem pelo rosto.
No outro dia ela estava toda dolorid a, com muitos hematomas e uma grande
mancha roxa
na face direita. Vanessa, ao vΠ-la, comentou inocentemente:
- Papai bateu em vocŒ, escutamos. Tivemos medo de ele bater na gente tambØm e
ficamos
caladinhas.
33
- Ana - disse Lvia -, mamªe dizia que papai tambØm batia muito nela. Uma vez,
quando papai esteve lÆ em casa, ele SE queixou, reclamou muito de vocŒ, depois
quis
agarrar mamªe tivemos de gritar e os vizinhos o puseram para fora. Ela nos disse:
"Pobre
desta outra Ana, deve apanhar como eu apanhei "
Ana nada comentou, triste, e se ps a pensar em como sair daquela situaªo. Nªo
sabia
como fazer para sustentar as crianas, nªo tinha para onde ir, ainda mais agora,
com mais
duas meninas. Sim, porque ela nªo iria deixar as meninas com ele.
A tarde, q uando Gilberto chegou em casa, viu Lvia com as
bandejas, voltando do bar.
- Vim trocar de roupa - disse ele -, tenho uma festinha para ir. Lvia, por que vocŒ
foi
ao bar?
- Me ofereci para ir. Todos comentam ao ver Ana com os ferimentos no rosto -
respo ndeu a menina calmamente.
Gilberto olhou para Ana, sentou -se, coou a cabea, depois
disse:
- Ana, nªo queria machucÆ -la!
Ela virou -se para ele e Gilberto pediu:
- Sente -se aqui um momento.
Ela ia recusar, estava preparando o jantar, mas querendo evitar co nfusªo, sentou -
se.
- Ana, sei que Ø honesta, trabalhadeira, trata bem as meninas. Nªo sei por que fao
isso
com vocŒ! Nªo merece!
Ela ficou calada. Ele tambØm ficou quieto uns instantes, de
pois disse:
- Bem, vou tomar banho e ir tal festa. Nªo prometo, mas vou tentar nªo bater
mais em
vocŒ.
Levantou -se e Ana voltou a preparar o jantar. Foi a œnica vez
que ela percebeu que ele poderia estar arrependido das agressıes
que fazia.
Ainda bem que as mulheres bondosas entenderam e continuaram
a lhe trazer o au xilio e roupas para todos.
Uma tarde, ao ir comprar verduras, Ana encontrou uma tia
e esta a observou bem.
- Ana! Como estÆ vocŒ?
- Estou bem, e a senhora? - Respondeu ela.
Tudo bem. Alegro -me por vocŒ estar bem e por nªo precisar da famlia, porque
nenhum de
ns iria ajudÆ -la depois do q fez. Engravidou, saiu de casa para ir morar com um
safado
quase matou seu pai de desgosto. Acho que ele nunca mais foi feliz e acabou
morrendo por
isso. VocŒ..
- AtØ logo, tia. Tenho de ir!
Saiu e nªo deixou a tia falar mais.
34
"SerÆ que nªo tem compaixªo? Nªo fiz nada por mal. Na quela Øpoca achei que
amava
Gilberto, como tambØm que era o melhor para mim. Nªo posso contar com
ninguØm da
minha famlia, eles nªo irªo me ajudar em nada, nunca."
Foi para casa, triste.
- Ana - disse Vanessa numa manhª -’ esta noite sonhei com a mamªe. Ela estava
bonita, linda mesmo, com uma roupa nova. Ela me beijou e abraou apertado. Eu
falei a
ela: "Mªe, que vestido lindo! E novo?" Ela me respondeu: "Vanessa, eu nªo ligo para
roupas, mas esta Ø uma que ganhei para trabalhar". "A senhora trabalha? -
Perguntei. -
Nªo estÆ descansando?" "Nªo me sinto cansada, estou muito bem. Trabalhar Ø uma
bŒnªo." A perguntei de novo: "O que a senhora faz? Costura?" Ela respondeu:
"Nªo,
filha, aju do os doentes. Vim aqui para vΠ-las e dizer a vocΠe a Livia que queiram
bem a
Ana, ela Ø boa, e que nªo esqueam de orar como eu as ensinei". Me beijou de
novo e
sumiu, acordei e pareceu que o beijo foi real, senti seus lÆbios no meu rosto.
Gostei de te r
sonhado e saber dela.
Ana sorriu e pensou: "Coitada dessa mªe, mesmo se estiver no cØu nªo deve ter
sossego,
deixando as filhas com o pai, que ela sabe bem a peste que Ø, e com uma madrasta
que nem
conheceu. Mas Aninha, se vocΠpode me escutar, fique sossegada, serei sempre boa
para
elas".
- Vanessa, acho que sua mªe tem razªo, necessitamos orar.
- Que tal fazermos como em minha casa, quando mamªe era viva? Fazamos assim,
todos
os dias, antes de irmos para a cama dormir; rezÆvamos, as trŒs, para o P apai do
CØu, para
Nossa Senhora e para nosso Anjo da Guarda.
- Vamos comear hoje - disse Ana. - Rezaremos todos os dias antes de irmos
dormir.
E assim passaram a fazer.
Os meses se passaram, o ano letivo iniciou e Vanessa tambØm foi para a escola. E
todo s no
grupo escolar novamente acharam que ela era a mªe das meninas e ninguØm
desmentiu.
Ana atØ sentiu uma pontinha de orgulho ao escutar:
"A senhora tem filhos lindos! Duas meninas educadas e bonitas e dois garotos
maravilhosos!"
Os problemas continuav am os mesmos. A alimentaªo era pouca, s vezes nªo
tinham leite
nem frutas. Ana temia que as crianas adoecessem, mas elas cresciam e cada vez
ficavam
mais lindas, eram inteligentes. As meninas ensinavam muitas coisas aos irmªos,
elas
falavam certo e e stavam sempre corrigindo Rodrigo e Marcelo, que aprendiam
rÆpido.
Gilberto estava, como sempre, agressivo, estœpido. Ainda bem, pensava Ana,.
35
que ele nªo agredia os filhos, mas esses o temiam, evitavarr ficar perto dele. Era
um alvio
quando ele saa de casa.
Para intranqilidade de Ana, ela notou que Gilberto estava
olhando muito para as meninas, principalmente para Lvia,
maiorzinha, com olhares de cobia.
"Meu Deus! - pensou. - Que triste! Tomara que eu estejE
errada. SerÆ que Gilberto seria capaz?"
Ficou muito atenta e resolveu nªo deixar as meninas a s
com ele.
Numa tarde de domingo, ele veio mais cedo para casa, conversou com todos bem -
humorado, virou para Ana e disse:
- Ana, vim mais cedo para ficar com as crianas para vocŒ
ir missa.
- Obrigado, Gilberto, nªo quero ir missa, nªo tenho roupa e me envergonho de ir
mal
vestida!
- Entªo vÆ casa de DØlia, vÆ se distrair conversando com ela. Fico com as meninas
e
vocΠleva os meninos.
- Nªo - respondeu Ana com firmeza. - JÆ conversei com DØli a e Antonia hoje.
- Que coisa! - Ele gritou exaltado. - Se queixa de que nªo sai, quando me ofereo
para
ficar com as crianas vocŒ nªo aceita! Vai e pronto! Saia! VÆ para qualquer lugar e
leve seu
filhos. Cuido das meninas!
- As meninas nªo precisam de cuidados - respondeu ela. Nªo vou sair! Saia vocŒ,
volte
ao bar que Ø melhor para todos
- Nªo me fale assim! Vou lhe bater! - Gritou Gilberto, ameaador.
As crianas se aconchegaram com medo. Ana pensou: "Apanho, mas nªo o deixo
sozinho
com as meninas"
Papai - pediu Livia -, por favor, nªo bata em Ana! Ela nªo
quer sair. Se ela sair, quero ir junto!
- Eu tambØm! - Rogou Vanessa.
- Que famlia eu tenho! Que horror! Nªo mereo isso! Nªo sei por que nªo largo
todos vocŒs
e sumo!
Saiu e todos suspiraram aliv iados.
"Nªo posso viver assim - pensou Ana -’ isso nªo Ø vida! asM o que posso fazer? Talvez
eu
esteja julgando erradamente Gilberto, mas jÆ escutei fatos de abusos entre pai e
filhas e tenho
medo. Tenho de defender as meninas; sªo inocentes e jÆ sofrera m muito com a
morte da
mªe!"
Ao ficar sabendo no outro dia que Gilberto foi visto com outra
se sentiu aliviada.
"Nos darÆ mais sossego! - Pensou. - Tomara que esquea
das filhas"
36
Lvia era mais calada, estava sempre sonhando, desejando
ter coisas.
"Ah! - Dizia. - Se tivesse uma bicicleta! Uma boneca grande. Queria morar numa
casa
com jardim, ter um cachorro".
JÆ Vanessa era pacfica, bondosa, tentava sempre confortar,
dar o que tinha para a irmª e para os irmªos.
No Natal as senhoras trouxeram presente s. Vanessa ganhou
uma boneca maior do que a de Lvia.
- Lvia - disse a menina -, gostei mais da sua boneca, quer trocÆ -la comigo?
Quero! - Respondeu Lvia depressa, pegando a boneca dela.
Ana as observava, nªo tinha como Vanessa ter gostado mais da boneca da irmª, a
sua era
maior e mais bonita. Vanessa queria que a irmª ficasse contente com o presente e
ficou
alegre com a felicidade de Lvia.
"Vanessa Ø especial - pensou Ana -, muito especial!"
Gilberto comeou a reclamar demais, era do emprego, do
chefe , e ela ficou apreensiva quando ele comentou:
- Ana, que tal irmos embora para outra cidade, para uma maior?
- Nªo sei... - Murmurou Ana.
Mas ele nem prestou atenªo no que ela disse e continuou a
falar, eufrico:
- Gostaria de comprar um automvel!
- Automvel? Mas isso Ø s para ricos! - Exclamou Ana, assustada.
- E para os espertos, nªo se esquea. Vou aprender a dirigir um. Conheo um
sujeito que
sabe, ele Ø chofer particular de um velho rico. Esse meu conhecido irÆ pegar o
automvel
escondido do seu patrªo e irÆ nos ensinar, eu e meu amigo, no domingo.
- Escondido? - Perguntou Ana.
- Sim, e da? Nªo tem nada demais nisso. S pedi para que ele me ensine.
Ana tentou nªo dar importncia, era, sem dœvida, mais uma brincadeira, um sonho
dele. S
que teve medo, se ele perdesse o emprego, se ficasse sem trabalho e mais tempo
em casa a
situaªo pioraria muito. Esperava que essas idØias malucas passassem.
As meninas se arrumavam para ir escola quando Ana escutou Lvia ralhar com
Vanessa.
Aproximou -se devag ar e se ps
a escutar.
- Vanessa, jÆ lhe falei para nªo dizer isso! NinguØm acredita que vocŒ vŒ mamªe.
Dizem
que Ø sua imaginaªo. VocŒ sonha
somente!
- Mas eu a vejo! - Exclamou a garotinha. - VocŒ nªo acredita em mim?
37
- Acho que vocŒ nªo mente! Mas nªo sei... Mamªe estÆ morta enterrada. VocŒ nªo
pode
vŒ-la!
- Posso e vejo - choramingou Vanessa.
- Vanessa - disse Ana interrompendo a conversa das duas -, vocŒ vŒ sua mªe?
As duas se assustaram, Vanessa nªo respondeu e Lvia a
defendeu:
- Nªo fique bra va com ela, Ana. Vanessa Ø pequena e nªo sabe das coisas...
- Nªo vou ficar brava, Lvia - respondeu Ana. - Nªo tem motivo. Mas me conte,
Vanessa, vocŒ estÆ vendo sua mªezinha?
O que ela fala para vocŒ?
- Ela fala sempre que nos ama. Para ter cuidado com papai, para ficar ao seu lado
e que
ela cuidarÆ de Rodrigo e Marcelo.
- Gosto de Aninha, a mªe de vocŒs - falou Ana, abraando as duas. - Gosto mesmo.
Creio que se ns duas tivØssemos nos encontrado, seramos amigas. Eu acredito em
vocŒ,
Vanessa. Se sua mªe tem oportunidade lÆ no cØu de vir ver vocŒs, ela o farÆ e
tentarÆ ajudÆ -
las. Ela sempre foi boa mªe e deve continuar sendo!
- Ela me disse que nªo estÆ no cØu - falou Vanessa, convic ta -, mas que mora num
lugar bonito e que trabalha.
Ana se lembrou do que seu pai lhe disse no hospital e sorriu.
- Bem, o que importa Ø que ela cuida de ns. Agora vªo para a escola senªo
chegarªo
atrasadas.
As duas saram correndo e, em seguida, Rodrigo chamou
pela mªe, ele ainda estava deitado e disse:
- Mamªe, eu vi a tal da Aninha!
- Que Aninha? - Perguntou ela.
- A mªe da Livia e Vanessa, a tal que mora no cØu.
- Viu? - Indagou Ana, assustada.
- Falei com ela num campo verdinho e bonito.
- Ah! - Suspirou Ana, aliviada. VocΠsonhou!
- Ela me disse que irÆ cuidar de mim e de Marcelo e que Ø para a gente nªo ficar
com
medo. Ela nos amarÆ como a senhora ama as meninas.
Rodrigo se distraiu e se ps a brincar. Ana ficou pensativa.
"Engraado! Por que serÆ que Aninha disse Vanessa que cuidarÆ de Rodrigo e
Marcelo e
meu filho sonhou com ela sobre isso? SerÆ que Aninha vem mesmo ver as filhas? Ou
ela
imagina tudo isso? Por que serÆ que Rodrigo sonhou com ela sobre o mesmo
assunto?"
Sem respostas s suas indagaıes, Ana se distraiu com o
trabalho, que era muito. Lembrou q ue fazia um ano e oito meses
que as meninas estavam com eles.
e
38
"Eu as amo quase tanto quanto amo Rodrigo e Marcelo - pensou. - Ø tªo bom
expandir o
amor!"
As vezes, uma delas a chamava de mªe, principalmente
Vanessa, que, ao escutar os meninos chamare m-na, tambØm o
fazia. A primeira vez que a chamou de mªe, riram.
- VocŒ chamou minha mªe de mamªe! - Disse Rodrigo, gargalhando.
- Nªo me importo - falou Ana -’ se quiserem me chamar de mªe, podem fazer.
VocŒs
duas sabem, lÆ no fundo do coraªo, que su u ma substituta e que Aninha sempre
serÆ a
mªezinha de vocŒs.
- Se a senhora passou a ser mªe delas, quero que Aninha seja a minha tambØm.
Quero
duas mªes, como elas! - Exclamou
Rodrigo, se divertindo.
Eu tambØm! - Falou Marcelo.
Riram de novo.
Ana pensou: "Criana tem cada uma! Rodrigo quer que Aninha seja a mªe dele
tambØm!"
Levou na brincadeira e esqueceu o fato.
Sem Gilberto em casa, com ele fora, atØ que a vida deles
nªo era ruim. Os cinco se queriam bem, riam por qualquer motivo e as risadas
deles faz iam
Ana rir. Ela os amava.
39
4
O Acidente
Gilberto chegou mais cedo, eram dezessete horas e as crianas estavam brincando
na rua.
- Chegou mais cedo, Gilberto? - Indagou Ana. - O jantar nªo estÆ pronto. Quer que
chame as crianas?
- Deixe -as brincar, pr eciso conversar com vocŒ, a ss. Ana, sente aqui um pouco e
preste
atenªo no que vou lhe falar. Vamos embora esta madrugada, iremos mudar de
cidade.
Ana, espantada, nªo conseguiu falar nada, arregalou os olhos
e abriu a boca. Gilberto ficou uns instantes calado e depois falou
mais devagar.
- Ana, preste atenªo, nªo Ø difcil entender. Vou comear pelo incio. Recebi uma
oferta
de trabalho numa cidade longe daqui. Oferta boa! Vou ganhar bem mais e trabalhar
menos.
Coisa garantida! O meu futuro patrªo Ø concorrente da fÆbrica onde trabalho, ou
melhor,
trabalhei, porque sa hÆ trŒs dias. E nesse perodo que estive sem fazer nada,
arrumei tudo.
Sou genial! Nªo lhe falei que estava aprendendo a dirigir? Pois bem, apren di. Com
o
dinheiro que recebi do meu ex -patrªo e um outro a, comprei um automvel muito
bonito.
Decidi que iremos embora e amanhª de madrugada vamos partir.
- Mas assim, de repente? Temos poucas horas, tenho muito que fazer, eu... -
Murmurou
Ana.
- Nªo tem nada! Eu jÆ fiz tudo! Ana, nªo q uero que resmungue. Obedea e pronto!
Nªo
posso estar alegre e entusiasmado
que vocΠatrapalha.
- Ø que eu estou assustada.... - Disse Ana, apreensiva.
- Calma! Deixe eu lhe contar tudo e verÆ que iremos embora para melhor, bem
melhor!
Sai do emprego, re cebi o que tinha direito e enganei um tolo no jogo. Com o
dinheiro
comprei um carro para pagar em duas vezes, uma parcela jÆ paguei, a outra o
sujeito nunca
verÆ. TambØm quem mandou ele me vender mais caro do que vale? Comprei, s
que nªo
,pagarei o res to. - Gilberto riu e continuou a falar calmamente. - E por isso e por
algo
mais que tenho de ir embora escondido.
- Que mais? O que vocΠfez mais, Gilberto? - Perguntou Ana,
temerosa.
40
Gilberto, continuando a rir, respondeu cinicamente:
- Sou esperto! E muito! Trapaceei no jogo para ganhar de um tolo rico que mora
numa
cidadezinha perto, ele vem nos finais de semana aqui para jogar. Como muitos
ficaram
sabendo da minha trapaa, irªo contar a ele e certamente o cara nªo irÆ gostar. Eu
disse
turma do bar que vou devolver o dinheiro. Mas nªo vou, vamos embora. Ana, fiz de
propsito, nªo paguei o aluguel da casa, devo trŒs meses, conversei com o
proprietÆrio,
combinei com ele pagar tudo depois de amanhª, falei que ia receber um dinheiro e
o dono
desta espelunca estÆ esperando. TambØm vendi todos os nossos mveis, se Ø que
podemos
chamar isto que temos de mveis, e o sujeito vem pegÆ -los amanhª cedo. JÆ recebi
o
dinheiro.
- Gilberto, como pde fazer isto? - Perguntou Ana, se esforando para nªo chorar .
- Fiz isso tudo escondido de vocŒ, porque mulher Ø muito faladeira e ia contar para
as
vizinhas e tudo ia dar errado. Estou de bom humor, alegre e aviso: nªo me
aborrea e
obedea! Vamos agir com maturidade, nªo fique com esta cara de espanto, faa
tud o como
nos outros dias. Depois que colocarmos as crianas para dormir, arrumaremos tudo.
Depois
da meia -noite todos por aqui estªo dormindo, a eu levo para o carro nossas roupas,
depois
acordaremos as crianas e iremos embora. Ah, Ana, que gostoso,vamo s de
automvel. Sim,
no carro que comprei. IrÆ ser uma viagem fenomenal!
Parou de falar. Gilberto estava feliz, ria, pegou na mªo de Ana.
Ela estava nervosa, esforando -se para entender; Atreveu -se a
perguntar
- Onde iremos morar nessa tal cidade? Vamos s com a nossa roupa?
- Nªo se preocupe - respondeu ele. - JÆ pensei em tudo. LÆ ficaremos hospedados
uns
dias no alojamento da fÆbrica, atØ acharmos uma casa para morar, e compraremos
tudo de
que necessitarmos.
- Tenho meu trabalho - falou ela. - Nªo Ø m elhor falar com o senhor Matias? Faz
anos
que fao doces e salgados para ele.
- Ana, vocΠse preocupa muito com os outros. Trabalhou para ele, recebeu e nada
devem
um para o outro. Ou... - Riu.
- Que foi, Gilberto? O que vocŒ fez? Por que estÆ rindo? - Quis Ana saber.
- Passei no bar do senhor Matias e pedi a ele um adiantamento. Ele me deu, Ø
pouco,
aquele avarento me adiantou uns trocados. Queria estar perto para ver a cara
daquele sovina
quan do souber que vocΠo enganou.
41
- Eu?! - Exclamou Ana, as sustada.
- Nªo Ø vocŒ que trabalha para ele? Recebeu adiantado, s que nªo irÆ mais fazer
os doces
e salgados. Bem, nªo importa; digamos, se isso lhe soar melhor, que fui eu a
enganÆ-lo.
Mas ele irÆ pensar que foi vocŒ.
- Meu Deus! - Disse ela, indignada .
- Deus nos ajude! Porque tudo isso tem uma finalidade: me lhorarmos de vida.
Mereo!
- As meninas estªo na escola, precisam de transferŒncia para continuar estudando -
disse
Ana.
- Precisam! Por isso hoje tarde fui escola e peguei todos os papØis ne cessÆrios.
O que
vocŒ pensa, que nªo me preocupo com meus filhos? JÆ pensei em tudo, resolvi e
darÆ certo,
Ø s vocŒ nªo atrapalhar. Agora faa o jantar, tome banho, dŒ banho nas crianas e
nªo fale
nada a elas.
- Queria me despedir de minhas amigas... - Pediu ela.
- EstÆ doida? Nªo vai nada. Nªo sairÆ de casa, ficarei aqui vigiando vocŒ. Quer
estragar
tudo?
Nªo estÆ certo sairmos fugidos...
Gilberto a olhou sØrio e falou, ameaador:
- Ah, Ø? Se alguØm souber dos meus planos estamos perdidos. O senhor M atias irÆ
querer
o dinheiro que me adiantou, o dono do carro, o restante que lhe devo. E ainda tem
mais,
pedi a vÆrios amigos e vizinhos dinheiro emprestado e eles irªo querer nos matar se
souberem que iremos embora, fugir.
- Fugir... - Balbuciou Ana.
- Ou ir embora sem nos despedir... Ajudo vocŒ, recolha as roupas, passe, vamos
arrumar
tudo.
Ana, atordoada, se ps a fazer o que ele mandou. Tremia, procurava raciocinar,
coordenar
as idØias. Pensou aflita: "Meu Deus, o que fao? Fugir? Como Gilberto pd e fazer
isso
tudo? O que irªo pensar DØlia e Antonia, amigas de tanto tempo? E o senhor Matias?
E os
vizinhos para quem ele pediu dinheiro em prestado?"
Gilberto aproximou -se dela, levantou seu rosto com a mªo,
obrigando -a a olhÆ-lo e, como que adivinhan do seus pensamentos, falou:
- Ana, tenho sido mau esposo, mas prometo a vocΠque mudarei. Vou ganhar mais e
cuidarei melhor de vocŒs. LÆ nªo terei as mÆs companhias, porque sªo esses meus
amigos
que me levam para o mau caminho. E lhe prometo nªo ir a nen hum bar e ser um
bom
esposo. Sabe, Ana, para todos somos casados. Seu nome parecido com o da falecida
ajudou. Meu futuro patrªo acha que somos marido e mulher e que os quatro sªo
42
nossos filhos. assim que vai ser. Eu mudei, pode acreditar, e para mel hor.
Poderia ir
sozinho e deixar vocŒ e as crianas, mas nªo fiz.
- Seu patrªo queria alguØm casado e com famlia para esse tal emprego? -
Perguntou ela.
- Como sabe? - Falou Gilberto, surpreso. - Isso estÆ no contrato, mas nªo Ø por isso
que os estou le vando. Amo vocŒ! E verdade! VocŒ Ø boa, trabalhadeira e eu nªo ia
deixar
meus filhos pequenos. Eles um dia se orgulharªo do pai que tŒm. Ana, estou muito
feliz!
VocŒ deveria estar tambØm. JÆ pensou se lhe deixo, se vou embora sozinho? O que
faria
com to das essas dvidas? O que faria para viver? Seria expulsa desta casa e nªo
teria nada
para levar, jÆ que vendi tudo.
Ana sentiu uma forte dor de cabea, tomou um comprimido. Chamou as crianas
para que
elas fossem tomar banho, serviu o jantar e as colocou na cama. E se ps devagar a
arrumar
tudo que iriam levar. Gilberto atØ que a ajudou e ficou observando -a, vigiando -a o
tempo
todo. Tinham poucas roupas e tudo doado pelas senhoras. Ao se lembrar delas,
sentiu nªo
poder se despe dir, agradecer mais uma vez.
- Pronto! E isso que levaremos - disse Gilberto. - Daqui a pouco levo estes dois
sacos
atØ o automvel, ele estÆ estacionado lÆ na avenida, nªo posso trazŒ -lo aqui, todos
escutariam o barulho. Volto e carregaremos os meninos, eu Rodrigo e vocΠMarce lo,
as
meninas irªo andando. Pararemos antes de chegar a uma cidade e comprarei para
vocŒs
algumas roupas. Ficarei envergonhado se chegarem lÆ vestidos com esses trapos.
- LÆ onde Gilberto? - Indagou Ana. - VocŒ ainda nªo me falou para onde iremos.
- Nem falarei. E longe daqui, chegaremos aps quatro ou cinco dias de viagem.
NinguØm
deve saber para nªo irem atrÆs
de ns. VocŒs irªo gostar, Ø uma cidade muito bonita.
Ana nªo falou mais nada. Passava da meia -noite quando Gilberto abriu a porta e,
certific ando -se de que nªo tinha ninguØm na rua, saiu com os dois sacos de roupas.
Ana
pensou em escrever um bilhete para as amigas, mas desistiu. DØlia e Antonia,
conhecendo -a
bem, entenderiam, mas ficariam sentidas de qualquer jeito, com bilhete ou nªo.
"Meu Deus! Estou sendo conivente com Gilberto. Mas o que
posso fazer? Quem me ajudarÆ depois de tudo o que ele fez?"
Talvez se ele tivesse dito antes ela teria mais tempo para pensar, achar um meio
de evitar,
mas ele arrumou, planejou tudo de um jeito que ela n ªo tinha escolha ou, naquele
momento,
nªo achava outra maneira de agir, s restava acompanhÆ -lo nessa aventura.
43
Gilberto retornou logo e ordenou:
- Acorde as meninas!
Ana foi atØ o quarto e sacudiu -as, chamando -as baixinho. Acordaram assustadas.
- Lvi a e Vanessa, seu pai resolveu viajar e nos levar com ele. Vamos, levantem
logo.
Ajudo vocŒs a trocarem de roupa.
Elas se levantaram sonolentas. Gilberto pegou Rodrigo e ela, Marcelo, e saram de
casa.
LÆgrimas escorreram pelo rosto de Ana. Foram lÆgrimas de agonia, de incerteza,
sentia por
ter deixado a casa, o bairro em que por anos viveu, onde deixava muitas amizades.
Era
bem triste ter de sair daquele jeito, fugindo.
- Nossa!
- Que beleza! Exclamaram as meninas ao verem o automvel. Gilberto sorriu:
- Ø lindo e meu! Vamos, meninas, nos acomodar para partir logo. Quanto mais
depressa
melhor!
- Nªo estou entendendo! Por que estamos saindo assim, de noite, e parece que
escondido?
- Indagou Lvia.
- Nªo pergunte nada, menina enxerida. Obedea e pronto! - Respondeu o pai.
Ana e Gilberto acomodaram os quatro no banco de trÆs e
ele colocou o automvel para funcionar. Exclamou alegre:
- LÆ vamos ns com a ajuda de Deus!
- Ø melhor orar - lembrou Vanessa -, pedir a Deus que nos
oriente.
Oraram as trŒs, ele fi cou calado.
Foram atØ perto de uma estrada, mas ele manobrou o carro
voltaram.
- Pensei que amos por ali - disse Ana.
- Ø isso que quero que pensem - respondeu ele. - Me envolvi com um pessoal
perigoso, trapaceei o chefªo do pedao. Se nos pegarem... Mas nªo se preocupe,
estou
enganando -os direi tinho. Se alguØm tiver nos visto, darÆ informaıes erradas.
Os meninos continuaram dormindo e as meninas, apesar da
novidade, acabaram por adormecer. Ele dirigiu por um tempo,
distanciaram -se alguns quilmetros d a cidade.
- Vamos parar aqui atØ o dia clarear. Vou ver se consigo dormir. Tente descansar
vocŒ
tambØm.
Gilberto se acomodou no banco, fechou os olhos. Ana estava tensa, procurou
relaxar, nªo
tinha sono, se ps a orar, acalmou se um pouco, ficou muito te mpo acordada. O
luar
clareava a noite e ela podia ver que estavam beira da estrada, debaixo de uma
grande
Ærvore. Acabou dormindo, e acordou com ele a chamando.

44
- Acorde! JÆ estÆ amanhecendo. Olhe que bonito! Faz tempo que nªo vejo o nascer
do
ast ro-rei! Acorde as crianas, aqui Ø um bom lugar para ser usado como banheiro.
Tem atØ
um riacho perto, onde podemos lavar o rosto.
Ela os acordou. Foi uma festa para eles a novidade. Falavam todos juntos,
indagavam,
encantados, nunca haviam entrado num a utomvel. Admiraram o carro, era preto,
bonito,
parecia novo. O pai, orgulhoso, explicava:
- E possante! EstÆ bem conservado! JÆ foi de dois donos. Agora vamos nos
alimentar.
Trouxe pªes e frutas que comprei ontem. Vamos nos apressar, nªo quero atrasar a
viagem,
quero me distanciar rapidamente desta cidade.
Gilberto se ps a cantar, as crianas, alegres, cantaram junto. Ana estava
atordoada.
"Sou comparsa dele. Meu Deus, o que fao?"
- Mªe! - Chamou Vanessa.
O pai interferiu:
- E isso, Vanessinha, de hoj e em diante vocŒ e Lvia s devem chamar Ana de mªe.
Na
outra cidade ninguØm precisa
saber que a mªe de vocŒs era a outra. E...
- Nªo quero esquecer minha mªe - choramingou Lvia.
- Nªo precisa esquecer - falou Ana. - Aninha estarÆ sempre conosco na lembr ana,
no
coraªo. Ela serÆ a mªe de vocŒs, a
que mora lÆ no cØu, e eu sou a que estarÆ sempre com vocŒs.
- Bem, se Ø assim, tudo bem - concordou Lvia.
- Otimo - disse o pai. - Seremos uma famlia feliz, perfeita. VocŒs vªo ver, garotos,
que vida boa ter emos.
A viagem estava sendo cansativa, ele s parou para comer
e abastecer o veculo, queria realmente se distanciar cada vez
mais. S noite pararam. Foi um alvio quando ele disse:
- Aqui Ø um bom lugar para pararmos. Vamos nos acomodar e tentar descans ar.
Amanhª
poderemos parar mais, comeremos em bares nas cidades em que pararmos.
- Nªo temos mais nada para comer - disse Ana.
- Queria tomar banho - falou Vanessa.
- Nªo dÆ, filha, amanhª talvez - respondeu o pai.
Ele estava alegre, paciente e carinhoso com todos. Acomodaram -se da melhor
maneira
possvel no automvel, e as crianas dormiram logo.
"Ainda bem que estÆ calor e o tempo limpo" - pensou Ana.
Tentou dormir, estava cansada, mas tambØm com medo e preocupada. Atenta a
todos os
barulhos, demorou p ara adormecer. No outro dia, logo que clareou, retomaram a
viagem.
Logo chegaram a uma cidadezinha, pararam num bar, usaram o banheiro
45
e se alimentaram. E assim foi mais um dia. No outro, cedo, Gil berto falou,
entusiasmado:
- Vamos parar nesta cidade que Ø maior, procurar uma loja e comprar duas trocas
de
roupa para todos vocŒs. Nªo quero chegar com a famlia mal vestida. Quero -os
bonitos!
Pararam numa loja e compraram calados e roupas para
todos, mas nªo se trocaram. Perto de chegar procurariam um
lugar para tomar banho e se trocar.
- Pelos meus cÆlculos falta muito chªo para percorrermos - falou Gilberto.
- Como Ø longe essa cidade! Estou cansada! - Resmungou
Lvia.
- Nªo reclame! VocŒs estªo se divertindo. Essa cidade Ø longe sim, mas Ø
acolhedora e
todos ns iremos gostar dela.
A rodovia agora era mais movimentada e poeirenta. Estavam cansados, sujos, as
crianas
comearam a brigar, a resmungar. Subiram uma serra, a estrada contornava a
montanha.
- Que lugar lindo! - Ana exclamou.
Um homem fez si nal para que parassem e explicou:
- Senhor, por favor, estamos consertando a rodovia, terÆ de esperar para
atravessar. Pare
aqui, logo formarÆ fila e assim que
for liberado o senhor passarÆ.
- Serei o primeiro - respondeu Gilberto. - IrÆ demorar?
- Creio que uns quarenta e cinco minutos. Uma barreira caiu sobre a pista e
estamos
consertando. SerÆ liberado primeiro do que os que estªo do outro lado, porque o
caminho
estÆ estreito e s poderÆ passar um veculo de cada vez.
Gilberto estacionou o carro no lo cal que o moo indicou.
Desceram do automvel, olharam o lugar.
Encantaram -se com a paisagem. Ele foi atØ o local do conserto e voltou
comentando:
- HÆ muitos homens trabalhando, foi um deslizamento grande, caiu muita terra na
pista
- Estamos perto de um p recipcio - comentou Ana. - Uns cinco passos para trÆs tem
um buraco enorme e com muitas
pedras.
- Nªo deixe as crianas se aproximarem - pediu ele. As crianas queriam ir ao
banheiro
e Gilberto levou os me ninos perto de umas Ærvores. As meninas queriam ir
tambØm,
mas, como havia muitos homens por ali, ele recomendou:
- Ana, vÆ atØ ali, hÆ uma casa onde eles vendem quitutes e lÆ poderªo usar o
banheiro.
Leve as meninas.
Havia uns sete veculos esperando. Gilberto entrou no carro
com os meninos e ela foi com as garotas no local indicado. Uma
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senhora as atendeu sorrindo e as levou ao banheiro. Aps agradecer, saram, e
entªo
escutaram barulho e gritos, assustaram - se. Ana sentiu um tremor, um
pressentimento ruim,
uma afliªo, gritou, pegou na mªo das meninas e correram. Parou perto dos carros.
Olhou
assustada, trŒmula, o deles nªo estava lÆ. As pes soas olhavam para o precipcio.
As meninas tremiam. Ana ficou parada, sem coragem de se aproximar mais, nªo
conseguia
falar. Um homem, ajudado por outros, subiu. Ele descera pelas pedras para ver o
que
acontecera com os acidentados. Suspirou limpando as mªos e falou:
- Que desgraa! TrŒs mortos!
Ana largou a mªo das meninas, aproximou -se. O homem a
olhou, penalizado.
Um acidente! O automvel caiu no precip cio e...
Ana deu um grito roco, sentiu uma dor que pareceu arre bentÆ -la toda, tudo lhe
parecia
rodar, foi amparada, desmaiou.
Voltou a si com a senhora que antes conversara esfregando - lhe um lquido gelado
no
pulso. Estava deitada numa cama e as
menin as ao seu lado a olhando assustadas, caladas e aflitas.
- O que aconteceu? - Indagou ela.
NinguØm lhe respondeu. Olhou para o homem que vira subir
o barranco.
- Estªo mortos? Os trŒs? Por favor... - Rogou ela com a voz enfraquecida, querendo
que
fosse tud o um pesadelo.
- Sim, senhora - respondeu o homem, sØrio e com muito d.
- A senhora quer vŒ -los? Tiramos os trŒs de lÆ, estªo beira da estrada.
- Vou - respondeu ela se levantando. - VocŒs, meninas, ficam aqui, volto logo.
Caminhou com dificuldade. Foi com o homem atØ o local onde minutos antes
estavam
parados. Nªo havia mais carros. Viu os trŒs corpos cobertos com lenis. O homem
levantou uma ponta, viu o bracinho de Rodrigo sujo de sangue.
- Por favor! - Pediu ela. - Nªo quero vŒ -los, nªo consigo. O senhor tem certeza de
que
estªo mortos mesmo?
- E melhor a senhora nªo ver mesmo. Esteve tempo desmaia da. O automvel se
estraalhou. Os trŒs morreram na hora. Nªo sofreram! O pegamos lÆ de baixo com
tudo que
nos foi possvel, os sacos de roupas levei -os para minha casa. Toma, aqui estÆ a
carteira do
seu marido. A senhora vai ter de decidir como faremos para enterrÆ -los.
- A polcia! - Conseguiu ela balbuciar.
- Por aqui nªo hÆ delegacia e por isso a polcia demora muito a chegar. Nªo
podemos
deixar os corpos lÆ no chªo. Se a senhora quiser, me dŒ algum dinheiro, que vou
enterrÆ -
los.
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- Quanto vocΠacha que isso vai custar? - Perguntou, ainda confusa.
O homem falou a quantia. Era todo o dinheiro que ela tinha na carteira, era pouco,
mas tudo
o que lhe restava.
- Tome! Por favor, me faa esta caridade, enterre -os por mim, nªo tenho condiıes
de
resolver esse assunto.
- Eu cuido de tudo para a senhora. Vou enterrÆ -los juntos, jÆ que morreram unidos.
E
melhor nªo vŒ -los, estªo desfigurados.
Volte pa ra minha casa, fique lÆ atØ que resolva o que fazer.
Ana voltou andando devagar, as pernas pareciam pesadas, nªo conseguia
raciocinar, se
esforava para compreender o que ocorria. Nªo chorou, porØm sentia uma dor tªo
forte que
nªo era possvel descrevŒ -la. Ao chegar a casa, a senhora ofereceu uma cadeira,
ela sentou -
se no canto da sala, ficou parada, quieta, alheia. Lvia e Vanessa ficaram ao lado
dela,
assustadas e te merosas.
- Venham jantar - disse a dona da casa. - Arrumei o quarto e vocŒs poderªo d ormir
esta noite aqui.
Ana sentou -se mesa e tomou umas colheradas de sopa
junto com as meninas.
O homem, o dono da casa, chegou.
- Pronto, senhora, enterrei os trŒs juntos no cemitØrio do povoado. O padre os
abenoou.
Esta estrada estÆ fazendo vtimas.
- Obrigada! Deus lhe pague! - Ana balbuciou baixinho.
- Eles morreram mesmo! - Exclamou Lvia.
- Sim, menina - respondeu o homem -, seu pai e seus irmªos morreram.
Elas choraram, Ana as abraou e beijou. Foram para o quarto, deitaram juntinhas,
as
menina s logo dormiram. Ana teve um sono tumultuado, acordava sobressaltada
toda hora.
Foi de madrugada, ao escutar os donos da casa se levantarem, que pare ce que saiu
do
torpor e se lembrou de tudo.
- Meu Deus! - Exclamou e chorou.
Que dor cruciante sentimos com a separaªo causada pela morte do corpo fsico de
pessoas
que amamos! Ela Ø muito profunda, talvez a pior que existe. Sentiu mais pelos dois
filhos,
achou que se chorasse todas as lÆgrimas que tinha nªo melhoraria, por nada se
sentiria
consolada.
As meninas acordaram e choraram junto com ela.
A senhora bateu na porta do quarto e chamou -as:
- Levantem, tomem cafØ, banho. A senhora poderÆ lavar as roupas que estªo sujas.
Se
sentirÆ melhor fazendo algo.
- Obrigada, senhora - respondeu Ana. - EstÆ sendo muito boa conosco. Deus lhe
pague. Como se chama?
- Nªo precisa agradecer. Me chamo Vicentina.
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Elas se levantaram, tomaram o cafØ oferecido. Ana observou a casa: era pobre,
tinha dois
quartos, sala e cozinha. O casal tinha cinco filhos, todos pequeno s. Depois foi
separar as
roupas, as delas para lavar, as de Gilberto e dos meninos deixou num saco.
Vicentina estava
observando -a, e Ana entªo lhe disse:
- Se quiser ficar com estas, umas sªo novas, nem foram
usadas.
- Nªo gosto de roupas de defunto - re spondeu a dona da casa. - Pode deixar a,
darei
aos pobres do povoado.
Tomaram um banho, se sentiram melhor. Ela lavou as roupas, fez o que Vicentina
lhe
mandou, estava apÆtica e cansada. Passou o dia quieta e noite dormiram
novamente no
mesmo quarto. Pela manhª as meninas foram brincar com as outras crianas. O
dono da
casa aproximou -se dela.
- Dona Ana, o que a senhora pretende fazer? Quer avisar alguØm do falecimento de
seu
esposo e filhos? Vai continuar a
viagem?
- Como eles morreram? - Indagou e la, triste.
- Quando a estrada foi liberada, seu marido era o primeiro da fila, mas o sujeito
que
organizava a travessia deixou um se nhor rico passar na frente. Seu marido parecia
nervoso,
xingou e tentou impedir que lhe tomassem a dianteira. Como os ca rros estavam
prximos,
ele deu rØ para se distanciar e assim pegar maior velocidade e impedir o outro de
seguir na
sua frente. Nªo sei se ele nªo sabia dirigir direito ou nªo calculou a distncia do
buraco, o
fato Ø que ele nªo conseguiu parar a rØ e ca ram.
Ela escutou calada e pensou: "Foi imprudŒncia de Gilberto,
deve ter achado desaforo alguØm ter passado sua frente, morreu por isso e matou
meus
dois filhos"
- Dona Ana - disse Vicentina -, nªo me leve a mal, mas a senhora precisa decidir
para
ond e irÆ. Nªo podemos hospedÆ las por mais tempo. A casa Ø pequena, o quarto
que
ocupam Ø dos meus filhos, somos pobres e...
- Entendo, Vincentina, agradeo de coraªo a generosidade de vocŒs. Estou
confusa, foi
tudo inesperado, nªo sei o que farei.
Nªo ten ho dinheiro para voltar e...
Estava realmente confusa, nªo sabia para onde estavam indo. Estavam longe de sua
ex -
casa, mas tambØm como voltar para lÆ depois do que Gilberto fez? Ao vŒ -la
indecisa, o
dono da casa disse:
- Se a senhora arrumasse um emprego para se sustentarem, poderia juntar dinheiro
para
voltar para a cidade de vocŒs. LÆ do outro lado da serra, na beira da estrada, hÆ
um
restaurante que estÆ precisando de empregados.
49
- SerÆ que conseguirei o emprego? - Perguntou ela, esperanosa
- Se Deus quiser irÆ conseguir. Deve ir amanhª mesmo - falou ele.
-Acho uma boa idØia. O senhor Lauro, que mora logo ali, irÆ para lÆ amanhª de
charrete,
poderÆ levar vocŒs trŒs. Vou conversar com ele. Amanhª, logo cedo, irªo embora -
expressou Vicentina.
Ana os olhou agradecida. Compreendia -os, jÆ haviam feito
muito dando -lhes abrigo sem sequer conhecŒ -las. Nªo poderiam
ficar mais. Chorou, teve medo. AtØ que Gilberto lhe fazia falta.
- Nªo chore, dona Ana - disse Vicentina consolando -a. - Sei que deve estar s endo
difcil, perdeu o marido e os dois filhos,
mas ficaram as garotas e elas precisam muito da senhora.
Sim, Ø verdade, pensou Ana, as meninas necessitavam dela
e ela s tinha Lvia e Vanessa.
50
5
O Restaurante da Beira da Estrada

Ana arrumou toda a ro upa e logo aps o jantar foram se dei tar. Ela demorou para
adormecer, ficou pensando em tudo que lhe aconteceu. Nªo tinha dinheiro nem
para tomar
um cafØ, s possua aquelas poucas roupas que estavam nos sacos. O carro se
estraalhou e
ela deixou que seu hospitaleiro, caso conse guisse vender alguma pea, ficasse com
o
dinheiro. Sentiu medo, seu futuro parecia um grande desconhecido e temia muito a
in
certeza. Nªo tinha nem como fazer planos. Rogou a Deus para que conseguisse
arrumar um
emprego. Acabou por dormir, acordou cedo e ps -se a se arrumar para irem
embora.
Tomaram o cafØ.
- Dona Ana, o senhor Lauro chegou - avisou Vicentina.
Despediram -se do casal, das crianas, agradecendo -lhes com sinceridade.
Acomodaram -se
na charrete e o senhor Lauro,
um homem jÆ idoso, foi conversando com as meninas.
- Ainda bem que s teremos de descer a serra. Coitado do cavalo se tivesse de subir
-
disse Lvia.
- Ele estÆ acostumado, trato bem dele, Ø meu companheiro de jornada. Na volta,
tarde, Ø
s subida, mas andamos d eva gar. Vou lÆ buscar mercadorias para o pessoal que
mora no
alto da serra. E meu trabalho!
Ana falou pouco, olhou triste para a paisagem, lembrou que a admirou logo que
comearam
a subir a serra, dias antes. Lembrou do rostinho dos meninos, sorridentes, sentiu
um aperto
no coraªo, mas se esforou para nªo chorar. Estava preocupada, se nªo arrumasse
emprego, onde dormiriam, como iriam se ali mentar? Nªo queria esmolar, esperava
nªo ter
de fazer isso.
Faltavam poucos minutos para as onze horas quando
chega ram.
- E aqui! - Disse o senhor Lauro. - Vou apresentar a senhora para o proprietÆrio,
mas
antes vou conversar com ele. Se Deus
quiser arrumarÆ o emprego.
As trŒs observaram o local. Era uma construªo nova, grande, um posto para
abastecer os
veculos, um alojamento que era
dividido em vÆrios quartos, um bar e um restaurante. Elas
51
desceram da charrete, ficaram juntinhas, quietas com os dois sacos de roupas aos
pØs. Ana
suspirou.
"Meu Deus! Que situaªo! Pai, nos ajude!"
- A vaga ainda nªo foi preenchida , dona Ana - surgiu falan do o senhor Lauro. -
Venha!
Ela o acompanhou, entraram num escritrio ao lado do posto
e um senhor a olhou atentamente.
- Quer o emprego? - Perguntou, mas nªo esperou pela res posta e continuou
falando: -
Aqui tem muito trabalho e o empregado tem de fazer o servio direito. EstÆ
disposta?
- Sim, senhor - respondeu ela encabulada.
- O senhor Lauro me disse que tem duas filhas. TerÆ comida para vocŒs trŒs e um
quarto
lÆ nos fundos. Quer olhar o quarto antes de aceitar o emprego? - Perguntou ele,
depois de
informar qual seria o salÆrio de Ana.
- Nªo, senhor, preciso muito trabalhar, aceito!
- Pois entªo comea agora. Vou mandar um empregado acompanhÆ -la atØ o quarto,
servir
o almoo e vocŒ irÆ jÆ para o restaurante e iniciarÆ o tr abalho. Aviso -a, se nªo fizer
o
servio direito, serÆ mandada embora.
- Sim, senhor - respondeu ela.
Um homem mal -encarado veio para levÆ -las ao quarto.
- Chamo Ceclio, acompanhem -me. Os quartos dos empregados ficam lÆ nos fundos.
As trŒs o acompanharam, os fundos que ele disse era um
galpªo com vÆrias portas atrÆs do restaurante.
- E aqui!
Pegou uma chave e deu para Ana, que abriu a porta. O quarto
tinha um armÆrio pequeno, uma cama de solteiro, uma mesinha
e duas cadeiras
- O banheiro Ø ali, sªo dois pa ra todos os empregados. Mas sªo s sete os que
dormem
aqui. Troque de roupa, dona Ana, e
vÆ para o restaurante - disse Ceclio.
- Sim, obrigada - Ana agradeceu.
Entraram e fecharam a porta.
- Bem - disse Ana -’ Ø aqui que moraremos por uns tempos.
- E bem ruim, vamos dormir as trŒs na mesma cama! - La mentou Lvia.
- E s por um tempo, Lvia - disse Vanessa. - Daremos um
jeito.
- Vou trocar de roupa e ir trabalhar. VocŒs duas fiquem juntas. Limpem aqui e
coloquem
as roupas no armÆrio.
- Pode deixar, mamªe - disse Vanessa. - Vi um tanque lÆ fora, lavaremos as roupas
e
limparemos tudo.
52
Bateram na porta, Lvia abriu, era o senhor Ceclio com uma travessa.
- E o almoo das duas, a senhora almoarÆ lÆ.
- Sim, obrigada! - Respondeu Ana.
O almoo estava numa travessa com um prato servindo de tampa e duas colheres. A
comida
era simples. Ana abraou as
meninas e disse:
- Repartam, uma usa o prato e a outra a travessa, depois lavem tudo e levem ao
restaurante.
Trocou de roupa, saiu rÆpido e foi trabalhar. Ao ch egar no
restaurante foi abordada por uma mulher.
- VocŒ Ø a nova empregada? Ainda bem, estava difcil sem ajudante. Lave toda esta
loua.
Me chamo OfØlia, me pergunte se tiver dœvida. VocŒ jÆ almoou? Nªo! Sirva -se ali e
coma
antes de comear a lavar a l oua. Mas ande rÆpido, preciso logo destes pratos.
Ana percebeu que havia realmente muito servio e tratou de
fazer tudo rÆpido e bem -feito. JÆ eram quase cinco horas quan do OfØlia lhe disse:
- Gostei do seu modo de trabalhar, espero que continue as sim. Vou fazer o prato
do jantar
de suas filhas, vocŒ pode ir lÆ levar, mas volte, a jantarÆ e hoje ficarÆ atØ s vinte
horas.
Seu horÆrio Ø das sete da manhª atØ a noite. TerÆ folga duas vezes ao mŒs. Tem
que nos
compensar, vocŒ tem as meninas que ficarªo com vocŒ no quarto e estamos dando
alimentos para elas tambØm. Pela manhª elas poderªo vir aqui tomar cafØ.
- Sim, senhora - respondeu Ana.
"Meu Deus, que emprego arrumei! Mas nªo posso reclamar!
As meninas estªo comigo, pelo menos temos o que comer e
ond e dormir."
Ela levou o jantar.
- Veja, mamªe, limpamos todo o quarto, ficou tudo limpo, lavamos as roupas, s
que nªo
temos como passÆ -las. Mas nªo
faz mal, vamos alisÆ -las com as mªos - disse Vanessa.
- Trouxe o jantar, tenho de voltar. VocŒs fiquem aqui trancadas, nªo abram a porta
para
ninguØm, chamo quando voltar
e espero que seja logo.
Ana voltou ao trabalho. Eram vinte horas quando OfØlia a
deixou ir. Tinha pouca claridade no alojamento dos empregados. Ana as chamou.
Lvia
abriu a porta e disse:
- Mamªe, o senhor Ceclio veio aqui, bateu na porta, abri s um pouquinho, nªo o
convidei para entrar, ele queria saber se
estÆvamos bem. Vanessa ficou com medo e eu tambØm.
- E melhor s abrir para mim. Respondam quando baterem sem abrir a porta
53
- EstÆcansada? - Perguntou Livia.
- Sim, estou, o trabalho Ø muito. Vou tomar banho.
- Lvia e eu tomamos juntas - disse Vanessa.
Ana foi tomar banho e voltou logo.
- Vou me deitar, estou cansada - disse ela. - A cama Ø pequena, vamos nos
organizar.
Eu e Vaness a desse lado e Lvia do
outro.
- Mªe, temos mesmo que ficar aqui? Nªo gosto desse lugar. Vanessa e eu iremos
ficar ss
nesse quarto? Poderemos estudar?
- Perguntou Lvia.
- Livia e Vanessa, estou tªo confusa quanto vocŒs. Deixamos a cidade onde
morÆvamos,
samos fugidos, nos distanciamos bastante e nªo temos como voltar, porque nªo
temos
dinheiro. Nem como ir para a tal cidade que seu pai nªo falou onde era. Mas por
que ir para
lÆ? O emprego era para ele. Voltar? Como seramos recebidas depois do que
Gilberto fez?
Aqui vou ganhar muito pouco, mas estamos juntas, temos onde ficar e alimentos.
Vou
procurar outro emprego assim que receber o primeiro salÆrio.
- Nªo quero voltar para a cidade onde morÆvamos - disse Lvia. - A senhora tem
razªo,
se papai sa iu fugido deve ter aprontado mais coisas que nªo nos falou. Depois, se
nossa tia
descobrir que papai morreu, ela nos tirarÆ da senhora e eu nªo quero.
- Nem eu, mamªe! Quero ficar com a senhora - disse
Vanessa.
- Aqui ninguØm nos conhece e todos julgam qu e sou a mªe de vocŒs. Vamos fazer
um
trato: nªo falar a verdade para ninguØm.
- A senhora tem razªo - disse Lvia. - Isso serÆ segredo nosso. Eu juro que nunca irei
falar.
- TambØm juro, a senhora Ø nossa mªe! - Exclamou Vanessa.
- Promessa Ø promessa, q ue a verdade nunca seja dita -
falou Ana.
Os dias passaram, sempre com muito trabalho. Ana comeava s sete horas da
manhª e
nªo tinha hora para sair. As me ninas iam ao banheiro juntas, limpavam o quarto,
lavavam
roupa e ficavam a maior parte do tempo p resas no quarto. Elas tinham medo, ali
passavam
muitas pessoas estranhas e os prprios empregados eram mal -encarados. S se
afastavam
do alojamento para tomar cafØ da manhª, iam com Ana ao restauran te e por ali
ficavam
um pouquinho, paradas na porta, o lhando o movimento.
Dormiam mal, apertadas. Ana s vezes tinha atØ dores no corpo, de tªo cansada.
Com tanto
trabalho e problemas, passava o dia sem muitas lembranas. Mas noite, a
saudade era
mais forte. Ficava recordando os meninos, imaginava -os dorm indo
54
ao seu lado, lembrava de cada detalhe de seus rostinhos lindos e amados. As vezes
chorava;
outras, para nªo incomodar mais ainda as meninas, se esforava para nªo fazŒ -lo. A
dor que
sentia era cruciante.
Livia s vezes reclamava, mas Vanessa esta va sempre animando:
- Mamªe, no inverno teremos de comprar um cobertor - disse Lvia.
- Temos de comprar muitas coisas - respondeu Ana.
Ana indagou aos colegas de trabalho o que teria de fazer
para as meninas irem para a escola.
- Aqui - respondeu OfØlia - nªo se tem este luxo. NinguØm estuda. A escola fica na
cidade, Ø longe para ir a pØ e nªo tem
como ir de outro modo.
Elas estavam temerosas. Ana trabalhava preocupada e as meninas s saam do
quarto para
ir com ela tomar o cafØ da manhª, para irem ao ba nheiro e lavar roupa. Coitadas,
s fica
vam trancadas num espao pequeno sem ter nada que fazer. Estavam tristes e
sofridas.
Quando Ana recebeu seu primeiro ordenado, ela teve de dar
uma parte para o senhor Cecilio, porque ele aproximou -se dela
e falou:
- Dona Ana, aqui Ø perigoso para duas meninas tªo bonitas. Sabe como Ø, os
homens as
cobiam. Eu posso olhÆ -las, jÆ que
sou guarda, mas preciso ser pago para isso.
Ela entendeu que o maior perigo era ele e lhe deu o dinheiro.
Com o resto comprou o que mais precisavam e ainda guardou
um pouquinho.
As folgas a que Ana tinha direito estavam sendo adiadas e
ela trabalhava todos os dias. No terceiro mŒs, aps receber, avisou OfØlia:
- Tenho de sair amanhª. Vou cidade com as meninas.
- EstÆ bem - concordou OfØl ia, mal -humorada.
Logo cedo, lÆ foram as trŒs para a cidade. De fato, ficava distante e tiveram de
andar muito.
O municpio era pequeno. Foram escola, havia vagas e as meninas poderiam ser
matri
culadas. Sentaram -se numa pracinha para conversar.
- Foi fÆcil na escola, Ø s se matricular e vir, mas como? Estamos tªo longe! Nªo
serÆ
perigoso ns duas caminharmos
de lÆ atØ aqui? - Indagou Lvia.
- Nªo sei se agentarei andar tanto - disse Vanessa.
-Tenho uma idØia! - Exclamou Ana. -Talvez possamos morar a qui. Vou procurar um
emprego na cidade.
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E o fez a manhª toda. Indagou, foi a todos os lugares indicados. Nada conseguiu.
NinguØm
tinha emprego para uma mulher
com duas filhas.
- Mamªe, estou cansada e com fome. NinguØm quer dar emprego senhora por
nossa
causa. Se fosse sozinha jÆ teria
arrumado - disse Vanessa.
- Nªo fale isso, Vanessa, nªo sou sozinha, tenho vocŒs. Vamos voltar para o
restaurante,
nªo vou desanimar. Nas minhas
outras folgas insistirei em procurar.
Voltaram caladas. Para ir cidad e, colocaram as melhores
roupas e se arrumaram. Ao chegarem, OfØlia gritou para Ana:
- Venha rÆpido aqui, temos um problema!
Ela deu a chave para as meninas e foi para o restaurante.
- Ana - disse OfØlia -, JosØ, o garom, levou um tombo, tiveram de levÆ -lo ao
mØdico.
Me ajude a servir as mesas.
Ela se ps a trabalhar.
- Ana - senhor Ceclio a chamou em tom baixo para um canto. - Tenho uma
proposta a
lhe fazer. EstÆ vendo aquele se nhor? Aquele que estÆ naquela mesa no centro? E o
senhor
Gustavo, um clie nte rico que s vezes pÆra aqui. Ele gostou de vocŒ, quer que vÆ
ao quarto
para um encontro.
- Eu nªo vou... - Balbuciou ela, e o senhor Ceclio nªo a deixou terminar.
- Ele lhe ofereceu uma boa quantia para que se encontre com ele. Nªo recuse,
mulher, sª o
vÆrios meses de ordenado seu. PoderÆ comprar cobertores, cadernos, algo para as
meninas
se distrarem e elas nªo irªo saber.
- EstÆ ganhando por isso, senhor Ceclio?
- Estou, recebi uma gorjeta e se vocΠaceitar ganharei outra. Deve ir a esse
encontro
tambØm por mim, afinal, tem alguns homens mal -intencionados, vocŒ trabalha,
elas ficam
sozinhas, pode acontecer de eu nªo ver e a... Mas se aceitar, redobro a vigilncia,
ninguØm
mexerÆ com suas filhas.
Ela sentiu uma tristeza que lhe doeu no peito. R epetiu baixinho a quantia
oferecida. Era
tentadora. Com esse dinheiro poderia alugar um quarto na cidade, colocar as
meninas na
escola e arrumar outro emprego por lÆ
- EstÆ bem - murmurou.
- Otimo - disse senhor Ceclio, alegre. Falou algo para OfØlia ap roximou -se de Ana
novamente.
- Tudo bem, OfØlia dispensou -a. O senhor Gustavo ficarÆ no quarto trŒs, ele jÆ estÆ
indo e
vocŒ deverÆ ir logo aps.
Ana foi atØ o banheiro, lavou o rosto, que parecia brasa.
Segurou -se para nªo chorar.

56

"O que fao, Meu D eus?"


Nªo queria pensar, respirou fundo e saiu do restaurante rumo aos quartos da
frente, os
melhores que havia. Caminhou como se fosse para a morte, bateu e entrou no
quarto.
- Entre, Ana - disse o senhor Gustavo gentilmente.
Depois ele lhe deu o dinheir o.
- Aqui estÆ o que combinei. VocŒ nªo estÆ acostumada a isso, nªo Ø?
- Nªo, senhor - respondeu ela. - Nªo sou mulher de encontros. Eu... preciso...
- Desculpe -me! - Pediu ele. - Pode ir!
Ela saiu quase a correr e foi para o quarto. Nªo falou nada para as meninas,
guardou o
dinheiro. No outro dia, disse a OfØlia:
- Vou precisar do meu dia de folga, preciso ir cidade.
- VÆ na quarta -feira - respondeu ela.
Perguntou s colegas onde poderia alugar um cmodo ou uma casinha pequena na
cidade.
- Nªo Ø difcil - respondeu uma delas -, mas terÆ de com prar pelo menos o
essencial
para poder se mudar: fogªo, panelas, camas. TerÆ de fazer mais uns programas.
Ela nªo respondeu, compreendeu que a colega tinha razªo, s o quarto alugado nªo
resolveria, tinha de ter pelo menos al guns mveis. E se envergonhou, atØ sentiu
estar
vermelha, todos sabiam do seu encontro. Retornou ao trabalho.
Na quarta -feira foram cidade. Viu um quartinho para alugar com banheiro, nos
fundos de
uma casa, num lugar bom. Mas o dinheiro q ue tinha nªo dava para comprar os
objetos de
que necessitaria para ir morar nele. Compraram cobertores, pois jÆ estava
esfriando e logo
seria inverno, roupas de cama, banho, alguns cadernos, lÆpis, algumas balas para
agradar as
meninas e mais alguns obj etos de que estavam precisando. Tomaram um lanche e
voltaram
alegres para o restaurante.
Dias depois, num sÆbado, Vanessa, ao acordar, falou:
- Mamªe Ana, vi minha mªe, a Aninha. Ela me disse que Ø para vocŒ aceitar o que
lhe
serÆ oferecido e repetiu dua s vezes.
- O que serÆ, mamªe? - Indagou Lvia. - O que serÆ que tem
de aceitar? Bem que poderia ser um emprego melhor.
- SerÆ que darÆ para mudarmos para a cidade? - Perguntou Vanessa.
- Vou fazer de tudo para isto. Tudo...
Ana respondeu e pensou: "SerÆ que precisarei ter outros encontros? Mas que farei
para ter
dinheiro? Como deixar por mais tempo as meninas trancadas neste quarto?"
Suspirou ,
olhou para elas com carinho e falou:
57
- Fazia tempo que Aninha nªo aparecia para vocŒ. Temos passado t antas
dificuldades!
- Mamªe, a senhora lembra que Rodrigo disse que minha mªe ia ser a mªe dele
tambØm?
Acho que assinhora como a senho ra cuida de ns, mamªe tambØm cuida deles -
falou Lvia.
- Tenho certeza de que acontece isso - afirmou Vanessa.
- Sinto tanta falta dos meus filhos! - Choramingou Ana. - Que saudades! Agora
entendo muita coisa que antes nªo entendia. Quando os meninos ficaram doentes
no
hospital, sonhei com minha mªe e ela me disse que nªo iria perdŒ -los daquela vez.
Rodrigo
tambØm son hou com Aninha, que lhe falou que eles iriam morar com ela. Como
tambØm
sua mªe disse a vocŒ, Vanessa, que iria cuidar deles. E aconteceu, eles morreram e
Aninha
deve estar cuidando deles com todo o carinho.
- Como vocΠcuida de ns! Trabalha muito, se p reocupa conosco. Se estivesse
sozinha, ia
ser melhor para a senhora - falou Vanessa.
- JÆ lhe pedi para nªo falar mais assim. VocŒs sªo tudo que tenho, fico triste por
nªo ter
como lhes dar nada melhor. Mas,
paciŒncia, vou conseguir. VocŒs voltarªo a est udar!
- Se mamªe Aninha disse que Ø para aceitar o que lhe serÆ oferecido Ø porque
acontecerÆ
alguma coisa boa - falou Lvia.
- Vamos para o restaurante tomar cafØ, nªo quero me atrasar.
Logo aps o almoo, o senhor Ceclio aproximou -se dela e
falou:
- O senhor Gustavo estÆ lhe esperando no banco, embaixo da grande Ærvore. VÆ
logo!
Ana estava suja, com roupas velhas, cabelos desarrumados. Pensou em se arrumar
um
pouquinho, mas nªo o fez, foi rapidamente para o local indicado. A grande Ærvore
ficava do
la do direito do posto e um banco de cimento a rodeava. Viu o senhor Gustavo
sentado. Ele
se levantou educadamente quando ela chegou.
- Boa tarde, Ana! Como estÆ?
Sentaram -se, ela torcia o avental, respondeu timidamente:
- Bem, e o senhor?
- Nªo me chame de senhor, mas sim de Gustavo. Ana, vou direto ao assunto. Tenho
uma
chÆcara nªo muito longe daqui,
perto da cidade, e quero convidÆ -la para ir morar lÆ.
Fez uma pausa, olharam -se por um instante, ele continuou:
- Sou casado, tenho trŒs filhos moos. Minha e sposa e eu moramos na mesma casa,
mas
estamos separados hÆ muito tempo. Nªo nos damos bem, sempre tive aventuras.
Gostei de
vocŒ, por isso a estou convidando. Poderemos tentar; se der certo,
seremos
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felizes. Desculpe -me, mas sou objetivo, nªo Ø minha intenªo ofendŒ -la nem
enganÆ-la.
- Tenho duas filhas - falou ela baixinho.
- Sei disso, desculpe -me novamente, mas procurei saber de vocŒ. Se aceitar,
poderÆ levar
suas filhas, nªo Ø minha intenªo separÆ -las. Creio que irªo gostar da chÆcara, ela
Ø grand e,
boni ta, a casa Ø espaosa e suas filhas nªo necessitam ficar presas, nªo hÆ perigo
por lÆ.
Entªo, o que resolve?
Ana abaixou a cabea e procurou coordenar os pensamentos.
"Aceite!"
Foi um sussurro, sentiu como se alguØm colocasse a mªo no seu ombro e l he falasse
no
ouvido. Virou -se, nªo viu nada. Olhou para Gustavo, ele estava calmo, tambØm
abaixou a
cabea esperando a resposta. Lembrou -se do que Vanessa lhe falara de manhª.
Aninha lhe
pedira para aceitar. Suspirou e pensou:
"Amante novamente!"
Com seu suspiro, Gustavo a olhou e sorriu, ela o analisou:
Cabelos escuros, mas jÆ grisalhos, sorriso franco, dentes perfei tos e os olhos
castanhos,
olhar sincero e bondoso. Se realmente podemos conhecer alguØm pelo olhar,
Gustavo
deveria ser sin cero, bom e leal . Nªo o deixou esperando pela resposta. Seria difcil
ir para
um lugar pior do que era ali e, se Aninha achava que ela deveria aceitar, o faria.
- Aceito, vou com vocŒ, s que... nªo queria que tivesse mÆ impressªo de mim.
- Compreendo -a - disse ele - vocŒ aceitou por nªo ter alterna tiva melhor. Mas nªo
se
arrependerÆ. VÆ agora atØ o seu quarto, arrume tudo o que Ø de vocŒs, estarei
esperando -as
aqui. Vou acer tar sua demissªo com o proprietÆrio.
Ela se levantou e rumou para o quarto. Ainda estava indecisa ,
teve medo. Lvia abriu a porta assustada.
- Aconteceu alguma coisa, mªe?
- Sim, Vanessa tinha razªo quando me avisou que eu receberia uma proposta e,
como
recomendou, aceitei: vamos pegar
o que Ø nosso para irmos embora daqui.
- Para onde? - Quis saber L via.
- Para uma chÆcara. Dias atrÆs conheci um homem, Gustavo, e ele hoje veio nos
convidar
para morar na chÆcara de sua pro priedade. Me ajudem, vamos trocar de roupa,
colocar as
sujas e as molhadas num saco e as limpas no outro. Vamos logo que ele estÆ nos
esperando.
- Mamªe, a senhora falou a ele que nªo Ø nossa mªe de verdade? - Indagou Lvia.
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- Claro que nªo! Nunca diremos, prometemos! Ele sabe de vocŒs, nunca iria a um
lugar a
que nªo pudesse levÆ -las.
- IrÆ como empregada? - Perguntou Vanessa, qu e atØ aque le momento estava
observando calada.
Ana preferiu dizer a verdade. As meninas, embora com pou ca idade, jÆ haviam
visto
muitos acontecimentos ali, naqueles quartos ao lado, que serviam de encontro para
muitos
casais. Ela teve de explicar a elas muitas coisas, principalmente para se defender.

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