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Adriana Santos
Adriana Santos
Setembro de 2006
ADRIANA DOS SANTOS TEIXEIRA
Setembro de 2006
ADRIANA DOS SANTOS TEIXEIRA
SOLITÁRIA NA LITERATURA
Banca Examinadora:
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Profa Dra Magda Velloso Fernandes de Tolentino – UFSJ
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Profª Drª Maria Conceição Monteiro – UERJ
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Profª Drª Suely da Fonseca Quintana – UFSJ
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Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção
(Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras)
20 de Setembro de 2006
Aos meus pais, Eli Antônio Teixeira e
Heloísa Maria dos Santos Teixeira.
AGRADECIMENTOS
Aos colegas, Alex Mourão, Ana Lúcia Resende, Carla Campos, Elisângela
Baptista, Lílian Moreira, Maria Tereza Lima e Renata Toledo, que compartilharam do
entusiasmo e angústias desta pesquisa.
This work examines some aspects of the life and work of Murilo Rubião, a
short story writer from Minas Gerais, focusing mainly in the years he lived in Madrid,
from 1956 to 1960. This study was triggered by some comments of the writer, in an
interview, as to how much he had felt an exile at that time. Setting off with the idea
that Murilo Rubião’s exile is a characteristic not only concerning his geographic
absence, the work deals on different aspects of his sense of exile, which reflects on
his written production. The work falls back on the thoughts of Edward Said, Arthur
Schopenhauer, Octavio Paz and Julia Kristeva as far as the questions of exile are
concerned. The short story studied in depth is “Teleco, o coelhinho”, which was
written during the time highlighted here. The mentioned period is studied in detail
through an examination of the letters Rubião received in those years, available in the
UFMG archive.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ……………………………………………………………………… 10
1. MURILO RUBIÃO: “O SOLITÁRIO DA SERRA” …………….………………. 15
2. MURILO RUBIÃO EM MADRID ................................................................... 33
2.1. Entre a alegria e a saudade...............................………………...........…… 41
2.2. Saudades do Brasil e da família ...................................... ........................ 50
2.3. Cobrança Literária ................……………………….................................... 57
2.4. De volta ao Brasil …………………………………....................................... 61
3. A LITERATURA SOLITÁRIA DE MURILO RUBIÃO ………………………... 66
CONSIDERAÇÕES FINAIS ………………………………………………………. 98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS …………………………………...………. 109
BIBLIOGRAFIAS .............................................................................................. 113
Introdução
1
Realismo mágico, realismo fantástico e narrativa fantástica são termos correlatos.
Conforme Renard Perez, Rubião em sua mineirice sofre a ausência de seu ambiente
durante a elaboração deste conto. Dessa forma, investigo a possível sensação de
exílio que o contista nutria na distância em que se encontrava de sua terra e tento
perceber se esse distanciamento transparece na tessitura do conto.
Faço uma leitura mais aprofundada de um único conto pela importância que
este tem, por ter sido o único conto que Murilo Rubião escreveu durante sua estada
em Madrid. Teleco é um coelho que não consegue se adaptar no mundo dos
humanos. Ele, como tantos outros personagens de Murilo, está condenado a viver
solitariamente. Aqui, abordo o estudo de Julia Kristeva, em seu texto “Tocata e fuga
para o estrangeiro”, do livro Estrangeiros para nós mesmos. E com relação ao que
diz respeito às identidades diferentes que o sujeito assume em diferentes momentos,
abordo o livro A identidade cultural na pós-modernidade, do crítico Stuart Hall.
Sua carreira literária deu um salto quando fundou, em 1939, junto com um
pequeno grupo, uma Revista tendo como título Tentativa. Murilo era um dos nove
redatores da Revista. Esta, de publicação mensal, segundo Perez, chega a contar
doze números.
Ao procurar no acervo do contista mineiro os números da revista citados por
Perez, verifiquei que havia apenas sete números desta, ou seja, conforme sua
informação de que a Revista chegou a doze números, averigüei que estão faltando,
na estante de Murilo Rubião, o número um e do número nove ao número doze.
Na estante, as revistas estão todas encadernadas com capa dura,
organizadas em dois volumes. No primeiro volume estão reunidos os números dois,
três, quatro e cinco e o no outro volume constam os números seis, sete e oito.
Como observa o professor Reinaldo Marques, em seu texto “O arquivamento do
escritor”, no livro Arquivos Literários, Murilo Rubião é talvez o escritor mais atacado
pela prática arquivística, marcada pelo rigor na ordenação e classificação dos
materiais, pelo cuidado com sua conservação e preservação, como indica seu hábito
de colocar capa dura em todos os livros (MARQUES, 2003, p. 148).
É curioso, portanto, notar que Murilo Rubião, homem preocupado com o
arquivamento de sua trajetória de vida, não só jornalística como também literária,
não tem na sua coleção o número um da Revista Tentativa. Descuido ou não do
escritor, este número ficou perdido. Talvez tivesse emprestado a alguém e não lhe
tivesse devolvido.
Em todos os números da Revista Tentativa aos quais tive acesso, pude notar
que constavam variados tipos de textos, como: poemas, contos, artigos, crônicas,
comentário internacional etc.
Considero, para a presente pesquisa, a Revista número oito a mais
importante, uma vez que nesta encontram-se dois textos de Murilo Rubião e ainda
um comunicado introdutório destinado aos leitores, com o intuito de esclarecer o fim
das edições posteriores da Tentativa.
A maioria dos leitores de Murilo não conhece outro tipo de texto que não
sejam os contos, uma vez que apenas estes foram publicados em livros. O primeiro
texto de Murilo Rubião, publicado no último número da Revista Tentativa, é um
poema intitulado “Ausência”. Este poema faz-me um convite para ser abordado logo
no seu título. Ausência de quê o escritor escreve? Para apreciar outro tipo de texto
publicado pelo mineiro, abro parênteses para fazer uma leitura deste poema. Neste,
o eu-lírico fala da ausência sentida da pessoa amada.
Aos vinte e três anos, Murilo Rubião publica esse poema, composto por vinte
e dois versos, carregado de lembranças, cheio de saudade de um tempo que não
volta mais, a não ser por algumas lembranças revividas (mas nunca como realmente
acontecera) pela sua memória. O eu-lírico inicia com um questionamento: Para que
fugir si me acompanhará sempre a minha sombra? E, logo em seguida, um outro
verso responde a esta questão: si nunca encontrarei na solidão dos caminhos o
silêncio!
A pessoa amada ausente é resgatada em suas lembranças em qualquer lugar
por onde passa. Nem na solidão encontrará sossego, pois terá a companhia da
lembrança. Ele sabe que não adianta fugir, pois não encontrará o silêncio. O poeta
descreve as ações de carícias e dos beijos, comparando as mãos que o acariciavam
aos lírios brancos, e os lábios que não cansava de beijar ao crepúsculo sanguíneo
das tardes exangues:
Para o poeta, tudo lhe faz lembrar a sua amada: Em tudo que eu pensar, em
tudo que pousar meus olhos, / verei projetado, como uma sombra enorme, / a cobrir
o meu corpo cansado de caminhar/ um rosto de mulher, o rosto de minha amada!
Sentindo-se torturado por alcançar a mulher amada apenas em seus sonhos
impossíveis, ele irá procurá-la nos astros, na tranqüilidade dos campos e buscará
com os braços fatigados a sua visão fugidia...
Convicto de que não a encontrará mais, uma vez que a amada é só uma
lembrança, nos últimos versos, o poeta mostra a sua dor pela procura da luz
perdida:
O poeta se sente angustiado por procurar a luz que se perdeu. E esta procura
provoca dor ao vir à memória. Nesse poema já vislumbro um eu lírico solitário em
busca de uma amada, se não em pessoa, em lembrança.
O segundo texto que Murilo Rubião publica neste mesmo número da Revista
Tentativa tem como título “Mário de Andrade, Minas e os mineiros”, onde Murilo
homenageia o paulista Mário de Andrade quando este esteve em Minas. Logo nas
primeiras páginas deste número também se encontra um comunicado aos leitores,
sobre o encerramento das edições da Revista Tentativa. Abaixo, na íntegra, o
comunicado destinado aos leitores e amigos com o título “Despedida”, que trata de
esclarecer o encerramento das publicações:
3
RUBIÃO, Murilo. Revista Tentativa, Belo Horizonte, nº 8, nov. de 1939, p. 30.
Desejamos agora comunicar aos nossos leitores, que por
circunstâncias imperiosas e imprevistas, impossíveis de debelar, nos
vimos forçados a sustar nossa publicação.
Com o presente número damos por encerrado o esforço que
há meses vínhamos realizando á custa de grandes e reais sacrifícios.
Despedindo-nos, fazemo-lo com conciência tranquila de quem
cumpriu fielmente com a sua missão, e a nós basta esta certeza para
premiar todo o nosso trabalho.
Aos nossos assinantes, que tão generosamente contribuíram
com o seu apôio para o êxito do nosso empreendimento,
devolveremos sem nenhum ônus o montante relativo aos exemplares
que não lhes serão entregues.
A todos, enfim, que com o seu incentivo e o seu aplauso nos
permitiram realizar o que realizamos, o nosso profundo
reconhecimento e a nossa imorredoura gratidão4
4
Revista Tentativa, Belo Horizonte, nº 8, nov. de 1939, p. 3.
Em 1939, Murilo começa a trabalhar como repórter no jornal Folha de Minas.
Nesta mesma época, não se deixando vencer pela timidez, inicia correspondência
com o escritor Mário de Andrade. Durante cinco anos, a relação de amizade entre os
dois escritores, conforme afirma Souza, “de semelhante estirpe e de evidente
generosidade intelectual” (SOUZA apud MORAES, 1995, p. XV) vai sendo acrescida
de forma lenta, mas bastante fiel.
Sendo assim, Mário aponta perspectivas para a literatura precursora de Murilo
Rubião, embora encontrando muitas dificuldades acerca do seu experimentalismo.
Como diz Moraes: Se por um lado desestimula, não gostando e dizendo-se obtuso
para entender os contos de Murilo, por outro lado, dá asas ao vôo desconhecido, se
percebe nesse alçar a realização de uma personalidade ´fatalizada` (MORAES,
1995, p. XLVIII).
Na primeira carta (1939) que Murilo envia a Mário, é perceptível o gesto de
reverência ao grande escritor, em oposição à sua inexperiência, onde ele diz: Nesse
grifo o senhor não encontrará o elogio que merece. Quem o fez carece de cultura e
inteligência para dizer do seu enorme valor (RUBIÃO, apud MORAES, 1995, p. 3).
Em 1940, Murilo Rubião publica um de seus contos intitulado Mensagem, no
Jornal Literário, em Belo Horizonte, mas o seu livro de estréia fica por volta de
quatro anos percorrendo as editoras do Rio de Janeiro e Porto Alegre, sem
perspectiva de publicação.
Nessas idas e vindas dos originais deste primeiro livro às editoras, Murilo
fazia várias modificações em sua obra: o primeiro livro que fôra encaminhado para
publicação a princípio teria como título Elvira e outros mistérios; logo depois,
passara a se chamar O dono do arco-íris e, mais tarde, O Ex-Mágico da Taberna
Minhota que, a pedido de Marques Rebelo, ficara, finalmente, simplificado em O
Ex-Mágico.
Seis anos depois, Murilo Rubião publica seu segundo livro, em edição
limitada, com o título A estrela vermelha. E em 1965, publica Os dragões e outros
contos, seguindo ainda a mesma linha do primeiro livro, com cuidadoso trabalho.
Entretanto, dos vinte contos reunidos nessa obra, apenas quatro são inéditos, pois
Murilo, valorizando suas histórias, passa mais tempo reescrevendo-as
constantemente, com uma única preocupação: a perfeição formal. Assim, aproveita
doze dos quinze contos da obra O Ex-Mágico e quatro de A estrela vermelha.
Em 1966, Murilo Rubião funda e organiza o Suplemento Literário do jornal O
Estado de Minas Gerais, tornando-se um dos órgãos de imprensa cultural mais
respeitado do país. Torna-se o primeiro editor do Suplemento.
Em 1974, Murilo publica O pirotécnico Zacarias, que contém uma seleção de
oito contos dos seus livros anteriores. E ao final desse mesmo ano, ele publica uma
coletânea de contos no livro O convidado.
Sua obra é mais bem divulgada a partir de 1975, quando passa a ser
estudada nos currículos escolares do Ensino Médio e nas faculdades, sendo objeto
de trabalho de professores. Daí em diante, ela é lançada no exterior: Estados Unidos
(1978) e Alemanha (1981). Ainda, em 1978, Murilo Rubião publica no Brasil uma
nova antologia com o título A casa do girassol vermelho e, em 1990, O homem do
boné cinzento e outras histórias.
Portanto, é a partir da publicação de O Ex-Mágico que Murilo inaugura no Brasil a corrente do
realismo mágico. Schwartz salienta o traço mais relevante do contista Murilo Rubião buscando as
palavras de Benedito Nunes:
A obra de Murilo Rubião é relativamente curta, pois conta com trinta e três
contos publicados. Em seus contos encontram-se situações dramáticas, em um
contexto estranho. Segundo Fábio Lucas, misturam-se o arbitrário das situações
com o realismo óptico das personagens principais ou do narrador (LUCAS, 1987, p.
11).
Talvez por isso a publicação de seu primeiro livro não tenha sido tarefa fácil pois, conforme
afirma Perez, cerca de quatro anos rodaram os originais pelas editoras – do Rio, de Porto Alegre.
Ninguém se aventurava a publicar aquelas histórias meio estapafúrdias que fugiam de tudo o que se
considerava literatura (PEREZ, 1987, p. 2). Sua obra, será examinada, mais demoradamente no
capítulo três.
Como já foi dito, Murilo Rubião chegou a Belo Horizonte, ainda menino, na
década de 20. Circulava pela região do Malleta que, como observa Márcio Lima, era
assim chamada, por causa do grande edifício de salas e apartamentos que domina a
paisagem, à direita. Mas já naquela época poderia bem ter esta denominação,
porque o Grande Hotel [...] pertencia à família Malleta (LIMA, 1989, p. 24).
Cresceu nesta cidade, morando com seus pais até os 28 anos. Morou, mais
tarde, no Rio de Janeiro, onde dividiu um apartamento com o escritor Otto Lara
Resende. A experiência foi curta. Retornou a Minas e passou a morar sozinho.
Segundo Humberto Werneck, o escritor mineiro Murilo Rubião:
5
[CIRANO]. O calor embrutece o colunista. Folha de Minas, Belo Horizonte, 24 fev. 1953. Folha
corrida. 1 fl.
6
Os depoimentos colhidos nessa entrevista e nas entrevistas citadas a posteriori foram feitos por
Murilo Rubião na vida madura. O que ele declara é feito através da memória. Em seus anos mais
Rachel, ex-namorada de Murilo, numa carta escrita entre 1956 e 1957,
localizada na pasta “correspondências: escritores, suplementos e diversos”, salienta
bem o medo que o contista nutria de se apegar a alguém. Assim ela escreve:
produtivos ele não falava da solidão explicitamente, somente através de seus personagens. Agora,
ele deixa explícito nesta entrevista e em muitas outras que a solidão é algo necessário para ele.
os outros que ele era diferente deles. Isso só ele sabia. Ele não revelava esta
diferença para os outros meninos.
A solidão, para ele, seria uma defesa contra os chatos, isto é, contra aqueles
perto dos quais não se pode ficar, conforme frisa. Por isso a solidão deveria ser
preservada a qualquer custo. Murilo não via mal algum em querer estar só. O
escritor vê a solidão como algo bom, como algo rico. A solidão para Murilo soa como
liberdade pessoal da qual ele pode usufruir quando desejar. Estar só é um exercício
cotidiano ante a relação dele com o outro.
Outra característica forte do contista foi dita por ele próprio em seu auto-retrato, publicado no
Suplemento Literário do Minas Gerais. Neste, Murilo declara que herdou de seu pai, Eugênio Álvares
Rubião, a timidez e um certo ar cerimonioso (RUBIÃO apud PEREZ, 1987, p. 3), características que o
privavam da simpatia de numerosas pessoas. Algumas delas mulheres, o que é lamentável (Ibidem),
confessa o mineiro. Seu pai era um homem de boa cultura humanística, era filólogo e pertenceu à
Academia Mineira de Letras (Ibidem). Não deixando de fazer sua crítica, diz que seu pai escrevia com
rara elegância, apesar de gramático (Ibidem). Murilo Rubião reconhece assim que aquela
característica herdada do pai lhe trouxe aborrecimentos perante as pessoas.
Déa Januzzi, em seu artigo “O doce sabor do próprio convívio – cara-a-cara
com a solidão (2)”, dá continuidade a uma série do jornal Estado de Minas
discorrendo sobre a vida de pessoas que moram sozinhas na capital mineira. Dentre
cinco pessoas consultadas a respeito deste assunto, encontro a figura de Murilo
Rubião. O contista não se casou e não teve filhos. Neste artigo, Murilo fala o motivo
pelo qual jamais se casara, quer dizer, depois de alguns desenganos, certos
desencantos (JANUZZI, 1982, [s/p]) percebeu que não era possível se casar.
Contando um pouco da intimidade do escritor, Januzzi começa falando do
esconderijo de Murilo, isto é, da sua casa. Digo esconderijo, porque quando o
contista queria sossego, queria resguardar-se, principalmente para escrever seus
contos, ele se refugiava em sua casa.
Conforme Januzzi, Murilo usava dois apartamentos: no primeiro, localizado no
Edifício Malleta, número dois, ficavam seus livros, sua biblioteca. O segundo
apartamento também tinha toda a infra-estrutura, com telefone, móveis e tudo muito
bem arrumado; era neste que Murilo limpava as suas piteiras e escrevia quando
tinha vontade de escrever.
Houve um tempo em que Murilo tinha uma empregada que ficava o dia todo
em sua casa, conforme afirma Januzzi no artigo citado, porém ela não menciona
qual das casas. Sendo assim, ele se sentia obrigado a voltar para a casa, porque
ela tinha preparado o almoço. Sentindo-se obrigado a voltar, não quis mais almoçar
em casa. Dessa forma, a empregada passou a fazer o café da manhã e arrumar a
casa e logo em seguida ir embora. Assim, Murilo saía para encontrar os amigos,
conversar, tomar uma cerveja e dividir o almoço.
José Maria Cançado, em seu texto “A luz furtiva de Murilo Rubião” diz que na
casa do contista, além dele só uma pessoa: a empregada (CANÇADO, 1987, p. 10).
Esta é, no entanto, mais discreta do que o próprio Murilo. Só aparece quando é
absolutamente necessária. Murilo Rubião diz que não saberia viver com uma pessoa
que ficasse impondo a sua presença e ainda faz uma comparação de Clarissa (sua
empregada) com a Françoise de Proust, dizendo que aquela é o contrário desta, que
é falante e bisbilhoteira.
A receita de Murilo para viver só é não evitar a solidão. Segundo Januzzi:
Murilo não evita a solidão, pelo contrário, ele busca a solidão, por isso está
em paz consigo mesmo. Entretanto, ele acha que aquele que só quer viver
solitariamente é uma pessoa que só pensa em si mesma ou que, até mesmo,
apresenta problemas de ordem psíquica.
Ainda neste artigo, Januzzi ressalta que Murilo nunca achou que a vida fosse
um presente, mas “uma imposição” e não sabe “se a solidão escolhida é a melhor
opção”, mas reconhece que “o pior é casar porque todo mundo casa” (JANUZZI,
1982, [s/p]).
Segundo a repórter, quando Murilo não queria ficar só, tornava-se um notável
anfitrião. Fazia da sua casa uma festa, reunindo as pessoas pelas quais ele tinha
maior estima. Ele se sentia recompensado por não ter filhos, por não ser pai, ao
deparar com tantos problemas de pais com filhos, ou pela dedicação ou pela
omissão. (JANUZZI, 1982, [s/p]).
Para finalizar a reportagem, Murilo revela o seu lado bem humorado para
tratar deste sentimento de solidão que tanto faz parte de sua vida. Talvez, com
intenção de burlar este sentimento, Murilo diz que morar sozinho foi escolha dele
próprio. Assim ele declara:
Com base nos depoimentos acima ressaltados, pude ver que muitos foram
os artigos e as entrevistas publicados sobre a vida de Murilo Rubião, principalmente
no que se refere à sua solidão, e todas estas publicações foram guardados em
recortes pelo escritor. Nestes artigos, a solidão, na maioria das vezes, foi o
argumento do contista para explicar a sua solterice. Ele, renunciando ao matrimônio,
se preparou para viver só, uma vez que precisava de tranqüilidade para fazer suas
leituras, se dedicar à literatura. Sua solidão foi recompensada, pois sem dividir a
casa com esposa e filhos, sentia-se mais livre e não tinha que se preocupar em
dividir suas preocupações. Não precisava se dedicar à família, apenas à literatura.
O “estar só” penso ser característica muito forte não só em sua vida como
também em sua literatura. Seus personagens são obrigados a viver solitariamente.
Esta característica será discutida no capítulo três.
No momento, é necessário perceber um período específico da vida do
mineiro. Murilo Rubião passou quatro anos fora do Brasil. E esta fase foi, segundo
Murilo, sua constatação do que é ser estrangeiro, como pode-se verificar no trecho
abaixo, retirado de uma entrevista, publicada no livro Literatura Comentada,
organizada pelo professor Jorge Schwartz, em 1982:
Murilo Rubião, por ser mineiro, como ele mesmo afirma, teve uma
experiência mais trágica. Talvez seja porque, conforme diz Alceu Amoroso Lima, em
seu texto intitulado Psicologia do mineiro:
O mineiro, ressalta Lima, não vai em busca de novas terras, pelo contrário,
ele se dedica cautelosamente ao seu próprio território. O mineiro não se adapta
facilmente ao progresso, a novos regimes, a novas instituições, a novidades de
qualquer espécie (Op. cit., p. 17). E Murilo, como bom mineiro, permanece, na maior
parte de sua vida, em território pátrio.
Como já foi dito, Murilo sempre preferiu ficar em Minas. No seu canto, no alto
da Serra, Murilo cultivava a solidão. Ele, preferindo uma vida solitária, se conservava
à distância das pessoas quando queria. Entretanto, Murilo não vivia isolado das
pessoas da sociedade, pois sempre participou ativamente, por exemplo, de
atividades jurídicas, jornalísticas e literárias.
Sua preferência pelo isolamento não foi algo bom somente quando ele morou
fora do Brasil, pois ele chegou a sofrer como uma pessoa exilada7. Ele não sabia o
que era ser estrangeiro8. O termo “exilado” será abordado neste estudo conforme o
pensamento de Edward Said, que diz este termo trazer consigo um toque de solidão
e espiritualidade.
Porém, desde criança, Murilo sentia-se diferente, pois necessitava da solidão.
E esta foi cultivada pela vida toda conforme o próprio Murilo declarou em algumas
entrevistas.
Mas, sobre sua temporada fora do Brasil, Murilo não demonstrou satisfação
em sentir-se estranho, ou seja, não pareceu confortável em sentir-se diferente. Pelo
contrário, sofreu o exílio, no sentido figurado da palavra, ou seja, sofreu a solidão
fora do seu país. Portanto, a partir de seu depoimento, na entrevista supracitada,
fixam-se as dúvidas: O contista, neste período, não escolhera a solidão? Sentiu a
solidão forçada? Foi obrigado a ficar onde não queria ou pelo menos por um tempo
que não suportara? Sentiu-se preso? Sofreu, verdadeiramente, o problema do exílio,
conforme afirmou anos mais tarde?
7
Lembrando que a acepção do vocábulo “exílio”, neste trabalho, será abordado no sentido de
“isolamento do convívio social”; “solidão”.
8
Quando Murilo Rubião diz que não sabia o que era “ser estrangeiro”, entendo que ele não sabia se
sentir “estranho” e “solitário”.
Capítulo 2: Murilo Rubião em Madrid
Em 1956 começa uma nova fase na vida de Murilo Rubião. Ele se muda para
Madrid e fica por lá quatro anos. Mesmo tendo muito que fazer naquela cidade, no
que se refere ao serviço prestado ao Escritório de Propaganda e Expansão
Comercial do Brasil em Madrid, e também tendo contato com o grande número de
brasileiros que apareciam por lá, como, por exemplo, o amigo João Cabral de Melo
Neto que, morando em Barcelona, na mesma época em que Murilo estava em
Madrid, ia aos finais de semana a esta cidade ou então recebia Murilo em sua casa9,
ele sentiu desconforto em terra estrangeira. Murilo se sentiu um estrangeiro.
Assim sendo, este capítulo tem como propósito perceber aquele momento,
buscando subsídios nas reflexões sobre o exílio em Edward Said, sobre o
sentimento de solidão no alemão Schopenhauer e no mexicano Otavio Paz.
Segundo Edward Said, em Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, toda
pessoa que é impedida de voltar para casa é um exilado. Todavia, o autor distingue
exilados, refugiados, expatriados e emigrados:
9
Esta informação pode ser encontrada no Suplemento Dominical do Estado de Minas, Belo
Horizonte, 3 de nov. 1963. p. 8.
O exílio tem origem na velha prática do banimento. Uma vez
banido, o exilado leva uma vida anômala e infeliz, com o estigma de
ser um forasteiro. Por outro lado, os refugiados são uma criação do
Estado do século XX. A palavra “refugiado” tornou-se política: ela
sugere grandes rebanhos de gente inocente e desnorteada que
precisa de ajuda internacional urgente, ao passo que o termo
“exilado”, creio eu, traz consigo um toque de solidão e
espiritualidade.
Os expatriados moram voluntariamente em outro país,
geralmente por motivos pessoais ou sociais. Hemingway e Fitzgerald
não foram obrigados a viver na França. Eles podem sentir a mesma
solidão e alienação do exilado, mas não sofrem com suas rígidas
interdições. Os emigrados gozam de uma situação ambígua. Do
ponto de vista técnico, trata-se de alguém que emigra para um outro
país. Claro, há sempre uma possibilidade de escolha, quando se
trata de emigrar. Funcionários coloniais, missionários, assessores
técnicos, mercenários e conselheiros militares podem, em certo
sentido, viver em exílio, mas não foram banidos. Os colonos brancos
na África, em partes da Ásia e na Austrália podem ter sido
inicialmente exilados, mas, em sua qualidade de pioneiros e
construtores de uma nação, perderam o rótulo de “exilado” (SAID,
2003, p. 54).
Vale ressaltar que, assim como Hemingway e Fitzgerald não foram obrigados
a morar na França, Murilo Rubião não foi obrigado a morar na Espanha. E mesmo
não sofrendo proibições na prática de um ato ou atividade imposta por uma
autoridade, Murilo Rubião pode ter sentido a mesma solidão de um exilado. Ao sair
de sua concha, Murilo sentiu-se estrangeiro.
A vida de um exilado, como afirma Said, é consumida em equilibrar a perda
desconcertante, criando um novo mundo para administrar. Assim, para Said não é
surpresa nenhuma que muitos exilados sejam romancistas, jogadores de xadrez,
ativistas políticos e intelectuais, porque essas atividades exigem um investimento
mínimo em objetos e dão um grande valor à mobilidade e à perícia. O novo mundo
do exilado é logicamente artificial e sua irrealidade se parece com a ficção (Ibidem).
Para finalizar, Said fala do exílio não como escolha e sim como se fosse
proveniente do nosso nascimento ou ocorrido por acaso:
Para Schopenhauer, levar uma vida social nos acarreta aborrecimentos. Para
ele, a sociabilidade é um perigo, uma vez que na maioria das vezes temos contato
com pessoas de moral falsa e intelecto obtuso ou errado. Ao passo que ser uma
pessoa não-sociável é ter grandes qualidades. O homem não-sociável pode
dispensar estes contatos e sentir-se alegre por poder ser assim. Desse modo, o
homem terá desvelado a riqueza de sua existência. Quer dizer, ser feliz por estar só.
Isto é uma vantagem. O homem deve optar por uma vida calma, sem tumultos, para
não sofrer. Deve buscar a paz na solidão.
O filósofo afirma que a tendência para a não sociabilidade torna-se mais
intensa conforme a idade do homem vai aumentando:
Ele acredita que quanto mais alguém conviver consigo mesmo, menos
precisará do mundo exterior e das outras pessoas. O homem nobre prefere a solidão
a conviver socialmente. Por isso, Schopenhauer concluiu que a inclinação para o
isolamento e a solidão é um sentimento aristocrático. As pessoas que formam
grupos, ou melhor, bandos, como o filósofo alemão salienta, são pessoas comuns,
medíocres, vulgares etc., isto é, não são pessoas nobres.
De forma diferente da perspectiva filosófica adotada por Schopenhauer,
Octavio Paz também aborda o problema da solidão. O escritor mexicano, Octavio
Paz, em seu texto “A dialética da solidão”, do livro O labirinto da solidão e post-
scriptum afirma que a solidão, o sentir-se e saber-se só, desligado do mundo e
alheio a si mesmo, separado de si (PAZ, 1984, p. 175) não é característica que se
restringe apenas ao mexicano, pois todos os homens sentem-se sozinhos pelo
menos em alguma ocasião da vida.
Paz declara que todos os homens estão sós. Nascer e morrer são práticas de
solidão. Nascemos e morremos sozinhos. Não escolhemos a solidão. Ela nos
acontece.
É importante frisar que, segundo Paz, o seu livro não é um ensaio a respeito
da filosofia do mexicano ou a busca de seu ser, também não é ontologia e nem
psicologia. Todavia, ele próprio reconhece que não conseguiu fugir totalmente das
armadilhas do humanismo abstrato quanto às ilusões de uma filosofia do mexicano
(Op. cit., p.196).
Ele salienta que o único ser capaz de se sentir só é o homem e este é o único
também que está sempre em busca do outro. De acordo com Paz, o homem é
nostalgia e busca de comunhão (Op. cit., p.175). Sendo assim, quando se sente a si
mesmo, sente-se como carência do outro, como solidão (Ibidem).
Paz vai desde o nascimento de uma criança até o crescimento da mesma
para exemplificar que quando nascemos há o rompimento dos laços de união ao
ventre materno. Assim, a sensação de separação, de ruptura, de desamparo é
transformada em sentimento de solidão, uma vez que nos sentimos sozinhos desde
o rompimento do cordão umbilical. A solidão é a condição de nossa vida, isto é, para
acontecer o nascimento é preciso quebrar o elo que nos unia ao ventre de nossa
mãe. Desse modo:
10
Este trecho foi extraído da carta de Ana Assunção Costa, escrita em Belo Horizonte, em 17. 07.
1956. Esta está localizada na pasta “Correspondências Madrid”. Vale ressaltar que, quando aparecer
pela primeira vez o nome do (a) remetente da correspondência citada, marcarei em seguida onde
esta está localizada no arquivo do escritor Murilo Rubião. É importante esclarecer que mantive a
ortografia original de todas as cartas citadas.
“Correspondências com escritores, suplemento e diversos (1937 – 1966)”,
“Correspondências com amigos e conhecidos (12.03.46 a 12.02.60)”, ”
Correspondências com Vanessa Neto (1959)”, “Correspondências com Mário de
Andrade, Marques Rebelo, Otto [Lara Resende], Jair [Rebelo Horta] e Paulo Mendes
Campos (1943 - 1959)” etc.
Como se pode ver, nessas pastas há correspondências datadas do período
em que Murilo Rubião esteve na Espanha, isto é, não apenas nas pastas sob o título
de “Correspondências Madrid” encontrei tais missivas. Dessa forma, procurei
investigá-las.
Nas pastas intituladas “correspondências”, encontrei um total de 515
documentos que datam de 1956 a 1960. Esses documentos constavam de 496
cartas, 14 telegramas, 4 cartões postais e 1 programa de um concerto.
É importante frisar que, para este estudo, escolhi trabalhar apenas com as
cartas, uma vez que há um grande número delas e também porque nas cartas há
maior desenvolvimento dos assuntos tratados.
Ao fazer a leitura de todas as cartas, antes de tudo percebi que Murilo
Rubião, durante todo o período que passou em Madrid, recebeu muitos elogios, no
que diz respeito ao seu empenho, sua gentileza para com os que o procuravam, sua
acolhida generosa e simpática etc. Com isso pude conhecer e apreciar o perfil de um
homem atencioso, que se comportava de maneira cavalheiresca e que era bastante
respeitado por seus méritos e qualidades.
Outra observação curiosa é a dos pedidos que lhe eram feitos: alguns de
seus amigos lhe pediam dinheiro emprestado, e muitas vezes não o reembolsavam
rapidamente; pediam-lhe empregos; vários amigos abusavam da paciência e boa
vontade fazendo-lhe encomendas: bebidas, livros, máquinas de costura, perfumes,
bonecas espanholas, lenços e até véu de noiva.
Notei também que os amigos de Murilo Rubião tinham pressa de receber
cartas desse mineiro. Reclamavam uns e outros, algumas vezes dizendo que
sabiam que Murilo não gostava de escrever cartas, mas que gostariam muito de
saber notícias dele. Outras vezes, diziam que as cartas de Murilo Rubião só tinham
um defeito: eram curtas demais, ou seja, quando escrevia, não se alongava muito,
deixando para traz muitas curiosidades que seus amigos tinham a seu respeito,
enquanto o contista estava longe de Minas, tais como: trabalho, namoradas, contos
novos etc.
Em junho de 1956, a remetente Maria Luiza Andrade, que assina como
Dadá11, desabafa: A notícia chegou de repente, como uma bomba: ‘Murilo seguiu
hoje para a Espanha’ (Dadá – junho de 1956 – Pasta: “Correspondências
femininas”). Esta é a carta que indica mais ou menos o momento em que Murilo
Rubião saiu do Brasil.
E numa carta não datada, mas que se encontra entre 23.7.56 e 28.7.56 no
arquivo de Murilo, Romulo Paes salienta: Minas está chorando a sua partida mas
também sorrindo em ter nas sangrentas arenas da capital de Castilha um bravo
muchacho aqui das montanhas (Rômulo Paes – julho de 1956 – Pasta
“Correspondências Madrid”).
Minas Gerais estava sempre presente nas correspondências dos amigos de
Murilo, que faziam questão de não deixá-lo esquecer. A remetente Lucy, em
novembro, diz: Vejo você todo rodeado de Minas mas creia que a distância diminui
as montanhas (Lucy – novembro de 1956 – Pasta: Correspondências: “Escritores,
Suplemento e diversos”).
Murilo já declarou algumas vezes gostar da solidão e por isso a cultivava.
Entretanto, o problema da metamorfose, isto é, a pluralidade do sujeito Murilo, é por
vezes observada nas correspondências passivas, uma vez que quando morou
quatro anos na Espanha mostrava-se triste, desanimado, reclamava a solidão com
alguns amigos enquanto com outros se mostrava alegre e realizado.
Como é possível para Murilo Rubião, mineiro que não se desgarrava de sua
terra, de sua tão querida Belo Horizonte, já nos primeiros meses que passava em
Madrid mostrar-se feliz e bem adaptado neste lugar? De fato, nem todo sentimento
é passível de ser revelado, mesmo para aquelas pessoas que alimentam uma
amizade. Isso pode acontecer porque, às vezes, queremos poupar os amigos de
lamentações e aborrecimentos, se bem que em outros momentos precisamos
desabafar a todo custo.
11
No acervo de Murilo Rubião encontrei um arquivo de fotografias, intitulado “Vanessa Neto (1945-
1972)”, localizado no arquivo 1, gaveta 1, pasta 7, no qual constam algumas fotografias da remetente
Dadá. Nesta pasta encontrei o seu nome completo: Maria Luiza Andrade.
2.1. Entre a alegria e a saudade
Um outro ponto muito importante foi tocado por outro amigo de Murilo: a
ansiedade do mineiro em rever seus amigos. Esta carta, que está assinada por Cid
[Rebelo Horta], revela uma observação feita pelo mesmo a respeito dos serviços
prestados por Murilo ao Escritório Comercial. Cid, assim explica o motivo pelo qual
Murilo demonstra um espírito empreendedor neste Escritório:
No mesmo mês da carta acima, mas quase três semanas antes, Sérvulo
chamava a atenção de seu amigo Murilo quanto às saudades reclamadas por ele.
Sérvulo tenta abrir os olhos do outro para as belas mulheres que existem naquele
país, como se fosse um remédio para curar as suas saudades do Brasil. Seria uma
maneira de se distrair, para não ficar pensando no que está tão longe dele. Assim o
amigo de Murilo inicia a correspondência:
Em 1957, localizei apenas uma carta que fazia referência à saudade de Murilo
Rubião. Nesta, o escritor estava passando férias no Brasil, depois de ter ficado um
ano no exterior: Contava ver-lhe antes de partir, mas V. continua – e faz muito bem –
matando as saudades da sua B.H. – 23.3.57. O remetente desta carta não foi
identificado, mas pela organização de Murilo esta se encontra na pasta
“Correspondências Madrid”.
É importante frisar que, conforme afirma José Maria Cançado, Murilo era
avesso a confidências. Talvez por isso, não expressava exatamente o que sentia. No
entanto, em algumas cartas pude perceber um Murilo mais confidente e deixando
sua fragilidade falar mais alto, uma vez que escreveu a uma amiga dizendo que
estava abandonado pelos amigos.
Numa carta escrita por Maria Helena [Toledo], (sem data, entretanto,
confiando na organização do contista, esta carta deve ter sido escrita entre o final de
1958 e o começo de 1959) esta se mostra feliz com a animação e alegria de Murilo
demonstradas por ele na carta que foi destinada a ela, mas também chama a
atenção para as queixas do mineiro:
Você está inteiramente enganado, Murilo, ao pensar que está
sendo abandonado pelos amigos. É injustiça, pois todo mundo
pergunta, com carinho, por você e se interessa muito. Quando você
voltar vai ver que estão todos aqui, como antes. É lógico que as
pessoas mudam. Mas amizade verdadeira fica. Você sabe. (Maria
Helena – 1958/1959 – Pasta: “Correspondências femininas”).
Com as palavras da amiga, fica claro que Murilo de certa forma mendiga
afeto, como todo bom mineiro. Ele se faz de vítima para ouvir o que deseja. No
entanto, é interessante ressaltar que a partir da carta citada acima pude notar que a
felicidade que Murilo nutria pela amada Madrid se alternava com o sentimento de
abandono, angústias, tédio e reclamações do escritor. Como se vê, a mágoa do
escritor aparece vez ou outra, instaurada no abandono e indiferença dos amigos
para com ele.
Numa outra carta muito interessante, da mesma Maria Helena, provavelmente
foi escrita antes daquela, a remetente sente através da carta o sofrimento do amigo
e se preocupa com ele. Fazendo um diagnóstico, ela afirma a natureza da alteração
dos sentimentos de ambos, isto é, ela pensa que a razão de tal alteração seja
originada pelo fato de que tanto ela quanto ele são pessoas sensíveis. Maria Helena,
portanto, sublinha esse lado sensível do escritor e o compreende por também ser
assim:
Já o amigo Wilson alerta Murilo para o lado forte que precisam ter para não
deixar a angústia perturbá-los. Wilson, compreendendo a angústia sentida por
Murilo, uma vez que também já passara por experiência de se encontrar sozinho
num quarto de hotel, lembra ao amigo que eles são homens acostumados a esse
tipo de situação, porém é categórico ao exortar a lutar contra o sentimento:
Melhor que ninguém, você pode compreender bem o que essa
angústia por nos darmos conta da solidão em terras estrangeiras,
sabe, por isso, o que sinto agora quando me encontro só, no quarto
do hotel. Ainda bem que somos homens afeitos a essas situações
que não podem perdurar e nem transtornar nosso espírito. (Wilson –
5.12.1958 – Pasta: “Correspondências Madrid”).
12
Nesta carta não há a assinatura completa do remetente Paulo, portanto pelo desenrolar da carta
acredito que este Paulo seja o Paulo Eugênio Rubião, irmão do escritor.
correspondência que seu amigo Sérvulo envia-lhe dizendo que ficou muito feliz ao
receber um cartão de Murilo. Ele diz: Seu cartão causou grande alegria. Pensava
até que as delícias de Madrid haviam feito Você esquecer o provinciano que tanto
lhe estima e venera. (Sérvulo – 17.07.1956).
Provavelmente, Murilo estava encantado com as novidades que o cercavam
no momento, uma vez que ele tinha acabado de chegar em Madrid. Uma cidade
estranha, em um país estranho, trabalhando com pessoas ainda estranhas, mas
ainda era tudo isso novidade.
O amigo João Pinheiro [Neto], em carta não datada mas que, pela forma
ordenada das cartas colocadas por Murilo, se encontra no ano de 1956, diz saber
notícias de Murilo Rubião através do Sérvulo de que tudo vai bem ai por essas
Espanhas adoraveis, e que o amigo já imprimiu às coisas da terra, o insuperavel
ritmo rubiánico (João Pinheiro [Neto] – 1956 – Pasta: “Correspondências Madrid”).
João Pinheiro acredita que o amigo já tenha se adaptado e por isso tudo anda bem.
A amiga Mônica confirma o sentimento que o contista apresenta na sua
chegada à Espanha: ficamos contentes ao saber q. você está encantado com
Madrid e habitantes. ótimo. (Mônica – 24.07.1956 – Pasta: “Correspondências
femininas”).
Em outra carta de seu amigo João Pinheiro Neto, este repete a expressão
usada anteriormente quando diz que o velho Rubião está com a vida [...] fidalga e
tranquila dentro do velho ritmo ‘rubiônico’. (João Pinheiro Neto – 03.09.1956). E
ainda, em outra carta, é perceptível esta mesma observação: Dr. Júlio, Alberto,
Martinha e Renato Gontijo me deram notícias da vida agradável que o sr. Leva.
Fiquei satisfeito. (Lomelino – 12.09.1956 – Pasta: “Correspondências Madrid”).
Murilo, além de ser bem tratado, exercia um bom cargo. Ele, por ser um funcionário
diplomático, tinha muitos privilégios e facilidades. Isso leva a crer que o escritor tinha
uma vida confortável, pois vivia como um aristocrata e longe de perturbações.
Paulo Meira Camacho Crespo deixa mais claro sua impressão pela carta
escrita por Murilo: Fiquei bastante contente ao saber, através de sua carta, que V. se
adaptou bem aí e está satisfeito com o cargo que exerce. (Paulo Meira Camacho
Crespo – 11.09.1956 – Pasta: “Correspondências Madrid”).
A adaptação de Murilo era fator fundamental para sua estada em Madrid.
Adaptação num país diferente e adaptação no novo cargo que começara a exercer.
Até aqui Murilo não demonstrava abatimento ou arrependimento de estar em terra
estrangeira e desempenhando um outro trabalho. Ele se mostrava cumpridor de
suas obrigações e assim não reclamava.
Durante um tempo, as cartas revelavam a felicidade de Murilo Rubião em solo
estrangeiro. As pessoas que se correspondiam com ele deixavam registradas as
suas observações por meio dos vestígios, anteriormente, deixados por Murilo numa
correspondência.
Em uma das “correspondências femininas”, em 1957, observei que a
remetente também se alegrava com o entusiasmo de Murilo: Que coisa boa a sua
carta! Fiquei mesmo alegre em sentir como você está feliz aí. Uma beleza o seu
entusiasmo por sua amada Madrid [...] Fale sempre muito de Madrid, Murilo, que o
seu entusiasmo faz bem à gente. (Maria Helena – 4.05.1957), em outra carta, dois
meses depois, Sérvulo diz que mostrou uma de suas cartas á d. Sarah e ela ficou
contente com a sua alegria ibérica. (Sérvulo – 2.07.1957).
Até aqui, pude notar que Murilo, mesmo se sentindo angustiado longe de sua
terra, não deixava transparecer para essas pessoas, que ele próprio deixou
registrado como pessoas amigas, as suas angústias, a sua solidão. Assim, é
interessante notar que Murilo se divide ou se multiplica em pelo menos dois, aos
olhos de seus correspondentes: Murilo angustiado, entediado e solitário e/ou Murilo
bem adaptado, feliz e por isso não solitário. De sua solidão só ele sabia. Ele não
demonstrava a sua solidão para todos. Os outros deveriam acreditar que ele não era
ou não estava se sentindo solitário.
Murilo Rubião, em 1957, quando esteve em Lisboa, certamente falou com
Maria Helena sobre a possibilidade de ele morar nesta cidade, pois Maria Helena,
mesmo contente com as notícias da permanência de Murilo em Lisboa, sente pesar,
uma vez que o mineiro, segundo ela, estava apaixonado pela cidade de Madrid:
Fiquei contentíssima com a notícia da sua permanência aí. Lisboa deve ser muito
agradável, com o ambiente literário formidável, etc., mas seria uma pena você deixar
Madrid, estando tão ‘in love’ com ela. (Maria Helena – [s.d] entre julho a agosto de
1957).
2.2. Saudades do Brasil e da família
Ainda no final da carta, Paulo salienta que se Murilo disser-lhe o motivo pelo
qual ele deve alegar para que o amigo possa passar uns dias no Brasil, ele
telefonará ao Sette. E lembra ao Murilo que se for alegado o motivo de saúde, este
poderá telefonar ao Dr. Falcão, solicitando a sua vinda.
Murilo Rubião se via subordinado ao problema de verbas, sempre esperando
a solicitação de uma ordem. Ele, se quisesse estar no Brasil, deveria arcar com
todos os custos. Um remetente, de assinatura não identificada, escreve na mesma
data da carta acima, sobre o pagamento não só da passagem de Murilo Rubião
como também de Maria Antonieta e Maria Eugênia:
[...] tenho uma bôa notícia para você: estive ontem na Livraria
Itatiaia, a fim de comunicar ao Edson Moreira que estive com o prof.
J. Carlos Lisboa, ao qual pedí para conversar com o José Renato
Santos Pereira do Instituto Nacional do livro, para que comprasse
500 volumes da 2ª edição do EX-MÁGICO. Disse-me o Edson que o
José Renato topou a parada, tendo mesmo falado com êle sobre o
assunto. Posso garantir-lhe que sairá, em breve, a segunda edição,
possivelmente até o fim do ano. Será o próximo lançamento da
Itatiaia. Quanto ao livro do Rio nada pude fazer ainda. Sei que OS
DRAGÕES deveria estar lançado antes de sua vinda e até hoje
nada. Peço instruções suas para provocar um pronunciamento do
Celso Cunha, do José Renato ou de qualquer outra pessoa (Célio –
11.11.1957).
Em novembro ainda o livro não havia saído. Sendo assim, Célio, em uma
carta de novembro de 1957, afirma que o Edson Moreira declarou-me que o “Ex-
Mágico” estava em marcha, mas não houve notícia ainda. Preciso de material para
fazer alguma propaganda para os jornais, inclusive foto sua (Célio – 25.11.1957).
Em 1957 o livro não foi publicado e seu amigo Célio declara em uma carta
sem data, mas que possivelmente fora escrita entre 1.02.1958 a 6.02.1958, que
Edson Moreira espera publicar a 2ª edição do livro “O Ex-Mágico” até meados deste
ano. Informa ainda que, na edição de um livro lançado naquela data já constava a
propaganda do livro de Murilo e acrescenta que soube que o Celso Cunha está lhe
preparando uma surpresa com relação à edição do livro Os Dragões.
Em 1958, um amigo, parecendo cansado de tanto esperar pelos inéditos de
Murilo e nenhuma resposta obter, chega a exigir um livro; ele diz ao contista da
obrigação que ele tem de escrever por ser um escritor. Sérgio compara a falta que
sente de uma produção de Murilo com uma terra seca:
Outro amigo pede para que o contista aproveite suas horas de lazer para
escrever: Porque você não aproveita suas horas de lazer e envia alguma
colaboração para o nosso ‘Diário de Minas’. Seria um prêmio para os nossos leitores
e um prazer para todos os seus amigos da cidade. (Milton – 15.10.1958 – Pasta:
“Correspondências Madrid”).
Otto Lara Resende é imperativo com Murilo em uma carta: Mande-me seus
contos, trocaremos chumbo. (Otto – 14.07.1957). João Cabral de Melo Neto,
também de forma imperativa diz: Mande novos contos. Ando precisando de
fabuloso. (João Cabral – 18.10.1957). É curiosa a maneira com que João Cabral lhe
exige novos contos. Ele diz precisar do “fabuloso”. Sente falta da literatura tão
singular do amigo.
Pacheco, José Carlos e Otto Lara Resende querem saber se o amigo está
publicando alguma coisa. Como uma forma de animar ou até mesmo desanimar o
amigo, eles dizem estar em total atividade literária. Pacheco salienta: Recebi carta
do meu editor prometendo o livro para dentro em breve. E o seu? (Pacheco –
13.05.1958 – Pasta: “Correspondência Madrid”) José Carlos pede-lhe novidades
Mande novidades sôbre o que escreve você aí. (José Carlos – 13.10.1958– Pasta:
“Correspondência Madrid”). E ao final do ano de 1958, Otto interroga-lhe: Como vai
de literatura? Não escreveu outros contos? Eu estou em plena atividade. (Otto –
18.12.1958).
Otto que, esbanjava sua facilidade para produzir, cobrava do amigo Murilo
Rubião novos contos. Como o contista respondeu-lhe que escrevia pouco, Otto
sentiu o desalento de Murilo e como modo de encorajá-lo faz-lhe elogios, na carta
que se segue: Quanto a escrever pouco, não importa. Ninguém se realiza pelo
número de livros ou de páginas. Eu invejo os sóbrios, como você. O que importa é
dar o recado, o mais breve possível, com o menor número de palavras. (Otto – 29.
01.1959).
Em 1959, ainda o livro não havia saído. Felix questiona-lhe para saber
quando sairá: Você que tem feito? Quando sai seu livro? Tem escrito? (Felix –
13.02.1959 – Pasta: “Correspondência Madrid”).
Assim, passados três anos de sua residência em Madrid, Fernando Sabino
lhe escreve pedindo notícias sobre o seu próximo livro e se coloca a disposição dele
para servir de mediador junto à editora:
13
Esta informação foi retirada de uma carta, sem data, escrita por João Cabral de Melo Neto a Murilo
Rubião. É encontrada no Acervo do contista no arquivo 1, gaveta 2, pasta 38. Pelo o que está
exposto na correspondência, esta foi escrita logo depois que o mineiro voltou da Espanha para o
Brasil, em 1960.
Murilo se insere, não apenas para conhecer um pouco mais sobre a obra dele como
também para fazer uma leitura de sua obra e, principalmente, do conto “Teleco, O
Coelhinho”, o único conto no qual ele escreveu enquanto viveu em Madrid.
De acordo com Vera Lúcia Andrade (1985), o escritor mineiro declarou que conhecera a obra
do escritor tcheco somente quando já havia escrito seus três primeiros livros. E ainda afirma que só
leu a obra completa de Kafka quando trabalhou na Embaixada Brasileira na Espanha, entre 1956 e
1960.
É importante pensar, portanto, o que os outros escritores, desta mesma época ou até um
pouco antes, estavam produzindo enquanto Murilo escrevia contos fantásticos.
Fábio Lucas, em seu livro O caráter social da literatura brasileira, no último
capítulo, intitulado “Ficção brasileira contemporânea”, salienta a situação do conto
brasileiro, afirmando que a valorização do conto no Brasil aconteceu de certa forma
depois da Segunda Guerra Mundial. Isso ocorreu devido à crise do romance,
manifestada em todo o mundo no após-guerra (LUCAS, 1976, p.122). Os
ficcionistas, segundo Lucas:
14
Este texto fora publicado, primeiramente, na Revista Planeta em 25 de setembro de 1974. Em 19
de outubro de 1974, quase um mês depois, foi publicado no Suplemento Literário do Minas Gerais.
Segundo Schwartz, o fantástico em Murilo Rubião está no cotidiano e não há
rupturas no decorrer da narrativa ou provocação de suspense no leitor, pois
acontecimentos referencialmente antagônicos e inconciliáveis, conciliam-se
tranquilamente pela organização da linguagem. Dragões, coelhos e cangurus falam,
mas não há mais o clássico “enigma” a ser desvendado no final (Ibidem).
É importante notar que, em 1987, no Suplemento Literário do Minas Gerais,
no especial comemorativo de 40 anos do livro O Ex-Mágico (Especial 1, 2 e 3),
vários críticos discutiram a nova tendência da literatura fantástica aduzida na obra do
mineiro Murilo Rubião.
Rui Mourão, abrindo o Especial 1, afirma que Murilo, desde seu primeiro livro,
lançado em 1947, não se parece com ninguém que veio antes (MOURÃO, 1987,
p.1). Jorge Schwartz declara que a total ausência de uma tradição narrativa
fantástica no Brasil cria um impasse quanto à definição do gênero no momento em
que ele nasce das mãos de Murilo Rubião (SCHWARTZ, 1987, p. 6).
Humberto Werneck, seguindo o mesmo pensamento, sustenta a idéia de que
desde o primeiro livro Murilo chamou a atenção da crítica, por sua extraordinária
singularidade dentro da literatura brasileira (WERNECK, 1987, p.12). Werneck, para
realçar ainda mais a singularidade de Murilo Rubião, cita, primeiramente, as palavras
de Fábio Lucas quando faz uma observação curiosa: “A ficção de Murilo não tinha
qualquer conexão com o que se fala no Brasil”. “Era mesmo uma aventura solitária”
(Ibidem) correndo, pois, risco de não dar certo. Em seguida, Werneck lembra as
palavras de Eliane Zagury, quando fala que o mineiro, “escreveu adiantado e
publicou escondido – contradições que já são um lugar-comum dos grandes
escritores” (ibidem).
Álvaro Lins explica que se a obra de Murilo Rubião não é composta de
originalidade absoluta no sentido universal, sem dúvida nenhuma no Brasil sua obra
significa uma novidade, pois Murilo Rubião não procurou forma fácil de expressão,
nem ficou a lidar com elementos já vistos e explorados. Buscou um caminho novo e
soluções próprias (LINS, 1987, p. 9).
No Especial 2, Carlos Vogt fala que a literatura brasileira conheceu o gênero
fantástico, tendo na solidão paciente do trabalho de Murilo um raro caso de
expressão maior (VOGT, 1987, p. 4).
Davi Arrigucci Jr., no Especial 3, tratando também da estréia de uma nova
tendência da literatura fantástica em Murilo, no panorama da literatura brasileira,
afirma que o contista rompe os padrões do realismo tradicional e só encontra
antecedentes ou parentesco fora de nosso âmbito literário, com a obra de Kafka e
dos pós-kafkianos (ARRIGUCCI JR., 1987, p. 2).
Arrigucci Jr. explica que a literatura fantástica, no Brasil, nunca sustentou
tradição antes de Murilo, pois nos séculos XIX e XX, encontram-se apenas
narrativas mais ou menos insólitas dos românticos, uma vez que caíam sempre nas
margens do real. Assim sendo, Murilo Rubião foi o primeiro a tomar impulso no jogo
da fantasia, aqui no Brasil. Abaixo, Arrigucci Jr. discorre:
Segundo Arrigucci, com o Modernismo houve uma abertura maior para quem
quisesse arriscar-se no imaginário. Com isto tornou-se possível uma investigação do
supra-real como Murilo realiza em seus contos algum tempo depois. Porém, as
preocupações específicas, reveladas nas primeiras obras modernistas, já estão
distantes do universo muriliano e ajudam pouco a entendê-lo (Ibidem), conforme
frisa Arrigucci Jr.
Somente da década de 30 para frente o quadro sofre uma modificação e,
assim, surgem novidades. Arrigucci Jr., preferindo falar em afinidades literárias, cita
dois escritores mais perto de Murilo Rubião, que foram marcados pelo insólito e se
formaram sob o estilo do Modernismo: Cornélio Penna e Aníbal Machado.
De fato, Murilo Rubião esteve por bastante tempo sozinho no que se refere ao
gênero escolhido por ele. Deleuze e Guattari, no livro Kafka: por uma literatura
menor, discutem o que é uma literatura menor, num capítulo de mesmo título. Já no
início do texto os autores apontam que uma literatura menor não é a de uma língua
menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior (DELEUZE e
GUATTARI, 1977, p. 25).
De acordo com eles, “menor” não classifica mais certas literaturas, mas as
condições que as caracterizam pela inovação, pela originalidade, pela possibilidade
de renovar os padrões estabelecidos de toda a literatura no interior daquela a que
atribuímos qualidade de grande, ou seja, daquela que se firmou.
Acredito que Murilo Rubião foi um escritor que ficou à margem do que estava
em voga na década de 40, como analisado por diversos críticos mencionados acima.
Isto é, a literatura de Murilo era inaugural.
Murilo Rubião era solitário em seu estilo literário. Ninguém antes, no Brasil, havia se
enveredado pelos caminhos do fantástico. Pode-se dizer que seus contos estavam exilados numa
época em que não se produzia tal coisa. Sendo assim, era tido como estranha (como estrangeira?) a
sua obra.
Dessa forma, concordo com Deleuze e Guatari, quando dizem que se o escritor está à
margem ou afastado de sua frágil comunidade, essa situação o coloca ainda mais em condição de
exprimir uma outra comunidade potencial, de forjar os meios de uma outra consciência e de uma
outra sensibilidade (Op.cit., p. 27).
A obra de Murilo Rubião, por estar distante, isolada de toda a produção da época, causou
enorme estranheza a todos, quando o escritor escolhe um gênero que ainda não era conhecido no
Brasil. O que causa estranheza é a literatura fantástica de Murilo, isto é, a novidade. Desse modo,
antes mesmo da leitura da obra de Murilo, discorrerei a seguir sobre o gênero em que a obra do
contista está inserida.
O estruturalista Tzvetan Todorov, em sua obra intitulada Introdução à
Literatura Fantástica, discursa sobre o fantástico sob uma perspectiva tradicional,
diferente do fantástico encontrado na obra de Murilo Rubião. Porém, é importante
ressaltar este estudo para perceber como a literatura de Murilo Rubião se difere da
literatura fantástica do século XIX, discutida pela professora Vera Lúcia Andrade, em
sua tese de doutorado, intitulada Marbre: une lecture du fantastique chez Pieyre de
Mandiarques, onde ela traz importantes informações sobre o histórico da Literatura
Fantástica.
Apesar de aparecerem elementos fantásticos na literatura desde a Idade
Média, a Literatura Fantástica, segundo Andrade, nasceu no século XIX. Já Todorov
afirma que o fantástico apresentou-se de forma sistemática por volta do final do
século XVIII, com o autor Cazotte, no livro Le diable amoureux.
Conforme Andrade, temas que mais tarde fizeram parte do domínio fantástico
encontram-se nos anos 1580 a 1670 na literatura barroca. Esta se definia por uma
temática da metamorfose, da dualidade, do duplo. Além disso, o macabro e o sinistro
acompanhavam o cenário. Dessa forma, a literatura barroca apresentava uma
constante confusão entre os domínios do sonho e do real.
O romance gótico também pode ser considerado um dos precursores do
fantástico, pois se apoiava em cenários de pavor: nas ruínas desoladas, nos
castelos mal-assombrados, nos enigmas angustiantes etc. Todavia, no romance
gótico tudo se explica por artifícios engenhosos (ANDRADE, 1985, p. 16).
Mais tarde, conforme Andrade, em 1820, Maturin e Nodier estabeleceram
outra categoria: o frenético, no qual se prolongava o cenário mórbido do romance
gótico para um desencadeamento do horrível, isto é, houve o aumento de seres
monstruosos, dos personagens híbridos, das mutações inconcebíveis se produzindo.
Segundo Andrade, apesar destes precursores, a Literatura Fantástica, na
França, só nasce, efetivamente, em 1830. Tal fato está ligado, por um lado, à
história do Romantismo em geral e, por outro lado, ao começo da época cientificista
e positivista. Para a autora, o fantástico procura e deve chegar a alterar nosso
mundo, mundo este submisso a uma causalidade rigorosa (Op. cit, p. 20).
Andrade cita Roger Caillois, um importante crítico da Literatura Fantástica,
para salientar a quebra que o sobrenatural opera num mundo estável. Conforme o
autor, o sobrenatural surge como a ruptura da coerência universal devido a uma
agressão interdita, ameaçante que rompe a estabilidade de um mundo coerente
cujas leis até então eram tidas como rigorosas e imutáveis (Apud. ANDRADE, 1985,
p. 20).
É importante ressaltar também o estudo do estruturalista Todorov. Em sua
obra, o autor focaliza o aspecto formal da relação do fantástico com os gêneros
vizinhos, o estranho ou o maravilhoso. Para ele, o fantástico está no meio, ele só
ocorre na incerteza entre uma e outra possível solução, pois se o leitor optar por
uma ou outra escolha de explicação para os acontecimentos entrará em um gênero
vizinho, ou seja, o estranho ou o maravilhoso.
Mais adiante, Todorov aponta a implicação do fantástico na integração do
leitor ao universo das personagens. O leitor, portanto, é quem definirá o fantástico
pela percepção ambígua acerca dos acontecimentos narrados. Sendo assim,
conforme afirma Todorov, a hesitação do leitor é pois a primeira condição do
fantástico (TODOROV, 1992, p. 37).
Um ponto importante que resume o espírito do fantástico, segundo Todorov, é
quando se chega quase a acreditar, pois é a hesitação que dá vida ao fantástico.
Quem hesita tanto pode ser o personagem quanto o leitor que é posto em integração
com o mundo dos personagens. Para Todorov, há um fenômeno estranho que se
pode explicar de duas maneiras, por meio de causas de tipo natural e sobrenatural.
A possibilidade de se hesitar entre os dois criou o efeito fantástico15. (Op. cit, p. 31).
A respeito do efeito produzido no leitor, Jorge Schwartz contesta o método
proposto por Todorov, dizendo que sua crítica é de caráter eminentemente
axiomático: deve existir a dúvida na leitura da narrativa fantástica? Sem tensão, não
há conto, mas a ausência da dúvida elimina o fantástico? (SCHWARTZ, 1981, p.
68).
Segundo Schwartz, o modo narrativo de Murilo Rubião é contrário à teoria do
fantástico articulada por Todorov, onde a dúvida é assumida como condição sine
qua non para definir o gênero narrativo em questão (Ibidem).
No terceiro capítulo do livro, o estruturalista afirma que o fantástico dura
apenas o tempo de uma hesitação e esta é comum ao leitor e à personagem. Para
diferenciá-lo do gênero estranho, o autor diz que neste o leitor ou a personagem
decide que as leis da realidade permanecem intactas (TODOROV, 1992, p. 48) e o
contrário disso acontece no gênero maravilhoso, isto é, quando se admitem novas
15
O pensamento supracitado pertence a Louis Vax, em sua obra L’art et la littérature fantastiques,
quando ele explicitou a ambigüidade na obra The turn of the screw, de Henry James e declarou que
o fantástico ideal se mantém na hesitação.
leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado (Op. cit., p. 48). O
fantástico existe se estiver ligado à ficção e ao sentido literal.
Outra importante observação de Todorov é com relação às funções do
fantástico na obra, tais como: efeito de medo ou horror sobre o leitor; o suspense e
função tautológica, quer dizer, admite-se descrever um universo fantástico sem que
este tenha qualquer realidade fora da linguagem.
O último capítulo do livro, que é conclusivo, tem como assunto a literatura e o
fantástico. Neste, Todorov não mais pergunta “o que é o fantástico?”, mas sim “por
que o fantástico?” Ele explica que a primeira interrogação traz a preocupação com a
estrutura do gênero, já a segunda tem como propósito as suas funções.
Com relação à estrutura do gênero, Todorov afirma que o fantástico
fundamenta-se na hesitação do leitor; o leitor identifica-se a um personagem e hesita
quanto à natureza de um acontecimento estranho; a hesitação pode ou não ser
resolvida e o fantástico exige certo tipo de leitura.
Já com relação às funções do fantástico, Todorov se firma na observação
feita por Peter Penzoldt que diz: Para muitos autores, o sobrenatural não era senão
um pretexto para descrever coisas que não teriam ousado mencionar em termos
realistas (Apud. TODOROV, 1992, p. 167).
O sobrenatural também era pretexto para franquear certos limites inacessíveis
(temas proibidos, tais como: homossexualismo, o incesto, o amor a vários, a
necrofilia, a sensualidade excessiva) pela censura, tanto a institucionalizada quanto
a da psique do autor. Ainda, o sobrenatural era usado para tratar de temas tabus ou
loucuras; para evitar as condenações sociais, os crimes, as drogas; subtrair do texto
a ação da lei e com esta mesma transgredi-la. Para Todorov, o fantástico é mais do
que um simples pretexto, é um meio de combate contra uma e outra censura
(Ibidem).
A produção literária de Murilo Rubião se encontra inserida no gênero
fantástico. E isto causava inquietação ao público não só na década de 40 como
ainda na década de 80, pois em uma entrevista intitulada “Rubião, pirotécnico da
palavra” publicada no jornal Alternativa, Giselle Dupin e Francisco de Morais Mendes
queriam saber se o Realismo Fantástico de Murilo Rubião era uma opção política.
Segundo o jornal, a resposta do contista é de que ele acha que o Fantástico
pode perfeitamente ser utilizado como uma metáfora política. Como qualquer outro
tipo de literatura, desde que o escritor esteja engajado no contexto social (RUBIÃO
apud DUPIN e MENDES, 1981, [s/p]).
Para Murilo, a presença do social aparece em grande parte de sua literatura,
uma vez que sobre o livro O Convidado, Murilo afirma que dois contos são
extremamente políticos, a saber: “Botão de Rosa” e “A Fila”. E ainda diz o contista
que no livro O Pirotécnico Zacarias, o conto “A Cidade” é a contestação do Estado
Novo. Murilo Rubião vivenciou esta situação e sentiu-se afetado por ela, uma vez
que à época trabalhava em jornal sob censura, o que acabava aparecendo em seus
contos.
Entretanto, sua opção pelo fantástico não foi motivada pela censura. Num
depoimento consciente no que tange a sua opção por este tipo de literatura, Murilo
Rubião afirma:
Como foi visto na primeira parte deste capítulo, a literatura de Murilo Rubião
surgiu como uma produção solitária, e permaneceu por algumas décadas à margem.
E isso se deu pelo fato de o contista escrever algo novo. Murilo renovou os padrões
estabelecidos da época.
É curioso perceber também que, como foi discutido no primeiro capítulo, o
próprio Murilo cultivava o sentimento de solidão, pois sentia-se bem mesmo isolado.
Este era o jeito reservado de viver do escritor Murilo Rubião. Seus depoimentos
acerca deste sentimento foram ressaltados, por mim, nas entrevistas concedidas por
ele.
Solitária não só a produção literária de Murilo, em meio ao que estava sendo
produzido no momento, como a própria maneira de viver deste escritor. E este
sentimento se estende até as suas personagens. Assim sendo, pretendo investigar o
sentimento de solidão das personagens na obra do contista para ter uma idéia mais
abrangente daquele sentimento que, manifestado intensamente durante a vida do
homem Murilo Rubião, é articulado, por ele, na criação de seus personagens.
Desse modo, antes mesmo de fazer uma leitura do conto “Teleco, O
Coelhinho” (1965) que, como já foi dito, foi o único concluído em terra estrangeira
(Madrid 1956-1960) e trazido em sua bagagem de volta ao Brasil, ressalto que é
pertinente fazer uma leitura de alguns outros contos de Murilo Rubião, uma vez que,
em muitos deles, são abordados temas que se referem ao isolamento do homem, a
perdas, ao sofrimento, a ausências etc. Saliento, portanto, que os comentários a
respeito de sua obra como um todo não terão como preocupação uma leitura
minuciosa de cada conto, salvo o conto “Teleco, O Coelhinho”.
A seguir, é interessante observar os elementos utilizados por Murilo para
tratar da sensação ou da situação de quem vive afastado do mundo ou isolado em
meio a um grupo social.
Murilo Rubião, em entrevista ao Diário de Minas, em 1953, diz que para fazer
literatura não importa se o indivíduo seja triste ou alegre e tampouco é preciso casar-
se ou ser celibatário, pois as criaturas plenamente felizes e ajustadas à vida podem
ser escritores, e a literatura espelhará o seu estado psíquico.
A professora de literatura e crítica, Maria Luiza Ramos, dando continuidade
ao tema tão vasto, pergunta, em entrevista, ao escritor se ele tem por hábito fazer
projeção da própria personalidade em seus personagens. Murilo Rubião, certo de
que há muito de seu sofrimento em seus personagens, adverte, porém, que ele não
faz autobiografia:
Murilo Rubião escreveu muitos contos que têm como essência a solidão, tais
como: “O homem do boné cinzento” (1947), sobre um solteirão que vive sozinho e
que vai desaparecendo aos poucos; “O pirotécnico Zacarias” (1947) caracterizado
como um pobre invólucro humano, que vive na ambígua situação de estar e não
estar; “A cidade” (1947), em que a personagem principal fica isolada num trem vazio,
“A flor de vidro” (1953), em que o herói é separado da jovem por quem está
enamorado e é condenado a irreparável solidão; “A noiva da casa azul” (1965) em
que o narrador-personagem necessita da solidão para refazer-se do impacto sofrido
por acontecimentos tão desnorteantes; “Os comensais” (1974), tendo como última
frase do conto: Estava só na sala imensa. Há outros exemplos na obra de Murilo.
No conto “O Ex-Mágico”, este mágico deixa de sê-lo quando, em busca da
morte, escuta de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos
poucos (RUBIÃO, 1999, p. 11). A partir daí começa a trabalhar numa Secretaria de
Estado. Arrepende-se, pois não consegue morrer conforme esperava e pior,
aumentam suas aflições, uma vez que, no novo emprego, teria que ocultar seu
sentimento de repugnância, de aversão, de repulsa pelos homens:
Em “Aglaia” (1974), o casal aceita o casamento, mas não queria ter filhos.
Colebra, marido de Aglaia, pensava que nenhum filho nasceria para deformar aquele
corpo (Op. cit., p. 189).
Personagens que não conseguem declarar seus sentimentos à amada e
acabam perdendo-a aparecem nitidamente em dois contos: em “Elisa” (1965), o
narrador por falta de coragem adiava a sua primeira declaração de amor. Cordélia, a
irmã do narrador, sutilmente mostrava ao irmão que ele não deveria ocultar a sua
paixão por Elisa. Porém, ele não conseguiu. Elisa partiu. O narrador, angustiado,
mas com esperança de que Elisa regressasse, ficou a espera dela na mesma casa.
Em “Bruma (A estrela vermelha)” (1965), o narrador se percebe apaixonado
por Bruma, mas não lhe confessa o seu sentimento. Tenta, no entanto, separá-la de
seu irmão Og:
Moço, me dá um cigarro?
A voz era sumida, quase um sussurro. Permaneci na mesma
posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com
ridículas lembranças.
O importuno pedinte insistia:
Moço, oh! moço! Moço, me dá um cigarro?
Ainda com os olhos fixos na praia, resmunguei:
Vá embora, moleque, senão chamo a polícia.
Está bem, moço. Não se zangue. E, por favor, saia da
minha frente, que eu também gosto de ver o mar (RUBIÃO, 1999, p.
143).
Vera Lúcia Andrade e Wander Melo Miranda assinalam que o desejo do animal
de reconhecer-se numa imagem humana fixa e estável, que dê fim à sua oscilação
entre ser e não ser, resulta na morte que se faz visível na metamorfose derradeira
(Cf. ANDRADE e MIRANDA, 1987, p.12).
Ainda nesse mesmo sentido, Schwartz afirma que as metamorfoses de Teleco
nada mais são do que tentativas frustradas de adequação ao mundo; que a última
das transformações seja a de uma ‘criança encardida, sem dentes. Morta’
(SCHWARTZ, 1987, p. 7). Por não conseguir desempenhar o papel em questão
sofre a frustração de não se transformar em um humano.
O tema da metamorfose, que foi introduzido no conto “O Ex-Mágico”, continua
aparecendo em outros contos. As transformações seguidas de ‘Teleco, o Coelhinho’,
revelam, conforme Schwartz, uma tentativa vã de adaptação a um mundo onde não
há mais lugar para valores como a pureza e a inocência (SCHWARTZ, 1982, p. 43).
Para Schwartz, o clima lúdico do conto é conveniente para mascarar questões
profundas da existência humana.
Fazendo uma relação do conto com a situação vivida pelo escritor durante a
produção dessa narrativa, acredito que a inadequação do coelhinho no universo
humano remete à inadequação de Murilo Rubião fora de seu ambiente, de seu país.
Murilo Rubião disse em entrevista a Mirian Chrystus, publicada no Suplemento
Literário do Minas Gerais (1987), que a essência permanece intocada16; sua
identidade, no entanto, foi alterada, uma vez que ele passou pelo sentimento de
exílio, quando esteve longe de seu ambiente, isto é, num lugar também que não era
o seu.
Mas ainda mais forte, percebo que Teleco, diferentemente de Murilo Rubião,
que cultivava o sentimento de solidão desde a sua infância, não queria conservar
16
Na entrevista, esta foi a primeira resposta do escritor, quando a entrevistadora abriu a seguinte
questão: Será que nós mudamos muito com a vida? Ou será que permanecemos os mesmos, na
essência?
este sentimento, pelo contrário, tentava a todo custo se aproximar do outro, a todo
momento.
O coelhinho é condenado à morte por ser um desterrado. Suas tentativas foram
em vão no que se refere à sua integração no mundo que não é seu. Ele é um
peregrino no mundo. Suas transformações são um meio para achar resposta de
identificação. Sua forma de reagir à solidão, por ser diferente, de minoria e
desprezado, é tentando uma aproximação com os homens: falando a língua deles,
fumando um cigarro, vestindo-se como eles, isto é, tendo os mesmos hábitos e
costumes e até tentando a mesma aparência física deles.
Teleco não consegue administrar o mosaico de identidades em que ele se
transmuta ao tentar se adequar no mundo dos humanos, ou seja, se adequar num
mundo que não é o seu. Desse modo, ao final do conto o coelho não suporta a sua
última transformação e morre.
A solidão que esteve sempre presente na vida de Murilo Rubião, vejo de forma
sutil sentida pelo narrador-personagem do conto “Teleco, O Coelhinho”, quando o
narrador-personagem afirma morar sozinho numa casa tão espaçosa. A casa grande
dá idéia de maior solidão, de estar sempre esperando que seja preenchida, pelo
grande espaço que possui. Assim, o narrador-personagem leva um companheiro
para morar com ele nesta casa. Outro fator que demonstra a solidão do narrador-
personagem é o fato de ele não conseguir o amor de Teresa. Sente-se rejeitado,
pois a mulher prefere ficar ao lado de um animal a ficar ao lado dele, que é homem.
O conto, de certa forma, reflete o que se observa ao longo dos anos no caráter
de Murilo: o sentimento de solidão, a vida solitária num espaço geográfico só seu (a
casa do narrador, o apartamento da Serra), a falta de conexão permanente com o
sexo oposto, a generosidade de sentimentos para com os outros seres, a
aproximação com os outros desde que não haja identificação muito próxima.
Teleco, apesar de se mostrar resistente à solidão, também a sente, uma vez
que não encontra a si próprio, pois quer ser o outro. E nessa busca de ser o outro, o
sujeito Teleco se torna plural, isto é, ele é composto de diferentes identidades,
tornando-se, pois, um sujeito fragmentado.
Considerações finais
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