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Sobre essa dramaturgia dos afetos.

Há quem diga que no Brasil não vivemos a FOME, entretanto, essa palavra é
surpreendentemente poetizada pelo Evaristo Corrêa em Água com açúcar. A condição
de pobreza, a obrigação de conseguir alimento para a família e o desespero que a fome
causa é transformada pelo jovem em um monólogo que retrata exatamente quem somos
enquanto povo, desiguais e injustos, capazes de transformar o outro em um monstro. A
personagem criada pelo Evaristo é tão real que suas ações irreais nos arrebatam tanto
pelo inesperado, como pela verossimilhança. Não há quem leia ou escute esse texto e
não reconheça quem é esse pai de família, e o absurdo em que a nossa sociedade coloca
algumas pessoas. Água com açúcar mexe com o seu estômago, de uma forma que você
fica querendo mais e mais, mesmo sabendo que essa dor não passa.

Euler Lopes

Dramaturgo do Grupo A Tua Lona –SE

Aracaju, 07 de agosto de 2019


Água com açúcar

(Em meio ao lixo um homem sai e começa um diálogo com uma boneca suja, sem olho e
sem um dos braços)

ATOR (Enquanto começa a mexer no lixo como se estivesse procurando algo) – Eu


achei que a moça não vinha mais. (Silêncio e ações) Ontem eu achei um rádio lá no
monte 17, só falta a pilha. (Silêncio e ações) A moça tá quieta hoje, não achou nada? Eu
achei um pão, levei pros meninos. (Silêncio e ações) A Joana não vem hoje não, tá com
muita dor na barriga. O moleque tá mexendo muito, ontem saiu muito sangue dela. Ela
queria vir mas ficou dormindo. Eu até mexi com ela mas ela não acordou. (Silêncio e
ações). O pequeno tá doente de novo moça, ontem eu dei aquela farinha pra ele mas o
coitado vomitou tudo. Eu peguei e lavei pros grande poder comer. (Silêncio e expressão
de reflexão) A barriga dói quando ela chega né moça? Dói demais. (Delírio) As nossas
crianças fazem uma dieta equilibrada moça, comem uma vez na vida e outra na morte. A
dona Maria passou 27 dias só tomando água antes de morrer. Esses dias eu vendi o
almoço pra comprar a janta. Minha vó ficava falando que Deus ajuda a quem cedo
madruga mas minha dor na barriga ele não faz passar. Os meninos foram pra escola só
pra comer mas chegando lá só tinha suco, voltaram chorando de novo. Um dia me
falaram que quem tem boca come, logo entendi que não tinha boca. Tá vendo meus
dentes tá tudo podre igualzinho esse país. (O personagem vê uma marmita com restos
de comida próximo da boneca) Moça, o que é isso aí? Cê tá escondendo comida? (O
ator dá voltas na boneca como se estivesse tentando encontrar um jeito de tomar a
marmita dela) Moça você sabe que o pequeno tá doente, que Joana não tá bem. Você
não pode ficar com tudo sozinha. Esses dias te dei farinha no almoço. Não é justo. Você
tá gorda moça. Não pode deixar os moleques sem comida. Você sempre fica com tudo.
Outro dia eu chorei moça porque você não tinha nada. Não é justo não me dar. Já não
basta o prefeito, o deputado o senador e o pastor me abandonar, agora é você? A Maria,
o seu Jair, Dona Eurides, a Luzia, seu João do Guincho, Regina, o seu Zé da esquina, os
moleques do Bernado, da Joana e as cria lá da rua já morreram moça. Não faz isso com
a gente não. Dá pra mim que eu prometo te dar metade. Não vai dar? Tudo bem!
(Enfurecido) Vá pro diabo que te carregue, moça ruim. Povo ruim, gente hipócrita que
come bosta e acha que caga ouro. A barriga dói moça e a culpa é SUA (em tom alto) que
não dividiu, que estocou e venceu. A culpa é sua que deixou no prato. Que achou que a
sua família era a única que merecia. A culpa é sua que não teve lado. Que ignorou os
avisos daqueles que se preocupavam com o pobre. É sua por ter votado sem pensar na
gente ou nem ter votado porque achou que era melhor pagar. É sua que vendeu pra
satisfazer as suas necessidades individuais. Pagar o pato? Quem pagou o pato foi eu.
Você é ruim moça. Você é má. Não pensou em mim, só pensou em você e por sua causa
eu to assim. (Neste momento o personagem pega a marmita pra si e começa a comer a
comida desesperadamente) Me da isso aqui infeliz! Você cuspiu no prato que comeu.
Depois que conseguiu encher o seu, se esqueceu do meu. Maldita moça que acha que
agora tá numa classe melhor que a minha só porque tem marmita todo dia. Se tá aí é
porque quando não estava, pensaram em você. Hoje o que eu queria, era que você
voltasse pra cá, pra ver se assim você enxergue que meu prato é o mesmo que o teu.
Acorda maldita tira o olho do próprio umbigo e olha pra nós como um dia olharam pra
você.(Ao som de sirenes e galinhas o personagem se desespera e começa a correr pelo
lixo) Moça, moça, moça me ajuda pelo amor de Deus, os policiais estão atrás de mim de
novo. Eu só queria comer, moça. Moça, moça me ajuda moça. Vai ficar aí dormindo, só
assistindo a gente ser preso porque não tem o que comer. Acorda pelo menos uma vez,
olha pra mim faz de conta que hoje é natal e que você vai tirar foto pra postar. Olha pra
mim moça e finge vai. Não deixa os caras me prenderem não. Eu tenho quatro filhos
pra criar e a mulher tá doente com mais um na barriga. Se eu for preso quem vai cuidar
deles, quem vai vir pra cá buscar comida, moça? Eu não sou vagabundo não. (Fala
irritada) Eu só queria que a dor da barriga passasse e os meninos parassem de chorar.
Vagabundo é seu marido e a senhora que bate panela e fecha os olhos diante de tanta
injustiça nessa terra. Eu? Eu sou só mais um que tá tentando não morrer diante dessa
merda toda que virou isso aqui. Semana passada o Afanásio foi preso e olha que a
galinha tava ciscando no barraco dele. O coitado até deu um pouco pra gente, moça. E a
Joana que foi espancada porque pegou dois tomates no mercado. Moça, se a gente faz
isso é porque não tem opção. Eu não vou voltar para aquele lugar de novo não. O lugar
fede, tem umas 20 pessoas num quarto só. A gente caga num balde moça e toda vez
quem tem que limpar sou eu. Uma vez me falaram que era bom ir pra lá porque tinha
comida todo dia. Mas eu prefiro ficar aqui no lixo, porque já não basta a tristeza de
saber que os moleques e a mulher estão sozinhos, ainda tem que apanhar e bosta
carregar. (O som da sirene e das galinhas tocam mais uma vez e o personagem se
desespera de novo) Moça, moça, olha lá moça, já vem eles me pegarem e você ficou aí
com os olhos fechados me julgando e achando que cadeia ia me ajudar, ressocializar
mas minha fome ninguém se prontificou a acabar. Moça a culpa é sua. (para a plateia
em tom alto) SUA, SUA, SUA, SUA MOÇA, SUA MOÇO. SUA. SUA.
SUAAAAAAAAA. (depois do surto, pausa) Um pé de mamão pra mamãe fazer
mamão verde no almoço. Comer o resto da melância que eu vi no lixo da vizinha, ainda
tinha uma parte que tava vermelha. Vi o menino comendo maça na escola na lancheira
bonita que a mãe dele comprou. Eu fui no mercado com cinquenta centavos e não deu
pra comprar o pacote de bolacha. Falaram pra eu sair da fila porque a comida não era
pra mim. Eu pedi pra comer e a moça disse que era pra droga, fiquei com fome aquela
noite. Eu queria que a mamãe tivesse aqui porque ela não deixava a dor da barriga
chegar, ela deixava a dela doer pra que a nossa não doesse. Eu tô com fome. Eu tô com
fome. Eu tô com fome.(passagem de tempo) Cê tá com fome? Não? Eu tô! A Joana não
vem mais pra cá não moça. O bebê comeu ela por dentro, porque ela só tava bebendo
água, os dois morreram. Mas não fica triste não, hoje eu achei um pouco de arroz, vou
levar lá pro barraco mas vou te dar um pouco (Silêncio e ações) Ontem eu fiz
aniversário mas não teve bolo não. O José e o Dudu choraram o dia todo porque eu tive
que guardar a farinha pra noite. O sal que eu tinha encontrado aqui semana passada já
acabou. Os menino grande lamberam o rosto dos pequeno pra sentir o gosto do sal. Eu
guardei um pão pra eles, vou dá amanha cedo. Ontem eu comi terra pra ver se passava a
dor na barriga e não é que passou moça! Mas aí eu vomitei em cima do pequeno. A
Maria me falou que tinha um moleque na cidade que ela morava, que explodiu depois
de comer tanto, porque fazia muito tempo que ele não comia, sabe?! Eu queria morrer
assim também moça. (Silêncio e ações) Você gosta de bicho? Eu tive que matar o gato e
o cachorro dos meninos, não tinha nada pra eles comerem, então aproveitei e comi eles.
Me disseram pra ter fé que o cara ia me dar pão, nem acredito mais nesse cara. Sabe
qual é o meu pecado preferido? A gula. Um homem lá da rua de baixo ficou louco
porque fazia tempo que ele não comia. Será que já to ficando louco moça? Minha mãe
falava que é bom não comer todo dia, ela dizia que fazia bem pra saúde.(leve sorriso)
Acho que ela tava certa né?! eu não morri ainda. (Em tom um pouco empolgado como se
tivesse tido uma lembrança boa) Um dia eu encontrei 30 reais no lixão, passei na frente
de uma pizzaria, entrei, pedi um Rodízio e um copo de água. Eu fui expulso de lá mas já
tinha comido uns 65 pedaços mesmo, nem liguei moça. (Silêncio e expressão de
reflexão)
Você acha que o estômago seca se a gente não usa ele? Tinha um homem lá perto de
casa que disse que secava. Acho que ele morreu disso. Eu vi na TV que todo mundo
come três vezes ao dia. Queria viver nesse mundo moça. Dói sabe?! Vê os menino tudo
chorando porque não tem nada pra comer, eu dava água com açúcar pra eles mas faz
tempo que acabou. Eu queria um serviço, mas aqui tá todo mundo querendo um
também. A mulher que ajudava a gente lá perto de casa morreu e agora tô aqui, tentando
achar alguma coisa. Moça sabe o que eu queria? eu queria poder ser uma modelo pra
comer alface, queria um pé de mamão pra cozinhar no almoço. Queria poder morrer por
ter comido demais, de fome não, por ter comido demais. Queria comer ovo. Comer pão.
Queria carne. Queria não vê os menino chorar mais. Os bicho come minha barriga
porque não tem o que comer mas eu queria comer os bicho da minha barriga. (Silêncio e
ações) A barriga dói, quando ela aparece. A gente sempre falava pra ele tomar um copo
de água que passava. Chegou um dia que até a água acabou, aí tivemos que tomar água
suja da poça. Moça (Pausa) Eu tive que comer o mais novo, porque a gente sabia que
ele ia morrer, então comemos. A barriga dói quando ela aparece. Dói. Dói.

Evaristo Corrêa
08/2019

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