Você está na página 1de 9

A MULTIPLICIDADE DA LINGUAGEM EM DOM QUIXOTE DAS CRIANÇAS: LITERATURA E HQ NA

FORMAÇÃO DO LEITOR
1

Drielly Joanna Silva Xavier


Luciane Aparecida Silva Soares
Michelle Santos Teixeira2
Orientadora: Profª Drª Patrícia Kátia da Costa Pina3

Resumo: Este estudo aborda as múltiplas linguagens como um instrumento na formação de leitores, discutindo sua
diversidade. Pretende-se refletir sobre a importância da linguagem literária e da quadrinística nesse âmbito. A questão
que norteia este estudo é: como esta multiplicidade constrói um sujeito crítico e qual a relevância de uma boa mediação
nesse processo. Para tanto, serão comparadas a obra- fonte Dom Quixote das crianças (2010), de Monteiro Lobato e sua
adaptação quadrinística, realizada por André Simas, considerando a especificidade e diversidade de cada uma e os
mecanismos utilizados por elas para atrair o leitor. Estudamos os conceitos de múltiplas linguagens e podemos perceber
sua importância, numa perspectiva verbal e não verbal. Compreendemos que nosso estudo se encaixa nessa concepção,
pois essas obras se relacionam com a escrita e o visual, que instigam e auxiliam na formação do gosto pela leitura, que
exigirão dele habilidades específicas para cada texto, considerando que cada linguagem possui particularidades.
Palavras-Chave: Linguagem literária. Linguagem quadrinística. Leitor. Mediação.

[...] pela linguagem se expressam idéias, pensamentos e intenções, se estabelecem relações interpessoais
anteriormente inexistentes e se influencia o outro, alterando suas representações da realidade e da sociedade e o rumo de
suas (re) ações.
(BRASIL, 1998, p. 20)

A linguagem, qualquer que seja, garante a continuidade humana, pois a necessidade de estar em contato com
os outros se faz essencial, por isso que, desde o início da vida, buscam-se regras do processo comunicativo criando um
acervo cultural, pela necessidade que o homem tem de ir se adaptando a outros homens e grupos. É através dela que
expressamos quem somos e persuadimos, formando significações, influenciando o outro de acordo com os interesses
vigentes. Partindo deste conceito destacamos nosso estudo sobre sua multiplicidade, tomando por objeto de estudo a
linguagem literária da obra infantil Dom Quixote das Crianças (2010), de Monteiro Lobato e a quadrinística, com sua
adaptação realizada por André Simas.
Partimos da base, os PCN de língua portuguesa, buscando compreender o que eles dizem sobre a linguagem,
apropriando-nos da teoria de Paulo Ramos, Antoine Compagnon, Patrícia Pina, Monteiro Lobato, entre outros.

1
Trabalho apresentado aos componentes curriculares/disciplinas do curso de letras do Campus VI-Caetité, como parte
da avaliação parcial do período letivo 2012.1
2
Graduandas do III semestre do curso de Letras Língua Portuguesa e Literaturas, do período letivo 2012.1, da
Universidade do Estado da Bahia-UNEB, do Departamento de Ciências Humanas/ Campus VI, Caetité/BA, com os
respectivos e-mails: driellyjoanna@gmail.com, lucisoares_gbi@hotmail.com, michelle.jm03@hotmail.com
3
Professora Titular da Universidade do Estado da Bahia- UNEB, Campus VI, pós-doutora em Literatura Nacional pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, em 2010.
Discutimos as teorias e partimos para a prática, aplicando uma oficina de formação de mediadores de leitura em
Igaporã, através do projeto “Mediando à leitura, criando o leitor, forjando cidadãos”, desenvolvido pela Universidade
do Estado da Bahia (UNEB), Campus VI, com o objetivo de perceber as especificidade destas e como elas instigam o
leitor.
O nosso estudo foi construído a partir da obra fonte Dom Quixote das crianças (2010) de Monteiro Lobato e a
adaptação quadrinística de André Simas, a comparação entre as duas linguagens demonstra as especificidades de cada
uma, mostrando assim que, do mesmo modo que para se trabalhar com a linguagem literária é necessário um domínio
com a construção do texto, os jogos de palavra, na HQ o leitor deverá está atento aos inúmeros recursos que essa
linguagem apresenta para a construção do sentido de seu texto, em suma, é válido ressaltar que HQ não é uma
transposição da obra-fonte, quadrinhos são arte, eles utilizam de seus próprios métodos, ao quadrinizar o adaptador
incuti das suas interpretações, ele transforma em quadrinhos aquilo que ele abstraiu da obra fonte, assim, o estudo de
ambas as linguagens, provocam percepções diferentes.

[...] Por um lado, se constroem, por meio da linguagem, quadros de referência culturais –
representações, teorias” populares, mitos, conhecimento científico, arte, concepções e
orientações ideológicas, inclusive preconceitos – pelos quais se interpretam a realidade e as
expressões linguísticas. Por outro lado, como atividade sobre símbolos e representações, a
linguagem torna possível o pensamento abstrato, a construção de sistemas descritivos e
explicativos e a capacidade de alterá-los, reorganizá-los, substituir uns por outros. Nesse
sentido, a linguagem contém em si a fonte dialética da tradição e da mudança. (BRASIL,
1998, p.20)

Os Parâmetros curriculares nacionais priorizam desenvolver no aluno a capacidade discursiva, bem como a
possibilidade de construção de sentidos para as diversas formas de expressões. Portanto, colocá-lo em contato com as
múltiplas linguagens que o rodeia constitui uma forma eficiente para se obter esse resultado. É preciso afastar das
escolas a maneira simplória de enxergar o texto literário como ferramenta para abordar unicamente questões isoladas
como as de cunho gramatical. A subjetividade que a literatura possui tem muito mais a oferecer ao sujeito empenhado
na descoberta dos inúmeros sentidos que ela comporta. Destrinchar essas linguagens se constitui uma experiência
enriquecedora que o fará enxergar o mundo com um olhar mais ciente e crítico diante das inúmeras informações
captadas. Essa modificação da forma de se perceber o meio que o cerca tem sua importância intensificada quando se
trata de alunos adolescentes. Essa é uma fase em que o sujeito está descobrindo sua própria identidade, seu papel na
sociedade, na família, ao mesmo tempo em que lida com o forte apelo da mídia. Daí ser uma fase cheia de dúvidas e
angústias para o futuro adulto.
Exercer domínio sobre as linguagens é sem dúvida uma “carta na manga” para quem passa por esta fase,
parafraseando John Donne (1565), nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo. Conhecer os diversos mundos e
estar em diálogo com eles possibilita identificar nossa própria posição diante deles, pois conhecer o outro é uma boa
forma de conhecer a si mesmo. Obter essa capacidade permitirá ao indivíduo construir um conjunto de valores
fundamentais para a formação de um adulto plenamente ciente de suas ações e autor da própria história, algo que
raramente observamos hoje. O que mais comumente se encontra, porém, são pessoas incapacitadas de compreender e
agir sobre os assuntos que mais influenciam o modo de vida da comunidade, deixando essas decisões a critério de uma
minoria detentora dos conhecimentos tidos como superiores. Muitos não conhecem a própria história.

A cultura e a língua mudam porque sobrevivem num mundo que muda: o sentido de um
verso, de uma máxima ou de uma obra muda pelo simples fato de se achar mudado o
universo das máximas, versos ou obras simultaneamente propostos àqueles que o
apreendem, o que se pode chamar de espaço dos compossíveis. O anacronismo
destemporaliza a obra, arranca-a do tempo (como também o fará a leitura universitária), ao
mesmo tempo em que a temporaliza ao "atualizá-Ia" continuamente pela permanente
reinterpretação, ao mesmo tempo fiel e infiel. Esse processo conclui-se quando a
reinterpretação letrada do lector aplica-se às obras de uma tradição letrada e quando a
lógica da reinterpretação é a mesma lógica da coisa interpretada. (BOURDIEU, 2004, p.
145-146)

Os leitores do século XXI estão distantes da realidade dos leitores do século XIX e início do século XX, o
leitor atual é caracterizado pela fugacidade, multiplicidade, rapidez, e isso não significa que eles são desprovidos de
leituras, o que se vê é que esses leitores estão atentos ao universo midiático, por isso, os cânones estão distantes dos
jovens de hoje. Nesse sentido, as adaptações é um possível caminho de permitir aos jovens uma aproximação com as
obras canônicas, que também são leituras importantes ao seu crescimento, desde que a leitura atue uma mudança.
Assim, em formas de outras linguagens, como o cinema, a TV, os quadrinhos, é necessário que se chegue até o mundo
do estudante, do leitor atual, e através disso, transformar este leitor de maneira que ele esteja apto a perceber de forma
crítica e reflexiva as múltiplas linguagens que os circundam, assim cabe ao professor também fazer uma ponte entre a
leitura literária e múltiplas linguagens, seduzir, mostrar os caminhos, como baliza Patrícia Pina:

O interessante é que o professor possa abordar diferentes linguagens no processo de


formação do estudante como leitor, dissolvendo a hierarquização tradicional, que confere
ao literário lugar de destaque, numa perspectiva de preservação de leituras canônicas,
absolutamente desinteressantes para as crianças e os jovens de hoje. (PINA, 2012, p. 68)

Em busca de entender as inter-relações entre as diferentes linguagens e a importância de compreender a


multiplicidade delas que nos cercam, escolhemos trabalhar com a linguagem literária e a linguagem quadrinística. A
literatura é a semente reinventada plantada no imaginário do leitor, é um jogo entre o dito e o não dito, ela é fonte de
conhecimento, que mescla o real ao fictício como afirma Compagnon (2009) ela desconcerta, desorienta, incomoda e
desnorteia, porque ela aproxima-se das emoções do leitor. Esses sentimentos ocorrem por meio da linguagem utilizada
pelo o autor para compor seu texto, ela está imbuída de uma intencionalidade, pois é através dela que o autor molda o
leitor implícito que guia o empírico por entre a narrativa. Como afirma Patrícia Pina (2012) “o leitor implícito, de certa
forma, ‘ensina’ o leitor empírico a ler o texto, a despeito da heterogeneidade de repertórios, desafiando-o a dialogar com
ele” (PINA, 2012, p. 27). Então,

A literatura deve, portanto, ser lida e estudada porque oferece um meio- alguns dirão até
mesmo o único- de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão
distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida.
Ela nos torna sensíveis ao fato de que os outros são muitos diversos e que seus valores se
distanciam dos nossos. (COMPAGNON, 2009, p. 47)

Uma das funções da literatura é preservar e transmitir ao leitor, as experiências de outros indivíduos, daqueles
que estão distante de nós no campo espacial e temporal, que são diferentes por suas condições de vida, tornando-nos
sensíveis a cultura e valores do outro. É importante ressaltar também que “[...] o texto literário me fala de mim e dos
outros; provoca minha compaixão; quando leio eu me identifico com os outros e sou afetado por seus destinos; suas
felicidades e seus sofrimentos são momentaneamente os meus.” (COMPAGNON, 2009, p.47-48).
A obra literária é construída imaginariamente, com um trabalho especial sobre a linguagem, de forma a criar
um mundo próprio, ficcional. Monteiro Lobato, no século XX, com suas obras infantis atende a essa concepção que a
obra literária auxilia o imaginário de seu público, como ele expressa em umas de suas cartas a Godofredo Rangel em A
barca de Gleyre: “[...] Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora; sim
morar [...]” (LOBATO, 1961, p. 239), compreendemos que o desejo deste escritor consiste no desenvolvimento da
imaginação infantil, pois ele nos leva a perceber que realmente as crianças são transportadas para o mundo do Sítio do
Pica Pau Amarelo, elas “moram” nestas narrativas. Como demonstra Nelly Novaes Coelho (2000):

Um dos grandes achados de Lobato, [...], foi mostrar o maravilhoso como possível de ser
vivido por qualquer um. Misturando o imaginário com o cotidiano real, mostra, como
possíveis, aventuras que normalmente só podiam existir no mundo da fantasia. (COELHO,
2000, p. 138)

Lobato adapta um dos grandes clássicos canônicos da literatura universal em sua obra Dom Quixote das
crianças (2010), atendendo ao seu desejo de se fazer literatura em que as crianças sintam-se parte dela. Ao adaptar Dom
Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, ele busca utilizar uma linguagem simplificada que o aproxime e o
apresente as crianças como ratifica Amaya Prado (2009) “[...] Dom Quixote passa a ser das crianças e não mais de
Cervantes, ou de Lobato. Nem mesmo ‘de la Mancha’ [...]” (PRADO, 2009, p. 328), pois a ação acontece no ambiente
do Sítio do Picapau Amarelo, imaginada por Emília. No enredo desta narrativa a encontramos logo no início em mais
uma de suas peripécias, na qual ela arrasta o Visconde e objetiva alcançar os dois livros volumosos de Dom Quixote
que está na parte superior da instante, considerando que Dona Benta organizava-a de acordo com as leituras apropriadas
a cada idade para seus netos:

Emília estava na sala de Dona Benta, mexendo nos livros. Seu gosto era descobrir
novidades- livros de figura. Mas como fosse muito pequenina, só alcançava os da prateleira
de baixo. Para alcançar os da segunda tinha de trepar numa cadeira. E os da terceira e da
quarta, esses ela via com os olhos e lambia com a testa. Por isso mesmo eram os que mais a
interessavam. Sobretudo uns enormes. (LOBATO, 2010, p. 12)

Percebemos neste trecho que o autor desperta no leitor uma curiosidade e utiliza-se da linguagem literária para
isso, implicitamente ele descreve a organização da estante quando ele caracteriza Emília utilizando o adjetivo
pequenina, ela tinha acesso somente as duas primeiras prateleiras, e por sua caracterização, transmite a ideia de que os
livros que condiziam com seu tamanho encontravam-se localizados nestas estantes. Para finalizar a descrição ele utiliza
uma expressão que é comumente utilizada como um dito popular via com os olhos e lambia com a testa, aproximando o
leitor do texto, pois as últimas prateleiras eram as que mais interessavam a bonequinha. Ela os via, mas não os
alcançava. Entretanto, ela logo encontra uma saída:

Uma vez a pestinha fez o Visconde levar para lá uma escada- certa vez em que Dona Benta
e os netos haviam saído de visita ao Compadre Teodorico.
Foi um trabalho enorme levar para lá a escadinha. O coitado do Visconde suou, porque
Emília, embora o ajudasse, ajudava-o cavorteiramente, fazendo com que todo o peso
ficasse do lado dele. Afinal a escada foi posta junto a instante, e Emília trepou.
[...] –Visconde- disse a travessa criatura limpando o suorzinho que lhe pingava da testa-,
parece que estes livros criaram raízes. Sem enxada não vai. Temos que arrancá-los como se
arranca árvore. Vá buscar uma enxada.
- Se a senhora me permite uma opinião, direi que o caso não é de enxada- sim de alavanca.
Dona Benta já explicou que a alavanca é uma máquina própria para levantar pesos. Com
alavanca o homem multiplica a força do braço, conseguindo ergue pedras e outras coisas
pesadíssimas (LOBATO, 2010, p. 12)

Nesta passagem o autor define os protagonistas da história, Visconde de Sabugosa (representa o conhecimento)
e a bonequinha Emília (representa o imaginário, a esperteza), notamos essas representações na articulação da fala das
personagens. O primeiro em sua fala soluciona o problema descrito pela segunda, que utiliza a comparação para
justificar o peso dos livros “[...] parece que estes livros criaram raízes. Sem enxada não vai. Temos que arrancá-los
como se arranca árvore. [...]” (LOBATO, 2010, p. 12). Lobato (2010) demonstra a esperteza de Emília ao empregar a
expressão ajudava-o cavorteiramente, pois ela deixava o peso todo para o coitado do Visconde.
Com ajuda da alavanca ela consegue movimentar os livros, porém por serem muito pesados, a bonequinha não
tem força suficiente para sustentá-los, eles despencam, caindo em cima do pobre Visconde, que fica esmagado,
deixando sai de si um líquido, o qual Emília chama do caldo da ciência, esta expressão reafirma o conhecimento
possuído por ele. Lobato (2010) utiliza a onomatopeia Brolorotachabum para representar o barulho do livro ao cair.
Causando tamanho alvoroço que Tia Nastácia corre para ver o que havia acontecido e depara-se com o desastre, ficando
chocada ao encontrar o Visconde naquele lastimável estado, porém a bonequinha demonstra o descaso pelo o atual
estado do Sabugo: “[...] Como fosse uma boneca sem coração, era-lhe indiferente que o Visconde ficasse por ali
naquele triste estado. [...] Mas Tia Nastácia sempre com as mãos à cintura, não tirava os olhos do pobre sabuguinho.”
(LOBATO, 2010, p. 14).
Com a chegada de Dona Benta, tal desastre é explicado. Ela, por sua vez, assume o papel de contadora de
história na narrativa, começa a contar Dom Quixote de La Mancha para seus netos: “- ‘Num lugar da Mancha, de cujo
nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo dos de lança em cabido, adarga antiga e galgo
corredor.’” (LOBATO, 2010, p. 17). Entretanto, essa linguagem rebuscada distancia-os, então ela resolve contá-la com
suas próprias palavras, expressando o desejo de Monteiro Lobato de aproximar o pequeno leitor do universo de Dom
Quixote, percebemos essa implicação do autor no seguinte trecho:

- Meus filhos- disse Dona Benta-, está obra está escrita em alto estilo, rico de todas as
perfeições e sutilezas de forma, razão pela qual se tornou clássica. Mas como vocês ainda
não têm a necessária cultura para compreender as belezas da forma literária, em vez de ler
vou contar a história com minhas palavras. (LOBATO, 2010, p. 17)

Dona Benta narra toda a história de Miguel de Cervantes contando as aventuras de Dom Quixote e seu fiel
escudeiro Sancho Pança, que esperava ser governador de uma ilha, conforme lhe prometera o cavaleiro andante. O
personagem de Alonso Quijana, ou Dom Quixote é apresentado às crianças, como um homem magro, alto, amigo dos
livros de cavalaria e sonhador, esta última característica relaciona-se com a loucura, pois ele assume a posição de
cavaleiro andante, imagina uma amada e monta em seu cavalo Rocinante e sai à procura de aventuras e confusões. É
importante ressaltar, a importância dos livros para a criação daquela segunda personalidade, tanto que todos os seres
imaginados por ele relacionam-se com histórias lidas por Quijana. Daí a importância da leitura para Lobato, ela auxilia
na formação do sujeito, seja para desenvolver seu imaginário ou sua criticidade. Ela é tão perigosa que foi necessário se
queimar seus livros:

No dia seguinte, muito cedo, enquanto o fidalgo estava em seu melhor sono, o Cura voltou
com o barbeiro. Depois de alguns cochichos com a sobrinha e ama, foram-se todos à
biblioteca, na ponta dos pés. Arrecadar os livros de cavalaria não custou muito, porque tudo
lá era cavalaria- mais de cem, afora os miúdos. Foram levados para o quintal. Momentos
depois uma enorme fogueira os devorava. (LOBATO, 2010, p. 33-34)

Outro fato de relevância a ser observado é a predileção de Lobato por Emília, ela representa a contradição, tem
vontade própria, não aceita tudo que lhe dizem, é uma excelente questionadora. Ao expressar sua vontade de ser tão
famosa quanto Dom Quixote, Narizinho diz: “-Exigente! Você já anda bem famosinha no Brasil inteiro, Emília, de
tanto Lobato contar as suas asneiras. Ele é um enjoado muito grande. Parece que gosta mais de você do que de nós [...]”
(LOBATO, 2010, p. 46). A menina do nariz arrebitado, em sua fala demonstra certa ironia e raiva, pois Emília sempre
se sobressai nas obras lobatianas, ao ponto de chamá-lo de enjoado. Essa preferência deve-se ao fato dela não seguir
normas, ela expressar seus desejos, ser insubordinada, como afirma Patrícia Pina (2012):

Ela é curiosa, inquieta, desobediente, travessa, desconhece seus limites, é ousada, não
reconhece as diferenças culturais impostas pelo mundo externo entre “coisas de menina” e
“coisas de menina”, nem entre “coisas de adulto” e “coisas de criança”.
[...] Ela questiona tanto a cultura “popular”, quanto a “erudita”, revitalizando seus limites e
a importância que a tradição confere a cada uma.
[...] Ela é a encenação do lúdico como estratégia de leitura do mundo. (PINA, 2012, p. 107)

Dona Benta termina de contar as aventuras de Dom Quixote, que foram inúmeras, até sua derrota para o
cavaleiro da Branca Lua (seu amigo Simão Carrasco). Sancho Pança consegue alcançar seu objetivo, porém desiste de
ser governador da ilha. A partir desta derrota ele fica muito debilitado, reconhece sua loucura, divide seus bens entre a
sobrinha, a ama, Sancho, o Cura, o mestre Nicolau e o amigo Carrasco e acaba falecendo. Entretanto, como sempre
Emília não aceita o fim da história, se recusando a ouvi-lo e molda uma nova versão dizendo: “- Morreu, nada- dizia
ela. – Como morreu, se Dom Quixote é imortal?” (LOBATO, 2010, p.151).
Na adaptação quadrinística desta obra, realizada por André Simas, ele interpreta a linguagem literária,
selecionando-a, focando estrategicamente nas ações das personagens da obra-fonte. Os quadrinhos seduzem as crianças,
os jovens, isso foi comprovado em nosso estudo, os desenhos e as cores atraem, a preponderância da ação nos
quadrinhos instiga. Vejamos a figura 1 da adaptação:
A vinheta inicial ocupa toda uma página, nela a estante tem uma grande ênfase. Estão dispostos variados
livros, com cores sortidas, e títulos visíveis, mostrando ao leitor a hierarquização da leitura criada por Dona Benta, pois
ela os dispõe de acordo com o grau de conhecimento dos netos segundo as respectivas idades. Na parte alta da estante
se encontra Dom Quixote (em destaque), em tom vermelho e tamanho grande, representando o poder do livro tanto pela
altura do lugar em que se encontra e pela cor, e é justamente esse livro que Emília com suas atitudes impetuosas sobe
escada e resolve pegar o livro de qualquer jeito, e convoca o Visconde para participar das suas artimanhas. As cores dos
personagens são alegres, chamativas, os balões estão com letras normais, o que até então nos dá a ideia de que os planos
de Emília estão dando certo, apesar de ser uma criança subindo escada para pegar um grande livro.
Na Figura 2 estão dispostas quatro vinhetas, as ações já ocorrem com mais rapidez, e os quadrinhos são
irregulares, quase todos os quadrinhos são invadidos pela onomatopeia, o que torna as ações conturbadas, no primeiro
quadrinho a fala de Emília é interrompida “Só mais um pouquinho que eu já pego este livr...” (SIMAS, 2007, p. 5), no
próximo quadro vê-se a expressão de espanto da personagem, seu corpo curvado para trás, e o livro em suas mãos, o
que traz a mente do leitor a ideia que algo está errado, o próximo quadro é todo preenchido por símbolos e linhas
cinéticas, e um balão com o apêndice trêmulo direcionado ao chão, e Emília não aparece nessa vinheta. A última
vinheta da página é maior, com preponderância da onomatopeia, e com Emília em cima do livro e o Visconde amassado
debaixo do livro, Tia Nastácia aparece em cena, diante das atrapalhadas de Emília.
A importância de se trabalhar a HQ, é pelo seu valor apreciado pelas crianças e jovens, por se tratar também de
uma arte que merece lugar de estudo. Os quadrinhos se constituem como uma linguagem híbrida, nela tanto o verbal
quanto o visual tem grande preponderância, um não pode ser desvinculado do outro, são inúmeros os detalhes a serem
analisados nessa linguagem, por isso, assim como a literatura, a HQ também necessita de uma mediação, para a
formação de um leitor crítico, reflexivo, capaz de receber as linguagens e agir sobre elas. Nesse sentido o professor tem
o papel de grande responsabilidade, uma vez que ao se deparar com a heterogeneidade em sala de aula, ele deve agir
como mediador, principalmente na contemporaneidade em que as formas de ler mudaram, por isso as linguagens são
várias, de acordo aos tipos de leitores.
A relação entre os quadrinhos e os leitores de hoje, é uma relação de proximidade, a preponderância das
imagens, é bem mais próximo do leitor do século XXI, mas, é certo que a complexidade também está presente nas
histórias em quadrinhos, conhecer a construção de sua linguagem, assim como da TV, dos filmes, da pintura, é a
ampliação de novos olhares, novos horizontes que são passíveis de significação, ler é uma questão de perceber, refletir,
significar, reconstruir, como baliza Pina (2012):

As adaptações literárias para quadrinhos, TV, cinema podem trazer a sala de aula o mundo
do estudante. Isso não significa “baixar” o nível do ensino: significa, sim, torna-lo
heterogêneo inclusivo. Esse tipo de trabalho pode mostrar, para muitos grupos de crianças e
jovens silenciados do país, que estudar faz algum sentido. (PINA, 2012, p. 69)

Mediante a necessidade de formação do leitor e o trâmite entre as múltiplas linguagens, realizamos oficinas de
formação de leitores em Igaporã, através do projeto “Mediando à leitura, criando o leitor, forjando cidadãos”,
desenvolvido pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus VI, a fim de perceber como os professores lidam
com as múltiplas linguagens em sala de aula, discutimos como oficinas de quadrinhos, assim como essa multiplicidade
que circula na contemporaneidade, podem contribuir para a formação de leitores. Essas oficinas nos deram e dão a
oportunidade de conhecer a realidade da leitura nesses municípios, e permitem-nos abrir novos horizontes para
professores e alunos.
Na realização desse encontro, juntamente com o acompanhamento da orientadora das ações do Laboratório de
Leitura Monsenhor Raimundo dos Anjos, Patrícia Pina, demos início com uma provocação ao público, perguntando aos
professores se eles usavam os quadrinhos em sala de aula. Em primeiro momento o silêncio permaneceu, percebemos
que a resistência pela utilização das novas linguagens em sala de aula foi quase unânime, até que, decorrida de mais
provocações, uma professora disse utilizá-las somente em avaliações, e ainda completa “não utilizo tanto, por talvez,
desconhecer a metodologia, e não ter um treinamento para o a utilização dessa linguagem”. Nesse momento tivemos
uma confirmação do que deduzíamos, o despreparo é um grande obstáculo no uso de novas linguagens em sala de aula,
em que muitas vezes, o docente tenta englobar as múltiplas linguagens, porém as usam de forma equivocada.
Além disso, percebemos que não só foi o desconhecimento da linguagem que impedia aqueles professores de
usá-las em sala, a noção pré-concebida sobre quadrinhos também estava presente nos professores. Mais dois professores
afirmaram utilizar os quadrinhos, e para a nossa admiração de maneira bem lúdica, uma professora disse que usou as
HQ na primeira unidade, que seus alunos liam a obra fonte, transformavam em quadrinhos e até reinventavam a
história, uma forma dinâmica em que a professora levava ao contexto de seus discentes o que eles gostam, permitindo
também, a partir dessa sedução e dinamicidade, a leitura da obra fonte.
Seguido disso, passamos a discutir a obra fonte de Monteiro Lobato, Dom Quixote das crianças, em que o
autor traz de forma adaptada um grande clássico Dom Quixote de la Mancha, de Cervantes, dando à criança a
oportunidade de conhecê-lo de acordo com o seu repertório, como o próprio autor diz acerca da preocupação de permitir
“os nossos leitores o que havia de melhor na literatura universal” (LOBATO, 2010, p. 7), isso no século XX. Assim,
mostrando o livro de Monteiro Lobato de 151 páginas, para três adolescentes presentes no encontro, interrogou-se se
elas leriam a obra, bonita, colorida, e com 151 páginas, duas garotas disseram que sim, a outra disse que não, nesse
momento, percebemos a afeição dos jovens por parte das novas linguagens, como diz Patrícia Pina (2012):

Com as transformações tecnológicas, culturais e sociais ocorridas entre o final do século


XX e os primeiros anos deste século XXI, pensar a leitura e o leitor nos moldes passados
significa inviabilizar a existência de ambos. Daí as tantas afirmações de que jovens não
leem, a leitura está desacreditada etc. Avaliar a leitura e o leitor hoje com olhos letrados do
século anterior é esvaziá-los de valor e significância. É preciso ressignificar o ato de ler
literatura. (PINA, 2012, p.43)

As formas de ler mudaram, por isso, que a veiculação de novas linguagens se multiplicaram, os jovens se
deslumbram muito mais com a moda, a internet, os filmes, os quadrinhos, do que com a linguagem literária. As
múltiplas linguagens circundam ao nosso redor, e não podemos fechar os olhos para elas, principalmente ao saber que
esse é o mundo vivido e apreciado pela maioria, mas, para isso, cabe a cada educador, mediador, ressignificar essas
linguagens, a leitura crítica desse mundo atual, também tornará um bom leitor, e com isso, pode permitir aos leitores a
ultrapassar essas leituras e sentirem-se seduzidos pela literatura também, mas se assim não acontecer, é importante que
os leitores tenham uma boa leitura, pelo menos das linguagens do seu mundo.
A partir dessa percepção demos continuidade à oficina, apresentamos em slide as primeiras páginas do livro
“Dom Quixote das crianças” (2010) quadrinizado, comparando com sua obra fonte, adentrando nas concepções de duas
linguagens distintas, a literária e a quadrinística, visto que, cada uma possui sua autonomia e que seus mecanismos para
a construção da narrativa são diferentes. Mas como, o educador, não preparado para lidar com essas linguagens, assume
o papel de mediador? Nessa oficina, abrimos ao público as possibilidades, os vários caminhos para se trabalhar em sala
de aula, adaptando com a realidade, dando o leque de possibilidades de aprofundar, buscar, conhecer, sabendo que é
pedido nos PCN:

A importância e o valor dos usos da linguagem são determinados historicamente segundo


as demandas sociais de cada momento. Atualmente, exigem-se níveis de leitura e de escrita
diferentes dos que satisfizeram as demandas sociais até há bem pouco tempo e tudo indica
que essa exigência tende a ser crescente. A necessidade de atender a essa demanda, obriga à
revisão substantiva dos métodos de ensino e à constituição de práticas que possibilitem ao
aluno ampliar sua competência discursiva na interlocução. (BRASIL,1998, p. 23)

Portanto, essa diversificação em sala de aula, deve atingir o mundo dos discentes, conhecê-lo e ressignificá-lo.
Essas ações farão com que eles se sintam à vontade nesse processo de construção, ele também estará apto para lidar
com a multiplicidade da linguagem existente em nossa sociedade hoje, compreendendo-a e apreendendo-a através de
sua caraterísticas, porém o despreparo dos professores é nítido, percebemos que sua formação deve ser contínua, o
professor por si deve ter a consciência da necessidade dos seus educandos, sair da monotonia, agir e inovar suas
práticas. A heterogeneidade está presente dentro e fora de sala e as práticas leitoras dos alunos, devem servir para seu
desempenho social, ultrapassando os muros da escola.

Referências Bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. Leitura, leitores, letrados, literatura. In: Coisas ditas. São Paulo- SP: Brasiliense, 2004.

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/
Secretaria de Educação Fundamental. . Brasília: MEC/SEF, 1998.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. 1ª Ed. São Paulo-SP: Moderna, 2000.

COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre. 10ª Ed. São Paulo-SP: Brasiliense, 1961.
________________. Dom Quixote das crianças. Roteiro de André Simas. São Paulo: globo, 2007. (Monteiro Lobato
em Quadrinhos)

___________[1952]. Dom Quixote das crianças. 1ª Ed. São Paulo-SP: Globo, 2010.

PINA, Patrícia Kátia da Costa. Literatura em quadrinhos: arte e leitura hoje. 1ª Ed. Curitiba- PR: Appris, 2012.

PRADO, Amaya O. M. de Almeida. Dom Quixote das crianças de Lobato: no qual Dona Benta narra as divertidas
aventuras do cavaleiro manchego e também se contam os sucessos ocorridos durante os serões. In: LAJOLO, Marisa;
CECCANTINI, João Luís (orgs.). Monteiro Lobato, livro a livro: obra infantil. São Paulo-SP: Unesp, 2009.

RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo-SP: Contexto, 2009.

Você também pode gostar