Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Para os letrados do litoral, das capitais, a Coluna ficou como um dos mais
importantes acontecimentos políticos do Brasil republicano. Não um movimento
comunista, como muitos hoje pensam. Na época, Prestes era uma capitão do
Exército que nada sabia de marxismo. Nem uma manifestação tenentista como
as outras, quarteladas frustradas, espetaculares, mas sem dia seguinte. Sim, um
movimento com um espectro mais variado de figurantes, duração mais
prolongada (cerca de dois anos), despertando mais simpatias nas cidades,
derramando mais sangue, enfim, um audacioso gesto de rebeldia contra... não
se sabia bem o quê, mas sem dúvida, contra os governantes amparados no
sistema oligárquico vigente.
Qualquer que seja o rumo do debate sobre a natureza do tenentismo, não cabem
dúvidas sobre a importância da marcha dos revoltosos no cenário brasileiro de
então. Nenhuma outra manifestação política dos anos 1920 mostrou capacidade
de degaste do poder e das instituições como a Coluna. Os revoltosos obrigaram
o presidente Arthur Bernardes a governar permanentemente sob estado de sítio
e condicionavam a ação do seu sucessor, Washington Luiz. Alimentaram, enfim,
as esperanças de alteração de vida do país, ajudando a compor o ambiente para
a grande ruptura de 1930.
Subindo rumo ao Norte, desde a Foz do Iguaçu, de onde iniciou o seu trajeto
atravessando o imenso vazio que era o Brasil central, cortando as matas de
Goiás, escapando da perseguição, das tropas do preparado coronel Bertoldo,
Klinger, outrora um “jovem turco”, com as quais haviam gastado muita munição
preciosa, os revoltosos mostrariam ao país que não se prendiam a conflitos
localizados. Intrigariam uma opinião urbana acostumada a rebeldias de curta
duração.
A versão também não faria mal aos revoltosos: Brasil afora correria a notícia não
só de seu arrojo, como de sua força, capaz de cercar uma capital defendida por
mais de 4.000 soldados fortemente armados e entrincheirados! Assim, seriam
desmentidas as insistentes afirmações de autoridades federais, dando conta de
que os rebeldes estavam nas últimas, isolados, famintos, frustrados.
Que movimento político, que partido teve a Coluna como braço armado? O
movimento tenentista, o partido militar. Quanto ao “povo” que, sensibilizado
pelas ideias liberais de voto secreto e liberdade de imprensa, batia palmas para
a Coluna, não estava nos sertões devastados pelos revoltosos.
Menos de três décadas separavam Canudos da Coluna. O povo fugia por conta
das informações recebidas das áreas visitadas pelos revoltosos, onde não
sobrava cavalo, boi, carneiro, galinha e milho nos paióis. E também porque não
adiantava lutar contra soldados de corpo fechado.
“Herói, que coisa tão simples, tão grande e tão difícil! Herói, que palavra
mais linda! Só o povo concebe, alimenta e cria o herói. Nasce das
entranhas do povo, que são as suas necessidades. Nasce do povo, é o
próprio povo no máximo das suas qualidades. Como o poeta, vai na frente
do povo. O poeta e o herói constroem os povos, dão-lhes personalidade,
dignidade e vida. São momentos supremos na vida de uma nação e na
vida de um povo. Tão necessários como o ar que se respira, a comida que
se come, a mulher que se ama” (Jorge Amado, in “Cavaleiro da
Esperança”) (8).
Jorge Amado não lera as novidades teóricas da época. Artistas não carecem
disso para produzir suas obras. Nem José Pacheco, que em versos ressaltou o
grande confronto ocorrido na porta do céu entre Lampião e São Pedro, ajudando
Virgulino a obter a legenda de bandido-herói e, com isso, resgatando dignidade
para os milhares de potenciais candidatos a cangaceiros espalhados pelo sertão.
Mas não duvido de que as ideias de um militante como Jorge Amado sobre o
papel do herói exemplificam uma assimilação confusa de teorias antagônicas.
Jorge Amado diz, poeticamente, como convém a quem narra epopeias, que o
herói “nasce do povo, é o próprio povo no máximo de suas qualidades”. Sem
respirar, abandona Marx e assume os seus adversários teóricos, notadamente,
Carlyle: “O poeta e o herói constroem os povos, dão-lhes personalidade,
dignidade e vida”.
Se a realidade era pouco digna dos heróis, que seu lugar fosse ocupado pelas
lendas
A crença segundo a qual o herói é um fator decisivo para os grandes projetos
sociopolíticos tem complicado a interpretação histórica ao longo dos séculos.
Faz com que a história se amolde aos heróis. Tucídides, talvez o primeiro
ocidental a pretender separar, no discurso histórico, o maravilhoso da realidade
observável, ficou longe de seu intento. Políbio, três séculos depois, criticá-lo-ia
com veemência: “O historiador não deve oferecer uma história que produza
emoções através do fantástico” (10).
Notas
(4) Farias, Oswaldo Cordeiro de, Meio século de combate: diálogo com Cordeiro
de Farias, Aspásia Camargo, e Walter Goes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1981, p. 103.
(6) Entre se referiram a Coluna como movimento guerrilheiro está João Quartim
de Moraes, em “A esquerda militar no Brasil”, São Paulo: Siciliano, 1991, que a
considerou uma “guerrilha rural de esquerda militar”. Anita Leocádia Prestes, em
sua tese de doutoramento apresentada à UFF, adota essa ideia e vai mais longe
classificando-o como “um exército com características populares” (op. cit., 297-
298).
(10) Vernant, na obra já citada, considera que Políbio permanece até hoje o
melhor crítico de Tucídides.
Este ensaio foi publicado pela Revista Princípios, Fundação Maurício Grabois,
São Paulo, Edição n. 40, FEV/MAR/ABR, 1996, pp 60-67.