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N AT I O N A L G E O G R A P H I C .

P T | JULHO 2021

TESOUROS
NO LIXO

N U M AT E R R O S A N I TÁ R I O, I N Ú M E R O S

FÓS SEIS TÊM EMERGIDO. ALGUNS SÃO

PRECURSORES DA NOS SA ESPÉCIE .


N.º 244 MENSAL €4,95 (CONT.)
00244

603965 000006

S O LU Ç Õ E S PA R A UM A CIÊNCIA DOS T U R I S MO D E SA FA R I
MU N D O C A DA V E Z CAMPEÕES EM EM TEMPO
MAIS QUENTE P O RT U GA L D E PA N D E M I A
5
N AT I O N A L G E O G R A P H I C JULHO 2021

S U M Á R I O

2 24
Na capa
Crânio de um
barburofelídeo, um
dos setenta mil fósseis
encontrados no aterro
Demasiado calor para viver A sombra que divide sanitário de Can Mata,
Com cada vez mais emissões de A ausência de arvoredo na província de
gases com efeito de estufa, as nos bairros mais carenciados Barcelona, em Espanha.
ondas de calor serão mais de Los Angeles expõe PAOLO VERZONE
prolongadas. O limiar térmico os moradores a
do século XXI poderá conduzir cerca de 4°C a mais do que
mais alguns milhões de seres noutras zonas. Estas diferenças
humanos para longe da sua zona marcadas de temperatura
de conforto. A adaptação vai são na realidade o legado
requerer uma alteração de de um urbanismo baseado
paradigma que não cause danos em políticas racistas.
ao ambiente. T E X TO D E A L E JA N D R A B O RU N DA
T E X TO D E E L I Z A B E T H R OY T E F OTO G RA F I A S D E E L L I OT RO S S

SAUMYA KHANDELWAL, THE NEW YORK TIMES VIA REDUX


R E P O R TA G E N S S E C Ç Õ E S

38
A S UA F OTO

VISÕES

EXPLORE
Os fósseis da lixeira
Escada para o céu
A ampliação de um aterro
sanitário permitiu importantes
achados paleontológicos, entre os E D I TO R I A L
quais se destacam fósseis de
primatas ancestrais, precursores N A T E L E V I SÃO
de grandes símios antropomór-
ficos e até dos seres humanos.
P RÓX I M O N ÚM E RO
T E X TO D E J E N N I F E R P I N KOW S K I
F O T O G R A F I A S D E PA O L O V E R Z O N E

54
A ciência dos campeões
Da canoagem à maratona, da
marcha atlética ao alpinismo,
os limites do ser humano são
testados continuamente. Em
Coimbra e no Porto, duas equipas
de investigadores transformam
as limitações em forças.
T E XTO E F OTO G RA F I A S D E
A N TÓ N I O LU Í S C A M P O S

66
Turismo de safari
No Norte do Quénia, a estratégia
das zonas de conservação
comunitárias, baseada na
coexistência entre humanos e
animais, tem permitido resistir ao Envie-nos comentários
embate da pandemia, que reduziu para nationalgeographic
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as receitas turísticas no país.
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O massacre racial de Tulsa portugal
Em 1921, uma multidão atacou o
próspero distrito negro de Tulsa,
no Oklahoma, num dos piores
atentados terroristas da história
Assinaturas e
dos Estados Unidos. O massacre
atendimento
durou dias e custou a vida a 300
ao cliente
pessoas. Depois, foi esquecido…
Telefone 21 433 70 36
TEXTO DE DENEEN L . BROWN (de 2.ª a 6.ª feira)
FOTOGRAFIAS DE BETHANY MOLLENKOF E-mail: assinaturas@vasp.pt

DE CIMA PARA BAIXO: PAOLO VERZONE; ANTÓNIO LUÍS CAMPOS; DAVID CHANCELLOR; BETHANY MOLLENKOF
A HISTÓRIA
VIVA NA
QUINTA DE
S. FRANCISCO
À entrada da Quinta de S. Francisco, nos jardins junto
ao Instituto RAIZ, no Eixo, erguem-se duas árvores de
Ginkgo biloba, uma das mais antigas espécies vegetais
do mundo. Os dois exemplares desta árvore primitiva
são recentes naquele espaço de natureza, a poucos
quilómetros de Aveiro, mas a espécie já existe no
planeta há mais de 150 milhões de anos, sendo
contemporânea dos dinossauros. Pólo de conservação
da biodiversidade com cerca de 14 hectares, a
propriedade da The Navigator Company reúne cerca
de 400 espécies vegetais e para cima de 70 espécies
de aves e outros animais, revelando-se um museu
de história viva de assinalável riqueza botânica.
Entre as cerca de 200 espécies de árvores e arbustos
que habitam no espaço, sobressai um arboreto de
eucaliptos centenários, ali plantados entre 1902 e 1906.
Existem no mundo perto de 800 espécies de eucalipto
e na Quinta de S. Francisco podem ser observadas
cerca de uma centena, cuja notoriedade é avaliada
pela raridade, beleza, cor, perfume ou impressionantes
envergaduras que arranham o céu.
No espaço florestal, os eucaliptos convivem em
harmonia com carvalhos, cedros, ciprestes, e até uma
majestosa sequoia e um extenso canavial de bambus,
para além de árvores autóctones, como o carvalho
alvarinho, o buxo, a gilbardeira ou o pinheiro-manso.
Aberto à comunidade, o legado da Quinta de
S. Francisco representa a defesa dos valores naturais
e da biodiversidade que hoje são vertentes
indissociáveis da gestão e do desenvolvimento
sustentável do património florestal.

As florestas sustentáveis da The Navigator Company apoiam a


National Geographic Portugal a diminuir a sua pegada ecológica.
Fontes: Os Eucaliptos e as Aves da Quinta de S. Francisco, Grupo Portucel Soporcel, 2007 | Cerasoli, S., Caldeira, M. C., Pereira, J. S.,
Caudullo, G., de Rigo, D., 2016. “Eucalyptus globulus and other eucalypts in Europe: distribution, habitat, usage and threats. In:
San-Miguel-Ayanz, J., de Rigo, D., Caudullo, G., Houston Durrant, T., Mauri, A. (Eds.), European Atlas of Forest Tree Species
publirreportagem
O Eucalyptus botryoides é uma
das sete espécies de eucalipto no
mundo que podem atingir mais de
80 metros de altura. A árvore mais
alta na Quinta e uma das maiores
no país é, precisamente, desta
espécie, medindo 58,5 METROS.

Neste espaço estão identificadas


cerca de 70 ESPÉCIES DE AVES,
e boa parte destas com nidificação
confirmada no local, casos da
toutinegra-de-barrete, da
alvéola-branca, do rabirruivo, da
águia-de-asa-redonda ou vários
chapins.

A Quinta de S. Francisco alberga


o RAIZ – INSTITUTO DE
INVESTIGAÇÃO DA FLORESTA
E PAPEL desde 1996, instituição
do Sistema Científico e Tecnológico
Nacional que desenvolve as
melhores soluções para maior
ecoeficiência da indústria do papel.
V I S Õ E S | A SUA FOTO

H U G O M I G U E L M A R Q U E S O autor faz quase exclusivamente fotografia macro de louva-a-deus. Em Pedrógão Pequeno,


dois exemplares interagiam. A curiosa pose foi fortalecida pelo olhar de ambos, que parecem comunicar com o leitor.

A R M I N D O F E R R E I R A Num pequeno lago situado na pateira de Fermentelos, onde está proibida a pesca, este
pequeno guarda-rios desafia a lei. “Foi um momento delicioso, que me fez ganhar o dia”, diz o autor.
PA U L O R O C H A M O N T E I R O O Caldeirão do Inferno, na ilha da Madeira, faz jus ao nome durante o percurso pedestre
para caminhantes intrépidos. ”A beleza do local superou as altas expectativas iniciais”, conta o autor. “Há paredes verti-
cais por todos os lados, um ambiente sombrio, uma queda de água com um pequeno lago a seus ‘pés’ e um silêncio tão
profundo quanto o abismo por baixo desta ponte rudimentar.”
V I S Õ E S

Indonésia
Um camarão-coral-bolha
(Vir philippinensis) refugia-se
no interior de um coral com
o qual estabelece uma relação
simbiótica. Estes pequenos
crustáceos são quase
translúcidos, pelo que se
torna mais difícil fotografá-los.
KHAICHUIN SIM / GETTY IMAGES
Indonésia
A tribo indonésia dos baduy
recusa a tecnologia do mundo
moderno e prefere viver em
harmonia com os recursos da
natureza. Especializou-se em
construir pontes suspensas na
selva, construídas sem outras
ferramentas além das raízes
entretecidas das árvores.
FERRY R. TAN / GETTY IMAGES
Egipto
Um homem cobre o rosto na
totalidade para se proteger
da poeira levantada pelos
blocos de calcário de uma
pedreira na cidade de Minia.
Estes operários costumam
trabalhar em condições difíceis
e pouco seguras a troco
de salários irrisórios.
KHALED DESOUKI / GETTY IMAGES
E X P L O R E

Nos Alpes Austríacos, para atingir o cume, é preciso ascender

PA R A O C UM E R A Í Z E S DA RO TA OUTROS CAMINHOS
Esta escada vertiginosa A primeira via ferrata foi A via ferrata Donnerkogel
constitui um trecho da via instalada em 1843 na mon- pode ser aflitiva.
ferrata Grosser Donnerko- tanha Hoher Dachstein na “Para mim, é mais fácil
gel. A via ferrata é um Áustria pelo geógrafo e confiar na rocha do que
caminho construído na face alpinista Friedrich Simony. em estruturas feitas pelo
rochosa e íngreme da mon- Os caminhos modernos, homem”, diz Jess Dales (na
tanha. O termo ganhou nos quais os montanhis- imagem), um visitante no
popularidade depois de os tas se prendem ao cabo local. Há alternativas: um
montanhistas se apropria- usando dois mosquetões teleférico transporta os
rem da rede construída de segurança, atraem os visitantes até metade da
nas Dolomitas durante a amantes de actividades encosta e há trilhos
Grande Guerra para ajudar ao ar livre. “Toda a expe- da base ao cume.
os soldados a deslocarem- riência foi aterradora da No topo de Donnerko-
-se em grandes altitudes. melhor maneira possível”, gel, assinalado por uma
Agora, estes caminhos per- brinca o fotógrafo Quin grande cruz, obtém-se
mitem que montanhistas Schrock. A rota Donnerko- uma panorâmica sublime
sem qualificações técnicas gel, por norma requer do glaciar Dachstein
tenham acesso a panorâmi- cerca de três horas. e das águas do lago
cas excepcionais. Gosau no vale em baixo.

ESCADA PARA O CÉU


N AT I O N A L G E O G R A P H I C
por esta “Escada para o Céu

37
V I A S F E R R AT A S N O D I S T R I T O D E
S A L Z K A M M E R G U T, N A Á U S T R I A

131
C O M P R I M E N T O D E S TA E S C A DA
(EM METROS)

2.054
A LT U R A D E D O N N E R K O G E L
(EM METROS)

R O PA
EU ÁUSTRIA

TEXTO DE STEPHANIE PEARSON FOTOGRAFIA DE QUIN SCHROCK

NGM MAPS JULHO 2021


«Acreditamos no poder da ciência, da exploração
e da divulgação para mudar o mundo.»

A National Geographic Society é uma organização global sem fins lucrativos que procura novas fronteiras da
exploração, a expansão do conhecimento do planeta e soluções para um futuro mais saudável e sustentável.

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J U L H O | EDITORIAL

CONTRA AS
ALTERAÇÕES
O contraste entre
o sol e a sombra
CLIMÁTICAS

TEXTO DE SUSAN GOLDBERG FOTOGRAFIA DE ELLIOT ROSS

A C I Ê N C I A A S S E G U R A que o mundo
está mais quente e cada um de nós
pode notá-lo de forma diferente. O meu
indicador são as aves que já não migram
para sul no Inverno: agora, vejo-as ao
longo de todo o ano.
Para resolver o aquecimento glo-
bal, teremos de reduzir as emissões de
gases com efeito de estufa. A primeira
reportagem deste mês aborda esse desa-
fio. Analisa o calor e a forma como os
humanos devem adaptar-se a uma nova
realidade quente, mas também como
terão de trabalhar para a mitigar. Em
contrapartida, a reportagem seguinte
explora uma solução imediata e pouco
tecnológica para o calor: a sombra.
Estamos bem cientes dos seus bene-
fícios para a saúde pública. Permanecer
à sombra pode fazer-nos sentir até 10
graus mais frescos do que se estivés-
semos ao sol. O princípio também se
aplica ao local onde vivemos. Um estudo
recente descobriu que bairros com uma “Não se vê verde nas áreas delimi- Enquanto Elliot Ross
cobertura densa de árvores são em tadas a vermelho”, disse o ecologista fotografava em Los Ange-
les, os utilizadores dos
média cinco graus mais frescos do que urbano Vivek Shandas à jornalista Ale- transportes públicos disse-
bairros, nas mesmas cidades, sem essas jandra Borunda. Hoje, em alguns dos ram-lhe que os abrigos das
características. Contamos a nossa histó- bairros mais pobres de Los Angeles, a paragens ofereciam pouca
sombra e que os passagei-
ria de sombra a partir de Los Angeles. percentagem de terra com sombra for- ros em espera podiam ficar
Provavelmente não ficará surpreen- necida pela copa das árvores é de um perigosamente sobreaque-
dido ao saber que os bairros mais dígito (em comparação com quase 40% cidos, mesmo no Inverno.
Áreas verdes das cidades
quentes tendem a ser áreas de baixos de cobertura em bairros mais abastados). tendem a concentrar-se:
rendimentos. Redlining é uma prática Vivek está a trabalhar com a cidade de quase 20% das árvores
discriminatória ilegal através da qual Los Angeles para desenvolver programas situam-se em cinco
bairros de habitação, onde
um credor hipotecário nega emprés- de plantação de árvores.
reside 1% da população.
timos ou uma companhia de seguros Los Angeles e muitas outras cidades
restringe os serviços a certas áreas de já estão a plantar milhares de árvores,
uma comunidade, muitas vezes devido aumentando a cobertura fornecida
às características étnicas da vizinhança pelas copas das árvores em áreas negli-
do requerente. Esta prática de discri- genciadas. Não é uma panaceia e vai
minação é responsável pela recusa de demorar muito até fazer a diferença.
créditos para compra de habitação. Porém, à medida que as temperaturas
O legado dessas desigualdades torna aumentarem, a plantação de árvores de
a própria sombra um bem carregado de maneira equitativa em todos os bairros
significado. É uma medida duradoura é um pequeno, mas significativo, passo.
de privilégio. Obrigado por ler a National Geographic.
O aumento
de calor no
século XXI
talvez prive
milhões de pes-
soas do conforto
a que estão
habituadas.
T E XTO D E
E L I Z A B E T H ROY T E

DEMASIADO
CALOR

DASHT-E LUT, IRÃO


De manhã, um viajante contempla
aquele que deverá ser o lugar
mais quente da Terra: o deserto
de Lut. Em 2014, cientistas
franceses obtiveram aqui uma
medição de 610C à sombra, um
potencial recorde mundial, se
for repetido com instrumentos
padronizados. À medida que
a Terra aquece, outras regiões
tornar-se-ão parecidas com Lut
e inóspitas para os seres humanos.
MATTHIEU PALEY

2
PARA VIVeR
NOVA DELI, ÍNDIA
Aparelhos de ar
condicionado nas
fachadas de prédios de
apartamentos na capital
indiana. Por norma, as
temperaturas costumam
ultrapassar 40°C em
Maio. Menos de 10%
dos agregados familia-
res indianos possuem
ar condicionado, mas
este mercado regista um
crescimento explosivo.
SAUMYA KHANDELWAL,
THE NEW YORK TIMES VIA REDUX
O CORPO HUMANO TEM EVOLUÍDO de modo a dissipar calor
de duas maneiras essenciais: os vasos sanguíneos dilatam, transpor-
tando o calor até à pele para que ele possa irradiar, dissipando-se.
O suor também se forma sobre a pele, arrefecendo-a por evaporação.
Quando esses mecanismos falham, nós morremos. Parece linear. No
entanto, é um colapso complexo que ocorre por etapas.
Enquanto a temperatura interna de uma vítima de insolação
vai subindo, o coração e os pulmões funcionam cada vez mais in-
tensamente, de modo a manterem cheios os vasos dilatados. Uma
vez atingido determinado ponto, o coração deixa de ser capaz de
aguentar o ritmo. A pressão sanguínea baixa, induzindo tonturas,
fazendo a pessoa cambalear e provocando-lhe fala arrastada. Os
níveis de sal diminuem e os músculos contraem-se, sofrendo cãi-
bras. Confusas, por vezes mesmo delirantes, muitas vítimas nem
se apercebem de que precisam de ajuda imediata.
Com o sangue a afluir maciçamente à pele sobreaquecida, o seu
afluxo aos órgãos diminui, desencadeando reacções que decom-
põem as células. Algumas vítimas sucumbem com uma tempe-
ratura interna de apenas 40ºC. Outras conseguem aguentar 42ºC
durante várias horas. O prognóstico é normalmente pior nas pes-
soas muito jovens e nos idosos. Mesmo que sejam saudáveis, os PARIS, FRANÇA
mais idosos encontram-se em clara desvantagem: as glândulas A fonte de Trocadero
proporciona alívio
sudoríparas encolhem com a idade e muitos medicamentos de durante a vaga de
utilização comum enfraquecem os sentidos. Muitas vezes, as víti- calor de 2019.
mas não sentem sede suficiente para beber. A sudação deixa de ser Uma catastrófica
antecessora, em 2003,
uma opção, uma vez que o corpo já não tem humidade disponível. desencadeara grandes
Em vez disso, até ocorrem arrepios de frio. reformas, como a
Chegado a este ponto, o enfermo pode morrer devido a um ata- obrigatoriedade de
instalar arrefecimento
que cardíaco, mas os indivíduos em melhor forma podem resistir e em lares de idosos.
padecer da chamada visão em túnel, alucinações e até do impulso Essas reformas
de arrancar as roupas, que parecem lixa devido ao ardor nas ter- resultaram: em 2019,
a taxa de mortalidade
minações nervosas. Se desmaiar agora, será uma bênção, uma vez em França foi 90%
que os vasos sanguíneos começam a perder a sua integridade. Os mais baixa.
tecidos musculares, incluindo os do coração, podem ser os seguin- SAMUEL BOIVIN, NURPHOTO
VIA GETTY IMAGES
tes na lista de colapsos. Assim que começam as fugas no aparelho
digestivo, as toxinas entram na corrente sanguínea. O sistema cir-
culatório reage, desencadeando um esforço maciço de coagulação.
É um último recurso que ameaça ainda mais gravemente os órgãos
vitais – rins, bexiga e coração. A morte avizinha-se.

6 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
NO VERÃO DE 2003, um sistema de alta pres- estava equipada com ar condicionado). A polícia
são atmosférica instalou-se sobre a Europa Central recebeu telefonemas para arrombar portas, “ape-
e Ocidental. Maciçamente aquecida sobre o Medi- nas para encontrar cadáveres atrás delas”, recorda
terrâneo, a gigantesca massa de ar rodopiante repe- Patrick Pelloux, presidente da associação france-
liu, durante várias semanas, as incursões de ar mais sa de médicos de emergência. “Foi absolutamente
fresco provenientes do Atlântico. Em França, as aterrador.” Muitos cadáveres só foram descober-
temperaturas subiram radicalmente, ultrapas- tos várias semanas mais tarde.
sando durante oito dias a fasquia assustadora de Em França, mais de 15 mil mortes acabaram
40°C. À medida que o calor aumentava, começaram por ser atribuídas à vaga de calor. Em Itália, a si-
a ocorrer mortes. tuação foi ainda pior, com quase 20 mil mortos.
Passado pouco tempo, os hospitais ficaram Em todo o continente, mais de 70 mil pessoas (na
sobrecarregados. As morgues ficaram cheias e os sua maioria pobres, isoladas e idosas) perderam a
camiões frigoríficos e congeladores dos mercados vida. O mais quente Verão registado em 500 anos
de alimentos aceitaram os cadáveres em excesso. na Europa, como os cientistas haveriam de deter-
Nas visitas ao domicílio, os prestadores de cuida- minar mais tarde, esteve claramente associado às
dos encontraram os seus clientes caídos no chão alterações climáticas. Em Paris, desencadeou um
ou mortos nas poltronas. Nessa época, só uma aumento do risco de mortalidade devido ao calor
pequena percentagem das residências francesas nesse ano em cerca de 70%.

D E M A S I A D O C A LO R PA R A V I V E R 7
Entre as numerosas ameaças climáticas que os Dentro de 50 anos,
cientistas associam ao aquecimento global, o au- um terço da
mento das vagas de calor é a consequência mais in-
população mundial
tuitiva e imediata. A nível mundial, os últimos seis
anos foram os mais quentes de que há registo. Na poderá viver
Europa, o pavoroso Verão de 2003 provou não ser em lugares
uma mera excepção estatística: grandes vagas de parecidos com
calor atingiram o continente cinco vezes desde en-
o Saara,
tão e 2019 produziu recordes absolutos de tempe-
ratura em seis países da Europa Ocidental, incluin- onde a
do a barreira de 46ºC que se fez sentir em França. temperatura média
Como é evidente, a derradeira solução para o de Verão
aquecimento global consiste numa redução drás-
ultrapassa 40˚C.
tica das nossas emissões de gases com efeito de
estufa. Se fracassarmos por completo nesse inten-
to, em 2100 o número de mortes devidas ao calor
poderá exceder 100 mil por ano nos EUA. Noutras
regiões, a ameaça talvez se torne ainda maior: na ratura média anual de aproximadamente 12,8ºC.
Índia, por exemplo, o número de mortes poderá Os nossos corpos adaptam-se com facilidade a
atingir 1,5 milhões, segundo uma investigação re- temperaturas mais elevadas, mas há limites para
cente. E mesmo que consigamos refrear as emis- os níveis máximos de calor e de humidade que
sões, o planeta continuará a aquecer durante vá- conseguimos tolerar.
rias décadas. Está em movimento uma força irre- Até o ser humano em melhor forma e mais acli-
sistível que alterará profundamente a forma como matado ao calor morrerá após poucas horas de
se vive em grande parte do planeta. exposição a um estado de “bulbo húmido”, uma
O calor extremamente intenso tem consequên- medição combinada de temperatura e de humi-
cias perniciosas, mesmo quando não é mortífero. dade que leva em conta o efeito inibidor da evapo-
Os investigadores associam as temperaturas mais ração. Neste estado, a atmosfera é de tal maneira
elevadas a uma maior incidência de casos de be- quente e húmida que já não é capaz de absorver o
bés prematuros, com baixo peso e nados-mortos. suor humano. Uma caminhada longa nestas con-
As condições climáticas de maior calor tornam dições poderá revelar-se fatal. Os modelos climá-
as pessoas mais violentas, em todos os escalões ticos prevêem que, dentro de aproximadamente
de rendimento, prejudicando os resultados das 50 anos, as temperaturas de bulbo húmido na
crianças nos testes escolares e diminuindo a pro- Ásia Austral e em regiões do Médio Oriente ultra-
dutividade. Segundo previsões da Organização passem regularmente o máximo crítico.
Internacional do Trabalho, em 2030 os níveis ele- Nessa altura, segundo um surpreendente es-
vados de calor reduzirão em 2,2% o total de horas tudo publicado em 2020 nas “Actas da Academia
de trabalho, o equivalente à perda de 80 milhões Nacional das Ciências” dos EUA, um terço da
de postos de trabalho a tempo inteiro, principal- população mundial poderá viver em lugares se-
mente nos países de baixo a médio rendimento. melhantes ao actual Saara, onde a temperatura
Mesmo nos países mais ricos, os assalariados com média de Verão mais elevada ultrapassa 40°C. Mi-
baixo rendimento que trabalham no exterior – na lhares de milhões de pessoas terão de fazer uma
construção ou na agricultura, por exemplo – serão dura escolha: migrar para climas mais frescos ou
duramente atingidos. Em 2050, é provável que os ficar e adaptar-se. O refúgio no interior de espaços
níveis elevados de calor e humidade no Sudeste com ar condicionado é uma solução de recurso
dos EUA tornem a época de cultivo totalmente óbvia, embora o próprio ar condicionado, na for-
“insegura para o trabalho agrícola, a manterem-se ma actualmente existente, contribua para o aque-
as práticas laborais actuais”, segundo um estudo cimento do planeta e não seja economicamente
da Universidade de Washington. comportável para muitas pessoas. O problema do
Os seres humanos, juntamente com as suas co- calor extremamente intenso encontra-se mortal-
lheitas e os seus animais domésticos, evoluíram mente associado a problemas sociais mais impor-
ao longo dos últimos dez mil anos num nicho cli- tantes, incluindo o acesso à habitação, aos recur-
mático bastante restrito, centrado numa tempe- sos hídricos e aos cuidados de saúde.

8 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
P
HOENIX, NO ARIZONA, é a cidade À semelhança de outros trabalhadores à jorna,
mais quente dos EUA, com mais de 110 não consegue alimentar os três filhos se faltar ao
dias por ano com uma temperatura igual trabalho. “Quando regresso a casa, não tenho água
ou superior a 37,8°C. Regista-se aqui a maior parte para tomar banho e arrefecer um pouco”, conta.
das mortes causadas por calor no país. Em 2020, na O sítio onde vai buscar a água potável encontra-se
comarca de Maricopa, registou-se um número a mais de 1,5 quilómetros de distância.
recorde absoluto de 207 mortos, segundo o gabinete O marido de Noor Jehan trabalha com um ri-
do médico-legista, que está incumbido de investigar quexó, mas, subnutrido e desidratado, desmaia
todas as mortes não naturais, entre as quais se frequentemente com o calor. A sua irmã, Afsana, e
incluem as mortes relacionadas com a temperatura. os seus três filhos adaptaram-se colocando estei-
Sempre que uma morte potencialmente rela- ras sobre o passeio para descansarem ou até para
cionada com o calor é comunicada, Melanie Rou- dormirem. “Os carros que passam criam uma li-
se, a investigadora principal do gabinete, entre- geira brisa”, diz Afsana.
vista as pessoas que estiveram recentemente com Em Phoenix, David Hondula estuda as conse-
o falecido. Ela, ou ele, suava abundantemente? quências sociais e sanitárias do calor urbano in-
Queixava-se de dor de cabeça ou náuseas? Fazia cessante. Ultimamente tem andado a calcorrear
trabalhos no exterior? “Tentamos apurar o que os passeios escaldantes da cidade em busca dos
provocou este desfecho”, diz. “Tentamos perceber melhores lugares para plantar dezenas de mi-
se existem outras causas de morte verosímeis.” lhares de árvores – uma reacção urbana cada vez
No local da morte, os investigadores medem mais comum ao aumento das temperaturas em
a temperatura do corpo e da sala. A mais eleva- todo o mundo. “Menor exposição ao calor dimi-
da temperatura interior foi de 62,8°C em 2017! nui o risco”, explica. “Porém, acho que não serão
Procedem à extracção do líquido vítreo do globo as árvores plantadas a impedir a morte de pessoas
ocular da vítima para análise química. As células devido ao calor.” Quando lhe pergunto qual seria
decompõem-se rapidamente a temperaturas ele- a melhor solução, ele nem hesita. “Aumentar o
vadas, “mas a esfera do globo ocular é um espaço acesso ao ar condicionado.”
protegido”, diz Melanie Rouse. Químicos e físicos

E
analisam este líquido a fim de determinarem se o M TERMOS HISTÓRICOS, o uso de
falecido se encontrava desidratado, se havia ní- aparelhos de ar condicionado nas habita-
veis elevados de glicemia no sangue ou se a fun- ções tem sido considerado um luxo. Em
ção renal estava diminuída – causas de aumento muitos lugares, porém, está a transformar-se numa
da susceptibilidade ao calor. necessidade de saúde pública, revelando-se essen-
Mais de metade das mortes devidas ao calor cial para a prevenção das mortes relacionadas com
registadas na comarca de Maricopa ocorreram o calor. Segundo o Climate Impact Lab, um consór-
no exterior, afectando sobretudo os sem-abrigo. cio de centros de investigação sobre o clima, há boas
A maior parte das mortes ocorridas em espaços notícias: prevê-se que, em 2099, o desenvolvimento
fechados registou-se em casas móveis, cujo iso- económico aumente o uso de ar condicionado e o
lamento insuficiente dificulta a refrigeração. Nos acesso aos cuidados de saúde, salvando milhões de
países mais pobres, a situação é ainda mais grave. vidas por ano. A Agência Internacional da Energia
Na Índia, quando a temperatura excede 40°C, prevê que o número de unidades cresça exponen-
os organismos governamentais recomendam às cialmente de 1.600 milhões na actualidade para
pessoas que permaneçam dentro de casa e bebam 5.600 milhões em meados deste século.
água fresca. Mas estes conselhos de nada servem Há más notícias associadas: a tecnologia de ar
às dezenas de milhões de pessoas cujas casas são condicionado actualmente disponível sai dema-
mais quentes no interior do que no exterior, que siado cara ao planeta. Na maior parte dos siste-
não possuem electricidade para ligarem ventoi- mas, um líquido refrigerante é bombeado atra-
nhas ou aspersores ou que, como Noor Jehan, vés de uma bobina de evaporação existente no
nem sequer têm casa. interior da unidade. Ao transformar-se em gás
Noor, de 36 anos, viveu sempre na rua, num dentro da bobina, o líquido atrai o calor e a humi-
parque de Nova Deli. Todas as manhãs, empilha dade presentes no ar. No exterior do edifício, um
os seus escassos bens e caminha penosamente compressor, um condensador e uma ventoinha
até ao emprego, num estaleiro de construção. Tra- reconvertem o gás em líquido, libertando o calor e
balha mesmo quando o termómetro marca 48°C. a água condensada. (Continua na pg. 14)

D E M A S I A D O C A LO R PA R A V I V E R 9
Sem dados
Oslo
Moscovo Novosibirsk
Calgary AMÉRICA Paris EUROPA Ulan Bator
DO NORTE
Los Madrid
Banos Chicago Pequim
Nova Iorque Tóquio
Phoenix A S I A
Los
Angeles Xangai
Meca
Abu Dhabi
S a a r a
Niamei Cartum Djibuti ÁREA EM
DESTAQUE
ÁFRICA Adis
Bogotá Abeba Singapura
AMÉRICA Kinshasa
DO SUL

São Paulo Joanesburgo OCEÂNIA

Custo projectado da mortalidade*


Mais elevado
É o somatório de dois cálculos: a compo-
Sem alteração nente económica do número de mortes
devido à subida da temperatura, acres-
Mais reduzido cido dos custos de adaptação ao calor.

PREÇO ELEVADO DO CALOR


Em 2050, o aumento do calor matará mais pessoas, mas as pessoas também se adaptarão.
Investigadores do Laboratório do Impacte Climático elaboraram projecções dos “custos da
mortalidade” futuros, que reflectem o valor económico das vidas perdidas e as despesas
com adaptações como o ar condicionado. A localização geográfica, a distribuição etária e Milan
o rendimento afectam as projecções. Muitas cidades ricas, mais frescas, usufruirão de
benefícios líquidos, mas a maior parte da população mundial, residente em cidades
Tianjin
quentes sem meios para se adaptarem, assistirá à subida dos “custos” e de mortalidade. Nova Iorque
Almaty Seul

0 TEMPERATURA 5 10 15
MÉDIA (˚C) Istambul
Paris
Dalian
Detroit
Samara Ürümqi Chicago
Harbin Changchun Boston
Ufa Chifeng Salt Lake City
La Paz
Chelyabinsk Jiamusi Cabul
Kiev Denver
Mudanjiang Moscovo Minsk Bogotá
Omsk Toronto
Yekaterinburg Vilnius
Praga
Novosibirsk Xining Glasgow Berlim Vancouver
Riga Copenhaga
Hamburgo
Ulan Bator
Otava
Munique
Sapporo
Minneapolis-
Montreal -St. Paul

Projecções para os custos de


mortalidade e temperatura até 2050
Cidades com população superior AS CIDADES DO NORTE
a um milhão de habitantes Estocolmo SAIRÃO VENCEDORAS
Helsínquia As condições extremas de frio
Edmonton
e de calor fazem escalar as
taxas de mortalidade. Nas
regiões frias, porém, é menos
frequente as temperaturas
descerem até níveis perigosa-
mente baixos, poupando vidas,
e os verões não são suficiente-
CUSTO DE mente quentes para forçarem
MORTALIDADE adaptações dispendiosas.
MAIS BAIXO
Calgary Oslo
*O Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas identifica futuros cenários climáticos, designados por Cenários de Concentração Representativos (RCP), que
oscilam entre o cenário pessimista (RCP 8,5) e o cenário optimista (RCP 2,6). Os dados aqui utilizados seguem um RCP 4,5 para as projecções de 2040–2059.
MAIOR
CUSTO DE
CH DESTINOS
MORTALIDADE
IN Djibuti
DIVERGENTES
Cabul

A
Muitas cidades do
AFEG. Paquistão são pobres
IRÃO Faisalabad Multan
e sensíveis ao aumento
Deserto
de Lut Multan Lahore do número de dias
PA Q U I S T Ã O quentes, não dispondo
Deli
do rendimento necessário
Haiderabad para se adaptarem. Faisalabad Cartum
BALUCHISTÃO A Índia, mais rica, enfren-
Carachi ÍNDIA Niamei
tará uma tendência
semelhante nas tempe-
Ma r Bombaim raturas, mas com
Arábico
Haiderabad resultados menos
catastróficos. Gujranwala

Lahore

Ouagadougou N'Djamena
EQUAÇÃO ETÁRIA
Peshawar Haiderabad,
Com o calor, até cidades ricas
como Madrid registarão Paquistão
custos de mortalidade mais
elevados, por possuírem uma
população mais idosa. Pelo
contrário, numa cidade
igualmente quente, mas mais
Rawalpindi Islamabade
jovem, como Adis Abeba, os Bamako
custos serão menores.
Mossul Mandalay
Riade
Alepo
Teerão Carachi
Madrid Bagdade Medina
Amritsar Dacca
Las Vegas
Phoenix
Osaka Barcelona Adana Manaus
Atena
Phnom Penh
Dallas-Ft. Worth Deli Yangun
Cairo Maracaibo
Chongqing Banguecoque
Calcutá
Taipé Alexandria Chennai
Cantão
20 25 30
Ja
Bombaim
Pretória Caracas Fortaleza
Santiago usaka Kampala Kuala Lumpur
Miami Recife
i ade a uat mal Rio de Janeiro Havana
Lima
Medellín Belo Horizonte
Nairobi Cali Goiânia Singapura
Rabat Brasília
Tegucigalpa
Katmandu Casablanca Kigali
Antananarivo
QUENTES,
Harare MAS JÁ ADAPTADAS
Adis Abeba Em cidades ricas e muito
quentes, como Singapura,
assistir-se-á a uma diminuição
do custo de mortalidade.
Encontrando-se bem adaptadas
a condições climáticas quentes,
prevê-se que se tornem
ainda mais ricas em 2050.

Cidades com população superior a:


Aumento no custo
de mortalidade 30 milhões Tóquio
Como interpretar a tabela Actualidade Sem mudança
20 milhões
10 milhões
Cidade do México
Tianjin
O início da linha de uma cidade apresenta a sua 5 milhões Dar-es-Salam
temperatura média e custo de mortalidade médio Diminuição
2050 2,5 milhões Montreal
em 2019. O ponto final mostra a temperatura e o
(projecção) 1 milhão Amritsar
custo da mortalidade projectados para 2050.

JASON TREAT, CHRISTINE FELLENZ E EVE CONANT


FONTE: CLIMATE IMPACT LAB D E M A S I A D O C A LO R PA R A V I V E R 11
MECA, ARÁBIA SAUDITA
Em Julho de 2020,
as restrições impostas
pela COVID-19 fizeram
diminuir as multidões
que circulavam na Grande
Mesquita. Por norma,
a hajj anual atrai milhões
de peregrinos, para cinco
dias de rituais em espaço
aberto. Quando a hajj
coincidir com o Verão,
haverá riscos acrescidos
de insolação, prevêem
os climatologistas.
XINHUA/EYEVINE/REDUX
Esta solução engenhosa, com um século de
idade, tem três problemas. Em primeiro lugar, os
hidrofluorcarbonetos habitualmente utilizados
como líquido refrigerante são, eles próprios, gases
com efeito de estufa. Por isso, têm um potencial de
aquecimento global milhares de vezes superior,
em termos moleculares, ao do dióxido de carbono.
Em segundo lugar, os sistemas convencionais de
ar condicionado não fazem desaparecer o calor:
limitam-se a descarregá-lo no exterior. Segundo
um estudo realizado em Phoenix, as unidades de
ar condicionado podem provocar um aumento de
1ºC da temperatura nocturna no exterior. CIDADE DE
E, em terceiro lugar, os aparelhos de ar condi- NOVA IORQUE, EUA
cionado consomem gigantescas quantidades de Na Universidade de
electricidade: cerca de 8,5% do consumo mundial Colúmbia, um painel
revestido com uma
total. A maior parte dessa energia ainda é gerada inovadora película
pela queima de combustíveis fósseis. Em 2016, os de polímero irradia
aparelhos de ar condicionado foram responsáveis o calor da atmosfera,
projectando-o para
pela emissão de 1.130 milhões de toneladas de o espaço exterior.
dióxido de carbono, prevendo-se que esse valor Como esta imagem de
quase duplique em 2050. infravermelhos demons-
tra, o interior encontra-
Como é evidente, precisamos de novas ideias. -se significativamente
Para encorajá-las, o Instituto Rocky Mountain, mais fresco do que a
um centro de reflexão com sede no Colorado, aju- envolvente. Uma vez
aplicados sobre as
dou recentemente a promover um concurso inter- coberturas dos edifícios,
nacional. Desafiou os engenheiros a conceberem estes painéis poderão
um aparelho de ar condicionado com um quinto reduzir as necessidades
de ar condicionado.
do impacte climático dos aparelhos comuns, um A investigação sobre o
quarto do consumo energético e, no máximo, o “arrefecimento radiante”
dobro do preço do modelo de entrada de gama ac- tem vindo a aumentar.
tualmente comercializado. FRIO CALOR

Alguns concorrentes prescindiram dos refri-


gerantes líquidos e da compressão de vapor, tro-
cando-os por novas tecnologias promissoras que
ainda não se encontram totalmente disponíveis Os quatro finalistas, que competiram entre si
para venda generalizada. Um recorria a arrefeci- em 2020 num “desafio de arrefecimento” para
mento termoeléctrico: é provável que venha a ser um prédio de apartamentos em Bahadurgarh, na
mais adequado a aplicações muito localizadas, Índia, utilizaram todos compressão de vapor con-
como o arrefecimento rápido de uma lata e não vencional, mas recorreram a um elemento valori-
tanto para arrefecer uma sala inteira. Outro con- zador, utilizando novos refrigerantes com baixo
corrente apresentou painéis para telhados revesti- (ou nulo) potencial de efeito de estufa e sistemas
dos com nanomateriais que repelem o calor solar, altamente eficientes de evaporação e condensa-
devolvendo-o ao espaço num comprimento de ção. Os dois co-campeões, denominados Equipa
onda infravermelho que atravessa directamente a Daikin e Equipa Gree, arrefecem os seus conden-
atmosfera. Em princípio, isso permitiria reduzir o sadores com água, em vez de ar, para reduzirem o
aumento de temperatura de um edifício em alguns consumo de energia, e um deles serve-se de pai-
graus, “mas não é uma solução em si mesma”, afir- néis solares para obter parte da electricidade. Es-
ma Iain Campbell, investigador sénior do Institu- pera-se que estejam disponíveis nas lojas em 2025,
to. “Não funciona em condições de humidade e os a cerca do dobro do preço do modelo de base. No
painéis precisam de estar virados para o céu.” Ou entanto, os seus custos operacionais são tão bai-
seja, não é suficientemente útil para quem viva no xos que o período de retorno do investimento será
terceiro andar de um prédio com dez pisos. de apenas três anos – segundo as estimativas.

14 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
N
A UNIVERSIDADE de Princeton, o Não é a primeira vez que os arquitectos utilizam
arquitecto e engenheiro Forrest Meggers painéis de arrefecimento radiante, em tectos e pa-
está a desenvolver outro tipo de sistema redes, mas quase sempre equipados com desumi-
que não refrigera o ambiente de uma sala: só arre- dificadores, para impedir que a água condense
fece as pessoas, absorvendo o calor irradiado pela nos painéis e caia sobre os computadores e as ca-
sua pele, através de painéis de tubos cheios de água beças. Ao envolver os seus painéis com uma sim-
montados nas paredes. ples membrana de polietileno, que mantém o ar
Um protótipo da invenção, chamada Tubo de húmido afastado dos tubos, mas não o calor irra-
Frio, está pendurado no laboratório de Forrest diado, Forrest afirma ter resolvido esse problema.
Meggers. Parece-se com uma esteira tecida com Na cidade de Singapura, onde o Tubo de Frio
palhinhas de plástico azul. Num dia como hoje, foi pela primeira vez aplicado, o sistema gerou um
com 30°C de temperatura, se enchêssemos esses ambiente confortável, utilizando menos de meta-
tubos fininhos com água a 17ºC, isso proporcio- de da energia de um ar condicionado convencio-
naria aos ocupantes do laboratório uma sensação nal e originando metade do calor residual. A pou-
de 24°C, mesmo com as portas de correr do labo- pança de energia não é tão espectacular em am-
ratório escancaradas, devido à pandemia. Forrest bientes áridos, mas os painéis radiantes equipados
Meggers apresenta-se vestido, da cabeça aos pés, com isolamento por membrana conseguem ser
com roupa de secagem rápida. mais eficientes do que os sistemas convencionais.

D E M A S I A D O C A LO R PA R A V I V E R 15
CALIFÓRNIA, EUA
Em Los Banos, no
vale de San Joaquin,
a apanha do tomate
começa às 5 horas da
manhã, para evitar
parte do calor do dia.
A legislação estadual
obriga os agricultores
a disponibilizarem água,
sombra e a permitirem
pausas para descanso,
mas os apanhadores,
pagos ao balde, podem
negligenciar essas
salvaguardas.
O trabalho no exterior
tornar-se-á cada vez
mais perigoso em
certas regiões dos EUA.
KARLA GACHET
COMO O CORPO
GERE O CALOR
A manutenção de uma temperatura interna constante
Termorrecep-
tores na pele

de cerca de 37°C é um jogo de equilíbrio. Os músculos


e os órgãos geram calor que é dissipado através da
pele. Contudo, o corpo também absorve calor do
ambiente. O aquecimento climático está a expor Hipotálamo

quase um terço da população mundial a condições


de calor potencialmente mortíferas.

Vasodilatação

Um sistema para arrefecer


conduz mais
sangue à pele

O corpo transfere o calor para qualquer objecto em que


toque, incluindo as roupas e a atmosfera circundante.
A maior parte do arrefecimento do corpo dá-se através
do calor irradiado pela pele e o suor que dela se evapora.
Evaporação
do suor arrefece

1
a pele
DETECÇÃO DO STRESS CAUSADO PELO CALOR
Os receptores na pele e noutras partes do corpo
sentem que o indivíduo está a começar a sobreaquecer.
As condições climáticas, o nível de actividade e o
vestuário podem afectar a temperatura interna.

2
O TERMÓSTATO CORPORAL INTUI A SITUAÇÃO
O hipotálamo dá sinal às glândulas écrinas, existentes na
pele, para libertarem um máximo de 1,4 quilogramas de
suor por hora. Apenas 5% dos 2,5 milhões de glândulas
estão activas em simultâneo.

3
AFLUXO SÚBITO DO SANGUE À PELE
Os vasos sanguíneos dilatam, canalizando mais sangue
até aos capilares da pele. Esta “vasodilatação”
transporta o calor do interior do corpo até à superfície,
a partir da qual pode ser irradiado.

4
O SANGUE E O SUOR ARREFECEM O CORPO
O sangue e o suor dissipam a maior parte do calor
através da pele: a expiração expele o calor restante.
O suor arrefece quando se evapora, algo que pode ser
quase impossível em condições de humidade elevada.

Quando corre mal


Quanto mais tempo demorar a mobilização do sangue e
dos líquidos até à pele, para a arrefecer, mas difícil se torna
o processo para os nossos órgãos internos. Em condições
de calor extremo, o stress pode conduzir à exaustão e,
depois, à insolação — e, em última análise, à morte.

EXAUSTÃO POR CALOR INSOLAÇÃO


Náuseas, fadiga, cãibras, irritação cutânea e Cefaleia, confusão, vómitos e perda de JASON TREAT E EVE
CONANT; KELSEY
tonturas frequentemente causadas por uma consciência podem acontecer quando NOWAKOWSKI
combinação de temperaturas elevadas, esforço o corpo atinge 40°C. As insolações ARTE: GABY D’ALESSANDRO
físico e humidade elevada são sinais que o corpo requerem cuidados de emergência. FONTES: OLLIE JAY,
transmite ao cérebro para que este reduza a Podem rapidamente causar lesões no UNIVERSIDADE DE
SYDNEY; JASON LEE,
actividade e arrefeça. Estes sintomas podem cérebro, no coração, nos rins e nos UNIVERSIDADE NACIONAL
evoluir e causar uma insolação mais mortífera. músculos, conduzindo ao coma e à morte. DE SINGAPURA

18 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Como os painéis refrescam os corpos humanos Se melhorarmos
e não enormes volumes de ar, também poderão a vida dos mais
resultar em ambientes exteriores. O maior desafio
vulneráveis,
à adopção generalizada desta tecnologia, suspei-
ta Forrest Meggers, será uma questão de atitude. conseguiremos
“Os engenheiros estão habituados a pensar sobre também melhorar
o conforto e a frescura no Verão em termos de ar a nossa resiliência
condicionado”, diz.
em condições

A
CIDADE DE NOVA IORQUE, onde extremas
vivo, escalona os seus bairros em termos de calor.
de vulnerabilidade ao calor segundo fac-
tores de risco como a pobreza, o acesso ao ar condi-
cionado e a disponibilidade de espaços verdes. Na
zona norte de Manhattan, o bairro de East Harlem com espaços públicos cheios de vida e muita
regista a a pior classificação deste índice. A sua taxa actividade comercial registaram um menor nú-
de pobreza de 31% é quase o dobro da média da mero de mortes devido ao calor. Os residentes
cidade e apresenta uma das mais baixas taxas de em bairros menos movimentados tinham me-
propriedade de ar condicionado (88%) da cidade. nos probabilidades de saírem à rua em busca
Num dia escaldante de Verão, encontro-me de algum alívio ou para visitarem vizinhos que
com Sonal Jessel, directora de políticas públicas se preocupassem com eles, depreendeu, porque
da organização sem fins lucrativos WE ACT for não se conheciam uns aos outros, tinham me-
Environmental Justice, para darmos um passeio nos sítios onde ir e, por vezes, receavam andar a
em East Harlem. Enquanto caminhamos, Sonal pé pelas ruas. Por isso, permaneciam dentro de
chama-me a atenção para um prédio de arren- casa, sufocando de calor e morrendo.
damento, onde toalhas e trapos preenchem o es- Nova Iorque mantém em funcionamento vá-
paço entre os aparelhos de ar condicionado e os rias dezenas de centros de arrefecimento: biblio-
caixilhos das janelas. tecas, escolas, centros de dia para idosos e outros
“A conta da electricidade deve ter disparado”, edifícios que abrem as portas ao público duran-
diz. A população de East Harlem é 27% negra e te as vagas de calor. Em Nova Iorque, os centros
os agregados familiares negros pagam, em mé- encerram de noite e muita gente que poderia en-
dia, centenas de euros a mais pela energia do que contrar alívio nesses lugares nem sequer sabe da
os agregados familiares brancos de rendimento sua existência. Algumas pessoas recusam-se a ir
equivalente. Segundo o referido estudo, os edi- para lá com receio de que os seus apartamentos
fícios das comunidades negras são mais velhos vazios sejam assaltados, como Eric Klinenberg
e têm mais fugas e com maior número de mo- descobriu em Chicago. Em Phoenix, as pessoas
radores por unidade. “Se um indivíduo estiver a sem-abrigo preferiram torrar em cidades de ten-
tentar trabalhar ou estudar na sala equipada com das, montadas sobre o asfalto dos parques de
ar condicionado e estiverem lá mais três pessoas estacionamento, do que abandonar os seus bens
barulhentas, essa pessoa muda-se para outra sala terrenos enquanto procuravam alívio, relatou Ash
e liga outro aparelho”, diz. Uss, uma activista local.
Caminhamos para leste. Vêem-se poucas ár- A persuasão desses grupos a procurar espaços
vores nas ruas e o calor irradia dos passeios, dos com ar condicionado poderá salvar vidas, como
edifícios e dos motores e tubos de escape dos au- observou David Hondula. No entanto, também
tomóveis. Eu e Sonal Jessel passamos por lotes a diminuição do isolamento social poderá ser
cheios de ervas daninhas e lojas já fechadas muito importante. Em Nova Iorque, a taxa de mortali-
antes da pandemia. “O bairro sofre profundamen- dade dos moradores negros por problemas rela-
te por ver todos estes espaços devolutos”, diz ela. cionados com o calor é duas vezes superior à dos
Esta situação também aumenta a vulnerabili- brancos, embora esta taxa seja três vezes superior
dade dos moradores ao calor: quando o sociólogo entre os brancos, comparados com os hispânicos,
Eric Klinenberg estudou a vaga de calor de 1995, e cinco vezes superior se os compararmos com os
durante a qual mais de 700 pessoas morreram, asiáticos – talvez, em parte, por haver mais proba-
descobriu que os bairros de baixo rendimento bilidades de os brancos viverem sozinhos.

D E M A S I A D O C A LO R PA R A V I V E R 19
BALUCHISTÃO,
PAQUISTÃO
Os crentes que realizam
a árdua Hinglaj, uma
peregrinação hinduísta
através do deserto do
Paquistão Ocidental,
costumam frequente-
mente desmaiar em
condições extremas de
calor (40°C, na altura
em que esta imagem foi
captada). Quando a
temperatura corporal
aumenta, o coração tem
de esforçar-se mais
para bombear o sangue
até à pele. Se não
conseguir aguentar, a
pressão sanguínea cai a
pique. Os idosos
correm riscos maiores.
MATTHIEU PALEY

20
A gestão das condições extremas de calor pode Temos a certeza absoluta de que as tempera-
ser mais complicada, porque é inseparável de ou- turas elevadas continuarão a acontecer e que os
tras questões sociais importantes. No entanto, se aparelhos de ar condicionado, por si, não evitarão
melhorarmos a vida dos mais vulneráveis da nos- todas as mortes provocadas pelo calor. As pessoas
sa sociedade, conseguiremos também melhorar a continuarão a precisar de sair à rua.
nossa resiliência em condições extremas de calor. Por isso, em cidades quentes de todo o mundo,
há equipas a plantar árvores e trepadeiras para

A
VAGA DE CALOR EUROPEIA de impedir a passagem da luz solar. Estão a pintar co-
2003 desencadeou avaliações internacio- berturas de prédios, a plantar jardins em telhados,
nais e reformas importantes. No espaço a montar estruturas nos passeios e nos parques, a
de um ano, a França ordenou a instalação de “salas instalar vaporizadores de ar húmido e aspersores
de arrefecimento” em lares para idosos anterior- nos parques de recreio. Estão em curso experiên-
mente desprovidos de ar condicionado, criou siste- cias com pavimento texturado permeável, que
mas de vigilância do bem-estar por via telefónica, arrefece a atmosfera envolvente ao absorver e,
reforçou os sistemas de alerta ao calor e lançou uma em seguida, evaporar as águas pluviais. Segundo
campanha maciça de educação pública. Quando as cálculos de investigadores do Instituto da Terra
temperaturas elevadas voltaram a surgir, foi atri- da Universidade de Colúmbia, a plantação de ár-
buída a estas medidas uma redução de dez vezes vores em 17% da superfície terrestre de Nova Ior-
dos valores da mortalidade. que e o tratamento da totalidade das coberturas

22 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
ascendentes. Toldos, persianas para filtrar a luz,
estores de lâminas orientáveis e alpendres prote-
giam as salas do sol. As ventoinhas de tecto, que
chegam a consumir mil vezes menos energia do
que um aparelho de ar condicionado, eram omni-
presentes. No entanto, à medida que a elegância e
a influência da arquitectura modernista – com as
suas janelas inoperáveis e divisórias de alumínio
e vidro – se espalhavam pelo mundo a partir dos
EUA e da Europa, o mesmo acontecia à dependên-
cia face ao ar condicionado por meios mecânicos.
A arquitectura bioclimática está de novo na
moda. Porém, temos de viver nas cidades que
já existem. Não iremos provavelmente demolir,
nem remodelar substancialmente, centenas de
milhares de torres com isolamento deficiente e
consumo intenso de energia. Em vez disso, como
sugere o arquitecto Daniel Barber, talvez possa-
mos remodelar as nossas expectativas. É chegado
DASHT-E LUT, IRÃO o momento, segundo ele, “de nos habituarmos a
Estes nómadas montam aceitar, senão mesmo a valorizar, o desconfor-
o seu acampamento no
deserto de Lut, onde
to”. Antigamente, sentir um bocadinho de calor
há mais vida do que a mais no Verão era aceitável até para os mais
parece. Segundo ricos. Na opinião de Daniel Barber, deveríamos
hipótese formulada
pelos cientistas, os
aprender a aceitar isso de novo. À luz deste pa-
cadáveres das aves radigma, a frescura luxuosa das nossas salas de
migratórias – que congressos, ou o “deleite térmico” que acolhe o
regularmente se
desviam do seu curso
peão transpirado quando as portas de um centro
e encontram aqui a comercial se abrem de par em par, transformar-
morte – servem de -se-iam em artefactos de uma loucura passageira
sustento a raposas,
osgas e gafanhotos.
de finais do século XX.
MATTHIEU PALEY Na perspectiva de Daniel Barber, o devorador
de energia que é o Norte Global, onde abunda o
excesso de conforto, transferiria a sua porção da
dos edifícios de maneira a reflectirem a radiação “riqueza térmica” para o Sul Global carente de
solar, em vez de a absorverem, permitiriam baixar energia, pelo menos até desistirmos dos combus-
a temperatura geral da cidade em cerca de 1ºC. tíveis fósseis. Seria uma espécie de indemnização
“Não sabemos se o recurso a todas estas ferra- a título de conforto por termos sido os primeiros
mentas será suficiente para sobrevivermos a mais a desencadear as alterações climáticas. “Os arqui-
meio grau de aquecimento”, muito menos aos tectos já dispõem das ferramentas e do conheci-
três graus de aumento previstos até final do sé- mento necessários para reduzir a nossa depen-
culo, afirma Kristie Ebi, que estuda os efeitos do dência do arrefecimento mecânico”, afirma. Ago-
aquecimento global na saúde humana, na Univer- ra, o seu projecto consiste em tornar o desconfor-
sidade de Washington. “Mas não fazer nada será, to desejável, talvez mesmo revelador de estilo.
certamente, insuficiente.” Como é evidente, o estilo só resulta até um cer-
Será por isso decisivo repensar a forma como to ponto. O desconforto auto-imposto será uma
construímos edifícios para sobrevivermos a um atitude ética difícil de propor às audiências de
futuro mais quente. Até meados do século XX, massas dos países ricos, e o próprio Daniel Bar-
a maior parte dos edifícios era construída tendo ber reconhece as limitações do corpo humano.
em conta o clima. Nas latitudes mais quentes, “Quando estiverem 60°C, espero, por Deus, que
os arquitectos incorporavam vigas, cúpulas, cla- haja um ar condicionado para mim e para si tam-
rabóias, poços de ar e janelas operáveis para fa- bém”, diz. “Mas quando estiverem 29,5°C, por fa-
vorecer a ventilação cruzada e as correntes de ar vor limite-se a abrir a janela.” j

D E M A S I A D O C A LO R PA R A V I V E R 23
Na soalheira
Los Angeles,
a inexistência
de árvores em
zonas habitadas
por famílias de baixo
rendimento deixou
muitas comunidades
mais vulneráveis
ao aumento
da temperatura.
É um legado do
planeamento urbano
da cidade e do seu
historial de políticas
públicas racistas.
T E XTO D E
A L E JA N D RA B O RU N DA
F OTO G RA F I A S D E

a
ELLIOT ROSS

SOMBRA

24
que DIvide
MIGUEL VARGAS RECORDA-SE bem do momento em que
teve pela primeira vez consciência do poder da sombra. Frequentava
o terceiro ciclo e andava a correr num campo de futebol de Hunting-
ton Park, uma vila atravessada por linhas de caminhos de ferro e
cabos de alta tensão, situada imediatamente a sul da linha do hori-
zonte Los Angeles. Corria tão depressa debaixo do sol escaldante que
sobreaqueceu. Ficou com a visão desfocada. O coração batia-lhe com
força. Atordoado, dirigiu-se aos tropeções até um enorme pinheiro
no canto sudoeste do campo. Era praticamente a única árvore exis-
tente em redor. Sob aquele abrigo, as tonturas de Miguel começaram
a melhorar. A frequência cardíaca abrandou. Recuperou os sentidos,
reanimado pela sombra profunda e fresca.
Aquela simples bênção é abundante noutros pontos da cidade,
sobretudo nos bairros ricos e maioritariamente brancos. No en-
tanto, em bairros com habitantes predominantemente negros ou
latinos, a sombra é um bem cada vez mais escasso.
Los Angeles não é Phoenix nem Dallas. Tem um clima modera-
do, mas também é afectada por ondas de calor e aqui, ao contrário
de qualquer outra cidade norte-americana, estes podem ocorrer
em qualquer altura do ano. As alterações climáticas estão a agra-
var o problema. Já é altura de “desligar o sol”, diz Christopher
Hawthorne, director de projectos da cidade de Los Angeles. Na
sua opinião, a cidade precisa de descobrir formas de criar zonas de
sombra, mais frescas, que podem até salvar vidas.

A CIDADE DE LOS ANGELES HOJE é uma metrópole feita


para o sol e não para a sombra. Na transição para o século XX, os
governadores do Sul da Califórnia seduziram os migrantes do Oriente
com visões de “uma luz do Sol quase eterna”. A atracção da luz excep-
cional perdurou graças à promoção de Hollywood e à celebração de A National
Geographic Society,
artistas locais como Robert Irwin. “Há muitos dias em que o mundo
empenhada em dar a
quase não tem sombra”, disse Irwin à revista “New Yorker” em 1998. conhecer e proteger as
“Luz do dia, na verdade imensa luz, e nenhuma sombra.” maravilhas do nosso
Em Los Angeles, o planeamento urbano dá prioridade ao acesso mundo, financiou o
trabalho fotográfico
ao sol. A legislação urbanística define frequentemente a quanti- do explorador Elliot Ross
dade de tempo durante o qual um edifício pode projectar sombra sobre a resiliência
para que não sombreie excessivamente quintais, pátios ou par- climática das comunidades
nativas do Alasca.
ques. Os arquitectos projectaram edifícios e quarteirões inteiros ILUSTRAÇÃO DE JOE MCKENDRY
de modo a serem transparentes à luz solar, deixando-a penetrar

26 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
em todos os recantos. Depois da crise energética O planeamento PÁ G I N A S A N T E R I O R E S
urbano de Los Uma árvore solitária
da década de 1970, a cidade tinha mais uma razão
Angeles, centrado cresce numa zona
para garantir o acesso do sol a todo o lado e na ac- na utilização industrial junto da baixa
tualidade tem mais capacidade solar instalada do do automóvel, da cidade de Los
sugere que a cidade Angeles, onde as
que qualquer outra cidade do país.
deve ser apreciada superfícies podem
Contudo, num cenário de alterações climáti- a partir do interior atingir temperaturas
cas, a luz solar de Los Angeles já não é tão positi- de um veículo com superiores em 80C às
ar condicionado. dos bairros com mais
va. Até meados deste século, se não se registarem
Sem muita sombra, vegetação. Neste lugar,
significativos esforços internacionais para con- os peões como vivem apenas cerca de
trolar as emissões de carbono, prevê-se que Los estes torram cem pessoas, mas cerca
frequentemente de 50 mil deslocam-se
Angeles tenha 22 dias por ano com uma tempe-
ao sol. aqui para trabalhar.
ratura superior a 35ºC – mais do triplo do registo
actual. Nos subúrbios do vale de San Fernando,
poderá haver mais de 90 dias assim – um trimes- valor cresce para 25%, podendo atingir 48% nas
tre inteiro. O calor já é um factor que aumenta o comunidades idosas negras e latinas.
risco de morte em Los Angeles, mesmo quando “É muito simples, na verdade. Se nos preocu-
não é a sua causa directa. Durante uma vaga de parmos com o conforto das pessoas, basta dar-
calor curta, a taxa de mortalidade – atribuível a mos-lhes mais oportunidades de usufruírem de
todas as causas de morte – aumenta 8% face ao sombra”, diz V. Kelly Turner, especialista em pla-
valor normal. Passados quatro ou cinco dias, esse neamento urbano da Universidade da Califórnia.

A SOMBRA QUE DIVIDE 27


Num dia quente, sentimos muito mais calor um jardim com um belo relvado tornou-se a me-
sob luz solar directa do que à sombra, mesmo táfora do sonho americano e a crescente popu-
que a temperatura atmosférica seja a mesma. lação de Los Angeles assimilou-a. A densidade
Essa temperatura resulta da velocidade à qual arbórea cresceu 150% entre a década de 1920 e
as moléculas do ar se deslocam e aquecem um o início da década de 2000, altura em que havia
ser humano ao colidirem com ele. No entanto, a muito mais de dez milhões de árvores na cidade.
radiação solar também aquece o organismo. Di- No entanto, as florestas urbanas são alimenta-
rectamente expostos à luz solar, podemos sen- das com dinheiro e este não se encontra distribuí-
tir-nos até 11 graus mais quentes do que numa do de forma igual. A maior parte da sombra de Los
sombra ali ao lado. Angeles existe em terrenos privados, em locais
O mesmo se aplica aos edifícios, passeios e ou- como Los Feliz, Hollywood ou Brentwood, onde
tros grandes objectos: a luz solar directa trans- os residentes podem comprar árvores e pagar
mite mais energia e, consequentemente, mais despesas, frequentemente avultadas, com os seus
calor. O asfalto é particularmente absorvente cuidados. Actualmente, quase 20% das árvores da
e, juntamente com o betão, liberta na atmosfe- cidade localizam-se em somente cinco quartei-
ra esse calor capturado durante várias horas, rões, que servem de lar apenas a 1% da população.
mesmo após o desaparecimento do Sol, con- Por contraste, as árvores não germinaram tão
tribuindo para o efeito de ilha de calor urbano. depressa nas zonas mais pobres da cidade. Na
Uma árvore bem posicionada, por outro lado, primeira metade do século XX, a prática discri-
pode manter um edifício 10 graus mais fresco do minatória do redlining (bairros pobres demar-
que se estivesse completamente exposto ao sol. cados por uma linha vermelha) negou a muitas
A sombra mantém tudo mais fresco e a cidade pessoas de outras etnias créditos à habitação e
sobreaquecida tem reparado nisso. conduziu a um enorme desinvestimento no pa-
trimónio público, incluindo as árvores. As árvo-

Q
UANDO OS COLONIZADORES euro- res públicas plantadas nesses bairros eram fre-
peus chegaram à bacia de Los Angeles, quentemente negligenciadas pelos serviços flo-
encontraram uma paisagem cuidado- restais por falta de financiamento. Além disso,
samente mantida pelos tongva e pelos restantes para criar espaço para os automóveis, a cidade
habitantes nativos, uma rede ecológica rica com removeu árvores das ruas e estreitou os passeios.
vastas zonas de sombra. Florestas de carvalhos A disparidade é gritante: em alguns dos bairros
e outras árvores serpentavam ao longo dos rios mais pobres da cidade, como Huntington Park, a
e nas terras altas que são agora a zona leste sombra das árvores cobre muito menos de 10% da
de Los Angeles, dando sombra e uma nutritiva área, enquanto em sítios mais abastados, como
chuva de bolotas. Los Feliz, a cobertura arbórea pode alcançar qua-
Os espanhóis abateram muitos dos carvalhos se 40%. A disparidade tem um impacte directo da
para aproveitarem a sua madeira e limparam ou- saúde pública. Bairros anteriormente discrimina-
tras áreas florestadas para criarem espaço para dos como “zonas vermelhas” são, em média, 4,2
o gado. Fizeram sombra, construindo edifícios, graus mais quentes do que os bairros mais ricos.
em vez de plantarem árvores: as ruas foram dis- “Simplesmente, não se vê verde nas zonas ver-
postas ao longo de um eixo com aproximada- melhas”, diz Vivek Shandas, ecologista urbano
mente 45 graus em relação ao sentido norte-sul, da Universidade Estadual de Portland, consul-
de modo a maximizar o Sol e a sombra durante tor da cidade de Los Angeles num projecto para
todo o ano. Arcadas compridas revestiam as fa- plantação mais equitativa de árvores.
chadas das missões e das residências. Em alguns troços de uma das avenidas de Los
No século XIX, os colonos provenientes do Feliz, as raízes de figueiras-estranguladoras com
Leste dos EUA remodelaram de novo a paisa- décadas de idade estendem-se pelos dois passeios
gem, plantando novas culturas e pomares de da sossegada estrada com dois sentidos. Ramos
citrinos. No século XX, usando água extraída do luxuriantes encontram-se no meio da avenida
outro lado da bacia de Los Angeles, acabaram com 12 metros de largura. Luz encoberta e fresca
por criar uma “floresta urbana”, na expressão de tremeluz na erva que cresce no chão. Contudo,
Travis Longcore, cientista ambiental da UCLA. 11 quilómetros mais a sul nessa mesma avenida,
Após a Segunda Guerra Mundial, uma casa uni- na zona Centro-Sul de Los Angeles, não há barrei-
familiar com um carro estacionado ao lado de ras contra o sol. (Continua na pg. 36)
28 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
SAN
MTS. S
CALIFÓRNIA
Zonas vermelhas S

Com o New Deal da década de 1930, a


Home Owners’ Loan Corporation 210
(HOLC) criou mapas codificados com 405 Los Angeles foi uma entre mais
cores para a avaliação de risco no cré- de cem áreas urbanas dos EUA
dito de habitação. Utilizou um sistema V a l e afectadas pelo sistema de classi-
San 5
de classificação chamado “redlining”, Fe r ficação dos bairros por cores.
classificando os bairros por cores. na
nd
Ajudou assim a impor a segregação. o
2

210
101
San Gabriel
110 Vale de

10

10
605
REDUZINDO A DIVERSIDADE
Os burocratas citaram a presença

VERM
ou a proximidade de “elementos 5
raciais subversivos” como causa
para atribuírem uma classificação LAX
baixa à zona. O seu alvo principal
eram os afro-americanos, os
judeus e as pessoas de ascendên-
cia mexicana e japonesa. Zonas 110 105
“mistas” com rendimentos
inferiores eram consideradas
“perigosas” e os créditos eram
recusados aos moradores. Era
405
legal impor restrições raciais à 710
realização de escrituras de A HOLC classificava
compra e venda de imóveis e os apenas bairros
bairros brancos com “protecções” residenciais,
contra a venda a minorias não abrangendo
recebiam classificações mais altas. zonas comerciais,
ington industriais
Península ou outras.
Palos Verde 405
n Pedro
OCEAN o Baía Sa
O PA

5 km FI
CO

COMO A DISCRIMINAÇÃO AINDA SEGREGADOS E ESTRATIFICADOS


A classificação dos bairros por cores é proibida

MOLDOU LOS ANGELES


há 50 anos, mas o seu legado perdura, concentrando
a pobreza e as pessoas de cor em algumas
zonas e os brancos ricos noutras.

Durante grande parte do século XX, a segregação


População não-caucasiana em áreas com categorias HOLC, 2019
incentivada pela administração federal forçou a
0 30% 60% 90%
maioria das pessoas de cor a viver em zonas residen- A
ciais de densidade populacional mais elevada e de B
C
menor qualidade. Ao mesmo tempo, os moradores D
brancos recebiam créditos para aquisição de habi-
tação em bairros exclusivos, onde o valor das casas Rendimento médio das residências, 2019 (em dólares)
subiu. O acesso desigual ao crédito e a disparidade 0 $50.000 $100.000 $150.000
A
racial na distribuição de riqueza mantêm-se,
B
apesar de as políticas discriminatórias da habitação C
terem sido proibidas nas décadas de 1960 e 1970. D

RILEY D. CHAMPINE. FONTES: JEREMY S. HOFFMAN, MUSEU DA CIÊNCIA DE VIRGÍNIA; UNIVERSIDADE DE RICHMOND, DIGITAL SCHOLARSHIP LAB; RICHARD ROTHSTEIN,
“THE COLOR OF LAW: A FORGOTTEN HISTORY OF HOW OUR GOVERNMENT SEGREGATED AMERICA”, 2017; GABINETE DE CENSOS DOS EUA
EM LOS ANGELES, A MAIOR PARTE DA SOMBRA
CONCENTRA-SE EM COMUNIDADES ONDE AS PESSOAS
PODEM PAGAR A MANUTENÇÃO DAS ÁRVORES.

CLASSIFICAÇÃO A, ROLLING HILLS


EM ZONAS DE BAIXO RENDIMENTO, MAIORITARIAMENTE
HABITADAS POR MINORIAS ÉTNICAS, A FALTA
DE INVESTIMENTO PÚBLICO IMPLICA MENOS ÁRVORES.

CLASSIFICAÇÃO D, HAWTHORNE
CLASSIFICAÇÃO A, LOS FELIZ

CLASSIFICAÇÃO B, LOS FELIZ

CLASSIFICAÇÃO C, EAST HOLLYWOOD

CLASSIFICAÇÃO D, PICO-UNION

EM LOS ANGELES, À medida que percorre-


mos de norte para sul a
Vermont Avenue, as
(“verdes” ou melhores
para investir) a D
(“vermelhas” ou piores).
classificação C estava
definida por “elementos
raciais subversivos” e
A PRESENÇA DE árvores tornam-se mais
escassas e faz mais calor:
Nas zonas de categoria
A, um mapa de 1939
possíveis “infiltrações”
das zonas de categoria
ÁRVORES REFLECTE são dez quilómetros
que reflectem os efeitos
refere que a proprie-
dade de certas casas
D – como aquela que se
encontra em Pico-Union,

A DESIGUALDADE duradouros da discrimi-


nação do sistema
ficava “perpetuamente
limitada a caucasianos”.
quase sem árvores e
com uma temperatura

URBANA redlining, que classifica-


va por cores as zonas A
A B era “razoavelmente
homogénea”, mas a
muito mais alta do que
dez quilómetros a norte.

32 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
DESEQUILIBRADO
As zonas de classificação A têm uma quantidade mais ou menos igual de cobertura arbórea e superfícies
expostas ou “paisagens rígidas” (como edifícios e pavimento). Nas zonas com classificação D, as paisagens
rígidas dominam o ambiente, deixando pouco espaço para o crescimento de árvores de grande porte.

Cobertura das copas vs. Cobertura de superfície impermeável L


37% A 40%
27% B 54%
20% C 64%
17% D 67%
0 0 MÉDIAS PARA ZONAS COM CATEGORIAS HOLC NA REGIÃO DE LOS ANGELES

RILEY D. CHAMPINE, THEODORE SICKLEY. FONTES: LABORATÓRIO DE ESTUDOS DIGITAIS DA UNIVERSIDADE


DE RICHMOND; AGÊNCIA PARA A PROTECÇÃO DO AMBIENTE DOS ESTADOS UNIDOS
Per As árvores do centro de LA
Quatro zonas da Vermont Avenue,
Reservatór
Hollywoo com classificações diferentes nos
mapas da HOLC de 1939, mostram
os efeitos ambientais do redlining:
menos arvoredo em zonas com
onto representado classificações inferiores.
a página anterior
110
Cobertura arborizada 2019
Zonas com categoria HOLC em 1939
C89
14,3% A B C D Zonas vermelhas

As auto-estradas
eram frequente-
mente projectadas
de modo a
atravessarem zonas
L. Parque Echo vermelhas, expondo
os residentes das
suas proximidades
a mais poluição.

10

10
60

Rio Los A
ng
110 ele
s

HUNTINGTON PARK

1 km

AS ÁRVORES PODEM AJUDAR Uma floresta urbana eficaz contém

A ARREFECER UMA CIDADE uma variedade de espécies de árvores


adaptadas ao calor, com copas amplas
e folhagem densa.
A cobertura arbórea de uma cidade é uma infra-
estrutura à semelhança do sistema de esgotos. O ar- A chuva ou a água
existente no subsolo,
voredo desenvolvido é potencialmente mitigador que se evapora através
do efeito de “ilha de calor”, no qual os pavimentos das árvores, podem
e edifícios podem reter o calor e aumentar as arrefecer a temperatura
atmosférica até 5°C.
temperaturas muito acima do que acontece nas
paisagens naturais fora da cidade. No entanto, a Objectos que criem
manutenção de uma floresta urbana demora tempo sombra podem arrefecer
a temperatura à
e consome recursos, sobretudo num clima quente superfície até 25°C
como o de Los Angeles, onde a irrigação é cara. num dia quente.

34 N AT I O N A L G E O G R A P H I C DIANA MARQUES. FONTE: YUJUAN CHEN, TREEPEOPLE


Tempe Pontos quentes
em z Imagens de satélite de um dia quente
Reserva
Holl de Julho mostram os locais onde o
efeito de ilha de calor urbano é mais
severo. O calor dá tréguas às zonas
com mais sombra, a maioria das quais
B representado com categorias mais altas em 1939.
ina anterior
110
Temperatura média à superfície*

35°C 45°C 55°C


As te turas mais ou menos ou mais
baixas à superficie no C
centro de Los Angeles
registam-se nos montes e
junto de corpos de água.

arque Echo

10

D bras projectadas por


10 arranha-céus proporcionam
frescura no núcleo urbano
da cidade. 60

Rio Los A
ng
110 ele
s
Zonas industriais com
grandes estruturas de
metal e betão são os
pontos mais quentes da
cidade.

LO S AN G EL E S S UL HUNTINGTON
PARK

1 km

NÃO HÁ SOMBRAS EM Os pontos representam áreas HOLC no centro de


Los Angeles e na região da grande Los Angeles

PARTE DE LOS ANGELES


52°C
Temperatura média à
Temperaturas à superfície* (°C)

C89 superfície por categoria*


48 D48
D 46,9
À medida que Los Angeles tem mais dias C 46,4
extremamente quentes devido às alterações B 45,0
44
climáticas, a capacidade do arvoredo urbano A 42,2
B73
para baixar as temperaturas poderá salvar vidas. 40
A43
Actualmente, porém, a cobertura arbórea da
cidade encontra-se sobretudo em zonas onde os 36
moradores são tendencialmente brancos e ricos.
Nos bairros mais pobres, classificados como zonas 32
vermelhas e negligenciados, não existe esta 0 10 30 50 70%
protecção contra o calor. Cobertura arborizada

RILEY D. CHAMPINE, THEODORE SICKLEY *TEMPERATURA MÉDIA À SUPERFÍCIE DA TERRA


FONTES: JEREMY S. HOFFMAN, MUSEU DE CIÊNCIA DE VIRGÍNIA; UNIVERSIDADE DE RICHMOND, NO DIA 3 DE JULHO DE 2020
DIGITAL SCHOLARSHIP LAB; GABINETE DE CENSOS DOS EUA; EPA; NASA
LOS ANGELES
NÃO É A ÚNICA
Baltimore, Maryland,
também contratou morado-
res para plantar árvores em
comunidades necessitadas.
Phoenix, Arizona,
está a escolher os bairros
mais quentes para plantar
árvores, construir
estruturas de sombra e
redesenhar ruas.
Boston, Massachusetts,
é uma de muitas cidades
que criaram mapas de
sombra sofisticados para os
esforços de planeamento
no futuro.

Para mais artigos sobre


como ajudar o planeta,
visite natgeo.com/planet.

Ladale Hayes planta


uma árvore no âmbito
de uma campanha de
Los Angeles para
plantar 90 mil árvores
até ao fim de 2021.
Ladale trabalha para a
organização sem fins
lucrativos North East
Trees e lidera uma
equipa de jovens para
plantação nos bairros
onde vivem. As árvores
precisarão de muitos
anos de cuidados até
que a sua sombra
proporcione alívio.

Rachel O’Leary e Cindy Chen trabalham para de Cindy pôs de lado os sítios que não serviam
uma organização sem fins lucrativos chamada para plantar árvores, por neles existirem aces-
City Plants e andavam à procura de sítios para sos para automóveis, bocas de incêndio, becos e
plantar árvores no Centro-Sul da cidade. Num outros obstáculos. O espaço que sobrou chegava
longo quarteirão, encontraram apenas nove árvo- para mais 16 árvores de rua.
res na rua. Seis eram tão jovens que só faziam um Não é muito, reconhece Rachel O’Leary, mas
projecto de sombra. Um cão rafeiro estava deitado esta área tem actualmente menos de 3% de cober-
ao fresco sob um jacarandá excessivamente poda- tura da vegetação. “Meia dúzia de árvores é me-
do. Trabalhadores da construção civil descansa- lhor do que nenhumas”, diz.
vam à sombra de duas figueiras de troncos gros-

L
sos. O resto do quarteirão estava exposto ao sol. OS ANGELES PRETENDE PLANTAR
Cindy criou um modelo informático que desco- mais 90 mil árvores até finais deste ano
bre as pequenas parcelas de terra onde a cidade para aumentar a cobertura vegetal em mais
pode acrescentar árvores, mas a proposta é mais de 50% até 2028 em bairros negligenciados como o
difícil do que parece. Nesse quarteirão, dos 8.220 Centro-Sul da cidade. A campanha está longe de ser
metros quadrados de terrenos sob gestão pública uma solução rápida, admite, sem rodeios, Rachel
(incluindo a rua), apenas cerca de mil metros qua- Malarich, directora florestal da cidade. As árvores
drados são potencialmente plantáveis. O modelo demoram anos, ou mesmo décadas, a crescer e pre-

36 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
A cidade começou a dar passos pequenos.
Num concurso público de projectos para reima-
ginar candeeiros de iluminação pública, os con-
correntes tiveram de imaginar duas ou três fun-
ções – dar luz, fazer sombra e, se possível, talvez
servirem de suporte a obras de arte. Os abrigos
das paragens de autocarro serão os próximos a
reconfigurar e, ainda antes disso, a cidade vai
acrescentar 750 abrigos em paragens muito usa-
das nas ruas mais quentes.
Qualquer sombra, de qualquer género, seria
mais do que bem-vinda, diz Esmerita Gómez en-
quanto espera pelo autocarro na esquina de Ver-
mont Avenue com Venice Boulevard, perto da
baixa da cidade de Los Angeles. “Antigamente,
havia aqui três árvores, mas cortaram-nas.” Ela
coloca-se cuidadosamente sob a sombra estreita
do poste de uma linha telefónica até o autocarro
parar à sua frente.
O processo de descobrir ou fazer sombra é uma
aptidão bem aperfeiçoada pelos moradores lati-
nos da cidade, comenta James Rojas, planeador
urbano que cresceu na zona oriental. Veja-se o
caso dos pátios, alpendres e terraços de Boyle Hei-
ghts: são uma miscelânea de soluções criativas de
sombra. Tapetes de bambu atados a vedações de
ferro forjado. Chapéus de sol desbotados encaixa-
dos no sítio certo, encostados a treliças cobertas
de buganvílias. Lonas penduradas com elegantes
dobras “para proteger mi padre y la Virgen de Gua-
dalupe”, diz Gubernal Velasquez, debaixo de um
belo toldo branco, apontando na direcção do seu
pai idoso e de um ícone religioso. São soluções de
design de necessidade que a cidade pode incenti-
var enquanto espera que as copas cresçam ou que
cisam de uma grande quantidade de água. se processe uma remodelação urbana.
O benefício, porém, supera largamente os custos. Miguel Vargas, o plantador de árvores, prefere
Christopher Hawthorne defende uma aborda- a visão de longo prazo. Conhece bem como é pre-
gem holística que leve em conta as necessidades cioso um momento à sombra e sabe que é ainda
de sombreamento em todas as decisões relaciona- mais importante para as abuelitas do seu bairro
das com o planeamento urbano desta e de outras que vão buscar os netos a pé, para as empregadas
cidades. “Em vez de abrirmos a porta ao sol e à luz domésticas que esperam pelo autocarro na pa-
solar, precisamos de começar a pensar em projec- ragem ou para todas as pessoas que não têm um
tos que nos protejam do sol e do calor”, diz. equipamento de ar condicionado. Uma gota de
Numa escala maior, isso implicaria reorientar a suor escorre-lhe pela bochecha enquanto ele es-
cidade, afastando-a dos automóveis e devolvendo cava um buraco para uma de 1.400 novas árvores
espaço aos peões e às árvores. Poderia significar que ajudou a plantar em Huntington Park.
estreitar as ruas e permitir que fossem sombrea- “Isto não vai acontecer a curto prazo. Não va-
das por edifícios mais altos do que a actual legis- mos sentir os efeitos este ano, nem talvez daqui a
lação permite. Existem leis que ditam o direito ao dez anos. As pessoas que os vão sentir são da pró-
calor nos edifícios e, na Europa, até à luz solar. xima geração”, diz. “Devagar, mas com segurança,
Talvez tenha chegado o momento de garantir o haveremos de lá chegar, para que faça menos ca-
direito à sombra e à frescura. lor nos bairros de habitação social.” j

A SOMBRA QUE DIVIDE 37


OS VALIOSOS FÓSSEIS
QUE APARECERAM NA LIXEIRA

Xènia Aymerich,
conservadora-chefe
do Instituto Catalão
de Paleontologia Miquel
Crusafont (ICP) segura
o crânio de um barburo-
felídeo com dentes de
sabre. É um de mais de
70 mil fósseis descober-
tos em Abocador de Can
Mata, um aterro sanitário
situado nos arredores de
Barcelona e um paraíso
para os paleontólogos.
Numa lixeira, os paleontólogos vão descobrindo
muitas espécies ancestrais, incluindo alguns
precursores dos símios… e dos seres humanos.
Can Mata é o maior
aterro sanitário activo
da Catalunha e continua
a crescer. Fartos do
cheiro e do barulho,
muitos moradores
querem o seu encerra-
mento. Contudo, cada
expansão permite aos
paleontólogos acederem
a fósseis enterrados
nas profundezas que,
de outro modo,
seriam inalcançáveis.
O solo de Can Mata
contém fósseis fascinan-
tes com cerca de 11,2
milhões a 12,5 milhões
de anos, incluindo
espécies de primatas
ancestrais que não se
encontram em nenhuma
outra parte do mundo.
A expansão da lixeira
é acompanhada
por paleontólogos
desde 2002.
POUCOS LUGARES
SÃO MENOS CONVIDATIVOS
DO QUE UMA LIXEIRA
NUMA NOITE GELADA.
N O E N TA N T O ,
ali estava o paleontólogo Josep Robles em
Dezembro de 2019, em busca de pistas raras sobre a história da
evolução humana.
Durante grande parte dos meses anteriores, passara várias
noites por semana em Abocador de Can Mata, o maior aterro
sanitário activo da Catalunha, em Espanha. Sete dias por se-
mana, 24 horas por dia, as escavadoras mergulhavam as suas
garras metálicas no subsolo para abrirem mais um poço fun-
do onde enterrar o lixo da cidade de Barcelona e arredores.
Josep Robles era um de oito paleontólogos que trabalhavam
por turnos, mantendo-se atentos às toneladas de terra ama-
relada pejada de rochas, removida pelas escavadoras.
Durante o dia, o aroma doentiamente adocicado da po-
dridão atraía bandos de gaivotas. A terra, macia e fina como
açúcar em pó, erguia-se em pequenas nuvens, a cada passo
dado por Josep Robles. De noite, ele vestia várias camadas
de roupa e colocava uma lanterna frontal sobre o capacete.
Sempre que detectava uma massa que parecia ter potencial,
acenava para o operador da escavadora, pedindo-lhe que pa-
rasse enquanto investigava o objecto de perto.
Se se mostrasse promissora, o paleontólogo cobria-a com
folha de alumínio reflectora para ser retirada de manhã, à luz
do dia. Depois, afastava-se e a máquina voltava a rugir.
O solo de Can Mata contém uma enorme variedade de fós-
seis que abrangem mais de um milhão de anos da época geo-
lógica designada por Miocénico, entre cerca de 11,2 milhões
e 12,5 milhões de anos. A partir de 2002, vários paleontólo-
gos do Instituto Catalão de Paleontologia Miquel Crusafont
(ICP), da Universidade Autónoma de Barcelona, encontra- Alba Rico Barrio é uma
ram mais de 70 mil fósseis deste período, incluindo fósseis das cientistas que
de antepassados de cavalos, rinocerontes, veados, elefantes, visitaram a lixeira ao
longo dos anos para
um antigo parente do panda-gigante e o esquilo voador mais ajudarem a escavar as
antigo do mundo. Também ali descobriram uma enorme va- suas riquezas paleon-
riedade de vestígios ancestrais de roedores, mas também de tológicas. Os fósseis
que emergiram de
outros grupos como as aves, anfíbios e répteis. Can Mata até à data
Contudo, alguns dos achados mais importantes são fósseis representam mais
de espécies de primatas que não se encontram em nenhum de 85 espécies de
mamíferos e cerca
outro lugar. Muitos são hominóides muito antigos, precur- de 15 espécies de aves,
sores dos gibões, dos grandes símios e dos seres humanos. anfíbios e répteis.

44 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
No Miocénico Médio, havia dezenas de espé- torando) começaram a acompanhar as esca-
cies de hominóides. Tiveram origem em África, vações em Can Mata. Três semanas depois de
mas também já existiam na Ásia e na Europa há começarem a trabalhar, escavaram o dente de
12,5 milhões de anos. Os ossos de primata des- um dinotério, um enorme parente do elefante
cobertos em Can Mata estão a ajudar a reconfi- com presas curvadas para baixo. Investigando
gurar o quadro de um período das profundezas melhor o local, encontraram o fragmento de
do nosso passado que, em muitos aspectos, per- um osso do dedo. “Comentei que me parecia de
manece obscuro. um primata”, recorda David Alba.
“Can Mata permitiu-nos mostrar que, na- O paleontólogo correu até ao automóvel e
quele horizonte temporal, os primatas eram trouxe o molde da mão de um Hispanopithecus,
muito mais diversificados do que se pensava”, um símio extinto que fora descoberto num vale
diz David Alba, director do ICP. E cada nova das proximidades. Depois de compararem os
pista fornecida por um fóssil ajuda-nos a des- dois, os paleontólogos continuaram inseguros
vendar alguns dos mais profundos mistérios da sobre o que tinham descoberto. Em seguida,
nossa espécie: O que somos? De onde viemos? encontraram três fragmentos de um canino,
E quando começámos a ser? que David Alba colou, e uma série de fragmen-
tos de ossos minúsculos e frágeis espalhados
a cerca de 40 quilómetros para
LO C A L I Z A DA perto de um bloco. De câmara em punho, Alba
noroeste de Barcelona, Can Mata entrou para o deitou-se de barriga para baixo para ver melhor
mapa dos fósseis de primatas no início da década o que havia sob o bloco.
de 1940, quando Miquel Crusafont, que deu nome Ficou estarrecido, ao aperceber-se de que
ao ICP, ali descobriu parte da mandíbula e alguns estava a contemplar directamente um rosto
dentes de um grande símio do Miocénico. Acha- ancestral. “Nós os três, muito nervosos, mal fa-
dos subsequentes contribuíram para transformar lávamos”, conta. “Virámo-lo ao contrário e ali
Can Mata num sítio paleontológico de referência estava a cara de um Pierolapithecus a olhar para
internacional. Apesar do seu estatuto, também nós. Foi um dos momentos mais importantes
começou a funcionar legalmente como aterro da minha vida.”
sanitário em meados da década de 1980. Pierolapithecus catalaunicus foi o nome que
No início do século XXI, quando a empresa atribuíram à nova espécie de grande símio ali
gestora do aterro, a Cespa Waste Management, identificada, embora a equipa o trate pela alcu-
quis escavar novas células para enterrar o lixo, nha de Pau. Com cerca de 12 milhões de anos,
com um mínimo de 30 metros de profundi- é um dos esqueletos de primata do Miocénico
dade, foi obrigada pela lei espanhola que rege mais completos até hoje descobertos. Em se-
o Património Histórico a garantir que as suas guida, a equipa encontrou mais ossos do pei-
máquinas não esmagariam fósseis nem os en- to, do dorso inferior e dos pulsos do animal.
terrariam debaixo das ilhas de lixo. A Cespa É o fóssil de primata mais antigo conhecido que
contactou alguns cientistas para supervisionar apresenta provas inequívocas de uma caracte-
as escavações e eles saltaram de entusiasmo pe- rística única dos símios e dos seres humanos:
rante a possibilidade de acederem às profunde- uma estrutura corporal ortógrada, ou erecta.
zas da lixeira. “Não devemos confundir isto com bípede”,
Em 2002, os paleontólogos independentes sublinha Alba. “Algumas pessoas usam a pa-
(actualmente todos do ICP) Isaac Casanovas- lavra ‘erecto’ com o significado de ‘bípede’.
-Vilar, Jordi Galindo e David Alba (então dou- Isso está errado.” (Continua na pg. 52)

CADA FÓSSIL AJUDA-NOS A DESVENDAR OS PROFUNDOS


MISTÉRIOS DA NOSSA ESPÉCIE: O QUE SOMOS? DE ONDE
VIEMOS? E QUANDO COMEÇÁMOS A SER?
46 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
ENTERRADOS NA HISTÓRIA CATALUNHA
A bacia de Vallès-Penedès, na Catalunha, é um sítio de

L
UGA
importância mundial para a paleontologia. Durante milhões
Madrid
de anos do Miocénico, uma falha activa provocou o abati-
E S PA N H A

PORT
mento gradual da bacia, criando um reservatório de restos de
animais em progressiva acumulação. Os sedimentos escorri-
dos da cordilheira Pré-litoral enterraram posteriormente os
ra l
ossos em sedimentos, preservando-os por milhões de anos.
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1.675m Sant Jeroni
Antigo fluxo 1.236m
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la Geltrú

PRIMEIROS ACHADOS MIOCÉNICO MÉDIO MIOCÉNICO SUPERIOR


As condições ambientais eram ideais para os primatas
ancestrais. Quatro espécies (apresentadas a negrito) 12,5 12 11,5 11
Milhões
foram descobertas em Can Mata. Nas novas escavações, de anos
Pb. cataloniae
os cientistas esperam descobrir mais primatas.

Pliopithecus canmatensis Pp. canmatensis

Símios do D. fontani Estes símios deslocavam-se


Velho Mundo Pliobates cataloniae (”Laia”) usando sobretudo os
quatro membros, mas
Hominóide P. catalaunicus são a primeira espécie
Gibões adaptada para se erguer
Dryopithecus fontani na posição erecta e trepar.
Pequenos Pierolapithecus catalaunicus (”Pau”)
macacos A. brevirostris
Anoiapithecus brevirostris (”Lluc”)
Hominídeo Já escavado
9m
Orangotangos
Gorilas A actividade
70m
Chimpanzés tectónica causou a
Bonobos Homídeo inclinação das camadas de
sedimentos. As mais antigas já foram
Grandes escavadas, mas faltam as mais recentes.
macacos Humano

ROSEMARY WARDLEY E DIANA MARQUES


FONTES: DAVID M. ALBA E ISAAC CASANOVAS-VILAR, INSTITUTO CATALÃO DE PALEONTOLOGIA MIQUEL CRUSAFONT; EU-DEM
Uma vez retirados do
aterro, os fósseis são
armazenados na sede do
ICP, em Barcelona, onde
aguardam preparação
e estudo. O conservador
Jordi Galindo (na
imagem) verifica as
etiquetas de pedaços de
terra cheios de fósseis,
acondicionados em
espuma de poliuretano.
Entre os ossos e dentes
encontrados em Can
Mata (em sentido
horário a partir do
topo esquerdo)
contam-se restos de
um porco extinto, um
trágulo, um cágado
gigante e um antepas-
sado de um elefante.
Variantes de químicos
presentes nos fósseis,
chamados isótopos,
encerram pistas sobre
o clima da região no
passado, como
alterações na precipi-
tação e na tempera-
tura. Os isótopos de
carbono também
indicam os tipos de
plantas ou presas que
os animais consumiam.

50
Em vez disso, uma estrutura corporal ortó- rostris, com cerca de 12 milhões de anos. A face
grada permite subir, pendurar-se em ramos, ba- da maioria dos primatas é protuberante, mas
loiçar entre ramos e, por vezes, caminhar sobre a face deste macho fossilizado, que recebeu a
duas patas. Embora alguns destes comporta- alcunha de Lluc, era intrigantemente plana,
mentos tenham talvez evoluído diversas vezes fazendo lembrar as faces do nosso próprio gé-
de forma independente, a estrutura corporal nero, o Homo. Os investigadores propuseram
ortógrada poderá ter resultado de uma única que tal seria o resultado de uma evolução con-
evolução ou talvez de duas. Segundo David vergente, na qual características semelhantes
Alba e os seus colegas, o fóssil sugere que o úl- evoluem em organismos não aparentados ou
timo antepassado comum de todos os hominí- com parentesco distante.
deos poderá ter sido ortógrado. Nesse caso, ele Depois, em 2011, apareceu o fóssil de uma
poderá dar-nos uma pista sobre o que terá dado fêmea de Pliobates cataloniae, que recebeu a
vantagem evolutiva a certas espécies. alcunha de Laia. Esta espécie recém-encon-
A equipa de Can Mata ficou também entu- trada viveu há cerca de 11,6 milhões de anos,
siasmada com a descoberta de outro novo ho- ou seja, cerca de meio milhão de anos depois
minóide a que chamaram Anoiapithecus brevi- de Pau.

52 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
barburofelídeo com dentes de sabre que não
é um verdadeiro felídeo – a família que inclui
os leões e os tigres. Em vez disso, pertencia
a uma família de carnívoros que divergiu dos
antepassados dos felídeos há possivelmente
40 milhões de anos.
Todos os fósseis datam de um importante
período de transição, entre o Miocénico Mé-
dio e o Superior, quando as florestas húmidas
subtropicais da região estavam a tornar-se
mais áridas e as pradarias se expandiram. Estas
descobertas permitem aos cientistas reconsti-
tuir as alterações ambientais ocorridas em Can
Mata ao longo de um milhão de anos, em inter-
valos temporais de 100 mil anos. Esse objecti-
vo é possível porque Can Mata tem um registo
geológico longo e contínuo.
“Os ecossistemas conseguem tolerar alte-
rações durante algum tempo, mas quanto?
É uma pergunta à qual tentaremos responder
para este ambiente em particular e neste tem-
Álex Pérez, director po em particular”, defende Isaac Casanovas-
de colecções do
museu de ciência -Vilar, do ICP.
CosmoCaixa, em Será possível escavar nas próximas décadas?
Barcelona, examina Alguns moradores da zona estão fartos de Can
os ossos fossilizados
do Pliobates Mata, do seu fedor intenso, da interminável
cataloniae, um dos procissão de camiões de lixo libertando fumos
primatas ancestrais de escape, da sua expansão constante. No Ou-
identificados em Can
Mata. Esta espécie tono de 2019, enquanto Josep Robles e os co-
diminuta mostra que legas monitorizavam as escavadoras, manifes-
alguns antepassados tantes reuniram-se junto da entrada da lixeira,
antigos dos símios
modernos e dos seres empunhando cartazes escritos em catalão.
humanos eram muito Prou pudors. Tanquem l’abocador. Volem respi-
mais pequenos do rar en pau. “Chega de maus cheiros.” “Fechem
que os cientistas
pensavam. o aterro.” “Queremos respirar em paz.”
Contudo, num referendo recente, os mora-
dores aprovaram a expansão da lixeira, poten-
A compreensão das raízes dos grandes sí- cialmente até ao final da década. Por isso, os
mios é importante para perceber as origens cientistas não partirão tão cedo. E têm muito
dos hominídeos, o táxon que surgiu depois de a trabalho para fazer com os fósseis já identifi-
nossa linhagem e a dos chimpanzés se separa- cados. Apenas 20% dos seus achados foram
rem do seu antepassado comum, há seis a oito limpos de sedimentos endurecidos e quimi-
milhões de anos. A linhagem humana “não camente preservados. Há milhares de outros
apareceu do nada”, diz David Alba. “Por isso, embrulhados em papel castanho e película
precisamos de saber a partir de onde evoluiu.” aderente, guardados em salas de armazena-
mento frescas e subterrâneas. Numerado e
dos fósseis da lixeira já forne-
A M I N A D E O U RO etiquetado, cada pacote aguarda que um in-
ceu mais de 85 espécies de mamíferos que vive- vestigador curioso o desembrulhe. Alguns es-
ram no tempo destes primatas pré-históricos. tão à espera há quase 20 anos.
Um dos achados mais recentes foi o Chali- “Isto é trabalho para as próximas três ou qua-
cotherium, um ungulado alto e com garras tro gerações de paleontólogos”, diz David Alba.
que parece uma estranha mistura de pregui- “Tenho a certeza de que há fósseis interessan-
ça-gigante, urso, cavalo e gorila. Outra foi um tes aqui escondidos.” j

O S VA L I O S O S F Ó S S E I S D E C A N M ATA 53
Em Coimbra, o canoísta
olímpico e vice-cam-
peão europeu de K1
500 João Ribeiro leva
a cabo diferentes
testes físicos, orienta-
dos pelo investigador
Amândio Santos.
À esquerda, mede o
consumo máximo de
oxigénio, enquanto
rema num simulador
laboratorial. À direita,
num pletismógrafo
de deslocamento de ar,
que utiliza a densito-
metria para determinar
a composição corporal.
T E X TO E F OTO G R A F I A S D E
A NTÓ N I O LU Í S CA M P O S

Da canoagem à maratona, da marcha atlética ao alpinismo,


os limites do ser humano são testados continuamente.
Em Coimbra e no Porto, duas equipas de investigadores
transformam as limitações em forças.

A CIÊNCIA DOS CAMPEÕES


H atingi o topo do pico Huayna
H Á Q U AT R O A N O S ,
Potosi, a 6.088 metros de altitude, na Bolívia.
A noite persistia e só se adivinhava a alvorada do
dia no horizonte, por cima da selva amazónica.
O termómetro marcava -15ºC. O vento forte cessara
e, à medida que a luz preenchia a metade orien-
tal do meu campo de visão, a neve ganhava cores
indescritíveis. Ao fim de três dias de ascensão, senti
o êxtase. E alguma confusão crescente nas horas
seguintes. O corpo reagia como nunca o havia sen-
tido, com um torpor e uma incompreensível des-
conexão entre músculo e cérebro... Pela primeira
vez, sentia algo de que há muito ouvia falar: o mal
agudo de altitude (conhecido pela sigla anglófona
AMS, correspondente a Acute Mountain Sickness).
Este fenómeno representa uma das maiores
dificuldades no alpinismo, mas não se conhece
cabalmente o processo fisiológico subjacente.
A parada é alta: em casos extremos, é a vida que
está em risco. Faz-se sentir aproximadamente a
partir da cota de 3.000 metros de altitude e há Em sua casa, a
grande variação na susceptibilidade de indiví- maratonista Sara
Ribeiro dorme
duo para indivíduo. No entanto, é sobretudo nos numa tenda especial-
picos mais altos que se torna um assunto sério: nos mente desenvolvida
Andes e sobretudo nos Himalaia e no Caracórum, para simular altitude e
provocar nos atletas os
montanhas que acolhem os 14 cumes da Terra com benefícios dos estágios
mais de oito mil metros. em altitude, regulando
A essa altitude, as complicações por insuficiente a mistura gasosa do
ar existente na tenda
aclimatação podem provocar edemas pulmonares como parte
e cerebrais. Se a descida não for rápida, estas pato- do plano de treino
logias podem provocar a morte. O AMS é consti- para os Jogos
Olímpicos de Tóquio.
tuído por um conjunto de sintomas, que incluem
dor de cabeça, falta de apetite, dificuldade no sono
e vómito. Quando não passa com a ingestão de um
paracetamol, é sinal de perigo. Na verdade o corpo
está sobrecarregado pela drástica diminuição da
pressão atmosférica, provocando uma pressão

56 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
interior, particularmente preocupante no caso dos Em altitude, as noites são também mal dormi-
pulmões e do cérebro. Por norma, estes sintomas das: acorda-se muito, a respiração é superficial
são moderados, pelo que a aclimatação deve ser e acelerada, longe dos 12/14 ciclos habituais por
realizada de forma progressiva e pensada. minuto, o que provoca apneia do sono e cansaço
Como orientação padronizada, não se deve acumulado. Embora sejam múltiplos os processos
subir mais de 300 a 400 metros de altitude por fisiológicos envolvidos na aclimatação à altitude,
dia. Atendendo a que o Acampamento-Base do a principal reacção do corpo consiste na produção
Evereste está a 5.364m de altitude e o acesso do de mais glóbulos vermelhos, responsáveis pelo
lado nepalês se faz de Lukla, a 2.860m, em teoria, fornecimento de oxigénio às células.
demoraria uma semana de caminhada só para lá Esta reacção fisiológica tem como objectivo
chegar. Para minimizar este tempo, há um ata- compensar a deficiência de oxigénio inalado,
lho tecnológico: as câmaras hipobáricas, onde se resultante da rarefacção dos gases à medida que
passa tempo a pressões e concentrações gasosas a altitude vai subindo e a pressão atmosférica des-
progressivamente similares às que se encontrarão cendo. Mas não é instantânea – daí a necessidade
na montanha, permitindo partir já parcialmente de a subida em altitude acontecer de forma lenta e
aclimatado. As câmaras, porém, são poucas e caras. gradual, permitindo a adaptação do corpo.

A CIÊNCIA DOS CAMPEÕES 57


NEM A FORMA FÍSICA OU A IDADE SÃO INDICADORES SEGUROS. HÁ ATLETAS JOVENS
E EM EXCELENTE FORMA FÍSICA QUE NÃO PASSAM DO ACAMPAMENTO-BASE.
O mal agudo de alti-
tude é um dos prin-
cipais riscos para os
alpinistas. Pode ser
sentido a partir de
3.000 metros. O foto-
jornalista António Luís
Campos experienciou
esta resposta fisioló-
gica a 6.088m, no topo
do pico Huayna Potosi,
na Bolívia (à esquerda).

59
Até estar nestas altitudes extremas, é difícil prever Garcia recorda: “Na minha segunda grande expe-
como cada ser humano reagirá: são precisas viagens, dição, ao Dhaulagiri, a sétima mais alta montanha
muito tempo e dinheiro para obter essa resposta! da Terra, a aclimatação foi insuficiente. Hidratei
Testando diferentes pessoas de um mesmo grupo, pouco e a 7.400m comecei a ter quebras de tensão.
através de um oxímetro, rapidamente se percebe A certa altura, enquanto subia uma vertente nevada,
que o nível de aclimatação é variável. E nem sequer a 45º de inclinação, tive a percepção de que ia apagar.
a forma física ou a idade são indicadores seguros. Há O meu último instinto antes de desmaiar foi cravar o
exemplos de atletas jovens e em boa forma física que piolet no gelo. Acordei pendurado pelo pulso, preso
nunca passam do Acampamento-Base. E quando a pela dragoneira! Tive sorte e desci assim que pude.”
limitação é a genética, pouco há a fazer.
Portugal não é, dada a sua modesta orografia E SE FOSSE POSSÍVEL testar a susceptibilidade ao
e latitude meridional, uma referência do alpi- AMS? Seria um enorme avanço científico. E é preci-
nismo mundial, mas isso não impediu que um samente um dos vectores de investigação sobre a
nome se destacasse: João Garcia. O primeiro hipoxia (diminuição da pressão parcial de oxigénio)
português a ascender ao Evereste completou um a que a equipa do Centro de Investigação e Activi-
feito que, à época, apenas nove outras pessoas dade Física, Saúde e Lazer da Faculdade de Desporto
tinham obtido: ascendeu aos 14 picos mais altos da Universidade do Porto (FADEUP) se dedica. Em
do planeta, acima da cota de 8.000 metros, sem 2003, na primeira expedição lusa ao Pumori, no vale
recurso a oxigénio suplementar. Estará ele parti- do Khumbu, com 7.191m, liderada por João Garcia,
cularmente adaptado? A resposta é pragmática: esteve presente outra pessoa a partir do Porto.
“A minha mãe é alentejana, o meu pai das Caldas José Magalhães, investigador do CIAFEL e afi-
da Rainha, não tenho certamente uma genética cionado pela montanha, dedicou boa parte da sua
adaptada à altitude!”, brinca. “No alpinismo, a capa- carreira ao estudo da hipoxia e aproveitou esta expe-
cidade de sofrimento é importante, o treino igual- dição para estudar o efeito da privação de oxigénio
mente e o que distingue um bom atleta de um atleta no organismo. Foram realizadas colheitas de sangue,
excelente é a cabeça. Mas também é importante análises de composição corporal, testes funcionais
não ser mais forte mentalmente que fisicamente!” de performance, assim como biopsias de tecido
Poucos como João Garcia podem falar com muscular, na perna, antes e depois da ascensão,
conhecimento de causa sobre a progressão do com o objectivo de analisar adaptações fisiológicas
AMS no organismo. “O processo ainda não está e bioquímicas decorrentes da exposição prolongada
explicado”, diz. “Uma das teorias sugere que existe a estes ambientes de elevada altitude por parte de
uma membrana intracraniana, responsável pelo nativos residentes ao nível do mar.
‘amortecimento’ do inchaço – se for espessa, pode Quase duas décadas mais tarde, o investigador
talvez permitir um buffer e minimizar os sintomas.” prossegue objetivos nesta área de estudo. Rodeado
Nas situações mais graves, o alpinista pode sentir de sofisticados equipamentos científicos do âmbito
alucinações. “É um processo estranho”, conta João da fisiologia e bioquímica, que evidenciam a com-
Garcia. “É como se existissem dois processadores plexidade destes trabalhos de investigação, conta:
dentro da tua mente: discutes contigo próprio e há “Nessa expedição, entre outras alterações fisioló-
duas personagens. Com pouco oxigénio, não tens gicas sistémicas e teciduais, foi possível observar
o mesmo discernimento.” O alpinista conhece na níveis elevados de stress oxidativo, alterações feno-
pele os elevados riscos da montanha: na expedição típicas musculares muito evidentes, como a atrofia
ao Evereste, as coisas não correram como previsto. muscular, o comprometimento da morfologia vas-
As condições meteorológicas agravaram-se e deso- cular e a disfunção mitocondrial com concomitante
rientou-se, o que o obrigou a pernoitar acima da prejuízo da bioenergética celular. À semelhança de
cota de 8.000m (a chamada “Zona da Morte”). Tanto outros estímulos para o nosso organismo, a exposi-
tempo exposto à altitude e frio extremos resultou ção a estes ambientes de altitude, particularmente
em queimaduras por frio e na consequente amputa- por residentes de baixa altitude, também interfere
ção dos dedos e operações plásticas ao nariz. Ainda com o que, habitualmente, se designa por equíli-
assim, sobreviveu. O seu companheiro, o belga brio redox, ou seja, a relação entre a produção de
Pascal Debrouwer, não teve a mesma sorte. Ali a compostos oxidantes e a capacidade antioxidante
diferença entre sobreviver e perecer é uma ténue do nosso organismo. Curiosamente, aquilo que foi
linha em que a experiência e a preparação jogam considerado em tempos como um “paradoxo do oxi-
um importante papel. Mas não é uma ciência exacta. génio”, um ambiente severo de hipoxia, rarefeito em

60 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
moléculas de oxigénio, é susceptível de incrementar Também a exposição a condições de hipoxia, não
a produção de espécies reactivas de oxigénio e, con- “foge à máxima” “a dose faz o veneno”! Doses mode-
sequentemente, induzir stress oxidativo adicional radas de hipoxia obedecendo a protocolos definidos
com potenciais consequências deletérias no orga- têm uma utilidade terapêutica bastante reconhecida.
nismo dos indivíduos expostos a estas condições.” Sabe-se por exemplo do efeito cardioprotector de epi-
Para melhor estudar o efeito da exposição aguda sódios intermitentes de hipoxia, que aumentam a
à altitude no contexto do stress oxidativo, José e o tolerância cardíaca contra eventos patológicos.
colega António Ascensão experimentaram-no na
primeira pessoa. Numa câmara hipobárica em Bar- sentado num banco
D O O U T R O L A D O DA E U R O PA ,
celona, participaram num estudo que contou com de jardim, Alex Gavan não poderia estar mais dis-
8 pessoas e 40 animais. Com pressão barométrica tante da realidade que viveu algumas semanas antes.
equivalente a 5.500m, uma exposição aguda severa O alpinista romeno, que aos 39 anos conta já com
(15 minutos) resultou num conjunto de alterações sete ascensões a picos acima da cota de 8.000 metros,
fisiológicas e bioquímicas deletérias, das quais se todos sem recurso a oxigénio nem ao auxílio de sher-
destacam a disfunção cognitiva, cefaleia intensa e pas em altitude, foi um dos candidatos à primeira
vómito e incremento dos níveis de stress oxidativo subida invernal do K2, o segundo pico mais alto do
avaliado no plasma dos participantes. Esta é tam- mundo e extremamente perigoso (um em cada qua-
bém uma condição a que muitos pilotos de aviação tro alpinistas que atingem o cume morre na descida).
são sujeitos, preparando-os para a eventualidade de A geografia difícil, aliada a temperaturas (-60ºC) e
executar operações críticas em hipoxia. ventos (200km/h) extremos, tornaram a sua subida
Adicionalmente, “os mecanismos subjacentes à invernal no Santo Graal do himalaísmo, só conse-
susceptibilidade da população exposta aos ambien- guido em 2021, por uma equipa de dez nepaleses (e
tes de altitude ao referido AMS têm constituído um ainda assim com recurso a garrafas de oxigénio). Este
foco de interesse na comunidade científica. A par do histórico feito foi ensombrado pela morte de cinco
famoso teste desenvolvido por Jean Paul Richalet outros alpinistas, todos próximos de Alex.
que utiliza dados respiratórios, “pretendemos encon- Quando questionado sobre a sua visão sobre os
trar marcadores bioquímicos complementares que efeitos da hipoxia numa montanha deste tipo, ele
tornem mais sólida a identificação da referida sus- não tem dúvidas: “Acima de 8.000 metros, esta-
ceptibilidade ao AMS”, reforça José Magalhães. mos a morrer lentamente e o nosso corpo definha
Jorge Beleza, da mesma equipa, reforça: “É para- a cada minuto. Em particular no Inverno, não há
doxal, mas verificamos que os atletas de endurance margem para qualquer tipo de erro e temos de ser
podem ter pior resposta à hipoxia do que pessoas extremamente cuidadosos com a aclimatação. Es-
normais.” Junto dele, de máscara respiratória na pecialmente sem oxigénio suplementar, que para
cara, com um longo tubo ligado à bolsa que controla mim é a essência do verdadeiro alpinismo.” Em-
a mistura gasosa, Tiago Costa, guia de trekking e bora não se saiba a causa do desaparecimento da
montanhista, pedala vigorosamente e grossas gotas equipa dos três últimos montanhistas falecidos no
de suor escorrem-lhe pela fronte, durante o teste de K2 (os dois primeiros foram acidentes indepen-
resposta ventilatória. Este exame, recente em Portu- dentes a menor altitude), há suspeitas de que o fac-
gal, faz parte do seu plano de treino para a ascensão to de o grupo estar insuficientemente aclimatado
ao Denali, o pico mais alto da América do Norte. poderá ter contribuído para a tragédia.
Os investigadores portuenses não estão sozinhos
neste campo científico. O Prémio Nobel da Medi- ser habitualmente
A P E S A R D E A A C L I M ATA Ç Ã O
cina, em 2019, foi atribuído a três conceituados associada à altitude, existem outros ambientes aos
investigadores pelo trabalho dedicado à hipoxia: quais o corpo humano não está bem adaptado. Na
Peter Radclift, William Kaelin e Gregg Semenza. A véspera dos Jogos Olímpicos de Tóquio, o frenesi
pertinência do estudo no âmbito da hipoxia não aumenta entre milhares de atletas. No entanto, para
se limita a desportos de montanha, pois há outras subir ao pódio, já não chega simplesmente correr,
situações que afectam milhões de pessoas, como as remar ou saltar mais do que os outros. É preciso
comunidades de altitude e trabalhadores que desem- estar um passo adiante e Amândio Santos, docente
penham funções nesse ambiente, incluindo as equi- da Faculdade de Desporto e Educação Física da
pas do telescópio ALMA, no Chile, onde tarefas física Universidade de Coimbra, ele próprio um despor-
e intelectualmente complexas, relacionadas com a tista, sabe-o bem. Passam pelo seu laboratório
astrofísica, cobram um preço ao corpo e à mente. alguns dos melhores atletas do mundo.

A CIÊNCIA DOS CAMPEÕES 61


A FISIOLOGIA E PERFORMANCE SÃO TESTADAS AO PORMENOR PARA CRIAR PLANOS
DE TREINO EM QUE O CONHECIMENTO SE JUNTA À PURA CAPACIDADE FÍSICA.
Numa câmara especi-
ficamente desenvol-
vida para aclimatação
de atletas de alto ren-
dimento, com tem-
peratura e humidade
controladas, a selecção
olímpica francesa trei-
na-se para Tóquio. Uma
fotografia térmica de
Yohann Diniz, campeão
e recordista do mundo
dos 50km marcha
(à direita) permite
analisar como as
diferentes partes do
seu corpo reagem a
condições extremas.

63
A equipa de canoagem é presença habitual, des- É numa câmara de 25 metros quadrados es-
tacando-se Emanuel Silva, Fernando Pimenta e João pecialmente preparada para o efeito, com tem-
Ribeiro, os últimos dois recém-medalhados nos peratura e humidade controladas, que os atletas
Campeonatos da Europa. No laboratório, a fisiologia treinam em passadeiras eléctricas, em condições
e performance destes atletas são testadas ao porme- similares às que encontrarão em Tóquio. Duran-
nor para desenvolver planos de treino que juntam o te a sessão de uma hora, chegam a perder 2kg,
conhecimento científico à capacidade física. mesmo ingerindo muitos líquidos. Na penum-
A fama desta unidade de Coimbra ultrapassou bra, o investigador explica: “A termorregulação
fronteiras, razão pela qual não surpreende uma neste tipo de condições climáticas tem um papel
animada conversa, em francês. Está nas instala- determinante. Nestas condições, a evaporação é
ções a selecção olímpica francesa de marcha, com responsável por 80% da perda de calor. Com altas
a estrela Yohann Diniz. E embora em 2014 este temperaturas e o ar saturado de humidade, a eva-
tenha batido o recorde mundial de 50km marcha poração deixa de existir e diminui a capacidade
de bandeira verde e rubra na mão (o seu avô era do corpo para perder calor, levando a um aumen-
português), o Campeonato do Mundo de Doha em to da temperatura central e a activação exagerada
2019 não lhe deixou boas memórias. O calor extre- de todos os mecanismos de defesa que podem ser
mo e a falta de aclimatação conduziram à desis- a perda de líquidos, perda de volume plasmático,
tência. Apesar de disputada à meia-noite, a prova aumento da pressão arterial, aumento da frequên-
foi muito diferente daquilo para que a maioria dos cia cardíaca, fraqueza muscular, desorientação e
atletas se treinara. Muitos chegaram imprepara- perda de equilíbrio postural, podendo mesmo em
dos. O português João Vieira não foi um deles. casos extremos levar à morte.”
Aos 43 anos, com o apoio da equipa de Amândio A descrição torna-se óbvia quando se olha para
Santos, alcançou ali a medalha de prata. a fotografia térmica de Diniz durante o treino.

COMO A ALTITUDE Monte Evereste


8.849m

AFECTA A PERFORMANCE 8.000


metros

SÃO BEM CONHECIDOS OS EFEITOS DA ALTITUDE SOBRE O CORPO HUMANO,


mas, após a conquista das grandes montanhas do planetas,
percebeu-se também que o treino em altitude (ou a simulação
das condições de altitude) ajudaria a performance atlética.
Monte Branco
4.809m

4.000
metros

Factores ou agressões ambientais:


Serra da Estrela
1.993m • Variações extremas de temperatura
Guarda 2.000
metros entre o dia e a noite;
1.056m
• Radiação solar elevada;
1.000 • Baixa disponibilidade de água potável
metros e risco de desidratação;
Altitude 0 Lisboa • Hipoxia hipobárica.
metros

Pressão barométrica
Pb (mmHg) 760 631 585 430 253
Pressão parcial
de oxigénio no 90 53
159 132 122
ar PO2 (mmHg)
Percentagem de 20,93 20,93 20,93 20,93 20,93
oxigénio no ar (O2)
15 15 15
0
9 2 0
Temperatura típica -15 -11 -15
0C
-30 -30
-45 -43 -45

Qualquer montanhista sabe que os primeiros efeitos fisiológicos das condições de altitude são
as cefaleias, a dificuldade de dor e a sensação de fadiga, bem como a falta de apetite.
Em condições extremas continuadas, o sujeito pode desenvolver edema pulmonar ou edema cerebral.

64 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
A zona da cabeça e peito é notoriamente mais Quase estanques, estas tendas estão ligadas a um
quente do que o abdómen. A análise destes dados compressor que regula a mistura gasosa no interior,
é útil para todos. Por um lado, os investigadores pobre em oxigénio, simulando uma maior altitude
têm acesso aos melhores entre os melhores, em (embora sem alterar a pressão atmosférica). Isto
tempo real. Por outro, ajudam-nos a desenvolver provoca uma reacção fisiológica do corpo, que
planos de treino e soluções práticas que melho- adapta o metabolismo e, quando em esforço ao nível
ram a performance e dão uma vantagem sobre os do mar, proporciona uma capacidade atlética adi-
concorrentes, num palco onde a vitória se decide cional. As atletas dormem ali, durante períodos de
ao segundo. Um exemplo disso é o protótipo do tempo controlados, nos meses anteriores às provas.
chapéu que Yohann testa em Coimbra: além de Bem-disposta, de pijama discreto e um ou dois cabe-
uma aba larga no pescoço, tem bolsos especiais los fora do lugar, Sara diz: “A primeira noite que cá
para armazenar gelo, que lhe arrefecerá a cabeça dormi tive uma enorme dor de cabeça e dormi mal.
(e, consequentemente, o corpo). Mas depois passou, e actualmente não sinto dife-
rença”, conta. “Durmo como um bebé.”
dos desportistas não se
E S T E T I P O D E P R E PA R AÇ ÃO De regresso a sul, passo pela serra da Estrela, apro-
limita à câmara de treino em Coimbra. Mais a norte veitando um dos melhores invernos dos últimos
entre incontáveis rochedos de granito e outras tan- anos para treinar escalada em gelo. Nas encostas
tas fabriquetas, encontramos as maratonistas olím- do Cântaro Magro, a água solidificou, emprestando
picas Sara Ribeiro e Carla Rocha. As fundistas do um cenário alpino à paisagem. Não será aqui que
Sporting têm uma divisão muito particular nas suas voltarei a sentir mal de altitude, mas o chamamento
casas: o “quarto da tenda”. Não são particulares das montanhas renova-se. Questionado sobre a sua
adeptas do campismo, mas esta é uma peça-chave obsessão com o Evereste, o alpinista pioneiro Geor-
do seu plano de preparação para Tóquio. ge Mallory explicou-a assim: “Porque está lá!” j

PERDA DE PESO CORPORAL EM ALTITUDE


Altitude absoluta e duração da exposição
31 dias Altitude (m)
8.000 metros
8.000 (metros) 8.000
7.000 5 semanas 12 semanas 7.000
entre entre
6.000 7.000 metros 8.000 metros 6.000
5.000 e 5.000
20 dias e 8 a 10 semanas 5.000 metros
4.000 5.000 metros 4.000 metros 5.500 metros 4.000
8 dias 12 dias
3.000 4.300m 4.300m 3.000
2.000 2.000
1.000 1.000
0 0
Semanas 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 Semanas

Perda de Peso 3-3,5% 5,4% 3%** 7,5% 10%

NOS PRIMEIROS PERDA DE MASSA MUSCULAR ADAPTAÇÕES MORFOLÓGICAS


MOMENTOS EM ALTITUDE (kg) NO MÚSCULO ESQUELÉTICO
O ser humano diminui a Ascensão ao Evereste* Exposição crónica em humanos
saturação arterial de oxigénio,
Antes Depois Antes Depois
aumenta a frequência
ventilatória, a frequência + 2.2 67.2 —
+ 1.8 Área secção transv. + 23.00 + 21.00
Peso 70.7 — 170.00 — 152.00 —
tecido muscular (cm2)
cardíaca e a síntese
de eritropoietina. Produz Massa gorda + 1.3
6.7 — + 1.0
6.9 — Área secção transv. + 17.00 + 15.00
tecido gordo (cm2) 35.00 — 31.10 —
também mais espécies
reactivas de oxigénio + 1.8 60.3 —
Massa magra 64.1 — + 1.6 Rácio capilar / fibra + +
1.99 — 0.31 1.79 — 0.36
e radicais de oxigénio. *Simulada em câmara hipobárica Densidade capilar + 73.00 538.00 — + 89.00
(um-2) 483.00 —
Área média + 580.00
+ 710.00 3360.00 —
4170.00 —
HABITUAÇÃO À ALTITUDE das fibras (um-2)
Densidade de volume + 0.81 + 0.53
Permanecendo semanas ou meses em altitude, mitocondrial (%) 4.88 — 4.23 —
os atletas sentem:
Diminuição do peso corporal; Em oito a dez semanas de treino em altitude (a cerca
Diminuição da massa muscular; de 5.500 metros), o músculo esquelético adapta-se
Degradação do tecido muscular esquelético; em parâmetros mensuráveis e que podem fazer
Redução do débito cardíaco; a diferença em competição atlética. No entanto,
Aumento da hemoglobina e hematócrito; poucos são os atletas que podem dedicar dois a três
Redução do volume plasmático. meses do seu treino a estas condições extremas.
** estudo em laboratório — comida ad libitum. Kayser, B. et al. (1992) J. Appl. Physiol. 73 (6): pp. 2425-2431.
ILUSTRAÇÕES: ANYFORMS DESIGN
Glisezinski et al. (1999) Eur. J. Physiol. 439: pp. 134-140, 1999
66
Conservação
duradoura
Conseguirão os animais selvagens e as comunidades humanas
que vivem em seu redor prosperar sem vedações?
No Norte do Quénia, a pandemia testou esta ideia.

T E X TO D E T R I STA N M c C O N N E L L
F OTO G R A F I A S D E DAV I D C H A N C E L LO R
PÁ G I N A S A N T E R I O R E S
O sol dissipa a névoa
matinal nos vales de Na Zona de Conserva-
Samburu. A beleza do ção de Vida Selvagem
Norte do Quénia atrai de Lewa, uma equipa
os turistas a esta região captura uma zebra
de pastores, gado e de Grevy (uma espécie
animais selvagens. ameaçada) para ajudar
Há forte competição a constituir uma nova
pelo espaço, pela água manada na Zona de
e pelas pastagens. Conservação Comunitá-
ria de Sera. A Sera
foi fundada pelas
comunidades samburu
locais, com o apoio do
Northern Rangelands
Trust (NRT), uma
organização financiada
em grande parte por
ONG e governos
ocidentais para
promover esforços de
conservação liderados
pelas comunidades.
Quando Long’uro (à
esquerda) caiu num
poço, uma hiena roeu-lhe
a tromba, reduzindo-a
a um coto. No Santuário
de Elefantes de Reteti,
gerido pela comunidade,
na Zona de Conservação
de Namunyak, os
funcionários locais
cuidam dele e de outras
crias órfãs. Long’uro
sobreviveu contra
todas as probabilidades,
mas não se sabe se
algum dia poderá
regressar à natureza.
À porta da clínica
de Biliqo, um vento
quente chicoteia
o solo, levantando
a poeira.
Arranca pedacinhos de lixo presos nos arbustos
espinhosos, faz rodopiar garrafas de plástico dei-
tadas no chão e levanta parte do hijab azul-índigo
de Madina Kalo, que se encontra junto da porta
de madeira da clínica.
Estamos a meio do ano, a estação seca principal
no Norte do Quénia. A terra apresenta-se resse-
quida pelo sol. A paleta de cores é clara e lumi-
nosa, como uma fotografia sobreexposta.
Vestida com a túnica branca de enfermeira e A enfermeira Madina
máscara cirúrgica, Madina semicerra os olhos e Kalo leva um rapaz
depois volta a entrar na clínica, apreendendo a recém-nascido à mãe,
Hadija Galma, numa
frescura do interior. Atende cerca de 30 pessoas clínica construída
por dia, a maioria das quais pastores que se quei- pelo NRT em Biliqo,
xam de maleitas rotineiras como infecções respi- com fundos europeus.
“Temos de começar
ratórias, malária e diarreia. Quando há casos gra- por cuidar da saúde
ves, Madina reencaminha os pacientes para a vila das pessoas antes de
de Isiolo, o que os força a uma viagem a pé de cin- podermos começar
a falar em conservação”,
co horas através de uma estrada de terra batida. diz Madina.
O lixo e a letargia de Biliqo não inspiram ideias
de turismo ou de natureza. Contudo, a vila é uma
de 39 comunidades de conservação criadas pelo
Northern Rangelands Trust (NRT), uma organi-
zação queniana de conservação. A troco da pro-
messa de reforço da protecção do seu ambiente e
dos animais selvagens, os habitantes das zonas de
conservação recebem serviços e benefícios essen-
ciais, frequentemente financiados pelo dinheiro
dos safaris turísticos.

72 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
É uma experiência de coexistência em grande menos 8% do PIB. Temeu-se que as conquistas de
escala, baseada na ideia de que os seres humanos conservação das últimas décadas se esfumassem.
e os animais selvagens podem prosperar juntos. Grande parte deste trabalho apoia-se no turismo,
Numa área com 44 mil quilómetros quadrados, que financia os vigilantes da natureza, a investi-
centenas de milhares de pessoas, milhões de ca- gação e os postos de trabalho em zonas onde há
beças de gado e populações importantes de ani- pouco emprego, constituindo uma alternativa à
mais selvagens convivem lado a lado. Cerca de caça de animais ou ao abate de árvores.
dois terços dos animais selvagens do Quénia vi- Muitos trabalhadores do sector da conservação
vem fora de parques e reservas nacionais e muitas consideram as zonas comunitárias como exem-
zonas de conservação tornaram-se uma parte es- plos para o futuro da conservação e do desen-
sencial do ecossistema nacional da conservação. volvimento sustentáveis, sob lideranças locais,
Quando a pandemia provocou o encerramento apesar de o NRT enfrentar críticas de alguns que-
das fronteiras e obrigou os aviões a permanecerem nianos, segundo os quais a organização é dema-
em terra, os turistas desapareceram do Norte do siado grande e poderosa. No momento em que o
Quénia, negando a África uma grande parte dos modelo de conservação comunitária ganha con-
rendimentos que o turismo de vida selvagem lhe tornos mais bem definidos no Norte do Quénia, a
fornece todos os anos: 23,8 mil milhões de euros pandemia representa o mais importante teste de
em 2018. No Quénia, o turismo representava pelo stress conhecido até à data.

C O N S E R VA Ç Ã O D U R A D O U R A 73
A conservação africana já se encontrava em e alguns fundos disponibilizados pelos governos
crise antes do coronavírus. Financiamento insu- locais, ajudaram o NRT a gerir melhor a pande-
ficiente, má gestão, caça furtiva, destruição de mia do que a maioria dos parques e reservas de
habitat e alterações climáticas são factores incluí- vida selvagem dependentes do turismo. No en-
dos numa longa lista de ameaças causadoras de tanto, os doadores também transformaram o NRT
colapsos da biodiversidade e de um decréscimo num alvo para aqueles que olham o dinheiro e a
acentuado das populações de espécies em risco, influência estrangeiros como formas de imperia-
como as tartarugas-de-pente, os pangolins, os gri- lismo. “É uma ONG internacional, embora actue
fos-africanos ou os elefantes. como ONG local”, resume Achiba Gargule, inves-
Para aqueles de nós que vivem a uma distância tigador de problemas comunitários, que cresceu
romântica e segura dos animais selvagens, eles numa comunidade pastoril do Norte do Quénia.
fazem parte de um património natural global: é Independentemente desses pormenores, o
bom saber que existem e é maravilhoso vê-los NRT está a construir um grande ecossistema in-
na vida real. Mas o que diremos das pessoas que terligado que depende menos dos altos e baixos
vivem a seu lado? E se um leopardo matar a sua do turismo, tem fontes de rendimento mais diver-
cabra ou um elefante espezinhar o seu filho? E se sificadas e acaba por ser mais resistente face aos
não conseguir pagar as suas despesas médicas ou choques globais.
escolares e souber que há mercado para vender

A
peles de leão e presas de elefante? E se a sua famí- a clínica de Madina era cons-
N T I GA M E N T E ,
lia tiver fome e houver uma girafa a uma caçada tituída por dois edifícios dilapidados e uma
de distância? O que valem, então, os animais sel- maca velha, mas agora tem uma nova
vagens vivos? E o que valem mortos? maternidade com dez camas, um edifício
A missão do NRT é aumentar o valor dos ani- com consultórios médicos e, dentro em
mais para as pessoas que partilham a paisagem breve, terá alojamento para o pessoal e um labora-
com eles e interligar os seus futuros. Com base em tório. A clínica é propriedade do Ministério da Saúde
ideais de propriedade comunitária da terra e de do Quénia, paga por governos europeus e foi cons-
autogovernação, cada zona de conservação é uma truída pelo NRT, numa tentativa pragmática de
entidade jurídica distinta, sendo gerida por um suscitar a adesão das pessoas à sua agenda de con-
conselho eleito de líderes comunitários. servação. É um equilíbrio de interesses do qual
Algumas zonas de conservação estão mais Madina é participante informada.
perto de satisfazer esses ideais do que outras. Os “A saúde é o mais importante para cada comu-
conselhos precisam de gerir os desejos frequente- nidade”, diz, enquanto regista os pacientes do dia.
mente concorrenciais dos diversos membros da “Não podemos falar com pessoas que não estão
comunidade, por vezes distantes entre si, incluin- bem. Temos de começar pela saúde das pessoas
do pastores nómadas que nem sempre estão pre- antes de começarmos a falar de conservação.”
sentes nas negociações sobre o planeamento do As comunidades pastoris são uma componen-
território. Por vezes, esse sentimento de exclusão te essencial das paisagens áridas do Norte do
coincide com divisionismos étnicos, exacerbando Quénia. Ferozmente independentes e armadas,
os conflitos. Zonas de conservação com conse- deslocam-se com o gado em busca de pasto. A ri-
lhos mais representativos e activos conseguem validade pelos escassos recursos é intensa e pode
assegurar maior participação e benefícios para tornar-se violenta. Uma manada crescente é um
a comunidade, enquanto outras se esforçam por símbolo de sucesso e um escudo protector con-
cumprir os princípios de governação básicos. tra a catástrofe. No entanto, à semelhança dos
O NRT não é proprietário de terras e funciona animais selvagens, o gado precisa de espaço para
como organização de cúpula, desempenhando deambular, erva para comer, água para beber, o
tarefas de administração, angariação de fundos, que significa que gado e conservação concorrem
formação de agentes de segurança e planeamen- frequentemente entre si. O desafio é portanto en-
to estratégico. Se a autogovernação tiver alicerces contrar uma forma de ambos prosperarem.
robustos, as instituições acabarão por se tornar “Aqui, no Norte, as vedações nunca protege-
mais fortes e mais responsabilizáveis. rão os animais”, diz Tom Lalampaa, um samburu
Os doadores estrangeiros, que garantem 90% conservacionista e director-geral do NRT. “Temos
do financiamento do NRT, suplementado pelas de de garantir que as pessoas se transformem nes-
receitas turísticas, outros rendimentos comerciais sa vedação.” (Continua na pg. 80)

74 CHRISTINA SHINTANI. FONTES: NORTHERN RANGELANDS TRUST; GABINETE NACIONAL DE ESTATÍSTICA DO QUÉNIA; P. WANG E OUTROS, HBASE DATASET, NASA SEDAC;
INICIATIVA DA ESA PARA AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS, PROJECTO LAND COVER 2017; OXFORD COVID-19 GOVERNMENT RESPONSE TRACKER; DAVID CHIAWO
171.422
Julho 2018

Conservação Chegada mensal de turistas


aos dois aeroportos principais

resiliente 111.984
119.670
Fevereiro 2020

O Northern Rangelands Trust (NRT) é Janeiro 2013 Restrições de viagem


uma organização de 39 zonas de conservação, COVID-19
17 Março - 1 Agos.
que pertencem e são geridas por comunidades
do Norte do Quénia. Representando quase
meio milhão de pessoas, sobretudo pastores,
47.406
as zonas de conservação ajudam a proteger Dezembro
espécies ameaçadas como elefantes e 2020
rinocerontes. O modelo de conservação Ponto mais baixo do turismo
Abril 2020 Julho 2020
comunitária pretende encontrar um equilíbrio 12 618
sustentável entre os modos de vida tradicionais
e os recursos naturais de que dependem. Sobrevivendo à catástrofe
O turismo caiu a pique durante a
pandemia. No entanto, as zonas

QU ÓPIA
de conservação do NRT ajudaram

IA
Áreas geridas pelo Northern
I
ÉN
Rangelands Trust N ET a manter operações essenciais em
funcionamento devido às suas
Década da associação à NRT múltiplas fontes de financia-
1990 2000 2010 50 km
mento, sobretudo doadores
estrangeiros.
Pradaria Alojamento turístico
Área Santuário de
agrícola vida selvagem

ÁFRICA
Corredor de
vida selvagem QUÉNIA
Uma rede quase contígua
G

ÁREA
de zonas de gestão comunitá- DO MAPA
R

ria permite que animais

SO
P.N.
A

migratórios como elefantes

MÁ A
QU
Sibiloi Jaldesa Shurr
La

atravessem locais antes ÉN


LIA
go

Reserva e atormentadas pela caça furtiva


D

Tu
I

r Deserto P.N. e pelo conflito. No entanto,


ka
E

na Marsabit isso também cria problemas,


Chalbi Songa como a destruição de culturas.
V A

Melako

Biliqo
L E

Elefantes
de Reteti Bulesa
Sera
mu Nakuprat-Gotu
Na

Pellow nya
D O

Res. Nac.
Res. Nac. k* Res. Nac. Rahole
Turkana Sul Bisandi Res. Nac.
Nannapa Garissa
Boni
Ltungai
P.N. Kora Res. Nac. Awer
Leparua P.N. Meru Arawale
Kaptuya
QUÉNIA
UGANDA

Masol Ngare Res. Nac.


Mwingi Ishaqbini
Ruko Il Ngwesi Ndare Hirola
Reserva Ishaqbini
Girafa de
Primeira área Apoio das comunidades Hirola Pate
P.N. Monte Rothschild
estabelecida, 1995 e P.N.
Mt. Quénia O rendimento gerado Hanshak
Elgon
R I F

pelo turismo, pelo gado, Ndera Nyongoro


Eldoret pelo artesanato e por outros
Res. Nac. P.N. Aberdare
Chepkitale pequenos negócios ajuda
Nakuru as comunidades a pagar Baixo delta
bens essenciais como propinas do Tana
T E

OCE

Naivasha
escolares, cuidados de saúde
e projectos hídricos. O resto
Kisumu
P.N. Hell’s Nairobi NBO
destina-se às operações
ANO

Gate de conservação. Parque Nacional Reserva


Florestal
P.N. Colinas Tsavo Oriental Arabuko
Narok
Chyulu Sokoke
ÍNDI CO

Kisii
Res. Nac. P.N.
Masai Mara P.N. Amboseli Tsavo Mombaça
Lago Ocidental
QUÉNIA MBA
Victória TANZÂNIA
*As zonas de conservação de Kalepo, Ngilai e Kilimanjaro Res. Nac.
Nalowuon são administradas colectivamente 5.895m Colinas Shimba
sob a designação Namunyak Conservancy.
76 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
"Antigamente,
combatíamos
uns contra
os outros:
os samburu,
os rendille e
os borana.
A zona de
conservação
começou a
unir-nos”, diz.
— Pauline Lolngojine,
antiga presidente da
Sera Conservancy

Seguindo uma cerimó-


nia de iniciação
samburu, que assinala
o início da idade adulta,
o ancião Sikitau Lenkees
veste o novo guerreiro
Lubulu Lekilemo com
as contas do seu clã.
Os novos guerreiros
passam 15 anos a
guardar vacas, ovelhas
e cabras. No Norte do
Quénia, a actividade
pastoril sofre conse-
quências das alterações
climáticas. Para apoiar
os modos de vida
tradicionais e criar
novas oportunidades,
o NRT promove
pastagens sustentáveis
e mercados de gado
e concede empréstimos
a pequenas empresas,
formação profissional
e emprego.

C O N S E R VA Ç Ã O D U R A D O U R A 77
Pastores e gado
acordam com o nascer
do Sol em Namunyak.
A maioria das zonas
de conservação do NRT
reservou terra exclusi-
vamente para os
animais selvagens
e o resto é gerido por
planos de pastoreio,
a fim de melhorar
os pastos. No entanto,
as directizes que ditam
quando e onde o gado
pode pastar podem ser
controversas, sobre-
tudo quando há pouco
pasto de qualidade.
Macacos-de-cara-preta fazem investidas simu-
ladas contra a porta e as janelas, enquanto conver-
samos. “Se as pessoas cuidarem dos animais sel-
vagens da mesma forma que cuidam do seu gado,
então teremos uma vitória.”
É também uma tarefa em evolução constante.
Os conselhos de conservação são incentivados a
reservar parte das suas terras exclusivamente aos
animais selvagens. O resto é gerido por planos
desenvolvidos por comissões de conservação das
pastagens e aprovados pelos conselhos comuni-
tários para o seu uso pelos animais domésticos
e pelos animais selvagens. As directrizes regula-
doras de quando, onde e quantos animais podem
pastar, contudo, podem causar controvérsia, so-
bretudo entre aqueles que se sentem excluídos da
tomada de decisões e consideram qualquer restri-
ção como ameaça potencial à sua existência.
Hassan Roba, especialista em zonas secas do Abrindo caminho entre
Fundo Christensen, que dá apoio aos povos na- as cabras, uma mulher
tivos e às suas paisagens, defende que estes pla- recolhe água num furo
aberto pelo NRT na Zona
nos de pastoreio comprometem a flexibilidade de de Conservação de
deslocação segundo as chuvas e, frequentemente, Biliqo Bulesa. Os poços e
reservam à vida selvagem terras que também são sistemas de irrigação são
serviços que os
as melhores pastagens para o gado. “São formas conselhos locais das
muito idealistas de pensar na maneira como a ter- zonas de conservação
ra é gerida”, afirma. “No entanto, mesmo na prá- financiam com as taxas
que os turistas pagam,
tica, tem sido dada prioridade aos animais selva- mas também podem
gens. Os animais de criação são apenas um extra.” cobrir custos operacio-
nais das zonas de

S
conservação. O NRT
EM SEGURANÇA para as pessoas e para os obtém donativos do
animais selvagens, nada funciona. “A paz é estrangeiro e de
tudo”, diz Pauline Lolngojine, mãe solteira governos locais.
de 11 filhos, líder comunitária, pacificadora
e antiga presidente do conselho de admi-
nistração da Sera, uma zona de conservação de 340 O investimento de longo prazo na construção
mil hectares do NRT. Conversamos sob os beirais da paz significa que, em tempos difíceis, como
ondulados de uma igreja pentecostal construída uma pandemia ou uma seca, há uma estrutu-
com madeira, em Archers Post, uma vila junto do ra que dilui as tensões e mantém a estabilidade.
limite sudoeste de Sera. Quando Pauline era A colaboração e o dinheiro ajudam, mas a segu-
pequena, o Norte do Quénia era mais selvagem, rança também requer a aplicação da lei, que as-
distante da autoridade central de Nairobi e armado sume a forma das patrulhas e unidades móveis
até aos dentes. O gado era constantemente roubado de vigilantes do NRT. As unidades móveis foram
e os assaltos na estrada comuns. criadas para proteger os elefantes e os rinoceron-
“Combatíamos uns contra os outros: os sam- tes, mas o duplo papel dos vigilantes da natureza
buru, os rendille e os borana. Porém, a zona de como reservistas de policiamento torna-os parte
conservação começou a unir essas comunidades”, integrante de uma arquitectura de segurança re-
diz. A Sera formou-se em 2001, promovendo a gional com falta de pessoal e de financiamento.
cooperação e criando um objectivo partilhado Com capacidade para combater a criminalidade
com uma vantagem partilhada: melhorar a gestão não relacionada com animais selvagens, como os
das terras e aumentar os rendimentos. “Vimos roubos de gado e os assaltos nas estradas, as uni-
que era bom conservar para podermos ganhar di- dades móveis ajudaram a preencher uma lacuna
nheiro através dos animais selvagens”, diz. da segurança.

80 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Armados com carabinas, deslocam-se em gru- Losas não frequentou a escola e diz nunca ter
pos de 12 pessoas por veículo, reabastecendo-se pensado muito nos animais selvagens. Tornou-se
em movimento e dormindo sob as estrelas. Ga- vigilante da natureza pelo dinheiro. “Não havia
nham, no mínimo, 290 euros por mês, mais do oportunidades de conseguir um trabalho qual-
dobro do salário normal de um vigilante. Cada quer”, diz. Como vigilante da natureza, “os meus
unidade é constituída por membros de três a qua- filhos têm comida suficiente”.
tro tribos diferentes e a sua natureza multiétnica A procura de emprego tornou-se clara numa
permite que as equipas se desloquem a qualquer sessão de recrutamento de vigilantes realizada na
lugar e falem com qualquer pessoa. Melako Conservancy. Para três postos de trabalho
Com dois metros de altura, Losas Lenamunyi disponíveis, apareceram 200 candidatos. Reuni-
é um homem magro, de cabeça rapada e sorriso ram-se na margem sul do rio, vestindo sarongs e
desdentado. O comandante cresceu a criar gado calçando sandálias, com facas de 30 centímetros
junto do bairro de lata da estrada de Sereolipi, de comprimento presas nos cintos e bastões de
onde pessoas de etnia samburu eram frequente- caminhada na mão. “São as pessoas com forma-
mente tratadas com animosidade e desconfiança ção que conseguem os empregos”, diz Andrew
pelos vizinhos borana, gabra e rendille. Actual- Dokhole, presidente da Melako. “É por isso que es-
mente, partilham todos um Land Cruiser. “Trago colhemos os vigilantes entre os habitantes locais”.
no carro todas as tribos”, diz. E acrescenta: “É a sua única oportunidade.”

C O N S E R VA Ç Ã O D U R A D O U R A 81
Um elefante capturado
numa armadilha
debate-se na lama, na
Zona de Conservação
de Nannapa. Pastores
alertaram o director da
zona de conservação
para o sofrimento
do animal e veterinários
e vigilantes da natureza
iniciaram o salvamento.
Utilizando um tractor,
cordas e as mãos,
libertaram o
animal exausto.
Com mais de 1.300 pessoas contratadas como É uma estratégia abertamente transaccional.
vigilantes da natureza, administradores e outros Aos 68 anos, Ian é a força motriz geradora de
cargos das zonas de conservação do NRT, a orga- confiança e também um alvo de críticas por ser
nização é um dos maiores empregadores do Norte. um proprietário de terras branco com ascendên-
A organização está envolvida em tantos assun- cia colonial.
tos que Matt Brown, da Nature Conservancy, e Deu-me boleia no seu Piper Super Cub mono-
membro do conselho de administração do NRT, motor amarelo para conversarmos.
diz: “Enquanto ONG detida pela comunidade, o “É um país grande”, diz Craig entre estalidos,
NRT está a fazer, essencialmente, o trabalho do através do equipamento de auscultadores. Eleva-
governo local.” Não é um papel que o NRT queira mo-nos sobre o vale do Rifte, sobrevoando uma
desempenhar de forma permanente, diz, e é uma paisagem dura composta por lagos formados por
caracterização daquilo que causa desconforto a actividade tectónica, escarpas aguçadas e aflora-
Tom Lalampaa. Todas as vozes críticas partilham mentos vulcânicos. Enquanto nuvens de tempes-
a mesma convicção: o NRT é um projecto neoco- tade semelhantes a bigornas se formam sobre o
lonial que mina a soberania queniana e usurpa as altíssimo lado oriental do vale e raios denteados
responsabilidades do governo. explodem no céu, Ian vai abanando a aeronave de
“O NRT deveria ser liderado pela comunidade dois lugares para a direita e para a esquerda.
e pertencer à comunidade”, diz Achiba Gargule.
“Mas o que estamos a ver é que está ligado a orga-
nizações de conservação muito grandes e muito
importantes em todo o mundo.” Um vigilante
Numa tentativa de contrariar essas críticas, o da natureza do Serviço
de Vida Selvagem
NRT tornou a sua direcção executiva e o seu con- do Quénia carrega
selho de administração responsabilizáveis peran- a pele seca de um leão
te um conselho de anciãos, composto pelo presi- morto devido a causas
naturais, até um local
dente de cada zona de conservação. Há questões de armazenamento.
sobre o poder efectivo desse conselho, mas o NRT O serviço empresta-o
insiste que a sua existência e proeminência são para cerimónias
culturais, como
importantes. iniciações à idade
Segundo Tom Lalampaa, o NRT não procura adulta, permitindo
substituir o governo, mas acrescenta que “o Norte a continuidade das
tradições sem necessi-
do Quénia tem sofrido algumas carências e as zo- dade de matar mais
nas de conservação do NRT ajudaram a supri-las”. leões. Apesar disso,
à medida que o número

D
de animais selvagens
os governos
U R A N T E M A I S D E UM S É C U LO, recupera nas zonas
sediados em Nairobi trataram o Norte com de conservação e
desprezo. Os colonos britânicos pouco as populações humanas
crescem, o conflito
interesse tinham pela região, conside- entre ambas tem
rando que não valia a pena apropriarem-se aumentado.
da terra árida para ali instalarem explorações agrí-
colas e ganadeiras. Em 1963, a independência
trouxe uma nova elite dirigente, dominada por
quenianos do Sul, que também olhavam com
sobranceria os habitantes do Norte, por entende-
rem que o seu modo de vida de pastores itinerantes
os tornava difíceis de governar.
Esta negligência deixou um vazio que o NRT
ajudou a preencher, prestando serviços essen-
ciais a troco da conservação. “O essencial nisto
é influenciar as pessoas”, diz Ian Craig, um dos
fundadores do NRT e seu director de conserva-
ção. “Como posso influenciá-lo e levá-lo a pensar
de forma compatível com a nossa?”

84 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O NRT nasceu da Lewa Wildlife Conservancy, furtiva ao elefante para obtenção do seu marfim.
uma reserva de vida selvagem privada com 25 mil Abatiam-se todos os anos dezenas de milhares
hectares, outrora um rancho ganadeiro fundado de animais. Com os rinocerontes abrigados no
pelo avô de Ian em 1922. Quando este o herdou, seu quintal e os elefantes chacinados nas redon-
cerca de 50 anos mais tarde, continuou a ser um dezas, Ian percebeu com clareza que a Lewa não
magnífico pedaço de pradaria e floresta, com coli- sobreviveria em isolamento. As populações hu-
nas suaves e vales profundos, mas teve dificulda- manas cresciam, o número de cabeças de gado
des para subsistir como rancho. “Vivíamos cons- aumentava, as espécies de animais selvagens
tantemente em situação de seca. Não conseguía- diminuíam e as paisagens degradavam-se. Se o
mos ganhar dinheiro. Era uma catástrofe”, diz. problema eram as pessoas, então a solução teria
Em meados da década de 1980, os conserva- de passar por elas.
cionistas convenceram-no a erguer vedações Em 1995, ano em que a família transferiu o res-
em volta de dois mil hectares de terra, criando to do seu rancho para Lewa, Ian convenceu os
um santuário vedado para rinocerontes-negros, maasai laikipiak, donos de um “rancho de grupo”
gravemente ameaçados pelos caçadores furtivos (uma estrutura queniana de propriedade da terra
que os matavam para lhes removerem os cor- na qual os moradores partilham a posse das terras
nos. Vivia-se então em África o apogeu da caça de pasto), a mudarem de perspectiva.
Gnus deslocam-se pelas
savanas queimadas da
Reserva de Caça de
Masai Mara, que
depende do turismo
para financiar as suas
operações de conserva-
ção. Quando a pandemia
suspendeu as viagens,
muitos funcionários
locais perderam o
emprego e alguns foram
obrigados a actividades
ilegais como a caça
furtiva. Menos depen-
dentes do turismo,
as zonas de conservação
comunitárias do
NRT revelaram-se
mais resilientes.
E
A comunidade local concordou em reservar M NENHUM OUTRO SÍTIO DO NORTE
parte das suas terras à protecção dos animais se encontra uma concretização mais lucra-
selvagens, pondo em prática planos de pasto- tiva do potencial turístico do que em
reio nas terras restantes, atraída pela promessa Sarara Camp, um hotel ecológico na zona
das receitas provenientes do turismo de safaris. sul de Namunyak. Quando o acampa-
Durante algum tempo, o modelo funcionou. mento foi construído, em 1997, “não havia paz,
A norte de Lewa, os 8.900 hectares de escar- nem para os humanos nem para os animais sel-
pas rochosas e vales florestados de Il Ngwesi vagens”, lembra o guia de safaris e motorista
estendem-se desde o planalto de Laikipia até às Daniel Lenaipa, que cresceu ali. A segurança via-
planícies ao longo do rio Ndare. Um novo esta- bilizou o regresso dos elefantes, leopardos, mabe-
belecimento hoteleiro ecológico abriu no ano cos e outros animais, bem como a vinda de
seguinte. turistas. Em 2019, os visitantes de Sarara pagaram
À medida que a zona-tampão em redor de cerca de 288 mil euros em taxas, custeando assim
Lewa crescia, aumentavam também as am- o orçamento de toda a zona sul de Namunyak, o
bições de Ian Craig. Pouco depois, foi a vez de equivalente a quase um quarto do rendimento
Namunyak, abrangendo os picos graníticos e as turístico de todas as zonas de conservação do NRT
cristas afiadas da cordilheira de Mathews, uma nesse ano.
espinha dorsal com 80 quilómetros de compri- Surgiu então o coronavírus. “Nos últimos 10
mento de ilhas florestadas que emergem entre ou 15 anos, temos obtido receitas destinadas à
as nuvens, centenas de metros acima da savana. comunidade e, pela primeira vez, talvez não
Seguiram-se mais zonas de conservação. houvesse nada para lhes dar dessas receitas por
A sua influência cresceu, em âmbito e escala, provirem apenas dos turistas”, diz Moses Lenai-
até que, em 2004, com financiamento da USAID, pa, antigo membro do conselho de Namunyak e
Ian Craig contribuiu para a criação do NRT. Pre- actual director do orfanato para elefantes Rete-
tendia ligar entre si e conservar paisagens enor- ti, no centro de Namunyak.
mes, interligadas por corredores de migração de Encontro-me com o director de Namunyak,
animais selvagens, onde as comunidades hu- Tom Letiwa, em Reteti, numa manhã escaldan-
manas e o seu gado pudessem coexistir com a te, enquanto olho os bebés elefantes num recin-
vida selvagem. to vedado perto de nós alimentados à mão com
“A narrativa da conservação não é um parque biberões de leite de cabra fortificado, adquirido
nacional dos animais”, afirma. “Este modelo a mulheres autóctones. “Este ano, as receitas
tem que ver com conectividade”, acrescenta, serão muito baixas”, disse. A rápida reacção do
referindo-se ao mosaico de parques nacionais Quénia para abrandar a propagação da doença,
públicos, reservas privadas e terras comunitá- encerrando escolas, tornando obrigatório o uso
rias no Norte do Quénia. “Estas bolsas de terra de máscaras faciais, decretando o recolhimento
são grandes, mas não são suficientemente gran- obrigatório a nível nacional e impondo restri-
des… Para os animais selvagens conseguirem ções ao tráfego transfronteiriço, sugeriu a todos
sobreviver, respirar e crescer, precisam daque- os quenianos que as repercussões da pandemia
las comunidades.” seriam graves. Os habitantes de Namunyak vi-
Por sua vez, as comunidades beneficiam com ram que não havia turistas e perceberam que
o turismo. Em cada zona de conservação, os não haveria dinheiro, diz Tom.
turistas pagam uma taxa de conservação que é O NRT fez cortes salariais nas sedes e pressio-
dividida numa proporção de 60/40 entre os pro- nou os doadores no sentido de continuarem a
gramas comunitários da zona de conservação e pagar aos vigilantes da natureza e de manterem
as suas operações. intactos os orçamentos operacionais das zonas
Os programas financiam propinas escolares, de conservação. Também houve uma injecção de
projectos hídricos e despesas médicas e a per- financiamento público. As autoridades distritais
centagem destinada às operações paga os vigi- criaram um fundo anual de 904 mil euros para
lantes da natureza, os veículos e o equipamen- ajudar as nove zonas de conservação do distrito
to. As taxas variam, mas os turistas estrangeiros de Samburu e o governo nacional contribuiu com
pagam habitualmente até 80 euros por dia, en- 1,8 milhões de euros para pagar os ordenados dos
quanto os habitantes quenianos podem pagar vigilantes do NRT, no âmbito do seu plano de estí-
um quinto desse valor. mulo face à COVID-19.

88 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Ao contrário do que sucedeu em zonas prote-
gidas mais dependentes do turismo, como na Re-
As populações
serva de Caça de Masai Mara, na região ocidental ameaçadas do
do Quénia, e nos parques nacionais, no Norte do
Quénia não se registou, desde o princípio da pan-
elefante, do órix,
demia, qualquer aumento significativo da caça ile- da girafa reticulada
gal, nem das intrusões humanas nas terras, para
as utilizarem como pasto, para plantarem culturas
e da zebra de Grevy
agrícolas, nem para efeitos de construção. encontram-se
Isso não ficou a dever-se apenas ao facto de o
financiamento de emergência ter ajudado os vigi-
estáveis, ou em
lantes da natureza a manterem as suas patrulhas. recuperação,
O sucesso da conservação comunitária proporcio-
nou outras vantagens além dos euros turísticos:
nas zonas de
ajudou a impedir o desespero económico que conservação do NRT.
obrigou algumas pessoas a recorrerem a essas ac-
tividades. Apesar disso, as zonas de conservação atrair um hotel ecológico compensa o isolamento
do NRT viram crescer a criminalidade não-am- de terra e pasto para os animais selvagens? Valerá
biental, incluindo roubos de gado e assaltos nas a pena seguir um plano restritivo do pastoreio em
estradas. Poderão ter gerido a pandemia melhor troca de uma escola e uma clínica? Que parte dos
do que outros, mas sentiram seguramente as con- recursos naturais estará uma comunidade dispos-
sequências da perda de emprego e do encerra- ta a prescindir e o que ganha em troca?
mento dos mercados de gado. Num mundo de incerteza, o desenvolvimento
Entretanto, algumas populações ameaçadas, de fontes de financiamento novas e fiáveis é es-
como as do elefante, do órix, da girafa-reticulada sencial. “A COVID-19 gera risco em todo o lado,
e da zebra de Grevy, mantêm-se estáveis ou em mas também é uma oportunidade de reiniciar
crescimento nas zonas de conservação do NRT. e melhorar a agenda da conservação”, diz Giles
A caça furtiva ao elefante diminuiu e os animais Davies, fundador da Conservation Capital. Este
deambulam cada vez mais longe e com mais liber- grupo de investimento financia projectos que
dade. No entanto, esta liberdade também provo- ajudam a proteger paisagens em todo o mundo,
cou um aumento do abate retaliatório de elefan- incluindo na terra natal do fundador, o Quénia,
tes, que agora têm mais probabilidades de pisar onde trabalhou com o NRT. “Precisamos que a
culturas ou até de matar pessoas. conservação mude, deixando de pensar em ter-
Enquanto isso, o problema da pastagem ex- mos de sobrevivência e passando a pensar em
cessiva não desapareceu por completo, mas a termos de prosperidade.”
existência de planos de pastoreio apoiados pelo A gestão do NRT e das 39 zonas de conserva-
conselho de administração de uma zona de con- ção custou 5,7 milhões de euros em 2020, “uma
servação deu alguma autoridade aos líderes lo- ninharia” na opinião de Ian Craig, dados os ob-
cais para aplicarem uma política que pretende jectivos do NRT. “São trocos, em termos reais,
promover o bem maior em detrimento dos inte- tendo em conta o impacte no número de vidas
resses próprios de curto prazo. que temos sob a nossa alçada.”
Críticos como Achiba Gargule argumentam Essas vidas incluem as mães, filhos e homens
que a liderança do NRT pressiona os conselhos idosos que formam fila ao sol, à porta da nova
comunitários a concretizarem os seus objec- clínica de Madina Kalo, em Biliqo. Incluem os
tivos de conservação, quer estes sejam ou não pastores para os quais o risco de roubo foi redu-
benéficos para todos. “O NRT é tão poderoso zido graças a Losas Lenamunyi e aos vigilantes
que consegue influenciar tudo com as zonas de da natureza seus colegas. Incluem os jovens de
conservação”, diz. “Mas até que ponto a voz [da Melako que sonham trabalhar como vigilantes
comunidade] é ouvida?” da natureza. E incluem Daniel Lenaipa, de Na-
Ian Craig reconhece que a vantagem do NRT munyak, que sabe que, à medida que a pande-
é exercer influência sobre as comunidades para mia abrandar, os turistas regressarão porque a
proteger os animais selvagens. É aí que as contra- segurança é fiável, os animais selvagens prospe-
partidas entram em cena: será que a vantagem de ram e a paisagem está protegida. j

C O N S E R VA Ç Ã O D U R A D O U R A 89
Robert Turner reza junto do local
da vala comum recém-encontrada
no cemitério de Oaklawn, em
Tulsa. Foi a primeira identificada
resultante do ataque desferido em
1921 contra Greenwood, um bairro
habitado por cidadãos negros.
Turner é pastor da Igreja Meto-
dista Episcopal Africana Vernon,
um dos poucos edifícios que
sobreviveu à violência da época.

90

GERAÇÕES PERDIDAS
Há um século, uma multidão branca massacrou cerca T E X T O D E DENEEN L. BROW N
de trezentos cidadãos negros no próspero bairro negro
de Tulsa, no Oklahoma. Agora, a cidade consegue
finalmente reconciliar-se com essa devastação. F O T O G R A F I A S D E BETH A NY MOLLE NKOF
92
A J U STE D E CON TA S COM O PA S SA D O

Depois de
o cidadão
negro Dick
Rowland,
de 19 anos,
ser acusado
de agressão,
uma multidão
de brancos
atacou
Greenwood,
saqueando,
incendiando
e matando.
Um fotógrafo
desconhecido
registou
a destruição
e escreveu
uma legenda
a descrever
a cena.

SOCIEDADE
HISTÓRICA
& MUSEU
DE TULSA
I.

No dia 1 de Junho de 1921, uma multi-


dão avançou sobre Greenwood, um
bairro habitado por população negra
em Tulsa, no estado de Oklahoma.
Mary E. Jones Parrish agarrou na sua
filha pequena e as duas fugiram para
salvar a vida. Esquivando-se aos tiros,
desceram a correr a Avenida de
Greenwood. O céu zumbia com o ruído
de aviões civis a largarem bombas
improvisadas de aguarrás. Milhares de
habitantes negros fugiam à medida que
a multidão avançava, saqueando,
incendiando casas, igrejas e outros edi-
fícios, e disparando a sangue frio. “Sai
já da rua com essa criança ou vão ser as
duas mortas!”, berrou alguém. Porém,
Mary Parrish não encontrava lugar para Residentes negros
(alguns dos quais
se esconder. Achou que seria um “suicí- combatentes veteranos
da Grande Guerra)
dio” permanecer no seu prédio “porque tentaram impedir que os
amotinados brancos
este seria destruído e a morte na rua era atravessassem as linhas
de caminho-de-ferro

preferível, pois esperávamos ser abati-


que separavam
Greenwood do resto
de Tulsa, mas, em
das a qualquer momento”, recordou no número muito inferior,
não foram capazes.
seu livro “Events of the Tulsa Disaster”, Muitos cidadãos
negros de Tulsa que
publicado em 1922, no qual se incluem sobreviveram à violência
foram agrupados e

depoimentos de testemunhas sobre confinados em campos


de internamento.

aquilo que viria a ser conhecido como o


DEPARTAMENTO DE COLECÇÕES
ESPECIAIS, BIBLIOTECA MCFARLIN,
UNIVERSIDADE DE TULSA

Massacre Racial de Tulsa de 1921.

94 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
“Alguns levavam bebés ao colo ou conduziam que aconteceu em Greenwood foi “um massacre,
pela mão crianças a chorar e a gritar; outros, velhos um pogrom, ou, para utilizar um termo mais mo-
e fracos, fugiam em busca de segurança”, escreveu derno, uma limpeza étnica”, assim ficou escrito
a sobrevivente. Mary correu na direcção de Stand- no relatório da Comissão para os Motins Raciais
pipe Hill, o ponto mais alto de Greenwood, mas não de Tulsa, de 2001, a primeira investigação feita
se sentiu segura. Viu o êxodo de habitantes negros pelo estado sobre os ataques sangrentos. Demo-
de Tulsa e colunas de fumo erguendo-se daquilo rou 80 anos, uma distância temporal que reflecte
que fora outrora um próspero bairro comercial. a forma como a comunidade branca de Tulsa, no
O condutor de um camião chamou-a. Ela e a filha essencial, se eximiu de culpas pelo massacre e o
saltaram para o interior. encobriu durante várias gerações.
Ao fim de dois dias de tumultos, cerca de tre- “Para outras pessoas, tratou-se de uma guerra
zentos cidadãos negros tinham sido assassinados racial”, prosseguiu a comissão. “No entanto, seja
e o bairro de Greenwood fora destruído. qual for a palavra usada, é certo que, quando
O ataque foi um dos piores actos de terrorismo tudo acabou, o bairro afro-americano de Tulsa
da história dos EUA e fez parte de uma vaga de fora transformado num campo de terra queima-
violência racial cometida pela população branca da, com lotes vazios, fachadas de lojas em ruí-
contra as comunidades negras, durante a Gran- nas, igrejas incendiadas e árvores enegrecidas e
de Guerra. Segundo alguns historiadores, aquilo desfolhadas.” (Continua na pg. 101)

A J U S T E D E C O N TA S C O M O PA S S A D O 95
96 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Empresários e profissio- filho, William). Loula aprendeu a dactilografar
nais negros prosperavam também era proprietária com a mãe, Mary E.
em Tulsa, antes do de uma confeitaria Jones Parrish. Mais tarde,
massacre. Em 1920, popular, enquanto o haveria de recolher
médicos, dentistas e sucesso de John como depoimentos cruciais
farmacêuticos assistiram motorista de empresá- sobre o ataque. J.B.
a um congresso médico rios do petróleo e Stradford (à direita, com
em frente do Williams mecânico numa fábrica a mulher, Augusta)
Dreamland Theatre (no de gelados lhe permitiu construiu um hotel. As
topo). A sala de cinema abrir a sua própria oficina famílias Williams, Parrish
pertencia a Loula de reparação de e Stradford sobrevive-
Williams (à esquerda, automóveis. Florence ram à agressão de 1921.
com o marido, John, e o Mary Parrish (ao centro) As suas empresas não.

EM SENTIDO HORÁRIO, A PARTIR DO TOPO: SOCIEDADE HISTÓRICA DE OKLAHOMA/BIBLIOTECA DO CONGRESSO; COLECÇÃO


PRIVADA DE LAUREL STRADFORD; SOCIEDADE HISTÓRICA DE OKLAHOMA; SOCIEDADE HISTÓRICA & MUSEU DE TULSA
DESTRUIÇÃO DURADOURA
Quando a multidão branca incendiou 1.115 casas, numerosas empresas e outros bens, em 1921, “as
poupanças de uma vida inteira foram reduzidas a cinzas”, escreveu um grupo de destacados cida-
dãos negros de Tulsa. As companhias de seguros recusaram-se a pagar, invocando cláusulas sobre
motins incluídas nas suas apólices. Os proprietários negros interpuseram 193 acções judiciais para
obterem indemnizações. Com a anulação dos processos, os prejuízos tornaram-se definitivos.

PREJUÍZOS INDIVIDUAIS
Compilados com base nas acções judiciais
contra as companhias de seguros e a cidade,
estes montantes reflectem uma amostra dos
prejuízos dos moradores, como se o valor Barney Cleaver Reabriu o seu P. J. Eldridge
tivesse aumentado a uma taxa de juro agre- restaurante Dono de um
Delegado de polícia e proprietário de imóveis. Foi o
gada de 6%, valor de referência seguido para no bairro restaurante
primeiro agente de polícia negro de Tulsa. Encontran-
determinar a rendibilidade do investimento.
do-se de serviço nessa noite, tinha a casa a arder
quando regressou. Mais tarde, prestou depoimento
comercial.
2.069.743 $
Stalie Webb
Delegado de polícia contra o chefe de polícia, acusando-o de negligência.

1.174.664 $
Caroline Lollis
Proprietária de imóveis 20.785.306 $ Sam Mackey
Carpinteiro. Depois
3.325.839 $ de incendiadas a casa
onde vivia e mais duas
arrendadas, reconstruiu-as
em tijolo. A casa
A. F. Bryant Henry Wilson
Andrew ainda existe.
Médico. Perdeu Hoteleiro, proprietá-
5.428.833 $
James Henri e C. Jackson
uma farmácia. rio de bens imóveis
Carlie Marie
Reconstruiu-a. 1.017.906 $
Goodwin
3.294.623 $ 3.991.889 $
Jackson, cirurgião de
678.604 $ renome, foi abatido
a tiro e o seu prédio
de escritórios
Muitas das pessoas
Os bisavós da destruído. A viúva
que perderam as
deputada Regina interpôs acção
suas casas refugia-
Goodwin judicial contra a
ram-se em tendas
perderam 14 cidade.
da Cruz Vermelha
propriedades, e em barracas.
incluindo esta.
Escola primária
Dunbar
Igreja Episcopal
Tenda Metodista
Africana
Igreja Adventista do
Sétimo Dia Bethel

C OMU N I DA D E P RÓ S P E R A
A convergência entre o crescimento da indús-
tria petrolífera e a segregação fomentada Unidades de
pelas Leis de Jim Crown fomentou o desenvol- Mercearias/ Restaurantes Outros alojamento 11
vimento do bairro. As empresas de cidadãos Talhos 30 12
negros satisfaziam quase todas as necessida- 41
Salões
des do bairro. O dinheiro permanecia ali e a Hotéis 5
de jogos 9
“Wall Street Negra” prosperava.

MANUEL CANALES; SCOTT ELDER. FONTES: LARRY O’DELL, SOCIEDADE HISTÓRICA DE OKLAHOMA; WILLIAM A. DARITY, UNIVERSIDADE DE DUKE;
“A REPORT BY THE OKLAHOMA COMMISSION TO STUDY THE TULSA RACE RIOT OF 1921”, 2001. FOTOGRAFIA: SOCIEDADE HISTÓRICA E MUSEU DE TULSA
610.743.750 $
C Á L C U L O D A R I Q U E Z A P E R D I D A . Em valor actualizado em dólares, OKLAHOMA
Tulsa
os prejuízos materiais da destruição totalizam 26.752.705
dólares. No entanto, o custo de longo prazo imposto às vítimas
inclui a perda de capacidade para construir riqueza e
transmiti-la aos descendentes. Seguindo esse critério,
Bairro
perderam-se 610.743.750* dólares de riqueza acumulada. histórico de
Greenwood
Área queimada
em 1921
Associação de
moradores de
Greenwood em 2021
Mann perdeu
James Johnson
J. D. Mann oito propriedades
Pastor religioso, proprietário Panorâmica
Merceeiro, dono de arrendamento 0,5km
de bens imóveis. Perdeu em baixo
de vários imóveis. e a sua mercearia,
quatro casas, incluindo
244
2.985.858 $ que conseguiu
reabrir.
aquela em que vivia.
Mural “Wall

9.466.528 $ Hope Watson


Dono de uma lavandaria
de limpeza a seco.
BAIXA DE Street Negra”
TULSA 444
Cemitério
Oaklawn
Reconstruiu a sua casa.
Will Roberson
Canalizador, 3.921.314 $
proprietário de
A. L. Ferguson
imóveis. Perdeu 12 A. W. Brown
Farmacêutico. A sua
casas no incêndio. Pastor religioso.
drogaria no Hotel Permaneceu
6.200.746 $ Stradford ardeu.
Reabriu-a mais tarde.
Mudou-se para outra
casa, igualmente em
W. A. Baker
Merceeiro
em Tulsa,
mas não
Greenwood.
6.446.740 $ 2.797.206 $ 1.866.161 $
reconstruiu
a sua loja.

Igreja Metodista
Episcopal Africana
PANO RÂMIC A
Vernon
Perspectiva parcial
Encontrando-se em
DISTRITO de Greenwood, a
construção quando a FINANCEIRO partir do Liceu
multidão atacou, a igreja G R E E N WO O D Booker T.
foi reconstruída e ainda
Washington.
existe.

Capela de Brown
Igreja C.M.E.

NÚMERODE BAIXAS
Pilhados Relatório inicial
A Cruz Vermelha dos EUA
contabilizou os prejuízos Estabelecimentos queimados 141 314 36
Mortes projectadas
causados a pessoas e bens. A maior parte por historiadores:
Quanto ao número de Residências dos feridos até 300
mortes, o relatório queimadas apresentava
deste organismo refere 1.115 ferimentos de bala Ferimentos 714
“NINGUÉM SABE.” e queimaduras.

* O TOTAL DE PREJUÍZOS EM DÓLARES, AO VALOR DE 1921, ELEVAVA-SE A $1,8 MILHÕES. CONVERTIDO EM DÓLARES DE 2021, ESSE MONTANTE EQUIVALERIA A 26.752.705 USD.
CASO TIVESSE SIDO INVESTIDO DURANTE 100 ANOS, A UMA TAXA DE JURO AGREGADA DE 6% (VALOR DE REFERÊNCIA PARA DETERMINAR A RENDIBILIDADE DO
INVESTIMENTO), O TOTAL DE PREJUÍZOS TERIA UM VALOR DE 610.743.750 USD.
100
A J U STE D E CON TA S COM O PA S SA D O

Laços
profundos
unem o
jornalista
J. Kavin Ross
a Tulsa.
O seu bisavô
perdeu um
bar durante
os motins e
o pai propôs
a legislação
que abriu a
primeira
investigação
oficial sobre
o massacre
no Oklahoma.
Há muito que
Ross apelava
para que a
cidade fizesse
buscas para
encontrar
sepulturas
em massa.
Cerca de dez mil pessoas (a quase totalidade da
população negra e perto de um décimo do número
total de habitantes de Tulsa) ficaram sem abrigo. Al-
guns dos mais destacados cidadãos de Greenwood
abandonaram a cidade depois de serem falsamen-
te acusados de instigação dos motins.
“Além dos bens materiais, perdemos pessoas.
Perdemos gerações, não apenas riqueza geracio-
nal. Perdemos corpos”, afirma a deputada esta-
dual Regina Goodwin, cujo avô e bisavós sobre-
viveram ao massacre. “Alguns sonhos ficaram
por realizar e, para maior tristeza, alguns sonhos
nunca foram sonhados”, acrescenta. “Lembrem-
-se do poema clássico de Langston Hughes: ‘O que
acontece a um sonho adiado?’”
Hoje em dia, com várias gerações de descen-
dentes das famílias negras de Tulsa do princípio
do século XX ainda dispersas, o bairro das lojas
de Greenwood encontra-se reduzido a um único
prédio de apartamentos quase exclusivamente
habitado pela população branca. No entanto, a ci-
dade está finalmente a tentar reconciliar-se com
o Massacre Racial de Tulsa, uma desgraça que há
muito se esforça por esquecer.

II. Os jornais fizeram memórias do massacre


do massacre, Greenwood era uma prós-
N A A LT U R A reportagens sobre a esbateram-se no silêncio
pera comunidade negra, num país onde a segrega- violência. O “Black colectivo: as forças de
Dispatch”, um semanário Tulsa não queriam a
ção racial era um tema da vida quotidiana. da cidade de Oklahoma, reputação da cidade
Em 1905, a descoberta de petróleo catapultou comparou a devastação manchada; os residentes
Tulsa para um crescimento económico explosi- ocorrida com a Grande negros não queriam que
Guerra. Contudo, as se repetisse.
vo. Multidões acorriam à região em busca de em-
prego. Cidadãos negros abandonavam as suas
terras no Mississípi, no Missouri e no Texas para Tulsa Race Riot of 1921”. “Algumas das onze hos-
se instalarem em Greenwood. Alguns chama- pedarias e quatro hotéis da Tulsa negra estavam
vam-lhe a terra prometida, uma esplendorosa aqui localizados.” Médicos, advogados, agentes
meca cheia de oportunidades e a possibilidade de seguros, tipógrafos, banqueiros e outros em-
de construir uma comunidade negra capaz de presários negros abriram os seus negócios em
florescer pelos seus próprios meios. Greenwood. Mary Parrish descreveu algumas
Em 1908, O.W. Gurley construiu um dos primei- residências como “casas de beleza e esplendor”,
ros edifícios de Greenwood, uma hospedaria que embora a maioria das pessoas vivesse de forma
alugava quartos à beira de um “trilho lamacento”, bastante modesta.
segundo a descrição feita no relatório da comis- Em 1921, o bairro de Greenwood, racialmen-
são dos motins, que mais tarde se transformaria te segregado da comunidade branca de Tulsa
na Avenida Greenwood. Mais tarde, “adquiriu 12 pelas Leis de Jim Crow, era um mundo auto-
a 16 hectares, urbanizou-os em lotes e vendeu-os -suficiente. Tinha escolas reconhecidas a nível
‘exclusivamente a negros’.” nacional, incluindo a escola primária Dunbar
Greenwood era impressionante. Nos edifícios Elementary School e a secundária Booker T.
de tijolo que ladeavam por completo a rua das lo- Washington High School, dois jornais negros, o
jas, havia “dois teatros, mercearias, confeitarias, “Tulsa Star” e o “Oklahoma Sun”, um hospital
restaurantes e salões de bilhar”, escreve Scott cujos proprietários eram negros e mais de uma
Ellsworth em “Death in a Promised Land: The dezena de igrejas negras.

SOCIEDADE HISTÓRICA DE OKLAHOMA A J U S T E D E C O N TA S C O M O PA S S A D O 101


“Depois de longos anos de esforços e sacrifícios, militante racista branco”, como lhes chamou o
as pessoas começavam a olhar para Tulsa como a historiador Scott Ellsworth.
metrópole negra do Sudoeste”, escreveu Mary “Nestes anos, tenho reparado num crescente
Parrish. “Foi então que a devastadora catástrofe se ódio racial por parte das camadas mais baixas
abateu sobre nós, reduzindo a átomos as ideias, os da população branca, ressentida com a prosperi-
ideais e, não menos importante, a mera evidência dade e a independência dos negros”, disse E.A.
material da nossa civilização.” Loupe, sobrevivente do massacre de Tulsa, a
O massacre surgiu pouco antes do Verão Ver- Mary Parrish. Estas forças “caíram sobre os bons
melho, uma época de terror ocorrida em 1919, cidadãos com todo o ódio e vingança fermentado
quando multidões de brancos mataram e lincha- durante muitos anos”.
ram centenas de cidadãos negros em mais de 25
lugares de todo o país.
Bairros prósperos como Greenwood ameaça- III.
vam desestabilizar a hierarquia racial que do- O M A S SAC R E D E T U L SAcomeçou da mesma
minara a vida norte-americana durante grande maneira que muitos dos tumultos do Verão Verme-
parte dos primeiros 145 anos do país, da mesma lho: com a acusação de que um homem negro agre-
forma que os soldados negros regressados da Pri- dira uma mulher branca. No dia 30 de Maio de 1921,
meira Guerra Mundial exigiam os mesmos direi- Dick Rowland, de 19 anos, entrou no elevador do
tos humanos pelos quais tinham combatido no Edifício Drexel, na baixa de Tulsa. Enquanto subia
estrangeiro. O Ku Klux Klan reagiu com uma vaga do primeiro para o terceiro andar, poderá ter dado
de violência racial. Os cidadãos negros fugiram um encontrão na operadora do elevador, uma jovem
do Sul, procurando refúgio nas cidades do Oeste de 17 anos chamada Sarah Page, ou pisado o seu pé.
e do Norte, onde também prevaleciam “novas e Ela guinchou, alguém veio ver o que tinha sucedido
especialmente insidiosas formas de pensamento e Dick fugiu a correr.

102 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Cinco dias depois de Boatos sobre o incidente alastraram pela co-
o seu escritório ser munidade branca de Tulsa, tornando-se “mais
incendiado, o advogado
B.C. Franklin (à direita, exagerados à medida que corriam de boca em
nesta fotografia boca”, segundo a Sociedade Histórica e Museu
histórica), o seu de Tulsa.
sócio I.H. Spear e a sua
secretária Effie Thomp- No dia seguinte, um cabeçalho do “Tulsa Tri-
son abriram actividade bune” urrava: “Caça ao Negro que Atacou uma
numa tenda, contra- Rapariga num Elevador.” Sarah afirmou que Dick
riando os esforços feitos
no sentido de impedir “a atacara, arranhando-lhe as mãos e a cara e ras-
que os proprietários gando-lhe a roupa”, noticiava o jornal.
negros reconstruíssem Dick Rowland foi detido e levado para o Tribu-
os seus imóveis. Quase
100 anos mais tarde, nal da Comarca de Tulsa. Pouco depois, uma mul-
os sobreviventes e tidão cercou o tribunal para o linchar. Um grupo
descendentes – incluin- de homens negros armados, muitos dos quais
-do Ellouise Cochrane-
-Price (em cima), cujo veteranos de guerra, correu de Greenwood até ao
pai era primo de Dick tribunal para proteger Rowland. Tencionavam
Rowland, o adolescente impedir um linchamento.
acusado – interpuseram
uma acção judicial O xerife rejeitou a ajuda, mas conseguiu evitar
contra a cidade, que Dick Rowland fosse linchado. As acusações
exigindo indemnizações. contra ele seriam, mais tarde, retiradas. No entan-
MUSEU NACIONAL SMITHSONIAN DE
HISTÓRIA E CULTURA AFRO-AMERICANA to, as atenções da multidão tinham mudado de
(À ESQUERDA)
alvo. Um homem branco confrontou um veterano
negro armado. Ouviu-se um disparo e a situação
descontrolou-se, gerando o caos.

A J U S T E D E C O N TA S C O M O PA S S A D O 103
Nessa noite, centenas de brancos, muitos dos amontoou no relvado da sua casa, ele saiu para
quais nomeados ajudantes do xerife pelos funcio- a rua com as mãos no ar e disse: “Estou aqui, ra-
nários da cidade, marcharam sobre Greenwood. pazes. Não disparem.” Dispararam de qualquer
Foram impiedosos. Alguns homens brancos ir- maneira contra o respeitável médico, que mor-
romperam pela casa de um casal de anciãos ne- reu esvaindo-se em sangue. O Hospital Frissell
gros. “O homem, um paralítico de 80 anos, estava Memorial, único hospital na cidade que presta-
sentado numa cadeira”, segundo uma notícia, pu- va assistência a negros, já fora transformado em
blicada dez dias depois por um jornal de Chicago. brasas pelo fogo.
“Mandaram-no levantar-se e ele disse-lhes que Homens brancos de uniforme “transportaram
era inválido, mas que o faria se o ajudassem, e eles latas com petróleo até à Pequena África”, o nome
mandaram a mulher ir-se embora, mas ela não posto a Greenwood pela população branca. “De-
queria deixá-lo. Ele disse-lhe que se fosse embora. pois de saquearem as casas, pegaram-lhes fogo”,
Quando ela saiu, um dos cães danados disparou escreveu Walter White, um investigador da NAACP
contra o homem e, depois, pegaram fogo à casa.” que se deslocou a Tulsa pouco depois do massa-
George Monroe, então com 5 anos, lembrava-se cre. Este homem negro cuja cor de pele clara lhe
de se ter escondido com as irmãs mais velhas e permitia passar por branco enquanto entrevistava
com um irmão debaixo da cama dos pais. Mon- testemunhas de linchamentos e homicídios por
roe viu os homens saquearem o quarto e pegarem todo o país, ficou chocado com a informação reco-
fogo às cortinas. “Enquanto estava escondido, um lhida em Tulsa. “Foram-me contadas muitas his-
dos tipos pisou-me um dedo da mão e eu quase tórias de terror: não por pessoas de cor, mas por
gritei, mas a minha irmã pôs-me a mão sobre a moradores brancos”, escreveu White numa repor-
boca para que não me ouvissem.” tagem publicada na revista “Nation” em 1921.

Os amotinados brancos atearam fogos, casa a casa. Incendiaram


IGREJAS, HOTÉIS, MERCEARIAS E A BIBLIOTECA PÚBLICA DA COMUNIDADE NEGRA.
A multidão impediu os bombeiros de apagarem os incêndios.

A brutalidade da multidão tornou-se evidente Tulsa foi, provavelmente, a primeira cidade


em todo o bairro de Greenwood. “Eu estava na norte-americana alvo de bombardeamentos aé-
baixa com um amigo quando mataram aquele reos. Pilotos brancos locais descolaram nos seus
velhote simpático de cor, que era cego”, contou aviões armados com dispositivos incendiários.
um sobrevivente do massacre à comissão. “Tinha “Da janela do meu escritório, eu conseguia ver
as pernas amputadas. Junto das ancas, o corpo os aviões a sobrevoarem em círculos”, relatou o
estava amarrado a uma pequena plataforma de advogado B.C. Franklin num depoimento dac-
madeira com rodas. O coto de uma das pernas tilografado. “Na Baixa, na [Rua] East Archer, vi
era maior do que o da outra e saía do rebordo da o velho Hotel Mid-Way em chamas, ardendo de
plataforma, arrastando ao longo da rua. Deslo- cima para baixo, e assim sucessivamente, vários
cava-se de um lado para o outro usando as mãos, edifícios a arderem a partir do telhado. ‘O quê,
protegendo-as com luvas de basebol. Ganhava a também há ataques a partir do ar?’, perguntei.”
vida vendendo lápis aos transeuntes ou aceitando Viu então três homens a correr na Avenida de
donativos pelas músicas que cantava.” Greenwood. “Os três homens (um dos quais carre-
A multidão atou-lhe uma corda à volta do pes- gando uma mala pesada ao ombro) foram mortos
coço e arrastou-o pelas ruas de Greenwood, pu- enquanto atravessavam a rua. Assassinados mes-
xando-o com um automóvel. mo à minha frente.”
A.C. Jackson, a quem um dos fundadores da Enquanto a noite caía sobre os horrores do dia
Clínica Mayo chamou “o mais capaz dos cirur- 31 de Maio, alguns cidadãos esconderam-se, re-
giões negros da América”, tentou desmobilizar a zando para que o pior da violência tivesse termi-
multidão. Quando um grupo de amotinados se nado. Mas o pior ainda estava para vir.

104 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
“Na noite de terça-feira, 31 de Maio, aconteceu Enquanto se encontravam sob detenção, as
o motim”, contou mais tarde uma testemunha multidões assaltaram-lhes as casas e enterraram
a Mary Parrish. “Na manhã de quarta-feira, ao os corpos das vítimas. Sobreviventes negros re-
nascer do Sol, deu-se a invasão.” A multidão re- cordaram posteriormente terem visto cidadãos
trocedera apenas para recuperar forças. Cerca de negros despejados em massa dentro de valas co-
dez mil pessoas aglomeraram-se nos arredores muns, atirados para cima de camiões ou para as
de Greenwood. Uma metralhadora foi montada águas do rio Arkansas. “Eu vi dois camiões carre-
no alto de um silo de cereais. gados de corpos”, contou um sobrevivente à co-
Exactamente às 5h08 dessa manhã, um silvo missão dos motins. “Viam-se negros com as per-
penetrante rasgou o silêncio da manhã. “Soltan- nas e os braços espetados para fora das tábuas da
do urros selvagens e frenéticos”, recordou mais caixa do camião. Em cima deles, vi um rapazinho
tarde uma testemunha, “começaram a emergir mais ou menos da minha idade. Pela sua cara, pa-
homens da estação ferroviária de mercadorias e recia que tinha morrido de medo.”
da longa fila de vagões e, evidentemente, de trás Nunca foi detido qualquer cidadão branco por
das pilhas de poços de petróleo.” participação no massacre.
Os amotinados brancos atearam fogo “casa a Durante quase 80 anos, a cidade de Tulsa viveu
casa, quarteirão a quarteirão”, enquanto cami- mergulhada no silêncio quanto aos acontecimen-
nhavam ao longo de Greenwood. Incendiaram tos desse dia. Os sobreviventes negros que regres-
“uma dúzia de igrejas, cinco hotéis, 31 restauran- saram, para a reconstrução, nada disseram. Os
tes, quatro drogarias, oito consultórios médicos, líderes da cidade encobriram-no. Nos arquivos da
mais de duas dúzias de mercearias e a biblioteca Universidade de Tulsa, alguém se serviu de uma
pública da comunidade negra. Mais de um milhar navalha para cortar todos os artigos publicados
de casas foram queimadas e os fogos tornaram-se em revistas sobre o assunto. O artigo do “Tulsa
de tal maneira quentes que as árvores e edifícios Tribune” afirmando que Rowland agredira Page
externos da vizinhança também irromperam em foi arrancado do jornal, bem como o editorial
chamas.” A multidão impediu que os bombeiros “Linchar Negros Esta Noite”.
da cidade apagassem os fogos. E contudo, a história do massacre não podia
Nesse dia, os cidadãos negros perderam bens ser apagada, afirma Regina Goodwin, a deputada
no valor de milhões de dólares. Os prejuízos de estadual. “As almas permanecem e nós honra-
Gurley, um dos fundadores da comunidade, ele- mo-las, mas estas foram gerações que poderiam
varam-se a 157.783 dólares, segundo o relatório da ter nascido e nós não as temos. Aquelas pessoas
Comissão do Massacre Racial de Tulsa. O valor foram massacradas, assassinadas, queimadas e
actual dos seus bens destruídos (acrescido de um abatidas a tiro. Eram pessoas. Perdemos papás,
juro anual de 6%) cifrar-se-ia em 53,5 milhões de mamãs e bebés. Eles foram assassinados, houve
dólares – uma potencial fortuna perdida. fogo-posto e nunca ninguém foi acusado. Não
houve sequer uma condenação e ninguém foi res-
ponsabilizado. E nós nunca nos esqueceremos.”
IV.
o cheiro a morte pai-
N O R E S C A L D O D O M A S S AC R E ,
rava na cidade. O governador recrutou unidades V.
da Guarda Nacional exteriores para garantirem a 76 anos depois do massacre, o estado de
E M 1 9 9 7,
paz. As unidades locais tinham-se associado à Oklahoma abriu uma investigação sobre os acon-
multidão destruidora. Em vez de protegerem os tecimentos. Don Ross, deputado ao parlamento
moradores de Greenwood, tinham-nos detido em estadual cujo avô sobrevivera à violência, redigiu
campos de internamento no salão de congressos um despacho que instituiu a Comissão sobre os
da cidade, no campo de basebol e nos terrenos da Motins Raciais de Tulsa, em resposta a um repórter
feira. Os cidadãos negros de Tulsa foram mantidos local que classificara um atentado à bomba em 1995
sob vigilância armada, “não podendo partir sem como a mais grave ocorrência de agitação civil
a permissão dos seus empregadores brancos”, desde a Guerra da Secessão. “O meu pai ripostou
segundo um relatório do massacre feito em 2020 ao repórter: ‘Não, a pior ocorrência registou-se a
pela Human Rights Watch. “Quando finalmente uma hora de distância do Capitólio, em
conseguiram partir, foi-lhes exigido que usassem Greenwood’”, contou J. Kavin Ross, filho de Don
cartões de identificação verdes ao peito.” Ross. “Foi isso que deu origem à reportagem.”

A J U S T E D E C O N TA S C O M O PA S S A D O 105
J. Kavin Ross, um jornalista de Tulsa, colaborou meira caixa e estavam lá dentro os corpos de três
com a comissão, entrevistando e gravando em ví- negros. A caixa seguinte era muito maior e havia
deo os depoimentos de mais de 75 sobreviventes. lá dentro, pelo menos, quatro corpos.” Uma equi-
Foi pavoroso “ouvi-los contar as suas histórias, do pa examinou o local descrito por Eddy, descobrin-
ponto de vista de crianças. Muitos tinham 5, 9, 10 do uma anomalia com “todas as características de
anos e alguns eram adolescentes”, disse. “Era algo uma vala escavada, ou trincheira, com paredes
que ficara retido na sua mente durante todo aque- verticais e um objecto indefinido no meio do cen-
le tempo. Diziam: ‘Lembrei-me de outra coisa. tro aproximado”. Contudo, a zona estava reserva-
Volte cá e entreviste-me outra vez.’” da para enterramentos de brancos em 1921.
Em 1998, uma equipa dirigida por Scott Ell- A comissão decidiu não autorizar uma busca
sworth, cujo novo livro “The Ground Breaking: física e a presidente da câmara municipal de Tul-
An American City and Its Search for Justice” re- sa na altura encerrou a investigação antes que os
latou o encobrimento e a investigação do massa- cientistas pudessem escavar, afirmando que não
cre, identificou três locais onde poderiam existir queria perturbar as sepulturas vizinhas.
sepulturas em massa: Newblock Park, o Cemité- As buscas pareciam ter terminado. No entan-
rio Booker T. Washington e o Cemitério Oaklawn. to, em 2018, publiquei um artigo que foi publi-
O testemunho ocular de Clyde Eddy, um cidadão cado na primeira página do “The Washington
branco de Tulsa, alargou as buscas em Oaklawn. Post” no qual questionava o encerramento das
“Eu e um primo meu íamos a passar pelo velho ce- investigações. Eu viajara até Tulsa para visitar
mitério de Oaklawn”, contou Eddy à comissão em o meu pai e reparei que a urbanização estava a
1999. “Vimos um grupo de homens a trabalhar, transformar Greenwood num bairro chique, um
escavando uma vala, e depois vimos um monte lugar considerado solo sagrado do massacre pe-
de caixas de madeira em cima de terra. Fomos lá los descendentes dos sobreviventes. Poucos dias
e demos uma espreitadela. Caminhámos até à pri- depois da publicação do artigo, o presidente da

106 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
Sobreviventes feridos câmara municipal da cidade, G.T. Bynum, anun-
encheram as camas do ciou a reabertura das investigações para se pro-
hospital provisório da
Cruz Vermelha em Tulsa. curarem as sepulturas em massa.
“Embora os registos “Se houver sepulturas colectivas em Tulsa, de-
indiquem 763 feridos”, veremos encontrá-las”, disse-me o autarca. “Se
relatou esta organização
de socorro, “neste alguém for assassinado em Tulsa, nós temos um
número não se incluem contrato com os cidadãos garantindo que tudo
as pessoas feridas faremos para descobrir o que aconteceu e fazer
posteriormente
encontradas em quase justiça. É por isso que estamos a tratar este caso
todas as estradas como um inquérito de homicídio de habitantes.”
que saíam de Tulsa”. Este político do Partido Republicano reconhe-
A tia-avó de Phoebe
Stubblefield perdeu a ceu que a cidade encobrira o massacre durante
sua casa durante o quase um século, mas, como presidente da câ-
ataque. Agora, a mara municipal, prometeu apurar a verdade.
antropóloga forense
(em cima) vai ajudar “Para mim, é mais importante estar do lado cer-
a identificar os restos to da história”, afirmou.
mortais das vítimas Mesmo assim, continua a sofrer pressões vin-
encontradas nas
sepulturas em massa. das de todos os lados. Alguns cidadãos brancos
BIBLIOTECA DO CONGRESSO fizeram-lhe frente, dizendo que deveria deixar
(ESQUERDA)
o passado enterrado. Entretanto, os moradores
negros descendentes de sobreviventes conti-
nuam a exigir uma busca exaustiva de sepultu-
ras em massa, bem como indemnizações pela
riqueza que foi destruída.

A J U S T E D E C O N TA S C O M O PA S S A D O 107
Brandi Ishem, finalista
do ensino secundário,
posa diante de um
mural comemorativo
da Wall Street Negra,
nome pelo qual o
bairro de Greenwood
se tornou conhecido.
Pintada em 2018, a
obra decora um muro
de retenção da estrada
que actualmente
atravessa Greenwood,
dividindo o bairro em
dois. O mural tornou-se
um local popular para
retratos de finalistas.

Em 2019, a cidade constituiu uma comissão for- VI.


mada por descendentes, investigadores e activis- o mais antigo lugar
O C E M I T É R I O D E O A K L AW N ,
tas comunitários. A seu pedido, um grupo de pe- público de enterramento actualmente existente em
ritos recorreu ao radar de penetração no solo para Tulsa, localiza-se a poucos quarteirões de distância
procurar provas de anomalias nos locais identifi- de Greenwood. Na sua entrada, ainda há um mapa
cados em 1999. a mostrar a linha que divide o talhão dos “brancos”
Sob direcção do Oklahoma Archeological Sur- do talhão dos “de cor”.
vey, a equipa realizou buscas no cemitério de Em Julho de 2020, os cientistas escavaram numa
Oaklawn e em Newblock Park, ao mesmo tempo zona para pessoas “de cor”. Passados oito dias de
que a cidade negociava o acesso a um terceiro lo- escavações, os cientistas ainda não tinham en-
cal, o terreno de propriedade privada Rolling Oaks contrado sepulturas em massa. A cidade decidiu
Memorial Gardens, outrora chamado Cemitério alargar a busca. Três meses depois, no dia 19 de
de Booker T. Washington. No dia 16 de Dezembro Outubro de 2020, começou uma segunda escava-
de 2019, os cientistas anunciaram a descoberta ção, numa área onde se suspeitava que tivessem
de anomalias sob o solo de Oaklawn e numa zona sido enterrados 18 cidadãos negros em 1921. Dois
chamada The Canes, actualmente um acampa- dias mais tarde, os cientistas encontraram os res-
mento de pessoas sem-abrigo, perto do local onde tos de uma trincheira sob uma árvore, junto das
a auto-estrada I-244 atravessa o rio Arkansas. lápides de Reuben Everett e Eddie Lockard, as

108 N AT I O N A L G E O G R A P H I C
O local de enterramento poderá conter muitos
mais caixões, depositados uns sobre os outros.
“Poderá haver mais de 30 pessoas enterradas
nesta sepultura em massa”, diz. Foram talhados
degraus no solo duro, “presumivelmente para se
poder entrar e sair do poço de sepultamento”, diz.
É improvável que quem escavou a sepultura se ti-
vesse dado a tanto trabalho só para enterrar meia
dúzia de pessoas.

VII.
antes dos estudos
T O D A S A S Q U A R TA S - F E I R A S ,
bíblicos, o reverendo Robert Turner, pastor da
Igreja Metodista Episcopal Africana Vernon cami-
nha até à Câmara Municipal para protestar contra
o massacre e exigir indemnizações.
“Pessoas negras foram assassinadas nesta
cidade, abatidas por terrorismo racial de mas-
sas”, grita. “Vidas inocentes foram ceifadas.
Bebés queimados. Mulheres queimadas. Mães
queimadas. Avós queimadas. Avôs queimados.
Maridos queimados. Casas queimadas. Escolas
queimadas. Hospitais queimados. O nosso san-
tuário queimado. O sangue dos que foram assas-
sinados em Tulsa ainda clama em alta voz.”
Quando recebeu as notícias do achado, po-
rém, Turner deixou-se cair em silêncio sobre os
joelhos, junto da vedação de ferro forjado do ce-
mitério, e rezou.
Kristi Williams também foi ao cemitério. A se-
pultura em massa fora descoberta no local onde
ela e outros activistas negros haviam encenado
uma “morte colectiva” em 2019, para chamarem
a atenção para as vítimas do massacre. Na com-
únicas sepulturas de vítimas conhecidas do mas- panhia de doze pessoas, Kristi deitara-se sobre a
sacre assinaladas no cemitério. A vala continha relva perto das duas lápides marcadas como per-
um mínimo de 11 caixões. tencendo a vítimas conhecidas dos motins. De sú-
“Isto é uma sepultura em massa”, comunicou a bito, dois dos activistas deram um salto.
arqueóloga estadual Kary Stackelbeck aos jorna- “Sentiram algo a puxá-los para baixo, vindo
listas, numa conferência de imprensa em Tulsa. da terra”, contou Kristi. “Achámos que estavam
No entanto, acrescentou que seriam necessárias a armar-se em parvos. Mas quando recebemos a
mais investigações para apurar se os corpos per- notícia de que tinham descoberto uma sepultu-
tenciam a vítimas do massacre. ra em massa no local, de repente fez-se luz. Os
Indícios de lesões traumáticas, ferimentos nossos antepassados estavam a chamar por nós
causados por armas de fogo ou queimaduras po- e era ali que se encontravam.”
deriam associar as ossadas ao massacre, afirma No limite do cemitério, Kristi Williams verteu
Phoebe Stubblefield, a antropóloga forense res- uma libação de água e rezou: “Antepassados,
ponsável pelo exame dos restos mortais. No en- obrigada por chamarem por nós. Rezo para que
tanto, Phoebe Stubblefield, cujos antepassados sejamos capazes de vos ligar a todos às vossas
sobreviveram à violência, afirma que, antes de famílias e que nos ajudeis neste processo para
poder fazê-lo, precisa de obter permissão de um que se faça justiça. Tenho tanta pena que isto
juiz para proceder à exumação dos restos mortais. vos tenha acontecido.” j

A J U S T E D E C O N TA S C O M O PA S S A D O 109
N AT I O N A L G E O G R A P H I C | NA TELEVISÃO

Impact com
Gal Gadot
E S T R E I A : 1 0 D E J U L H O, À S 1 3 H 3 0

O canal National Geographic apresenta “Impact


com Gal Gadot” um documentário que acompa-
nha as histórias de seis mulheres com um impacte
extraordinário nas suas comunidades. Enfren-

Primal Survivor tando a violência de gangues, a contaminação


da água, a degradação ambiental ou discrimi-
E S T R E I A : 1 6 D E J U L H O, À S 2 2 H 1 0 nação, as mulheres que figuram no documentá-
TO DA S A S S E X TA S - F E I R A S rio insurgem-se contra o destino e contrariam a
adversidade. Conheça a história de uma bailarina,
Hazen Audel viaja até alguns dos lugares mais no Brasil, que criou através da dança uma comu-
inóspitos do planeta para participar em desa-
nidade que ajuda as raparigas a lutarem por um
fios individuais de superação da sua resistência.
Das florestas tropicais da Papua Nova-Guiné futuro melhor, bem como outras inspiradoras.
aos desertos do Saara e às montanhas geladas Produzido pela actriz Gal Gadot, o documentá-
dos Himalaia, Hazen contará apenas consigo. rio não deixará ninguém indiferente.

Bob Bob Ballard, o explorador que descobriu


os destroços do Titanic e do Bismark, entre
Ballard várias outras expedições oceanográficas
e arqueológicas, regressa agora à National
E S T R E I A : 2 5 D E J U L H O, Geographic com um documentário íntimo
ÀS 22H30 sobre a sua vida, os seus triunfos e tragédias.

ENTERTAINMENT ONE (NO TOPO); NATIONAL GEOGRAPHIC (AO CENTRO E EM BAIXO)


Sharkfest
S Á B A D O S E D O M I N G O S , A PA RT I R DA S 1 7 H

O famoso especial de programação Sharkfest está


de volta ao Nat Geo Wild com mais de vinte estreias
sobre um dos animais que mais curiosidade gera
em todo o mundo: o tubarão.
Sharkfest mostra-lhe de perto um dos mais
temidos predadores da natureza, desmitificando
preconceitos e apresentando este fantástico pre-

America’s Funniest Home dador sob uma aura mais auspiciosa. Entre os vários
documentários exibidos nos fins de semana de
Videos: Animal Edition Julho, destacam-se as estreias dos programas
“The Croc That Ate Jaws”, “Rogue Shark?”,
E S T R E I A : 2 8 D E J U L H O, À S 1 7 H “Sang Eating Sharks”, “Shark Attack-Tics”,
“Shark Gangs”, “50 Shades of Sharks”, “Shark Attack:
Do quintal à savana, passamos momentos com
The Paige”, “ The Sharks of Hawaii”, “Sky
animais que nos fazem rir, suspirar e sorrir,
proporcionando-nos sempre boa disposição. Sharks”, “World’s Biggest Bullshark”, “World’s
Alfonso Ribeiro, o actor celebrizado pela série Deadliest Shark”, “Shark Attack Files” e “When
“O Príncipe de Bel-Air”, apresenta o programa. Sharks Attack 7”.

Critter No Sul de Atlanta, os Dr. Hodges e Ferguson são


amigos de longa data que trabalham no Hospital
Fixers Veterinário Critter Fixer. Com a sua equipa, tratam
e cuidam de mais de 20 mil pacientes. Visitam
ESTREIA: 2 DE quintas em toda a zona rural da Geórgia, resol-
J U L H O, À S 1 7 H vendo emergências muito especiais.

DIDIER NOIROT (NO TOPO); NATIONAL GEOGRAPHIC (AO CENTRO E EM BAIXO)


P R Ó X I M O N Ú M E R O | AGOSTO 2021

Os gladiadores Rãs de cristal: Como se viverá No limite da


de Roma Antiga transparência total fora da Terra sobrevivência
Apesar das represen- Os avanços dramáticos Experiências conduzidas Na aridez do deserto
tações da literatura e no campo da genética, na Terra permitem do Kalahari, as secas
do cinema, sabe-se que da biologia molecular e imaginar como serão os e o aumento das
os gladiadores eram por da óptica proporcionam assentamentos humanos temperaturas ameaçam
norma profissionais. à comunidade científica noutros planetas, como ainda mais o delicado
Os seus combates uma nova visão sobre Marte, onde várias equilíbrio de que
tinham mais que ver com estes diminutos anfíbios equipas científicas depende a vida.
o espectáculo do que de pele transparente desenvolvem projectos A água e os nutrientes
com a matança veiculada distribuídos pela Amé- inovadores de coloni- são bens escassos neste
pelos mitos. rica Central e do Sul. zação sustentável. território inóspito.

N AT I O N A L G E O G R A P H I C RÉMI BÉNALI
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