Você está na página 1de 9

1

ASPECTOS LEGAIS DA EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL E AS POLÍTICAS DE FINANCIAMENTO

Paulo Rogério de Souza1, João Paulo Pereira Coelho2


1
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Maringá – UEM e Doutor em Estudos Clássicos pela Universidade
de Coimbra (Portugal). Docente colaborador do Departamento de Teoria e Prática da Educação (DTP), da Universidade
Estadual de Maringá – UEM, Maringá, PR. E-mail: paulolucka@gmail.com
2
Doutor em Educação na área de História e Historiografia da Educação pela Universidade Estadual de Maringá - UEM.
Docente da Universidade Estadual de Maringá – UEM, Maringá, PR.

RESUMO
Esta pesquisa apresenta os aspectos legais que instituíram a educação infantil como etapa da educação
básica, a partir da Constituição Federal de 1988 e da LDB 9.394/96, mostrando os avanços que a legislação
trouxera para o atendimento da criança, no ambiente escolar. Assim, este trabalho, vinculado ao Grupo de
Estudos e Pesquisa em Políticas Educacionais, Gestão e Financiamento da Educação (GEPEFI), tem como
preocupação fazer uma análise crítica da criação dos fundos contábeis, FUNDEF e FUNBEB, a partir da
década de 1990, apontado seus pontos positivos e negativos para o atendimento da educação básica,
destacando a importância desses fundos para a manutenção técnica e financeira da educação infantil. Por
fim, é importante destacar as melhorias que as políticas de financiamento propiciaram à educação infantil,
principalmente com a criação do FUNDEB, em 2006, e quais as consequências que poderão acarretar a essa
etapa da educação, com seu término legal em 2020.
Palavras-chave: Educação infantil. Aspectos legais. Financiamento educacional. FUNDEB. PEC nº 15/2015.

LEGAL ASPECTS OF CHILDREN EDUCATION IN BRAZIL AND FINANCING POLICIES

ABSTRACT
This research presents the legal aspects that instituted childhood education as a stage of basic education,
starting with the Federal Constitution of 1988 and LDB 9.394 / 96, showing the advances that legislation
had brought to the care of the child in the school environment. Thus, this work, linked to the Group of
Studies and Research in Educational Policies, Management and Financing of Education (GEPEFI), has as a
concern to make a critical analysis of the creation of accounting funds, FUNDEF and FUNBEB, from the
positive and negative points for the basic education, highlighting the importance of these funds for the
technical and financial maintenance of early childhood education. Finally, it is important to highlight the
improvements that the funding policies have given to early childhood education, especially with the
creation of FUNDEB, in 2006, and what the consequences may be for this stage of education, with its legal
termination in 2020.
Keywords: Childhood education. Legal aspects. Educational funding. FUNDEB; PEC No. 15/2015.

INTRODUÇÃO que houvessem uma nova forma de atendimento


Desde a antiguidade até a modernidade, à criança.
o cuidado e a educação da criança, nos primeiros Com a industrialização da sociedade e a
anos de vida, esteve geralmente sob a processo de urbanização que esta impulsionou, a
responsabilidade da família, principalmente da mulher foi forçada a entrar no mercado de
mulher, na figura da mãe. trabalho por necessidades econômicas, deixando
Após a Revolução Industrial, no século de dispensar integralmente o seu tempo ao
XVIII, e, principalmente, na sua potencialização, cuidado doméstico e à educação da criança, no
no século XIX, ocorreram diversas mudanças na interior da casa.
estrutura da sociedade que contribuíram para Para suprir a lacuna deixada pela família
contemporânea, foram criadas instituições

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 15, n. 2, p.01-09 abr/jun 2018. DOI: 10.5747/ch.2018.v15.n2.h356
2

chamadas creches para atender as crianças, A partir da segunda metade da década de


sendo adotadas inicialmente com caráter 1980, começou uma ampla movimentação e
assistencial. Ou seja, o papel da creche era ser discussão – civil e governamental – sobre o tema
um lugar de cuidado dos filhos das trabalhadoras, educação da criança, o que gerou a necessidade
servindo como suporte familiar de assistência às de se reconhecer a educação infantil como uma
mulheres que assumiram lugar no mercado de modalidade de ensino da educação básica através
trabalho. de instrumentos legais.
A partir da secunda metade do século XX, Assim, o objetivo desse trabalho foi
passou-se a ter uma preocupação social maior mostrar os avanços que aspectos legais
para com o cuidado da criança, destacando a trouxeram à Educação Infantil, sustentados pela
importância do atendimento infantil para o Constituição Federal de 1988, o ECA de 1990 e a
desenvolvimento adequado desta fase da vida, LDB de 1996. Também buscou-se destacar a
antes mesmo da criança ter idade para uma importância dos fundos contábeis de
educação elementar. financiamento educacional para o atendimento
Esta preocupação pode ser destacada desta etapa da Educação Básica, a partir da
pela atenção dada à infância1 pelos organismos e segunda metade da década de 1990. Para isso, a
organizações internacionais que, a partir da metodologia adotada nesta discussão partiu de
década de 1950, passaram a realizar congressos uma análise bibliográfica, de caráter teórico,
mundiais, onde elaboraram documentos em tendo como referencial o Materialismo Histórico.
defesa e incentivo ao desenvolvimento da
crianças. Dentre esses documentos, citam-se a Os aspectos legais como avanços no
Declaração Universal dos Direitos da Criança, reconhecimento da educação infantil
datado de 1959, e a Convenção Mundial dos Os aspectos legais como avanço para o
Direitos da Criança, de 1989, que influenciaram a reconhecimento da educação infantil no Brasil se
progressiva ampliação do atendimento a criança deu incialmente com o texto original da
nos primeiros anos de vida. Constituição Federal de 1988, onde a Carta
Magna trazia o atendimento de crianças de 0
Princípio 4: A criança (zero) a 6 (seis) anos de idade como dever e
gozará os benefícios da obrigação do Estado, no seu Art. 208, inciso IV.
previdência social. Terá Como o objetivo de reforçar o que foi
direito a crescer e criar- expresso no Constituição Federal de 1988, o
se com saúde; para isto, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de
tanto à criança como à 1990 reitera nos Art. 53 e Art. 54 esse direito ao
mãe, serão atendimento educacional às crianças de 0 (zero) a
proporcionados 6 (seis) anos, que precisava ser oferecido e
cuidados e proteções mantido pelo Estado de maneira obrigatória.
especiais, inclusive (BRASIL, 1990)
adequados cuidados pré No entanto, o termo Educação Infantil
e pós-natais. A criança somente apareceu em um regimento legal
terá direito a brasileiro com a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro
alimentação, recreação de 1996, no Art. 9º, do texto original. Foi também
e assistência médica com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
adequadas (ONU, 1959). Nacional de 1996, que a Educação Infantil passou
a fazer parte da Educação Básica: “Art. 21. A
No Brasil, as políticas de atendimento educação escolar compõe-se de: I - educação
assistencial da criança seguiram, a passos lentos, básica, formada pela educação infantil, ensino
as tendências mundiais, influenciadas pelos fundamental e ensino médio; II - educação
organismos e organizações internacionais, como superior” (BRASIL, 1996). Desta maneira, a
a UNESCO e a UNICEF, até a década de 1980. educação infantil tornando-se uma das etapas
deste nível de educação, como redigido no Art.
1 29: “A educação infantil, primeira etapa da
“Infância tem um significado genérico e, como qualquer outra fase
da vida, esse significado é função das transformações sociais: toda educação básica, tem como finalidade o
sociedade tem seus sistemas de classes de idade e a cada uma delas desenvolvimento integral da criança até seis anos
é associado um sistema de status e papel” (KHULMANN, 1998, p.
16).
de idade, em seus aspectos físico, psicológico,

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 15, n. 2, p.01-09 abr/jun 2018. DOI: 10.5747/ch.2018.v15.n2.h356
3

intelectual e social, complementando a ação da feita unicamente pelo critério de faixa etária,
família e da comunidade” (BRASIL, 1996). sendo ambas as instituições de educação infantil,
Este Art. 29, da LDB de 1996, foi alterado com o mesmo objetivo - desenvolvimento da
pela redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013, criança, em seus múltiplos aspectos”.
que redefiniu a duração do ensino fundamental Dentro dos aspectos legais também
de 8 (oito) para 9 (nove) anos, tornando passou a ser definida a responsabilidade de
obrigatória a matrícula escolar nesta etapa, a oferta da educação infantil que deveria ser
partir 6 (seis) aos de idade. Assim, a educação mantida prioritariamente, segundo a Constituição
infantil, entendida como a primeira fase da Federal de 1998, pelos municípios. No entanto,
educação básica, passou a ser definida como para manter a educação infantil, os municípios
faixa etária dos 0 (zero) aos 5 (cinco) anos de precisariam receber a colaboração dos diferentes
idade: entes de governo: “Art. 30. Compete aos
Art. 29. A educação municípios, VI - manter, com a cooperação
infantil, primeira etapa da técnica e financeira da União e do Estado,
educação básica, tem programas de educação infantil e de ensino
como finalidade o fundamental; (Inciso com redação dada pela
desenvolvimento integral
Emenda Constitucional nº 53, de 2006)” (BRASIL,
da criança de até 5 (cinco)
anos, em seus aspectos
1988).
físico, psicológico, Desta forma, pode-se verificar que, os
intelectual e social, munícipios assumiram a obrigatoriedade de
complementando a ação exercer a responsabilidade de manutenção e
da família e da organização do sistema de educação infantil. Mas
comunidade. (Redação esta responsabilidade teria que ser exercida em
dada pela Lei nº 12.796, regime de colaboração com os estados e com o
de 2013) (BRASIL, 1996) governo federal, que deveriam subsidiar técnica e
financeiramente a sua oferta, como
A Lei nº 12.796, de 2013 também alterou regulamentado no Art. 8º, da LDB 9.394/96 “A
o texto original da LDB nº 9.394/96, no Art. 30, União, os Estados, o Distrito Federal e os
definindo a oferta da educação infantil em duas Municípios organizarão, em regime de
etapas: “I - creches, ou entidades equivalentes, colaboração, os respectivos sistemas de ensino”.
para crianças de até 3 (três) anos de idade; e II - Esta colaboração estava reforçadas nos artigos
pré-escolas, para as crianças de 4 (quatro) a 5 seguintes, nos quais estão especificadas as
(cinco) anos de idade” (BRASIL, 2013). responsabilidades para com a educação de cada
Ao incluir a faixa etária dos 0 (zero) aos 3 ente federado: União (Art.9), estados (Art. 10) e
(três) anos na educação infantil, a LDB de 1996 Municípios (Art. 11). (BRASIL, 1996).
promoveu uma grande mudança no atendimento Essa cooperação técnica e financeira dos
da criança, pois, como apresenta Gaspar (2010, p. estados e da União para com os municípios, teve
123): como premissa o papel de auxiliar os entes
[...] a faixa etária de zero a federados com menor capacidade de
três anos sempre esteve
arrecadação financeira (municípios) a manter sua
mais afeta a espaços de
amparo e promoção
responsabilidade legal na manutenção desta
social, com um atributo etapa da educação.
mais assistencial e de
guarda das crianças, com O financiamento da educação infantil no Brasil
cuidados físicos, de saúde pós-1990
e de alimentação. Assim, Como se pode verificar no Art. 30 da
grande parte da demanda Carta Magna de 1988, a manutenção da
era atendida por educação infantil deve ser ofertada em regime de
instituições filantrópicas e cooperação técnica e financeira entre a União, os
associações comunitárias.
estados e municípios. Atualmente, essa
cooperação ocorre através de fundos de
Apesar da diferenciação legal dessas duas
financiamento da educação. (BRASIL, 1988)
etapas, Gaspar (2010, p. 121) ressalta ainda que:
“[...] a diferença entre creches e pré-escolas é

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 15, n. 2, p.01-09 abr/jun 2018. DOI: 10.5747/ch.2018.v15.n2.h356
4

Mas esta cooperação, até a década de delegados na totalidade de sua manutenção à


1990, ocorria através da realização de convênios2 iniciativa privada.
entre os entes federados, numa escala De acordo com o documento extraído da
hierárquica de poder: dos municípios para com os Conferência de Jomtien, em seu Art. 5, a
estados, ou destes (municípios e Estados) para educação fundamental precisava ser
com o governo federal. universalizada em busca de satisfazer as
Segundo Paulo Sena, estes convênios necessidades básicas das crianças: “O principal
para financiamento e manutenção da educação sistema de promoção da educação básica fora da
básica, em especial a educação infantil, seguiam esfera familiar é a escola fundamental. A
critérios subjetivos e, ainda de acordo com o educação fundamental deve ser universal,
autor, estavam sujeitos às influências políticas: “A garantir a satisfação das necessidades básicas de
União, ao repassar os recursos e eventualmente aprendizagem de todas as crianças [...]”
prestar assistência técnica, estabelece condições, (UNESCO, 1990).
cuja verificação é mais suscetível a injunções No entanto, ainda que o discurso
político-partidárias” (SENA, 2015, p. 3). neoliberal propagado pelos organismos e
As discussões sobre a necessidade da organizações internacionais, de privilegiar a
criação de fundos de financiamento da educação educação básica na etapa do ensino
básica acorreram com maior ênfase no Brasil a fundamental, fosse em defesa de uma educação
partir da década de 1990, sob influência das que proporcionasse uma vida digna, condição
políticas neoliberais, partindo inicialmente do insubstituível para o advento de uma sociedade
governo do presidente Fernando Collor de Mello mais humana e mais justa, o que se verificou na
(1990-1992) e reforçadas pelo Governo do prática foi que seu objetivo era outro: a busca
presidente Fernando Henrique Cardoso (1995- por uma sistema de ensino elementar, que
2002). deveria formar minimamente o trabalhador,
Seguindo orientações de agências como mão de obra para o mercado de trabalho,
internacionais do sistema ONU, através de como pode ser visto nas orientações do Banco
acordos multilaterais, os países em Mundial:
desenvolvimento, signatários desses acordos, A estratégia do Banco
deveriam privilegiar a educação fundamental em Mundial para a redução da
detrimento às outras etapas da educação, como pobreza se concentra em
apresentado na Declaração Mundial sobre promover o uso produtivo
do trabalho, que é a
Educação para Todos: satisfação das
principal atividade dos
necessidades básicas de aprendizagem, de 1990. pobres, e a prestação de
A UNESCO e a UNICEF, juntamente com o serviços sociais básicos aos
Banco Mundial e outros organismos e mais necessitados. O
organizações intergovernamentais, conduziram investimentos em
as discussões nesta conferência internacional educação contribuem para
realizada no ano de 1990, em Jomtien, na a acumulação de capital
Tailandia, procurando estabelecer compromissos humano que é essencial
e convencer todos os países participantes – para atingir rendimentos
dentre eles o Brasil – que o principal objetivo da mais elevados e
crescimento econômico
educação básica deveria ser garantir a todas as
sustentado. Educação,
pessoas os conhecimentos básicos necessários a especialmente a educação
uma vida digna, condição insubstituível para o básica (primária e
advento de uma sociedade mais humana e mais secundária do primeiro
justa (DECLARAÇÃO DE JOMTIEN, 2001). Por isso, ciclo), ajuda a reduzir a
os investimentos na educação básica, (ensino pobreza através do
fundamental) deveria ser privilegiada por todos aumento da produtividade
os países signatários dessa declaração. Os outros dos pobres, reduzindo a
níveis de educação deveriam ser terceirizados ou natalidade e melhorando a
saúde, e fornecendo às
2
pessoas as habilidades que
“[...] convênios – instrumentos que se ajustam a políticas definidas
necessitam para participar
pela instância federativa de maior abrangência (União em relação a
estados e municípios e estados em relação a municípios)” (SENA, plenamente na economia
2015, p. 3).

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 15, n. 2, p.01-09 abr/jun 2018. DOI: 10.5747/ch.2018.v15.n2.h356
5

e sociedade (BANCO ofereciam assistência técnica e financeira para a


MUNDIAL, 1995, p. 1). educação, estabelecendo condições, cuja
verificações eram mais suscetíveis às injunções
Para isso, o Banco mundial reforçava político-partidárias. Essas injunções eram
em seus documentos a necessidade de negativas, já que a liberação de recursos
investimento na educação básica (ensino dependia muito das relações político-partidárias
fundamental): “A educação básica deve ser a entre as diferentes entidades federativas, sendo
primeira prioridade para os gastos públicos muitas vezes favorecidos aqueles estados e/ou
educação em países que ainda não alcançaram municípios que tivessem uma relação política
perto de matrícula universal no ciclo básico mais próxima com o ente federado com maior
primário e secundário” (BANCO MUNDIAL, 1995 capacidade de arrecadação de recursos
p. 4). financeiros, no caso a União em relação aos
Partindo deste ponto de vista, pode-se estados e municípios. Os municípios sempre
dizer que foi para atender às orientações dos foram dependentes dos recursos dos seus
organismos e organizações internacionais que o estados e da também do governo federal.
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Após a sua aprovação, o FUNDEF
Ensino Fundamental e de Valorização do trouxera certos avanços para a etapa da
Magistério (FUNDEF) acabou sendo criado em educação fundamental. Entre esses avanços
meados da década de 1990, no governo do então estavam: obrigatoriedade de repasses de
presidente Fernando Henrique Cardoso. Isso recursos da União para a educação fundamental;
porque o FUNDEF tinha como objetivo principal critérios definidos para a manutenção de um
atender apenas a educação fundamental, fluxo contínuo de recursos; regras claras para
excluindo a educação infantil, o ensino médio e o efetivar a colaboração técnica e financeira entre
nível superior, bem como diversas modalidades os estados e os municípios.
de ensino como, por exemplo, a educação de No entanto, o FUNDEF também
jovens e adultos. apresentou algumas deficiências. A primeira
delas é que o fundo foi criado para durar apenas
FUNDEF e FUNDEB: os fundos contábeis de 10 anos, tendo data para iniciar e para acabar.
financiamento educacional Também deixou de contemplar outras etapas da
O Fundo de Manutenção e educação básica como, por exemplo, o ensino
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de médio e a educação infantil, que não foram
Valorização do Magistério (FUNDEF) foi criado em atendidas pelo fundo. Outra deficiência foi a
1997, em meio às políticas neoliberais do participação financeira quase inexistente da
governo FHC, impulsionadas pelo Plano Diretor União na manutenção do fundo, ainda que o
da Reforma e Aparelho do Estado. O Plano de governo federal apresentasse um orçamento e
Reforma do estado brasileiro foi conduzido pelo uma capacidade de arrecadação muito maior que
ministro Bresser Pereira, do Ministério da os estados e os municípios.
Administração e Reforma do Estado (MARE), em Isso pode ser entendido como uma
busca de um estado-mínimo. Estas reformas intenção do governo central vigente em cumprir
refletiram também na educação, como pode ser apenas as orientações dos organismos e
visto no financiamento educacional, com a organizações internacionais, na busca de uma
criação do FUNDEF. formação mínima do trabalhador, preparando-o
Esse fundo de natureza contábil para para o mercado de trabalho e não efetivamente
financiamento educacional tinha como princípio, uma preocupação estatal em promover um
segundo Davies (2006, p. 765): “[...] disponibilizar sistema de ensino público de qualidade, com uma
um valor anual mínimo nacional por matrícula no educação continuada para todos e em todos os
ensino fundamental de cada rede municipal e níveis, etapas e modalidades.
estadual, de modo a possibilitar o que o governo O FUNDEF, iniciado em 1997, perdurou
federal alegou ser suficiente para um padrão no financiamento da educação fundamental até o
mínimo de qualidade [...]”. ano de 2006, sendo posteriormente substituído
Assim, o FUNDEF foi criado para por um outro fundo contábil, o Fundo de
substituir as formas anteriores de financiamento Manutenção e Desenvolvimento da Educação
educacional no Brasil, que eram realizadas Básica e de Valorização dos Profissionais da
através de convênios e que, segundo Sena (2015), Educação (FUNDEB).

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 15, n. 2, p.01-09 abr/jun 2018. DOI: 10.5747/ch.2018.v15.n2.h356
6

O FUNDEB foi criado no governo do criança de até três anos à


presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e educação, destituindo-a
entrou em vigor no ano de 2007. Ele substituiu e do status de assistência.
reformulou o que fundo anterior promovia, Se a creche tivesse sido
excluída do fundo, grande
ampliando seu atendimento no sistema de ensino
seria o risco de retrocesso
público, passando a contemplar toda a educação na finalidade pedagógica
básica, inclusive o ensino médio e a educação (GASPAR, 2010, p. 129).
infantil, antes excluídos do fundo de
financiamento educacional. Ao garantir o financiamento da educação
Comparando o antigo FUNDEF com o infantil, o FUNDEB buscou corrigir uma injustiça
atual FUNDEB, Sena (2015) destaca que que esta modalidade sofrera na sua falta de
houveram algumas mudanças que trouxeram auxílio e assistência financeira e técnica por parte
avanços significativos para a educação básica. da União e dos estados, já que os municípios
Entre estas mudanças citadas pelo autor estão: a eram os responsáveis legais da sua manutenção
estipulação do investimento da União em no até a sua inclusão no fundo.
mínimo 10% do valor do fundo; o Os recursos do FUNDEB, a partir de 2007,
estabelecimento de prazo para a criação do piso possibilitaram uma ampliação do atendimento da
salarial para o magistério através de lei3; a criação educação infantil, da creche à pré-escola, por
de um espaço federativo de negociação, através parte dos municípios, efetivando o regime de
da Comissão Intergovernamental de colaboração entre os entes federados, previsto
Financiamento para a Educação Básica, na qual constitucionalmente no Art. 30.
fazem parte representantes das esferas O que se pode verificar no contexto atual
municipal, estadual e da União (SENA, 2015). é que os avanços no atendimento da educação
Outra novidade significativa que o infantil foram significativos após a implantação
FUNDEB promoveu foi a inclusão do do FUNDEB, ainda que este atendimento não
financiamento para a educação infantil através de esteja sendo realizado na sua totalidade, já que
um fundo contábil, já que esta modalidade não nem todas as crianças de 0 (zero) a 3 (três) são
era contemplada pelo antigo FUNDEF. contempladas. Prova disso, são as filas de espera
Gaspar destaca ainda que, apesar da por vagas nas creches existente em quase todos
disponibilização legal de repasse de recursos os municípios brasileiros, o que impossibilita o
financeiros do novo fundo para a educação acesso de todas as crianças nestas instituições, já
infantil mereçam maior destaque, outros pontos que não há vagas para todas as famílias
também devem ser salientados: interessadas em colocar seus filhos nessa etapa
[...] o FUNDEB traz outras da educação básica.
características
Se os recursos do FUNDEB, ainda que
fundamentais para a
Educação Infantil.
representando um avanço significativos para o
Destacam-se em relação a atendimento da educação infantil, não foram
isso, a garantia da suficientes para a universalização deste
integralidade e a atendimento na faixa de 0 (zero) a 3 (três) anos
integridade da Educação de idade, outro problema pode surgir. Assim
Infantil, desde o como o FUNDEF foi criado para durar 10 (dez)
nascimento, ao incluir a anos, o FUNDEB também foi aprovado
creche. Por muito tempo legalmente com uma data para iniciar (2007) e
se argumentou sobre a para terminar. Isso irá ocorrer em 2020, prazo
importância do
estipulado para o fim de vigência do FUNDEB, já
financiamento para dar à
creche a relevância social,
que de acordo com o Art. 60, do Ato de
educacional e política disposições Constitucionais Transitórias, o fundo
como instituição que foi aprovado para durar 14 (catorze) anos.
garanta o direito da Caso isso venha ocorrer, sem uma
prorrogação ou substituição do atual fundo em
3
A Lei n° 11.738, de 16 de junho de 2008, instituiu o piso salarial vigor, a educação básica como um todo pode
profissional nacional para os profissionais do magistério público da passar por um retrocesso no que tange o seu
educação básica, regulamentando a disposição constitucional
(alínea ‘e’ do inciso III do caput do artigo 60 do Ato das Disposições
financiamento. Como aponta Sena, com o seu
Constitucionais Transitórias).

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 15, n. 2, p.01-09 abr/jun 2018. DOI: 10.5747/ch.2018.v15.n2.h356
7

término legal em 2020: “[...] o Fundeb deixará de políticas sociais (2015,


ter suporte jurídico, hipoteticamente havendo p. 7).
retorno à situação anterior ao Fundeb e ao
próprio Fundef – deixaria de haver o mecanismo Para a educação infantil, uma das etapas
redistributivo dos fundos contábeis” (2015, p. 5). da educação básica que poderia ser mais afetada
Desta maneira, o Brasil pode então regressar ao pelo fim do FUNDEB, a proposta da PEC nº 15, de
sistema de convênios, relegados às questões 2015, não apenas procura manter a garantia de
político-partidárias, como já ocorria recursos fixos para sua manutenção, mas busca
anteriormente, antes da criação dos fundos de trazer outras mudanças na lei atual. Uma dessas
financiamento educacional (SENA, 2015). mudança podem afetar diretamente a educação
Nesta perspectiva, os municípios infantil:
brasileiros, responsáveis pela oferta da educação A PEC nº 15, de 2015, propõe inserir o
infantil, podem ter problemas financeiros para Art. 212-A4 na Constituição Federal de 1988 e
manutenção das suas creches, da pré-escolas e tem como premissa alterar o termo “educação
dos anos iniciais do ensino fundamental, já que básica”, que se encontra no Art. 60, inciso III, do
economicamente recebem menos recursos de Ato de Disposição Constitucional Transitória, para
impostos, do que os estados e a União. E os mais “[...] educação básica obrigatória e gratuita dos
afetados serão os municípios menores, pois são quatro aos dezessete anos e ampliação da oferta
duplamente prejudicados, já que sofrem para as crianças de até quatro anos de idade”.
injustiças por parte da redistribuição do atual Assim, a educação infantil, já consolidada
FUNDEB e suas arrecadações são bem inferiores como modalidade da educação básica, passaria a
se comparadas aos municípios maiores e ter mais um reforço legal para o seu atendimento
desenvolvidos industrialmente. financeiro, não deixando nenhuma justificativa
Como proposta para tentar evitar que para interpretações equivocadas de que a etapa a
essa desestruturação ocorra na educação básica ser privilegiada pelo novo fundo deverá ser a
com o fim do FUNDEB, está tramitando na faixa etária dos 4 (quatro) a 5 (cinco) anos, idade
Câmara dos Deputados do Brasil uma PEC de escolar obrigatória.
autoria da deputada Raquel Muniz (PMDB) desde Desta maneira, ainda que não seja um
2015. Esta PEC nº 15, de 2015, tem como objeto mecanismo ideal de financiamento educacional, a
principal transformar o atual FUNDEB de Ato das manutenção do fundo contábil como financiador
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da educação se faz necessária. Os retrocessos
em um fundo permanente através de sua que a educação básica brasileira e,
inclusão na Constituição Federal. principalmente, a educação infantil poderiam
Segundo Sena, a PEC nº 15, de 2015, sofrer são incalculáveis, podendo retroceder em
além da proposta de tornar o atual FUNDEB em algumas conquistas que foram obtidas nos
um instrumento permanente de financiamento últimos anos. Conquistas estas que, ainda que
da educação básica pública, também preconiza: tenham sido pequenas diante dos desafios
enfrentados pela educação infantil, foram
[...] corrige esta lacuna, significativas para a manutenção do sistema de
ao trazer a previsão do ensino brasileiro nas últimas duas décadas, com a
planejamento, também, criação dos fundos contábeis de financiamento
para a ordem social. [...] educacional.
contém importante
avanço, ao estabelecer CONSIDERAÇÕES FINAIS
que o planejamento,
como processo, deve 4
Art. 3º É inserido o art. 212-A na Constituição Federal com a
prever a participação da seguinte redação: "Art. 212-A. Os Estados, o Distrito Federal e os
sociedade na Municípios destinarão parte dos recursos a que se refere o caput do
art. 212 da Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento
formulação, da educação básica e à remuneração condigna dos trabalhadores da
acompanhamento educação, respeitadas as seguintes disposições: [...] III - observadas
as garantias estabelecidas no § 1º e nos incisos I, II, III e IV do caput
contínuo,
do art. 208 da Constituição Federal e as metas de universalização da
monitoramento e educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos dezessete
avaliação periódica das anos e ampliação da oferta para as crianças de até quatro anos de
idade, estabelecidas no Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2015
grifo nosso).

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 15, n. 2, p.01-09 abr/jun 2018. DOI: 10.5747/ch.2018.v15.n2.h356
8

Dentro de uma perspectiva histórica,


pode-se perceber que a educação infantil no REFERÊNCIAS
Brasil não foi uma prioridade do Estado, sendo BANCO MUNDIAL. Prioridades y estrategias para
aceita como parte da escolaridade necessária la educación: examen do Banco Mundial.
apenas a partir da Constituição Federal de 1988 Washington, DC: World Bank, 1995.
e, principalmente, com a LDB 9.394/96, que
instituiu a educação infantil como modalidade da BRASIL. Constituição (1988). Constituição da
educação básica. República Federativa do Brasil. Brasília-DF:
Mesmo com essas conquistas legais, até o Senado Federal, 1988.
ano de 2007, a modalidade não recebia recursos
financeiros específicos e suficientes dos estados e _____. Estatuto da criança e do adolescente. Lei
da União para sua manutenção, já que sua oferta federal nº 8069, de 13 de julho de 1990. Dispõe
ficava exclusivamente a cargo dos municípios, sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e
entes federados com menores capacidades de dá outras providências. Disponível em:
arrecadação. A cooperação legal entre os <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L806
municípios, os estados e a União para a 9.htm>. Acesso em: 12 jun. 2017
manutenção do sistema de ensino também não
acontecia de maneira satisfatória. _____. Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Com a criação do FUNDEB, em 2006, a Nacional. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
educação infantil passou a ser atendia por esse 1996. Estabelece as diretrizes e bases da
fundo contábil de financiamento da educação. educação nacional. Disponível em:
Assim, essa modalidade começou a receber <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Leis/L93
recursos dos respectivos estados e da União, que 94.htm.>. Acesso em: 12 jun. 2017
complementavam as verbas do fundo,
propiciando certos avanços no atendimento da _____. Proposta de Emenda à Constituição nº
modalidade pelos municípios, principalmente os 15, de 2015. Da Sra. Raquel Muniz e outros.
de maior população e melhor desenvolvimento Disponível em:
econômico. <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/pr
Mas, mesmo com esses recursos do op_mostrarintegra?codteor=1317615&filename=
fundo, verifica-se que o FUNDEB não conseguiu PEC+15/2015>. Acesso em: 12 jun. 2017.
romper com as desigualdades no atendimento
das crianças nos municípios mais pobres e com _____. Lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013.
menor capacidade de arrecadação. No entanto, Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
seria errôneo dizer que o FUNDEB não tenha 1996. Disponível em:
possibilitado uma ampliação no atendimento das <http://www.planalto.gov.br/CCIVil_03/_Ato201
crianças, no Brasil, após a sua implantação. Ainda 1-2014/2013/Lei/L12796.htm>. Acesso: 04 abr.
que não seja considerado um instrumento ideal 2018.
para o financiamento educacional, o fundo
possibilitou um fluxo financeiro fixo e contínuo DAVIES Nicholas. FUNDEB: a redenção da
anualmente aos municípios, o que por si só educação básica? Educação & Sociedade.
representou uma grande conquista para os Campinas, v. 27, n. 96 - Especial, p. 753-774, out.
municípios responsáveis por manter a educação 2006.
infantil.
Com o seu fim, em 2020, as melhorias DECLARAÇÃO DE JOMTIEN. In: MENEZES,
proporcionadas ao atendimento da criança nas Ebenezer Takuno. Dicionário Interativo da
creches e pré-escolas podem ser prejudicadas. Educação Brasileira - Educabrasil. São Paulo:
Para isso, a proposta da PEC nº 15, de 2015, é Midiamix, 2001. Disponível em:
tornar o FUNDEB um fundo permanente de <http://www.educabrasil.com.br/declaracao-de-
financiamento educacional, para evitar que jomtien/>. Acesso em: 16 out. 2017.
ocorra um retrocesso nas conquistas
proporcionadas à educação básica no Brasil, após GASPAR, Maria de Lourdes Ribeiro. Os impactos
a implantação dos fundos contábeis: FUNDEF e do FUNDEB na Educação Infantil brasileira:
FUNDEB. oferta, qualidade e financiamento. Evidência,
Araxá, n. 6, p. 121-136, 2010.

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 15, n. 2, p.01-09 abr/jun 2018. DOI: 10.5747/ch.2018.v15.n2.h356
9

KHULMANN Jr., Moysés. Infância e educação


infantil – uma abordagem histórica. Porto
Alegre: Mediação, 1998.

UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação


Para Todos (Conferência de Jomtien). Tailândia:
Unesco, 1990.

ONU. Declaração dos direitos da criança, de 20


de novembro de 1959. Disponível em:
<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/
Crian%C3%A7a/declaracao-dos-direitos-da-
crianca.html>. Acesso em: 21 set. 2017.

SENA, Paulo. A PEC nº 15/2015 e o Novo


Fundeb. Câmara do Deputados: Brasília-DF, 2015.
Nota Pública.

Recebido para publicação em: 28/10/2017


Revisado em: 27/11/2017
Aceito em: 28/01/2018

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 15, n. 2, p.01-09 abr/jun 2018. DOI: 10.5747/ch.2018.v15.n2.h356

Você também pode gostar