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Anos 2000, 10 questões


CLÉBER EDUARDO, EDUARDO VALENTE E JOÃO LUIZ VIEIRA

Por que este gesto de retrospectar a produção É bem claro que, dez anos depois, inegavel- Por tudo isso, talvez pareça ainda mais im-
de uma década quando ela mal terminou? Em mente encontramos o cinema brasileiro em portante ter a oportunidade de parar e olhar
2001, praticamente o mesmo grupo de curado- outras bases. Tendo passado por um período para trás com um pouco de calma. Ter o tempo
res teve este mesmo impulso para o cinema certamente menos “dramático”, no qual a crí- de nos perguntarmos: o que vimos nessa dé-
dos anos 1990, motivado principalmente pela tica e a academia (até pelo processo de reno- cada mesmo?
ideia de que estes olhares no calor da hora re- vação e expansão pelo qual elas mesmas pas-
tiram sua maior força do fato das coisas ainda saram) se voltaram com bem mais frequência As escolhas
“estarem quentes”. Dessa forma, as areias do aos filmes e seus discursos. No entanto, talvez Claro que fazer uma curadoria a partir de
tempo ainda não tiveram tempo de se assentar até por isso mesmo o desejo de fazer mais pergunta tão básica e ampla é uma enorme
a ponto de cristalizarem os discursos de forma esta retrospectiva se impôs: seja pela falta de armadilha. Afinal, se em 2001 nos impressio-
mais unívoca, eternizando alguns filmes ao eventos mais “dramáticos” (nada de Collor, de namos ao descobrir que os anos 1990 tinham
mesmo tempo em que literalmente apagam Carlota Joaquina, de novas leis de incentivo, de produzido mais de 200 filmes de longa-me-
muitos outros da memória coletiva. Não esta- indicações ao Oscar de Filme Estrangeiro, etc), tragem no Brasil, agora nos vemos frente a
mos falando de arte cinematográfica apenas, seja pela multiplicidade de discursos espalha- uma década em que num só ano (2009) ul-
mas de processo cultural e histórico do cinema. dos por uma série de novos espaços (ao longo trapassamos 150 longas feitos em todo o país.
Há dez anos, duas constatações se impunham: da década testemunhamos tanto o surgimen- Expressão essa (“todo o país”) que usamos de
o extenso drama de uma década onde o cine- to e consolidação de uma série de periódicos maneira absolutamente proposital, pois a lis-
ma brasileiro se reinventou em novas bases de críticos, impressos ou virtuais – culminando ta de filmes do período mostra que a produção
produção; e o fato de existir um certo vácuo de até com a volta da Filme Cultura – como a audiovisual é hoje uma realidade por todo o
pensamento sobre o que o conjunto daqueles multiplicação das escolas de cinema e cursos mapa nacional.
filmes nos deixava ver de fato a partir de suas de pós-graduação na área), o sentimento do- Ambas estas multiplicações (de números
construções estéticas e narrativas, de suas pro- minante talvez seja de uma certa indefinição, de títulos produzidos e de abrangência ge-
posições dramatúrgicas, simbólicas ou políticas fruto de um sufocamento pelo excesso – tal- ográfica) se devem principalmente, é claro,
– uma vez que as discussões sobre financiamen- vez sintomático destes tempos de internet, de ao grande evento da década no que tange à
to e produção pareciam dominar o discurso da informação multiplicada, espalhada, muitas produção audiovisual: a consolidação da ver-
então propalada “retomada”. vezes indistinta. dadeira revolução causada pelo advento e
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desenvolvimento da tecnologia digital – algo listas individuais de críticos ou daquelas or- brasileiro desde sempre, como perceber alguns E que resulta num star system que se afirma
que começou a surgir como realidade já no fi- ganizadas por publicações a partir de filmes traços realmente únicos e distintivos da produ- pelo cinema antes de tudo (os citados Mello
nal da década de 1990, mas cujas ramificações destes dez anos). ção deste período específico. Desse modo, logo e Nachtergaele, mas também Wagner Mou-
é difícil de acreditar que alguém conseguisse Neste impulso abrangente sabemos que vimos que precisaríamos recolocar, em novos ra, Lázaro Ramos, João Miguel, Rosanne Mu-
prever. Dado um panorama tão numeroso e várias das potências únicas e individuais de termos, perguntas que se referiam a temas que lholland, Leandra Leal, Irandhir Santos, Hermila
espalhado, acreditar que seríamos capazes de filmes e realizadores não podem ser contem- já tínhamos visitado nos anos 1990 (a cons- Guedes). Nesse mesmo período, nomes como
resumir esta década, então, através de 45 lon- pladas aqui – e até por isso decidimos nunca trução de uma imagem de Brasil nos filmes, a os dos preparadores de elenco Fátima Toledo
gas (além de alguns curtas, médias e outros exibir mais do que um título por realizador. Sa- (in)definição de um cinema popular, a relação e Sergio Penna se tornaram paradigma e grife,
materiais audiovisuais) seria algo menos utó- bemos que haverá tempo e espaço para o pen- com o exterior), e, ao mesmo tempo, encontrar tanto quanto alguns dos diretores centrais.
pico do que simplesmente tolo. samento canônico, assim como para o estudo novos focos de atenção (algumas recorrências Em suma, todos estes pontos não deixam
Então, que fique logo claro: não é isso (um de casos. Para nós aqui, no entanto, o que nos temáticas ou estéticas, a explosão do “audiovi- de estar na mostra, espalhados pelas questões
resumo, muito menos uma definição) o que motivou acima de tudo foram as relações que sual” sufocando um pouco o tal “cinema”). que acabamos escolhendo nos fazer. Questões
queremos fazer aqui. Não é por acaso que esta estes realizadores e filmes nos permitiram es- Na medida em que fechamos nossa lista estas que, para concluir, não custa lembrar:
mostra se estrutura a partir de dez questões – tabelecer uns com os outros – algumas vezes de questões, curiosamente fomos descobrin- não são estanques nem as únicas que se pode
termo que usamos aqui não só no sentido de por motivos óbvios e propositais, em vários do que algumas vertentes que nos pareciam (deve?) fazer a este grupo de filmes. Optamos
temas, mas na forma de perguntas mesmo. através do acaso e da total inconsciência. a princípio essenciais para a mostra (como a por escolher alguns filmes para ilustrar com
Pois foi assim que trabalhamos esta curado- recorrência de filmes sobre o período da dita- mais clareza as perguntas que nos fazemos –
ria: partindo de uma listagem do todo dessa As questões dura; a grande presença dos personagens ado- e, acima de tudo, que fazemos aos filmes e aos
produção, tentar ver quais perguntas sobres- Ao partirmos em busca destas aproximações lescentes e jovens; as novas configurações da debatedores convidados para os eventos no
saíam; sobre quais temas um olhar de con- possíveis, não quisemos nos limitar a um só eterna questão dos núcleos familiares), mesmo Rio e em SP. Mas assim como vários outros fil-
junto nos requeria que nos debruçássemos e caminho: temas, formatos, gestos estéticos, que se confirmassem como presentes e poten- mes não exibidos aqui poderiam ilustrar estas
pensássemos, munidos de sincera curiosidade. questões de produção ou de relação com um tes ao longo da década, não chegavam a nos questões (nos textos introdutórios a cada uma
Se a curadoria acabou sendo pautada, aci- público idealizado (seja o espectador, sejam os inspirar verdadeiras perguntas para além da delas, que se seguem no catálogo, citamos
ma de tudo, por este movimento de conjunto, críticos ou curadores de festivais), todos e cada sua simples constatação como dados. Algo pa- sempre várias obras não exibidas pela mos-
esperamos que fique claro (e caso ainda não um destes aspectos foram colocados em jogo. recido com a constatação de que os atores, em tra), vários filmes que exibiremos poderiam
tenha acontecido, afirmamos aqui) que a lis- Por isso, as questões escolhidas, quando vistas muitos casos, mudaram de status, deixando de também ser colocados frente a outras das per-
ta dos filmes que exibimos não é, de manei- em conjunto, nos parecem também bastante ser matéria-prima a ser dirigida para cumprir guntas feitas. Nossa intenção, não custa correr
ra alguma, uma lista dos “melhores filmes da amplas – tanto quanto a produção do período. sua função dentro do conjunto, para se torna- o risco de repetir, não será nunca simplificar
década”. E por “melhores” nos referimos aqui Com isso, esperamos deixar explícita a multi- rem em muitos casos um colaborador criativo e e ordenar uma produção que não se pretende
não apenas a uma possível lista nossa, perso- plicidade de caminhos que esta produção nos autoral no processo de realização. Não deve ser racional e cheia de sentidos, mas sim permitir
nalíssima, de filmes favoritos, mas sim dizer permite trilhar, sem com isso nos banharmos por acaso que tanto um ícone do nosso cinema que comecemos, exatamente, a nos perguntar
que ela não se pretende nem mesmo uma lis- simplesmente nas águas sempre tentadoras (Helena Ignez) como dois dos mais marcantes o que mais ainda estes filmes podem sempre
tagem dos filmes mais significativos do perío- da “diversidade”. atores do período recente (Selton Mello e Ma- nos dizer. Porque, em última instância, essa é a
do (afinal, como seria possível uma lista destas Na medida em que nos surgiam as primei- theus Nachtergaele) estreiem como cineastas curiosidade (e paixão) que nos move: a de sa-
que não incluísse Edifício Master, Cleópatra ou ras questões, fomos percebendo que era im- ao longo da década. Fato é que há uma nova ber que os filmes sempre serão maiores que
Lavoura Arcaica – para ficarmos apenas em possível escapar de uma dinâmica onde preci- forma de lidar com os atores (no set e antes do as nossas ideias sobre eles – o que não nos im-
três títulos que não estão sendo exibidos na sávamos nos fazer (e fazer aos filmes) algumas set), um processo no qual o ator interfere mais, pede, pelo contrário, de querer “questioná-los”
mostra –,apesar de terem habitado inúmeras perguntas que parecem acompanhar o cinema ajuda a moldar em vez de ser apenas moldado. (sem, jamais, interrogá-los).
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Que país é esse? de uma evidenciação ideológica histórica: O


Signo do Caos, Quanto Vale ou é Por Quilo? e
Quase Dois Irmãos. Sganzerla, Bianchi e Murat,
rior havia transitado, em Doces Poderes, pelos
bastidores enlameados da política em Brasília.
Além, é claro, de Brava Gente Brasileira, filme
CLÉBER EDUARDO em tudo, são planetas cinematográficos dis- cujas intenções de “narrativa de origem” já se
tintos. O que os mobiliza, porém, encontra-se mostram no título (aliás, nos anos 2000 um
avizinhado: cada um deles à sua maneira quer outro filme também voltou lá atrás para expor
lidar com uma certa lógica brasileira como as sementes do “erro brasileiro”: Desmundo,
energia condutora. Ela é sarcástica e poética de Alain Fresnot, outra narrativa de fundação
em O Signo do Caos; demonstrativa e corrosiva de uma certa brasilidade).
em Quanto Vale ou é Por Quilo?; dramatizada Uma ponte. Doces Poderes é uma espécie
como ilustração de um quadro social em Qua- de capítulo anterior a Brasília 18%, o cético e
A pergunta aqui se coloca em pelo menos Esse encaminhamento histórico também se se Dois Irmãos. metafórico único filme de ficção de Nelson Pe-
duas camadas. Se reflete um ar de espanto, faz presente nos documentários dos anos 1960, O Signo do Caos penetra, pela superfície da reira dos Santos nesse século, posterior às suas
em uma perspectiva formalizada com indig- como Viramundo, Maioria Absoluta e A Opinião imagem explicitamente formalizada e discur- duas partes de Raízes do Brasil, sobre a obra e
nação por Renato Russo, também se abre a Pública, que procuram partir de algo particular siva, em balizas e entraves da cultura brasileira, a pessoa de Sergio Buarque de Holanda. Pelos
entender as formas de organização cinema- apenas para colocar as particularidades em com jatos de ironias demolidoras para nossos títulos e pelo personagem, pela passagem
tográfica do mundo socialmente localizado, perspectiva, para mostrar como as partes fa- desvios. Quanto Vale ou é Por Quilo? constrói pela noção de cordialidade, amplia-se a força
com a ambição de os filmes serem represen- zem parte de um processo maior e histórico. O sua fragmentação em cima de uma continuida- do nome próprio da nação na obra recente
tativos de um estado de coisas do país em enfoque é centrado no poder e na manipulação de histórica de má condução da sociedade pela de nosso mais longevo veterano. Importante
nosso tempo. Um país, portanto, como narra- de uma classe sobre a outra, em uma mentali- própria sociedade, de forma ampla e irrestrita. essa ponte para se salientar que, exceção feita
tiva, construção, alegoria, imaginário, forma- dade de conservação de forças a manter forças Quase Dois Irmãos toma diferentes momentos a José Padilha, são os veteranos e mais expe-
dor e formado, projeto e resultado. em potencial na coleira e com tapa-olhos. Era históricos e classes sociais para colocá-los em rientes que, por força da cultura ou por maior
Não se trata de novidade entre os filmes preciso fazer a análise da sociedade, tomar po- relação de continuidade (e nisso, tem algo de distanciamento, procuram olhar o conjunto
brasileiros. Desde antes do Cinema Novo, nos sição e usar o cinema como agente, não somen- semelhante com Quanto Vale ou é Por Quilo?).
anos 1960, havia uma reivindicação de olhar te como reflexo de uma dada ordem. Não tomo os três diretores ao acaso ou ape-
para nossa realidade, não apenas para recolher No caso dos filmes escolhidos para nossa nas para criar dissonâncias. Todos têm outros
uma justa aparência para nossas paisagens, programação, o país na tela não é aquele a ser filmes interessados em lidar com a imagem do
mas também para lidar com traços de síntese projetado como imagem consensual, a pátria país. Sganzerla, aliás, havia posto o nome do
das noções de país. Se não síntese, ao menos com identidade homogênea para estabelecer país no título de seu filme anterior, Tudo é Bra-
enfoques que, apesar de se dirigirem a algo um espaço consensual de pertencimento co- sil, num movimento de síntese e explosão ao
específico (ao sertão, à classe média, à favela, letivo, mas, justamente, o contrário disso. In- mesmo tempo; enquanto Bianchi terminara a
ao analfabetismo, à imigração), não bastam teressa a reação formal e discursiva ao curto- década anterior, no ano de 2000, com talvez o
em si mesmos. Claro que podemos pensar nos -circuito daquele país de retórica e símbolos, filme mais ambicioso em matéria de reflexão
primeiros filmes de Glauber Rocha, sobretudo embora, ao mesmo tempo, um curto-circuito crítica: Cronicamente Inviável.
Terra em Transe, mas também em Cinco vezes também com indícios de confirmação dos Já Lucia Murat realizou nessa mesma déca-
Favela (o original de 1962, ligado ao Centro Po- nossos estereótipos. Sintomatologias. da Olhar Estrangeiro, sobre a imagem do país
pular de Cultura), com a preocupação de en- Três dos cinco filmes exibidos nesse progra- pelo cinema lá de fora, com todas as distor-
sinar os espectadores sobre o funcionamento ma, com corpos, mentes, batimentos cardíacos ções em relação às nossas próprias distorções
das relações sociais com os pobres cariocas. e personalidades em tudo diferentes, partem simbólicas e existenciais; e na década ante-
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das coisas para além de suas especificidades. igualmente representações de uma falência resgatam a dimensão de classe social em seus Negação do Brasil, O Príncipe, Cidadão Boilesen.
Lembremos ainda de João Batista de Andrade de princípios. A corrupção torna-se matéria- enfoques, sem perder a noção do indivíduo ao Visões construídas com relações entre diferen-
com Vlado – 30 Anos Depois e Veias e Vinhos; -prima para o riso irônico e cínico, assim como se voltar para sua contingência social. É o que tes situações de contextos históricos e sociais,
ou Silvio Tendler com seus recentes documen- para a narrativa de aventura moral. procura Árido Movie, também filme pernam- mais ou menos coerentes em seu descarrilar.
tários de análise global. Poderíamos ainda co- Nos filmes de José Padilha, de Ônibus 174 bucano, esse de um expoente dos anos 1990, Os finais do protagonista de O Principe, no ae-
locar em relação com esses filmes e diretores aos Tropa de Elite, passando ainda por Garapa Lirio Ferreira, que procura conciliar um filme roporto, de partida; ou de Tropa de Elite 2, com
a obra de Carlos Reichenbach na década, com (no qual se vai ao indício número um dos erros de personagem com um filme de retrato de ló- o discurso do beco sem saída, são evidências
Garotas do ABC e Bens Confiscados, sobretudo, nacionais: a fome), o diagnóstico é igualmente gica de um lugar (sertão de Pernambuco). desse amargo olhar dos últimos 10 anos, pelo
no qual a trilha dos personagens, antes de nos desanimador. Se Redentor prima pelo humor Outros filmes procuraram lidar de forma menos nesse segmento sem medo de lidar
mostrar algo só deles, remete a um estado de delirante, os filmes de José Padilha, às vezes menos direta ou mais recortada com a realida- com as questões mais amplas da sociedade e
coisas do qual está dissociado e, eventualmen- nas pistas de Michael Moore (mais que nas de de brasileira. Fala Tu e PQD, ambos de Guilher- da história do Brasil.
te, do qual funciona como representação Costa-Gavras, com quem tem sido comparado), me Coelho, flagram a juventude em trânsito, ou Dez anos que, não custa lembrar, significam
Retorno à programação, agora aos reali- propõem uma autópsia das irregularidades estagnada, na luta por um lugar. Mundo dos um período iniciado no final da segunda ges-
zadores de uma outra geração. Em Redentor, sem abrir mão do compromisso com o espetá- sonhos e do trabalho, uma realidade como Big tão de Fernando Henrique Cardoso e que atra-
parte-se de uma lógica do absurdo, contem- culo intensificado. É o sensacionalismo político. Brother, sem lugar para todos, lógica de elimi- vessa todo o período de divulgação de melho-
porânea, já sobrenatural e over, travestida O quinto filme exibido pelo programa, nação e persistência. No fim de Linha de Passe, rias sociais do governo Lula. Não estamos aqui
de fantasia, para se construir sua debochada Baixio das Bestas, evidencia a relação entre diante de um pênalti para bater rumo ao fu- no mesmo segmento de Pelé Eterno e 2 Filhos
crônica, que guarda laços com Cronicamente comportamento humano e entorno econô- turo, temos uma situação similar: o passo para de Francisco, vencedores a custo de trabalho,
Inviável, sobre a vocação para a vantagem de mico-social, algo que já era deixado no ar em o degrau acima da vida depende de esforço e superadores de dificuldades, predestinados a
todas as classes sociais. Pode-se estabelecer Amarelo Manga, o filme de estreia de Claudio de detalhes sobre as quais não se tem controle. dar certo. Esse segmento abordado nesse tex-
uma relação com o O Invasor, ou mesmo com Assis. Embora as relações entre contexto e Como já havia sido mostrado nas outras obras to, e nessa programação, é o do país dos erros
Fim da Linha – um no registro da tensão narra- ação individual não saltem aos olhos, há in- de Walter Salles, de Terra Estrangeira a Central e da errância constante. Podemos encontrar
tiva, outro no da comédia de erros; mas ambos dícios dessa associação, de modo a conectar do Brasil, a ausência do pai é uma questão uma ponte com um dos marcos inicias da re-
uma decadência econômica na Zona da Mata quase metafórica, uma orfandade que vai bem tomada nos anos 1990: Carlota Joaquina.
pernambucana com uma série de condutas além da falta do pai biológico. Podemos afirmar ainda, sem muitos ris-
sintomáticas de um estado de suspensão de A juventude, aliás, é sempre um bom ter- cos de erro grande, que, entre todas as ques-
qualquer limite. mômetro para se medir a saúde de um país tões aqui levantadas para essa mostra, essa
Que país é esse? Não é bom em nenhum em suas representações cinematográficas. Po- é a mais deslocada dos ventos da contempo-
dos filmes. Não possui saídas. Essas represen- demos ver o descontrole da gravidez precoce raneidade, ao menos para parte do discurso
tações são mais alegóricas ou mais próximas em Meninas e as desigualdades sociais na ida- crítico de olho aberto para flagrar traços de
do naturalismo, mas se colocam como narrati- de escolar em Pro Dia Nascer Feliz, mas tam- representação e construção de sentidos mais
vas perspectivas, construções de visões e pon- bém o comportamento bestial dos rapazes de perspectivados. O encaminhamento retóri-
tos de vista claros sobre certos traços do país. Cama de Gato, no qual as entrevistas com jo- co e cinematográfico em parte dos filmes da
Eventualmente, essa clareza é aludida, não ex- vens na rua, usadas para comentar as atitudes nova geração para a sensação de experiência,
plicitada. Podemos encontrar essa caracterís- dos personagens, revelam, com esse método latência e ambiência, procurando o efeito de
tica em outros filmes pernambucanos, além estatístico, a procura pela transformação de presença ou efeito poético como norte, quase
dos de Claudio Assis, como nos casos de Um um caso isolado em caso sintomático. se opõe a essa vertente na qual a narrativa e as
Lugar ao Sol, Avenida Brasília Formosa e Pacific, Esse mesmo país marcado por tantas rugas estratégias cinematográficas são formas de se
dirigidos por estreantes dos anos 2000, que e rusgas é mostrado em seu pior ainda em A pôr no mundo. E contra ele.
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Baixio das Bestas O Signo do Caos Quanto Vale Quase Dois Irmãos Redentor
de Cláudio Assis de Rogério Sganzerla ou É Por Quilo? de Lucia Murat de Cláudio Torres
(2006, 82 min) (2003 , 80 min) de Sérgio Bianchi (2004, 102 min) (2004, 95 min)
(2005, 104 min)
Uma jovem de 16 anos é ex- As latas do filme It’s All True A saga de duas famílias O jornalista Célio Rocha
plorada e mantida dentro de chegam ao Brasil e são pron- Uma analogia entre o antigo iniciada com a amizade, nos recebe de Deus a missão de
casa pelo avô em um pequeno tamente apreendidas pelo dr. comércio de escravos e a atual anos 1950, entre um jornalis- salvar a alma de seu amigo
povoado na Zona da Mata Amnésio, que fica obcecado exploração da miséria pelo ma- ta e um sambista. Seus filhos de infância, o corrupto cons-
pernambucana. Enquanto isso, em censurar e banir a obra rketing social, que forma uma encontram-se, anos depois, na trutor Otávio Sabóia. Uma
jovens promovem orgias violen- para evitar qualquer exibição. solidariedade de fachada. O fil- década de 1970, no presídio de tarefa impossível: mas Deus
tas com prostitutas do povoado. Simbolicamente, Sganzerla me revela as contradições de um Ilha Grande. O primeiro como vai dar uma mãozinha!
As vidas de todos se entrelaçam coloca a censura e a burocracia país em crise de valores através um preso político e o segundo
em um drama sobre a condição da produção cinematográfica desse paralelo entre a época da como um preso comum. Direção: Cláudio Torres
da mulher naquela região. como os dois principais inimigos escravidão e os dias de hoje. Produção: Cláudio Torres e
da arte e da expressão de ideias. DIREÇão e Produção: Leonardo Monteiro de Barros
Direção: Cláudio Assis Direção: Sérgio Bianchi Lucia Murat Roteiro: Elena Soárez,
Produção: Julia Morais direção, Produção e Produção: Patrick Leblanc Roteiro: Lucia Murat Fernanda Torres e
e Cláudio Assis roteiro: Rogério Sganzerla Roteiro: Sérgio Bianchi e Paulo Lins Cláudio Torres
Roteiro: Hilton Lacerda Fotografia: Nélio Ferreira e Eduardo Benaim Fotografia: Jacob Sarmento Fotografia: Ralph Strelow
Fotografia: Walter Carvalho e Marcos Bonisson Fotografia: Marcelo Solitrenick, Hugo Kovensky Montagem: Vicente
Montagem: Karen Harley Montagem: Silvio Renoldi Corpanni e Jacques Cheuiche Kubrusly
Elenco: Mariah Teixeira, e Rogério Sganzerla Montagem: Paulo Montagem: Mair Tavares Elenco: Pedro Cardoso,
Fernando Teixeira, Caio Blat Elenco: Otávio Terceiro, Sacramento Elenco: Caco Ciocler, Miguel Falabella, Camila
e Matheus Nachtergaele Sálvio do Prado, Helena Elenco: Ana Carbatti, Flavio Bauraqui, Pitanga e Fernando Torres
Ignez e Guaracy Rodrigues Claudia Mello, Herson Werner Schünemann
Capri e Ana Lucia Torre e Antonio Pompêo
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Para onde vão


nossos heróis? convicção de cada um deles em suas atitu-
des. São jovens com dupla personalidade, que
fazem de si mesmos uma empresa, um em-
Em todos esses casos, nos quais os perso-
nagens permanecem vivos, não há questiona-
mentos. A vida ali é para ser divulgada. Filmar
CLÉBER EDUARDO preendimento, ou apenas para curtir, ou para personagem vivo significa divulgar suas pro-
ascender econômica e socialmente. Nossos ezas, seja ele Oscar Niemeyer ou Rita Cadillac,
heróis tortos: um regenerado, outro punido, o essas celebridades das formas. Não há, entre
terceiro ainda convicto ao final. nós, o hábito de se filmar contra quem ainda
As cinebiografias privilegiaram nessa dé- respira – sequer contra quem já virou pó da
O sentido da vida começa com a morte. Como Johnny, quase fora do filme (na cartela final), cada personalidades célebres pelo estatuto terra, mas permanece vivo nas mentalidades,
dizia Pasolini, só a morte estabelece o fim para há transformação (da vida de prazeres ilegais diferenciado de suas realizações e experiên- iconografias e imaginações. Deixa-se para ou-
a trajetória, organiza o processo da vida, faz para o aprendizado da vida sem prazeres e ile- cias, como as de Johnny, Marcelo e Bruna. Em tras mídias, para as disciplinas. Nesses casos, a
dela uma narrativa. Os filmes baseados nessa galidade). Para Cazuza, outro herói da curtição outros casos, porém, não há subversão, aten- agenda do cinema passa a ser positiva como a
lógica (de síntese da vida em suas mutações) da Zona Sul carioca (como Johnny), é irreversí- tados à lei ou à moral por parte dos persona- dos líderes governistas no congresso, de am-
compuseram, na última década, um dos seg- vel. Ele paga por sua vida com a forma (a AIDS) gens, mas confirmação de uma ordem. Vidas pliação da imagem e do poder de seu biografa-
mentos mais frequentes do cinema brasileiro, de sua morte. especiais, talentos reconhecidos. Podemos en- do. Legitimação, consagração. Passaporte para
tanto na ficção quanto no documentário – po- Já em VIPs, Marcelo (Nascimento da Rocha), contrar essas características em Pelé Eterno, 2 a posteridade. Pode-se chamar esse segmento
rém, não apenas com protagonistas mortos, gênio da falsificação de identidade para aden- Filhos de Francisco e Lula – O Filho do Brasil, to- de “eternização precoce”.
mas também com trajetórias em aberto. Al- trar à alta sociedade mundana, é desmascara- dos casos de biografados vivos no lançamen-
guns são sobre anônimos; a maioria, porém, do. Como Johnny, inventa outro nome – Henri- to dos filmes, todos bem-sucedidos em suas
sobre célebres. Em certos filmes, importa o fim, que Constantino, filho do dono da Gol. Sobe e atividades (um no esporte, outro na cultura, o
seja ascensão ou declínio. Em outros, importa desce. Vive seu sonho, seu outro eu ideal, mas terceiro na política). O rei do futebol, os reis do
o meio, o processo. Seja lá o que façam da vida, cai na real. Marcelo e Johnny seguem trajetó- pop campestre e o rei da popularidade presi-
esses personagens precisam fazer e ter feito rias distintas, mas primas entre si, com uma dencial. Predestinação monárquica.
bem, ou de forma muito particular, quando perda da noção de lei e de fronteiras. Porém, Esses três casos se somam à onda de docu-
não peculiar. São trajetórias de quedas e de enquanto Johnny vai ao purgatório, Marcelo é mentários musicais sobre gente viva, também
êxitos, mas sempre extraordinárias, no sofri- poupado disso no filme. sobre predestinação e persistência (talento di-
mento ou na vitória. Temos nesses casos personagens midiati- ferenciado + trabalho), como Loki, Herbert de
Em Meu Nome Não é Johnny, quando in- zados por suas subversões de conduta antes Perto e Titãs –A Vida Até Parece uma Festa, três
terrogado sobre seu trabalho, origem de sua de virarem tema de filmes (curiosamente é o grifes do pop brasileiro. Se para os Titãs o mais
renda, João Estrela fica mudo. Depois, confir- mesmo caso do primeiro grande sucesso da importante é a insistência, para Arnaldo Batis-
ma: seu trabalho era o prazer, vendia drogas nova década, Bruna Surfistinha). Todos do an- ta e Herbert Vianna, ambos nocauteados em
para comprá-las. Herói do hedonismo, Johnny dar de cima ou com um pé na cobertura (de seus percursos, a palavra-chave é resistência
termina preso, trancafiado em hospício, sem penetra). Nenhum deles é tratado de forma em nome da recuperação. Ressurreição quase
o sorriso dos tempos de farra. A cartela final crítica: pode-se dizer mesmo que, apesar de – o que, mais uma vez, é coisa de predestinado.
nos informa sobre o êxito do personagem na sofrerem, suas trajetórias não se afirmam pelo Ainda mais quando se é artista, essa gente já
vida fora da tela após cumprir sua pena. Para aprendizado com os maus passos, mas pela tão diferenciada.
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Temos na música os filmes sobre Noel Rosa, Vi- 1930, a Henrik Boilesen, o financiador de dita- Seriam esses personagens nossos heróis
nicius de Moraes, Cazuza, Dzi Croquetes e Ma- dura nos anos 1970, estrangeiro, poderoso e de da última década? Seriam nossos modelos,
monas Assassinas. Os três últimos lidam com pele clara, temos dois polos distintos: o do po- nossas inspirações? Ou também podem ser
personagens de percursos catárticos na morte der do alto e o da margem. Temos ainda duas alertas para nossas distorções? Cada vida
(os dois primeiros a conta-gotas e por doenças, diferentes modalidades de olhar – para além de narrada, transformada em uma história, con-
o terceiro em um acidente aéreo – todos com uma ser ficção, a partir de alguém que existiu; tém um projeto de olhar. Serve à narração
a trajetória interrompida na potência de vida). e outra ser documentário, baseado na vida de para expor alguns comportamentos e seus
Já o documentário sobre Simonal, produzido um homem e de um país. Madame Satã é uma efeitos. Há os vencedores (os reis), há o sobe e
por um de seus filhos, visa a limpar as man- celebração da reação do rebelde em nome de desce dos subversivos (que se redimem ou se
chas políticas de seu passado, tanto quanto, uma identidade sem negociação. O corpo aqui é regeneram cedo ou tarde), dos mártires que
ou até mais que, a eternizar seu talento em para prazer e defesa. Cidadão Boilesen também tombam (algo fora de moda), dos dentro da
uma narrativa de vida. parte do corpo (a tortura), mas pela perspectiva lei (em relação ao trabalho). Revolucionários,
A música tem cumprido o papel de maté- de fora, não de torturador ou torturado, mas de negociadores, persistentes, subversivos, prag-
ria-prima de uma discursividade em alguma uma narração fílmica empenhada em rastre- máticos, predestinados. O herói da última
medida nacionalista, no documentário sobre- ar fatos e relações, bem à moda do comentá- década, se herói foi, vendeu essas caracterís-
tudo, que não apenas afirma a superioridade e rio americano pop e televisivo. O protagonista, ticas. Não são unidirecionais essas “qualida-
a riqueza de um traço cultural brasileiro, mas raridade em nosso cinema, é posto na parede, des”, como não são homogêneas as funções
também permite aos filmes lidar com o passa- não sem ironia, não sem ambiguidade, mas sociais desses heróis: presidente, jogador, es-
do do país. Esse passado cultural, em diferen- não apenas ele, assim como todo um sistema. tilista, cantores, prostituta, traficante, falsário,
tes aspectos, conecta arte e política. Por outro Temos a afirmação de um malandro rebelde e chacrete, arquiteto e por aí vai. Não são mo-
Já nos casos de documentários sobre anôni- lado, filmes sobre o passado político, como o questionamento do estrangeiro conservador. delos, mas, da parte dos filmes, são compre-
mos, menos ou mais situados no anomimato, Olga e Zuzu Angel, procuram alterar a cultura Um reage com violência, o outro a terceiriza. endidos ou exaltados.
como o baterista Toucinho de Sistema de Ani- masculina. Visto como campo dos homens, a Cidadão Boilesen é incomum entre nós. Há
mação, ou como as irmãs cegas de A Pessoa é política nesses filmes é missão das mulheres. uma cultura do olhar em progressão no cine-
para o que Nasce, ou como a operária de lixão Olga passa de uma burguesa revoltada com ma brasileiro contemporâneo (antes tão inte-
no filme com seu nome, Estamira, procura- sua condição para a posição de soldado da ressado nos personagens tombados em per-
-se a sabedoria singular dos humildes talen- revolução comunista. A combatente caída ter- curso). Esse olhar dirige-se para uma afirmação
tosos: gente com capacidades sensíveis, mas mina como uma mãe, presa, à espera de uma da visão positiva dos personagens centrais, não
atolados em problemas próprios e sociais. É o morte logo à frente. Zuzu Angel faz caminho importa o que façam no filme, se traficam dro-
segmento da produtividade do personagem li- contrário, da maternidade (enlutada) para o gas ou se tentam ser artistas, se cobram pelo
mitado. Não existe nesses filmes a ordenação posto de guerreira, sem ruptura com sua clas- sexo ou se dedicam ao esporte. Todos os perso-
da cinebiografia de famosos, que parte de tra- se (como Olga), mas em defesa dela (via seu nagens são modelos de algo, símbolos de algo,
jetórias conhecidas, mas sim uma construção filho) contra a ditadura militar nos anos 1960- sintomas de algo, mas, independentemente de
fragmentada de um modo de vida e de pensa- 70. Ao contrário de Olga, heroína mexicana qualquer outro aspecto, eles são celebrados por
mento desses personagens inusitados. com figurino de esquerda romântica genérica, viverem de certo modo, por terem certos talen-
A maior parte dos filmes baseados em ce- Zuzu quer a velha ordem, a ditadura sem incô- tos, mesmo que, em alguns casos, os talentos
lebridades ou singularidades de diferentes modos, não um confronto com ela. sejam caçados, com consequente depressão (de
áreas, porém, é centrada em personagens já De Madame Satã, o marginal homossexual, filme e personagem). Eventualmente, termina-
mortos, de momentos históricos já estudados. negro e bom de briga da Lapa, no Rio dos anos -se com o ordenamento da vida.
24 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 25

2 Filhos de Cidadão Boilesen Madame Satã Meu Nome Simonal – Ninguém


Francisco de Chaim Litewski de Karim Aïnouz Não é Johnny Sabe o Duro que Dei
de Breno Silveira (2009, 92 min) (2002, 105 min) de Mauro Lima de Cláudio Manoel, Micael
(2005, 127 min) (2007, 107 min) Langer e Calvito Leal
O documentário revela as Bandido, amante, rebelde, (2008, 86 min)
Incentivados pelo pai Francisco, ligações de Henning Albert homossexual, pai adotivo, Jovem carioca que, nos anos
Mirosmar e Emival tornam-se Boilesen (1916-1971), presidente marginal, João Francisco dos 1980, ingressa no tráfico. Sem História da ascensão e queda
músicos de sucesso no interior do famoso grupo Ultra, da Ul- Santos reinou absoluto nas arma nem violência, usando de Wilson Simonal, cantor que
do Brasil, até um acidente tragaz, com a ditadura militar, vielas da Lapa carioca dos anos quase exclusivamente seu conseguiu status de estrela
interromper a carreira da dupla. ajudando no financiamento da 1930, onde inventou sua própria poder de persuasão, o jovem numa época em que no Brasil
Anos mais tarde, Mirosmar repressão violenta, e também mitologia, tornando-se “Mada- João vira o poderoso chefão isso era raridade para artistas
volta a cantar, sob o nome de a sua participação na criação me Satã”. A história se passa em das drogas na Zona Sul do Rio, negros. Um incidente nunca
Zezé Di Camargo, mas a fama da temível Oban – Operação 1932, momento em que o sonho abastecendo a burguesia e a esclarecido, envolvendo agentes
só chega quando se junta ao Bandeirante, espécie de pedra de tornar-se uma estrela do pal- intelectualidade endinheirada. do DOPS e um ex-empregado
irmão Welson (Luciano). fundamental do Doi-Codi. co se transforma em realidade. seu, lançaram sobre ele a sus-
Direção: Mauro Lima peita de que fosse um delator
Direção: Breno Silveira Direção e roteiro: Direção e roteiro: Produção: Mariza Leão para as forças de repressão.
Produção: Breno Silveira, Chaim Litewski Karim Aïnouz Roteiro: Mauro Lima
Emanuel Camargo, Leonardo Produção: Chaim Produção: Isabel Diegues, e Mariza Leão Direção e roteiro:
Monteiro de Barros, Litewski e Pedro Asbeg Mauricio Andrade Ramos, Fotografia: Uli Burtin Cláudio Manoel, Micael
Luciano Camargo, Luiz Fotografia: Cleisson Walter Salles, Marc Montagem: Marcelo Moraes Langer e Calvito Leal
Noronha, Pedro Buarque de Vidal, José Carlos Asbeg Beauchamps, Donald K. Elenco: Selton Mello, Produção: Manfredo
Hollanda, Pedro Guimarães e Ricardo Lobo Ranvaud, Vincent Maraval Cléo Pires, Júlia Lemmertz G. Barretto, Rodrigo
e Rommel Marques Montagem: Pedro Asbeg e Juliette Renaud e Flávio Bauraqui Letier e Carlos Paiva
Roteiro: Patricia Andrade Fotografia: Walter Carvalho Fotografia: Gustavo Hadba
e Carolina Kotscho Montagem: Isabela Montagem: Pedro Duran
Fotografia: André Monteiro de Castro e Karen Akerman
Horta e Paulo Souza Elenco: Lázaro Ramos,
Montagem: Vicente Marcélia Cartaxo, Flávio
Kubrusly Bauraqui e Felipe Marques
Elenco: Ângelo Antônio,
Dira Paes, Dablio Moreira
e Marcos Henrique
26 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 27

de um outro gênero bastante brasileiro, que do-


minou o panorama dos anos 1970/80 na relação
com o público, a pornochanchada.
Curiosamente, uma das características
mais fortes dessa chamada “globochanchada”
tem sido justamente a constante descaracte-
rização do sexo como elemento naturalista e
naturalizado. Embora as tramas sempre girem
em torno de algum tipo de peripécia sexual, o
sexo nela surge quase sempre bastante saniti-
zado – são filmes, paradoxalmente, “assexua-
dos”. A referência à Rede Globo não é gratuita,
sa década. Infelizmente, como descobriram já que não apenas quase todos os diretores

Que gêneros são nossos?


dolorosamente cineastas donos de enormes destas comédias são oriundos da empresa
sucessos populares em décadas anteriores (Jorge Fernando, José Alvarenga, Wolf Maya, e
(como Carlos Reichenbach, José Mojica Marins, principalmente Daniel Filho) como invariavel-
Tizuka Yamasaki ou mesmo a Carla Camurati, mente seu elenco é formado por rostos conhe-
EDUARDO VALENTE que marcou o começo da “retomada”), nem cidos da telinha em personagens que se asse-
sempre o que é popular num momento histó- melham com as que criaram nesta. Como nas
rico pode ser repetido em outro. telenovelas e séries de TV da mesma emissora
O mesmo Altman defende que a principal (das quais nasceram pelo menos dois produ-
Em seu texto “Cinema e gênero”, o teórico Rick marca que define um “gênero cinematográfi- tos levados aos cinemas, Os Normais e A Gran-
Altman afirma que indústrias de cinema ain- co” é a repetição de determinadas ferramentas de Família), na maior parte das vezes suas tra-
da nascentes se caracterizam por “fraco cine- de estilo e configurações narrativas (e então é mas tratam de dilemas amorosos e sexuais da
ma de gênero”, enquanto as indústrias mais sintomático que entre as 20 maiores bilheterias classe média, a partir de resoluções e encena-
maduras produzem muitos filmes de gênero. nacionais do período estejam, inclusive nas duas ções em geral bastante infantilizadas. Como
Se levarmos ao pé da letra o teorema de Alt- primeiras colocações, nada menos do que qua- definiu o outro curador dessa mostra, Cléber
man, a indústria de cinema brasileiro parece tro continuações – algo até há pouco tempo não Eduardo: “A classe média vai ao circo dos afe-
ter amadurecido ao longo dos anos 2000, pois muito comum no cinema nacional). Se assim é, tos com sensibilidade de programa de TV”.
quando olhamos para nossa lista dos “top 20” ao longo da década nenhum outro gênero se No entanto, não bastava ser uma comédia
em termos de bilheteria entre os filmes nacio- estabeleceu tanto como tal quanto a comédia baseada na TV para ter garantia de sucesso,
nais (lista que pode ser consultada no anexo baseada em elementos herdados do humor tele- como comprovaram os dois filmes estrelados
II deste catálogo), percebemos, sem grande visivo brasileiro – algo que o cineasta Guilherme pelos comediantes do Casseta & Planeta –ne-
esforço, que podemos falar de alguns gêne- de Almeida Prado chamou num debate em Tira- nhum deles, porém, se encaixava nos modelos
ros tipicamente brasileiros marcantes nes- dentes de “globochanchada”, numa corruptela do gênero acima descrito. Da mesma forma,
28 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 29

tentativas de comédias que não seguiram a rio biográfico musical. Claro que este gênero, ambiente da favela, é esta exploração de dra- Moacyr Góes (Irmãos de Fé, 2004) não chegar a
cartilha “televisiva”, seja na sua forma (Ben- como seria de se esperar em se tratando de mas reais, onde a violência se torna catártica 1 milhão, e o mais recente Aparecida – O Milagre
dito Fruto, É Proibido Fumar, Podecrer, Tapete documentários, lida com valores totais meno- através do diálogo com os gêneros – algo que (2010), com lançamento quase seis vezes maior
Vermelho), seja na sua origem (quase todas res – tanto de custos como de resultados. No alguns outros filmes no período não consegui- ao de Bezerra de Menezes em número de có-
as adaptações de sucessos literários ou de pe- entanto, a partir do sucesso atingido por Vini- ram replicar, como foi o caso de Última Parada pias, nem chegar aos 200 mil espectadores.
ças de teatro), naufragaram ou ficaram muito cius (2005), dificilmente ele deixou de resultar 174, Salve Geral ou 400 Contra 1. Finalmente, vale pensar nos gêneros que
abaixo do esperado. Da mesma forma, a es- entre as melhores bilheterias dentre as dos Finalmente, talvez o mais surpreendente não encontraram a repercussão buscada nas
calação de grandes estrelas midiáticas por si documentários. Apesar de seu formato ser, no dentre os “gêneros brasileiros” de sucesso na bilheterias. A começar pelo cinema infantil,
não garante resultados, como nos lembra o geral, pouco afeito a novidades, ainda teve es- década seja o do cinema espírita. Embora te- que desde os anos 1970 dominou as bilhete-
caso sintomático do esquisitíssimo Acquária paço para incorporar alguns elementos docu- nha se tornado um fato em apenas três anos, rias brasileiras de forma absoluta com os fil-
(2003), que retirava Sandy e Júnior de sua área mentais “contemporâneos”, como a primeira e com apenas três filmes até agora, alguns mes dos Trapalhões e Xuxa. Esta última até
de conforto, colocando-os numa ficção cientí- pessoa (O Homem que Engarrafava Nuvens), discutem que as origens deste fenômeno já emplacou três de seus filmes no Top 20 da
fica ecológica que deu com os burros n’água o uso das imagens caseiras (Titãs) ou a trans- podiam ser sentidas bem antes, pela resposta década, mas todos nos primeiros anos. Na
na bilheteria. Altman já dizia: o gênero precisa formação do seu objeto em sintoma do Brasil acima da média mundial no Brasil a um filme medida em que os anos passaram, seus filmes
da repetição, muito mais do que de qualquer (Simonal). Foi, de qualquer maneira, um dos como Ghost (1990), ou pelo enorme sucesso foram declinando cada vez mais na bilheteria,
traço de originalidade. gêneros mais numerosos – o que talvez não das telenovelas que lidaram com este tema. e assim como os filmes de Renato Aragão não
Repetição, aliás, foi o que deu origem a um se deva apenas ao fascínio do brasileiro com o No entanto, mesmo com todos estes antece- se confirmaram mais como sucessos de mon-
dos mais curiosos subgêneros surgidos no sucesso da música brasileira. dentes, todo o mercado foi pego de surpresa ta. E os filmes que buscaram o público infantil
panorama nacional recente: o do documentá- A verdade é que as “histórias reais” são, des- pelo sucesso do até então desconhecido filme sem contar com nenhum dos dois, então, no
de os primórdios do cinema brasileiro, um dos Bezerra de Menezes (2008), cuja pequena pro- geral naufragaram em resultados medianos
grandes frutos de sucesso. Não deve ser sur- dução foi bancada por um grupo espírita. Seus ou muito fracos.
presa então que duas delas, ao unirem ícones 485 mil espectadores não o tornaram um dos Da mesma forma, gêneros com os quais o
da música popular com um cinema ficcional maiores públicos do período em números ab- cinema brasileiro tem encontrado pouco su-
marcado pela “superação” e pelas matrizes solutos, mas soaram como um sucesso e tanto cesso historicamente seguiram sendo pouco
melodramáticas, tenham resultado em dois dado o desconhecimento sobre o filme e seus representativos, como foi o caso do cinema po-
dos maiores sucessos do período: 2 Filhos de realizadores. Depois dele, tanto Chico Xavier licial ou de ação (pelo menos aquele sem a já
Francisco e Cazuza. Podemos encontrar, aliás, na (2010) como Nosso Lar (2010) foram lançados citada relação com a realidade). Os filmes do
mesma mistura (histórias reais e matrizes de em patamares enormes, e ambos se classifica- personagem Bellini ou tentativas mais ousa-
gêneros estabelecidos) o motivo por trás dos ram entre os dez maiores sucessos da década. das em coprodução ou formato como Federal
fenômenos de bilheteria dos dois Tropa de Elite Para este ano, já há pelo menos mais dois lan- ou Segurança Nacional só parecem comprovar
e de Cidade de Deus (que incorporam elemen- çamentos previstos dentro do filão. que o espectador brasileiro continua preferin-
tos do cinema político, policial e de ação), assim Curiosamente, a vertente católica do cinema do o similar estrangeiro. O mesmo valeu para
como o de Carandiru (o melodrama se junta ao religioso nacional perdeu força na mesma me- o cinema de terror que, depois do fracasso da
policial). Falou-se muito do tal “favela movie”, dida em que o cinema espírita se afirmava. De- tentativa mais ampla de um filme de Zé do
mas a verdade é que o ambiente urbano-geo- pois de emplacar um sucesso considerável com Caixão com A Encarnação do Demônio, parece
gráfico em si não configurou um gênero por si, Maria – Mãe do Filho de Deus (2003), décimo por enquanto fadado ao limite das tentativas
dando origem a filmes muito distintos – e, na sexto na lista do Top 20 da década, com mais low budget de um chamado “cinema das bor-
maior parte, longe de representarem sucesso. de 2 milhões de espectadores, o subgênero ca- das”. Pelo menos por enquanto esses não são,
O que une os filmes acima, muito mais que o tólico viu o filme seguinte dirigido pelo mesmo definitivamente, os “nossos gêneros”.
30 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 31

Bezerra de Carandiru Encarnação Falsa Loura Se Eu Fosse Você 2


Menezes – O Diário de Hector Babenco do Demônio de Carlos Reichenbach de Daniel Filho
de um Espírito (2003, 146 min) de José Mojica Marins (2007, 103 min) (2009, 96 min)
de Glauber Filho (2008, 95 min)
e Joe Pimentel O dia a dia de um médico que Silmara, uma operária especia- Cláudio e Helena estão prestes
(2008, 88 min) atende no presídio de segu- Após 30 anos preso numa cela lizada de exuberante beleza, que a se separar. Porém, após a
rança máxima de Carandiru, para doentes mentais, Zé do sustenta o pai incendiário, se primeira reunião do divórcio,
Bezerra de Menezes vive a infân- convivendo com a realidade Caixão é finalmente libertado, envolve com dois mitos diferen- eles discutem em pleno elevador
cia e a adolescência no sertão. dos prisioneiros. Adaptação do e decidido a cumprir a mes- tes da música popular – e com e, repentinamente, trocam de
Aos 18 anos, inicia no Rio de Ja- livro de Drauzio Varella, o filme ma meta que o levou preso: cada um deles irá experimentar corpos. Isto faz com que ambos
neiro seus estudos de medicina. é narrado do ponto de vista encontrar a mulher que possa traumáticas lições de vida. tenham que viver a vida do
Mas, o que lhe trouxe o maior de um médico que frequentou lhe gerar um filho perfeito. Em outro, a exemplo do que já
reconhecimento de seu povo foi a Casa de Detenção ao longo seu caminho pela cidade de Direção e roteiro: havia ocorrido anos antes.
o trabalho anônimo realizado de 12 anos e testemunhou o São Paulo, deixa um rastro de Carlos Reichenbach
em prol dos desfavorecidos. Por fatídico massacre de 1992. horror, enfrentando leis não- Produção: Sara Silveira Direção: Daniel Filho
conta disso, ficou conhecido -naturais e crendices populares. Fotografia: Jacob Produção: Iafa Britz,
como o “Médico dos Pobres”. DIREÇÃO E Produção: Solitrenick Marcos Didonet, Vilma
Hector Babenco Direção: José Mojica Marins Montagem: Cristina Amaral Lustosa, Walkiria Barbosa
Direção: Glauber Roteiro: Victor Navas, Produção: Paulo Elenco: Rosanne e Daniel Filho
Filho e Joe Pimentel Fernando Bonassi e Sacramento, Fabiano Gullane, Mulholland, Cauã Roteiro: Adriana
Produção: Isabela Hector Babenco Caio Gullane e Dabora Ivanov Reymond, Djin Sganzerla Falcão, Renê Belmonte
Veras, Sidney Girão e Fotografia: Walter Carvalho Roteiro: Dennison Ramalho e João Bourbonnais e Euclydes Marinho
Luís Eduardo Girão Montagem: Mauro Alice, e José Mojica Marins Fotografia: Nonato Estrela
Roteiro: Andréa Bardawill Rosa Cavichioli, Nilza de Fotografia: José Montagem: Diana
e Luciano Klein Moraes e Cristina Martinelli Roberto Eliezer Vasconcelos
Fotografia: Cezar Moraes Elenco: Luiz Carlos Montagem: Paulo Elenco: Gloria Pires, Tony
e Antonio Luiz Mendes Vasconcelos, Milton Sacramento Ramos, Cássio Gabus Mendes
Montagem: José Pimentel, Gonçalves, Ivan de Elenco: José Mojica Marins, e Maria Luisa Mendonça
Charles Northrup e Almeida e Ailton Graça Jece Valadão, Adriano
Glauber Filho Stuart e Milhem Cortaz
Elenco: Carlos Vereza,
Magno Carvalho, Lucas
Ribeiro e Cláudio Raposo
32 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 33

Quais imagens do concorrido nas competições dos dois princi-


pais festivais do cinema mundial hoje (Cannes

Brasil lá fora?
e Veneza), Linha de Passe e Abril Despedaçado
passaram a anos-luz de alcançarem a visibi-
lidade de um CDD. Talvez comprovando sua
dimensão atual, que aponta para além do
EDUARDO VALENTE cinema brasileiro, o filme de Salles que pode
se considerar mais próximo em repercussão é
(dramatúrgica e estética), pode-se afirmar Diários de Motocicleta, o que se deve principal-
sem medo que Cidade de Deus avançou bem mente a seu personagem principal (além de
mais do que seus predecessores, no sentido de algumas características formais/narrativas).
que se espalhou bem além de uma cultura ci- Curiosamente, foi o oposto do que aconteceu
néfila necessariamente cosmopolita, que tem com Fernando Meirelles, cujos O Jardineiro Fiel
Temos seguidamente afirmado duas coisas, ao paração por questões, se pretende tudo, menos por base o circuito dos festivais, e se infiltrou e Ensaio Sobre a Cegueira até mantiveram o in-
longo dos textos neste catálogo, que tentamos estanque e definitiva). Dito isso, porém, a verda- mesmo no subconsciente comum do caldo do teresse internacional em torno de seu nome,
usar para explicitar o caminho seguido pela de é que, no específico da pergunta que nomeia que é o “cinema mundial”. mas também não se diferenciaram como Ci-
curadoria da mostra: que vários outros filmes esta questão, talvez tenhamos a única instân- Isso se comprova das mais distintas formas, dade de Deus do entorno em que se incluíam.
do período, que não os exibidos pela mostra, cia em que o título de um só filme pudesse ser- seja pela quantidade de entrevistas de estran- Para além de Meirelles e Salles, o único
poderiam ilustrar essas mesmas questões; e vir como resposta simplificada: Cidade de Deus. geiros sobre o Brasil (artistas ou não, cineas- outro nome que podemos considerar ter se
que vários dos filmes exibidos poderiam facil- Claro que ao dizer tal coisa não queremos tas ou não) onde o filme surge como imagem imposto no cenário internacional de cinema
mente ilustrar outras das questões (em suma, propor isto como uma verdade unívoca – afi- única que vários deles carregam, seja pelo re- ao longo da década (não por acaso, tendo aca-
afirmando que essa seleção de filmes, e sua se- nal, vários outros filmes nacionais foram vis- sultado de algumas enquetes sobre o cinema bado de anunciar seu primeiro filme a ser re-
tos, em diferentes situações, fora do país. Que- mundial feitas por sites não necessariamente alizado fora do país) foi o de José Padilha (An-
remos apenas usar a figura de retórica para “especializados”. Não é por acaso que o filme, drucha Waddington, com Lope, ocupando um
dar conta do tamanho do fenômeno represen- por si só, lançou internacionalmente a carreira distante quarto lugar). A carreira deste, porém,
tado por este filme na definição da imagem do não só do seu diretor, como ainda do seu fo- se deu de forma bastante curiosa, uma vez
cinema brasileiro (e do Brasil, por que não?) lá tógrafo, seu montador e seu roteirista – casos que circulou tanto com documentários (todos
fora. De fato, Cidade de Deus passou a ocupar bastante raros no cinema brasileiro (e que cul- os três que realizou no período passaram em
um espaço neste imaginário estrangeiro, que minaram com inéditas indicações do filme ao grandes vitrines internacionais), como com
tem poucos e raros precedentes na história Oscar em categorias técnicas). Por isso, todas seus dois longas de ficção – com destaque, cla-
(e cujas muitas semelhanças entre si podem as outras respostas à pergunta original aqui ro, para o surpreendente (e polêmico) Urso de
nos ajudar a pensar acerca do que se espera e formulada (“quais imagens do Brasil lá fora?”) Ouro ganho pelo primeiro Tropa de Elite. Além
como se constrói, afinal, esta imagem de país): precisarão sempre ser lidas como se carregas- disso, é um caso raro de cineasta abraçado
Orfeu Negro, o Cinema Novo de forma mais sem o adendo “para além de Cidade de Deus” tanto pelos festivais europeus como por Sun-
ampla (e menos especificamente algum filme), ou “em nichos específicos do cinema”. dance – festival que, ao longo da década, exi-
Pixote, Central do Brasil... e é isso. Exceto que, É o caso, até mesmo, dos dois filmes rea- biu improváveis títulos nacionais, como Amo-
por circunstâncias que podem ir do momento lizados no Brasil nestes dez anos pelo outro res Possíveis, Benjamim ou Carmo. Tendo feito
em que ele surge (muito mais “globalizado”) grande “embaixador internacional” do atual do segundo filme da série o maior fenômeno
até características próprias da sua linguagem cinema brasileiro, Walter Salles. Mesmo tendo de público da história do cinema brasileiro, po-
34 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 35

demos afirmar que Padilha continua sendo o urbano em torno da classe média, como um De fato, não é difícil perceber que o Bra-
grande enigma entre os três nomes de cineas- A Via Láctea (exibido na Semana da Crítica de sil hoje não goza de grande prestígio lá fora,
tas que citamos – não sabemos o que esperar Cannes), temos muitos outros que se passam pelo menos enquanto cinematografia nacio-
de sua continuidade de carreira (enquanto os ou nas áreas sertanejas/rurais (Mutum; Cine- nal. Trata-se de um panorama bem distinto
outros dois parecem seguir passos até certo ma, Aspirinas e Urubus; A Festa da Menina Mor- do que trilharam no período outros cinemas
ponto “previsíveis”). ta; Garapa; Árido Movie), ou em torno das fave- periféricos, como os da Romênia, Argentina,
De fato, se tomarmos o circuito de festivais las e conflitos urbanos de classes mais baixas México ou Coreia do Sul – para citarmos al-
como a principal porta de entrada/platafor- (5x Favela; Lixo Extraordinário; Cidade Baixa; No gumas cinematografias que hoje gozam de
ma de exibição para o cinema brasileiro lá Meu Lugar; O Invasor). Isso também ajuda a en- um reconhecimento “nacional” neste circui-
fora (algo um tanto quanto inegável), o cará- tender porque alguns cineastas que gozam de to, para além das expectativas sobre este ou
ter diferenciado que ocuparam as figuras de considerável prestígio dentro do Brasil, como é aquele cineasta. Basta ficarmos nos sinais
Salles e Meirelles dentro deste panorama ao o caso de José Eduardo Belmonte ou Eduardo mais óbvios, como o fato de, depois de sur-
longo da década fica plenamente evidenciado Coutinho, quase não circulam lá fora. preendentes três indicações em quatro anos uma série de filmes da nova geração do ci-
quando vemos a quantidade de projetos gera- No entanto, da maneira como funciona no final dos anos 1990, o país não recebeu nema nacional, que tem encontrado braços
dos dentro de suas produtoras, a Videofilmes este circuito de festivais, uma coisa é exibir nenhuma indicação ao Oscar de filme estran- abertos principalmente nos festivais de Locar-
e a O2, que foram encontrar guarida nas prin- um filme nessas seleções, o que até pode se geiro no período (algo curioso quando pensa- no e Roterdã, os dois que são considerados os
cipais mostras paralelas de Cannes, Veneza e dever a várias circunstâncias do ano em que mos que Cidade de Deus foi enviado, mas re- mais importantes na Europa depois da trinca
Berlim. No caso da Videofilmes, podemos citar ficam prontos; uma outra totalmente diferen- cusado – e depois recebeu quatro indicações principal, e que tentam reforçar o seu perfil de
os casos de Madame Satã, Cidade Baixa, O Céu te é dar continuidade a essa exposição ao lon- técnicas no ano seguinte). apostas nos filmes mais “arriscados” e meno-
de Suely e No Meu Lugar; no caso da O2, O Ano go da carreira do cineasta. Se atentamos para Mais significativo, talvez, seja notar como, res. De fato, pode-se notar ali algumas repe-
em que Meus Pais Saíram de Férias (este, o úni- a lista de todos os filmes exibidos nas seções além dos exemplos já citados, apenas Caran- tições bastante notáveis, particularmente no
co a ter estado em competição) e À Deriva. Não paralelas da trinca de maiores festivais do diru, de Hector Babenco (com seu prestígio de que se refere aos filmes mineiros, tanto da pro-
se quer aqui afirmar que esses filmes só foram mundo (lista que pode ser conferida no anexo diretor de Pixote e O Beijo da Mulher-Aranha), dutora Teia (que teve todos os seus longas e
aos festivais por terem “padrinhos fortes” (o IV deste catálogo), os únicos nomes que vemos competiu em algum outro dos maiores festi- vários curtas e médias exibidos num dos dois
que seria inclusive um tanto esquizofrênico, repetirem-se mais de uma vez, além dos três vais do mundo. O fato é que no total, em dez eventos, e que mais recentemente, já em 2011,
tendo em vista que o autor do texto é diretor cineastas destacados acima, são os de Karim anos, apenas dois longas brasileiros competi- encaixou sua primeira ficção, O Céu Sobre os
de um dos filmes citados), mas sim que cer- Aïnouz (cujos três longas estiveram em Can- ram em Cannes; mais dois em Berlim; e ape- Ombros, na competição principal de Roterdã),
tamente este fato não atrapalhou em nada a nes ou Veneza), Marcelo Gomes (idem, sendo nas um em Veneza, sendo este no distante como os de Cao Guimarães. Para os diretores
que eles fossem recebidos com olhos atentos. o segundo codirigido com Aïnouz) e o de Julio 2001. Da mesma maneira, pouquíssimos fil- mais novos, foi um ótimo sinal a inclusão em
Mas é claro que não se trata apenas de Bressane – alguém que circula desde os anos mes (além de Cidade de Deus, claro) circularam 2010 de A Alegria, segundo longa dos cariocas
apadrinhamento: os filmes escolhidos para 1960 neste circuito, e que aliás gozou de tardio com algum destaque em qualquer circuito co- Felipe Bragança e Marina Meliande (cujo pri-
representar o Brasil nestes festivais (escolhi- reconhecimento, como seu antigo parceiro Ro- mercial internacional – sendo uma das curio- meiro filme havia sido exibido em Locarno no
dos pelos estrangeiros, é bom que se diga, algo gério Sganzerla (ambos tiveram retrospectivas sas exceções o caso de Estômago, filme que ano anterior), na seleção da Quinzena dos Re-
diferente do que é ser enviado para o Oscar de de suas obras no prestígioso Festival de Turim). passou em branco nos festivais e teve público alizadores em Cannes. No entanto, só os próxi-
filme estrangeiro, uma escolha feita por brasi- O fato é que nenhum outro jovem realizador, pequeno no Brasil, mas que encontrou suces- mos dez anos poderão dizer se esta tendência
leiros) partilham, em maior ou menor grau, de que tenha dado início à sua carreira nos anos so relativo em mercados como os da França e de fato se consolida com visibilidade externa
algo que se pode esperar de uma imagem do 2000 (ou logo antes), se consolidou neste ce- Itália. Mas, de novo, falamos de uma exceção. maior, ou se continuará sendo limitada a um
cinema brasileiro, e principalmente do Brasil, nário, conseguindo inserir-se nas “expectati- Alguns apostam que esse panorama pode nicho que acaba repercutindo dentro de um
construída lá fora. Assim, para cada exemplar vas” do circuito cinéfilo internacional. estar mudando, a partir da visibilidade de espaço ainda pequeno.
36 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 37

A Alegria Cidade de Deus


de Felipe Bragança e de Fernando Meirelles
Marina Meliande (2002, 130 min)
(2010, 100 min)
Saga urbana que acompanha
Luiza, 16 anos, não aguenta o crescimento do conjunto
mais ouvir falar no fim do habitacional de Cidade de Deus,
mundo... Em uma noite de entre os anos 1960 e 1980, pelo
Natal, seu primo João é baleado olhar de dois jovens da comu-
misteriosamente e desapa- nidade: Buscapé, que sonha
rece no meio da madrugada. em ser fotógrafo, e Dadinho,
Semanas depois, um misterioso que se torna um dos maiores
visitante vem bater à porta de traficantes do Rio de Janeiro. Cinema, Aspirinas Estômago O Ano em que Meus
Luiza: João, como um fantasma, e Urubus de Marcos Jorge Pais Saíram de Férias
pedindo para se esconder ali. Direção: Fernando Meirelles de Marcelo Gomes (2007, 112 min) de Cao Hamburger
Produção: Walter Salles, (2005, 99 min) (2006, 90 min)
Direção: Felipe Bragança Donald K. Ranvaud, Na vida há os que devoram e os
e Marina Meliande Andrea Barata Ribeiro e Em 1942, no meio do sertão que são devorados. Raimundo A ditadura militar e a Copa de
Produção: Lara Frigotto, Mauricio Andrade Ramos nordestino, dois homens vindos Nonato se arranja, em vez disso, 1970 sob a ótica de um garoto
Felipe Bragança e Roteiro: Braulio Mantovani de mundos diferentes se encon- por um caminho todo seu, um que passa alguns dias num bair-
Marina Meliande Fotografia: César Charlone tram: Johann, alemão fugido da caminho à parte: ele cozinha. ro judaico durante a ausência
Roteiro: Felipe Bragança Montagem: Daniel Rezende 2ª Guerra Mundial, que dirige Uma fábula nada infantil sobre dos pais, militantes de esquerda.
Fotografia: Andrea Capella Elenco: Douglas Silva, um caminhão e vende aspirinas o poder, o sexo e a culinária.
Montagem: Marina Jefechander Suplino, Alice pelo interior do país, e Ranulpho, Direção: Cao Hamburger
Meliande Braga e Emerson Gomes um homem simples que sempre Direção: Marcos Jorge Produção: Caio Gullane,
Elenco: Tainá Medina, viveu no sertão. Aos poucos sur- Produção: Cláudia Fabiano Gullane e
Junior Moura, Cesar ge entre eles uma forte amizade. da Natividade, Fabrizio Cao Hamburger
Cardadeiro e Flora Dias Donvito e Marcos Cohen Roteiro: Cao Hamburger,
Direção: Marcelo Gomes Roteiro: Lusa Silvestre, Mário Mantovani, Cláudio
Produção: Sara Silveira, Marcos Jorge, Cláudia da Galperin e Anna Muylaert
Maria Ionescu e João Vieira Jr. Natividade e Fabrizio Donvito, Fotografia: Adriano
Roteiro: Marcelo Gomes, Fotografia: Toca Seabra Goldman
Paulo Caldas e Karim Aïnouz Montagem: Luca Alverdi Montagem: Daniel Rezende
Fotografia: Mauro Elenco: João Miguel, Elenco: Germano Haiut,
Pinheiro Jr. Fabiula Nascimento, Babu Simone Spoladore, Caio
Montagem: Karen Harley Santana e Carlo Briani Blat e Eduardo Moreira
Elenco: Peter Ketnath,
João Miguel, Hermila
Guedes e Oswaldo Mil
38 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 39

Ação entre amigos: unem para criar um mercado de produção de


cinema altamente inflacionado.
meio-termo que existe aí) que a nossa pergun-
ta original do título realmente se justifica.

opção, afirmação ou
Por outro lado, na virada do século a tecno- Afinal, quando Domingos, em meados
logia digital, que já havia começado a dar seus da década, decide propor um manifesto do
passos principais rumo a uma democratiza- B.O.A.A. (Baixo Orçamento e Alto Astral), e ra-

necessidade?
ção de alguns meios mais baratos de produ- dicalizar sua produção no sentido do barate-
ção e finalização de imagens, toma de vez um amento e facilidades trazidas pelo digital, por
ritmo de galope. Logo vemos câmeras pesso- mais que isso se adeque bem à sua proposta
ais de preços acessíveis produzindo materiais de cinema, trata-se de uma opção feita por
EDUARDO VALENTE passíveis de exibição pública e em telas gran- um veterano, não apenas de mais de quaren-
des – e, em paralelo, um mercado que passa ta anos de carreira no cinema, como de vida
a aceitar, cada vez mais, diferentes formatos artística plenamente estabelecida em outros
digitais de exibição destes filmes. Quebra-se, meios. Domingos poderia se ater ao outro mo-
“Ação entre amigos”: a expressão em si já tem Para começarmos pela especificidade de assim, uma das mais intransponíveis barreiras delo de produção vigente, mas este não lhe
um significado duplo. Primeiro, o mais literal: contexto, precisamos tocar em dois pontos es- de custo para uma produção: a da finalização agrada mais: tornou-se sufocante e dificulta-
um grupo de pessoas com laços pessoais de re- senciais. Primeiro, o inegável e galopante pro- para 35mm (que, até a década anterior, ainda dor, então ele parte para estes filmes que têm
lacionamento que se une para, juntos, efetivar cesso de encarecimento por que passou o cine- era o único formato de exibição a receber a em comum maior rapidez de realização e me-
uma ação. É a primeira dimensão importante ma de maior custo no Brasil (alguns chamariam pompa que ia com o nome “cinema”). nor sofisticação estético-visual. Filma bastan-
para nós aqui. Depois, o sentido de seu uso cor- esse cinema de industrial, outros de comercial, Existem aí, então, as condições básicas para te na década (algo que certamente não con-
rente no Brasil: “ação entre amigos” tem tam- outros ainda de profissional – mas todos pare- o surgimento de um movimento que retome seguiria no outro modelo), porque optou por
bém um sentido financeiro, onde na ação está cem termos por demais limitadores no contex- as características da “ação entre amigos” tão uma estética que veio junto com seu processo.
implicado menos “fazer” algo do que “custear” to brasileiro), desde a chamada retomada. Os comuns em décadas anteriores, mas menos Já o caso de Baierstorf é bem outro: natural
para que algo seja feito. Esses são, então, os dois motivos para este fenômeno são vários, e vão presentes no momento em que o título de “ci- (e ainda morador) da “distante” Palmitos, faz
vetores principais aqui: amizade como traba- desde o verdadeiro encarecimento de alguns nema independente” foi um pouco “sequestra- seus filmes de terror em casa por absoluta ne-
lho conjunto, e o desejo de viabilizar algo sem elementos técnico/tecnológicos, que avança- do” pelo Festival de Sundance – a partir de um cessidade (não que isso o incomode): quer fazer
um grande aporte externo de verba. ram muito e de forma muito rápida no perío- modelo que, se era sim mais barato e fácil do cinema, e isso não se apresenta como opção na
No campo do cinema, é importante dizer do; passando pela pressão exercida em vários que o grande cinema de estúdio norte-ameri- sua realidade, qual não seja pegando ele mesmo
que nada disso é novo, pelo contrário: existe itens da produção (desde salários até alugueis cano (que também passava por um processo de a câmera na mão e juntando os amigos para
uma verdadeira historiografia de uma maneira de equipamentos, entre outros) pela expansão encarecimento, por motivos comuns ou especí- isso. Baierstorf é só um nome escolhido aqui
“anti-industrial” de trabalhar, inclusive com inú- do mercado publicitário sobre o mercado do ci- ficos), ainda assim continuava quase proibitivo como exemplo, mas há muitos outros, de carac-
meros exemplos brasileiros – tão numerosos, nema no período do Governo Collor (algo que para a maior parte das pessoas no mundo que terísticas (e locais) distintos: Simião Martiniano,
na verdade, que pode-se dizer que eles são tan- embora tenha começado antes, e se ampliado “simplesmente queriam fazer um filme”. Rodrigo Aragão, Pepa, Marcos Ferreira. Todos
to a norma como qualquer outro modelo. O que, depois, teve ali seu momento decisivo); até che- Mas que filmes saíram então dessa nova trabalham dentro de gêneros de cinema extre-
se significa dizer que nenhuma dessas duas ca- gar ao sistema imposto pelas Leis de Incentivo, possibilidade de produção? Como veremos, ti- mamente populares (ação, terror, comédia), são
racterísticas apresenta em si uma inovação, por onde os orçamentos foram por um bom tempo pos muito distintos, pois o conceito amplo de em geral autodidatas apaixonados, para quem o
outro lado não impede que tentemos entender pouco regulados, e alguns dos produtores e di- “ação entre amigos” acaba unindo universos que até a década anterior seria chamado ou de
quais as especificidades em jogo nos anos 2000, retores perceberam que o momento de ganhar tão distintos quanto os de um Domingos Oli- home video ou de “vídeo” tornou-se de repente
e também quais as diversas maneiras como es- dinheiro com um filme era na captação/produ- veira e os de um Petter Baiestorf. Mas é nas di- uma possibilidade maior. Fazem o cinema que
sas características se apresentaram. ção. Estas distorções (entre algumas outras) se ferenças entre eles (e todos que estão no amplo podem fazer, e não pedem desculpas por isso –
40 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 41

até por não deverem nada a ninguém. Na maior contra um ambiente mais propício para enten- Parte do que ajudou a que este processo mais recente, que tem chamado a atenção de
parte, porém, circulam mesmo seus filmes em dê-lo. Mas o caso mais marcante em termos de se naturalizasse foi, sem dúvida, a expansão curadores lá fora e da mídia aqui no Brasil. Esta
DVD, seja nos mercados restritos pelo seu lo- visibilidade é mesmo o de Apenas o Fim, filme do circuito dos festivais de cinema pelo país, passa principalmente por uma troca muito for-
cal (na maneira do movimento que existe com produzido como exercício de final de curso da processo iniciado nos anos 1990, mas radicali- te entre realizadores de lugares distintos, pas-
força hoje numa Nigéria, por exemplo), ou pelo PUC-Rio, e que terminou exibido e premiado no zado nesses anos 2000. Com uma quantidade sando de um processo que antes era marcante
seu gênero (o filme Mangue Negro, de Aragão, Festival do Rio, lançado comercialmente com al- maior de mostras abria-se mais e mais espa- pela sua “regionalização” para um estágio de
circulou nos festivais internacionais de terror). gum destaque, e deslanchando efetivamente a ço, tanto para produções regionais dos vários quebra de fronteiras – seja com pessoas viajan-
É importante dizer que uma mostra (entitulada carreira de seu diretor. Algo certamente impen- lugares que recebiam eventos como principal- do para trabalhar nos filmes e projetos dos ou-
Cinema de Bordas) foi criada no Itaú Cultural de sável menos de dez antes (quando, aliás, o curso mente para que festivais fossem criando seu tros, seja mesmo e “apenas” nas trocas de ideias
São Paulo ao longo da década para dar conta de onde foi feito nem existia). recorte diferencial – inclusive pela aposta nes- e projetos. Dentro deste panorama novos polos
exibir estes filmes, tirando-os da penumbra ge- Se no começo da década as condições re- se cinema que surgia com força. Nesse sentido, se impõem, em Minas Gerais, Ceará ou Pernam-
ral (até histórica) em que viviam. almente eram mais difíceis, nem por isso im- certamente a Mostra do Filme Livre, no Rio de buco, menos por alguma decisão “oficial/gover-
A maior parte dos outros filmes realiza- pediram, por exemplo, que dois veteranos da Janeiro, foi muito importante, e até pioneira, namental” de apoio (embora até existam pro-
dos com menores orçamentos (quando não cena do curta brasileiro dos anos 1990 termi- tanto no gesto de igualar totalmente o espaço gramas locais), e mais por um processo natural
somente com base nas economias pessoais/ nassem estreando em longas com filmes que para o digital e a película como por ter sido a de realização e exibição mesmo de trabalhos – e
trabalho gratuito) se localizam num ponto realizaram basicamente na raça: José Eduardo única a ter exibido uma série de filmes (algo principalmente pela aglutinação de pessoas.
entre estes dois exemplos: o do veterano que Belmonte, com Subterrâneos; e Samba-Canção, que acontece até hoje). Deste momento recente, exibimos Estra-
encontra uma estética/método que o apraz; de Rafael Conde. Em ambos os casos, filmes Hoje, porém, a MFL já tem companhia, tanto da para Ythaca (produção cearense) e A Falta
e o dos “inventores de seu próprio cinema”. que faziam (cada um a seu modo) da sua pró- de eventos criados na década como o Cine Es- que Me Faz (filme mineiro), lançados no final
Diz respeito, em geral, a pessoas com maior pria forma um questionamento sobre o cine- quema Novo, de Porto Alegre; e a Janela Inter- de 2009 e começo de 2010 (em Brasília e Tira-
conhecimento, e muitas vezes estudo de ci- ma que era ou não possível a eles fazer naque- nacional do Cinema, de Recife; ou de um even- dentes, respectivamente), ambos com várias
nema, mesmo que numa idade mais nova (o le momento. Eles não foram os únicos, porém, to como a Mostra de Tiradentes, de existência exibições internacionais no currículo. A par-
que implica numa enorme intimidade com as que impuseram, não sem dificuldades ou mais antiga, mas que tomou a decisão curato- tir dos dois (realizados, diga-se, por algumas
tecnologias de captação, edição e finalização limites, sua presença na primeira metade de rial de dar espaço privilegiado na programação pessoas que trabalham com cinema há qua-
que permitam custos baixos com maior qua- década, bem menos “receptiva” a estes produ- para este cinema jovem, que ainda lutava um se uma década, e sem se conhecerem por um
lidade); e, acima de tudo, um desejo de realizar tos novos, ainda estranhos – lembremos de A pouco para entrar na janela dos festivais de bom tempo) talvez valha perguntar se existem
que, se não necessariamente recusa os méto- Festa de Margarette, Deus Jr. ou Cama de Gato. maior porte. Nesse sentido, tem grande im- mesmo características que tornem este “mo-
dos existentes (editais, e até incentivos locais Mesmo num ano não tão distante como portância para a visibilidade desta produção a mento” num “movimento”, pensar se a ques-
ou governamentais), não parece disposto a es- 2007, um filme como Amigos de Risco, que exibi- criação em Tiradentes da mostra Aurora, com- tão dos afetos que perpassam as relações nas
perar que estes os “avalizem” para a realização. mos na mostra, ainda surgia como um comple- petição voltada apenas para primeiros filmes, telas e atrás delas cria algum tipo de unidade
Não chega a surpreender, dentro deste pa- to estranho no Festival de Brasília, até hoje fe- e cujo vencedor de sua edição original (Meu ou sentimento que aproxime estes filmes, e, por
norama, que a década tenha visto longas reali- chado em sua opção pelo 35mm como formato Nome é Dindi) exibimos aqui na mostra. que não, questionar se a busca por essas coisas
zados, inclusive, por estudantes de cinema, que final. Com sua filmagem que explora os efeitos O mais importante disso tudo é que, assim, (unidades, aproximações, movimentos) têm
ganharam espaço bem além dos festivais uni- (e defeitos) do digital radicalmente e com sua vai se formando aos poucos um pequeno circui- mesmo importância – e, se sim, para quem?. A
versitários. Foi o caso, por exemplo, de Concei- despreocupação com a perfeição (que não se to alternativo de força e interesse para os realiza- verdade é que este momento, com todas essas
ção, filme peculiar porque filmado por alunos confunde com desleixo conceitual e estético), o dores deste cinema mais arriscado. É, em muitos diferentes ebulições que o marcam, nos dei-
da UFF ainda nos anos 1990, em 16mm, mas filme era um estranho há apenas três anos no sentidos, a partir dos encontros mais constantes xam curiosos sobre o que vem logo a seguir – e
que fica pronto dez anos depois – em parte, mesmo festival que, em 2010, daria pleno reco- nestes festivais que vão se delineando e conso- esse sentimento é essencial na cinematografia
pode se dizer, para sua própria sorte, pois en- nhecimento a este “outro cinema”. lidando algumas características desta produção de qualquer país.
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A Falta que me Faz Amigos de Risco


de Marília Rocha de Daniel Bandeira
(2009, 85 min) (2007, 88 min)

Um grupo de meninas vive o fim Após anos em fuga, Joca está de


da adolescência. Um roman- volta à cidade. E, para come-
tismo impossível as enlaça morar, nada melhor que uma
com homens de fora, deixando noitada com seus bons amigos
marcas em seus corpos e na Nelsão e Benito. Mas o alegre
paisagem a seu redor. Entre reencontro vira um pesadelo
festas, amizades, angústias e quando Joca subitamente
contradições da passagem para passa mal. Vai começar uma
a vida adulta, cada uma en- corrida contra o tempo cheia de
contra sua maneira de resistir à surpresas, capazes de abalar os
mudança e existir na incerteza. mais firmes laços de amizade.

Direção: Marília Rocha Direção, roteiro e


Produção: Luana Melgaço montagem: Daniel Bandeira
Roteiro: Clarissa Campolina Produção: Sarah Hazin, Apenas o Fim Estrada para Ythaca Meu Nome é Dindi
e Marília Rocha Juliano Dornelles, Cátia de Matheus Souza de Guto Parente, Luiz de Bruno Safadi
Fotografia: Alexandre Oliveira e Daniel Bandeira (2008, 80 min) Pretti, Pedro Diógenes (2007, 85 min)
Baxter e Ivo Lopes Araújo Fotografia: Pedro Sotero e Ricardo Pretti
Montagem: Francisco Elenco: Rodrigo Riszla, Garota resolve abandonar o (2010, 70 min) O filme retrata o movimento
Moreira e Marília Rocha Paulo Dias, Irandhir namorado e fugir para lugar do tempo sobre a vida de uma
Elenco: Alessandra Ribeiro, Santos e Jr. Black desconhecido. Antes de partir, Quatro amigos em luto – jovem mulher, de nome Dindi.
Priscila Rodrigues Ribeiro, ela decide encontrá-lo, mas interpretados pelos próprios Dona de uma quitanda à beira
Shirlene Rodrigues Ribeiro eles têm apenas uma hora diretores – partem numa da falência no Rio de Janeiro,
e Valdênia Ribeiro para fazer um balanço bem- viagem até a cidade natal do Dindi luta perigosamente pela
-humorado de suas vidas. amigo falecido, depois de uma sua sobrevivência. Limite!
noite de bebedeira. Ythaca,
Direção e roteiro: mais do que um lugar, é um Direção e roteiro:
Matheus Souza caminho que envolve amizade, Bruno Safadi
Produção: Mariza silêncio, descoberta e cinema. Produção: Bruno Safadi
Leão e Júlia Ramil e Roberto Talma
Fotografia e montagem: DIREÇão, Produção, Fotografia: Lula Carvalho
Júlio Secchin roteiro, fotografia, Montagem: Rodrigo Lima
Elenco: Gregorio Duvivier, montagem e elenco: Guto Elenco: Djin Sganzerla,
Erika Mader, Marcelo Parente, Luiz Pretti, Pedro Gustavo Falcão, Carlo
Adnet e Nathália Dill Diógenes e Ricardo Pretti Mossy e Nildo Parente
44 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 45

são “Que País é Esse?” dessa mesma mostra), a tagonizado por Guiga – personagem tão pes-
produção brasileira voltou-se, com frequência soal quanto conectado ao Brasil, em sintonia
nunca antes notada, para o íntimo dos perso- com o andar do momento histórico. Temos lá
nagens, tanto para a intimidade formalizada um tom de lembrança confessional e poética,
pela narração verbal ou escrita (Nome Próprio, cujas experiências, como vemos em tela, carre-
Dias de Nietzsche em Turim) como para a ex- gam o fabular das mundaneidades cotidianas.
pressa apenas pelo corpo em dadas situações Um filme assim, por sua própria opção, expõe
(Cão sem Dono, O Céu de Suely). uma fricção: a relação do tempo lembrado
Os primeiros 10 anos do segundo milênio (tempo do passado lúdico) com o tempo do
foram de uma inflação do eu, na ficção e no espectador. Subjetivar pela memória é, afinal,
documentário – um “eu” tanto dos persona- estabelecer uma comparação entre dois mo-
gens como dos diretores transformados em mentos bastante diferentes, entre dois “eus”,

Subjetividade:
personagens (33, Um Passaporte Húngaro, San- duas realidades nas quais o sujeito se forma
tiago, Person, para ficarmos em alguns exem- e se reforma, sempre em alteração e preserva-
plos apenas). Além de vermos um desfile de ção, como os processos históricos.

modo ou moda?
lançamentos de filmes que têm por título no- Parte da experiência de Guiga passa pelos
mes próprios (muitos deles encontram-se na contatos corporais. São tranquilos, anedóticos,
sessão “Para onde vão nossos Heróis?”), man- prazerosos. O sexo aproximaria Guiga da jo-
teve-se um traço dos anos 1990: a presença vem Camila de Nome Próprio, se, no caso dela,
CLÉBER EDUARDO constante das narrações em primeira pessoa o sexo não fosse uma experiência entre a me-
nas ficções, e de documentários com protago- lancolia, o desespero e a carência generaliza-
nistas individualizados (e não estruturados da. Não é tranquilo: o erotic disgusting. Parte
como panoramas e mosaicos). A encenação desse mal-estar, dessa procura às cegas de um
Há um pertinente lugar comum em conside- empenha-se em se aproximar da experiência corpo sem bússola, é transposta para um blog.
rar o cinema brasileiro, historicamente, pouco e da percepção do personagem, procurando Essas turbulências interiores externaliza-
dado às questões do sujeito e mais voltado às uma intimidade às vezes cega e sem recuo, das pela estilização reflexiva da linguagem
questões da realidade. Que se façam ressalvas: que procura investir na particularização como escrita pontuam também o fluxo interno do
Mário Peixoto, Walter Hugo Khouri, Paulo Cé- valor consensual. Em alguns filmes, contudo, filósofo em Dias de Nietzsche em Turim. A razão
sar Saraceni, Domingos Oliveira, Luiz Sérgio o particular, mais que fim, é um meio: forma interior não dá conta das ideias, nem do mun-
Person e Walter Lima Jr, entre outros que, por de não se escancarar o caráter representativo do externo, e está fissurada. Não se trata de
diferentes modos e fins, centraram filmes na dos personagens, já que, em plenos anos 2000, um entrave a ser removido, ou estímulo para
subjetividade de seus personagens, formali- representatividade é nome feio, empregado uma solução, como é a crise de nervos de Nas-
zando imagens, sons e tempo de acordo com apenas para as organizações políticas. Alguns cimento em Tropa de Elite. É do próprio proces-
os sentimentos turvos de seus protagonistas. desses personagens, porém, escapam do parti- so da reflexão: a estabilização das coisas está
Na última década, contudo, sem perder seu cular: tornam-se reflexos de tempo e lugar, ou fora da esfera do filósofo. Já para o policial com
caráter de observação, radiografia e comen- ao menos são postos em relação. patente, homem de ação tanto quanto de es-
tário sobre comportamentos representativos A mais comum das subjetivações, aque- tratégias e reflexões (sobre o funcionamento
ou fundados em uma generalização (como la feita pela memória, é o coração de Eu me do mundo, não sobre o funcionamento do eu),
se pode perceber pela programação da ses- Lembro, o Amarcord de Edgard Navarro, pro- a estabilização dele e da realidade é a utopia
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à bala. Nascimento, como vemos em Tropa de nista fotográfico de seu mundo. Se este piorar, que subjetivado – ambos dirigidos pelo mes-
Elite 2, não encontra a paz. melhor para Buscapé. A narração em primeira mo Heitor Dhalia. Em todos eles, assim como
Se o transtorno de Nietzsche é quase mítico, pessoa nesse caso não busca chegar a uma em Jogos Subterrâneos (baseado em Julio Cor-
pois lida com forças invisíveis e com o turvo zona de sensibilidade e intimidade de senti- tázar) e em Crime Delicado (baseado em Ser-
de toda subjetividade, o de Nascimento é pal- mentos de Buscapé. Assim como a do jovem gio Santanna), a percepção do protagonista
pável. É uma interioridade verbalizada apenas, André em O Homem que Copiava, a narração, afeta as escolhas visuais. Em todos, ainda, há
ausente em suas presenças em tela, porque antes de ser uma impressão vocal de uma pri- fissuras – e são narrativas urbanas
está na sociedade, no exterior, e retorna a ela meira pessoa, é performance verbal do texto, Como notamos acima, em comum todos
pela fala. Há pouco de pessoal em sua narra- da narração e da própria narrativa. É a subjeti- têm a literatura, ou mais precisamente a escri-
ção: é uma subjetividade estratégica, funcio- va do espetáculo. ta, como matriz. Uma mediação já encontra-
nal, que diz menos do personagem que de Pan-Cinema Permanente é um filme à parte da atriz), aluga o corpo por poucas horas, fu- da em palavras – limitadas pelo vocabulário
uma forma de pensar da sociedade. O esforço nessa questão: nenhum conflito do sujeito con- gindo a uma determinação para se autodeter- – como fonte do íntimo dos personagens. Essa
em individualizar Nascimento em uma estru- sigo mesmo ou com o mundo; pura celebração. minar (ao menos na intenção). Como a Camila matriz escrita também está em Os Famosos e
tura panorâmica, de leitura de funcionamen- Waly Salomão, o camaleão das subjetividades de Nome Próprio, o corpo é o GPS dessa procu- os Duendes da Morte, Nome Próprio, Dias de
to de sociedade, gerou ruídos de toda sorte na (no plural), o militante programático e prag- ra por outra forma de vida. Por outras razões, Nietzsche em Turim e Tropa de Elite, que vão
recepção. Único narrador, Nascimento, para mático da mudança e da opacidade, da per- o adolescente de Os Famosos e os Duendes da da narrativa de reiniciação à confessional; da
muitos, tornou-se porta-voz do filme. Voz de formance como vida, da mise-en-scène como Morte, conectado ao computador como Bruna filosofia à reportagem sociologizante. Ou ain-
um doente dos nervos, seu conhecimento so- único modo de existir, é uma interioridade em Surfistinha e Camila (de Nome Próprio), não da em Lavoura Arcaica, em que tanto a perfor-
bre as conexões entre drogas, policiais e con- palco. Tem a ver com as potências do falso de emprega o corpo em sua experiência, porque mance do texto (poético) como sua interpre-
sumidores, assim como sua reflexão pessoal Nietzsche. A crise é do filme que – embora tente sua experiência afetiva é virtualizada. Ele me- tação (sussurrante) são expressões, no próprio
sobre isso, é fruto de uma percepção transtor- acessar a senha da subjetividade de Waly, um nos se entrega à escrita e mais às imagens e corpo do filme, de uma subjetividade literari-
nada. No entanto, parece ser, antes disso, fruto momento de distração ou de falta de consciên- sons, a uma narratividade mais “internética” e zada e asfixiante.
de um estudo. Pura estratégia narrativa, por- cia da encenação – jamais logra êxito. O poeta fluida. Duendes e Nome Próprio são os filmes Tantas adaptações fazem sentido: a lingua-
que Nascimento sequer é protagonista: é uma é ator de si. Estar no palco significa que o den- “psiconets” da década. gem escrita sempre serviu muito bem para a
consciência apenas. tro está fora da cena – a não ser que, evidente- Subjetividades, percepções e identidades subjetivação. Um dos limites (e desafios) do
Em Cidade de Deus, Buscapé, que também mente, manifeste-se na superfície da imagem, em crise, em colapso, deram a tônica. Podemos cinema é justamente evidenciar sentimentos,
é narrador sem ser protagonista, não se reduz no corpo, na impostação vocal, nos versos e listar alguns filmes nos quais seus protagonis- sensações e percepções dos personagens, sem
a uma consciência, embora ele a manifeste. nos gestos largos, despudorados e sem pedir tas perdem o chão da realidade onde se situ- recorrer sempre à narração interna de algum
Panorâmico, como Tropa de Elite (com o qual licença para acontecer. A subjetividade do poe- am: “entram para dentro” e, ao voltarem para contador de memórias ou pensador em voz
partilha o mesmo roteirista e montador), CdD ta, muito bem organizada aos fragmentos pela fora deles, colidem com o mundo. Dentro e alta. Na história da crítica, há quem, como Jean
tem no narrador, além de um passador de in- montagem, é uma subobjetividade. fora, outra constante; o subjetivo, o objetivo, o Douchet, recuse a interioridade visualizada-
formações sobre a genealogia das drogas na Outros filmes da década seguiram por ca- conflito. Pensamos em Benjamim e Budapeste, -sonorizada. Por exemplo, em sua reação a O
favela carioca, uma espécie de exemplo gera- minhos do eu, e poderiam facilmente estar ambos baseados em Chico Buarque, mas tam- Ano Passado em Marienbad, ao qual resiste por
dor (e não regenerador). Buscapé parece estar sendo exibidos aqui. O Céu de Suely, por exem- bém em Hotel Atlântico, outra narrativa de transformar em imagem objetiva o que é da
sempre ileso, vacinado contra as más ações, plo, coloca esse eu em deslocamento, mas, busca perdida, também ela baseada em um ordem dos mistérios da imaginação, Douchet
mesmo ganhando máquina do tráfico. Quan- sobretudo, expõe o deslocamento na própria romance (de João Gilberto Noll); ou mesmo filia-se a Baudelaire: reivindica que se mostre
do tem a chance de complicar a vida da polícia origem, na cidade de onde partiu e para onde Nina, divulgado como baseado em Dostoievski o que há dentro pelo que há fora – sentimen-
corrupta, opta pela decisão que o beneficia di- voltou. Em nome de uma expansão de si, Suely, (Crime e Castigo) e O Cheiro do Ralo (baseado tos, pensamentos, abstrações na imagem do
retamente, alcançando assim o posto de cro- nome inventado por Hermila (também nome em Lourenço Mutarelli), este mais alegórico corpo e no corpo da imagem.
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Dias de Nietzsche Eu me Lembro Nome Próprio Pan-Cinema Tropa de Elite


em Turim de Edgard Navarro de Murilo Salles Permanente de José Padilha
de Julio Bressane (2005, 95 min) (2007, 130 min) de Carlos Nader (2007, 118 min)
(2001, 85 min) (2007, 83 min)
Investida poética de inspira- Camila tem a escrita como sua O dia a dia de um grupo de po-
O filme narra a passagem do ção autobiográfica em que o grande paixão. Intensa e corajo- Documentário sobre o poeta liciais e de um capitão do BOPE,
filósofo Friedrich Nietzsche pela realizador mistura realidade e sa, ela busca criar para si uma baiano Waly Salomão, para que quer deixar a corporação e
cidade italiana de Turim, onde ficção para traçar um painel de existência complexa o suficiente quem a vida era um filme de tenta encontrar um substituto.
alguns de seus textos mais memória coletiva e, na tenta- para que possa escrever sobre ficção e a poesia uma ferramen- Paralelamente dois amigos de
importantes foram desenvol- tiva de compreender a gênese ela. Ela escreve compulsivamen- ta para desmascarar qualquer infância tornam-se policiais e
vidos e onde o filósofo buscou de seus próprios conflitos, te em um blog, só que isto faz pretensão naturalista. Carlos se destacam um pela ousadia
referências para abordar termina fornecendo pistas com que também fique isolada. Nader filmou Waly por quase 15 e o outro pela inteligência. Se
em trabalhos escritos temas sobre algumas das buscas anos. Mas como fazer um do- pudesse uni-los num único
como artes, ciência e vida. essenciais de sua geração. Direção: Murilo Salles cumentário sobre alguém que candidato, o capitão já teria
Produção: Flávio acreditava que tudo é ficção? encontrado seu substituto.
Direção: Julio Bressane Direção: Edgard Navarro Frederico, Suzana Villas
Produção: Noa Bressane Produção: Moisés Boas e Lionel Combecau Direção, roteiro, Direção: José Padilha
Roteiro: Rosa Dias Augusto e Sylvia Abreu Roteiro: Elena fotografia e montagem: Produção: José Padilha
e Julio Bressane Roteiro: Edgard Navarro Soarez, Murilo Salles e Carlos Nader e Marcos Prado
Fotografia: José Fotografia: Melanie Dimantas Produção: Flávio Botelho Roteiro: Rodrigo Pimentel,
Tadeu Ribeiro Hamilton Oliveira Fotografia: Fernanda Bráulio Mantovani
Montagem: Virgínia Flores Montagem: Edgard Navarro Riscali e Murilo Salles e José Padilha
Elenco: Fernando Eiras, e Jefferson Cysneiros Montagem: Vânia Debs Fotografia: Lula Carvalho
Paulo José, Mariana Elenco: Lucas Valadares, Elenco: Leandra Leal, Montagem: Daniel Rezende
Ximenes e Leandra Leal Fernando Neves, Arly Juliano Cazarré, Alex Elenco: Wagner Moura,
Arnaud e Annalu Tavares Didier e Munir Kanaan Caio Junqueira, André
Ramiro e Milhem Cortaz
50 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 51

O outro: temer, questão de como filmar um outro tão distinto


de si mesmo; quais as distâncias que se pode/
de em cada um, como gesto cinematográfico
ou como gesto humano, ao se expor (ou não)

tolerar ou conhecer?
deve atravessar em nome de um filme melhor? como “cineasta em crise”? E por que não pen-
Se é verdade que a realidade desse “outro” nem sar em Lixo Extraordinário, que acredita que a
precisaria ser tão distinta assim para que estas solução está em fazer “sócios” os objetos artís-
perguntas se imponham (pensamos em A Casa ticos e os artistas, com os lucros partilhados –
EDUARDO VALENTE de Sandro, Agreste), ou não pareçam ter sido fei- mas será que igualmente (e aqui certamente
tas (Alô, Alô Terezinha!), é fato que as situações- não falamos do dinheiro)?
-limite despertam-nas com mais força. Mais rara do que a (mesmo que imaginá-
Na verdade, uma boa parte do melhor da ria ou utópica) conciliação, até pela tradição
história do documentário, de Wiseman a Rouch brasileira, é a explicitação do conflito. Por isso,
(passando por tantos outros), nasce de posicio- talvez, Um Lugar ao Sol pareça tão diferente
namentos e questionamentos em torno dessa e novo em meio a essa produção. Não se tra-
questão – colocados pelos filmes, mas também ta necessariamente de “filmar contra”, mas
para os filmes. É o caso de dois outros filmes filmar de frente, expor o conflito intrínseco
Sabemos o quanto a ideia de identidade está várias das questões que marcam a história do que exibimos na mostra: Santiago e À Margem e duro que se esconde por trás de nossa cor-
diretamente ligada ao conceito (mas princi- projeto, criado em 1987 com fins mais etnográ- da Imagem. Se vistos por um viés mais conteu- dialidade. Algo que encontrou mais espaço na
palmente à prática) da alteridade: só sabemos ficos que cinematográficos, mas que em mais dístico, ou mesmo de figuras de estilo, é bem ficção da década, em filmes bastante distintos:
quem e o que somos se sabemos quem e o que de 20 anos evoluiu bastante, e hoje tem com óbvio que são filmes completamente diferen- desde Madame Satã (que encarna no corpo
não somos. Assim, a curiosidade pelo diferen- frequência dado origem a algumas obras (na tes, ainda assim eles se igualam no gesto (ori- do personagem toda uma política de estar no
te, pelo outro, acaba sendo gesto complemen- maioria curtas e médias) muito potentes nas ginal em um; final no outro) de jogar seu olhar mundo) aos filmes de Sérgio Bianchi, passan-
tar ao de afirmação da própria identidade – e questões gêmeas de “olhar o outro”/“dar o de volta para si mesmo e se perguntar: “Mas eu do pela chanchada da luta de classes de um
é disso que a arte sempre tratou, do que existe olhar ao outro”. Mas, para além disso, os prin- poderia mesmo estar filmando esse outro?” É
de único e individual, mas ao mesmo tempo cipais motivos de estarmos exibindo o filme uma pergunta, de dimensões éticas e morais,
do que nos une, aproxima e faz ter algo em é a forma particularmente potente com que sobre o poder (e a responsabilidade) que vem
comum. No entanto, nem sempre (quase nun- consegue algo cada vez mais raro num mundo com uma câmera e o seu uso, fundada nesse
ca?) essas constatações e entendimentos são como o de hoje: imagens de “primeiros conta- caso em questões de classe que se tornam ain-
vividos com tranquilidade. Afinal, entre o “eu tos”, daqueles que não são nada além da mais da mais profundas num país com os dilemas e
é um outro” de Rimbaud e “o inferno são os pura alteridade impressa na tela (algo que, de fissuras do Brasil. Nos dois casos, inegavelmen-
outros” sartreano há inúmeras tonalidades alguma maneira, é fonte também do que de te, os cineastas concluem: se eu pelo menos me
possíveis desse desencontro – como ilustram mais forte nos dá Serras da Desordem, de que coloquei essa questão, já estou um pouco mais
os filmes que colocam em jogo essa questão, tratamos mais em outra de nossas questões, a tranquilo comigo mesmo. Uma solução pro-
que permeou particularmente o cinema bra- do deslocamento). fundamente brasileira, aliás.
sileiro ao longo desta década. Um filme que chega perto disso é A Alma do Vale pensar como (não) se colocam sobre a
Até por justiça histórica, talvez devamos Osso, de Cao Guimarães, cineasta particular- mesma questão Estamira e A Pessoa é Para o
começar pela alteridade original brasileira. O mente interessado nos eremitas, deslocados e Que Nasce, cujos dilemas são muito próximos
criador do Vídeo nas Aldeias, Vincent Carelli, solitários. Talvez o pioneiro entre os vários fil- respectivamente a Santiago e À Margem da
apresenta quase no final dessa década, Corum- mes (pensamos em As Iracemas, Seo Chico – Um Imagem, mas cuja dimensão autorreflexiva é
biara, longa que de alguma maneira sintetiza Retrato, A Falta que Me Faz) que se colocaram a muito menor. O que se ganha e o que se per-
52 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 53

Redentor. No entanto, nenhum filme tocou gar a câmera aos detentos do Carandiru e dali dois melhores exemplares do gênero foram A Hora da Estrela, talvez
mais fundo na ferida do que O Invasor, que exi- retirar um filme, O Prisioneiro da Grade de Fer- mesmo o adolescente Houve Uma Vez Dois Ve- obra máxima da ficção
bimos na mostra justamente por explicitar as ro (autorretratos), que se preocupa menos em rões e o “terceira idade” Separações, onde, nos brasileira a unir a ques-
inter-relações, muito mais incestuosas do que discursar e afirmar-se sobre o uso das imagens limites cronológicos da vida sentimental, os tão da migração com a
conflituosas, entre as classes. Aqui, a luta de do “outro”, e muito mais em tornar prática a personagens masculinos percebem que a pai- dor existencial. Pois ela
classes se encarna de forma bem diferente da junção e complementação entre os olhares do xão só existe com força quando desistimos de dá continuidade a essa
idealizada por Marx, e o outro se revela mais diretor e os de seus personagens/câmeras, ao entender, e aceitamos o outro pelo que tem de pesquisa tanto com Uma
ameaçador quando mais parecido “conosco”. ponto de não sabermos mais quem filmou o mais incompreensível. Vida em Segredo como em Hotel Atlântico. Já
Mas claro que a questão da representação quê. E importa, realmente? Já em Histórias de Amor Duram Apenas 90 Muylaert faz dois filmes (Durval Discos e É Proi-
de classes não é nova no nosso cinema, par- Outra tentativa de “transpor abismos so- Minutos, essa “outra” tinha sua dimensão de bido Fumar) que disfarçam com o riso (às vezes
ticularmente a partir do Cinema Novo. Nesse ciais” usada foi o modelo “Romeu e Julieta”, o mistério/sedução aumentada por se tratar de rasgado, às vezes rascante) a dor do contato e
sentido, é muito sintomático que Cacá Die- clássico amor entre opostos. Algo presente uma argentina. A figura do estrangeiro sempre da abertura do seu mundo para o outro. O úni-
gues, aquele que mais soube se adaptar aos como referência direta em filmes tão distintos foi presente na história da ficção (e da experiên- co cineasta masculino que pode ser aproxima-
vários momentos que se seguiram ao movi- em tom, forma e objetivos quanto Era Uma Vez... cia humana) como marca maior da estranheza do das duas, pelo menos nas profundidades
mento dos anos 1960, feche a década produ- e Cafuné, ou parcialmente no tableaux históri- com um mundo da alteridade como impossibi- que atingiu com dilemas parecidos, talvez um
zindo justamente 5x Favela – Agora Por Nós co de tensões sociais que é Quase Dois Irmãos lidade de se adequar ao espaço sociogeográfi- tanto inesperadamente, seja Julio Bressane. No
Mesmos, filme que reprisa o formato de um (cuja história de amor jovem entre classes so- co-cultural à sua volta, algo explorado nessa dé- díptico Cleópatra/A Erva do Rato, ele parte de
dos marcos iniciais do Cinema Novo, mas cha- ciais distintas encontra um duplo paródico- cada tanto em filmes que tiveram estrangeiros pressupostos quase opostos em escopo para
mando a atenção já no título para a mudança -alegórico em Seja o que Deus Quiser!). Nenhum em conflito com o Brasil (Ex isto, Tempos de Paz) tratar do mesmo mergulho radical: o pavor/fas-
do gesto: “Não mais nos julgamos moralmen- deles, porém, consegue escapar às armadilhas quanto o brasileiro em terra estrangeira (Jean cínio intrínseco do homem frente ao mistério
te capazes de falar pelo ‘povo’, agora eles fa- de tornar suas histórias de amor pregnantes Charles, Bollywood Dream, Budapeste); às vezes ameaçador do feminino.
lam por si mesmos”. No entanto, uma questão para além do fato de simbolizarem uma fissura até juntando as duas pontas numa narrativa só Finalmente, vale lembrar que o nosso gran-
essencial não muda: “eles” e “nós” continuam macrossocial maior que seus personagens – es- (Olhos Azuis) ou tendo um “estrangeiro em seu de gênero emergente da década, o do cinema
apartados, assumidos como categorias dis- ses resultam, quase sempre, pouco vivos. próprio país” (O Príncipe). espírita, se funda sobre nada mais nada menos
tintas. E mais: os “nós” de agora seguem pre- O que é uma pena, afinal não se deve esque- Mais fundo, porém, mergulharam Cinema, do que o “outro absoluto” da existência: o que
cisando dos “eles” de então, mesmo que no cer que a comédia romântica se funda sobre a Aspirinas e Urubus e Deserto Feliz, onde as dis- está (ou não) do lado de lá da morte. Se acal-
papel atual de produtores e como “imagem questão da alteridade – não por acaso um dos tâncias entre o ser e o entorno estranho não se mar/consolar o espectador/fiel para essa expe-
pública”, instância legitimadora do projeto. grandes sucessos editoriais recentes é o famo- mostravam maiores que as que existiam entre riência está na base do sucesso comercial do
É inegável que parte integrante dos objeti- so/infame Homens São de Marte, Mulheres São dois seres humanos. E é esta dimensão existen- gênero, também vale lembrar como As Cartas
vos do projeto seria provar que “eles” são capa- de Vênus. Uma radical distinção macho/fêmea, cial primeira que dá origem a frases como as Psicografadas por Chico Xavier, o documentá-
zes de filmar como “nós” (e isso é necessaria- em sua encarnação paródica, está no cerne do de Rimbaud e Sartre lá do início do texto. Esse rio de Cristiana Grumbach, leva ao paroxismo
mente bom?). Só que isso de alguma maneira maior sucesso comercial cômico do período, a “outro” inegável que parece distante simples- da fé a potencialidade do cinema de Eduardo
já estava indicado de forma bem mais potente série Se Eu Fosse Você, título que é expressão mente por “não ser eu”. É um dilema básico que Coutinho – pelo menos em sua versão pré-Jogo
lá atrás na década, quando Paulo Sacramento máxima de intenções de todo um gênero. Mas está na origem de filmes tão distintos quanto de Cena, onde outras questões tomam à frente.
também se usa do formato das tais “oficinas que também é a base de todo tipo de aproxi- Os Famosos e os Duendes da Morte e Feliz Natal, Afinal, ali Grumbach não faz nada de muito dis-
audiovisuais” (de cuja experiência, onipresen- mações da questão romântica, do existencial mas que parece particularmente o motor da tinto do Coutinho de O Fim e o Princípio: ao dar
te na década – em consonância com as políti- Insolação ao misterioso O Outro Lado da Rua; obra de duas cineastas: Suzana Amaral e Anna a ouvir o outro, tentar acessá-lo pelo que é, afi-
cas socioculturais do Governo Lula – nasceu o do “antenado” Elvis e Madona ao metalinguís- Muylaert. Não custa lembrar que o primeiro nal – espelho onde tento me achar e identificar,
projeto do novo Cinco Vezes Favela) para entre- tico Mulheres Sexo Verdades Mentiras. Mas os (e, até essa década, único) filme de Amaral era mesmo sabendo que é impossível.
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5x Favela – Agora À Margem da


por Nós Mesmos Imagem
de Cacau Amaral, Cadu de Evaldo Mocarzel
Barcelos, Luciana Bezerra, (2003, 72 min)
Manaira Carneiro,
Rodrigo Felha, Wagner Documentário que focaliza
Novais, Luciano Vidigal as rotinas de sobrevivência,
(2010, 96 min) o estilo de vida e a cultura
dos moradores de rua do
Em 1961, cinco jovens cineastas município de São Paulo.
de classe média realizavam
o filme “Cinco Vezes Favela”. Direção: Evaldo Mocarzel
Passadas quatro décadas, “5x Produção: Ugo Giorgetti
Favela – Agora por Nós Mes- Roteiro: Evaldo Corumbiara O Invasor Santiago
mos” reúne dessa vez jovens Mocarzel e Maria Cecilia de Vincent Carelli de Beto Brant de João Moreira Salles
moradores de favelas do Rio Loschiavo dos Santos (2009, 117 min) (2001, 87 min) (2007, 80 min)
de Janeiro apresentando cinco Fotografia: Carlos Ebert
filmes sobre diferentes aspectos Montagem: Marcelo Moraes Em 1985 um massacre de Ivan e Gilberto, sócios de Santiago começa como um fil-
da vida em suas comunidades. índios ocorre em Rondônia. uma empresa de construção me sobre o malogro de um filme
Bárbaro demais, o caso passa civil, contratam Anísio, um que não foi montado. As ima-
Direção: Cacau Amaral, por fantasia, e cai no esqueci- matador profissional, para gens de Santiago foram rodadas
Cadu Barcelos, Luciana mento. Duas décadas depois, assassinar Estevão, o sócio em 1992, mas por incapacidade
Bezerra, Manaira Carneiro, Corumbiara revela a busca majoritário. O crime é come- do diretor em editá-las, perma-
Rodrigo Felha, Wagner pelos sobreviventes e a versão tido, mas Ivan embarca numa neceram intocadas por mais
Novais e Luciano Vidigal dos índios sobre os fatos. crise de consciência, enquanto de 13 anos. Em 2005, o diretor
Produção: Carlos Diegues e Anísio aos poucos invade a voltou a elas. Queria compre-
Renata Almeida Magalhães direção, Produção, vida dos seus contratantes. ender a razão de seu insucesso.
Roteiro: Rafael Dragaud roteiro e fotografia:
Fotografia: Vincent Carelli Direção: Beto Brant direção, Produção e
Alexandre Ramos Montagem: Mari Corrêa Produção: Bianca roteiro: João Moreira Salles
Montagem: Quito Ribeiro Vilar e Renato Ciasca Fotografia: Walter Carvalho
Elenco: João Carlos Artigos, Roteiro: Marçal Aquino, Montagem: Eduardo
Flavio Bauruaqui, Zózimo Beto Brant e Renato Ciasca Escorel e Lívia Serpa
Bulbul e Vitor Carvalho Fotografia: Toca Seabra Elenco: Santiago Badariotti
Montagem: Manga Merlo e João Moreira Salles
Campion
Elenco: Marco Ricca,
Alexandre Borges, Paulo
Miklos e Malu Mader
56 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 57

Deslocamentos: inclusive por dentro dele (carros, ônibus). Sá-


bado à Noite lança-se a um percurso a esmo

para onde e por quê?


por uma noite em Fortaleza. Cine Tapuia viaja
pelo interior cearense com um projetor de fil-
mes. O Mundo em Duas Voltas dá um passeio
pelos mares com uma família (deslocamento
CLÉBER EDUARDO e unidade). Cinema, Aspirinas e Urubus, de mu-
danças entre um alemão e um pernambucano.
Todos esses filmes estão em movimento de um
lugar a outro, mas não se pautam pelo lugar
de onde partem ou para onde retornarão, mas
pelo trânsito e pelo movimento de transição,
independentemente de onde se chegue.
O deslocamento de Jean Charles, filme e
personagem, embora literal (um brasileiro na
Inglaterra), quase derivado de Terra Estrangeira,
não se encontra em trânsito. Temos ali a expe-
riência de um estrangeiro na luta pela sobrevi-
O deslocamento, um dos traços do cinema bra- os que, em qualquer lugar, de origem ou não, vência, em busca de uma estabilidade (e não de Jean Charles marca uma mudança em re-
sileiro dos anos 2000, pode ser encontrado pre- permanecem com o espírito dos deslocados. aventuras) – mas essa estabilidade é sempre lação a esse conjunto de filmes. Se ainda tive-
sente com força desde os 1990. Desde Carlota Os cinco filmes que exibiremos na progra- ameaçada por não ser dali. Deslocado como mos os estrangeiros entre nós, como em Cine-
Joaquina e Terra Estrangeira, na gênese do pro- mação são de diferenças estirpes, e tratam realocado. O personagem mineiro, radicado em ma, Aspirinas e Urubus (alemão em viagem a
cesso de retomada da produção após o tsunami de modos bem distintos os deslocamentos. Londres para progredir materialmente, embora trabalho pelo sertão), Cidadão Boilesen (nórdi-
Collor, essa característica estava evidente em Em Serras da Desordem e Pachamama, temos não seja o único da década a viver fora do Bra- co financiador de tortura no regime militar) e
muitos filmes, de Um Céu de Estrelas a Estorvo; deslocamentos literais, sobretudo no segundo, sil, certamente é o mais expressivo e calcado em Ex-isto (Descartes a queimar a moringa e o
de Kenoma a O Baile Perfumado, passando por em trânsito na estrada. Um índio pelos luga- em fatos concretos. Essa situação inverte outra método cartesiano sob o sol de Pernambuco),
Central do Brasil e tantos outros. Se tornava claro res dos brancos; um cineasta pela vizinhança mais comum nos anos 1990, a do estrangeiro o GPS dramático deu meia-volta e fez o con-
que havia uma crescente demanda de exílio na sul-americana em outro. O deslocamento não no Brasil, que marcou filmes, melhores e piores, traplano. De estrangeiros a estranhar o Brasil
produção brasileira, mesmo se esse exílio fosse é opcional em Serras da Desordem, mas fruto como A Grande Arte, Carlota Joaquina, Brincan- – com os ruídos e as afeições – a brasileiros a
no próprio interior do país, mesmo se contin- de uma circunstância social (o lugar do índio do nos Campos do Senhor, Jenipapo, O Quatrilho, lidar com o estrangeiro – com mais ruídos que
gencial, mesmo se de personagens de fora no na disputa por terras e interesses econômicos). O Xangô de Baker Street, O Baile Perfumado, O afeições. Por infeliz condicionante, Jean Char-
Brasil, mesmo se apenas marca de fluxos inter- Já no road movie de Pachamama, ele é quase Que é Isso Companheiro?, Bela Donna e Amélia, les, o filme, reflete algo além dele: um fenôme-
nacionais de corpos. A transitoriedade como mitológico. Em ambos, há identidades em jogo derivados em diferentes escalas de O Beijo da no social de trânsito de brasileiros em busca
uma marca histórica, em uma constância que – mas não individuais, não concluídas. Estamos Mulher Aranha, de Hector Babenco, filme mar- de trabalho. Não é a mesma viagem de Paco
pode ser reflexo do momento histórico, no qual no terreno da cultura e da política, antes de es- co de um momento de fossa em progressão, na em Terra Estrangeira, na metade dos anos 1990,
nunca tantos brasileiros moraram fora, viajaram paço do sujeito (ou por dentro dele). segunda metade dos anos 1980, com a marca metáfora do abandono do país de forma física
por dentro do país, deslocaram-se pela geografia. Houve outros filmes centrados no desloca- da transnacionalidade de produção somada e simbólica. Antes, Portugal, passado, origem,
Na última década, o exílio se expandiu, seja mento físico. O documentário Em Trânsito, por à desterritorialização diegética (empregada mito. Agora, Londres, futuro, projeto, pragma-
entre os que saem de seus lugares, seja entre exemplo, trata do transporte, em São Paulo, como metáfora generalizada). tismo. Esse movimento já havia sido ensaiado,
58 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 59

em outro contexto, pela dubladora de Dias Já em Brasilia 18%, o caminho é contrário ao tivo (acima de tudo). Como em outros filmes
Melhores Virão, de Cacá Diegues, que, em mo- de Jean Charles. Um homem retorna ao Brasil mencionados acima, o de Ernesto é físico,
mento de pindaíba (da personagem e do cine- com uma missão profissional e um trauma. motivado pelo prazer de se por em trânsito,
ma brasileiro), naquela fatídica esquina entre Está deslocado do lugar de origem, tem visões, de mudar de ares, de visão e de modos de
os 1980 e os 1990, coloca o voo internacional esbarra com os esquemas políticos, não deci- viver cada dia. O prazer do andarilho. Parece
como única perspectiva (pedra fundamental fra os códigos de conduta. Como o protago- até simbólico que a década tenha, aliás, um
de Terra Estrangeira). No entanto, o problema, nista de Árido Movie, que volta de São Paulo a filme com esse título: O Andarilho. Um olhar
ainda, era o Brasil, também como em Terra Rocha (Pernambuco) após a morte do pai, há formalista e um ouvido empenhado em ou-
Estrangeira. Ou estava no Brasil, como em Um um senso de superioridade do homem de fora, vir quem vive caminhando em estrada. O
Céu de Estrelas, em que, para respirar melhor, a de modo a salientar os atrasos dos lugares mesmo diretor, Cao Guimarães, em um filme Já o deslocamento como descolamento é a
manicure se prepara para ir para Miami. Mis- (Brasilia, Rocha). Também nos dois filmes há anterior, Acidente, era, ele mesmo, o próprio base de A Concepção, outro filme programa-
são: fazer um curso em sua área para ter mais momentos abertos a delírios – em ambos co- deslocado. Um filme cujo roteiro é um mapa, do, cujos personagens trocam de identidade,
chances na vida. nectados ao passado; íntimo em Brasilia 18%, e o método passa pelos nomes de cidades. O tentam não se deixar capturar, ficam de fora
Jean Charles já é o passo seguinte desses mitológico em Árido Movie. deslocamento como princípio, fim e meio. do sistema de controle, para estar dentro sem
antecedentes. Não vive mais naquele outro O Principe, De Passagem, O Céu de Suely Algo semelhante acontece em Estrada Real responsabilidade pelas ações, sem respeito
país cujo padrasto fez machucados sob a pele também são filmes de retorno, após partidas da Cachaça, que refaz caminhos históricos do pelas regulações. Estamos aqui diante da crise
com as suturas de cinta distribuídas com mais e exílios (menos ou mais duráveis, com razões país; ou em Ainda Orangotangos, um plano do sujeito em sua relação com um dispositi-
intensidade em outra esquina dolorida da políticas, afetivas, profissionais). sequência móvel que entra e sai de ônibus, vo sistêmico no qual ele é reduzido a registros.
história, essa bem mais convulsa - a dos 1960 Em O Príncipe, o brasileiro proveniente de troca de personagens, transita por Porto Ale- Como saída, ampliar o espaço de ação do su-
com os 1970, que, no cinema, teve como agen- Paris depois de muitos anos, ao chegar a São gre – onde explicitar o movimento da equipe jeito, jogar o registro fora. Mito da liberdade no
te e reação uma vertente radical, debochada e Paulo e reencontrar os amigos, acha tudo e é quase tão importante quanto o dos persona- sistema. O mal-estar predomina, se espalha e
agressiva de filmes ainda chamados de margi- todos estranhos – não se reconhece mais no gens. O deslocamento também como proces- estilhaça o messianismo do capitalismo ima-
nais. Filmes de deslocados, como os jovens de lugar, ou não reconhece mais o lugar em si. so de produção para além da diegese. Em dois terial. A Concepção talvez mostre primeiro a
Meteorango Kid. Os novos deslocados não se Lamenta e vai embora. Em De Passagem, um filmes, com quatro ou oito pés no Ceará, Viajo busca da abolição dos lugares, das identidades
querem marginais, mesmo esbarrando nesta rapaz retorna a São Paulo, para a periferia, por Porque Preciso, Volto Porque te Amo e Estrada regidas por referentes fixos, para depois expor
marginalidade?, mas sim inserir-se por outro conta de uma morte. Passa o filme em trânsi- para Ythaca, há essa viagem físico-criativa as fraturas geradas por essa falta de referente.
caminho. Não estão impedidos de circular, es- to pela cidade por conta de um cadáver antes conciliada com a viagem físico-existencial dos Mesmo fora do cinema, como é o caso do
tagnados entre paredes de controle, mas, cir- de partir de novo, sem saudade, pelo lugar do personagens. Não deixa de ser a lógica, guar- DocTv, o deslocamento está presente: além de
culando pelas fronteiras, clandestinamente ou qual está fora (e dentro ao longo do filme). Em dadas várias diferenças, de A Fuga da Mulher documentários centrados em movimento pela
não, sentem-se ainda com as paredes ao redor, O Céu de Suely, depois de voltar a Iguatu (Ce- Gorila, com duas jovens em uma Kombi, em cidade (Engarrafados, por exemplo), há a preo-
embora sejam de outro material. Vimos essa ará), com novidades e perda, Hermila planeja movimento e em paradas, mesma kombi par- cupação de enfocar os novos emigrados, como
mesma situação em filmes como Dois Perdi- outra saída: não se vê mais no lugar de onde tilhada pela equipe. Talvez possamos ainda em O Último que Sair Apaga a Luz, sobre bra-
dos numa Noite Suja, Olhos Azuis e Nina, com um dia saiu. É impulsionada a se deslocar de levar em conta o deslocamento multifacetado sileiros de mudança para o Canadá. Também
personagens fora de suas origens regionais e novo para se tornar outra pessoa e viver outra em Pacific, situado em viagem de navio, com entre os curtas começa-se a perceber, com fre-
nacionais. Deserto Feliz lida com esse desloca- vida em qualquer outro lugar. personagens deslocados de seus lugares, situ- quência, narrativas (fictícias ou não) ambien-
mento ainda com ponta de sonho para uma Há uma proximidade entre os desejos de ados em um lugar impessoal e transitório, que tadas em outros países – às vezes única razão
prostituta-menina. Budapeste, como perda de trânsito de Hermila-Suely e o Ernesto Gueva- aparecem em um filme deslocado da origem de ser dos filmes. Proposições, reflexos ou re-
identidade, já expressa na atividade profissio- ra em Diários de Motocicleta. A diferença está de suas próprias imagens, tendo em vista se- flexões, os filmes em questão aspiram, a seus
nal do protagonista: ghost writer. no deslocamento em si. O de Suely é subje- rem imagens dos habitantes do navio. modos, estar de mãos dadas com seu tempo.
60 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 61

A Concepção Brasília 18% Jean Charles Pachamama Serras da Desordem


de José Eduardo Belmonte de Nelson Pereira dos Santos de Henrique Goldman de Eryk Rocha de Andrea Tonacci
(2005, 96 min) (2006, 102 min) (2009, 93 min) (2008, 105 min) (2006, 135 min)

Alex, Lino e Liz são filhos de Renomado médico legista é Baseado no caso do brasileiro O filme narra a viagem do Carapiru é um índio nômade
diplomatas que vivem juntos convidado a dar seu parecer na Jean Charles de Menezes, as- diretor pela floresta brasileira que após ter seu grupo familiar
em Brasília num apartamen- identificação de uma ossada sassinado no metrô de Londres em direção ao Peru e à Bolívia, massacrado num ataque sur-
to vazio. Entediados, tentam supostamente pertence a uma por agentes do serviço secreto onde encontra a realidade de presa de fazendeiros consegue
viver cada dia como se fosse jovem desaparecida há meses. britânico ao ser confundido povos historicamente excluídos escapar e viver, durante dez
único. O processo radicaliza A decisão de Bilac é cercada de com um terrorista. O filme do processo político de seus anos, perambulando pelas ser-
quando X, uma pessoa sem expectativa, em função de inte- revela seus últimos meses da países, e que pela primeira ras do Brasil central. Sua história
nome e sem passado, entra na resses políticos por trás do caso. vida, a partir da chegada a vez na história buscam uma ganha as páginas dos jornais,
casa e propõe ir sem freios na Londres de sua prima Vivian. participação efetiva na cons- gerando polêmica em relação
ideia de viver apenas um dia.  Direção e roteiro: Nelson trução do seu próprio destino. à sua origem e identidade.
Pereira dos Santos Direção: Henrique Goldman
Direção: José Produção: Márcia Pereira Produção: Carlos Nader, Direção, roteiro e direção E Produção:
Eduardo Belmonte dos Santos e Maurício Henrique Goldman fotografia: Eryk Rocha Andrea Tonacci
Produção: Lili Bandeira, Andrade Ramos e Luke Schiller Produção: Leonardo Roteiro: Andrea Tonacci,
Paulo Sacramento e Fotografia: Edgar Moura Roteiro: Marcelo Starobinas Edde e Daniela Martins Sydney Possuelo e
Pablo Torrecillas Montagem: Alexandre e Henrique Goldman Montagem: Eryk Rocha Wellington Figueiredo
Roteiro: Luis Carlos Saggese Fotografia: e Eva Randolph Fotografia: Aloysio
Pacca e Breno Álex Elenco: Carlos Alberto Guillermo Escalón Raulino, Alziro Barbosa
Fotografia: André Luis da Riccelli, Malu Mader, Othon Montagem: Kerry Kohler e Fernando Coster
Cunha e André Lavenère Bastos e Carlos Vereza Elenco: Selton Mello, Montagem: Cristina Amaral
Montagem: Paulo Vanessa Giácomo, Luís Elenco: Carapirú, Tiramukõn,
Sacramento e José Miranda e Patrícia Armani Camairú e Myhatxiá
Eduardo Belmonte
Elenco: Matheus
Nachtergaele, Milhem
Cortaz, Rosanne Holland
e Juliano Cazarré
62 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 63

Obra em processo ou
processo como obra?
CLÉBER EDUARDO

ra um particular em relação a outros, posto positivo se evidencia. Em um, trata-se de pro-


em conflito – primeiras pessoas discretas nas curar o “Santo Graal” da fabulação oral – até
imagens, quase fantasmagóricas, que se co- encontrar, ou fazer do filme uma procura até a
locam diante de suas origens, ascendências, desistência da equipe. No outro, há um prazo
diante uma investigação motivada por uma para ensaiar uma peça de Tchekov.
ausência. Em Jogo de Cena, temos as relações Já em Juizo, não há sequer jogo, nem riscos,
entre as mulheres, entre as histórias de per- nem o dispositivo do descontrole, muito pelo
das e de amores, uma democratização da dor, contrário. Uma juíza e atores jovens interpre-
situada em um palco genérico e universal, tam audiências judiciárias ocorridas e reapre-
Dispositivo e processo. Essas foram palavras e como organizador do dispositivo, com menos o do teatro. Se Goifman e Kogut falam “eu”, sentadas. A juíza faz seu próprio papel; o dos
conceitos centrais da última década do cinema poder sobre o processo. Temos uma relação Coutinho jamais. Mais ouve que fala. E quan- réus adolescentes é interpretado por rapazes
brasileiro, principalmente em seu segmento produtiva entre cinema e vida, uma abertura a do fala quer acessar as mulheres, e não abrir maiores de idade. Tudo está posto às claras
documental (mas não só). A centralidade orga- imprevistos, um se deixar afetar pelo processo, o acesso à sua personagem no filme. desde o princípio. O que o une a Jogo de Cena
nizadora da enunciação transferiu-se, progres- a ponto do processo ser tema ou ser a própria Apesar de diferentes em quase tudo, tanto é a procura da representação, de reapresentar
sivamente, para um esquema criativo gerador obra, de forma explícita, como uma espécie de Jogo de Cena como Juizo, de Maria Augusta Ra- um momento ocorrido – algo bem diferente
de algum descontrole. Esse cultivo da insta- jogo com prazos e ordenação das peças. No mos (2007), partem da mimese. Em um, ela é de encenar uma situação fictícia. Atrizes imi-
bilidade, desestabilização dos pressupostos, é entanto, o autor, depois de jogar com o impre- a matéria do jogo: quem imita quem? Temos tam mulheres sofridas e atores imitam jovens
provocado por uma regra, por um método, que visto na filmagem, retoma o controle na mon- reflexões das atrizes, provocações verbais do infratores. Diferença: não sabemos quem são
parte de determinadas limitações de procedi- tagem, propondo relações, ou uma programa- diretor. Na teia de aranha da montagem, o todas as mulheres que interpretam. Desloca-
mentos para gerar situações não programadas. ção posterior à filmagem. controle é matemático, a busca é por uma for- mento da certeza sobre a reapresentação. O
O dispositivo criativo – não o de exibição Isso quando o autor não se torna também ma rigorosa, nada porosa para o risco. Esses se processo está dado como regulador de uma
e percepção – é um programa de desprogra- personagem, como nos casos de Kiko Goif- limitam à filmagem (e apenas parcialmente). forma de percepção dos acontecimentos, mas
mação. Sobretudo a desprogramação do au- man, em 33 (2003); Sandra Kogut, em Um Pas- Na obra conclusa, importa o efeito, a dúvida, a sem se estabelecer como uma lógica acima da
tor e da autoria como exercício de controle saporte Húngaro (2001); ou Eduardo Couti- crença, o processo como meio. É em O Fim e o noção de obra.
em nome de intencionalidades anteriores ao nho, em Jogo de Cena (2007) e Moscou (2009). Princípio (2005), filme anterior de Coutinho, e Se em Jogo de Cena e em 33 ainda há o autor
contato entre equipe de cinema e vida. O autor Nos dois primeiros, temos o particular, embo- em Moscou (2009), filme seguinte, que o dis- como personagem, e se em ambos também os
64 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 65

diretores aparecem apenas parcialmente, qua- cionamento e seus tipos humanos, na monta-
se como sombra, em Juízo e em Pacific (2009) gem repõe o autor no controle das ordenações
os autores se manifestam na exposição de seus dos fragmentos. Não há uma resignificação e
métodos nos letreiros iniciais. Em Pacific, nem uma reutilização das imagens originais, como
sequer há um autor atrás das câmeras: todas as em Pacific, mas uma associação na filmagem
imagens de viagens em navios são registradas dos personagens com a equipe. O processo
pelos próprios passageiros do cruzeiro, e a au- está presente para além de uma cartela, mas
toria é construída na montagem pelas relações o filme não mostra apenas o processo, está in-
dos registros de diferentes câmeras e pessoas teressado no resultado dele.
(os operadores e diretores de fotografia amado- Diferente de A Pessoa é para o que Nasce
res). As imagens se autocelebram, mas não são (2004), cujo processo foi cíclico: de um curta
do autor do filme. Caberá à autoria encontrar para um longa, com várias idas às persona-
um discurso diferente do tom festivo das ima- gens em Campina Grande (PB), separadas por
gens de autoria terceirizada. hiatos. O diretor se torna personagem, quase
Em O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), o herói das três irmãs cegas, tocadoras de ganzá,
diretor não aparece. Parte das imagens no in- a ponto de uma se apaixonar por ele. Menos
terior do complexo presidiário do Carandiru é um filme feito com elas, mas um filme de au-
captada pelos detentos, alunos de uma oficina topropaganda, que mostra, sempre que pode, si mesmo, transformando-se mais em show e várias câmeras, como em um BBB, no filme
da equipe do filme – mas a organização em- o elogio delas ao diretor – mas que, como menos em método-estratégia para uma obra, de Brant, portanto quase sem relação entre
penhada em decodificar o presídio, seu fun- vemos ao final, não é suficiente para tirá-las como se pode notar nas realizações de perfor- diretor e elenco; e mediada por uma câmera
de suas condições no solo da sociedade. Bem mances narrativas chamadas de live cinema. íntima e claramente pontuada pelo olhar de
mais sutil, mas não menos evidente, são as Embora tenha levantado a mão nessa década, quem filma em Os Residentes.
relações da equipe com as personagens em A somente essa década em início poderá nos Cada processo, portanto, com seu dispositi-
Falta que me Faz (2009). Nenhuma propagan- apontar com mais clareza as possibilidades vo. Ou o contrário. Foi uma década de palavras
da, nenhuma indiscrição. Pede-se licença, en- desse processo, não como novidade apenas, que, pelo uso cotidiano, tiraram delas algum
canta-se com quem se vê e ouve, dá-se tempo mas como potência estética. consenso de aplicação. A própria relação en-
à fala, conversa-se mais que se pergunta. No Cabe ainda destacar duas experiências nas tre filmes tão dispersos e tão opostos às vezes
final, uma das personagens inverte o papel e quais o processo pode ser particular, de pro- apenas se coloca aqui como expressão de um
começa a fazer perguntas pessoais à equipe, cura e risco, não de confirmações, mas sem self service, no qual em um mesmo prato pode
menos para desestabilizá-la, mais para exercer colocar os bastidores na frente das câmeras: haver sushi e feijoada. O desafio para a década
uma curiosidade e acentuar os laços. O filme é O Amor Segundo B Schianberg, de Beto Brant, seguinte, a partir ou não dessas fusões de fic-
o processo, não porque deseja se expor como todo ambientado em um apartamento; e Os ção e documentário (que traz para nossa dança
processo, mas porque o processo é o filme. Residentes, de Tiago Mata Machado, que tem também filmes como Avenida Brasília Formosa,
A ficção também esteve implicada. Desde uma casa como um de seus núcleos. Para além Morro do Céu e O Céu Sobre os Ombros), será ir
filmes simuladores de processo, ou processos de lidarem com situações muito distintas, um mais adiante na reflexão crítica e estética em
de simulação, que se se tornam experiências na subjetividade teatralizada, outro em uma relação a esses filmes, passando da celebração
processuais na filmagem, como A Falta que subjetividade amalgamada a um projeto para de um processo menos centrado para um ques-
nos Move e Filmefobia, até o processo como além dela, ambos investem à sua maneira na tionamento propositivo sobre os efeitos desses
dispositivo de exibição e como marketing de relação forte com os atores. Ela é mediada por processos na obra quando exibida e percebida.
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33 Jogo de Cena
de Kiko Goifman de Eduardo Coutinho
(2003, 74 min) (2007, 105 min)

O diretor Kiko Goifman sempre Atendendo a um anúncio de


soube que era filho adotivo, mas jornal, dezenas de mulheres
aos 33 anos decidiu procurar contaram suas histórias de vida
a mãe biológica. A partir de ao cineasta Eduardo Coutinho
pistas dadas por detetives de em um teatro do Rio de Janeiro.
São Paulo e Belo Horizonte, Depois, atrizes interpretaram, ao
o cineasta realizou o filme, seu modo, as histórias contadas
baseado no diário on-line que pelas personagens escolhidas.
escreveu durante a busca.
Direção: Eduardo Coutinho
Direção e fotografia: Produção e roteiro:
Kiko Goifman Raquel Freire Zangrandi
Produção: Jurandir Muller e Bia Almeida
Roteiro: Kiko Goifman Fotografia: Jacques
e Cláudia Priscilla Cheuiche Juízo O Prisioneiro da Pacific
Montagem: Diego Gozze Montagem: Jordana Berg de Maria Augusta Ramos Grade de Ferro de Marcelo Pedroso
Elenco: Marília Pêra, Andrea (2007, 90 min) de Paulo Sacramento (2009, 73 min)
Beltrão e Fernanda Torres (2004, 124 min)
O filme acompanha a trajetória Uma viagem de sonho em
de jovens com menos de 18 anos O sistema carcerário brasileiro um cruzeiro rumo a Fernan-
de idade diante da lei. Meninas visto de dentro. Um ano antes do de Noronha. As lentes dos
e meninos pobres entre o instan- da desativação da Casa de passageiros captam tudo a
te da prisão e o do julgamento Detenção do Carandiru, em São todo instante. E eles se diver-
por roubo, tráfico, homicídio. Paulo, detentos aprendem a tem, brincam, vão a noitadas.
usar câmeras de vídeo e docu- Desfrutam de seu ideal de
Direção e roteiro: Maria mentam seu cotidiano no maior conforto e bem-estar. E, a cada
Augusta Ramos presídio da América Latina. dia, aproximam-se mais do tão
Produção: Diler Trindade sonhado paraíso tropical…
Fotografia: Guy Gonçalves Direção e roteiro:
Montagem: Maria Augusta Paulo Sacramento Direção, roteiro e
Ramos e Joana Collier Produção: Gustavo montagem: Marcelo Pedroso
Steinberg Produção: Milena
Fotografia: Aloysio Raulino Times e Perola Braz
Montagem: Idê Lacreta
e Paulo Sacramento
68 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 69

O que pulsa
além dos longas?
EDUARDO VALENTE
está no formato das séries de TV e telefilmes No entanto, até recentemente havia uma
– uma hipótese que pode ou não se compro- sensação ainda clara de que “fazer cinema era
Qualquer argumentação ou historiografia mudança de termos, enquanto no passado se var (não é nosso assunto aqui), mas que certa- fazer cinema” e “fazer TV era fazer TV”. Entre
séria que reduza o cinema de um país ou de podia quase resumir a obra de um cineasta à mente faz tanto sentido como qualquer outra. uma telenovela e um longa-metragem havia
um período à produção no formato de longa- sua produção de longas, agora cada vez mais De qualquer maneira, nos parece interessan- diferenças irreconciliáveis, assim como um
-metragem estaria furada. Se esta afirmação esta obra passa por plataformas, formatos e te pensarmos um pouco sobre o quanto de teleteatro ou uma série de TV, dentro do for-
nos parece ponto pacífico, no entanto, quan- espaços distintos, de uma maneira muito flui- aproximações (e ainda de distâncias) existem mato clássico estabelecido, possuíam caracte-
do propusemos a mostra retrospectiva dos da. E, mais do que isso: a estética, dramaturgia, entre estes dois espaços hoje – notando, inclu- rísticas estanques. Não queremos tratar aqui
anos 1990 era plenamente possível propor narrativas de cada um destes “lugares” audio- sive, várias questões que são bastante especí- da questão multilateral do que é uma possí-
um recorte do cinema brasileiro do período visuais vão trocando influências e caminhos ficas da situação brasileira. vel “linguagem da telenovela” em relação à
baseado somente nos longas que fizesse sen- de uma forma que não permite mais isolar Desde que a TV se impôs no Brasil como a do cinema, embora isso tenha importância no
tido como discurso – desde que assumindo- uma da outra. Por isso, se impôs com muita principal produtora de dramaturgia audiovi- período (ver a questão sobre os gêneros), mas
-se em sua parcialidade. clareza para nós que esta retrospectiva não sual, não se pode deixar de notar as inúmeras sim ir mais longe e perceber o quanto, para
Mas a verdade é que, diferentemente de poderia deixar de levar em conta essa dimen- passagens entre os ambientes, principalmen- inúmeros autores e obras/produtos, passou-
outros momentos, ao olharmos para o que são múltipla, pelo menos se ela quisesse che- te de autores de um meio a outro. Não por aca- -se a habitar territórios híbridos, antes quase
chamamos de “cinema brasileiro” nos anos gar a qualquer ponto minimamente conecta- so, alguns nomes centrais da teledramaturgia impossíveis de se misturarem.
2000, ao menos dois sintomas se impõem do com o que acontece hoje no audiovisual (ou brasileira, até hoje, são oriundos do cinema Nesse sentido, nenhuma trajetória no pe-
comprovando o quanto este recorte, mesmo no cinema) brasileiro – como queiram. brasileiro (para ficarmos somente em alguns, ríodo de nossa retrospectiva parece tão fasci-
assumindo-se parcial, seria hoje impossível. Nesse sentido, talvez o ambiente que mais precisamos no mínimo lembrar de Carlos nante e esclarecedora (ou seria “não esclare-
Primeiro, temos o fato de que a noção de “cine- radicalmente mudou no panorama atual da Manga, Roberto Farias, Antonio Calmon e Sil- cedora”?) como a de Luiz Fernando Carvalho.
ma” passa a ser cada vez mais atropelada pela produção mundial seja mesmo o que antes vio de Abreu); o mesmo tendo marcado du- Realizador de um curta em 35mm nos anos
de audiovisual (basta notar as nomeações dos separava claramente o espaço da televisão da- rante um bom tempo nossa produção docu- 1980, seu nome se impôs ao longo da década
cursos universitários da área), algo que pare- quele do cinema. Não por acaso, só para pegar- mental (basta lembrarmos o quanto Eduardo de 1990 pelo seu trabalho na televisão, tra-
ce ter mais sentido do que apenas as simples mos um exemplo, muitos teóricos e críticos de Coutinho, talvez o principal documentarista zendo uma assinatura visual bastante forte
implicações imediatas indiquem. Em segundo respeito afirmam que, hoje, o que de melhor do cinema brasileiro, afirma a importância da a determinadas telenovelas de sucesso (algo
lugar, dentro do panorama indicado por essa se produz em termos de audiovisual nos EUA passagem pela TV na sua carreira). em si bastante raro). Pois este diretor abre a
70 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 71

década realizando, em 2001, um dos longas da TV, especialmente a aberta (onde realizou a mum no documentário, em que programas curta que se impuseram algumas questões
mais marcantes da mesma (Lavoura Arcaica) série Som e Fúria). públicos como o DocTV ou encomendas priva- estéticas e de dramaturgia que logo desem-
– curiosamente tão difícil de se “categorizar” Mas, por mais que esses trabalhos todos ve- das como as do Retratos Brasileiros, do Canal bocaram na produção dos longas. A sessão
e de se aproximar de outras obras do cinema nham de autores que passeiam de um meio a Brasil, geraram produtos híbridos, exibidos às de curtas que programamos aqui na mostra
no período, como já eram considerados seus outro, completando sua obra em plataformas vezes em um formato na TV, e depois circu- tenta servir de um resumo de todos esses ca-
trabalhos na TV. Só aí já vemos como, para en- distintas, ainda se pode dizer que eles ao me- lando pelos festivais de cinema como longas minhos, não apresentanto os “melhores”, mas
tender o universo deste autor (que parece tão nos encontravam espaços distintos de exibi- e/ou médias. O caso específico do DocTV, aliás, vários exemplos distintos.
fechado e dotado de uma lógica interna como, ção. Menos claro, e ainda mais imbricado, foi o ainda precisa ser estudado com muito mais Um dos filmes que exibiremos nessa sessão,
digamos, a de um Bressane ou um Carlos Rei- trajeto de alguns produtos que passearam do atenção, já que a produção que o possibilitou Man.Road.River, de Marcellvs L., traçou uma car-
chenbach), precisamos seguir um caminho de cinema à TV e vice-versa. Algo que já começou surgir nacionalmente, ao longo de suas qua- reira rara em festivais de cinema de materiais
ida e vinda que mistura TV e cinema. Depois a acontecer no fim da década passada, com o tro temporadas, esteve, muitas vezes, entre o que têm ampliado cada vez mais sua visibili-
de sua experiência única em longas, ele pare- sucesso da versão em longa da série O Auto da que de mais forte se produziu em matéria de dade: os que aproximam cinema/audiovisual
ce escolher o (improvável) campo da TV aberta Compadecida, de Guel Arraes, mas que, curio- documentário no Brasil na década. Exibiremos das artes plásticas/artes visuais. A aproxima-
para radicalizar cada vez mais suas escolhas e samente, viu novas tentativas nesse caminho na mostra alguns exemplos destes trabalhos ção entre museus/galerias e salas de cinema já
pesquisas dramatúrgicas e visuais, contando encontrarem cada vez menos sucesso nos (em suas versões para a TV), mas um estudo é tema comum de reflexão, mas no geral, com
ali com uma rara mistura de liberdade criati- cinemas (Caramuru, e depois lançamentos profundo sobre o todo dessa produção ainda poucas exceções (entre elas, principalmente
va e acesso aos meios de produção. Ao fim de limitados de séries do próprio Luiz Fernando se faz necessário. Cao Guimarães e Arthur Omar), nomes como
uma década, ele assinou seis minisséries na Carvalho). Assim, foi se tornando mais comum Falamos muito de TV, até pelos vários ca- os de Cinthia Marcelle, Maurício Dias e Walter
Rede Globo, que impõem um olhar e que o tor- o contrário: transformar em séries alguns lon- minhos, mas é preciso notar como uma outra Riedweg (Mau Wal?), Lia Chaia, Nuno Ramos,
nam, ao mesmo tempo, um dos mais prolíficos gas-metragens (como foi o caso recente de O produção alternativa a dos longas se mostra Thiago Rocha Pitta ou Sara Ramo ainda circu-
e influentes “autores audiovisuais” do período Bem Amado, do próprio Arraes, ou Chico Xavier) decisiva e amadurecida no período: a dos cur- lam muito pouco no meio cinematográfico, fi-
– mesmo tendo feito apenas um longa. – algo que respeita mais a lógica tradicional do tas-metragens. Se os anos 1990 começam a ver cando mesmo restritos a um espaço considera-
Se o caso de Carvalho é único, há outros que mercado. No entanto, é bastante notável que uma explosão em números da produção no do como “outro domínio”, talvez até por opção
se aproximam aqui e ali, como na investida de obras cinematográficas brasileiras tenham formato e a montagem de um circuito nacio- pessoal deles. Essa é certamente uma dimen-
nomes “consagrados” no cinema, como os de inspirado no período produtos novos e exclu- nal de festivais que amplia em muito as tro- são que tende a avançar nos próximos anos.
Karim Aïnouz e Sérgio Machado (Alice), José sivos para a TV, como as séries Cidade dos Ho- cas (práticas ou estéticas) entre realizadores Finalmente, é preciso notar que ainda mal
Henrique Fonseca (Mandrake) ou Cao Hambur- mens, Carandiru, Ó Pai Ó, e, em breve, A Mulher de todo o Brasil, nos anos 2000 a maturidade começamos a tocar com real interesse nas
ger (Filhos do Carnaval) no campo da ficção se- Invisível. Este caminho demonstra uma visibili- do formato digital como opção de realização dimensões que a internet ainda poderá apre-
riada – só que aqui pela via da TV a cabo, local dade e atrativo comercial de produtos originá- torna o curta-metragem definitivamente de- sentar de novidade e imbricações. Fala-se na
por excelência onde aconteceu tudo de mais rios do cinema nacional sendo afirmada pela cisivo no que sempre foi sua maior qualidade sua fusão com a TV no futuro, mas a verdade é
forte, por exemplo, na teledramaturgia ame- janela mais lucrativa e popular do audiovisual – a abertura e indicação dos novos caminhos que até agora ela tem sido mais meio do que
ricana do período; mas que no Brasil ainda se (a TV aberta), algo bastante raro. e autores. Assim, por um lado vimos ao longo espaço de autêntica novidade. Claro que ver
encontra em estágios iniciais de penetração Por outro lado, também houve cineastas da década uma série de realizadores criando exemplos de penetração viral de coisas como
no imaginário coletivo. É preciso ainda lembrar usando financiamentos a partir de projetos uma autêntica e numerosa obra no período, Tapa na Pantera ou Dilmaboy cria significados,
da opção afirmada num certo momento por para TV para dar seguimento (ou início mes- reconhecida inclusive em festivais internacio- mas ainda não se conseguiu amadurecer de
Fernando Meirelles, um dos nomes de maior mo) à sua obra em longas. Isso foi mais raro nais (um jovem como Kleber Mendonça Filho, fato algo que a internet traga em termos de
visibilidade do cinema nacional atual, de que na ficção – como foi o caso de Beto Brant, cujo por exemplo, já teve uma retrospectiva sua conteúdo que possa mesmo fazer a arte au-
só via sentido fazer audiovisual para comuni- Amor Segundo B. Schianberg se originou como no Festival de Roterdã, antes mesmo de filmar diovisual avançar com força. Mas, claro, ape-
cação com o público no Brasil se fosse a partir série da TV Cultura –, mas bastante mais co- seu primeiro longa). Da mesma forma, foi no nas começamos a tatear.
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Avenida Brasília Helena Zero Vida


Formosa de Joel Pizzini de Paula Gaitán
de Gabriel Mascaro (2005, 30 min) (2008, 28 min)
(2008, 52 min) Ensaio documental sobre o uni- Vida é um filme sobre a atriz
Por meio da manipulação do verso criativo da atriz e cineasta brasileira Maria Gladys. Vida é
diretor, os personagens reais Helena Ignez, que, por meio de luz e sombra. Vida é um filme de
reencenam suas vidas e esta- um ritual de tai chi chuan, evo- celebração, uma homenagem
belecem uma rede de relações ca e reinventa a memória. Uma à potência de estar viva, uma
fictícias (ou não) a fim de revelar artista em seu eterno recomeçar. reflexão do que é ser uma atriz
a multiplicidade de sentidos brasileira e a possibilidade de
A Pedra do Reino Acidente As Vilas Volantes: para o tradicional bairro popu- Direção e roteiro: se doar com paixão e criati-
de Luiz Fernando Carvalho de Cao Guimarães e Pablo O Verbo Contra lar de Brasília Teimosa, no Recife. Joel Pizzini Produção: vidade. A construção da ação
(2007, 230 min) Lobato (2006, 52 min) o Vento Paloma Rocha poética do ator como um grito
Quaderna, um velho palhaço, Instigada por um poema com- de Alexandre Veras direção, Produção e Fotografia: Eryk Rocha de liberdade que ilumina.
narra em pleno espetáculo de posto pelos nomes de 20 cidades (2006, 52 min) roteiro: Gabriel Mascaro Montagem: Joel Pizzini
rua a História de sua Família, de Minas Gerais, a equipe de Pequenas vilas pesqueiras no Fotografia: Ivo Lopes Araújo e Robson Rumin Direção e roteiro:
uma saga sangrenta que mis- filmagem percorre cada uma Ceará seguem permanente- Montagem: Tatiana Almeida Paula Gaitán
tura Reis, Cangaceiros, Místicos delas. O documentário se faz mente movendo-se por ação Produção: Pedro
e Poetas do Sertão. Preso, escreve por meio de duas camadas do vento deslocando dunas, Morro do Céu Tavares e Ana Sette
essa rapsódia revelando seu narrativas – uma formada embora a memória dessas vilas Estafeta – Luiz de Gustavo Spolidoro Fotografia: Janice d’Avila
desejo de instaurar uma “mo- pela história do poema e a permaneça muito vívida na Paulino dos Santos (2008, 52 min) Montagem: Daniel
narquia de esquerda”, popular outra, pelos eventos comuns mente de seus habitantes, que de André Sampaio O filme retrata o cotidiano de Paiva e Paula Gaitán
e literária, para então sagrar- que surgem diante da câmera através do verbo reconstroem (2008, 53 min) um grupo de jovens moradores
-se gênio da raça brasileira. em cada uma das cidades. lugares, hábitos e práticas Aventura de Luiz Paulino dos da cidade de Cotiporã, nas serras
que não mais existem ou Santos através da Memória gaúchas. A partir das impossibi-
Direção: Luiz Direção, roteiro, estão prestes a desaparecer. do Cinema brasileiro, 40 anos lidades e barreiras da sociedade
Fernando Carvalho fotografia e montagem: vivenciando diversos modos da conservadora e católica onde
Produção: Maria Clara Cao Guimarães e direção, Produção e produção de cinema no país. vivem, os jovens de Cotiporã
Fernadez e Paulo Schmidt Pablo Lobato roteiro: Alexandre Veras tentam construir a sua liberda-
Roteiro: Luís Alberto de Produção: Beto Magalhães Fotografia: Ivo Lopes direção, Produção e de e individualidade, buscando
Abreu, Bráulio Tavares e e Pablo Lobato e Alexandre Veras roteiro: André Sampaio assim inventar a sua história.
Luiz Fernando Carvalho Montagem: Alexandre Fotografia: Gabriela
Fotografia: Adrian Teijido Veras, Fred Benevides Gusmão Direção e fotografia:
e José Tadeu Ribeiro e Ruy Vasconcelos Montagem: Severino Gustavo Spolidoro
Montagem: Marcio Dadá e André Sampaio Produção: Patrícia
Hashimoto Soares Dias Goulart
Elenco: Irandhir Santos, Roteiro: Gustavo Spolidoro
Abdias Campos, Allyne e Bruno Carboni
Pereira e Américo Oliveira Montagem: Bruno Carboni
74 CINEMA BRASILEIRO Anos 2000, 10 questões 75

Convite Para Imprescindíveis Nevasca Tropical Palíndromo


Jantar Com o de Carlosmagno Rodrigues de Bruno Vianna de Philippe Barcinski
Camarada Stalin (2003, 6 min) (2003, 12 min) (2001, 11 min)
de Ricardo Alves Jr. Tentando criar uma ficção, um O cinema brasileiro visita a fa- Um homem perde tudo que
(2007, 9 min) pai manipula seu filho, e este vela: a entrega de um saco de pó tem. Uma história simples
Entre o sonho e a morte, reage e subverte a situação deflagra uma confusão épica. contada de forma inusitada.
Olga e Marilu esperam um com ironia e perspicácia.
convidado para jantar. Direção e roteiro: Direção e roteiro:
direção, Produção, Bruno Vianna Philippe Barcinski
direção, Produção e roteiro, fotografia Produção: Marcelo Laffitte Produção: Juliana
roteiro: Ricardo Alves Jr. e montagem: Fotografia: Dudu Miranda Santonieri
Fotografia: Tomás Carlosmagno Rodrigues Montagem: Daniel Garcia Fotografia: Hélcio
Perez Silva Elenco: Leonardo Bruno Ivas Elenco: André Santino, Elza Alemão Nagamine
Montagem: Pablo Lamar, Soares e Gustavo Falcão Montagem: Raimo Benedetti
Pablo Panagua, Guanfranco Elenco: Eucir de
Rolando e Ricardo Alves Jr. Man.Road.River Souza, Eugênio Puppo
Elenco: Marilu Luiz de Marcellvs L Noite de Sexta, e Silvio Restiffe
curtas
Wenzin e Olga Banciella (2004, 10 min) Manhã de Sábado
A man. A road. A river. de Kléber Mendonça Filho
(2006, 15 min) Um Ramo
Fantasmas direção, Produção, Homem encontra mulher. de Marco Dutra e
de André Novais Oliveira roteiro, fotografia e Juliana Rojas
(2010, 11 min) montagem: Marcellvs L direção, Produção, (2007, 15 min)
O fantasma da ex. fotografia e montagem: Clarisse descobre uma pe-
Kleber Mendonça Filho quena folha crescendo
Direção e roteiro: Muro Roteiro: Bohdana Smyrnova em seu braço direito.
André Novais Oliveira de Tião e Kleber Mendonça Filho
Produção: Alessandra (2008, 18 min) Elenco: Bohdana Direção e roteiro: Marco
Veloso, Matheus Antunes Alma no vazio, deserto Smyrnova e Pedro Sotero Dutra e Juliana Rojas
e Thiago Taves em expansão. Produção: Sara Silveira
Fotografia e montagem: Fotografia: Matheus Rocha
Gabriel Martins Direção e roteiro: Tião Ocidente Montagem: Caetano
Elenco: Gabriel Martins, Produção: Lívia de Melo de Leonardo Sette Gotardo
Maurilio Martins e e Tathianne Quesado (2008, 6 min) Elenco: Eduardo Gomes,
Gabriela Monteiro Fotografia: Pedro Urano Um casal em viagem. Gilda Nomacce, Helena
Montagem: João Maria Albergaria e Júlia Albergaria
Elenco: Renata Lima, direção, Produção,
Antônio Edson, Inaê roteiro, fotografia e
Veríssimo e José Humberto montagem: Leonardo Sette

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