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308
Junho 2017
O fim do breve ciclo da cidadania social no Brasil
(1988-2015) 1
Eduardo Fagnani 2
Resumo
A Constituição de 1988 inaugurou um ciclo de construção e afirmação embrionária da cidadania
social no Brasil. Pela primeira vez, desenhou-se o embrião de um sistema de proteção social
inspirado em alguns dos valores do Estado de Bem-Estar Social. Entretanto, a reação das classes
dominantes começou antes mesmo de o documento impresso sair da gráfica do Congresso;
intensificou-se agudamente a partir de 1990; teve sequência na primeira metade da década passada
e, após curta trégua, ela retoma seu curso em marcha antidemocrática e antipopular. O golpe
parlamentar expressa a vontade dos detentores da riqueza de liquidar com a cidadania social
formalmente conquistada em 1988, concluindo um trabalho iniciado há quase trinta anos. A
radicalização do projeto liberal caminha no sentido de levar ao extremo a reforma do Estado;
aprofundar a arquitetura institucional ortodoxa na gestão macroeconômica; e destruir as bases do
embrionário Estado Social.
(1) Este texto é uma versão preliminar de capítulo do livro organizado por Lena Lavinas e Rubén Lo
Vuolo a ser publicado em inglês e espanhol. Concluído em dezembro de 2016.
(2) Professor do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do
Trabalho (Cesit-IE-Unicamp) e coordenador da rede Plataforma Política Social
(www.plataformapoliticasocial.com). E-mail: eduardo.fagnani@uol.com.br.
(3) É nesta perspectiva mais ampla que se compreendem as investidas do governo Collor visando a
desfigurar a Seguridade Social; o Orçamento da Seguridade Social; o Plano de Benefícios, Custeio e
Organização da Previdência Social; a Lei Orgânica da Saúde (LOS); o veto integral ao Projeto de Lei Orgânica
da Assistência Social (Loas); as contramarchas da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBE); as
novas distorções no financiamento do Seguro Desemprego; e os desvios na regulamentação do artigo 8o da
Constituição Federal (referente aos direitos trabalhistas e à organização sindical) (Fagnani, 2005).
algo inédito nos últimos 50 anos. O reconhecimento desse fato, no entanto, não
implica endossar a ideia de que teria sido implantado um “novo modelo de
desenvolvimento”. Também não se sustenta a visão de que os governos
progressistas eleitos no Brasil e em diversos países da América Latina seriam
“pós-neoliberais” (Sader, 2014).
Segundo Singer (2012, p. 96-99), a atuação dos governos do Partido dos
Trabalhadores, pautou-se pelo “reformismo fraco” assentado no “modelo de
transformação lenta e dentro da ordem”, por meio de mudanças graduais, “sem
rupturas”. Segundo o autor, a “Carta aos Brasileiros” (junho de 2002), além de
representar o “abandono da postura anticapitalista”, também sinalizou uma
mudança profunda no campo da política de alianças, campo em que se fez “um
verdadeiro mergulho no pragmatismo tradicional brasileiro”. Uma vez no poder,
o partido não procurou neutralizar o peso dessas alianças. Ao contrário, o
pragmatismo eleitoral levou essa prática ao extremo. Ao mesmo tempo, o partido
distanciou-se das suas bases populares, abriu mão da disputa pela hegemonia na
sociedade, abdicou de um projeto de sociedade por um projeto de poder.
Em parte por essas razões, os governos petistas mantiveram a gestão
macroeconômica assentada no “tripé” ortodoxo introduzido em 1999. Pouca
ênfase foi dada à realização da Reforma Política, à Regulação dos Meios de
Comunicação, à Reforma Tributária e à Reforma Agrária. A ambiguidade com
relação à desregulamentação dos direitos trabalhistas e sindicais permaneceu
nessa quadra (Klein; Santos; Nunes, 2012); a consolidação da Seguridade Social
de acordo com os princípios estabelecidos pela Constituição também não foi
objeto dos governos petistas (Fagnani; Tonnelli Vaz, 2013). Pouca relevância foi
atribuída à questão do esvaziamento do pacto federativo; e, no caso da
mercantilização da oferta de serviços sociais, observa-se não apenas a
manutenção, mas também o incentivo, em diversas frentes da política social.
(4) Segundo pesquisa elaborada pela Corporación Latinobarómetro, organização não governamental
apoiada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pela Transparência Internacional
<http://www.cartacapital.com.br/sociedade/em-um-ano-apoio-a-democracia-no-brasil-cai-de-54-para-32>.
(5) <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/226576-ajuste-inevitavel.shtml>.
(6) <http://www.valor.com.br/arquivo/893219/duas-rotas-que-levam-reducao-da-taxa-de-juros>.
(7) <http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/08/24/senado-aprova-proposta-que-prorroga-
a-dru-ate-2023>.
Figura 1
Simulação das despesas públicas com a vigência da PEC 55 – 2015/2036
20,0%
1,6%1,6%
18,0% 1,6% 1,6%
1,5%
1,5%
2,4%2,4% 1,5%
2,4%2,3% 1,4%1,4%
16,0% 2,4% 1,4%1,3%
2,3%2,2% 1,3%1,3%
2,2%2,1% 1,2%1,2%
14,0% 2,1%2,0%
2,0%2,0% 1,2%1,2%
1,9%1,9% 1,1%1,1%
12,0% 1,8%1,8% 1,1%1,1%
7,8%7,3%6,8%6,4%6,0% 1,8%1,7% 1,0%
7,0% 5,6%5,2%5,1%4,7%4,3% 1,7%1,7%
3,9%3,6%3,2%2,8% 1,6%
PIB
10,0% 2,5%2,2%1,8%1,5%
1,2%0,9%0,6%
8,0%
6,0%
9,0%9,0%9,1%
4,0% 7,4%7,8%8,1%8,2%8,2%8,3%8,3%8,4%8,4%8,5%8,5%8,6%8,6%8,7%8,7%8,8%8,8%8,9%8,9%
2,0%
0,0%
Figura 2
Evolução do percentual de receita corrente líquida destinado para educação (2017-30)
19,0%
Receita corrente líquida (%)
18,0%
17,0%
16,0%
15,0%
14,0%
13,0%
12,0%
11,0%
10,0%
Anos
Figura 3
Evolução do percentual da receita corrente líquida destinado para a saúde (2017-30)
16,0%
15,0%
14,0%
Receita corrente líquida (%)
13,0%
12,0%
11,0%
10,0%
9,0%
PEC 241 Regra Atual
8,0%
2017
2018
2019
2020
2021
2022
2023
2024
2025
2026
2027
2028
2029
2030
2031
2032
2033
2034
2035
2036
Anos
(8) <http://www1.folha.uol.com.br/poder/poderepolitica/2014/09/1523956-leia-a-transcricao-da-entrevista-
de-benjamin-steinbruch-a-folha-e-ao-uol.shtml>.
(9) <http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2016-07/cni-defende-carga-de-80-horas-
semanais-para-trabalhador-brasileiro>.
(10) <http://www.portaldaindustria.com.br/relacoesdotrabalho/media/publicacao/chamadas/Agendaparao
BrasilsairdaCrise2016-2018final-28abril.pdf>.
Notas finais
Mais uma vez as ditas ‘elites’ brasileiras atravancam o avanço do Brasil
e dos brasileiros na direção de, afinal, ‘experimentar-se’ como nação soberana. O
período 2016-18 pode representar o fim de um breve ciclo improvável de
restauração democrática e da construção embrionária da cidadania social no
Brasil. Caíram as máscaras; em meio século, o Brasil não mudou; e o arcaico
voltou a dar as caras sem pudor, desta vez como sócio menor de uma coalizão
política, financeira e empresarial que, ao perder as eleições, resolveu assumir o
controle do governo pela via do golpe. A utopia pode ter eclipsado a realidade,
tão cristalinamente clara, de que a democracia e a cidadania social são corpos
absolutamente estranhos ao capitalismo brasileiro.
O pêndulo caminhou para a direita e não deve regressar tão cedo. A
autocrítica é necessária, mas haverá muito tempo para autocríticas, adiante. A
tarefa urgente é resistir de todas as formas, para frear o rolo compressor dos
retrocessos, que deverá ser intensificado até 2018. Caso contrário, o
aprofundamento da arquitetura institucional da “financeirização”, em curso,
(11) Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL); Contribuição Social Para o
Financiamento da Seguridade Social, cobrada sobre o faturamento das empresas (COFINS); Contribuição para
o PIS/PASEP; e, Contribuição para o Salário Educação.
Referências bibliográficas
AUSTERIDADE E RETROCESSO. Finanças públicas e política fiscal no Brasil
(2016). São Paulo: Fórum, 21; Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES); GT de
Macro da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP); e Plataforma Política
Social, set. Disponível em: http://plataformapoliticasocial.com.br/austeridade-e-
retrocesso/.
CARDOSO DE MELLO, J. M.; NOVAIS, F. (1998). Capitalismo tardio e
sociabilidade moderna. In: SCHWARCZ, L. M. (Org.). História da vida privada
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Letras.
CARVALHO, J. M. (2001). Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira.
FAGNANI, E.; TONELLI VAZ, F. (2013). Seguridade social, direitos
constitucionais e desenvolvimento. In: FAGNANI. E.; FONSECA, A (Org.).
Políticas sociais, universalização da cidadania e desenvolvimento: educação,
seguridade social, infraestrutura urbana, pobreza e transição demográfica. São
Paulo, Fundação Perseu Abramo (ISBN, 978-85-7643-178-7).