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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

LICENCIATURA PLENA EM LETRAS

HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA

O PÁTHOS NO LIVRO IV DA ENEIDA:

O SOFRIMENTO DE DIDO

DANNIELE SILVA DO NASCIMENTO

JOÃO PESSOA

ABRIL DE 2013
DANNIELE SILVA DO NASCIMENTO

O PÁTHOS NO LIVRO IV DA ENEIDA:

O SOFRIMENTO DE DIDO

Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura


em Letras da Universidade Federal da Paraíba
como requisito para obtenção do grau de
Licenciado em Letras, habilitação em Língua
Portuguesa.

Prof. Drª. Alcione Lucena de Albertim,


Orientador

JOÃO PESSOA

ABRIL DE 2013
Catalogação da Publicação na Fonte.

Universidade Federal da Paraíba.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Nascimento, Danniele Silva do

O páthos no livro IV da Eneida: o sofrimento de Dido / Danniele Silva do


Nascimento. - João Pessoa, 2013.

59 f.

Monografia (Graduação em Letras) – Universidade Federal da Paraíba -


Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.

Orientador: Profª Drª Alcione Lucena de Albertim.

1. Poética. 2. Dido – Eneida. 3. Páthos. I. Título.

BSE-CCHLA CDU 82-12


DANNIELE SILVA DO NASCIMENTO

O PÁTHOS NO LIVRO IV DA ENEIDA:

O SOFRIMENTO DE DIDO

Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura em Letras da Universidade Federal da


Paraíba como requisito para obtenção do grau de Licenciado em Letras, habilitação em
Língua Portuguesa.

Data de aprovação: ____/____/____

Banca examinadora

Prof. Drª Alcione Lucena de Albertim, DLCV, UFPB

Orientador

Prof. Dr. Milton Marques Júnior, DLCV, UFPB

Examinador

Prof. Ms. Felipe dos Santos Almeida, DLCV, UFPB

Examinador
Dedicatória

A painho, mainha e Emerson, meu irmão matemático.


A vovô Adauto e vovó Marlinda, que não sabem ler, mas
saberão entender a importância deste trabalho.
E a minha vovó Terezinha.
Agradecimentos

Aos deuses, todos eles.

A Alcione, amiga e orientadora, por acreditar em meus anseios e me ajudar a alcançá-


los. Sempre me orientando e aconselhando.

A minha família, painho, mainha, Emerson e Fernanda que, mesmo com dificuldades,
me ampararam e ajudaram como puderam nessa caminhada.

Às dificuldades, que me moldaram e aperfeiçoaram, fazendo-me discernir o verdadeiro


do falso, o benévolo do malévolo e o permanente do momentâneo.

À tia Jaelza e à família Lopes por terem aberto as portas de sua casa e me hospedado
por dois anos.

Às companheiras e amigas Carol, Kelly e Socorro e a minha amiga-irmã Roberta,


agradecerei a vocês por todo amor, carinho, dedicação e conselhos, todo o tempo que a
vida me permitir.

A Nathália, Saulo e Prisciane e aos demais integrantes do GREC e do NEALC, por todo
apoio nas atividades acadêmicas e amizade ao longo dos anos de estudos juntos.

Ao professor Milton Marques, pela confiança e orientação em seu projeto de pesquisa.

Ao professor Marco Valério Colloneli, por todo apoio no estudo da Língua Grega.

Ao Professor Felipe Almeida, por aceitar fazer parte da banca e avaliar o meu trabalho.

A Aquiles Felipe, meu pequeno felino, que esteve comigo, miando e me acalentando,
todas as noites quando estive acordada estudando.
“Si fuit errandum, causas habet error honestas;”
Se existiu coisa havendo de ser errada, o erro tem razões louváveis.
(Ovídio, Heroides, Carta VII, verso 109)
RESUMO

O presente trabalho objetiva fazer uma análise linguístico-literária dos versos


concernentes ao páthos de Dido, no Livro IV da Eneida, de Virgílio. O poema canta a
errância e as batalhas enfrentadas por Eneias, herói troiano, cujo destino é fundar as
bases da futura Roma. Dido, rainha de Cartago, apaixona-se por Eneias, mito fundador
da raça romana. Consumida por um fogo sombrio insuflado por Cupido, entrega-se a
este amor furtivo, quebrando os laços sagrados que preservava. A rainha fenícia, após
cometer um erro, configura-se como uma personagem trágica, visto que desencadeia
para si o sofrimento, o páthos, culminando em sua morte.

Palavras-chave: Dido, Eneida, sofrimento, Poética, páthos.


Sumário

Introdução ................................................................................................................................. 10

I Apresentação da Eneida
1 Contextualização histórico-literária ................................................................................... 12
2 Contextualização da Eneida.............................................................................................. 13
3 Estrutura da Eneida ........................................................................................................... 16

II Πάζνο: conceituação
1. Definição Etimológica ...................................................................................................... 22
2. Πάζνο, uma categoria aristotélica..................................................................................... 23
3. Como o Πάζνο se configura na Tragédia ........................................................................ 30

III O páthos no Livro IV da Eneida


1. Contextualização e estruturação do Livro IV ................................................................... 34
2. Análise .............................................................................................................................. 37

Considerações Finais ................................................................................................................ 56

Referências Bibliográficas ........................................................................................................ 58


10

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo fazer uma análise linguístico-literária do


páthos, categoria trágica estabelecida por Aristóteles, na Poética, do sofrimento da
personagem Dido, nos versos 450 a 473, 529 a 532 e 589 a 621, no Livro IV, da Eneida
de Virgílio. A nosso ver, é possível, nesses versos, comprovar esse sofrimento (πάζνο)
através da apreensão dos elementos que o configuram.
Nosso trabalho parte do estudo teórico da situação trágica e de seus elementos.
A saber, o erro trágico (ἁκαξηία), o reconhecimento (ἀλαγλώξηζηο), a peripécia
(πεξηπεηέηα) e o patético ou sofrimento (πάζνο), conforme a Poética de Aristóteles.
Daremos ênfase ao páthos e à análise dos versos concernentes ao sofrimento de Dido,
no Livro IV da Eneida. Com efeito, para que estudemos de forma mais consistente o
páthos, traçaremos todo o caminho da situação trágica de Dido. Para que façamos isso,
recorreremos, quando necessário, a trechos do Livro I, do Livro IV e do Livro VI da
Eneida. Observaremos os elementos linguísticos concernentes à ação trágica e os
indícios textuais que ratificam o sofrimento da personagem.
O trabalho divide-se em três capítulos. O primeiro capítulo tratará da
contextualização histórico-literária do poema escolhido relacionando a confecção da
epopeia em questão com a origem mítica de Roma e com a glória de Augusto César.
Falaremos desde a saída de Eneias, impelido pelo destino aos litorais da Itália, até o
episódio de Rômulo e Remo, que marca o surgimento da fundação de Roma. Faremos a
estrutura do poema, comentando os fatos tratados na obra Livro a Livro, situando o
Livro IV em relação a todo o poema épico, justificando a sua escolha para corpus deste
trabalho.
No segundo capítulo, propomos uma discussão acerca do páthos. Em um
primeiro momento, abordaremos a origem etimológica da palavra páthos e suas
possíveis correspondências na língua latina. Depois, nos propomos a discorrer acerca da
situação trágica, pontuando cada elemento que a compõe e exemplificando cada
elemento em textos clássicos. Novamente, enfatizaremos o páthos. Após isso, ainda no
capítulo teórico, faremos uma análise sucinta da tragédia Ájax, a fim de aplicar a um
texto literário os elementos outrora estudados.
O terceiro e último capítulo consiste em uma proposta de análise do páthos de
Dido. Pontuaremos as fases da situação trágica: os indícios do destino trágico da
11

personagem, presentes nos Livros I, IV e VI, bem como a disposição das categorias
aristotélicas no Livro IV. No entanto, daremos um enfoque maior ao páthos da
personagem, visto que esse é o objeto de nosso estudo. Além disso, faremos também a
contextualização e estruturação do mesmo.
Destacamos que todas as traduções utilizadas no decorrer do trabalho são nossas,
tanto as citações em Língua Grega, quanto às citações em Língua Latina, e têm caráter
operacional, buscando uma maior aproximação com a estrutura do texto original. O
texto latino original adotado foi o texto estabelecido por Henri Goelzer, que consta na
bibliografia.
Para o estudo do texto teórico, A Poética, de Aristóteles, consultaremos a
tradução de Eudoro de Souza, da editora Ars Poética, de 1993. Assim como o corpus, a
base teórica também será estudada através de traduções operacionais, estas serão feitas a
partir do texto estabelecido pela edição de Eudoro de Souza, que é baseado no texto
grego da edição Les Belles Lettres, de 1932.
12

Capítulo I – Apresentação da Eneida

1. Contextualização histórico-literária1

A Eneida é o marco da literatura latina. O poema foi escrito entre os anos 29 e


19 a.C, por Publius Vergilius Maro a pedido de Augusto César. Ao poeta coube a
missão de escrever um poema épico com o intuito de elevar a figura do imperador,
mostrando a sua origem proveniente dos deuses, e de eternizar a glória e a soberania do
Império Romano.
Otávio nasceu em 63 a.C e era filho adotivo de Júlio César. Com a morte do pai,
iniciou a sua luta pelo poder de Roma. Ele se juntou a Marco Antônio e Lépido,
formando o segundo triunvirato – o primeiro fora formado anos antes por Pompeu,
Marco Crasso e Júlio César. Os três dividiram o território romano e cada triúnviro
deteve uma parte: a Otávio coube o poder sobre as províncias da Roma Ocidental, a
Marco Antônio as províncias da Roma Oriental e a Lépido a África. Mesmo aliados no
governo de Roma, Otávio e Marco Antônio disputavam incessantemente o controle do
território italiano. A fim de restabelecer a paz, em 37 a.C., Otávio concede ao inimigo
sua irmã Otávia em casamento. Assim, a aliança entre os triúnviros continuou em paz
por mais cinco anos. Pouco tempo depois, Otávio decide afastar Lépido do poder, sem o
consentimento de Antônio. Ele devolve Otávia e desposa Cleópatra, a rainha do Egito e
mãe de Césario, filho de Júlio César. Otávio já não era mais o único herdeiro de César.
Marco Antônio, que já ambicionava o poder de Roma, trava uma guerra com Otávio: a
batalha de Áccio, em 31 a.C. No entanto, Cleópatra e Antônio perdem, e pouco tempo
depois, suicidam-se. Otávio, vencedor, incorpora o território egípcio ao território
romano e torna-se único governante de Roma. Ele, porém, age com cautela, procurando
não repetir o erro de seu pai, Júlio César: recebe o título não de rei, mas de Augusto.

1
Para fins de contextualização histórico-literária, utilizamos as seguintes obras:
CHAMPEAUX, Jacqueline. La religione dei romani. Traduzione di Graziella Zattoni Nesi (Edizione
originale: La religion romaine. Paris, Librairie Générale Française, 1998). Bologna: Editore Il Mulino,
2002.
CONTE, Gian Biagio. Latin literature: a history. Translated by Joseph B. Solodow; revised by D.
Fowler and Glenn W. Most (Original italiano: Letteratura latina: Manuale storico dalle origini alla fine
dell‘impero romano, 1987). Baltimore, London: Johns Hopkins University Press, 1999.
LÍVIO, Tito. História de Roma – livro I: a monarquia. Tradução de Mônica Vitorino. Belo Horizonte:
Crisálida, 2008.
13

Conforme Benveniste2, a palavra augustus provém de augur. Ambos os termos possuem


a mesma raiz do verbo augeo, que significa aumentar. Augur é um antigo neutro que
designava em primeiro lugar ―promoção‖ concedida pelos deuses a uma empresa e
manifestada por um presságio. Isto confirma que a ação de augere (aumentar,
acrescentar) é de origem divina. De augur se tira o adjetivo augustus, que literalmente
significa ―provido de augur‖, isto é, ―dotado deste acréscimo divino‖. Assim, Otávio
recebendo essa denominação de Augusto, seria designado como aquele capaz de
começar qualquer empreitada com o favor divino.
Assim, com este título, Otávio já não figurava como um ditador, totalitário.
Roma não teria mais a figura de um rei, mas a um de princeps, o primeiro dos cidadãos,
que atendia e falava por todos. Ele era revestido de dignidade consular e poder
tribunício. Augusto permaneceu quarenta e sete anos no poder. O seu reinado foi o mais
longo da história de Roma.
Virgílio, o poeta nacional do império, já era bastante conhecido em Roma
quando Augusto lhe solicitou a empresa de escrever a Eneida. Ele já havia composto
duas grandes obras: as Bucólicas e as Geórgicas, conhecidas do público.
Augusto, ciente da importância do papel das artes na criação de uma tradição
cultural, dentre elas a literatura, impulsiona juntamente com Mecenas, a criação
artística, merecendo especial destaque a produção literária, a grande promovedora da
perenidade da glória do Império Romano.
O princeps, como era chamado Otávio César, sabendo dos talentos do poeta,
propõe-lhe ser o porta-voz do império, cantando através de um poema épico, a
soberania de Roma e ratificando a sua ascendência divina, haja vista ser ele descendente
de Júpiter pela linhagem do seu pai adotivo, Júlio César. Assim surge a Eneida, que
narra as façanhas do povo troiano, banido de Troia após a destruição da cidade e guiado
por Eneias, o herói cantado na epopeia e precursor do futuro povo romano.

2. Contextualização da Eneida
A Eneida foi escrita entre os anos 29 e 19 a.C., no Período Clássico da literatura
latina. A sua publicação ocorreu em 17 a.C, após a morte do poeta. Virgílio busca na
tradição épica grega o modelo para a composição do seu poema, valendo-se também da

2
BENVENISTE, Émile. Le Vocabulaire des institutions indo-européennes:2 povoir, droit, religion.
Paris: Les Editions de Minuit, 1969, p150.
14

tradição latina que via em Eneias, filho da deusa Vênus e do mortal Anquises, o elo
entre romanos e troianos, confirmando assim a ascendência divina desse povo.
Segue a genealogia troiana:

Como podemos ver no quadro acima, Eneias, Heitor e Páris tem como
ascendente comum Tros, porém Eneias descende de Ássaraco e Cápis. Já Heitor e
Páris, descendem de Ilos e Laomendonte. Julio César se diz descendente de Iulo, filho
de Eneias, tendo assim uma ligação direta com o herói.
Da linhagem de Eneias, gerações após Iulo, seu filho, descenderão Rômulo e,
gerações após esse, Júlio César, pai adotivo de Otávio Augusto. Eneias pertence à
linhagem pura do povo troiano.
Conforme a tradição, a linhagem de Heitor é marcada pela hýbris (ὕβξηο)3.
Eneias, não descende de Laomedonte. Laomedonte, pai de Príamo, cometeu uma
primeira hýbris: Apolo e Posídon, por terem conspirado contra Zeus, são obrigados a

3
A ὕβξηο (hýbris) diz respeito a um excesso cometido por um mortal, o qual sempre acarreta uma
punição.
15

servir um mortal por um ano. Este mortal foi Laomedonte. Os deuses erigiram as
muralhas da cidadela de Troia, mas além de não terem os seus serviços pagos, ainda
foram ameaçados pelo pai de Príamo. Posidon, furioso, envia um monstro marinho à
cidade. Para livrar-se da fera, Laomedonte pede ajuda a Héracles, prometendo-lhe
cavalos divinos, descendentes dos cavalos dados por Zeus a Trós pelo rapto de
Ganimedes. Novamente, o rei não cumpre o prometido4. O filho de Anquises é
escolhido para fundar as bases de uma nova Troia, Roma, por ser imaculado e insigne
por sua piedade5, ou seja, ele não carrega mácula alguma e nele há a marca da piedade,
da preservação da pietas, o respeito às leis e aos ritos sagrados. Príamo, filho de
Laomedonte, ao acolher Páris seu filho, que trazia consigo Helena, esposa do rei de
Esparta, mancha uma linhagem outrora já marcada pelo erro. Páris, hóspede de
Menelau, fere a Lei da Hospitalidade, raptando e tornando-se amante da rainha de
Esparta.
Tito Lívio, historiador romano contemporâneo a Augusto César, narra, em sua
obra Ab Vrbe Condita, Livro I, Monarquia, a história da fundação de Roma, cuja
origem mítica remonta à destruição de Troia e à chegada de Eneias ao Lácio.
Conforme Tito Lívio, Eneias e um grupo de troianos saem do litoral de Ilião,
buscando fundar uma nova Troia e após um período de errância finalmente chegam às
plagas itálicas. Lá, no Lácio, governava o rei Latino. Tito Lívio remete a duas tradições
para o confronto de Eneias no campo laurentino: a primeira relata que, tendo sido
vencido pelos troianos, Latino, firmou a paz com o povo vencedor e, logo depois,
estabeleceu uma união com Eneias, oferecendo sua filha Lavínia em casamento. A
segunda tradição sustenta que, quando os exércitos dos dois povos, latinos e troianos,
estavam preparados para a guerra, Latino chamou Eneias para um colóquio. O rei do
território laurentino, tendo conhecimento da história dos dardânidas, os quais foram
banidos da cidade de Troia em ruínas, errando por terra e mar, ficou admirado com os
feitos daquele povo e de seu líder. O rei teria firmado uma aliança pública com Eneias,
que foi acolhido como hóspede em seu palácio, casando-se, posteriormente, com sua
filha, Lavínia.

4
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana; tradução de Victor Jabouille. 5 ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
5
Segundo Pierre Grimal, a Pietas (Piedade) é a ―atitude que consistia em observar escrupulosamente não
só os ritos, mas as relações existentes entre os seres no interior do universo.‖ (GRIMAL, 1993a, p.70)
16

A união entre Eneias e Lavínia inflama a ira de Turno, rei dos Rútulos e
pretendente à mão da princesa. Os troianos travam batalha com Turno pela posse das
terras latinas. Ao vencer o confronto, Eneias funda a cidade de Lavínio, em
homenagem a sua segunda esposa, Lavínia. Iulo, seu filho, cuja mãe, segundo Tito
Lívio, não se pode afirmar quem era, funda Alba Longa, onde reinará por trinta anos e
os seus descendentes, trezentos anos. Procas, décimo quarto rei, ao morrer, deixa para
os filhos, Numitor e Amúlio, respectivamente, o reino e as riquezas. Amúlio, não
satisfeito apenas com as riquezas toma o reino de Numitor. Tempos depois, Rheia Silva,
filha de Numitor é condenada, por seu tio Amúlio, a ser uma sacerdotisa de Vesta, o que
implicaria manter a sua castidade intacta. A Vestal dá à luz os gêmeos Rômulo e Remo.
Os bebês são filhos de Marte, deus da guerra. Amúlio, a fim de livrar-se dos herdeiros
do trono, abandona as crianças no rio Tibre, porém, o leito do rio transborda, fazendo
que o cesto onde estão os meninos permanecesse intacto na beira do rio. Rômulo e
Remo são amamentados por uma loba e encontrados por um pastor, Faústulo, que
cuidará deles.
Rômulo e Remo crescem. Os irmãos costumavam praticar roubos. Em uma
dessas empreitadas, foram pegos nas terras de Numitor. O irmão de Amúlio reconhece
os netos e os três unem-se para reaver o trono e matar o rei. Como recompensa, o avô
concede terras aos netos. A Remo coube o Aventino e a Rômulo, o Palatino. Rômulo e
Remo teriam recebido, ambos, augúrios dos deuses que sinalizavam a missa de fundar
um novo reino: sobre o Aventino voaram seis aves, após isso voaram doze sobre o
Palatino. Um se prevalecia pela ordem do aparecimento das aves, o outro pela
quantidade. Diz-se que, quando Rômulo sacralizava o seu território, num sinal de
obediência e piedade aos deuses, Remo teria zombado do irmão. Por causa da
impiedade, Rômulo foi obrigado a matar Remo. Rômulo é, de fato, o primeiro rei de
Roma.

3. Estrutura da Eneida
O poema inicia-se in medias res (no meio dos acontecimentos) e está dividido
em doze livros, apresentando uma estrutura triadíca6. Esta estrutura ajuda-nos a
compreender as etapas que o herói necessita atravessar para torna-se o pai da pátria.

6
Tomamos como base a divisão triádica proposta pelo professor Milton Marques Junior, que divide os
doze Livros da Eneida em três blocos: O Bloco das Provações, o Bloco dos Rituais e o Bloco dos
17

Os quatro primeiros livros referem-se ao Bloco das Provações pelas quais Eneias
deve passar para adquirir a temperança e mostrar-se digno de receber o destino
favorável que lhe foi reservado pelos deuses. Os Livros V a VIII formam o Bloco dos
Rituais, que consolidarão Eneias como um herói piedoso. Os últimos quatro livros, o
Bloco das Guerras, mostram o Eneias guerreiro que, vencendo, torna-se pai da pátria.
O argumento do poema, presente no proêmio é a errância de Eneias que,
seguindo os desígnios dos deuses e os oráculos de Apolo, percorre terra e mar a fim de
fundar um novo reino:
Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris
Italiam fato profugus Lavinaque venit
litora – multum ille et terris iactatus et alto
vi superum saevae memorem Iunonis ob iram,
multa quoque et bello passus, dum conderet urbem
inferretque deos Latio; genus unde Latinum
Albanique patres atque altae moenia Romae
(Eneida, Livro I, v. 1-7)7

Canto as armas e o varão, que primeiro impelido pelo destino das


margens de Troia veio para a Itália e para os litorais lavínios — Ele
muito (foi) lançado tanto por terras quanto pelo alto mar pelo poder
dos deuses superiores em consequência da lembrada ira da furiosa
Juno, e também muito sofreu com a guerra até que fundasse a cidade e
portasse os deuses para o Lácio; daí a raça latina e os pais albanos e as
muralhas da altiva Roma.

O proêmio conta, em linhas gerais, o que canta a Eneida: Eneias, herói troiano,
forçado a sair de sua terra pelo destino e pelos deuses superiores, passa por várias
vicissitudes por terra e mar, a fim de fundar um novo reino na região do Lácio, de onde
surgiria a raça latina e as bases da futura e soberba Roma.
A estrutura triádica anteriormente referida e por nós adotada, atende
adequadamente à proposta do nosso trabalho, a análise do Livro IV, especificamente da
personagem Dido no que concerne ao seu sofrimento conforme a categoria πάζνο, ao
ser abandonada por Eneias. Este livro compõe o Bloco das Provações, quer dizer, a

Combates. Esta estrutura está presente em: VIRGÍLIO. Eneida – Canto IV: a morte de Dido; tradução
de J. Laender; organização de Milton Marques Júnior e Fabrício Possebon; ensaios de Milton Marques
Júnior, Helena Tavares de Melo Viana e Leyla Thays Brito da Silva; comentários à tradução de Fabrício
Possebon. Edição bilíngüe. João Pessoa: Zarinha Centro de Cultura/Editora Universitária da UFPB, 2006.
7
Texto original retirado de VIRGILE. Énéide, livres I-VI. Traduit par André Belessort. 7 éd. Paris: Les
Belles Lettres, 1952.
18

respeito do personagem Eneias nos Livros I, II e III, e à personagem Dido no Livro IV, a
rainha de Cartago, que ao cometer um erro trágico, conforme Aristóteles, cai em
desgraça e sucumbe, suicidando-se.
Tracemos, a seguir, a estrutura da Eneida, a fim de melhor compreendermos o
contexto no qual o Livro IV se insere:
Bloco das Provações:
 Livro I: Narrado no tempo presente, inicia-se com Eneias e os troianos que,
atingidos por uma tempestade enviada pela deusa Juno, desviam-se do seu destino, o
Lácio, e chegam a Cartago, no litoral da Líbia, onde reina a rainha Dido. Os troianos,
ao aportarem à costa da Líbia, escondem suas frotas nos bosques e somente o herói
troiano e seu companheiro Acates penetram na cidade. Vênus, mãe de Eneias,
metamorfoseada em uma jovem guerreira, apresenta-se, então, a eles. A deusa conta-
lhes a história da rainha, desde a sua partida de Tiro até chegar àquela região, onde
erigira um reino. A partir disso, Vênus mostra ao filho as muralhas e a cidadela de
Cartago. A imagem da deusa se desvanece, porém ela envolve Eneias e Acates com uma
nuvem para que ninguém pudesse vê-los. Assim, adentram o bosque, onde estava sendo
erigido um grande templo a Juno, lá se depara com a rainha e admira-se com a sua
beleza. O chefe dos teucros tem uma surpresa, ele vê chegar ao templo alguns de seus
companheiros das naus que haviam se dispersado do resto da frota por causa da
tempestade. Envolvidos pela nuvem, ele e Acates desejam saber a sorte dos
companheiros. Ilioneu, um dos dardânidas submetidos ao interior do palácio, logo rende
súplicas de misericórdia à rainha. Ela, conhecedora das dificuldades enfrentadas pelos
troianos, como também da fama e da coragem do herói Eneias, dispõe-se a ajudar os
jovens a encontrar o seu líder. É quando a nuvem que envolvia Eneias e Acates se
dissipa e acontece o primeiro encontro entre o troiano e Dido. A beleza de Eneias
valorizada por Vênus é causa de uma maior admiração por parte da rainha fenícia. A
mando de Vênus, Cupido, transformado em Ascânio, infla em Dido o fogo do amor. Um fogo
que a penetrará pelos ossos. O Livro I termina com um banquete oferecido por Dido a
Eneias e aos seus companheiros. A rainha, insuflada pelo fogo do amor, pede ao filho
de Anquises que narre as desventuras sofridas pelos troianos durante a destruição de
Troia, como também as vicissitudes pelas quais passaram até a sua chegada a Cartago.
 Livro II: Eneias, em primeira pessoa, a partir da perspectiva do vencido, narra a
Dido a queda de Troia, incendiada pelos gregos, e a saída dos troianos da cidade. Como
19

também descreve o episódio do cavalo de madeira, e as consequências funestas do


recebimento do presente dos gregos por parte dos troianos. Durante a saída, o herói
sonha com Heitor, aconselhando-o a sair de Troia, dizendo-lhe que ninguém mais A
poderia salvar a cidade; fala com Panto, que lhe diz que Júpiter pôs a vitória do lado de
Argos, e recebe a aparição de sua mãe, Vênus. A deusa afasta da visão de Eneias a
nuvem que o impede de ver as divindades lutando na guerra. Mesmo assim, o herói
ainda deseja ir à guerra, é quando vê os cabelos de Iulo queimando. Interpretando ser
isso um sinal divino, Eneias, junto a outros troianos, prepara-se para partir: carrega
consigo os deuses Penates e os pais nas costas e o filho Iulo. Após longo caminho
percorrido, um pouco distante do litoral troiano, Creúsa, já tendo morrido, aparece para
o marido e o incita a ir embora, revelando-lhe parte do destino que há por vir.
 Livro III: o argumento desse livro é a errância de Eneias e de seus companheiros
durante os sete anos que antecederam a sua chegada a Cartago. O herói chega a Trácia e
erige as primeiras muralhas da primeira cidade que funda, Enéades. Ele descobre que
aquelas terras são malditas: procurando ramos para cobrir os altares, ao retirar arbustos
do solo, gotas de sangue saem do solo, o herói ouve o lamento de Polidoro, que o
aconselha a deixar aquelas terras. O herói e seus companheiros partem para Delos, lá os
troianos recebem de Apolo o oráculo de que devem se deslocar para as terras de seus
ancestrais. Anquises, pai do herói, interpreta erroneamente que tal local trata-se de
Creta. Em Creta, fundam Pergameia. No entanto, uma peste põe todo o trabalho a
perder. Eneias vai de novo a Delos para consultar o Oráculo de Febo Apolo. O caminho
indicado pelos deuses é a Itália, as terras de Hespéria, de onde surgiu a raça troiana.
Eneias e os troianos partem de Creta, no entanto são desviados de seu destino por uma
tormenta que dura três dias. Após a calmaria, aportam nas Ilhas Estrófades, no mar
Jônio, habitação das Harpias. Celeno, líder das Harpias, anuncia uma profecia terrível:
os troianos irão chegar à Itália, mas por causa da fome comerão as próprias mesas.
Eneias e seus companheiros partem das Estrofádes e pedem aos deuses que afastem
deles aquele presságio. Celebram os jogos ilíacos em Áccio e partem para Butroto. Lá,
encontram Andrômaca e Heleno. As profecias de Heleno concernem ao caminho que
Eneias e os troianos devem fazer. Eles partem de Brutroto e chegam à Itália. O livro se
finda com a morte de Anquises.
 Livro IV: Argumento: o narrador conta os amores de Dido e Eneias. A rainha,
tomada pelo amor que fora semeado por Cupido, convida os troianos para uma caçada.
20

Uma tempestade enviada por Juno dispersa os jovens e obriga o casal a refugiar-se em
uma gruta. Lá, o herói e a rainha consumam a união. Após um ano da chegada de Eneias
a Cartago, Mercúrio, mandado por Júpiter, lembra o herói de sua missão. O filho de
Anquises decide partir de Cartago, abandonando Dido. O herói vai embora e Dido,
desolada, o amaldiçoa e se suicida.

Bloco dos Rituais:


 Livro V: Argumento: Os troianos seguem viagem. De volta à Sicilia, celebram os
jogos fúnebres em homenagem a Anquises, após um ano de sua morte. Lá, Eneias funda
uma cidade e, por conselho de nauta, deixa os excedentes pela perda dos navios e
aqueles que, seja pelo cansaço ou pela velhice, retardavam a viagem.
 Livro VI: Argumento: Eneias chega a Cumas e penetra os bosques de Ártemis.
Lá, no templo de Apolo, reside a Sibila. Acates e Eneias imolam sete novilhos como
sacrifício e depois de concluído o ritual, a Sibila entra em entusiasmo. A sacerdotisa,
tomada pelo deus, revela a chegada de Eneias ao Lácio. Ela, já livre do deus, guia
Eneias pelo Inferno. O herói troiano deseja falar com o pai, Anquises. Lá, o herói
percorre o campo dos suicidas e o Campo das Lágrimas, lugar onde ficam as pessoas
que morreram por um amor devorador, lá ele encontra Dido. Eneias vê vários guerreiros
troianos, companheiros seus, e toma conhecimento acerca do futuro glorioso da sua
estirpe, através de um prolepse do pai.
 Livro VII: Argumento: narra a chegada de Eneias ao Lácio e o ritual de
sacralização do território onde será fundada a cidade. O herói envia embaixadores ao rei
Latino e este oferece ao líder troiano, a mão de sua filha, Lavínia, em casamento. Turno,
rei dos rútulos, se enfurece com tal aliança, pois era pretendente da jovem.
 Livro VIII: Argumento: Eneias procura fazer aliança com o rei Evandro, que
apresenta as terras onde serão erguidas as bases da futura Roma. O Livro termina com o
recebimento das armas fabricadas por Vulcano para Eneias, a pedido de Vênus, mãe do
herói. Há também a descrição dos episódios gravados no escudo de Eneias. Fatos
futuros de Roma: O nascimento dos gêmeos Rômulo e Remo, o rapto das Sabinas, o
evento de Mécio de Tulo, a guerra contra Porsena, Mânlio despertado pelo grasnar dos
gansos e a Batalha de Actium.

Bloco dos Combates


21

 Livro IX: Argumento: a batalha entre Eneias e seus companheiros contra Turno e
os rútulos. Turno é quem primeiro ataca. Niso e Euríalo, jovens troianos, lutam
bravamente, mas encontram a morte. A perseguição dos latinos obriga Turno a fugir
para a região do Tibre.
 Livro X: Júpiter decide não interferir a favor de Eneias. O deus procura conciliar
Juno e Vênus. Na guerra, Eneias mata Mezêncio. Tarcão, rei estrusco alia-se a Eneias.
Palante, filho do rei Evandro e aliado dos Troianos, morre no campo de batalha.
 Livro XI: É feita uma trégua de doze dias para que fossem realizados os ritos
fúnebres aos mortos. Camila, rainha dos Volscos e aliada de Turno, morre pelas mãos
de Arrunte. O exército da rainha recua e se precipita para as muralhas. Aca relata a
Turno a notícia da morte da aliada. O rei dos rútulos, furioso, abandona as colinas onde
se escondia e, com seu exército, marcha contra Eneias.
 Livro XII: Turno, sabendo da morte de sua aliada, Camila, volta de seu
esconderijo, na região do Tibre. O rei dos rútulos e Eneias enfrentam-se em um duelo.
Turno viola as regras e fere Eneias, que prontamente é curado por sua mãe, Vênus.
Amata, rainha aliada a Turno, se mata. Eneias vence o combate contra o rei dos rútulos
e o mata.
A descrição acima, de cunho meramente perifrástico, tem por objetivo situar o
Livro IV dentro do contexto narrativo da Eneida. Tendo em vista tratar-se do corpus do
nosso trabalho. Seguindo a trajetória de Dido, é possível perceber o perfil trágico da
personagem, cuja atuação no decorrer do poema, especificamente nos Livros I, IV e VI,
é perpassada por elementos trágicos, tais como erro trágico (ἁκαξηία), o
reconhecimento (ἀλαγλώξηζηο), a peripécia (πεξηπέηεηα) e o sofrimento
(πάζνο),categorias aristotélicas, que a caracterizam como uma personagem trágica.
Assim, dentro deste âmbito, propomos estudar o sofrimento (πάζνο) de Dido,
sendo necessário, no entanto, delinearmos, primeiramente, as etapas pelas quais ela
passa na sua trajetória trágica, cujo ápice é o sofrimento (πάζνο).
22

Capitulo II — Πάθος: conceituação

1.Definição Etimológica

Bailly8 define o vocábulo Πάζνο como ‗estado da alma agitada por uma
circunstância exterior, disposição moral, particularmente, disposição agitada‘. Romizi9
define a palavra como a ação de uma impressão quase sempre negativa, e o seus efeitos:
sentimento, comoção, emoção, ódio, paixão, ira, sofrimento, dor, mal, tristeza.
Conforme este autor, a formação da palavra se configura deste modo: πάζνο, νπο, ηό,
do tema de πάζρω (recebo uma impressão, sofro) e o sufixo –νο, νπο a indicar a ação e
o efeito da ação. Conforme, Bailly, πάζρω significa ‗ser afetado de tal ou tal modo,
sofrer tal ou tal afetação, sensação ou sentimento‘.
Chantraine10 relata que sobre o grau zero do aoristo παζεῖλ constrói-se a forma
substantiva πάζνο: ―aquilo que acontece a alguém ou a alguma coisa, experiência
sofrida, infelicidade, emoção da alma...‖. De πάζνο provém παζεηλόο, ‗que sofre‘, e
πάζεκα, ‗aquilo que acontece a alguém, sofrimento, infelicidade, doença‘.
Logo, Πάζνο seria o estado de afetação da alma, sofrimento de um personagem,
causado pela ação de uma impressão exterior quase sempre negativa, por um
personagem. Em Ájax, de Sófocles, por exemplo, o personagem, diante da desonra
perante os pares – ação de uma impressão externa negativa – sente-se desgraçado e,
com isso, sofre.
O verbo latino correspondente a πάζρω, segundo Ernout & Meillet11, é patior
(patior,-eris, pati, passus sum). Esse verbo é depoente e, portanto, carrega consigo uma
noção médio-passiva. O indivíduo não age, a ação de sofrer, de suportar, de estar em
doença recai sobre ele. Desse verbo derivou o substantivo passion12, forma essa que
seria o equivalente à grega πάζνο. No entanto, a forma passion, segundo Ernout, veio
surgir apenas no Latim Eclesiástico, para expressar a ‗Paixão de Cristo‘. No Latim
8
BAILLY, Anatole. Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000.
9
ROMIZI, Renato. Grego Antico: Vocabolario greco italiano etimologico e ragionato. Bologna:
Zanichelli, 2007.
10
CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire étymologique de la langue grecque: histoire des mots. Paris:
Klincksieck, 1999.
11
ERNOUT, Alfred et MEILLET, Antoine. Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire des
mots. Paris : Klincksieck, 2001.
12
Passion, -onis (patior + -tio): uma afecção da mente, paixão, emoção. Sufixo -Tio, -tionis: sufixo de
formas verbais substantivas que denotam a ação do verbo. GLARE, P.G.W. Orford latin dictionary. New
York: Orford at the Claredon Press, 2003.
23

Clássico, para expressar o sentido equivalente ao do substantivo grego πάζνο, os autores


usaram dolor (dolor,-oris)13. Esse substantivo, conforme Ernout, é uma forma nominal
derivada do verbo doleo (doleo, -es, -ui). Esse verbo significa ‗sentir dor, sofrer
(fisicamente ou moralmente)‘. Um exemplo significativo da equivalência do uso de
dolor com πάζνο expressando o sentido de sofrimento e dor, está presente no verso três
do Livro II, da Eneida: Eneias, recém-chegado a Cartago, tendo sofrido os males da
guerra e tendo errado por sete anos, apresenta-se a Dido, rainha de Cartago. Ela pede a
Eneias, seu hóspede, que narre a sua errância desde a saída de Troia e o herói,
revolvendo dentro de si dores indizíveis, aquiesce em narrar os fatos, o que lhe causa
dor infanda. Eneias inicia a sua narrativa com a seguinte afirmação:
―Infandum, regina, iubes renovare dolorem, (Rainha, ordenas renovar dor infanda)‖.
Segundo o mesmo estudioso, Cícero, buscando equivalência latina para o termo
ἀπάζεηα, traduziu o mesmo por indolentia. O vocábulo ἀπάζεηα é derivado de ἀπαζήο
[alfa privativo mais o radical πάζ do verbo πάζρω), que significa insensibilidade,
impossibilidade. O sufixo nominal -εηα indica uma qualidade. O vocábulo indolentia é
formado pelo prefixo in, que desempenha a mesma função do alfa privativo de ἀπάζεηα,
denotando negação, ausência, privação, mais o particípio presente no do verbo doleo,
dolens, dolentis, e o sufixo –ia, empregado em formas substantivas que exprimem ideia
de abstração. Logo, tanto ἀπάζεηα quanto indolentia significam ausência de dor.
Isso nos permite inferir que palavras derivadas do verbo doleo são
correspondentes a formas derivadas de πάζρω. Desse modo, dolor configura-se como
equivalente latino de πάζνο.
Quanto ao exemplo acima citado, Eneias é afetado na alma, pois diante do
pedido da rainha, ele é levado a rememorar os acontecimentos desde a destruição de
Troia até a chegada em Cartago, e a lembrança da impressão dos fatos lhe traz
sofrimento.

2. Πάθος, uma categoria aristotélica

Aristóteles, na Poética, trata de poesia (πνίεζηο), que, tomando o sentido do


termo grego, significa a ação de criar. Ele faz menção às espécies de poesia, epopeia,
13
Dolor, -oris (doleo + or): dor física, aflição do espírito, angústia, dor. GLARE, P.G.W. Orford latin
dictionary. New York: Orford at the Claredon Press, 2003.
24

tragédia, ditirambo, como sendo, em geral, imitações (κίκεζηο). Em sua obra, o filósofo
dedica-se mais detidamente à Tragédia, remetendo à Epopeia apenas como contraponto.
Aristóteles, respeitante a tragédia, elenca as diversas possibilidades de situações
que poderiam ocorrer no desenrolar da trama, causadoras do efeito trágico próprio desse
gênero.
Conforme o autor, a situação trágica deve necessariamente desenrolar-se entre
amigos, entre inimigos e desconhecidos14. Se a situação ocorrer entre inimigos ou
desconhecidos, as ações dos personagens não nos compadecem. No entanto, se ações
ocorrem entre amigos, ou pessoas muito próximas, como um irmão que mata outro
irmão ou mãe matando os filhos, isso comove a quem vê. Em Coéforas15, de Ésquilo, o
assassinato de Cliteminestra por Orestes, seu filho, comove o coro. Essa situação
configura-se como trágica, pois se dá entre entes muito próximos, um filho mata a sua
mãe, denotando um ato inesperado. Essa situação causaria efeito mais intenso sobre o
público.
Na trama da peça, o personagem pode agir conhecendo ou desconhecendo o que
faz. Em Medeia16, tragédia de Eurípedes, a personagem homônima mata os filhos
consciente e deliberadamente. Em Édipo Tirano17, por sua vez, Édipo mata o próprio
pai, Laio, rei de Tebas, desconhecendo o laço de parentesco que existe entre eles. O
personagem age, desconhecendo, e perpetrada a ação, vem a conhecê-la: tal ação não
repugna e o reconhecimento surpreende. Existe ainda a possibilidade de o personagem
estar prestes a cometer algo terrível desconhecendo a circunstância e, passando a
conhecê-la, não perpetrar o ato.
A melhor situação, conforme Aristóteles, acontece quando o personagem, nada
sabendo, age e apenas torna-se conhecedor após a ação repugnante. Ele aponta Édipo
como melhor exemplo, o personagem mata o pai e casa com a mãe, sem saber dos laços
de parentesco que o unia. Após a peste enviada a Tebas, o personagem, descobrindo ser
o responsável por aquela situação, fura os próprios olhos.

14
Poética, 1453 b15.
15
ÉSQUILO. Coéforas. Estudo e tradução de JAA Torrano. São Paulo: Illuminuras FAPESP, 2004.
16
EURIPEDES. Obras dramaticas. Traduccion por Eduardo Mier y Barbery. Buenos Aires : El
Ateneo, 1951.
17
SOPHOCLES. The Theban Plays: King Oedipus, Oedipus at Colonus, Antigone. Translated by E.
F. Watling. The Penguin Classics. Baltimore: Penguin Books, 1959.
25

As ações do personagem devem causar temor (θόβνο) e piedade (ἐιένο) no


espectador. Essas reações que causam um efeito purificador no público é o que
Aristóteles denomina Catársis (Κάζαξζηο). A Catársis é a purificação, proveniente dos
sentimentos de terror e de piedade, pela qual o espectador passa ao impactar-se com a
peça.
É importante salientar que a situação trágica se dá por meio de um erro trágico
(ἁκαξηία) do personagem. O erro trágico é uma ação que provocará a mudança de
fortuna, da felicidade para o sofrimento, sendo a mola mestra do efeito trágico. Acerca
do erro trágico (ἁκαξηία), afirma Aristóteles:

ἔζηη δὲ ηνηνῦηνο ὁ κήηε ἀξεηῇ δηαθέξωλ θαὶ


δηθαηνζύλῃ κήηε δηὰ θαθίαλ θαὶ κνρζεξίαλ κεηαβάιιωλ εἰο ηὴλ
δπζηπρίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁκαξηίαλ ηηλά,
(Aristóteles. Poética, 1453a,5-10)

É tal como este que não se difere pela virtude e pela justiça, mudando
para a δεζϝεληπξα, não através da maldade, mas de algum erro.

É preciso considerar que a existência de um efeito trágico demanda a presença


de alguns elementos no desenrolar do enredo da peça. Conseguinte ao erro trágico
(ἁκαξηία) cometido, preferencialmente por ignorância, pelo personagem, advirá o
reconhecimento (Ἀλαγλώξηζηο) que consiste no conhecimento daquilo que é
desconhecido para a condição de conhecido. O próprio vocábulo denota o sentido: ἀλα
(novamente, de novo) + γλω (raíz do verbo γηγλώζθω, faço conhecer, conheço) e –ζηο
(sufixo que denota ação ou o resultado da ação)18. Ἀλαγλώξηζηο é, portanto, conhecer de
novo e, daí, reconhecer.

Aristóteles afirma:

ἀλαγλώξηζηο δέ, ὥζπεξ θαὶ ηνὔλνκα ζεκαίλεη, ἐμ ἀγλνίαο εἰο γλῶζηλ


κεηαβνιή, ἢ εἰο θηιίαλ ἢ ἔρζξαλ, ηῶλ πξὸο εὐηπρίαλ ἢ δπζηπρίαλ
ὡξηζκέλωλ:.
(Aristóteles. Poética, 1452a, 30)

O reconhecimento, como também sinaliza o nome, [é] a mudança do


desconhecimento para o conhecimento, seja para a amizade ou seja

18
ROMIZI, Renato. Grego Antico: Vocabolario greco italiano etimilogico e ragionato. Bologna:
Zanichelli, 2007.
26

para inimizade, diante da ventura ou da desventura dos delimitados


[os personagens].

Conforme o autor, existem vários tipos de reconhecimento: por sinais, o forjado


pelo poeta, o produzido pela memória, por silogismo, por paralogismo e aquele
proveniente da própria intriga.
O Reconhecimento por sinais acontece quando um personagem reconhece o
outro através de sinais no corpo. Um exemplo deste tipo de reconhecimento ocorre no
Canto XIX da Odisseia19. Odisseu, rei de Ítaca, após a guerra de Troia, tenta voltar
para o seu reino. Tal viagem dura dez anos. Nela, o herói passa por várias vicissitudes.
Depois de anos, já em Ítaca, o Laertida, disfarçado de mendigo, diz a Penélope ter
avistado Odisseu em Creta. A rainha, que por anos falsamente tecera uma manta, a fim
de adiar uma possível união com um de seus pretendentes, escuta-lhe o relato
emocionada. Penélope pede para Euricleia, fiel empregada, cuidar do novo hóspede,
dando-lhe um banho. No momento que começa a lavar a sua perna, a escrava percebe a
existência de uma cicatriz. A velha logo reconhece que se trata de Odisseu. A cicatriz,
fruto de uma lesão sofrida na infância em uma caçada a um javali, foi o que ocasionou o
reconhecimento de Odisseu por Euricleia, logo, reconhecimento por sinal20.
O reconhecimento forjado pelo poeta acontece por vontade do mesmo. Tal
reconhecimento pode ser percebido em Ifigênia em Tauris21, de Eurípedes. A filha de
Agamêmnon é sacerdotisa em Táuris. Os taurides são hostis aos estrangeiros gregos,
que são sacrificados a Ártemis. A sacerdotisa responsável pelos sacrifícios é Ifigênia,
grega, que acreditavam estar morta. Chegam a Táuris dois estrangeiros, Orestes e
Pílades. Ifigênia busca saber quem são eles. A partir do verso 470, Ifigênia interroga
Orestes, acerca de quem são os seus pais e de onde ele e o amigo são provenientes. O
irmão, não sabendo a relação de parentesco entre ele e a sacerdotisa, também a
interpela, perguntando-lhe quem é. Ifigênia insiste em saber o nome de Orestes, esse
denomina-se apenas de infortunado (versos 499-500). Ela deseja saber a cidade da qual
eles vieram, e respondendo ser de Argos, Ifigênia fica espantada. A sacerdotisa

19
Edição utilizada: HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 2 ed. São Paulo: Ediouro,
2009.
20
Odisseia. Canto XIX, versos 306 e seguintes.
21
EURIPEDES. Obras dramaticas. Traduccion por Eduardo Mier y Barbery. Buenos Aires : El
Ateneo, 1951.
27

pergunta acerca da queda de Troia, dos destinos de Helena, Odisseu. Revelando também
ser proveniente de Argos, ela pergunta sobre seu pai, Agamêmnon. Orestes responde
que ele morreu, o que faz ela desesperar-se. Orestes não entende o choro dela. Ele
revela-lhe também que Cliteminestra, assassina do rei de Argos, foi morta pelo filho e
que esse, embora justo em vingar a morte do pai, não tem sorte com os deuses. Ela
pergunta acerca de Electra e do próprio Orestes. O irmão, na qualidade de estrangeiro,
responde que Orestes vive. A sacerdotisa acreditando que Orestes morrera, por causa de
um sonho funesto que teve, não reconhece, de imediato, o irmão. O filho de
Agamêmnon também se demora a reconhecer a irmã, visto que acredita na morte dela,
sacrificada pelo pai, em Áulis. A sacerdotisa feliz pela notícia de que o irmão está vivo,
promete ao estrangeiro Orestes, que outrora desejou ser enterrado pela irmã que acredita
estar morta, que lhe fará as honras fúnebres. No entanto, antes do sacrifício, ela sai de
cena para pegar uma carta para que Pílades, que retornaria a Argos, levasse. Pílades,
com medo de sofrer um naufrágio e perder a carta, pede que a autora da carta a leia para
ele, para que assim fixasse o conteúdo e, assim, mesmo que a perdesse, saberia o recado
a ser dado. Ela então lê. No início da carta, ela revela que não foi sacrificada em Áulis.
Orestes perplexo e não reconhecendo tratar-se da própria, indaga acerca do paradeiro da
irmã. Ela se revela e ele a reconhece. Findando a leitura da carta, Orestes a abraça e se
revela. Ela o afasta e, não reconhecendo o irmão, pede para que ele prove ser o filho de
Agamêmnon. Ele, então, cita objetos e fatos pessoais, como um bordado feito por ela e
a lança de Pélops que ficava pendurada no quarto da irmã, em Argos. Ifigênia, diante do
relato de fatos tão íntimos, reconhece o irmão.
O reconhecimento produzido pela memória efetua-se a partir das lembranças e
impressões que se manifestam quando um personagem vê o outro ou quando algum
personagem, vendo algum quadro ou vendo a si mesmo reconhece algo. Novamente
podemos encontrar na Odisseia um tipo de reconhecimento, dessa vez no Canto VIII22.
Odisseu, já tendo passado pela Ilha de Calipso, sem revelar sua verdadeira identidade,
chega à terra dos feácios, reino de Alcínoo. Os feácios se comprazem nos jogos
propostos por Alcinoo e após as competições, Demódoco, o aedo, canta acerca dos
amores de Afrodite, do Cavalo de Madeira e dos trabalhos de Odisseu. O Laertida
chora, tentando esconder o rosto para não ser reconhecido. No entanto, Alcínoo,

22
Odisseia. Canto VIII, versos 521 e seguintes.
28

percebendo as lágrimas e reconhecendo tratar-se do próprio Odisseu, pergunta ao


estrangeiro por que ele chora, quem ele é e de onde ele vem.
O quarto é o que ocorre por silogismo; quando algo não está completamente
claro, mas todas as evidências corroboram para que os personagens sofram
reconhecimento. É possível encontrar este tipo de reconhecimento no enredo de a
Oresteia, de Ésquilo, mais precisamente em Coéforas23. Anos após o assassinato do
pai, Agamêmnon, Orestes, já crescido, acompanhado de Pílades, vai ao túmulo do rei de
Micenas oferecer-lhe uma mecha de cabelo. Percebendo que um grupo de mulheres se
aproximava, esconde-se. Dentre essas mulheres estava Electra, sua irmã. A princesa, que
nesse momento vivia como serva, fica surpresa ao ver a mecha loira e a pegada no chão.
Electra junta as evidências: alguém que se assemelha a ela esteve ali e a única pessoa
que se assemelha a ela e poderia estar ali, lamentando a morte de Agamémnon, é, seu
irmão, Orestes. Logo, Orestes esteve ali.
A quarta espécie de Reconhecimento é o que acontece por Paralogismo, que
ocorre a partir dos espectadores em relação a um personagem. O único exemplo desde
tipo de reconhecimento dado por Aristóteles está em uma obra que não chegou aos dias
atuais. Nesta peça, o poeta diz que Odisseu é o único capaz de distender o arco. Um
personagem diz que é capaz de armar o arco sem o ter visto, logo os espectadores
concluem que aquele personagem é Odisseu. O paralogismo, podemos inferir, é um
reconhecimento que ocorre a partir de um raciocínio não necessariamente verdadeiro,
ou completamente falso.
A quinta espécie de reconhecimento é o derivado por intriga. Ele dispensa
artifícios e sinais, a surpresa surge naturalmente. Em Édipo Tirano, de Sofócles,
podemos perceber esse tipo de reconhecimento. O próprio desenrolar dos
acontecimentos ‗obriga‘ Édipo a reconhecer que, outrora desconhecendo a sua
ascendência, cumpriu, sem saber, a profecia do oráculo e é o causador da peste que
assola Tebas. A intriga é lançada por Tiresias, o profeta cego, que afirma ser Édipo o
assassino de Laio, lançando a dúvida no rei e fazendo-o pesquisar com mais afinco a
morte do antigo rei, não excluindo de si a culpa pelo ato horrendo.
Decorrente do reconhecimento, provém a peripécia (πεξηπέηεηα). Trata-se de
uma reviravolta concernente aos acontecimentos ligados ao personagem. Assim,

23
Edição utilizada: ÉSQUILO. Coéforas. Estudo e tradução de JAA Torrano. São Paulo: Illuminuras
FAPESP, 2004.
29

πεξηπέηεηα provém de πεξη (preposição que significa em torno de) + πίπηω (verbo que
significa cair, encontrar, acontecer) + εηα (sufixo que indica uma qualidade).
Segundo Aristóteles:
ἔζηη δὲ πεξηπέηεηα κὲλ ἡ εἰο ηὸ ἐλαληίνλ ηῶλ πξαηηνκέλωλ κεηαβνιὴ
θαζάπεξ εἴξεηαη, θαὶ ηνῦην δὲ ὥζπεξ ιέγνκελ θαηὰ ηὸ εἰθὸο ἢ
ἀλαγθαῖνλ,
(Aristóteles. Poética, 1452a, 20)

A peripécia é, como foi dito, a mudança do que está sendo agido [as
ações] para a direção contrária. Isso também, como dissemos, [é]
segundo o verossímil ou necessário.

A peripécia, segundo Aristóteles, é a mudança da felicidade para o infortúnio. É


a inversão da ação. Aristóteles usa como exemplo de peripécia a tragédia Édipo Tirano:
o mensageiro que veio tranquilizar o rei do terror que sentia por, sem saber, manter
relações com a mãe, acaba por reconhecê-lo, causando assim um efeito contrário à
intenção que o trouxera ali.
É possível concluir que no cerne da ação trágica encontra-se o erro do
personagem (ἁκαξηία) que suscita, a partir da própria trama, o reconhecimento e
conseguinte peripécia. Aristóteles aponta que a mais bela forma de reconhecimento é a
que se dá concomitante à peripécia, pois provocará temor (θόβνο) e piedade (ἐιένο),
sendo a tragédia a imitação de ações que despertam tais reações24.
Há ainda uma terceira categoria, Πάζνο, o sofrimento, significado pautado na
etimologia do termo, discutida no início do capítulo. Conforme Aristóteles:

πάζνο δέ ἐζηη πξᾶμηο θζαξηηθὴ ἢ ὀδπλεξά, νἷνλ νἵ ηε ἐλ ηῷ θαλεξῷ


ζάλαηνη θαὶ αἱ πεξηωδπλίαη θαὶ ηξώζεηο θαὶ ὅζα ηνηαῦηα.
(Aristóteles. Poética, 1452b, 10)

O sofrimento é a ação destrutiva ou dolorosa, como as mortes no


[campo] visível, tanto as dores excessivas, quanto os ferimentos e
coisas quão grandes e tais como estas.

O patético é a ação dolorosa em cena, como ferimentos, morte, sofrimento.


Édipo, em Édipo Tirano, sabendo ter matado o homem que além de ser seu pai, era o

24
Poética, 1452 a-35.
30

rei de Tebas, e que a mulher a qual se uniu é a sua mãe e, além disso, descobrindo ser o
causador da desgraça que assola Tebas, fura os próprios olhos. No ápice do seu
sofrimento, o conjunto dessas categorias, o reconhecimento e peripécia e logo após o
patético, gera a catarse, o efeito de purificação que os espectadores sofrem com o
desfecho da tragédia.

III. Como o Πάθος se configura na Tragédia

O Páthos, como categoria trágica, já foi por nós caracterizado e explanado. No


entanto, faz-se necessário saber como essa categoria se configura em uma tragédia,
percebendo quais os elementos e categorias que contribuem para o efeito trágico
consequente da situação. Para tal análise, remeteremos a Ájax, de Sófocles25. A escolha
dessa tragédia se dá porque, segundo Aristóteles, Ájax é uma tragédia catastrófica26, ou
seja, culmina no Páthos.
Ájax Maior, o Telamida, era o melhor guerreiro grego depois de Aquiles, na
Guerra de Troia. Quando Aquiles morreu, os chefes argivos tiveram que decidir quem
receberia as armas do Pelida. O prêmio seria atribuído, dentre os acaios, ao mais
valoroso e que mais tivesse causado mortes aos seus inimigos dardânidas. Ájax, que
defendera o cadáver do primo da ira dos troianos, julgava ser merecedor, por direito, de
tal espólio. No entanto, é Odisseu quem recebe as armas, provocando a ira do filho de
Telamón. O rei de Salamina, então, arquiteta vingança contra aqueles que
desmereceram seu valor guerreiro.
À noite, quando todos dormiam, Ájax sai de sua barraca e se dirige à tenda dos
chefes gregos, com a espada em punho, com a intenção de matá-los. Atena, todavia,
intervém. A deusa envia a loucura ao seu espírito e confunde os sentidos do herói. Ela
desvia a ira do Telamida para o prado, onde estavam os rebanhos dos exércitos. Naquele
lugar, o herói lança-se sobre os animais, cometendo um verdadeiro massacre.
Planejando crueldades maiores, poupa alguns animais, acreditando se tratar dos chefes
gregos.

25
Edição utilizada para análise: SOFÓCLES. Aias. Apresentação e tradução de Flávio Ribeiro de
Oliveira. São Paulo: Iluminuras, 2008.
26
Aristóteles. Poética, 1456ª, 1.
31

É nesse cenário que a tragédia Ájax se inicia. No prólogo, Atena e Odisseu estão
no acampamento grego. A voz da deusa, dirigindo-se a Odisseu, diz saber que o rei de
Ítaca seguia os passos de Ájax, e informa o que houve com o herói inflamado. Ela
confirma as suspeitas de Odisseu de que seria Ájax o culpado pela carnificina que
atingiu o rebanho. A filha de Zeus, obscurecendo a visão de Ájax para que não pudesse
fitar Odisseu, chama o Telamida para fora de sua barraca e o interpela de maneira cruel
e sarcástica. Ludibriado, Ájax acredita ter conquistado grande glória. Atena, enganando
o herói, apresenta-se como sua aliada. Porém, o Telamida é seu desafeto, pois, em outro
momento a ultrajou: Ájax, preparando-se para ir à guerra, rejeita o favor dos deuses por
considerar-se forte o bastante para vencer sem eles.
Conforme propomos, façamos uma sucinta análise na peça, dos elementos que
antecedem o sofrimento, Πάζνο, de Ájax, a saber, o erro trágico do personagem, o
reconhecimento e a peripécia.
A começar pelo erro trágico (ἁκαξηία) do herói, vejamos como se configura.
Ájax, ao atentar contra os seus pares, põe em risco a estabilidade do grupo, pois estão
unidos não apenas pela guerra, mas também por laços sagrados, tendo em vista que
cultuam os mesmos deuses. Infringir esses laços significa quebrar leis divinas. O seu
erro não apenas fere Ájax, mas mancha toda a sua frota.
É possível evidenciar o erro de Ájax comparando a atitude do herói com o de
Aquiles, no episódio em que o Pelida tem o seu butim de guerra tomado por
Agamêmnon27. O filho de Tétis, em um primeiro momento, tem o ímpeto de matar o
Atrida, mas aquiesce à intervenção de Atena, não indo além de injuriá-lo com palavras.
O erro de Ájax abre espaço para a intervenção de Atena, sobretudo porque em
momento anterior ele desprezara o poder divino ao rejeitar o auxílio da deusa quando
estava prestes a ir a Troia, julgando ser capaz de conquistar, sozinho, sua glória.
Quanto ao reconhecimento, o espectador é informado a respeito a partir da fala
de Tecmessa, concubina de Ájax e mãe de seu filho. Ela relata ao coro, os soldados do
Telamida, o ato nefando do herói (versos 257-262). Ele, que intentava obter glória
através do ato de trucidar os chefes gregos, por se sentir ultrajado, acredita consegui-lo,
haja vista estar sob a influência do daimon, Atena lhe enviara a mania. Entretanto,
quando volta ao seu estado normal, percebe o que de fato aconteceu, massacrou o

27
Homero. Ilíada, Canto I, versos 217 e seguintes.
32

rebanho que serviria de alimento para o exército. Em um ato bestial, comportara-se


como um animal. Logo, Ájax, que antes pressupunha ser elevado pelo ato de vingar a
sua desonra ao matar aqueles responsáveis por essa desonra, agora se reconhece em
desgraça.
Ele geme desesperadamente, de modo semelhante a homens covardes, os quais
ele sempre repudiou (versos 316-320). Daí, percebemos a Peripécia na trajetória de
Ájax: por causa de seu erro, Ájax agora faz aquilo que repudiava, se comporta como
homens que desprezava. Ájax, no seu desespero, aia desesperadamente.
Ele pede para que chamem Teucro, seu meio irmão. Vendo a destruição que
causou, o herói deseja morrer, se dilacerar (versos 358-361). Ájax olha para si mesmo e
percebe sua derrocada. O herói, que outrora era ousado e corajoso, infeliz verteu sangue
dos animais espoliados (versos 372-376). O Telamida, almejando as trevas, deseja ser
habitante do Érebo, sabe ele que não há para onde fugir (versos 394-399).
O herói, antes, era um homem valoroso, agora é um homem que diz coisas que
outrora jamais suportaria falar, coisas lúgubres, coisas que não concernem a um herói de
grandes feitos e grande estirpe como Ájax. Nisto concerne à peripécia do herói. Ájax
possuía uma expectativa de glória ao perpetrar o ato de ir contra os seus pares, no
entanto, o que conseguiu foi vergonha. Ele cogita buscar a ‗bela morte‘ para tentar
amenizar tal vergonha. No entanto, ela não caberia ao herói, pois ele se encontra em
desgraça (verso 465).
É importante salientar que o nome do herói, Αἴαο tem a mesma raiz do verbo
αἰάδω, que quer dizer aiar, gemer profundamente. A prolepse do sofrimento de Ájax está
em seu nome. O próprio herói se indaga acerca do epônimo do seu nome, como
prolepse de seus males (versos 430). Ele se envergonha do que fez e teme a reação de
seu pai, Telamon, caso sobreviva e volte a Salamina. Manda chamar o irmão Teucro e
dá conselhos ao filho Eurísaco.
Já na praia, Ájax chamando para si a Morte e empunhando a espada que ganhara
de Heitor no combate singular, na Guerra de Troia (Ilíada, Canto VII), finca dentro de si
tal presente. O herói, cheio de ódio, nos últimos momentos de sua vida, suplica a Zeus
não ser visto pelos inimigos, mas antes ser jogado aos cães ou comido pelos pássaros se
isto acontecer. Ele não deseja que os filhos de Atreu, como também Odisseu e os outros
companheiros vejam seu declínio. Suplica também vingança: aos Atridas uma morte tão
dolorosa quanto a dele. Pede ao Sol que leve a notícia dos flagelos aos seus pais. Ele
33

suplica a morte e despedindo-se da terra, suicida-se. Desse modo, sela de vez a sua
trajetória trágica: Ájax morre pelas próprias mãos, envergonhado. Foi tomado pelo
daimon, mas não agiu completamente sob a mania. O ἔζνο, o princípio de livre-arbítrio,
manifestado pela vontade do herói também se manifesta, fazendo-o persistir no erro e,
consequentemente, sofrendo as consequências disso.
Após a morte do herói, Teucro, seu meio-irmão, luta pelo direito de celebrar as
honras fúnebres de Ájax, visto que os Atridas, num ato de impiedade, queriam lhe negar
o funeral.
34

Capítulo III – O Páthos no Livro IV

1. Contextualização e estruturação do Livro IV28

O Livro IV canta o amor funesto de Dido e Eneias, que culmina na morte da


rainha, encerrando o Bloco das Provações29 da Eneida. Durante todo o poema épico,
Eneias é o personagem principal da narrativa. No entanto, neste Livro, é Dido quem
aparece como protagonista, sendo inserida, em todas as suas ocorrências, como sujeito
da ação. O vocábulo ‗Dido‘, em todas as aparições no Livro IV, encontra-se no caso
nominativo.
Dido, tomada de amores por Eneias, após ouvir a narrativa do herói desde a
queda de Troia até a errância por terra e mar que o trouxera até ali, tenta resistir a esse
amor que agora sente. Ela está presa aos laços que outrora firmou com Siqueu, primeiro
marido. Anna, sua irmã, incita a rainha a unir-se ao herói troiano, fazendo-a acreditar
que a união com Eneias seria favorável a Cartago. A rainha, insuflada por divindades,
cede ao desejo de entregar-se ao herói, marcando seu destino como trágico.
O Livro contém 705 versos e o estruturamos em núcleos narrativos para que
assim os acontecimentos que permeiam o mesmo possam ser percebidos e analisados
mais detidamente quando necessário. Assim o estruturamos:

 Dido apaixonada por Eneias (versos 1-30): Dido, já tomada pelo fogo
sombrio, confidencia a sua irmã, Ana, o amor pelo herói e as visões que a assombram.
Temendo quebrar as promessas que fez a Siqueu, chama para si a morte, caso as quebre.
 Ana aconselha Dido a unir-se a Eneias (versos 31-53): Ana incita a irmã a
deixar de lado a fidelidade que tem a Siqueu e unir-se a Eneias, enaltecendo as
vantagens da possível união com herói. A rainha sente-se ainda mais inflamada de
amores por Eneias.
 Dido arde em amores (versos 54-89): Inebriada de amores, ela percorre a
cidade com o herói durante o dia e, à noite, tomada por inefável amor, cede à tristeza.

28
A contextualização e a estruturação do Livro IV foi feita a partir dos estudos desenvolvidos no grupo
de pesquisa ‗Dicionário da Eneida‘, que tem como coordenador e orientador o professor Dr. Milton
Marques Júnior, o qual a autora deste trabalho faz parte.
29
Ver ‗Estrutura da Eneida‘, página 17.
35

Os muros e as torres não são mais levantados. Dido descuida-se de sua função
empreendedora.
 Juno e Vênus planejam a união de Dido e Eneias (versos 90-128): As deusas,
cada uma com intenções diferentes, planejam a união da rainha com o herói: durante a
caçada, Juno tenciona enviar uma tempestade que dispersará os participantes e unirá o
casal.
 Dido e Eneias concretizam a união (versos 129-172): Todos os jovens
participam da caçada. Como planejado pelas deusas, a tempestade acontece, espalhando
os participantes e unindo o casal numa gruta. O herói e a rainha consumam a união.
Relâmpagos brilham no céu e as Ninfas rendem brados com a união.
 A Fama espalha a notícia da união (versos 173-218): A deusa Fama espalha
rapidamente a notícia da união, unindo o falso ao verdadeiro e despertando a ira de
Jarbas, pretendente de Dido. O filho de Ámon, que havia erguido a Júpiter cem templos,
lamenta-se para o deus acerca da união de Dido.
 Mercúrio é encarregado de lembrar Eneias de sua missão (versos 219-278):
O deus mensageiro encontra o herói troiano erigindo os edifícios e edificando as
cidadelas, função outrora de Dido. Mercúrio, encarregado por Júpiter, lembra Eneias de
sua missão e o incita a abandonar Cartago.
 Eneias se prepara para sair de Cartago (versos 279-330): Eneias acata as
recomendações do deus mensageiro e prepara a frota para partir. Dido, vendo os
preparativos e ouvindo os boatos que a Fama havia espalhado, pressente a futura partida
do amado. Desvairada, percorre a cidade como uma bacante, e suplica ao herói que
renuncie aos seus projetos. Ela queixa-se ao herói dos benefícios que lhe proporcionou.
 Eneias recusa-se a continuar com Dido (versos 331-361): Eneais agradece os
benefícios concedidos pela rainha enquanto ele e sua tripulação estiveram em Cartago,
mas reitera que nunca pretendeu estabelecer laços nupciais com Dido.
 Dido amaldiçoa Eneias (versos 362-449): Dido, furiosa, põe em dúvida a
ascendência de Eneias e o amaldiçoa. Com feições que amedrontam o herói. Dido deixa
Eneias trêmulo. Desvairada, recorre a Ana, sua irmã, para que ela venha persuadir
Eneias a ficar. O herói permanece firme.
 Dido chama a morte (versos 450-473): A rainha decide morrer. Seu projeto é
fortalecido por terríveis prodígios: a água sagrada dos rituais tornara-se sangue e ouvira
a voz do antigo esposo no templo onde outrora a mesma rendia as honras. Tomada pelo
36

delírio, cogita dar a Eneias e o filho esquartejado como jantar num banquete,
semelhantemente aos eventos da Casa dos Atridas..
 Dido trama a própria morte (versos 474-503): Dido engana Ana dizendo-lhe
que havia recebido de uma sacerdotisa a solução para o amor não correspondido.
 Eneias apressa a sua partida de Cartago (versos 504-521): Enquanto, a rainha
prepara o falso sacrifício, Eneias, aconselhado pelos deuses, apressa a sua partida.
 Inquietação de Dido (versos 522-552): Dido, angustiada, não sabe qual rumo
seguir: ora deseja suplicar casamento aos númidas, ora deseja seguir com os troianos.
Ela não encontra saída para seu dilema, restando apenas para si a morte.
 Mercúrio volta a interpelar Eneias (versos 553-583): Mercúrio visita Eneias
em sonho e o incita a deixar Cartago o mais rápido possível.
 Desvario de Dido (versos 584-606): Dido, ao ver a frota troiana partir, enche-se
de raiva. Ela cogita levar seus homens ao mar e travar guerra contra os troianos, deseja
matar Eneias e despedaçar seu corpo ao mar, tal como Medeia fez com seu irmão, ou
capturar Ascânio e servi-lo num banquete, semelhante ao eventos da casa dos Atridas.
 Dido amaldiçoa Eneias (versos 607-628): Dido evoca Sol, Juno, Hécate e as
Fúrias em seu favor. Dido amaldiçoa Eneias e suplica ódio entre as duas nações.
 Dido suicida-se (versos 629-693): Dido, em seus últimos momentos, sobe os
degraus da pira já preparada, lamenta o destino cruel que lhe arrebatou e finca a espada
troiana contra o peito. Ana desespera-se com a sua morte.
 Juno Piedosa (versos 694-705): Juno se compadece de Dido e envia Íris para
libertar a alma de seu corpo. Irís corta os louros cabelos de Dido, permitindo que sua
alma se vá com os ventos.
Nossa análise estará centrada no momento em Dido chama a morte (versos 450-
473), na inquietação da rainha e seu desvario bem como no momento em que ela
amaldiçoa Eneias. A análise a seguir pontua alguns indícios do destino trágico da
rainha, assim como momentos que julgamos ser necessários a serem pontuados, como o
erro (ἁκαξηία), o reconhecimento (ἀλαγλώξηζηο) e a peripécia (πεξηπέηεηα). Além do
páthos (πάζνο) 30, nosso objeto de estudo.

30
Ao longo do trabalho, para designar πάζνο, usaremos o vocábulo ―sofrimento‖, sobre a qual discutimos
no Capítulo II e ―patético‖. A palavra ―patético‖, segundo Houaiss (2001) vem do grego
―pathétikós,ê,ón 'acessível às impressões exteriores; capaz de sentir, sensível; que sente as impressões de
37

2. Análise

No segundo capítulo, discutimos acerca do patético (πάζνο), categoria trágica


estabelecida por Aristóteles. Ο patético acontece em decorrência de outros elementos
trágicos: o erro trágico (ἁκαξηία), o reconhecimento (ἀλαγλώξηζηο) e a peripécia
(πεξηπέηεηα). Neste capítulo, propomos analisar, com respaldo na discussão do anterior,
o páthos especificamente nos versos 450 a 473, 529 a 532 e 589 a 621, do Livro IV, da
Eneida. Como foi discutido em nosso capítulo teórico, o páthos não ocorre por acaso,
mas em decorrência de elementos aqui citados (erro trágico, reconhecimento e
peripécia). No decorrer de nossa análise, apontaremos tais elementos no texto, afim de
que, se possa delimitar e analisar, de maneira mais detida, o páthos da personagem.
Nosso corpus, no entanto, não é todo o Livro IV, mas apenas os versos que julgamos
concernentes ao páthos da personagem. No entanto, quando necessário, para fins de
enriquecimento de nossa análise, recorreremos a outros trechos, não só no Livro IV,
como também nos Livros I e VI.
A tradição mais corrente acerca da história de Dido está na própria Eneida. O
percurso da rainha de Cartago desenvolve-se na epopeia de Virgílio nos Livros I, IV e
VI. O passado da rainha, embora esteja factualmente externo à narrativa, faz-se do
conhecimento do leitor, a partir da fala de Vênus, no Livro I, nos versos 335-426, e da
fala da própria Dido, nos versos 9-29 do Livro IV. Esta tradição é a mais corrente e
difundida.
Segundo a deusa, a rainha de Cartago saiu fugida do reino de Tiro, na Fenícia,
após seu irmão, Pigmalião, ter assassinado Siqueu, seu marido. Dido era filha de Belo,
rei de Tiro, e irmã de Pigmalião, sucessor do trono. Ela havia casado com Siqueu, um
opulento fenício. O irmão da princesa, ambicionando as riquezas de Siqueu, mata o
cunhado. O assassino do marido era desconhecido para Dido. No entanto, a imagem do
próprio falecido apareceu à fenícia e revelou-lhe os detalhes do crime horrendo e,
incitando-a a fugir, mostrou-lhe a localização dos tesouros. Dido, que até então
desconhecia as condições da morte do cônjuge, foge, junto a outros fenícios, e carrega
consigo os tesouros e deuses penates sujos de sangue. Chegando à Líbia, consegue
estabelecer seu reino graças a sua astúcia. O rei que ali estava estabelecido, concedeu-

modo passivo‖. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed.
Objetiva, 2001.
38

lhe um couro de boi e delimitou que toda a extensão de terra que a fenícia conseguisse
delimitar, seria sua. Dido divide o couro em finas tiras e demarca grande território. Ela
recebe tal território e ali estabelece seu reino. Lá, ela reina sozinha por anos, rejeitando
a todos os pedidos de casamento feitos por reis de nações vizinhas, até a chegada de
Eneias.

O fim trágico da mulher que reinava soberana em Cartago e que inflamada por
um íntimo amor, é preterida por Eneias, culminando o sofrimento por causa do
abandono em seu suicídio não é trágico apenas pelo seu final infeliz, ele é anunciado
desde o início da narrativa. O episódio de Dido, na Eneida, carrega vários indícios
textuais, usos específicos de determinados termos, que atestam-na como personagem
trágica.
Dido aparece na narrativa de Virgílio ainda no Livro I. Dido é mencionada por
Vênus e aparece no início do Livro I. Eneias e os troianos, após anos de errância, são
desviados de seu curso por uma tempestade e aportam na Líbia, nos litorais de Cartago.
Os troianos pedem ajuda a Dido que compadecida deles, promete ajudá-los. Eneias
estava envolto em uma nuvem, providenciada por Vênus, para que não fosse
reconhecido. No momento em que a rainha concorda em ajudar os troianos, a nuvem se
dissipa e há o primeiro encontro dos futuros amantes. Eneias vê Dido belíssima e Eneias
tem sua beleza enaltecida por Vênus, que o faz parecer sedutor como um deus. Dido
conduz Eneias pelo palácio e o herói, grato pela benevolência da rainha, oferece-lhe
presentes.
Vênus, mãe de Eneias, trama novos artifícios para Dido. Citereia (Vênus,)
revolvendo dentro de si novos planos, manda que Cupido, tomando a forma de Ascânio,
ofereça presentes a Dido e abraçando-a, insufle nela o fogo do amor. Vejamos os versos:

At Cytherea nouas artis noua pectore uersat


consilia, ut faciem mutatus et ora Cupido
pro dulci Ascanio ueniat, donisque furentem
incendat reginam atque ossibus implicet ignem‖
(Eneida. Livro I, versos 657-660)

Mas Citereia novas artes e novos conselhos no peito revolve, pede que
Cupido mudando a forma e o rosto, em lugar do doce Ascânio venha,
e incendeie com dons a rainha delirante além de que faça penetrar o
fogo em seus ossos.
39

O emprego desses versos não é gratuito. O adjetivo furentem (delirante) antecipa


o furor e o estado de desvario que assolará Dido no Livro IV. A presença do vocábulo
ignem (fogo) já sinaliza a metáfora desse amor, um fogo que queima, e como tudo que
dissimula, destrói. O pedido da deusa do amor ao seu filho Cupido é categórico
―occultum inspires ignem fallasque veneno” (Inspires um fogo oculto e escondas com
veneno)31. Esta intervenção da deusa, novamente, demonstra as provações pelas quais
Dido passará, como também antecipa a sua morte. No texto, o verbo fallere tem seu
sentido complementado pelo ablativo veneno, o que nos faz inferir que Vênus pede para
que Cupido insufle na rainha tal amor, um amor que queima (ignem), um amor oculto
(occultum...ignem), e a engane com veneno. O sentido que esse veneno adquire no texto
é o de amor devastador, que invade, que provoca destruição, que mata Esse fogo que a
deusa pede com o qual Cupido insufle a rainha, certamente é um fogo devastador, visto
a associação do termo veneno, que traz em seu campo semântico a noção de
combinação mortífera.
Outro indício do percurso trágico de Dido está expresso no verso ―Praecipue
infelix, pesti devota futurae32,(Principalmente infeliz, votada para a destruição
futura)”. Esse verso refere-se a Dido que está direcionada para uma destruição que
ainda não aconteceu. Essa destruição é fruto de uma intervenção divina, o daimon.
Neste caso, a interferência de Vênus, por meio de Cupido, enchendo a rainha de beijos,
inflamando a rainha com amor nefasto.

Ainda no Livro I, o narrador irá se referir a Dido uma única vez como Inscia
Dido (ignorante Dido)33. Esse adjetivo é proveniente do verbo scio, -is, -ire, -ivi, -itum
(conhecer) + in (privativo), portanto Dido é a que desconhece, a que ignora, a que não
reconhece. Inscia, do latim, está diretamente ligado a ἀλαγλνηα (ignorante), do grego.
Tal epíteto, usado apenas uma vez, prenuncia o estado de desconhecimento de Dido, que
só se findará após o seu reconhecimento, no Livro IV. Já o epiteto Infelix Dido (infeliz
Dido)34 acompanhará Dido no transcorrer da narrativa, já sinalizando seu destino

31
Eneida. Livro I, verso 688.
32
Eneida, Livro I, verso 712.
33
Eneida. Livro I, verso 718: Inscia Dido
34
Eneida. Livro I, verso 749: Infelix Dido
40

funesto. O adjetivo infelix provém do adjetivo felix,-cis (feliz), acrescido de in (prefixo


privativo), denotando falta de felicidade, infeliz.
O Livro I se finda com o banquete ofertado por Dido aos troianos. Neste
banquete, Dido, muito apaixonada, evocando Jupiter hospitaleiro, Baco dador de alegria
e a boa Juno, pede a Eneias que narre desde o início as provações que teve que enfrentar
ao longo dos sete anos de errância.
O Livro IV inicia-se com o relato do estado emocional de Dido. O adjetivo
saucia (ferida) é usado para descrevê-lo:

At regina graui iamdudum saucia cura


uolnus alit uenis et caeco carpitur igni.
Multa uiri uirtus animo multusque recursat
gentis honos; haerent infixi pectore uoltus
uerbaque, nec placidam membris dat cura quietem.
(Eneida. Livro IV, versos 1-5)

No entanto, a rainha ferida, há muito tempo, por forte inquietação,


alimenta uma ferida nas veias e é consumida por sombrio fogo.
Retorna frequentemente em seu ânimo o grande valor do varão e a
grande honra do povo. As palavras e os traços fixados permanecem
em seu coração e nem a perturbação dá repouso plácido repouso aos
membros.

A rainha é acometida por um amor que a fere, que a machuca. Mais uma vez
percebemos que o amor insuflado em Dido não trará bons frutos para a fenícia, visto
que este está associado à dor, como o próprio termo uolnus (verso 2) demonstra. Esse
amor a consome, a ataca, a enfraquece (carpitur, do verbo carpo, -is, -ĕre, carpsi,
carptum: desfiar, rasgar, atormentar, consumir). O termo caecus (sombrio)35 é mais uma
das ocorrências textuais que ratificam e antecipam o destino horrendo da rainha. Esse
amor que queima em seus ossos36 a perturba de tal maneira que ela não mais consegue
se acalmar, dar plácido repouso aos membros, o que já prenuncia o futuro delírio
apaixonado da rainha.

35
Baseados por Gaffiot (2000), optamos traduzir caecus por sombrio. Acreditamos que tal termo
supre a noção de 'oculto' e 'cego' do termo, funcionando como prolepse do destino de Dido.
36
Eneida. Livro I, verso 660: ―atque ossibus implicet ignem‖
41

Ela é tomada por este amor e considera o sentimento que nutre por Eneias, uma
falta. Ela vê-se dividida entre o antigo amor e laços nupciais que não pretende quebrar
com seu esposo Siqueu, e essa nova chama funesta que queima dentro de si. A rainha
confidencia a irmã a vontade de se entregar ao novo amor, no entanto lembra-se do
desejo de não mais unir-se a alguém e da dor que sofreu com a morte de seu antigo
marido. Como podemos constatar no trecho seguinte:

si mihi non animo fixum immotumque sederet


ne cui me uinclo uellem sociare iugali,
postquam primus amor deceptam morte fefellit;
si non pertaesum thalami taedaeque fuisset,
huic uni forsan potui succumbere culpae.
(Eneida. Livro IV, versos 15-19)

Se não permanecesse para mim, no ânimo, firme e imoto, não desejar


unir-me em vínculo conjugal a alguém, depois que um primeiro amor
a iludida enganou com a morte, se eu não estivesse desgostosa do
casamento e do leito nupcial talvez pudera sucumbir a esta única
culpa.

Percebemos mais uma vez a antecipação ao destino trágico de Dido. A própria,


confidenciando à irmã os sentimentos que sustenta dentro si, diz que ‗pudera sucumbir a
esta única culpa‘. Virgílio põe na boca de Dido o verbo succumbere (succumbo, -is,-ĕre,
-cubui, -cubitum), que quer dizer, sucumbir que concerne a cair, abater-se. Nesse
contexto, sucumbir concerne a entregar-se totalmente e sem medida a esse amor
devastador. A culpa, a qual a rainha faz referência é o próprio ato de entregar-se a esse
amor, pois ela está presa a laços sagrados e quebrá-los por meio desse amor seria um
erro. Percebemos aqui que não somente a influência divina, o daimon, incitava Dido a
entregar-se a esse amor furtivo. Há na rainha a vontade de ceder a este amor. O erro da
personagem não é uma falha inconsciente totalmente ocasionada pelo daimon (se não me
houvesse aborrecimento do leito nupcial e do casamento talvez pudera sucumbir a esta única
falta).
A fenícia havia jurado amor eterno ao seu marido Siqueu, outrora morto por seu
irmão. Ao ver-se encantada pelo herói e amando-o em segredo, em confissão a sua irmã
Ana, Dido deseja para si a morte, incumbindo o próprio Júpiter de precipitá-la com um
raio e a levá-la para as Sombras do Érebo antes que ela ceda a este amor proibido. Ela o
faz nos seguintes termos:
sed mihi uel tellus optem prius ima dehiscat
42

uel pater omnipotens adigat me fulmine ad umbras,


pallentis umbras Erebo noctemque profundam,
ante, pudor, quam te uiolo aut tua iura resoluo.
(Eneida, Livro IV, versos 24-27)

Mas, primeiro, que eu escolha que a Terra profunda se abra para mim;
ou o pai onipotente crave-me com um raio rumo às sombras, às
pálidas sombras do Érebo, e (rumo) à noite profunda, antes que ó
Pudor, eu te viole, ou quebre as tuas leis.

Dido, tomada de amores por Eneias, evoca o Pudor e pede a esse para fulminá-
la no Érebo(Ἔξεβνο) caso ela quebre as leis que tanto preza. O Érebo (Ἔξεβνο) é filho
do Caos, força primordial descrita por Hesíodo, na Teogonia37. Ele é uma antecâmara
do Tártaro e da região infernal. Segundo Torrano38, é uma potência tenebrosa, uma
negação da vida e da ordem. Assim sendo, a menção ao Érebo (Ἔξεβνο) não é por
acaso: Dido chama as próprias trevas, a divindade que simboliza a negação por
completo da vida e da ordem, para consumi-la, para arrancar de si a sua vida, caso ela
não resista a esse amor devastador.
Ana, a irmã, a incita a ceder a este amor, enumerando as vantagens da união com
o herói troiano. Ela crê que Dido já passou muitos anos de solidão e que deve, agora,
conhecer os prazeres de Vênus. Ela ainda lembra a rainha que Cartago está cercada por
povos que ambicionam seu reino. Ana acredita que os navios troianos não aportaram na
África por acaso, mas que esses estavam ali por desígnios dos deuses. Junto a Eneias,
Dido poderia erguer um império maior que o que já erigira. A irmã aconselha que a
rainha faça sacrifícios aos deuses e ofereça hospitalidade a Eneias e aos troianos. As
palavras de Ana inflamam mais ainda o coração de Dido. Ela se enche de esperanças, e
as leis do Pudor que a prendiam, dissolvem-se. Dido se apressa em fazer os sacrifícios.
Contrariando as leis que preservava e desprezando o fato de ter incumbido as sombras
do Érebo para fulminá-la caso quebrasse essas leis, a rainha imola as ovelhas escolhidas
a Ceres, a Febo, a Baco e a Juno.
Mesmo Dido ainda não tendo concretizado a união e quebrado por completo as
leis do Pudor, o narrador mais uma vez dá indícios do delírio da rainha:

37
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras,
2003.
38
TORRANO, JAA. ―O mundo como função das Musas‖. In: Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo:
Iluminuras, 2003.
43

(...) quid uota furentem,


quid delubra iuuant? est mollis flamma medulas
interea et tacitum uiuit sub pectore uolnus.
(Eneida, Livro IV, versos 65-67)

Por que os votos assistem a delirante? Por que os templos assistem (a


furiosa)? Enquanto isso a flexível flama come as entranhas e a
silenciosa ferida vive sob o peito.

O poeta se refere a Dido como delirante e, de forma retórica, indaga acerca de


como ajudariam templo e os pedidos a uma mulher que já sofre tomada de amores. O
narrador, desta maneira, sinaliza o caminho sem volta, a via de mão única, concernente
à personagem. O amor para Dido novamente é expresso pela metáfora do fogo (flamma)
e da chaga (uolnus). A rainha erra pela cidade e se descuida das obras da cidade, de dia
passeia com o herói e à noite se entristece por não tê-lo consigo.
Virgílio classifica o amor que Dido sente por Eneias como Amor infando
(infandum...amorem)39. A palavra infandum é proveniente da raiz de fas, acrescido ao
prevérbio privativo in- e da marca de obrigatoriedade -nd-, típica de gerundivo, mas
também presente em adjetivos denotando obrigatoriedade da ação. Essa raiz, fas,
provém do verbo fari (falar), concernente àquilo que é pertencente aos deuses, divino. É
um falar divino, dotado de significação. Assim sendo, esse amor não deve ser falado
pelos homens e opõe-se ao que é permitido pelos deuses. Este amor é impronunciável e
nefasto.
A análise que fizemos, até agora, tratou dos indícios, que consistem em
vocábulos chaves que indicam esse destino trágico, dados pelo poeta em relação ao
destino de Dido. É a partir deste momento da trama, da Caçada, no Livro IV que a
situação trágica que culminará no páthos se configurará segundo às categorias estudadas
no capítulo II.
Dido prepara uma grande caçada, em que tomaram parte tírios e troianos. A
rainha surge belíssima, com os cabelos ornados com fitas e uma fivela de ouro
prendendo o vestido púrpura. Os chefes púnicos acompanham Dido e todos se
preparam para a caçada. Eneias não menos belo que Apolo e não menos ágil que Dido
também participa da caçada. É nesse cenário que Juno, aliada a Vênus, desencadeia uma
tempestade, dispersando os participantes. O casal refugia-se na mesma gruta. O

39
Eneida. Livro IV, verso 85.
44

momento sublime da união acontece. Os amantes entregam-se à paixão desmedida.


Tudo havia saído como tramado pelas deusas. A Terra e a própria Juno, favorecedora
das uniões conjugais, anunciam a união e as Ninfas erguem brados.
Este fato marca o erro trágico, de Dido, o ἁκαξηία: a rainha, tomada pela
influência divina, o daimon, já sentindo-se ferida por intenso amor, chama as sombras
do Érebo e deseja a morte caso a mesma quebre as leis nupciais do primeiro casamento,
e mesmo tendo chamado para si a morte, ignora os votos estabelecidos e rende-se ao
furtivo amor. O erro trágico, como foi discutido no capítulo II, consiste em uma falta
cometida pelo personagem que o leva a mudança de fortuna. Dido perjura. Ela rompe os
laços matrimoniais com Siqueu, os quais jurara fidelidade. É possível considerar esse
ato da personagem como seu erro trágico. Ele lhe acarreta a mudança de fortuna, que é
anunciada pelo narrador:

Ille dies primus leti primusque malorum


causa fuit; neque enim specie famaue mouetur
nec iam furtiuom Dido meditatur amorem:
coniugium uocat, hoc praetexit nomine culpam.
(Eneida. Livro IV, versos 169-172)

Aquele primeiro dia foi a causa da morte e o princípio dos males; nem
Dido, de fato, é movida pelo aspecto ou pela fama, nem pensa em
furtivo amor: denomina união, encobre a culpa com este nome.

A quebra dos laços nupciais por parte da rainha como erro trágico e a mudança
de fortuna de Dido, em decorrência do erro, estão marcadas nos versos citados. A
rainha, quebrando as leis do Pudor, marca para si a desventura, visto que aquele dia, o
dia da união de Dido e Eneias, foi a causa da morte e o início dos males da rainha. Ela
já não se importa com o que é visto ou com o que é falado, crendo ser o seu amor não
mais furtivo, mas mascarando-o como casamento, escondendo neste nome a culpa do
delito que cometeu contra a memória de Siqueu e contra os votos que outrora
preservara.
A deusa Fama apressa-se a encher as ruas de Cartago com a notícia do himeneu,
unindo o falso ao verdadeiro, espalha fatos não verdadeiros, diz que os amantes vivem
para os prazeres de Vênus e não mais cuidam das obras de Cartago, sendo escravos de
intensa paixão. A paixão proibida de Dido e Eneias chega aos ouvidos de Jarbas, rei dos
Getulos. O rei, que havia dado a Dido as condições para seu estabelecimento na Líbia,
45

sente-se ultrajado pela rainha, visto que ela prefere um estrangeiro, um novo Páris40 a
ele. O filho de Ámon, que erigira a Júpiter cem templos, encolerizado reclama o fato de
ter sido preterido pela rainha. Júpiter, atendendo às preces de Jarbas, manda Mercúrio,
seu filho, lembrar o herói de sua missão, conquistar as terras itálicas. Ao pousar na
Líbia, o deus mensageiro encontra Eneias edificando as cidadelas e erguendo os
edifícios. Ele veste o manto púrpura, tipicamente fenício. Mercúrio, obedecendo às
ordens do pai, interpela Eneias acerca de sua missão e o adverte acerca da mesma: ele
não pode privar Iulo da glória de Roma. O herói vê-se dividido: o que fazer? Como
contar a Dido que deve partir? Rapidamente, pede para que os companheiros arrumem a
frota. É nesse momento, no qual percebe os preparativos dos soldados de Eneias, que a
rainha até o momento ignorante dos planos de Eneias de partir, percebe a movimentação
estranha:
At regina dolos (quis fallere possit amantem?)
praesensit, motusque excepit prima futuros
omnia tuta timens.
(Eneida. Livro IV, versos 296-298)

Porém, a rainha pressentiu os dolos (quem poderia enganar uma


amante?) e, segura, temendo todas as coisas, reconheceu primeiro os
movimentos futuros.

Percebemos nesse trecho mais uma categoria da situação trágica: o


reconhecimento da personagem. Dido, que até então desconhecia os projetos de Eneias,
compreende a movimentação e logo conclui o que há por vir. A deusa Fama,
confirmando as suspeitas da rainha, denuncia a partida do herói. A personagem passa do
desconhecimento para o conhecimento. Este reconhecimento se dá da personagem em
relação a Eneias. Um reconhecimento forjado pelo poeta: o poeta forja a situação
propícia para que os personagens sofram o reconhecimento. Esse decorre de um erro
trágico e combinado a uma peripécia forma a condição perfeita para o páthos, a
categoria aristotélica objeto de nosso estudo.

40
Páris, príncipe troiano, filho de Príamo e raptor de Helena, esposa de Menelau. O rapto de Helena
motivou a Guerra de Troia. Pode-se entender a comparação de Eneias com Páris de duas maneiras. Jarbas,
ao referir-se a Eneias como um novo Páris pode remeter-se aos trejeitos efeminados do príncipe troiano
ou comparar Eneias a Páris no sentido de raptor. Páris roubou Helena de Menelau, Eneias roubou Dido de
Jarbas, pretendente da rainha.
46

A rainha, sofrendo o reconhecimento, começa a revolver dentro de si todas as


certezas e incertezas acerca da relação com Eneias. O desvario da personagem que
culminará no seu páthos já é palpável, perceptível. Vejamos o seguinte trecho:

Saeuit inops animi totamque incensa per urbem


bacchatur, qualis commotis excita sacris
Thyias, (...)
(Eneida. Livro IV, versos 300-302)

A Fraca de ânimo irritou-se e inflamada vaga como bacante por toda


cidade, como uma Tíade excitada nos seus delírios.

Virgílio compara o desespero da rainha ao comportamento típico das Tíades,


sacerdotisas de Baco, nos mistérios báquicos. Normalmente, as bacantes, na celebração
dos rituais, quando entusiasmadas pelo deus, costumam avançar sobre os rebanhos,
matando-os, correndo pelos bosques, rasgando e dilacerando animais. Dido é
comparada a uma dessas sacerdotisas, o que nos permite inferir que a personagem, neste
momento, já começava a sofrer a sua derrocada, fato típico, e quase obrigatório, dos
personagens trágicos. A rainha outrora soberana, bela, guerreira e empreendedora, após
ser tomada por um amor insuflado por divindades, quebra os votos que guardava para
si, entrega-se a um furtivo amor esquecendo-se de seu reino, e diante da notícia da
partida do amado, expõe-se à vergonha de, estando fraca no ânimo, demente, vagar
pelas ruas da própria cidade correndo como uma Mênade.
Dido, após sofrer o reconhecimento e entrar em desvario, interpela o herói. Ora
dirige acusações ao filho de Vênus, ora suplica que não parta. É a partir da fala da
própria rainha que podemos perceber a peripécia pela qual ela passa. Ela lhe suplica
nesses termos:
Te propter Libycae gentes Nomadumque tyranni
odere, infensi Tyrii; te propter eundem
exstinctus pudor et, qua sola sidera adibam,
fama prior. Cui me moribundam deseris, hospes
(hoc solum nomen quoniam de coniuge restat)?
(Eneida. Livro IV, versos 320-324)

Por causa de ti¸ os povos líbicos e tiranos da Numídia [me] odiaram,


os tírios [me são] hostis; por causa de ti mesmo o pudor foi extinto e a
fama precedente, através da qual [eu] alcançaria os astros. Para que
me abandonas moribunda, oh hospede, (porque apenas este nome resta
do cônjuge)?
47

As intenções de Dido perante Eneias eram a de um himeneu feliz, uma união que
gerasse grandes frutos, que fortalecesse o seu império. No entanto, a união com o herói
não fortaleceu Cartago, mas tornou a cidade mais fraca e alvo dos olhares e da fúria dos
povos vizinhos. E as intenções de Dido em relação ao próprio Eneias também sofrem
uma mudança. Aquele que era seu cônjuge, na verdade, nunca o foi, nunca passou de
seu hóspede41. O próprio herói confirma a Dido que nunca teve o propósito de
estabelecer tal união: ―nec coniugis umquam / praetendi taedas aut haec in foedera ueni
(nunca aleguei amores de cônjuge ou vim para estas alianças)‖42. Inflamada pela ira do
abandono, Dido duvida da ascendência divina de Eneias e rememora ao herói a
benevolência com a qual o acolheu, quando o mesmo se encontrava desprovido de
cuidados, após anos de errância, atirado nos litorais da Líbia. A rainha promete
perseguir Eneias mesmo despois que a morte a abater, cercando-o por todos os lugares.
Desvairada e suplicante tenta de todas as maneiras reverter a partida do herói:
ela pede que a irmã vá ao encontro de Eneias e rogue a ele não o seu estabelecimento
permanente em Cartago, nem a desistência de conquistar as terras do Lácio. Ela pede
apenas que o herói permaneça por mais um tempo, que julga inútil, para que a Fortuna a
ensine a acostumar-se com a partida do herói. Eneias, no entanto, permanece inabalável.
A situação trágica da rainha se instaura de tal forma, que a personagem,
percebendo não haver saída, deseja a morte para si. A rainha começa a perceber os
sinais que ratificam seu projeto de abandonar a vida. O sofrimento, o páthos de Dido, a
todo o momento de seu percurso na narrativa de Virgilio, dava indícios de concretude.
Agora, se institui, de fato, na narrativa:
Tum uero infelix fatis exterrita Dido
mortem orat; taedet caeli conuexa tueri.
Quo magis inceptum peragat lucemque relinquat,
uidit, turicremis cum dona imponeret aris,
(horrendum dictu) latices nigrescere sacros

41
Virgiílio faz um trocadilho com hospes e hostis. Embora os vocábulos tenham a mesma raiz,
eles possuem significados contrários. O hospes, o hóspede, é amigo e estabelece com o hospedador
relações de reciprocidade. O hostis, o hostil, é o estrangeiro, o inimigo. Eneias é, inicialmente, para Dido,
o hospes, o hóspede. Após o seu rompimento com a rainha, ele passa a ser o hostis, o hostil, o inimigo. A
a partir deste momento a inimizade entre Cartago e Roma estará marcada. Dido, ao ser abandonada, em
um de seus desvarios , desejará ser vingada por um descendente seu. Este descendente é Anibal,
comandante cartaginês nas guerras púnicas. Sobre as particularidades entre hospes e hostis, ver
BENVENISTE, Le Vocabulaire des institutions indo-européennes, páginas 92 e seguintes.
42
Eneida. Livro IV, versos 338-339.
48

fusaque in obscenum se uertere uina cruorem.


Hoc uisum nulli, non ipsi effata sorori.
Praeterea fuit in tectis de marmore templum
coniugis antiqui, miro quod honore colebat,
uelleribus niueis et festa fronde reuinctum:
hinc exaudiri uoces et uerba uocantis
uisa uiri, nox cum terras obscura teneret,
solaque culminibus ferali carmine bubo
saepe queri et longas in fletum ducere uoces;
multaque praeterea uatum praedicta priorum
terribili monitu horrificant. Agit ipse furentem
in somnis ferus Aeneas, semperque relinqui
sola sibi, semper longam incomitata uidetur
ire uiam et Tyrios deserta quaerere terra,
Eumenidum ueluti demens uidet agmina Pentheus
et solem geminum et duplices se ostendere Thebas
aut Agamemnonius scaenis agitatus Orestes,
armatam facibus matrem et serpentibus atris
cum fugit ultricesque sedent in limine Dirae.
(Eneida. Livro IV, versos 450-473).

Verdadeiramente, então a infeliz Dido apavorada pelos fados roga a


morte. Está aborrecida de observar as abóbodas do céu, para que mais
persiga o plano de abandono à luz; viu, quando depositava os
presentes nos altares onde queimam os incensos, (coisa horrenda de
dizer!) os líquidos sacros enegrecerem, os vinhos derramados se
verterem em sangue impudico; não contou esta visão para ninguém,
nem para a própria irmã. Além disso, existiu um templo de mármore
no palácio, que ela adornava com admirável honra atado com alvos
tecidos de lã e festiva folhagem. Dali, pareceu serem ouvidas as vozes
e as palavras do varão chamando, quando a noite escura habitava as
terras, e o mocho solitário, nas cumeadas, lastimar-se sempre com
canto fúnebre e conduzir os prolongados pios em prantos. Além disso,
muitas predições dos primeiros vates aterram(-na) com terríveis
advertências. O próprio Eneias, insensível, atiça a furiosa no sonhos e,
sempre sozinha, para si parece ser abandonada e ir, sempre não
acompanhada, por longo caminho, e buscar os Tírios em terra deserta;
Como Penteu demente viu exércitos de Eumênides43, e o sol
geminado, e duas Tebas se apresentarem, ou Orestes Agamenônio, nas
encenações, quando fugia da mãe armada com tochas e com serpentes
negras, e as Fúrias vingadoras permanecem no limiar.

Dido atemorizada começa a receber prodígios que a levam a crer ser seu destino
é a morte. Olhar o céu a incomoda; os vinhos para os sacrifícios tornam-se negros como
sangue. No túmulo de Siqueu, ela atormenta-se crendo ouvi-lo chamando-a diversas

43
Possível confusão de Virgílio de Mênades, as bacantes, e as Eumênides, criaturas infernais.
49

vezes. Ouve o canto de morte da coruja e dos seus pios chorosos. E quando dorme, em
sonhos, Eneias, insensível, a atiça. Ela busca os Tírios, seu povo, em terras desertas.
Ela é comparada, pelo narrador, a personagens trágicos: Penteu e Orestes. A comparação
não é por acaso, ela representa o próprio fim de Dido, um fim trágico. Ela está cega e
alucinada como Penteu44, que espiando os rituais báquicos, se excita com os altos gritos
que cortam o ar e a sua ira torna-se ainda mais latente ao ver e ouvir os clamores
oriundos dos mistérios de Baco; e como Orestes45, que após matar a mãe e o amante
dela, ambos assassinos de Agamêmnon, seu pai, é perseguido pelas Erínias, as
divindades que punem aqueles que cometeram crime parental.
A rainha, que recorrentemente recebe o epíteto de infeliz, já não diferencia
sonho e realidade. Vê seus sentimentos pelo herói oscilarem, configurando um estado de
extrema confusão. Assim Dido é descrita:

At non infelix animi Phoenissa neque umquam


soluitur in somnos oculisue aut pectore noctem
accipit: ingeminant curae rursus resurgens
saeuit amor magnoque irarum fluctuat aestu.
(Eneida. Livro IV, versos 529-532)

Mas não a fenícia infeliz de ânimo nunca repousa em sono, ou acolhe


a noite com os olhos e o peito: cuidados redobram novamente o amor
resurgente, enfurece-se e agita-se no grande furor das iras.

44
Rei tebano, descendente de Cadmos. Filho e Équíon e Ágave. Segundo Ovídio, no Livro III das
Metamorfoses, Penteu desprezava Dioniso como deus e chegou a proibir o culto ao mesmo em Tebas.
Tiresias, o profeta, prevê que em um dia não longe, um deus filho de Sémele chegará à cidade e que o
Equionida deverá honrá-lo com vários templos e sacrifícios, se não o fizesse, o príncipe, com os membros
despedaçados, mancharia com o próprio sangue as florestas, a mãe e a irmã. O herói não escuta a predição
e ela se cumpre: Penteu aprisiona o deus a fim de puni-lo. Baco liberta-se das prisões. Líber põe as
mulheres em delírio, vestidas como bacantes. Elas celebram os mistérios báquicos. Mesmo tendo sido
advertido por seu avô Atamante, Penteu opõe-se à celebração de tais cultos. Ele se dirige ao monte
Citéron, aconselhado pelo próprio deus, a fim de ver as mulheres em entusiasmo. Presenciando a cena, ele
excita-se com os altos gritos e a sua ira reacende. No entanto, é visto pela mãe, que o confunde com um
javali. A bacante chama as companheiras, a mãe arranca-lhe a cabeça e as outras, as irmãs, os demais
membros. O mito de Penteu também está presente na tragédia As Bacantes, de Eurípedes.
45
Orestes é filho de Agamêmnon, rei de Miscenas. Após a Guerra de Troia, o mais velho dos Atridas
volta para seu reino vitorioso. No entanto, a esposa Clitemnestra, com a ajuda do amante, Egisto, mata o
marido e usurpa o reino. O casal planejava matar também Orestes. Eles sabiam que, se caso o menino
fosse mantido vivo, ao crescer, vingaria o ultraje feito ao pai. Orestes, que ainda era uma criança,
escapou da morte graças à irmã, Electra. O menino cresceu escondido e, após ter crescido, vingou a morte
do pai matando os assassinos do mesmo. Após o assassinato, Orestes é perseguido pelas Erínias. O mito
de Orestes está presente na trilogia a Oresteia: Agamêmnon, Coéforas e Eumênides, de Ésquilo.
50

Dido, não consegue descansar, o seu furor que a invade pelos ossos não lhe dá o
descanso do sono, não lhe permite dormir. O amor que nutre ressurge mais ardente e ela
oscila entre paixão e furor, agitando-se em decorrência de sua ira.
A rainha engana a irmã dizendo-lhe ter consultado uma sacerdotisa massília.
Essa lhe indicara as diretrizes para afastar de si os amores que nutre por Eneias. Dido,
então, pede que Ana apronte os preparativos daquele ritual, uma pira fúnebre onde
seriam queimados os objetos do herói. Mal sabe que a rainha prepara, na verdade, a
própria morte. Porém, mesmo desejando a morte, o ânimo vacilante da rainha ainda
projeta várias resoluções e os pensamentos a revolvem. Exposta ao riso e à ameaça de
povos rivais, ora deseja esconder-se nos navios de Eneias e partir com ele, ora conclui
que é melhor morrer delirante e entregue ao inimigo. Mercúrio apressa o filho de Vênus,
pois, segundo o deus, Dido varia e muda, incessantemente (varium et mutabile semper /
femina)46. Esse estado da alma de Dido é mais um indício que corrobora a identificação
do páthos da personagem.
O páthos, como discutimos no capitulo II, é a ação perniciosa que causa dores,
ferimentos e mortes em cena. Esta categoria acontece em decorrência do erro trágico
(ἁκαξηία); do reconhecimento (ἀλαγλώξηζηο), e da peripécia (πεξηπέηεηα). Na situação
trágica em que Dido se encontra, as categorias se arrumam, se concatenam, apontando
para o sofrimento irremediável da rainha. No entanto, o páthos não se resume apenas à
morte da personagem em si, mas a todo esse sofrimento que culmina na irremediável
morte. O delírio, as visões, os prodígios, o desejo de morrer: todos eles fazem parte do
páthos de Dido. Vejamos mais um trecho do Livro IV que ratifica nossa análise:

terque quaterque manu pectus percussa decorum


flauentisque abscissa comas, << Pro Iuppiter! Ibit
hic, >> ait << et nostris inluserit aduena regnis?
Non arma expedient totaque ex urbe sequentur
diripientque rates alii naualibus? ite
ferte citi flammas, date tela, impellite remos!
Quid loquor? aut ubi sum? quae mentem insania mutat?
infelix Dido, nunc te facta impia tangunt?
Tum decuit, cum sceptra dabas. En dextra fidesque,
quem secum patrios aiunt portare penatis,
quem subiisse umeris confectum aetate parentem !
Non potui abreptum diuellere corpus et undis
spargere? Non socios, non ipsum absumere ferro
Ascanium patriisque epalandum ponere mensis?

46
Eneida. Livro IV, versos 569-570.
51

Verum anceps pugnae fuerat fortuna – Fuisset:


quem metui moritura? Faces in castra tulissem
implessemque foros flammis natumque patremque
cum genere exstinxem, memet super ipsa dedissem.
Sol, qui terrarum flammis opera omnia lustras,
tuque harum interpres curarum et conscia Iuno,
nocturnisque Hecate triuiis ululata per urbis
et Dirae ultrices et di morientis Elissae,
accipite haec, meritumque malis aduertite numen
et nostras audite preces. Si tangere portus
infandum caput ac terris adnare necesse est,
et sic fata Iouis poscunt, hic terminus haeret,
at bello audacis populi uexatus et armis,
finibus extorris, complexu auolsus Iuli
auxilium imploret uideatque indigna suorum
funera; nec, cum se sub leges pacis iniquae
tradiderit, regno aut optata luce fruatur,
sed cadat ante diem mediaque inhumatus harena.
(Eneida. Livro IV, versos 589-621).

Tradução:
Três, quatro vezes foi ferida quanto ao belo peito e foi arrancada
quanto às comas enlourecentes, ―Ó, Júpiter!‖, diz, ―este estrangeiro
partirá e terá escarnecido nosso reinos? Não expedirão as armas e
perseguirão de toda cidade, e alguns não arrancarão as embarcações
dos estaleiros? Ide, levai, incitados, as chamas, dai armas, impeli os
remos! O que falo? Por outro lado, onde estou? Que insanidade
transforma minha mente? Infeliz Dido, agora os destinos te tocam?
Naquela época, quando dava cetros, convinha. Eia a destra e a
confiança, este que dizem portar os deuses pátrios consigo, este que
(dizem) ter sustentado o pai enfraquecido pela idade nos ombros! Não
pude dilacerar o corpo arrebatado e espargir nas ondas? Não (poderia)
aniquilar os companheiros com ferro e colocar o próprio Ascanio
havendo de ser banqueteado sobre as mesas pátrias? Mas, porém a
fortuna da pugna fora duvidosa – teria sido: Quem, havendo de
morrer, temi? Teria portado os fachos para os acampamentos, teria
enchido os deques com as chamas, e extinguido o filho e o pai com a
raça e eu o aplicaria sobre mim mesma. ―Sol, que com as chamas
iluminas todas as obras das terras e tu, Juno, ajudante e confidente
destes encargos, e Hécate uludada pelas cidades noturnas e nos
cruzamentos e as Fúrias vingadoras, e os deuses de Elisa moribunda,
aceitai estas coisas e aplicai contra os perniciosos o nume merecido e
ouvi as nossas preces. Se necessário é a cabeça infanda tocar o porto e
chegar às terras e, assim, reclamam os desígnios de Júpiter, este fim
permanece fixado: ao menos agitado pela guerra e pelas armas
audaciosas do povo, expatriado das fronteiras, arrancado do abraço de
Iulo, implore auxílio e veja os funerais indignos dos seus; não usufrua
do reino ou da luz escolhida, quando se entregasse sob as leis de paz
iniquas, mas caia ante o dia e não sepultado em meio aos bancos de
areia.
52

Vendo o herói partir, a Rainha bate no próprio peito e arranca as madeixas loiras
de sua cabeça. Ela, em delírio profundo, e mostrando mais uma vez seu ânimo vacilante,
deseja mover seus soldados para lutarem contra os troianos. Ao ver-se sem soldados
para isto, ela lamenta o destino que a permite ser escarnecida, não só ela, mas todo o
reino. A perturbação que a abate já não lhe permite discernir o que dizer e o que fazer.
Dido desejaria despedaçar o corpo de Eneias e jogá-lo ao mar, numa referência direta ao
mito de Medeia47. A princesa feiticeira, apaixonada por Jasão, utiliza de suas poções
para fazer com que o chefe dos Argonautas dome os dragões que cospem fogo e semeie
as sementes do dragão, conquistando assim o tosão de ouro. Medeia foge com o amado,
mas diante da perseguição do pai, Eetes, rei da Cólquida, mata o irmão, esquarteja-o e
joga as partes do corpo do mesmo pelo caminho, atrasando a perseguição do pai, que
fica aterrorizado com a crueldade de Medeia ao assassinar o próprio irmão. A rainha
fenícia, encolerizada, também cogita raptar Ascânio, matá-lo e servi-lo em um banquete.
A rainha refere-se aos acontecimentos impiedosos da Casa dos Atridas. Nesta família,
por duas vezes, filhos foram mortos e dados como alimento em banquetes. Tântalo, rei
da Frígia, avô de Atreu, a fim de testar a onisciência dos deuses, mata e serve o próprio
filho, Pélops, aos deuses. Por causa da impiedade, foi para o Tártaro. Posteriormente,
Atreu, neto de Tântalo, ambicionando reinar soberano em Miscenas, chama Tiestes, seu
irmão, para um jantar. Atreu mata os filhos de Tiestes e os serve como refeição. Após o
jantar, Atreu mostra-lhe a cabeça dos filhos. Deixando o irmão horrorizado.
Em confusão latente, Dido cogita matar Eneias e os troianos e matar-se depois.
Ela invoca Juno, Hécate, as Fúrias Vingadoras e os deuses penates para que estes,
ouvindo suas preces, impeçam um futuro próximo a Eneias. A infeliz Dido deseja que
Eneias morra expatriado, nos bancos de areia, sem receber as honras fúnebres: uma
morte indigna para um herói de nobre estirpe, como Eneias.
Referenciar tais divindades não é em vão. Hécate é uma deusa filha dos titãs
Perses e Astéria. Dentre várias atribuições, preside as feitiçarias nas encruzilhadas e está
intimamente ligada ao mundo das sombras, sua imagem normalmente é associada a uma
mulher com três corpos ou três cabeças. As Fúrias Vingadoras são criaturas do mundo
infernal. Elas são as correspondentes romanas das Erínias. Essas divindades puniam os
mortais que cometiam crimes, principalmente os parentais. Normalmente elas são

47
O mito de Medeia encontra-se no Livro VII das Metamorfoses, de Ovídio, e na tragédia Medeia, de
Eurípedes. Ambos os textos já foram referenciados no discorrer do trabalho.
53

ilustradas com formas femininas, portando tochas em suas mãos. Dido não evoca
quaisquer divindades. Ela evoca Juno, provedora dos casamentos para perseguir o
amado que a deixara. Evoca Hécate, deusa intimamente ligada às bruxarias e ao mundo
dos mortos e evoca, por fim, as Fúrias, as divindades que punem os criminosos.
O páthos de Dido, no Livro IV, atinge seu ápice com a morte da personagem,
como podemos constatar:

«dulces exuviae, dum fata deusque sinebat,


accipite hanc animam meque his exsolvite curis.
vixi et quem dederat cursum Fortuna peregi,
et nunc magna mei sub terras ibit imago.
urbem praeclaram statui, mea moenia vidi,
ulta virum poenas inimico a fratre recepi,
felix, heu nimium felix, si litora tantum
numquam Dardaniae tetigissent nostra carinae.»
(Eneida. Livro IV, versos 651- 658)

―Doces despojos, enquanto o deus e os destinos permitiam, recebei


esta alma livrai-me destes cuidados. Vivi e acabei o curso que a
fortuna (me) dera e agora a minha grande sombra irá para debaixo das
terras. Cidade ilustre construí, vi minhas muralhas, vingadoras do
varão, suportei as penas de um irmão inimigo. Feliz, ah,
excessivamente feliz (seria), se jamais os navios dardânios tivessem
tocado a nossa costa.

A rainha suplica para que os deuses a livrem daquelas inquietações, lavando sua
alma de uma vez por todas para as sombras. Ela se dignifica daquilo que construiu, mas
lamenta ter um dia permitido que os troianos ali se estabelecessem. Empunhando a
espada que recebera de presente de Eneias, ela profere suas últimas palavras:

«moriemur inultae,
sed moriamur» ait. «sic, sic iuvat ire sub umbras.
hauriat hunc oculis ignem crudelis ab alto
Dardanus, et nostrae secum ferat omina mortis.»
(Eneida. Livro IV, 659-661)

Morreremos não vingada, porém morramos – disse. Desta maneira


agrada-me ir para debaixo das sombras. Que o cruel Dardânio,
absorva. Do alto mar, este fogo com os olhos e leve consigo os
presságios da nossa morte.
54

A fenícia, mais uma vez, expressa seu desejo de morrer. Após essa fala, a rainha
finca dentro de si a espada que havia recebido de presente do herói. Sobre a espada
escorre o sangue da rainha. Antes de morrer, ela deseja que o cruel Dardânio, Eneias,
veja o fogo que cobrirá Cartago com a morte da rainha. Gritos tomam o palácio. Ana, a
irmã de Dido, bate o peito com os punhos e percebe ter sido ajudante do suicídio da
irmã. A morte de Dido é vergonhosa. A rainha que erigira um reino e mantivera-se
imaculada quebrou os juramentos feitos. Inconsequente, entregou-se a um amor ilícito.
Deixou de lado o Pudor e, sendo abandonada, entrou em visível loucura. Sua única
solução foi a morte.
É impossível não relacionar a morte de Dido à de Ájax, na tragédia homônima
de Sófocles. Tanto Dido, quanto Ájax são acometidos pelo daimon, a influência divina.
No entanto, é possível perceber neles a vontade humana, a noção de livre-arbítrio, o
ἔζνο. Tanto Dido no Livro IV, quando Ájax, na peça, defendem valores épicos. Os dois
personagens, cada um em seu contexto, preferiu a morte prematura à vida vergonhosa.
Ájax, tendo atentado contra os seus pares e tendo matado o rebanho espoliado, não
suportaria viver sem glória. Antes cogita ir até as muralhas troianas buscar, inutilmente,
a ―bela morte‘‘. Dido, vendo a frota troiana partir, cogita vingar-se incitando os seus
chefes a irem ao encalço de Eneias. No entanto, tanto a morte de Ájax nas muralhas
troianas quanto a vingança de Dido contra Eneias apagariam ou mudariam a situação
trágica dos personagens. Ájax não somente atentou contra os companheiros, mas
ultrajou os deuses. Dido não apenas quebrou os votos que fizera ao marido, ela
encarregou as forças infernais de puni-la caso ela o fizesse. A morte para os dois é quase
uma solução.
A trajetória de Dido, na Eneida, não se finda no Livro IV. Após sua morte, ela
reaparece no Livro VI. Eneias, guiado pela Sibilia, em buscar de falar com seu pai
Anquises, percorre o Mundo dos Mortos. Ele passa pelo Campo das Lágrimas e lá
reencontra Dido. A rainha encontra-se entre as sombras, ainda sangrando. O herói
interpela a alma. Ela permanece calada olhando fixamente para o chão, depois se retira,
correndo para as florestas umbrosas, em direção aos braços do antigo marido, Siqueu.
Agora é Eneias quem chora e suplica as palavras de Dido e corre atrás dela. Da mesma
forma ocorre com Ájax. Após sua morte, que acontece na tragédia, o herói reencontra
55

seu desafeto maior, Odisseu48. O Laertida, seguindo as indicações de Circe, parte para o
Hades. Ele faz os sacrifícios necessários e, na entrada do mundo subterrâneo, começam
a surgir as almas com as quais desejava falar. Encontrou Tirésias, Agamêmnon, Aquiles
e Ájax. De todas as almas que Odisseu encontrou, a de Ájax foi a única que se manteve
afastada do filho de Laertes. Odisseu se dirige ao Telamida com palavras amigáveis,
perguntando-lhe se ele, mesmo morto, ainda guarda rancor pelo entrave das armas.
Pede-lhe que se aproxime, mas Ájax, sem nada dizer, afasta-se de Odisseu e vai para
junto das outras sombras dos mortos, no Érebo. Semelhantemente a Dido no encontro
com Eneias, no Livro VI.
Ambos, embora sejam personagens épicos e terem um passado de glórias,
sofrem um percurso de derrocada que culmina na morte de ambos por meio do suicídio.
Suicídios, em ambos os casos, realizados por meio dos presentes de seus inimigos.

48
Odisseia. Canto XI, versos 543-565.
56

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta de nosso trabalho foi fazer um estudo acerca do páthos, categoria


aristotélica, de Dido no Livro IV da Eneida.
Neste estudo, num primeiro momento, fizemos a contextualização referente à
época da obra e à obra estudada. Também procuramos detalhar os fatos que se sucedem
no decorrer da obra, situando o Livro IV, no qual está contido o corpus deste estudo,
dentro do poema como um todo.
Logo após, discorremos acerca do páthos. Buscamos descobrir as origens do
termo, o que este significa e as possíveis correspondências no idioma latino, através de
um estudo etimológico. Com base na Poética, de Aristóteles, pontuamos os elementos
que constituem a ação trágica, procurando, sempre que possível, ilustrá-los em diversas
obras. Enfocando sempre no páthos, objeto de nosso estudo. Como toda teoria alia-se
diretamente à prática, procuramos analisar de forma sucinta a tragédia Ájax, a fim de
demonstrar nela a forma com a qual os elementos pontuados se configuram numa
tragédia.
Havendo traçado essas diretrizes teóricas, partimos para a análise literária, cerne
deste trabalho. Mesmo tendo apenas o páthos como objeto de estudo, procuramos
pontuar as demais categorias trágicas acerca das quais discorremos, a saber, o erro
trágico (ἁκαξηία), o reconhecimento (ἀλαγλώξηζηο) e a peripécia (πεξηπέηεηα). Sabendo
que a ação trágica não é gratuita, nem acontece por acaso, procuramos demonstrar
indícios do destino trágico de Dido, como a presença repetidas vezes do adjetivo infelix
e as várias atribuições negativas dadas ao amor da rainha (occultum...ignem, veneno,
infadum...amorem, furtiuom...amorem). Esses indícios ratificam a existência de uma
situação trágica para a personagem. Para isto, recorremos a trechos dos Livros I e IV.
Também procuramos estabelecer pontes de ligação entre a personagem Dido, no Livro
IV da Eneida, e Ájax, na tragédia Ájax e na Odisseia, mostrando semelhanças em suas
trajetórias trágicas.
Diante do que nos propomos a fazer nesse trabalho, julgamos ter conseguido
alcançar os objetivos que estabelecemos de maneira concisa e satisfatória. No entanto,
este trabalho é uma proposta de estudo pautada na tradução e na análise do texto. E, na
qualidade de proposta de estudo, não vem figurar uma fórmula engessada para a
personagem Dido na Eneida, mas abre discussões para possíveis análises em relação à
57

personagem. Assim sendo, fechamos este trabalho, mas não o concluímos, pois sabemos
que ainda há muito para ser dito acerca do tema escolhido. Afinal, o texto literário
possui várias nuances e seria impossível, em um trabalho como este, contemplar todas
elas.
58

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