Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
NASCIMENTO Danniele Silva do-TCC
NASCIMENTO Danniele Silva do-TCC
O SOFRIMENTO DE DIDO
JOÃO PESSOA
ABRIL DE 2013
DANNIELE SILVA DO NASCIMENTO
O SOFRIMENTO DE DIDO
JOÃO PESSOA
ABRIL DE 2013
Catalogação da Publicação na Fonte.
59 f.
O SOFRIMENTO DE DIDO
Banca examinadora
Orientador
Examinador
Examinador
Dedicatória
A minha família, painho, mainha, Emerson e Fernanda que, mesmo com dificuldades,
me ampararam e ajudaram como puderam nessa caminhada.
À tia Jaelza e à família Lopes por terem aberto as portas de sua casa e me hospedado
por dois anos.
A Nathália, Saulo e Prisciane e aos demais integrantes do GREC e do NEALC, por todo
apoio nas atividades acadêmicas e amizade ao longo dos anos de estudos juntos.
Ao professor Marco Valério Colloneli, por todo apoio no estudo da Língua Grega.
Ao Professor Felipe Almeida, por aceitar fazer parte da banca e avaliar o meu trabalho.
A Aquiles Felipe, meu pequeno felino, que esteve comigo, miando e me acalentando,
todas as noites quando estive acordada estudando.
“Si fuit errandum, causas habet error honestas;”
Se existiu coisa havendo de ser errada, o erro tem razões louváveis.
(Ovídio, Heroides, Carta VII, verso 109)
RESUMO
Introdução ................................................................................................................................. 10
I Apresentação da Eneida
1 Contextualização histórico-literária ................................................................................... 12
2 Contextualização da Eneida.............................................................................................. 13
3 Estrutura da Eneida ........................................................................................................... 16
II Πάζνο: conceituação
1. Definição Etimológica ...................................................................................................... 22
2. Πάζνο, uma categoria aristotélica..................................................................................... 23
3. Como o Πάζνο se configura na Tragédia ........................................................................ 30
Introdução
personagem, presentes nos Livros I, IV e VI, bem como a disposição das categorias
aristotélicas no Livro IV. No entanto, daremos um enfoque maior ao páthos da
personagem, visto que esse é o objeto de nosso estudo. Além disso, faremos também a
contextualização e estruturação do mesmo.
Destacamos que todas as traduções utilizadas no decorrer do trabalho são nossas,
tanto as citações em Língua Grega, quanto às citações em Língua Latina, e têm caráter
operacional, buscando uma maior aproximação com a estrutura do texto original. O
texto latino original adotado foi o texto estabelecido por Henri Goelzer, que consta na
bibliografia.
Para o estudo do texto teórico, A Poética, de Aristóteles, consultaremos a
tradução de Eudoro de Souza, da editora Ars Poética, de 1993. Assim como o corpus, a
base teórica também será estudada através de traduções operacionais, estas serão feitas a
partir do texto estabelecido pela edição de Eudoro de Souza, que é baseado no texto
grego da edição Les Belles Lettres, de 1932.
12
1. Contextualização histórico-literária1
1
Para fins de contextualização histórico-literária, utilizamos as seguintes obras:
CHAMPEAUX, Jacqueline. La religione dei romani. Traduzione di Graziella Zattoni Nesi (Edizione
originale: La religion romaine. Paris, Librairie Générale Française, 1998). Bologna: Editore Il Mulino,
2002.
CONTE, Gian Biagio. Latin literature: a history. Translated by Joseph B. Solodow; revised by D.
Fowler and Glenn W. Most (Original italiano: Letteratura latina: Manuale storico dalle origini alla fine
dell‘impero romano, 1987). Baltimore, London: Johns Hopkins University Press, 1999.
LÍVIO, Tito. História de Roma – livro I: a monarquia. Tradução de Mônica Vitorino. Belo Horizonte:
Crisálida, 2008.
13
2. Contextualização da Eneida
A Eneida foi escrita entre os anos 29 e 19 a.C., no Período Clássico da literatura
latina. A sua publicação ocorreu em 17 a.C, após a morte do poeta. Virgílio busca na
tradição épica grega o modelo para a composição do seu poema, valendo-se também da
2
BENVENISTE, Émile. Le Vocabulaire des institutions indo-européennes:2 povoir, droit, religion.
Paris: Les Editions de Minuit, 1969, p150.
14
tradição latina que via em Eneias, filho da deusa Vênus e do mortal Anquises, o elo
entre romanos e troianos, confirmando assim a ascendência divina desse povo.
Segue a genealogia troiana:
Como podemos ver no quadro acima, Eneias, Heitor e Páris tem como
ascendente comum Tros, porém Eneias descende de Ássaraco e Cápis. Já Heitor e
Páris, descendem de Ilos e Laomendonte. Julio César se diz descendente de Iulo, filho
de Eneias, tendo assim uma ligação direta com o herói.
Da linhagem de Eneias, gerações após Iulo, seu filho, descenderão Rômulo e,
gerações após esse, Júlio César, pai adotivo de Otávio Augusto. Eneias pertence à
linhagem pura do povo troiano.
Conforme a tradição, a linhagem de Heitor é marcada pela hýbris (ὕβξηο)3.
Eneias, não descende de Laomedonte. Laomedonte, pai de Príamo, cometeu uma
primeira hýbris: Apolo e Posídon, por terem conspirado contra Zeus, são obrigados a
3
A ὕβξηο (hýbris) diz respeito a um excesso cometido por um mortal, o qual sempre acarreta uma
punição.
15
servir um mortal por um ano. Este mortal foi Laomedonte. Os deuses erigiram as
muralhas da cidadela de Troia, mas além de não terem os seus serviços pagos, ainda
foram ameaçados pelo pai de Príamo. Posidon, furioso, envia um monstro marinho à
cidade. Para livrar-se da fera, Laomedonte pede ajuda a Héracles, prometendo-lhe
cavalos divinos, descendentes dos cavalos dados por Zeus a Trós pelo rapto de
Ganimedes. Novamente, o rei não cumpre o prometido4. O filho de Anquises é
escolhido para fundar as bases de uma nova Troia, Roma, por ser imaculado e insigne
por sua piedade5, ou seja, ele não carrega mácula alguma e nele há a marca da piedade,
da preservação da pietas, o respeito às leis e aos ritos sagrados. Príamo, filho de
Laomedonte, ao acolher Páris seu filho, que trazia consigo Helena, esposa do rei de
Esparta, mancha uma linhagem outrora já marcada pelo erro. Páris, hóspede de
Menelau, fere a Lei da Hospitalidade, raptando e tornando-se amante da rainha de
Esparta.
Tito Lívio, historiador romano contemporâneo a Augusto César, narra, em sua
obra Ab Vrbe Condita, Livro I, Monarquia, a história da fundação de Roma, cuja
origem mítica remonta à destruição de Troia e à chegada de Eneias ao Lácio.
Conforme Tito Lívio, Eneias e um grupo de troianos saem do litoral de Ilião,
buscando fundar uma nova Troia e após um período de errância finalmente chegam às
plagas itálicas. Lá, no Lácio, governava o rei Latino. Tito Lívio remete a duas tradições
para o confronto de Eneias no campo laurentino: a primeira relata que, tendo sido
vencido pelos troianos, Latino, firmou a paz com o povo vencedor e, logo depois,
estabeleceu uma união com Eneias, oferecendo sua filha Lavínia em casamento. A
segunda tradição sustenta que, quando os exércitos dos dois povos, latinos e troianos,
estavam preparados para a guerra, Latino chamou Eneias para um colóquio. O rei do
território laurentino, tendo conhecimento da história dos dardânidas, os quais foram
banidos da cidade de Troia em ruínas, errando por terra e mar, ficou admirado com os
feitos daquele povo e de seu líder. O rei teria firmado uma aliança pública com Eneias,
que foi acolhido como hóspede em seu palácio, casando-se, posteriormente, com sua
filha, Lavínia.
4
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana; tradução de Victor Jabouille. 5 ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
5
Segundo Pierre Grimal, a Pietas (Piedade) é a ―atitude que consistia em observar escrupulosamente não
só os ritos, mas as relações existentes entre os seres no interior do universo.‖ (GRIMAL, 1993a, p.70)
16
A união entre Eneias e Lavínia inflama a ira de Turno, rei dos Rútulos e
pretendente à mão da princesa. Os troianos travam batalha com Turno pela posse das
terras latinas. Ao vencer o confronto, Eneias funda a cidade de Lavínio, em
homenagem a sua segunda esposa, Lavínia. Iulo, seu filho, cuja mãe, segundo Tito
Lívio, não se pode afirmar quem era, funda Alba Longa, onde reinará por trinta anos e
os seus descendentes, trezentos anos. Procas, décimo quarto rei, ao morrer, deixa para
os filhos, Numitor e Amúlio, respectivamente, o reino e as riquezas. Amúlio, não
satisfeito apenas com as riquezas toma o reino de Numitor. Tempos depois, Rheia Silva,
filha de Numitor é condenada, por seu tio Amúlio, a ser uma sacerdotisa de Vesta, o que
implicaria manter a sua castidade intacta. A Vestal dá à luz os gêmeos Rômulo e Remo.
Os bebês são filhos de Marte, deus da guerra. Amúlio, a fim de livrar-se dos herdeiros
do trono, abandona as crianças no rio Tibre, porém, o leito do rio transborda, fazendo
que o cesto onde estão os meninos permanecesse intacto na beira do rio. Rômulo e
Remo são amamentados por uma loba e encontrados por um pastor, Faústulo, que
cuidará deles.
Rômulo e Remo crescem. Os irmãos costumavam praticar roubos. Em uma
dessas empreitadas, foram pegos nas terras de Numitor. O irmão de Amúlio reconhece
os netos e os três unem-se para reaver o trono e matar o rei. Como recompensa, o avô
concede terras aos netos. A Remo coube o Aventino e a Rômulo, o Palatino. Rômulo e
Remo teriam recebido, ambos, augúrios dos deuses que sinalizavam a missa de fundar
um novo reino: sobre o Aventino voaram seis aves, após isso voaram doze sobre o
Palatino. Um se prevalecia pela ordem do aparecimento das aves, o outro pela
quantidade. Diz-se que, quando Rômulo sacralizava o seu território, num sinal de
obediência e piedade aos deuses, Remo teria zombado do irmão. Por causa da
impiedade, Rômulo foi obrigado a matar Remo. Rômulo é, de fato, o primeiro rei de
Roma.
3. Estrutura da Eneida
O poema inicia-se in medias res (no meio dos acontecimentos) e está dividido
em doze livros, apresentando uma estrutura triadíca6. Esta estrutura ajuda-nos a
compreender as etapas que o herói necessita atravessar para torna-se o pai da pátria.
6
Tomamos como base a divisão triádica proposta pelo professor Milton Marques Junior, que divide os
doze Livros da Eneida em três blocos: O Bloco das Provações, o Bloco dos Rituais e o Bloco dos
17
Os quatro primeiros livros referem-se ao Bloco das Provações pelas quais Eneias
deve passar para adquirir a temperança e mostrar-se digno de receber o destino
favorável que lhe foi reservado pelos deuses. Os Livros V a VIII formam o Bloco dos
Rituais, que consolidarão Eneias como um herói piedoso. Os últimos quatro livros, o
Bloco das Guerras, mostram o Eneias guerreiro que, vencendo, torna-se pai da pátria.
O argumento do poema, presente no proêmio é a errância de Eneias que,
seguindo os desígnios dos deuses e os oráculos de Apolo, percorre terra e mar a fim de
fundar um novo reino:
Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris
Italiam fato profugus Lavinaque venit
litora – multum ille et terris iactatus et alto
vi superum saevae memorem Iunonis ob iram,
multa quoque et bello passus, dum conderet urbem
inferretque deos Latio; genus unde Latinum
Albanique patres atque altae moenia Romae
(Eneida, Livro I, v. 1-7)7
O proêmio conta, em linhas gerais, o que canta a Eneida: Eneias, herói troiano,
forçado a sair de sua terra pelo destino e pelos deuses superiores, passa por várias
vicissitudes por terra e mar, a fim de fundar um novo reino na região do Lácio, de onde
surgiria a raça latina e as bases da futura e soberba Roma.
A estrutura triádica anteriormente referida e por nós adotada, atende
adequadamente à proposta do nosso trabalho, a análise do Livro IV, especificamente da
personagem Dido no que concerne ao seu sofrimento conforme a categoria πάζνο, ao
ser abandonada por Eneias. Este livro compõe o Bloco das Provações, quer dizer, a
Combates. Esta estrutura está presente em: VIRGÍLIO. Eneida – Canto IV: a morte de Dido; tradução
de J. Laender; organização de Milton Marques Júnior e Fabrício Possebon; ensaios de Milton Marques
Júnior, Helena Tavares de Melo Viana e Leyla Thays Brito da Silva; comentários à tradução de Fabrício
Possebon. Edição bilíngüe. João Pessoa: Zarinha Centro de Cultura/Editora Universitária da UFPB, 2006.
7
Texto original retirado de VIRGILE. Énéide, livres I-VI. Traduit par André Belessort. 7 éd. Paris: Les
Belles Lettres, 1952.
18
respeito do personagem Eneias nos Livros I, II e III, e à personagem Dido no Livro IV, a
rainha de Cartago, que ao cometer um erro trágico, conforme Aristóteles, cai em
desgraça e sucumbe, suicidando-se.
Tracemos, a seguir, a estrutura da Eneida, a fim de melhor compreendermos o
contexto no qual o Livro IV se insere:
Bloco das Provações:
Livro I: Narrado no tempo presente, inicia-se com Eneias e os troianos que,
atingidos por uma tempestade enviada pela deusa Juno, desviam-se do seu destino, o
Lácio, e chegam a Cartago, no litoral da Líbia, onde reina a rainha Dido. Os troianos,
ao aportarem à costa da Líbia, escondem suas frotas nos bosques e somente o herói
troiano e seu companheiro Acates penetram na cidade. Vênus, mãe de Eneias,
metamorfoseada em uma jovem guerreira, apresenta-se, então, a eles. A deusa conta-
lhes a história da rainha, desde a sua partida de Tiro até chegar àquela região, onde
erigira um reino. A partir disso, Vênus mostra ao filho as muralhas e a cidadela de
Cartago. A imagem da deusa se desvanece, porém ela envolve Eneias e Acates com uma
nuvem para que ninguém pudesse vê-los. Assim, adentram o bosque, onde estava sendo
erigido um grande templo a Juno, lá se depara com a rainha e admira-se com a sua
beleza. O chefe dos teucros tem uma surpresa, ele vê chegar ao templo alguns de seus
companheiros das naus que haviam se dispersado do resto da frota por causa da
tempestade. Envolvidos pela nuvem, ele e Acates desejam saber a sorte dos
companheiros. Ilioneu, um dos dardânidas submetidos ao interior do palácio, logo rende
súplicas de misericórdia à rainha. Ela, conhecedora das dificuldades enfrentadas pelos
troianos, como também da fama e da coragem do herói Eneias, dispõe-se a ajudar os
jovens a encontrar o seu líder. É quando a nuvem que envolvia Eneias e Acates se
dissipa e acontece o primeiro encontro entre o troiano e Dido. A beleza de Eneias
valorizada por Vênus é causa de uma maior admiração por parte da rainha fenícia. A
mando de Vênus, Cupido, transformado em Ascânio, infla em Dido o fogo do amor. Um fogo
que a penetrará pelos ossos. O Livro I termina com um banquete oferecido por Dido a
Eneias e aos seus companheiros. A rainha, insuflada pelo fogo do amor, pede ao filho
de Anquises que narre as desventuras sofridas pelos troianos durante a destruição de
Troia, como também as vicissitudes pelas quais passaram até a sua chegada a Cartago.
Livro II: Eneias, em primeira pessoa, a partir da perspectiva do vencido, narra a
Dido a queda de Troia, incendiada pelos gregos, e a saída dos troianos da cidade. Como
19
Uma tempestade enviada por Juno dispersa os jovens e obriga o casal a refugiar-se em
uma gruta. Lá, o herói e a rainha consumam a união. Após um ano da chegada de Eneias
a Cartago, Mercúrio, mandado por Júpiter, lembra o herói de sua missão. O filho de
Anquises decide partir de Cartago, abandonando Dido. O herói vai embora e Dido,
desolada, o amaldiçoa e se suicida.
Livro IX: Argumento: a batalha entre Eneias e seus companheiros contra Turno e
os rútulos. Turno é quem primeiro ataca. Niso e Euríalo, jovens troianos, lutam
bravamente, mas encontram a morte. A perseguição dos latinos obriga Turno a fugir
para a região do Tibre.
Livro X: Júpiter decide não interferir a favor de Eneias. O deus procura conciliar
Juno e Vênus. Na guerra, Eneias mata Mezêncio. Tarcão, rei estrusco alia-se a Eneias.
Palante, filho do rei Evandro e aliado dos Troianos, morre no campo de batalha.
Livro XI: É feita uma trégua de doze dias para que fossem realizados os ritos
fúnebres aos mortos. Camila, rainha dos Volscos e aliada de Turno, morre pelas mãos
de Arrunte. O exército da rainha recua e se precipita para as muralhas. Aca relata a
Turno a notícia da morte da aliada. O rei dos rútulos, furioso, abandona as colinas onde
se escondia e, com seu exército, marcha contra Eneias.
Livro XII: Turno, sabendo da morte de sua aliada, Camila, volta de seu
esconderijo, na região do Tibre. O rei dos rútulos e Eneias enfrentam-se em um duelo.
Turno viola as regras e fere Eneias, que prontamente é curado por sua mãe, Vênus.
Amata, rainha aliada a Turno, se mata. Eneias vence o combate contra o rei dos rútulos
e o mata.
A descrição acima, de cunho meramente perifrástico, tem por objetivo situar o
Livro IV dentro do contexto narrativo da Eneida. Tendo em vista tratar-se do corpus do
nosso trabalho. Seguindo a trajetória de Dido, é possível perceber o perfil trágico da
personagem, cuja atuação no decorrer do poema, especificamente nos Livros I, IV e VI,
é perpassada por elementos trágicos, tais como erro trágico (ἁκαξηία), o
reconhecimento (ἀλαγλώξηζηο), a peripécia (πεξηπέηεηα) e o sofrimento
(πάζνο),categorias aristotélicas, que a caracterizam como uma personagem trágica.
Assim, dentro deste âmbito, propomos estudar o sofrimento (πάζνο) de Dido,
sendo necessário, no entanto, delinearmos, primeiramente, as etapas pelas quais ela
passa na sua trajetória trágica, cujo ápice é o sofrimento (πάζνο).
22
1.Definição Etimológica
Bailly8 define o vocábulo Πάζνο como ‗estado da alma agitada por uma
circunstância exterior, disposição moral, particularmente, disposição agitada‘. Romizi9
define a palavra como a ação de uma impressão quase sempre negativa, e o seus efeitos:
sentimento, comoção, emoção, ódio, paixão, ira, sofrimento, dor, mal, tristeza.
Conforme este autor, a formação da palavra se configura deste modo: πάζνο, νπο, ηό,
do tema de πάζρω (recebo uma impressão, sofro) e o sufixo –νο, νπο a indicar a ação e
o efeito da ação. Conforme, Bailly, πάζρω significa ‗ser afetado de tal ou tal modo,
sofrer tal ou tal afetação, sensação ou sentimento‘.
Chantraine10 relata que sobre o grau zero do aoristo παζεῖλ constrói-se a forma
substantiva πάζνο: ―aquilo que acontece a alguém ou a alguma coisa, experiência
sofrida, infelicidade, emoção da alma...‖. De πάζνο provém παζεηλόο, ‗que sofre‘, e
πάζεκα, ‗aquilo que acontece a alguém, sofrimento, infelicidade, doença‘.
Logo, Πάζνο seria o estado de afetação da alma, sofrimento de um personagem,
causado pela ação de uma impressão exterior quase sempre negativa, por um
personagem. Em Ájax, de Sófocles, por exemplo, o personagem, diante da desonra
perante os pares – ação de uma impressão externa negativa – sente-se desgraçado e,
com isso, sofre.
O verbo latino correspondente a πάζρω, segundo Ernout & Meillet11, é patior
(patior,-eris, pati, passus sum). Esse verbo é depoente e, portanto, carrega consigo uma
noção médio-passiva. O indivíduo não age, a ação de sofrer, de suportar, de estar em
doença recai sobre ele. Desse verbo derivou o substantivo passion12, forma essa que
seria o equivalente à grega πάζνο. No entanto, a forma passion, segundo Ernout, veio
surgir apenas no Latim Eclesiástico, para expressar a ‗Paixão de Cristo‘. No Latim
8
BAILLY, Anatole. Dictionnaire Grec Français. Paris: Hachette, 2000.
9
ROMIZI, Renato. Grego Antico: Vocabolario greco italiano etimologico e ragionato. Bologna:
Zanichelli, 2007.
10
CHANTRAINE, Pierre. Dictionnaire étymologique de la langue grecque: histoire des mots. Paris:
Klincksieck, 1999.
11
ERNOUT, Alfred et MEILLET, Antoine. Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire des
mots. Paris : Klincksieck, 2001.
12
Passion, -onis (patior + -tio): uma afecção da mente, paixão, emoção. Sufixo -Tio, -tionis: sufixo de
formas verbais substantivas que denotam a ação do verbo. GLARE, P.G.W. Orford latin dictionary. New
York: Orford at the Claredon Press, 2003.
23
tragédia, ditirambo, como sendo, em geral, imitações (κίκεζηο). Em sua obra, o filósofo
dedica-se mais detidamente à Tragédia, remetendo à Epopeia apenas como contraponto.
Aristóteles, respeitante a tragédia, elenca as diversas possibilidades de situações
que poderiam ocorrer no desenrolar da trama, causadoras do efeito trágico próprio desse
gênero.
Conforme o autor, a situação trágica deve necessariamente desenrolar-se entre
amigos, entre inimigos e desconhecidos14. Se a situação ocorrer entre inimigos ou
desconhecidos, as ações dos personagens não nos compadecem. No entanto, se ações
ocorrem entre amigos, ou pessoas muito próximas, como um irmão que mata outro
irmão ou mãe matando os filhos, isso comove a quem vê. Em Coéforas15, de Ésquilo, o
assassinato de Cliteminestra por Orestes, seu filho, comove o coro. Essa situação
configura-se como trágica, pois se dá entre entes muito próximos, um filho mata a sua
mãe, denotando um ato inesperado. Essa situação causaria efeito mais intenso sobre o
público.
Na trama da peça, o personagem pode agir conhecendo ou desconhecendo o que
faz. Em Medeia16, tragédia de Eurípedes, a personagem homônima mata os filhos
consciente e deliberadamente. Em Édipo Tirano17, por sua vez, Édipo mata o próprio
pai, Laio, rei de Tebas, desconhecendo o laço de parentesco que existe entre eles. O
personagem age, desconhecendo, e perpetrada a ação, vem a conhecê-la: tal ação não
repugna e o reconhecimento surpreende. Existe ainda a possibilidade de o personagem
estar prestes a cometer algo terrível desconhecendo a circunstância e, passando a
conhecê-la, não perpetrar o ato.
A melhor situação, conforme Aristóteles, acontece quando o personagem, nada
sabendo, age e apenas torna-se conhecedor após a ação repugnante. Ele aponta Édipo
como melhor exemplo, o personagem mata o pai e casa com a mãe, sem saber dos laços
de parentesco que o unia. Após a peste enviada a Tebas, o personagem, descobrindo ser
o responsável por aquela situação, fura os próprios olhos.
14
Poética, 1453 b15.
15
ÉSQUILO. Coéforas. Estudo e tradução de JAA Torrano. São Paulo: Illuminuras FAPESP, 2004.
16
EURIPEDES. Obras dramaticas. Traduccion por Eduardo Mier y Barbery. Buenos Aires : El
Ateneo, 1951.
17
SOPHOCLES. The Theban Plays: King Oedipus, Oedipus at Colonus, Antigone. Translated by E.
F. Watling. The Penguin Classics. Baltimore: Penguin Books, 1959.
25
É tal como este que não se difere pela virtude e pela justiça, mudando
para a δεζϝεληπξα, não através da maldade, mas de algum erro.
Aristóteles afirma:
18
ROMIZI, Renato. Grego Antico: Vocabolario greco italiano etimilogico e ragionato. Bologna:
Zanichelli, 2007.
26
19
Edição utilizada: HOMERO. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 2 ed. São Paulo: Ediouro,
2009.
20
Odisseia. Canto XIX, versos 306 e seguintes.
21
EURIPEDES. Obras dramaticas. Traduccion por Eduardo Mier y Barbery. Buenos Aires : El
Ateneo, 1951.
27
pergunta acerca da queda de Troia, dos destinos de Helena, Odisseu. Revelando também
ser proveniente de Argos, ela pergunta sobre seu pai, Agamêmnon. Orestes responde
que ele morreu, o que faz ela desesperar-se. Orestes não entende o choro dela. Ele
revela-lhe também que Cliteminestra, assassina do rei de Argos, foi morta pelo filho e
que esse, embora justo em vingar a morte do pai, não tem sorte com os deuses. Ela
pergunta acerca de Electra e do próprio Orestes. O irmão, na qualidade de estrangeiro,
responde que Orestes vive. A sacerdotisa acreditando que Orestes morrera, por causa de
um sonho funesto que teve, não reconhece, de imediato, o irmão. O filho de
Agamêmnon também se demora a reconhecer a irmã, visto que acredita na morte dela,
sacrificada pelo pai, em Áulis. A sacerdotisa feliz pela notícia de que o irmão está vivo,
promete ao estrangeiro Orestes, que outrora desejou ser enterrado pela irmã que acredita
estar morta, que lhe fará as honras fúnebres. No entanto, antes do sacrifício, ela sai de
cena para pegar uma carta para que Pílades, que retornaria a Argos, levasse. Pílades,
com medo de sofrer um naufrágio e perder a carta, pede que a autora da carta a leia para
ele, para que assim fixasse o conteúdo e, assim, mesmo que a perdesse, saberia o recado
a ser dado. Ela então lê. No início da carta, ela revela que não foi sacrificada em Áulis.
Orestes perplexo e não reconhecendo tratar-se da própria, indaga acerca do paradeiro da
irmã. Ela se revela e ele a reconhece. Findando a leitura da carta, Orestes a abraça e se
revela. Ela o afasta e, não reconhecendo o irmão, pede para que ele prove ser o filho de
Agamêmnon. Ele, então, cita objetos e fatos pessoais, como um bordado feito por ela e
a lança de Pélops que ficava pendurada no quarto da irmã, em Argos. Ifigênia, diante do
relato de fatos tão íntimos, reconhece o irmão.
O reconhecimento produzido pela memória efetua-se a partir das lembranças e
impressões que se manifestam quando um personagem vê o outro ou quando algum
personagem, vendo algum quadro ou vendo a si mesmo reconhece algo. Novamente
podemos encontrar na Odisseia um tipo de reconhecimento, dessa vez no Canto VIII22.
Odisseu, já tendo passado pela Ilha de Calipso, sem revelar sua verdadeira identidade,
chega à terra dos feácios, reino de Alcínoo. Os feácios se comprazem nos jogos
propostos por Alcinoo e após as competições, Demódoco, o aedo, canta acerca dos
amores de Afrodite, do Cavalo de Madeira e dos trabalhos de Odisseu. O Laertida
chora, tentando esconder o rosto para não ser reconhecido. No entanto, Alcínoo,
22
Odisseia. Canto VIII, versos 521 e seguintes.
28
23
Edição utilizada: ÉSQUILO. Coéforas. Estudo e tradução de JAA Torrano. São Paulo: Illuminuras
FAPESP, 2004.
29
πεξηπέηεηα provém de πεξη (preposição que significa em torno de) + πίπηω (verbo que
significa cair, encontrar, acontecer) + εηα (sufixo que indica uma qualidade).
Segundo Aristóteles:
ἔζηη δὲ πεξηπέηεηα κὲλ ἡ εἰο ηὸ ἐλαληίνλ ηῶλ πξαηηνκέλωλ κεηαβνιὴ
θαζάπεξ εἴξεηαη, θαὶ ηνῦην δὲ ὥζπεξ ιέγνκελ θαηὰ ηὸ εἰθὸο ἢ
ἀλαγθαῖνλ,
(Aristóteles. Poética, 1452a, 20)
A peripécia é, como foi dito, a mudança do que está sendo agido [as
ações] para a direção contrária. Isso também, como dissemos, [é]
segundo o verossímil ou necessário.
24
Poética, 1452 a-35.
30
rei de Tebas, e que a mulher a qual se uniu é a sua mãe e, além disso, descobrindo ser o
causador da desgraça que assola Tebas, fura os próprios olhos. No ápice do seu
sofrimento, o conjunto dessas categorias, o reconhecimento e peripécia e logo após o
patético, gera a catarse, o efeito de purificação que os espectadores sofrem com o
desfecho da tragédia.
25
Edição utilizada para análise: SOFÓCLES. Aias. Apresentação e tradução de Flávio Ribeiro de
Oliveira. São Paulo: Iluminuras, 2008.
26
Aristóteles. Poética, 1456ª, 1.
31
É nesse cenário que a tragédia Ájax se inicia. No prólogo, Atena e Odisseu estão
no acampamento grego. A voz da deusa, dirigindo-se a Odisseu, diz saber que o rei de
Ítaca seguia os passos de Ájax, e informa o que houve com o herói inflamado. Ela
confirma as suspeitas de Odisseu de que seria Ájax o culpado pela carnificina que
atingiu o rebanho. A filha de Zeus, obscurecendo a visão de Ájax para que não pudesse
fitar Odisseu, chama o Telamida para fora de sua barraca e o interpela de maneira cruel
e sarcástica. Ludibriado, Ájax acredita ter conquistado grande glória. Atena, enganando
o herói, apresenta-se como sua aliada. Porém, o Telamida é seu desafeto, pois, em outro
momento a ultrajou: Ájax, preparando-se para ir à guerra, rejeita o favor dos deuses por
considerar-se forte o bastante para vencer sem eles.
Conforme propomos, façamos uma sucinta análise na peça, dos elementos que
antecedem o sofrimento, Πάζνο, de Ájax, a saber, o erro trágico do personagem, o
reconhecimento e a peripécia.
A começar pelo erro trágico (ἁκαξηία) do herói, vejamos como se configura.
Ájax, ao atentar contra os seus pares, põe em risco a estabilidade do grupo, pois estão
unidos não apenas pela guerra, mas também por laços sagrados, tendo em vista que
cultuam os mesmos deuses. Infringir esses laços significa quebrar leis divinas. O seu
erro não apenas fere Ájax, mas mancha toda a sua frota.
É possível evidenciar o erro de Ájax comparando a atitude do herói com o de
Aquiles, no episódio em que o Pelida tem o seu butim de guerra tomado por
Agamêmnon27. O filho de Tétis, em um primeiro momento, tem o ímpeto de matar o
Atrida, mas aquiesce à intervenção de Atena, não indo além de injuriá-lo com palavras.
O erro de Ájax abre espaço para a intervenção de Atena, sobretudo porque em
momento anterior ele desprezara o poder divino ao rejeitar o auxílio da deusa quando
estava prestes a ir a Troia, julgando ser capaz de conquistar, sozinho, sua glória.
Quanto ao reconhecimento, o espectador é informado a respeito a partir da fala
de Tecmessa, concubina de Ájax e mãe de seu filho. Ela relata ao coro, os soldados do
Telamida, o ato nefando do herói (versos 257-262). Ele, que intentava obter glória
através do ato de trucidar os chefes gregos, por se sentir ultrajado, acredita consegui-lo,
haja vista estar sob a influência do daimon, Atena lhe enviara a mania. Entretanto,
quando volta ao seu estado normal, percebe o que de fato aconteceu, massacrou o
27
Homero. Ilíada, Canto I, versos 217 e seguintes.
32
suplica a morte e despedindo-se da terra, suicida-se. Desse modo, sela de vez a sua
trajetória trágica: Ájax morre pelas próprias mãos, envergonhado. Foi tomado pelo
daimon, mas não agiu completamente sob a mania. O ἔζνο, o princípio de livre-arbítrio,
manifestado pela vontade do herói também se manifesta, fazendo-o persistir no erro e,
consequentemente, sofrendo as consequências disso.
Após a morte do herói, Teucro, seu meio-irmão, luta pelo direito de celebrar as
honras fúnebres de Ájax, visto que os Atridas, num ato de impiedade, queriam lhe negar
o funeral.
34
Dido apaixonada por Eneias (versos 1-30): Dido, já tomada pelo fogo
sombrio, confidencia a sua irmã, Ana, o amor pelo herói e as visões que a assombram.
Temendo quebrar as promessas que fez a Siqueu, chama para si a morte, caso as quebre.
Ana aconselha Dido a unir-se a Eneias (versos 31-53): Ana incita a irmã a
deixar de lado a fidelidade que tem a Siqueu e unir-se a Eneias, enaltecendo as
vantagens da possível união com herói. A rainha sente-se ainda mais inflamada de
amores por Eneias.
Dido arde em amores (versos 54-89): Inebriada de amores, ela percorre a
cidade com o herói durante o dia e, à noite, tomada por inefável amor, cede à tristeza.
28
A contextualização e a estruturação do Livro IV foi feita a partir dos estudos desenvolvidos no grupo
de pesquisa ‗Dicionário da Eneida‘, que tem como coordenador e orientador o professor Dr. Milton
Marques Júnior, o qual a autora deste trabalho faz parte.
29
Ver ‗Estrutura da Eneida‘, página 17.
35
Os muros e as torres não são mais levantados. Dido descuida-se de sua função
empreendedora.
Juno e Vênus planejam a união de Dido e Eneias (versos 90-128): As deusas,
cada uma com intenções diferentes, planejam a união da rainha com o herói: durante a
caçada, Juno tenciona enviar uma tempestade que dispersará os participantes e unirá o
casal.
Dido e Eneias concretizam a união (versos 129-172): Todos os jovens
participam da caçada. Como planejado pelas deusas, a tempestade acontece, espalhando
os participantes e unindo o casal numa gruta. O herói e a rainha consumam a união.
Relâmpagos brilham no céu e as Ninfas rendem brados com a união.
A Fama espalha a notícia da união (versos 173-218): A deusa Fama espalha
rapidamente a notícia da união, unindo o falso ao verdadeiro e despertando a ira de
Jarbas, pretendente de Dido. O filho de Ámon, que havia erguido a Júpiter cem templos,
lamenta-se para o deus acerca da união de Dido.
Mercúrio é encarregado de lembrar Eneias de sua missão (versos 219-278):
O deus mensageiro encontra o herói troiano erigindo os edifícios e edificando as
cidadelas, função outrora de Dido. Mercúrio, encarregado por Júpiter, lembra Eneias de
sua missão e o incita a abandonar Cartago.
Eneias se prepara para sair de Cartago (versos 279-330): Eneias acata as
recomendações do deus mensageiro e prepara a frota para partir. Dido, vendo os
preparativos e ouvindo os boatos que a Fama havia espalhado, pressente a futura partida
do amado. Desvairada, percorre a cidade como uma bacante, e suplica ao herói que
renuncie aos seus projetos. Ela queixa-se ao herói dos benefícios que lhe proporcionou.
Eneias recusa-se a continuar com Dido (versos 331-361): Eneais agradece os
benefícios concedidos pela rainha enquanto ele e sua tripulação estiveram em Cartago,
mas reitera que nunca pretendeu estabelecer laços nupciais com Dido.
Dido amaldiçoa Eneias (versos 362-449): Dido, furiosa, põe em dúvida a
ascendência de Eneias e o amaldiçoa. Com feições que amedrontam o herói. Dido deixa
Eneias trêmulo. Desvairada, recorre a Ana, sua irmã, para que ela venha persuadir
Eneias a ficar. O herói permanece firme.
Dido chama a morte (versos 450-473): A rainha decide morrer. Seu projeto é
fortalecido por terríveis prodígios: a água sagrada dos rituais tornara-se sangue e ouvira
a voz do antigo esposo no templo onde outrora a mesma rendia as honras. Tomada pelo
36
delírio, cogita dar a Eneias e o filho esquartejado como jantar num banquete,
semelhantemente aos eventos da Casa dos Atridas..
Dido trama a própria morte (versos 474-503): Dido engana Ana dizendo-lhe
que havia recebido de uma sacerdotisa a solução para o amor não correspondido.
Eneias apressa a sua partida de Cartago (versos 504-521): Enquanto, a rainha
prepara o falso sacrifício, Eneias, aconselhado pelos deuses, apressa a sua partida.
Inquietação de Dido (versos 522-552): Dido, angustiada, não sabe qual rumo
seguir: ora deseja suplicar casamento aos númidas, ora deseja seguir com os troianos.
Ela não encontra saída para seu dilema, restando apenas para si a morte.
Mercúrio volta a interpelar Eneias (versos 553-583): Mercúrio visita Eneias
em sonho e o incita a deixar Cartago o mais rápido possível.
Desvario de Dido (versos 584-606): Dido, ao ver a frota troiana partir, enche-se
de raiva. Ela cogita levar seus homens ao mar e travar guerra contra os troianos, deseja
matar Eneias e despedaçar seu corpo ao mar, tal como Medeia fez com seu irmão, ou
capturar Ascânio e servi-lo num banquete, semelhante ao eventos da casa dos Atridas.
Dido amaldiçoa Eneias (versos 607-628): Dido evoca Sol, Juno, Hécate e as
Fúrias em seu favor. Dido amaldiçoa Eneias e suplica ódio entre as duas nações.
Dido suicida-se (versos 629-693): Dido, em seus últimos momentos, sobe os
degraus da pira já preparada, lamenta o destino cruel que lhe arrebatou e finca a espada
troiana contra o peito. Ana desespera-se com a sua morte.
Juno Piedosa (versos 694-705): Juno se compadece de Dido e envia Íris para
libertar a alma de seu corpo. Irís corta os louros cabelos de Dido, permitindo que sua
alma se vá com os ventos.
Nossa análise estará centrada no momento em Dido chama a morte (versos 450-
473), na inquietação da rainha e seu desvario bem como no momento em que ela
amaldiçoa Eneias. A análise a seguir pontua alguns indícios do destino trágico da
rainha, assim como momentos que julgamos ser necessários a serem pontuados, como o
erro (ἁκαξηία), o reconhecimento (ἀλαγλώξηζηο) e a peripécia (πεξηπέηεηα). Além do
páthos (πάζνο) 30, nosso objeto de estudo.
30
Ao longo do trabalho, para designar πάζνο, usaremos o vocábulo ―sofrimento‖, sobre a qual discutimos
no Capítulo II e ―patético‖. A palavra ―patético‖, segundo Houaiss (2001) vem do grego
―pathétikós,ê,ón 'acessível às impressões exteriores; capaz de sentir, sensível; que sente as impressões de
37
2. Análise
modo passivo‖. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed.
Objetiva, 2001.
38
lhe um couro de boi e delimitou que toda a extensão de terra que a fenícia conseguisse
delimitar, seria sua. Dido divide o couro em finas tiras e demarca grande território. Ela
recebe tal território e ali estabelece seu reino. Lá, ela reina sozinha por anos, rejeitando
a todos os pedidos de casamento feitos por reis de nações vizinhas, até a chegada de
Eneias.
O fim trágico da mulher que reinava soberana em Cartago e que inflamada por
um íntimo amor, é preterida por Eneias, culminando o sofrimento por causa do
abandono em seu suicídio não é trágico apenas pelo seu final infeliz, ele é anunciado
desde o início da narrativa. O episódio de Dido, na Eneida, carrega vários indícios
textuais, usos específicos de determinados termos, que atestam-na como personagem
trágica.
Dido aparece na narrativa de Virgílio ainda no Livro I. Dido é mencionada por
Vênus e aparece no início do Livro I. Eneias e os troianos, após anos de errância, são
desviados de seu curso por uma tempestade e aportam na Líbia, nos litorais de Cartago.
Os troianos pedem ajuda a Dido que compadecida deles, promete ajudá-los. Eneias
estava envolto em uma nuvem, providenciada por Vênus, para que não fosse
reconhecido. No momento em que a rainha concorda em ajudar os troianos, a nuvem se
dissipa e há o primeiro encontro dos futuros amantes. Eneias vê Dido belíssima e Eneias
tem sua beleza enaltecida por Vênus, que o faz parecer sedutor como um deus. Dido
conduz Eneias pelo palácio e o herói, grato pela benevolência da rainha, oferece-lhe
presentes.
Vênus, mãe de Eneias, trama novos artifícios para Dido. Citereia (Vênus,)
revolvendo dentro de si novos planos, manda que Cupido, tomando a forma de Ascânio,
ofereça presentes a Dido e abraçando-a, insufle nela o fogo do amor. Vejamos os versos:
Mas Citereia novas artes e novos conselhos no peito revolve, pede que
Cupido mudando a forma e o rosto, em lugar do doce Ascânio venha,
e incendeie com dons a rainha delirante além de que faça penetrar o
fogo em seus ossos.
39
Ainda no Livro I, o narrador irá se referir a Dido uma única vez como Inscia
Dido (ignorante Dido)33. Esse adjetivo é proveniente do verbo scio, -is, -ire, -ivi, -itum
(conhecer) + in (privativo), portanto Dido é a que desconhece, a que ignora, a que não
reconhece. Inscia, do latim, está diretamente ligado a ἀλαγλνηα (ignorante), do grego.
Tal epíteto, usado apenas uma vez, prenuncia o estado de desconhecimento de Dido, que
só se findará após o seu reconhecimento, no Livro IV. Já o epiteto Infelix Dido (infeliz
Dido)34 acompanhará Dido no transcorrer da narrativa, já sinalizando seu destino
31
Eneida. Livro I, verso 688.
32
Eneida, Livro I, verso 712.
33
Eneida. Livro I, verso 718: Inscia Dido
34
Eneida. Livro I, verso 749: Infelix Dido
40
A rainha é acometida por um amor que a fere, que a machuca. Mais uma vez
percebemos que o amor insuflado em Dido não trará bons frutos para a fenícia, visto
que este está associado à dor, como o próprio termo uolnus (verso 2) demonstra. Esse
amor a consome, a ataca, a enfraquece (carpitur, do verbo carpo, -is, -ĕre, carpsi,
carptum: desfiar, rasgar, atormentar, consumir). O termo caecus (sombrio)35 é mais uma
das ocorrências textuais que ratificam e antecipam o destino horrendo da rainha. Esse
amor que queima em seus ossos36 a perturba de tal maneira que ela não mais consegue
se acalmar, dar plácido repouso aos membros, o que já prenuncia o futuro delírio
apaixonado da rainha.
35
Baseados por Gaffiot (2000), optamos traduzir caecus por sombrio. Acreditamos que tal termo
supre a noção de 'oculto' e 'cego' do termo, funcionando como prolepse do destino de Dido.
36
Eneida. Livro I, verso 660: ―atque ossibus implicet ignem‖
41
Ela é tomada por este amor e considera o sentimento que nutre por Eneias, uma
falta. Ela vê-se dividida entre o antigo amor e laços nupciais que não pretende quebrar
com seu esposo Siqueu, e essa nova chama funesta que queima dentro de si. A rainha
confidencia a irmã a vontade de se entregar ao novo amor, no entanto lembra-se do
desejo de não mais unir-se a alguém e da dor que sofreu com a morte de seu antigo
marido. Como podemos constatar no trecho seguinte:
Mas, primeiro, que eu escolha que a Terra profunda se abra para mim;
ou o pai onipotente crave-me com um raio rumo às sombras, às
pálidas sombras do Érebo, e (rumo) à noite profunda, antes que ó
Pudor, eu te viole, ou quebre as tuas leis.
Dido, tomada de amores por Eneias, evoca o Pudor e pede a esse para fulminá-
la no Érebo(Ἔξεβνο) caso ela quebre as leis que tanto preza. O Érebo (Ἔξεβνο) é filho
do Caos, força primordial descrita por Hesíodo, na Teogonia37. Ele é uma antecâmara
do Tártaro e da região infernal. Segundo Torrano38, é uma potência tenebrosa, uma
negação da vida e da ordem. Assim sendo, a menção ao Érebo (Ἔξεβνο) não é por
acaso: Dido chama as próprias trevas, a divindade que simboliza a negação por
completo da vida e da ordem, para consumi-la, para arrancar de si a sua vida, caso ela
não resista a esse amor devastador.
Ana, a irmã, a incita a ceder a este amor, enumerando as vantagens da união com
o herói troiano. Ela crê que Dido já passou muitos anos de solidão e que deve, agora,
conhecer os prazeres de Vênus. Ela ainda lembra a rainha que Cartago está cercada por
povos que ambicionam seu reino. Ana acredita que os navios troianos não aportaram na
África por acaso, mas que esses estavam ali por desígnios dos deuses. Junto a Eneias,
Dido poderia erguer um império maior que o que já erigira. A irmã aconselha que a
rainha faça sacrifícios aos deuses e ofereça hospitalidade a Eneias e aos troianos. As
palavras de Ana inflamam mais ainda o coração de Dido. Ela se enche de esperanças, e
as leis do Pudor que a prendiam, dissolvem-se. Dido se apressa em fazer os sacrifícios.
Contrariando as leis que preservava e desprezando o fato de ter incumbido as sombras
do Érebo para fulminá-la caso quebrasse essas leis, a rainha imola as ovelhas escolhidas
a Ceres, a Febo, a Baco e a Juno.
Mesmo Dido ainda não tendo concretizado a união e quebrado por completo as
leis do Pudor, o narrador mais uma vez dá indícios do delírio da rainha:
37
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras,
2003.
38
TORRANO, JAA. ―O mundo como função das Musas‖. In: Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo:
Iluminuras, 2003.
43
39
Eneida. Livro IV, verso 85.
44
Aquele primeiro dia foi a causa da morte e o princípio dos males; nem
Dido, de fato, é movida pelo aspecto ou pela fama, nem pensa em
furtivo amor: denomina união, encobre a culpa com este nome.
A quebra dos laços nupciais por parte da rainha como erro trágico e a mudança
de fortuna de Dido, em decorrência do erro, estão marcadas nos versos citados. A
rainha, quebrando as leis do Pudor, marca para si a desventura, visto que aquele dia, o
dia da união de Dido e Eneias, foi a causa da morte e o início dos males da rainha. Ela
já não se importa com o que é visto ou com o que é falado, crendo ser o seu amor não
mais furtivo, mas mascarando-o como casamento, escondendo neste nome a culpa do
delito que cometeu contra a memória de Siqueu e contra os votos que outrora
preservara.
A deusa Fama apressa-se a encher as ruas de Cartago com a notícia do himeneu,
unindo o falso ao verdadeiro, espalha fatos não verdadeiros, diz que os amantes vivem
para os prazeres de Vênus e não mais cuidam das obras de Cartago, sendo escravos de
intensa paixão. A paixão proibida de Dido e Eneias chega aos ouvidos de Jarbas, rei dos
Getulos. O rei, que havia dado a Dido as condições para seu estabelecimento na Líbia,
45
sente-se ultrajado pela rainha, visto que ela prefere um estrangeiro, um novo Páris40 a
ele. O filho de Ámon, que erigira a Júpiter cem templos, encolerizado reclama o fato de
ter sido preterido pela rainha. Júpiter, atendendo às preces de Jarbas, manda Mercúrio,
seu filho, lembrar o herói de sua missão, conquistar as terras itálicas. Ao pousar na
Líbia, o deus mensageiro encontra Eneias edificando as cidadelas e erguendo os
edifícios. Ele veste o manto púrpura, tipicamente fenício. Mercúrio, obedecendo às
ordens do pai, interpela Eneias acerca de sua missão e o adverte acerca da mesma: ele
não pode privar Iulo da glória de Roma. O herói vê-se dividido: o que fazer? Como
contar a Dido que deve partir? Rapidamente, pede para que os companheiros arrumem a
frota. É nesse momento, no qual percebe os preparativos dos soldados de Eneias, que a
rainha até o momento ignorante dos planos de Eneias de partir, percebe a movimentação
estranha:
At regina dolos (quis fallere possit amantem?)
praesensit, motusque excepit prima futuros
omnia tuta timens.
(Eneida. Livro IV, versos 296-298)
40
Páris, príncipe troiano, filho de Príamo e raptor de Helena, esposa de Menelau. O rapto de Helena
motivou a Guerra de Troia. Pode-se entender a comparação de Eneias com Páris de duas maneiras. Jarbas,
ao referir-se a Eneias como um novo Páris pode remeter-se aos trejeitos efeminados do príncipe troiano
ou comparar Eneias a Páris no sentido de raptor. Páris roubou Helena de Menelau, Eneias roubou Dido de
Jarbas, pretendente da rainha.
46
As intenções de Dido perante Eneias eram a de um himeneu feliz, uma união que
gerasse grandes frutos, que fortalecesse o seu império. No entanto, a união com o herói
não fortaleceu Cartago, mas tornou a cidade mais fraca e alvo dos olhares e da fúria dos
povos vizinhos. E as intenções de Dido em relação ao próprio Eneias também sofrem
uma mudança. Aquele que era seu cônjuge, na verdade, nunca o foi, nunca passou de
seu hóspede41. O próprio herói confirma a Dido que nunca teve o propósito de
estabelecer tal união: ―nec coniugis umquam / praetendi taedas aut haec in foedera ueni
(nunca aleguei amores de cônjuge ou vim para estas alianças)‖42. Inflamada pela ira do
abandono, Dido duvida da ascendência divina de Eneias e rememora ao herói a
benevolência com a qual o acolheu, quando o mesmo se encontrava desprovido de
cuidados, após anos de errância, atirado nos litorais da Líbia. A rainha promete
perseguir Eneias mesmo despois que a morte a abater, cercando-o por todos os lugares.
Desvairada e suplicante tenta de todas as maneiras reverter a partida do herói:
ela pede que a irmã vá ao encontro de Eneias e rogue a ele não o seu estabelecimento
permanente em Cartago, nem a desistência de conquistar as terras do Lácio. Ela pede
apenas que o herói permaneça por mais um tempo, que julga inútil, para que a Fortuna a
ensine a acostumar-se com a partida do herói. Eneias, no entanto, permanece inabalável.
A situação trágica da rainha se instaura de tal forma, que a personagem,
percebendo não haver saída, deseja a morte para si. A rainha começa a perceber os
sinais que ratificam seu projeto de abandonar a vida. O sofrimento, o páthos de Dido, a
todo o momento de seu percurso na narrativa de Virgilio, dava indícios de concretude.
Agora, se institui, de fato, na narrativa:
Tum uero infelix fatis exterrita Dido
mortem orat; taedet caeli conuexa tueri.
Quo magis inceptum peragat lucemque relinquat,
uidit, turicremis cum dona imponeret aris,
(horrendum dictu) latices nigrescere sacros
41
Virgiílio faz um trocadilho com hospes e hostis. Embora os vocábulos tenham a mesma raiz,
eles possuem significados contrários. O hospes, o hóspede, é amigo e estabelece com o hospedador
relações de reciprocidade. O hostis, o hostil, é o estrangeiro, o inimigo. Eneias é, inicialmente, para Dido,
o hospes, o hóspede. Após o seu rompimento com a rainha, ele passa a ser o hostis, o hostil, o inimigo. A
a partir deste momento a inimizade entre Cartago e Roma estará marcada. Dido, ao ser abandonada, em
um de seus desvarios , desejará ser vingada por um descendente seu. Este descendente é Anibal,
comandante cartaginês nas guerras púnicas. Sobre as particularidades entre hospes e hostis, ver
BENVENISTE, Le Vocabulaire des institutions indo-européennes, páginas 92 e seguintes.
42
Eneida. Livro IV, versos 338-339.
48
Dido atemorizada começa a receber prodígios que a levam a crer ser seu destino
é a morte. Olhar o céu a incomoda; os vinhos para os sacrifícios tornam-se negros como
sangue. No túmulo de Siqueu, ela atormenta-se crendo ouvi-lo chamando-a diversas
43
Possível confusão de Virgílio de Mênades, as bacantes, e as Eumênides, criaturas infernais.
49
vezes. Ouve o canto de morte da coruja e dos seus pios chorosos. E quando dorme, em
sonhos, Eneias, insensível, a atiça. Ela busca os Tírios, seu povo, em terras desertas.
Ela é comparada, pelo narrador, a personagens trágicos: Penteu e Orestes. A comparação
não é por acaso, ela representa o próprio fim de Dido, um fim trágico. Ela está cega e
alucinada como Penteu44, que espiando os rituais báquicos, se excita com os altos gritos
que cortam o ar e a sua ira torna-se ainda mais latente ao ver e ouvir os clamores
oriundos dos mistérios de Baco; e como Orestes45, que após matar a mãe e o amante
dela, ambos assassinos de Agamêmnon, seu pai, é perseguido pelas Erínias, as
divindades que punem aqueles que cometeram crime parental.
A rainha, que recorrentemente recebe o epíteto de infeliz, já não diferencia
sonho e realidade. Vê seus sentimentos pelo herói oscilarem, configurando um estado de
extrema confusão. Assim Dido é descrita:
44
Rei tebano, descendente de Cadmos. Filho e Équíon e Ágave. Segundo Ovídio, no Livro III das
Metamorfoses, Penteu desprezava Dioniso como deus e chegou a proibir o culto ao mesmo em Tebas.
Tiresias, o profeta, prevê que em um dia não longe, um deus filho de Sémele chegará à cidade e que o
Equionida deverá honrá-lo com vários templos e sacrifícios, se não o fizesse, o príncipe, com os membros
despedaçados, mancharia com o próprio sangue as florestas, a mãe e a irmã. O herói não escuta a predição
e ela se cumpre: Penteu aprisiona o deus a fim de puni-lo. Baco liberta-se das prisões. Líber põe as
mulheres em delírio, vestidas como bacantes. Elas celebram os mistérios báquicos. Mesmo tendo sido
advertido por seu avô Atamante, Penteu opõe-se à celebração de tais cultos. Ele se dirige ao monte
Citéron, aconselhado pelo próprio deus, a fim de ver as mulheres em entusiasmo. Presenciando a cena, ele
excita-se com os altos gritos e a sua ira reacende. No entanto, é visto pela mãe, que o confunde com um
javali. A bacante chama as companheiras, a mãe arranca-lhe a cabeça e as outras, as irmãs, os demais
membros. O mito de Penteu também está presente na tragédia As Bacantes, de Eurípedes.
45
Orestes é filho de Agamêmnon, rei de Miscenas. Após a Guerra de Troia, o mais velho dos Atridas
volta para seu reino vitorioso. No entanto, a esposa Clitemnestra, com a ajuda do amante, Egisto, mata o
marido e usurpa o reino. O casal planejava matar também Orestes. Eles sabiam que, se caso o menino
fosse mantido vivo, ao crescer, vingaria o ultraje feito ao pai. Orestes, que ainda era uma criança,
escapou da morte graças à irmã, Electra. O menino cresceu escondido e, após ter crescido, vingou a morte
do pai matando os assassinos do mesmo. Após o assassinato, Orestes é perseguido pelas Erínias. O mito
de Orestes está presente na trilogia a Oresteia: Agamêmnon, Coéforas e Eumênides, de Ésquilo.
50
Dido, não consegue descansar, o seu furor que a invade pelos ossos não lhe dá o
descanso do sono, não lhe permite dormir. O amor que nutre ressurge mais ardente e ela
oscila entre paixão e furor, agitando-se em decorrência de sua ira.
A rainha engana a irmã dizendo-lhe ter consultado uma sacerdotisa massília.
Essa lhe indicara as diretrizes para afastar de si os amores que nutre por Eneias. Dido,
então, pede que Ana apronte os preparativos daquele ritual, uma pira fúnebre onde
seriam queimados os objetos do herói. Mal sabe que a rainha prepara, na verdade, a
própria morte. Porém, mesmo desejando a morte, o ânimo vacilante da rainha ainda
projeta várias resoluções e os pensamentos a revolvem. Exposta ao riso e à ameaça de
povos rivais, ora deseja esconder-se nos navios de Eneias e partir com ele, ora conclui
que é melhor morrer delirante e entregue ao inimigo. Mercúrio apressa o filho de Vênus,
pois, segundo o deus, Dido varia e muda, incessantemente (varium et mutabile semper /
femina)46. Esse estado da alma de Dido é mais um indício que corrobora a identificação
do páthos da personagem.
O páthos, como discutimos no capitulo II, é a ação perniciosa que causa dores,
ferimentos e mortes em cena. Esta categoria acontece em decorrência do erro trágico
(ἁκαξηία); do reconhecimento (ἀλαγλώξηζηο), e da peripécia (πεξηπέηεηα). Na situação
trágica em que Dido se encontra, as categorias se arrumam, se concatenam, apontando
para o sofrimento irremediável da rainha. No entanto, o páthos não se resume apenas à
morte da personagem em si, mas a todo esse sofrimento que culmina na irremediável
morte. O delírio, as visões, os prodígios, o desejo de morrer: todos eles fazem parte do
páthos de Dido. Vejamos mais um trecho do Livro IV que ratifica nossa análise:
46
Eneida. Livro IV, versos 569-570.
51
Tradução:
Três, quatro vezes foi ferida quanto ao belo peito e foi arrancada
quanto às comas enlourecentes, ―Ó, Júpiter!‖, diz, ―este estrangeiro
partirá e terá escarnecido nosso reinos? Não expedirão as armas e
perseguirão de toda cidade, e alguns não arrancarão as embarcações
dos estaleiros? Ide, levai, incitados, as chamas, dai armas, impeli os
remos! O que falo? Por outro lado, onde estou? Que insanidade
transforma minha mente? Infeliz Dido, agora os destinos te tocam?
Naquela época, quando dava cetros, convinha. Eia a destra e a
confiança, este que dizem portar os deuses pátrios consigo, este que
(dizem) ter sustentado o pai enfraquecido pela idade nos ombros! Não
pude dilacerar o corpo arrebatado e espargir nas ondas? Não (poderia)
aniquilar os companheiros com ferro e colocar o próprio Ascanio
havendo de ser banqueteado sobre as mesas pátrias? Mas, porém a
fortuna da pugna fora duvidosa – teria sido: Quem, havendo de
morrer, temi? Teria portado os fachos para os acampamentos, teria
enchido os deques com as chamas, e extinguido o filho e o pai com a
raça e eu o aplicaria sobre mim mesma. ―Sol, que com as chamas
iluminas todas as obras das terras e tu, Juno, ajudante e confidente
destes encargos, e Hécate uludada pelas cidades noturnas e nos
cruzamentos e as Fúrias vingadoras, e os deuses de Elisa moribunda,
aceitai estas coisas e aplicai contra os perniciosos o nume merecido e
ouvi as nossas preces. Se necessário é a cabeça infanda tocar o porto e
chegar às terras e, assim, reclamam os desígnios de Júpiter, este fim
permanece fixado: ao menos agitado pela guerra e pelas armas
audaciosas do povo, expatriado das fronteiras, arrancado do abraço de
Iulo, implore auxílio e veja os funerais indignos dos seus; não usufrua
do reino ou da luz escolhida, quando se entregasse sob as leis de paz
iniquas, mas caia ante o dia e não sepultado em meio aos bancos de
areia.
52
Vendo o herói partir, a Rainha bate no próprio peito e arranca as madeixas loiras
de sua cabeça. Ela, em delírio profundo, e mostrando mais uma vez seu ânimo vacilante,
deseja mover seus soldados para lutarem contra os troianos. Ao ver-se sem soldados
para isto, ela lamenta o destino que a permite ser escarnecida, não só ela, mas todo o
reino. A perturbação que a abate já não lhe permite discernir o que dizer e o que fazer.
Dido desejaria despedaçar o corpo de Eneias e jogá-lo ao mar, numa referência direta ao
mito de Medeia47. A princesa feiticeira, apaixonada por Jasão, utiliza de suas poções
para fazer com que o chefe dos Argonautas dome os dragões que cospem fogo e semeie
as sementes do dragão, conquistando assim o tosão de ouro. Medeia foge com o amado,
mas diante da perseguição do pai, Eetes, rei da Cólquida, mata o irmão, esquarteja-o e
joga as partes do corpo do mesmo pelo caminho, atrasando a perseguição do pai, que
fica aterrorizado com a crueldade de Medeia ao assassinar o próprio irmão. A rainha
fenícia, encolerizada, também cogita raptar Ascânio, matá-lo e servi-lo em um banquete.
A rainha refere-se aos acontecimentos impiedosos da Casa dos Atridas. Nesta família,
por duas vezes, filhos foram mortos e dados como alimento em banquetes. Tântalo, rei
da Frígia, avô de Atreu, a fim de testar a onisciência dos deuses, mata e serve o próprio
filho, Pélops, aos deuses. Por causa da impiedade, foi para o Tártaro. Posteriormente,
Atreu, neto de Tântalo, ambicionando reinar soberano em Miscenas, chama Tiestes, seu
irmão, para um jantar. Atreu mata os filhos de Tiestes e os serve como refeição. Após o
jantar, Atreu mostra-lhe a cabeça dos filhos. Deixando o irmão horrorizado.
Em confusão latente, Dido cogita matar Eneias e os troianos e matar-se depois.
Ela invoca Juno, Hécate, as Fúrias Vingadoras e os deuses penates para que estes,
ouvindo suas preces, impeçam um futuro próximo a Eneias. A infeliz Dido deseja que
Eneias morra expatriado, nos bancos de areia, sem receber as honras fúnebres: uma
morte indigna para um herói de nobre estirpe, como Eneias.
Referenciar tais divindades não é em vão. Hécate é uma deusa filha dos titãs
Perses e Astéria. Dentre várias atribuições, preside as feitiçarias nas encruzilhadas e está
intimamente ligada ao mundo das sombras, sua imagem normalmente é associada a uma
mulher com três corpos ou três cabeças. As Fúrias Vingadoras são criaturas do mundo
infernal. Elas são as correspondentes romanas das Erínias. Essas divindades puniam os
mortais que cometiam crimes, principalmente os parentais. Normalmente elas são
47
O mito de Medeia encontra-se no Livro VII das Metamorfoses, de Ovídio, e na tragédia Medeia, de
Eurípedes. Ambos os textos já foram referenciados no discorrer do trabalho.
53
ilustradas com formas femininas, portando tochas em suas mãos. Dido não evoca
quaisquer divindades. Ela evoca Juno, provedora dos casamentos para perseguir o
amado que a deixara. Evoca Hécate, deusa intimamente ligada às bruxarias e ao mundo
dos mortos e evoca, por fim, as Fúrias, as divindades que punem os criminosos.
O páthos de Dido, no Livro IV, atinge seu ápice com a morte da personagem,
como podemos constatar:
A rainha suplica para que os deuses a livrem daquelas inquietações, lavando sua
alma de uma vez por todas para as sombras. Ela se dignifica daquilo que construiu, mas
lamenta ter um dia permitido que os troianos ali se estabelecessem. Empunhando a
espada que recebera de presente de Eneias, ela profere suas últimas palavras:
«moriemur inultae,
sed moriamur» ait. «sic, sic iuvat ire sub umbras.
hauriat hunc oculis ignem crudelis ab alto
Dardanus, et nostrae secum ferat omina mortis.»
(Eneida. Livro IV, 659-661)
A fenícia, mais uma vez, expressa seu desejo de morrer. Após essa fala, a rainha
finca dentro de si a espada que havia recebido de presente do herói. Sobre a espada
escorre o sangue da rainha. Antes de morrer, ela deseja que o cruel Dardânio, Eneias,
veja o fogo que cobrirá Cartago com a morte da rainha. Gritos tomam o palácio. Ana, a
irmã de Dido, bate o peito com os punhos e percebe ter sido ajudante do suicídio da
irmã. A morte de Dido é vergonhosa. A rainha que erigira um reino e mantivera-se
imaculada quebrou os juramentos feitos. Inconsequente, entregou-se a um amor ilícito.
Deixou de lado o Pudor e, sendo abandonada, entrou em visível loucura. Sua única
solução foi a morte.
É impossível não relacionar a morte de Dido à de Ájax, na tragédia homônima
de Sófocles. Tanto Dido, quanto Ájax são acometidos pelo daimon, a influência divina.
No entanto, é possível perceber neles a vontade humana, a noção de livre-arbítrio, o
ἔζνο. Tanto Dido no Livro IV, quando Ájax, na peça, defendem valores épicos. Os dois
personagens, cada um em seu contexto, preferiu a morte prematura à vida vergonhosa.
Ájax, tendo atentado contra os seus pares e tendo matado o rebanho espoliado, não
suportaria viver sem glória. Antes cogita ir até as muralhas troianas buscar, inutilmente,
a ―bela morte‘‘. Dido, vendo a frota troiana partir, cogita vingar-se incitando os seus
chefes a irem ao encalço de Eneias. No entanto, tanto a morte de Ájax nas muralhas
troianas quanto a vingança de Dido contra Eneias apagariam ou mudariam a situação
trágica dos personagens. Ájax não somente atentou contra os companheiros, mas
ultrajou os deuses. Dido não apenas quebrou os votos que fizera ao marido, ela
encarregou as forças infernais de puni-la caso ela o fizesse. A morte para os dois é quase
uma solução.
A trajetória de Dido, na Eneida, não se finda no Livro IV. Após sua morte, ela
reaparece no Livro VI. Eneias, guiado pela Sibilia, em buscar de falar com seu pai
Anquises, percorre o Mundo dos Mortos. Ele passa pelo Campo das Lágrimas e lá
reencontra Dido. A rainha encontra-se entre as sombras, ainda sangrando. O herói
interpela a alma. Ela permanece calada olhando fixamente para o chão, depois se retira,
correndo para as florestas umbrosas, em direção aos braços do antigo marido, Siqueu.
Agora é Eneias quem chora e suplica as palavras de Dido e corre atrás dela. Da mesma
forma ocorre com Ájax. Após sua morte, que acontece na tragédia, o herói reencontra
55
seu desafeto maior, Odisseu48. O Laertida, seguindo as indicações de Circe, parte para o
Hades. Ele faz os sacrifícios necessários e, na entrada do mundo subterrâneo, começam
a surgir as almas com as quais desejava falar. Encontrou Tirésias, Agamêmnon, Aquiles
e Ájax. De todas as almas que Odisseu encontrou, a de Ájax foi a única que se manteve
afastada do filho de Laertes. Odisseu se dirige ao Telamida com palavras amigáveis,
perguntando-lhe se ele, mesmo morto, ainda guarda rancor pelo entrave das armas.
Pede-lhe que se aproxime, mas Ájax, sem nada dizer, afasta-se de Odisseu e vai para
junto das outras sombras dos mortos, no Érebo. Semelhantemente a Dido no encontro
com Eneias, no Livro VI.
Ambos, embora sejam personagens épicos e terem um passado de glórias,
sofrem um percurso de derrocada que culmina na morte de ambos por meio do suicídio.
Suicídios, em ambos os casos, realizados por meio dos presentes de seus inimigos.
48
Odisseia. Canto XI, versos 543-565.
56
CONSIDERAÇÕES FINAIS
personagem. Assim sendo, fechamos este trabalho, mas não o concluímos, pois sabemos
que ainda há muito para ser dito acerca do tema escolhido. Afinal, o texto literário
possui várias nuances e seria impossível, em um trabalho como este, contemplar todas
elas.
58
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética, 1993.
GLARE, P.G.W. Orford latin dictionary. New York: Orford at the Claredon Press,
2003.
HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Estudo e tradução de Jaa Torrano. São
Paulo: Iluminuras, 2003.
HOMERO. Ilíada. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 2ªEd. São Paulo: Ediouro, 2009.
________. Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 2ªEd. São Paulo: Ediouro,
2009.
VIRGILE. Énéide, livres I-VI. Traduit par André Belessort. 7ª éd. Paris: Les Belles
Lettres, 1952.