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TESE DE DOUTORADO
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Pereira, José Amâncio Tonezzi Rodrigues.
P436 O Teatro das disfunções, ou, A Cena contaminada / José Amâncio To-
nezzi Rodrigues Pereira, 2008.
200f.
CDD – 792.028
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO
TESE DE DOUTORADO
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PEREIRA, José Amâncio Tonezzi Rodrigues. O teatro das disfunções ou a
cena contaminada. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro, UNIRIO. Rio de Janeiro, fevereiro de 2008.
_______________________________________
Profa. Dra. Ana Maria de Bulhões-Carvalho
(orientadora)
Banca:
_______________________________________
Profa. Dra. Márcia Maria Strazzacappa Hernández
_______________________________________
Prof. Dr. Frederico Augusto Liberalli de Góes
_______________________________________
Profa. Dra. Nara Keiserman
_______________________________________
Prof. Dr. José Luiz Ligiero Coelho
Suplentes:
_______________________________________
Profa. Dra. Carmen Lúcia Soares
_______________________________________
Prof. Dr. Ricardo Kosovski
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DEDICATÓRIA
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AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
Aos caríssimos João Vitti e Valéria Alencar, pela amizade, generosidade e acolhimento.
Agradeço, ainda:
Aos Profs. Joseph Danan, Christophe Bident e C. Triau (Université Paris); às Profas.
Carmen Lúcia Soares (UNICAMP) e Tatiana Motta Lima (UNIRIO).
Aos colegas de curso, pela constante interlocução, e a todos aqueles que, de alguma
maneira, contribuíram para o amadurecimento e evolução deste estudo.
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J'ai voulu qu'il s'agisse toujours d'existences réelles; qu'on puisse
leur donner un lieu et une date; que derrière ces noms qui ne disent
plus rien, derrière ces mots rapides et qui peuvent bien la plupart du
temps avoir été faux, mensongers, injustes, outranciers, il y ait eu
des hommes qui ont vécu et qui sont morts, des souffrances, des
méchancetés, des jalousies, des vociférations. (Foucault, 2001, p.
239)
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Resumo
A cena contaminada de que trata esta tese refere à apropriação cênica de disfunções e
sobretudo, no séc. XX, em movimentos estéticos que fazem do corpo o suporte para sua
posterior intersecção ocorridos entre arte e anomalia, e sua incidência no campo teatral,
para então abordar os resultados disso em práticas e procedimentos realizados pela cena
contemporânea.
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Abstract
The term infected stage used in the title of this thesis refers to the theatrical utilization of
the body and mental disturbances happened in the scene from the 18th century and
especially during the 20th century on artistic manifestations that use the body as a support
for their occurrence. Based in the historical process of the social perception of the
abnormal body and behavior, this research identifies the approach and the intersection
between art and abnormality, and its occurrence in the theatrical area to analyze them in
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Précis
La dénomination scène contaminée qui compose le titre de cette thèse est une référence à
théâtre depuis le XVIIIème siècle et, surtout, pendant le XXème siècle, aux mouvements
esthétiques qui font du corps son lieu de manifestation. Basé au procès historique de la
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SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................... p. 11
Capítulo 1
1.1. Nomear e punir..................................................................................................... p. 20
1.2. A crônica das reações anunciadas.......................................................................... p. 29
1.3. Uma estética do estigma?....................................................................................... p. 35
1.4. O corpo grotesco e o corpo do mundo................................................................... p. 54
1.4.1. O grotesco no corpo................................................................................ p. 61
1.4.2. O grotesco em cena................................................................................. p. 71
Capítulo 2
2.1. Cena e contágio....................................................................................................... p. 76
2.1.1. A "mise en scène" do corpo...................................................................... p. 81
2.1.2. O desencantamento do estranho............................................................... p. 87
2.2. Gênese de uma cena integradora........................................................................... p. 100
2.2.1.O lugar cênico do apesar.......................................................................... p. 104
2.3. Acerca da denegação............................................................................................. p. 112
Capítulo 3
3.1. A poesia imagética de Robert Wilson..................................................................... p.117
3.1.1. Encontros singulares................................................................................. p.123
3.1.2. Construção dos espetáculos...................................................................... p.129
3.1.3. Einstein on the beach................................................................................ p.135
3.2. O teatro anômalo de Pippo Delbono....................................................................... p.143
3.2.1. Bobò e cia. ou de como nascem flores..................................................... p.150
3.2.2. Construção dos espetáculos..................................................................... p.158
3.2.3. Gente di plastica....................................................................................... p.164
3.2.4. Questo buio feroce................................................................................... p.168
3.3. De imagens e viagens: uma breve aproximação..................................................... p.173
Conclusão..................................................................................................................... p. 179
Bibliografia.................................................................................................................. p. 182
Anexo Lautrec: uma experiência singular.....................................................................p. 187
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INTRODUÇÃO
Nós vivemos num tempo condenado, contaminado que foi pela doença do
consumo, do lucro e do acúmulo de capital a todo custo, sem escrúpulos nem ética. O
tempo dos assassinos, como diria Pippo Delbono1, emprestando as palavras de Rimbaud.
Por isso, o teatro está também contaminado. Mas a contaminação do teatro vai contra a
é fruto senão do próprio tempo. Não se trata de um teatro simplesmente democrático, que
dá voz aos excluídos e marginais da sociedade. Não é à inclusão que se refere quando se
Trata-se, isto sim, de um movimento contrário, estrangeiro, com origem do lado de fora e
1
A Companhia Pippo Delbono é um dos casos estudados no capítulo 3, a partir dos trabalhos que assisti em
minha viagem à França com Bolsa PDEE da CAPES. Il tempo degli assassini (O tempo dos assassinos) é o
título dado pelo diretor italiano a um de seus espetáculos.
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de Pós-Graduação em Teatro do CLA-UNIRIO, que se restringia ao universo das afasias2,
atividades tinham por propósito auxiliar aqueles indivíduos em sua reinserção social após a
expressão gestual. E a dissertação deu conta das reflexões sobre a experiência realizada.
entanto, além de contratempos como a interrupção dos encontros previstos com o grupo,
pesquisa. Na ocasião teve grande importância o filme Les mots perdues (As palavras
perdidas), produção franco-canadense cujo elenco é composto em sua maioria por atores
com afasia, abrindo a percepção de que uma reflexão sobre a presença cênica de atores
questão das afasias e percebesse o quanto a presença, em cena, das disfunções já ocorre e
2
A afasia decorre de uma lesão adquirida no cérebro, cuja causa pode ser um acidente vascular cerebral
(AVC), um traumatismo craneo-encefálico ou um tumor cerebral.
3
Tonezzi (2007).
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tem sido importante na história recente do teatro. Assim, utilizado em princípio, o filme
hipótese fundadora desta tese: afirmar que o que poderia ser considerado negativo,
experiência estética. A cena que absorve a diferença está de tal modo impregnada pela
força dos traços marcados desses atores, que será por eles contaminada, obrigando o
espectador a um novo olhar sobre ela. A tese exercita este novo olhar sobre a cena.
histórico e estético que perfazem a relação e a percepção social dos distúrbios do corpo e
áreas diversas como a história, a sociologia, a filosofia e as artes, capaz de explicitar que é
justamente pela via da constituição estético-social que a apropriação cênica das disfunções
se torna possível. Neste sentido, a disposição dos tópicos busca favorecer esse
entendimento, ao abrir a discussão pela via da nomeação, uma vez que, em primeira
qual vá se relacionar. Ora, se este objeto é insólito, incomum, a denominação trará consigo
essa marca.
que passou a percepção social dos variados fenômenos relativos ao corpo mal formado e à
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sua denominação. Será possível perceber, por exemplo, que o desconhecimento e a
tanto nas alcunhas e no tratamento a eles imputados, quanto nas interpretações sobre as
imposição que ocorreu durante muito tempo e nas mais diversas civilizações, quando então
natureza humana e a humanidade dos animais" (Pavis, 2001, p. 189), num movimento de
grotesco acabaria por se inserir na obra de muitos artistas – sobretudo, de pintores – e nas
manifestações populares, garantindo presença e sentido poético aos seres mal formados,
presente tese.
Cumpre esclarecer, no entanto, que o caráter do grotesco aqui referido não diz
denotar, o qual poderia ser objetivamente referido como fenômeno natural e cenicamente
exposto não é aquele obtido por tratamento específico de cenários, luzes e trabalhos de ator
para ganhar esse perfil e produzir esse efeito. (E não são raras as obras e personagens que,
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para evidenciar os traços dramáticos, melodramáticos, cômicos ou tragicômicos.) Trata-se,
aqui, da presença em cena do que se configura como naturalmente grotesco, como o corpo
razão de algum distúrbio físico, intelectual ou mental – o grotesco em seu estado natural, o
grotesco como condição existencial. Nesse contexto, a apropriação cênica das disfunções e
das deformidades propriamente ditas tem, em si, força capaz de questionar o entendimento
conceito4.
no outro com uma frequência cada vez maior. Isso faz com que o grotesco ganhe novas
configurações, saltando das obras de arte e de ficção para o espaço real da sociedade, onde
propaga, transcendendo questões até então restritas ao âmbito do virtual e revela uma
faceta mais terrível: além de assombrar e desestabilizar o olhar, coloca em xeque o próprio
senso de percepção, quando põe em dúvida a existência daquilo que se percebe como real.
distúrbios de ordem física e mental, delineando o processo que culmina com a apropriação
cênica das disfunções. Constata-se que tal procedimento tem seus primórdios nas exibições
de feira do século XVIII e se efetiva com o advento dos movimentos artísticos no correr do
século XX, quando ocorre uma intersecção entre o teatro, as artes plásticas e várias outras
linguagens. São tomadas como referência dentro do chamado teatro institucional do séc.
4
"Não existe o grotesco, mas projeções estético-ideológicas grotescas (grotesco satírico, parabólico, cômico,
romântico, niilista etc)" (Pavis: 2001, p. 188).
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profissional de seus integrantes. Ainda que se considere o seu valor como objeto artístico,
caráter ilusório da cena, tendo a sensação de que aquilo que vê e percebe se constitui
realmente. A denegação realça um dos temas cruciais para o presente estudo, que diz
respeito à recepção e reação do público diante das chamadas singularidades. Se está certo
Richard Schechner (2003), para quem a performance ocorre em ação, interação e relação,
não estando em nada, mas entre, é possível afirmar que o elemento performático se
presença desse indivíduo seria, em si, resultado de uma performance, instada entre ele (o
ser percebido) e o observador. Pode se concluir, dessa maneira, que as condições pré-
criação de um estado de surpresa, muitas vezes só alcançável pelo ator comum6 através de
5
Em consonância com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a lei brasileira (Decreto Federal n.º 914/93)
define a Pessoa Portadora de Deficiência (PPD) como o indivíduo que "apresenta, em caráter permanente,
perdas ou anomalias de sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gerem
incapacidade para o desempenho de atividades dentro do padrão considerado normal para o ser humano".
6
Sobre o ator: em algumas passagens, utilizo os adjetivos comum e incomum, por uma necessidade de
diferenciação entre o ator que não possui uma singularidade extremada e o outro que apresente algum tipo de
disfunção, este que é objeto da tese.
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mental – juntamente com os seus sintomas ou seqüelas – um efetivo instrumento para o
exercício teatral.
desde a forma de abordagem até o momento e lugar de suas incidências. Enquanto Wilson
leva a cabo suas criações entre as décadas de 1960 e 1980, nos Estados Unidos, ampliando-
as depois para outros lugares do mundo, o trabalho do italiano Pippo Delbono torna-se
disfunções cerebrais e sensitivas como interessante matéria para a cena praticamente desde
o início de sua vida no teatro, Delbono se dará conta disso apenas quando,
coincidentemente, encontra-se ele mesmo enfermo, passando a acolher em sua trupe atores
conforme citada em Derrida (1995) que se contempla: "O bricoleur, diz Lévi-Strauss, é
aquele que utiliza 'os meios à mão', isto é, os instrumentos que encontra à sua disposição
em torno de si, que já estão ali, que não foram especialmente concebidos para a operação
na qual vão servir" (p. 239). Embora se referindo à prática discursiva, especialmente no
contato anterior com o teatro – para a composição de um discurso cênico bastante pessoal e
autêntico.
Por fim, no anexo, apresento uma breve reflexão sobre um processo vivenciado por
mim na direção do espetáculo Lautrec. A opção por juntar à tese esse breve material foi
motivada pelo fato de se tratar de uma prática criativa paralela desenvolvida ao longo da
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pesquisa, sob a influência das reflexões que vinha realizando. O trabalho solo conta com a
advindas de uma má formação óssea congênita, o que empresta ao resultado uma plena
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CAPÍTULO 1
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NOMEAR E PUNIR
apresentam-se, desde sempre, como algo delicado. No caso do presente estudo, por
exemplo, ainda que não se queira punitiva, a distinção nominativa mostra-se como
traduzam a real condição do que se quer denotar. Socialmente, porém, isto se torna ainda
mais complexo, constituindo-se como exemplos o monstro e o louco, casos em que se está
lidando não apenas com a denominação de algo, mas com circunstâncias que remetem à
ordem geral das coisas e da existência, ou seja, ao sentido e harmonia da própria vida.
pretendeu até mesmo a sua exclusão do cotidiano social, fosse pela eliminação ou pelo
isolamento, relacionando-os por vezes ao sobrenatural, aquilo que não se explica senão
Para Malinowski (1972, p. 319), a palavra tem origem na ação humana, estimulada
define pela presença da realidade que ela significa: “O som ainda não é um símbolo real,
pois não é usado desligado do seu referente”. Na linguagem primitiva, assim como para
uma criança, a palavra cumpre uma função anímica, pois que imbuída de forças ativas e
repelir coisas exteriores. Assim, pode se dizer que a palavra tinha poder sobre aquilo que
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Esse interesse prático do ser humano decorreria numa noção de denominação como
relação ou posse e, num uso mais avançado – já como esboço para um estágio subjetivo –,
a pessoa ou coisa passa a ser denominada como sujeito de ação, em que o nome dado
advém de uma predicação (aquele que corre, aquilo que voa, etc). Com o desenvolvimento
analogia e da abstração teria levado a uma livre movimentação de palavras e raízes, com o
pensamento, legando-lhe também uma dificuldade cada vez maior na definição semântica
conhecimento prático e ativo das coisas e pessoas dentro de certa situação, o deslocamento
casos, referentes variados o que dificulta um significado e uma compreensão única, geral e
concreta. Essa é, ao que parece, uma das questões que decorrem numa complexa e
duradoura discussão sobre o sentido e significação não apenas do discurso, mas da própria
propósito de uma ocorrência imputa-lhe um caráter dúbio e incide sobre o seu conceito e
denominação É o que levou uma população de seres incomuns a serem agrupados, por
muito tempo e em diferentes civilizações, sob uma mesma e genérica alcunha. E o termo
monstro ganhou dimensão também no âmbito humano. Essa terminologia, quando aplicada
ao que ocorre quando se está diante de algo destituído de forma conhecida, mas que, de
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O termo monstro em seu uso corrente emana então de uma
747).7
outro, o mundo (inclusive o corpo humano) como matéria, realidade e objeto dessa
observação. O pressuposto básico desse modelo é que cada objeto possui um sentido
legível.
de comportamento até então inexplicáveis. Dessa forma, em fins do séc. XVIII, criou-se
uma grande coleta de fatos e de sua apurada observação, atitude que, para Jean-Jacques
7
Todas as traduções serão feitas pelo autor, com os textos originais apresentados em notas de rodapé: Le
terme de monstre dans son usage courant relève donc d´une expérience perceptive. (...) La subjectivité qui
pense la vie en fait aussi l´expérience intime. Et l´objet de la tératologie peu être en ce sens l´objet d´ une
rencontre. Un vivant qui paraît bien être un homme ne saurait être sans valeur. Si la connaissance peut
éclairer la nature du monstre, elle ne peut éviter que s´établisse un rapport plus intime, lorsque l´observateur
se voit ramené à sa propre chair, ne serait-ce que l´espace d´un instant.
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Courtine (2006), poria fim ao distúrbio perceptivo responsável pelo fascínio que sempre
moveu a curiosidade pelos prodígios humanos. Segundo esse autor, se antes a percepção
com a percepção comum, ainda muito estimulada pelo espanto e pela curiosidade com
entre os séculos XVIII e XIX, se aproveitam de um suposto aval científico para exibir
forma a atrair o público. Tais denominações, entretanto, não passavam de estratégias para
espectador. Uma “economia da compaixão”, como bem nomeia Courtine (2006, p. 232).
que Hans Ulrich Gumbrecht identifica como colapso dessa bipolaridade sujeito/objeto,
8
Termo utilizado por Courtine para a ação do voyeur, ou seja, aquele cujo prazer está em apreciar pelo olhar.
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definidos como existentes independentemente da mente humana. Ela
1998, p. 162).
sistemático e corrente” (1998, p. 160), e lembra que este foi também um dos pontos de
partida para a teorização freudiana da Psicanálise. Citando ainda uma série de pensadores
que, segundo ele, contribuíram para essa mudança no conceito de realidade, Gumbrecht
informa, por exemplo, que Nietzsche (1844-1900) teria sido o primeiro a questionar
observar diretamente o mundo dos objetos e que Bergson (1859-1941) definia como “real”
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Na mesma obra, Foucault levanta diversas precauções contra o que chama
começo aparente, que acobertaria uma origem secreta, impossível de ser inteiramente
único e mesmo gesto, isto e aquilo” (1972, p. 36). Referindo-se à unidade de uma obra,
afirma que esta não deve ser considerada “nem como unidade imediata, nem como unidade
certa, nem como unidade homogênea” (1972, p. 35), mas variável e relativa, construindo-
sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro, uma escritura
que não é senão o vazio de seu próprio traço. Supõe-se assim que
abaixo dele, mas que ele recobre e faz calar. O discurso manifesto não
esse não-dito seria um vazio que mina, do interior, tudo que se diz
(1972, p. 36).
sujeito falante e o jogo inconsciente que, apesar dele, vem à luz, propiciando a
voz ouvida. Foucault defende a importância de se reconhecer e preservar o espaço para tal
ocorrência, o que no fundo significaria tornar-se livre para se operar com o que ele chama
jogos de relação. Com isso, parece abrir uma perspectiva de aproximação com o
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pensamento de Gilles Deleuze quanto à manifestação, um das três relações apontadas por
ele como contidas na proposição (as outras duas seriam a designação e a significação).
Para esse autor, a manifestação se constitui de desejos e crenças – tidas como inferências
causais e não como associações – ligadas ao sujeito que fala e se exprime: “O desejo é a
coisas, enquanto sua existência deve ser produzida por uma causalidade externa” (Deleuze,
1998, p. 14).
daquilo que é proposto com um estado de coisas exteriores, operando “pela associação das
próprias palavras com imagens particulares que devem ‘representar’ o estado de coisas:
entre todas aquelas que são associadas à palavra, tal ou tal palavra à proposição, é preciso
escolher, selecionar as que correspondem ao complexo dado” (1998, p. 13). Neste caso,
certas palavras contidas na proposição serviriam como formas vazias para a evocação de
imagens, não sendo de modo algum conceitos universais, mas singulares formais que
premissa e conclusão.
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não fundamenta a verdade, sem tornar ao mesmo tempo o erro
respeito das relações contidas na proposição (sobretudo no que diz respeito à significação)
distúrbios do corpo e do comportamento humano. Afinal, não se pode esquecer que foi
(1997), a unidade dos discursos sobre seres anômalos ou diferentes não se funda na
Sujeitos a um jogo de regras, eles sempre foram marcados por medidas de discriminação e
“sua não identidade através do tempo, a ruptura que se produz entre eles, a descontinuidade
presença que, em si, não diz mais respeito à diferença no sentido corrente de simples falta
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se revela pela percepção e não pelo conceito. O corpo marcado reveste-se, assim, da noção
de différance, termo cunhado por Jacques Derrida que, conforme destacado em Santiago
(1976, p. 23), põe em questão o valor de presença justamente por privilegiar o presente
como determinação ou efeito e não mais como matriz absoluta do ser. Trata-se de uma
presença que traz em si o germe da ausência, não como referência substitutiva e vinculada
à necessidade de uma outra presença, e sim na concepção de Derrida, para quem o presente
fixo de significação: "Trata-se, antes, de pensar o que não foi possível ser, nem ser pensado
de outro modo. Dentro do pensamento da impossibilidade desse outro modo, nesse não-
outro-modo, se produz uma certa diferença, um certo oscilar, um certo descentramento que
impondo-se como fruto da relação entre o homem e aquilo que, mesmo enquadrado em
marcado – torna-se agora uma quase ineficaz (mas ainda necessária) redundância. E, ainda
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A CRÔNICA DAS REAÇÕES ANUNCIADAS
mente, podem servir de base os apontamentos feitos por Thomson (1972) e por Wieland
(séc. XVIII) acerca das reações provocadas pela imagem grotesca9 que, apesar de
universo conhecido, alterando a percepção que se tem das coisas. Neste sentido, reações
análogas às indicadas por aqueles autores, como o sarcasmo, a rejeição e o terror tornam-se
de maneira isolada, podendo haver uma alternância e mesmo a incidência de uma na outra.
como idiota, desprezível, inferior. E onde o riso é talvez a principal conseqüência, seja
os clowns e parte dos cômicos em geral. Assim, o diferente – que pode ser apenas um
9
Thomson considera o grotesco intrínseco à recepção, capaz de provocar reações dúbias como o riso, a
repugnância e a comoção, e de causar, no receptor, incerteza e desorientação. De acordo com Kayser (1986,
p. 31), Wieland destaca o riso como reação à deformidade do corpo, enquanto a percepção de sua
monstruosidade decorreria em asco, e o terror seria causado por uma sensação de desordem das coisas.
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O sarcasmo se constitui como reação, pelo juízo verbalizado ou simples impressão,
diante de algo ou alguém risível por sua ridicularidade, e está relacionado aos vários traços
de atitude apresentados, segundo Pavis (2001, p. 58), por Sigmund Freud (1856-1939),
com base nos princípios comumente atribuídos ao cômico e erigidos, sobretudo, por sua
riem tem por conseqüência ou rejeitar como ridícula a pessoa cômica ou convidá-la a
Reação que pode dar-se também de maneira irônica, o sarcasmo tem a sua origem
escarnecer que, por sua vez, se traduz como desprezo, humilhação e, metaforicamente,
quer dizer "tirar a pele do outro" por meio do deboche e da chacota. Assim xingamentos e
alcunhas que habitam todas as línguas são exemplos de uma atitude sarcástica verbalizada,
abarcava também a sensação de terror como purgação das paixões e, dentro da tradição
cristã, envolveria ainda uma expectativa de redenção – estado ou ato em que se crê
possível a expiação dos males por meio da comiseração, ou seja, a remissão da culpa
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através da piedade e da condolência. Termo que no grego clássico designava a ação de um
amo ao resgatar um escravo que caíra prisioneiro, somente na linguagem teológica cristã a
diferentemente dos gregos, para quem eram os escravos que deveriam ser reavidos
próprio sangue.
padecimento uma ação consciente e deliberadamente assumida, cujo intuito é o perdão dos
pecados. São dessa ordem, no teatro, a catarse pretendida pelos autos religiosos medievais
e pelos autos da Paixão de Cristo, até hoje realizados, além das tragédias na Grécia antiga.
estado capaz de ser evocado quando da presença ameaçadora de um outro, cuja aparência
ou, pior, um igual. No teatro, são os bufões os clássicos representantes dessa categoria,
instaurada entre os séculos XIX e XX, quando a ciência promove uma classificação para as
anomalias, dissipando uma confusão até então comum entre o que efetivamente se poderia
10
Vale aqui a definição de O’Toole (1992, p. 132) para o termo: “[...] the source of the tension is the gap between
people and fulfilment of their internal purposes, a gap created by deliberately imposing constraints in order to
create an emotional disturbance (the tension itself) in the participants.”
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significando um normal diferente, na acepção de Canguilhem (1995). Até então,
lei, mas também a todo aquele que, de alguma maneira, se mostrasse fora dos padrões
será isolar a todos que fossem considerados anormais e, portanto, ameaçadores da ordem.
elemento blasonador e fanfarrão, que povoa a sociedade e a cena blefando suas qualidades
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barrigas, órgãos genitais exacerbados. São gigantes ou anões, três
males das relações sociais e da mesquinhez humana. Assim, serão de sua natureza a
provocar certa ojeriza, asco e discriminação que, no passado (e ainda hoje, em certas
deportação11.
na passagem durante o século XIX, com a emergência de um olhar racional que explica e
estabelecimentos específicos. Entretanto, o conceito científico que ora se fazia cada vez
11
Sabe-se de inúmeras cidades no interior do Estado de São Paulo, cujo poder público, como forma de banir seus
mendigos e moradores de rua, dedica-se a oferecer-lhes bilhetes de viagem para destinos distantes.
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desordem da natureza, tendo seus efeitos gradativamente sentidos no mundo do
intuito não era outro senão o controle e a organização do tempo livre imputado aos
as bizarrices anatômicas que arrastavam há longo tempo sua existência precária sobre os
pode ser sentida ainda nos dias de hoje quando se depara com a presença inesperada de
ocasiona é uma inevitável identificação por meio de sua estranha, porém humana,
condição. E o risco maior de tê-los por perto, além da lembrança de nossa imperfeição, é
12
Car se manifestent de plus em plus nettement dês sensibilités nouvelles pour les bizarreries anatomiques
que traînaient depuis si longtemps leur existénce précaire sur lês tréteaux des foires : on va reconnaître leur
humanité, et ressentir leur souffrance.
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UMA ESTÉTICA DO ESTIGMA?
Vidas que são como se não tivessem existido, que não sobrevivem se não
pela colisão com um poder que não almeja se não aniquilá-las ou ao
menos apagá-las, vidas que nos chegam apenas pelo efeito de múltiplos
acasos, eis as infâmias que desejei reunir aqui alguns restos (Foucault,
2001, p. 243).13
Tal como criminosos, as pessoas com algum distúrbio físico e/ou mental sempre
sofreram pelo simples fato de serem diferentes ou anômalas, situação que se agrava na
sociológica, o estigmato, já que se está referindo a uma categoria social desde sempre
estigmatização se instala num domínio de ordem predominantemente estético, pois que diz
respeito, sobretudo, à marca inserida no corpo como registro ou qualidade do que deve ser
diferenciado e tido como infame. Assim, ao flertar com a cena, as singularidades corporais
e/ou comportamentais, portam já uma referência de ordem sócio-estética que contrasta com
peculiar.
Por muito tempo – como, por vezes, ainda hoje –, buscou-se afastar do espaço
social as pessoas que, de alguma maneira, não se enquadravam nos padrões estabelecidos
ou, até mesmo, de execração pública. Ao ser humano que apresentasse qualquer
13
Des vies qui sont comme si elles n'avaient pas existé, des vies qui ne survivent que du heurt avec un
pouvoir qui n'a voulu que les anéantir ou du moins les effacer, des vies qui ne nous reviennent que par l'effet
de multiples hasards, voilà les infamies dont j'ai voulu rassembler ici quelques restes.
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desconformidade com o padrão era imposto um estigma, no sentido literal ou figurado:
marca, cicatriz, ferida. São essas referências, situadas num passado ainda não muito
distante, que um ator que apresente alguma disfunção ou distúrbio evoca ao entrar em
cena. E é esta sua condição que torna importante uma abordagem do processo histórico da
Os motivos que levam ao estigma, bem como sua gradação, variam muito e podem
ir desde um passado sem reputação e uma limitação de âmbito físico ou mental, até um
ou desinformação. Com raízes sociais, econômicas, morais e culturais, o estigma pode ser
traidor a ser rejeitado e mal visto, especialmente em espaços públicos. Goffman (1975, p.
11) afirma ter se ampliado o entendimento para o termo estigma, defendendo que há, nas
sociedades recentes, uma certa categorização das pessoas com base em atributos comuns
de determinados grupos. Para ele, teriam se alterado os tipos de desgraças que levam à
estigmatização, agora mais aplicada "à própria desgraça do que à sua evidência corporal".
Incluem-se aí, como causa, questões de âmbito social, moral e de saúde como os distúrbios
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mentais, os vícios, o homossexualismo, o crime, o desemprego e mesmo certas
indivíduo de uma categoria a outra como, por exemplo, as discriminações de credo, nação
ou raça que podem estar na base dos desvios de conduta de uma pessoa. Dessa maneira,
questões de imigração e emigração, tão comuns em dias atuais, assim como sinais de
Por seu caráter visual, o que facilita a identificação do sujeito e de suas condições já
cuja principal fonte está nos estudos do arquiteto romano Vitruvius Pollio. Vivendo no séc.
registrou sua obra intitulada De Architectura, também conhecida como Os dez livros da
próprio ser humano, para o qual prescreve um modelo de corpo considerado ideal. Único
tratado sobre o tema na era clássica que sobreviveu até os dias de hoje, seus escritos foram
sentido, Vitruvius considera uma figura humana bem constituída a partir, por exemplo, de
uma altura equivalente à medida que vai de uma de suas mãos até a outra, quando de
braços abertos e esticados. É a partir de cálculos como este que Leonardo Da Vinci (1452-
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1519) reconstituiria o que denominou Homem vitruviano, figura tornada símbolo da
perfeita proporcionalidade corporal humana. Tal imagem passa a guiar os ideais de beleza
no Ocidente e sempre que se faça uma alusão aos padrões corporais clássicos esta será uma
Tidos como inumanos em boa parte das sociedades antigas, os indivíduos nascidos
pagar com a própria vida o delito de terem nascido nessas condições. Assim, o conceito
natureza supõe que aquele que não se assemelhasse aos pais seria, de certo modo, um
monstro, pois que, para Aristóteles, "neste caso, a natureza se afasta em certa medida, do
É preciso lembrar que a história dos monstros se institui a partir de sua construção
social e, sobretudo, de sua definição jurídica. E no domínio dos costumes e das práticas
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jurídicas, diversas são as sociedades suspeitas de infanticídio ou comprovadamente
infanticidas para com os seres considerados prodigiosos, dentre elas, os gregos, os persas,
família e eliminado: “Ele não podia mais retornar ao seio da família e então era
(Martin, 2002, p. 33)14. Em tais sociedades, quando autorizados a viver, os seres mal
certos períodos, como ocorreu no Império Romano, a execução era delegada ao próprio pai
concordância de vizinhos.
espíritos entre homens e animais – é onde comprovadamente ocorreu uma das exceções na
homem e animal se confundem, podendo o espírito de cada um deles tornar-se livre depois
transmigração entre animais e plantas. Esse entendimento permitia admitir que uma
pessoa, uma ave ou um animal pudesse nascer com uma conformação diversa à de sua
espécie ou que, de alguma maneira, lembrasse o ser anteriormente encarnado por seu
espírito. Dessa maneira, são comuns os relatos que dão conta, por exemplo, da presença de
animais e seres exóticos entre aqueles povos, sendo que diversos dos deuses adorados pela
particular.
Il ne pouvait plus reparaître au foyer de la famille; alors on le transportait au bord d´un gouffre, voisin du
14
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De maneira que, quando uma mulher trazia ao mundo uma criança
p. 42)15.
contemporaneamente conhecidas, o nanismo parece ter sido uma das mais comuns no
cotidiano egípcio. Afrescos existentes nas paredes dos túmulos de faraós e outras grandes
historiadores, eles pareciam bastante integrados à vida social. Nesses afrescos os anões são
em geral representados com fidelidade: corpos musculosos, membros curtos, pernas por
vezes arqueadas, um pouco obesos e, muitas vezes, corcundas. Em algumas dessas obras,
escultura, ourivesaria e joalheria. Alguns chegavam a ocupar cargos públicos, como Seneb,
que era chefe do guarda-roupas real e sacerdote dos ritos funerários. Ele aparece
representado numa estátua, de braços curtos, com suas pernas cruzadas, tendo ao lado sua
esposa numa posição de notável apoio, um filho e uma filha, todos de constituição normal.
15
De telle sorte que, lorsqu´une femme avait mis au monde un enfant ayant l´aspect d´un monstre,
l´imagination, preparée par la conscience d´un phénomène consideré comme naturel, rapprochait aussitôt ce
monstre de l´animal dont il reproduisait les traits : il etait identifié avec lui ; et si enfin l´animal occupait une
place au panthéon des dieux, on donnait cette place au monstre, on le divinisait.
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Seneb e sua família. O deus Bés.
Museu do Cairo, Egito. Templo de Dendera, Egito.
De acordo com estudiosos, os anões da raça Dang eram os mais procurados por
serem, de um modo geral, excelentes dançarinos: “ele dançará como um anão diante de
Osíris”, é o que consta numa frase hieroglífica. Um dos deuses do panteão egípcio,
Seria em Roma que a evolução das leis traria uma primeira diferenciação entre a
ocorrência de uma efetiva monstruosidade e aquilo que se poderia admitir como simples
anomalia, caso em que o indivíduo ainda preservava um aspecto humano apesar de sua má
aspecto humano – não haveria qualquer possibilidade neste sentido. Nem sempre
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período compreendido entre a Idade Média e o séc. XVIII, o fato monstruoso pode ser
1999, p. 59)16.
Recém nascido, Oxford, 1552. “Moça com duas cabeças” e “Gêmeos unidos”
Reprodução de Jacob Rüff (1587) (Ambroise Paré, 1585)
16
Il n´y a de monstruosité que là où le désordre de la loi naturelle vient toucher, bousculer, inquiéter le
droit, que se soit le droit civil, le droit canonique, le droit religieux. C´est au point de rencontre, au point de
friction entre l´infraction à la loi tableau, naturelle, et à cette loi instituée par Dieu ou instituée par les
sociétés, c´est en ce point de rencontre de deux infractions que va se marquer la différence entre l´infirmité
et la monstruosité.
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supersticioso, bastante comum nas antigas sociedades, alimentado pela crença de que o
nascimento desses seres era de mau agouro, representando uma desgraça ou tragédia
cristãos e muçulmanos, diga-se de passagem – supunham que toda doença que atingisse
17
Car ils étaient regardés comme un signe de la colère des dieux, comme la punition d´une dépravation
portée à son comble. Ainsi un monstre ne fut point seulement d´abord un être vicié par des imperfections
corporelles, mais de plus, dans l´idée que l´on s´en formait, on y faisait entrer des notions puisées dans le
monde moral, le soupçon de copulations coupables, et nombres d´autres préocupations d´esprits enfantées
par l´ignorance et le fanatisme.
18
La difformité corporelle devint l´un des signes majeurs de celui-ci et le monstre un suppôt redouté du
diable ou un envoyé miraculeux de Dieu, funeste présage de son courroux. Temoin de la toute-puissance des
cieux et messager du malheur sur terre.
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É o mesmo pensamento que resulta na crença de que a lepra seria na verdade fruto
proibição, como a quaresma ou dias santos, quando a copulação era vetada aos cônjuges.
Embora as raízes para tal desígnio sejam bem mais antigas, é no período medieval que os
2006, p. 107).
A partir do séc. XIII, entretanto, a imolação do corpo por uma doença adquirida
(mas não, ao que parece, pela deformidade inata) torna-se uma forma de redenção ou,
virtude. Dessa maneira, chagas, tumores e feridas são mostrados como característica dos
eleição: o doente era um escolhido de Deus. Prisão e veneno da alma, lugar dos vícios e do
acometido de algum mal ocultava o fato até o limite do possível, vendo nisso um esforço
compensador para com a vontade divina. Atitudes bizarras como beijar feridas e úlceras,
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Outro fator de preconceito e estigmatização que perduraria por muito tempo se deu
baixa, ser velho constituía uma quase exceção. Nesse tempo, era comum considerar uma
pessoa velha quando sua idade não ia além de quarenta e cinco anos. Embora aos homens
ainda fosse atribuído certo respeito por representarem eles a memória viva da
Basta lembrar que em muitas das antigas sociedades também a cegueira foi frequentemente
sabedoria e luz interior, mas também ser visto como um castigado dos deuses. Ao lado do
delírio, a cegueira é tida na Bíblia como símbolo de trevas espirituais e um castigo por
desobediência à Deus. Em seu quadro “Cegos guiando cegos”, o pintor flamengo Pieter
Brueghel (1525-1569) os retratou com perfeição, sendo possível, inclusive, perceber o tipo
de enfermidade que sofre cada um deles: leucemia na córnea, catarata negra e mesmo
aquele cujos olhos foram arrancados. Era comum que os cegos corressem o país,
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mendigando pelos campos e cidades, e Brueghel os pinta sem nenhuma compaixão,
reguladoras para a aceitação e o convívio social. Com raízes na Idade Média, quando a
Rotterdam, publicado em 1530. Com grande circulação e inumeráveis edições nas mais
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corporal', no terceiro de 'maneiras nos lugares sagrados', no quarto em
p.72).
Era o impulso que faltava para a disseminação de uma norma de conduta que muito
antes já se mostrava presente, redigida principalmente por religiosos cultos ou com origem
na sociedade de corte. Porém, num meio social iletrado, em que era normal a prática de
atos hoje considerados bárbaros – como soltar gases estando à mesa, devolver ossos roídos
cima ou por cima da mesa – pode se imaginar o tempo necessário a uma mudança de
tornando ainda mais difícil a situação daqueles que, pelas mais diversas razões, não
quisessem ou não pudessem se enquadrar, como é o caso de pessoas com algum tipo de
disfunção. Neste sentido, ainda que poeticamente tidos como representantes da verdade, do
amor e da realidade das coisas19, a demência e o desatino nunca deixaram de ser vistos
com ressalvas: no dia a dia, o louco continuava a sofrer com o sarcasmo e com a
intolerância geral. Chamados à época de “idiotas” eles eram tidos como resultado de
instituições, denominadas casas de correção, havia lugar também para velhos, doentes e
19
No teatro, pode se citar a sotie, ou peça dos sots (tolos), espetáculo cômico francês dos séculos XIV e XV,
em que os atores se faziam de loucos para atacar os costumes e o poder.
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deficientes físicos, conforme um recenseamento feito no ano de 1690 e relatado por
disso, em 1737, ao se tentar uma divisão racional para os usos de tais instituições, é
sugerido que uma de suas funções seja também a de abrigar "grandes e pequenos
paralíticos".
O tratamento dado aos loucos, que constituíam a imensa maioria dos habitantes
dessas instituições, é talvez o principal exemplo da intolerância para com o diferente. Com
uma existência errante quando soltos, eles eram escorraçados dos limites das cidades, fosse
pelo medo ou pela ignorância que até então imperava: "Acontecia de alguns loucos serem
chicoteados publicamente, e que no decorrer de uma espécie de jogo eles fossem a seguir
1997, p. 11). Aprisionados, eles podiam se tornar atração, como ocorreu na Alemanha
durante a Idade Média, quando se podia assistir aos internos através de janelas gradeadas
que davam para a rua. Mesmo no séc. XIX, quando esses asilos passaram a ser fechados,
tal costume mostrava-se aperfeiçoado em cidades como Paris e Londres onde, aos
domingos, era possível visitar tais instituições e apreciar loucos furiosos por um preço
bastante módico.
meio de atitudes e ações nada discretas. Entregues a mercadores e peregrinos, fazem surgir
o que se convencionou chamar Stultifera Navis, a "Nau dos Loucos", embarcação em que
responsabilizavam por levá-los para longe do convívio urbano. Retratado e perpetuado nas
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pinturas de Bosch, Brueghel e Dürer, dentre outros, o espetáculo da loucura transitará pelos
Confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse
que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida.
valores: ela leva embora, mas faz mais que isso, ela purifica. Além do
sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca
As razões para tamanha exasperação e crueldade podem estar ligadas aos caracteres
Canguilhem (1995, p. 89), impedem o indivíduo de se enquadrar "não tanto em relação aos
outros homens mas em relação à própria vida", fazendo dele não apenas um desviado, mas
empírica, a uma padronização mais precisa que evita o rompimento entre semelhantes, a
anormalidade psíquica não permite ao sujeito a consciência de seu estado, o que faz com
Muito tempo seria necessário até que a ciência passasse a se ocupar efetivamente
começaria a ocorrer, de fato, somente no séc. XIX. Até então, além da lepra e da loucura
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destacar ou de alguma maneira se fazer diferente pela emissão de sinais involuntários de
nanismo e a puberdade precoce, dentre outros, são exemplos de alteração que, por sua
quase nunca evitaram a estigmatização do indivíduo. Isto sem falar nas ocorrências
cerebrais, de caráter lingüístico-cognitivo que podem incidir sobre o controle dos gestos e
termo grego teratologia ganharia novos ares a partir da apropriação científica do tema.
Assumindo um caráter patológico, o estudo das deformidades e, mais tarde, o dos desvios
também nas relações da sociedade para com os atingidos. Embora oficialmente surgida no
séc. XIX, a teratologia científica tem origem alguns séculos antes, quando a igreja
fatores sobrenaturais. A partir daí, já uma certa secularização tomava as rédeas do olhar,
20
Conforme Feldenkrais (1977, p. 19): "Nós agimos de acordo com a nossa auto-imagem. Esta que, por sua
vez, governa todos os nossos atos – é condicionada em graus diferentes por três fatores: hereditariedade,
educação e auto-educação".
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Fortunio Liceti, ainda influenciado pelo pensamento e pelas crenças tradicionais, traria à
luz, em meados do séc. XVII, a sua compreensão para as causas de tais fenômenos. Nela,
do séc. XIX, que a literatura médica engendraria uma inovada compreensão para com os
que não seria mais do que um organismo cujo desenvolvimento interrompeu-se num
desorganização efetiva em relação ao que deveria ter lugar, uma constituição irregular
afirma que ela estaria relacionada a dois fatos biológicos, denominados por ele tipo
específico e variação individual. Para ele, embora as espécies vivas apresentem variações
na forma e no volume proporcional dos órgãos, há um conjunto de traços que são comuns à
levando o indivíduo a diferenciar-se dos de sua espécie, idade ou sexo, pode ser vista como
21
Et la troisième est purement naturelle, et vient de quelque défaut, ou de quelque empechement, qui se
trouve dans les principes qui sont naturellement destinés à former les corps des hommes.
22
Toute monstruosité étant, comme on l´a abord aperçu, une désorganisation effective en égard à ce qui
devait avoir lieu, une constitution irrégulière remplaçant ce qui devait être régulier, n´est cependant
désorganisation ou irregularité que relativement.
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anomalia. Portanto, ao infringir a norma, ou seja, ao se diferenciar em excesso da média
geral e tolerável, uma pessoa diferente torna-se anômala e, por conseqüência, séria
candidata à estigmatização.
teratologia científica, cujo desenvolvimento pode ser tido como um grande progresso na
dos fenômenos teratológicos, surgem ou se recalcam certos pontos de tensão nas relações
das modernas sociedades com tais incidências. A dinâmica da História traria consigo
fatores de ordem social, política e econômica que acabaram por gerar uma necessidade
foi, sem dúvida, a chegada de uma multidão de mutilados oriunda dos campos de batalha
fantástico a seu respeito e, mais tarde, a laicização desses fenômenos que estimularam o
seu advento como matéria cênica, aguçando a curiosidade e jogando com a percepção e o
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Estima-se em cerca de seis milhões de mutilados na Primeira Guerra Mundial que, somados às vítimas da
Segunda Guerra, totalizaria quase trinta e cinco milhões de indivíduos.
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empreendida pelas ciências naturais, quanto o conjunto de ocorrências históricas no
dos fenômenos teratológicos. Essa foi a etapa inicial de uma profunda transformação, cujo
resultado maior se reflete na mudança do paradigma da exclusão, que se volta então para o
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O CORPO GROTESCO E O CORPO DO MUNDO
anticanônica, o grotesco não se baliza pela rigidez ou pela fixação, mas, ao contrário, se
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‘perspectiva’ do espaço e da distinção, a caracterização dos tipos
das formas corporais como fenômeno de manifestação cultural, dentre elas o carnaval, cuja
demente, o grotesco permaneceu durante muito tempo como uma subclasse do burlesco e
grande conjunto que nos escapa, capaz de harmonizar-se não com o homem, mas com toda
a criação.
por motivos de exemplificação cômica já na Grécia Clássica, a arte das formas grotescas
foi assim denominada séculos mais tarde, não obtendo praticamente nenhum estudo
anterior ao séc. XV. O vocábulo, com o sentido convencionalmente adotado nas artes
24
On peut en énoncer l'originalité à l'aide de deux lois, qui faisaient et font toujours le charme irrésistible
des grottesques: la négation de l'espace et la fusion de l'espéces, l'apesanteur des formes et la prolifération
insolente des hybrides. D'abord un monde vertical entièrement defini par le jeu graphique, sans épaisseur ni
poids, mélange de rigueur et d'inconsistance qui faisait penser au rêve. Dans ce vide linéaire
merveilleusement articulé, des formes mi-végétales, mi-animales, des figures 'sans nom' surgissent et se
confondent selon le mouvement gracieux ou tourmenté de l'ornement. (...) Les domaines des grottesques est
donc assez exactement l'antithèse de celui de la représentation, dont les normes étaient définies par la vision
'perspective' de l'espace et la distinction, la caractérisation des types.
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La grottesca e grottesco, como derivações de grotta (gruta), foram
Vitruvius Pollio os condenara, descrevendo-os como "voga iníqua" que, em vez de retratar
o mundo real, preferia pintar monstros nas paredes. Ele se refere a figuras híbridas e sem
sentido, como seres metade flor e metade figura humana que, mais tarde, apareceriam
difundido por Vitruvius, com base na proporção e simetria dos corpos, definia o grotesco
murais. Para ele, nessa pintura encontravam lugar apenas formas em suspensão, em que os
que tinha a imaginação mais louca era tido como o mais dotado. Mais tarde é que as regras
Ainda que remonte à era clássica, é a partir da Idade Média que o grotesco ganha a
25
Celui qui avait l'imagination la plus folle passait pour le plus doué. Par la suite des règles furent
introduites et l'on fit merveille dans les frises et les compartiments à décorer.
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horrível, do cômico e do bufo. Sua irrupção nesse período é que permite o grande salto de
possibilidades na arte, uma vez que serve de contraponto fundamental para a própria
Os primeiros estudos efetivos sobre o grotesco remontam ao séc. XVIII, pelas mãos
de autores germânicos, como o crítico literário Flögel, que publicou a sua História do
cômico-grotesco, em 1788. Grande parte dessa obra, citada em Bakhtin (1996), é dedicada
como a "festa dos loucos", a "festa do asno", os carnavais, e também sobre farsas e jogos
praça pública. Para Flögel, o grotesco seria tudo aquilo que rejeita drasticamente as regras
atribuíam um valor de regozijo e alegria, o que de certa forma ameniza a sua força
desestabilizadora. Esse entendimento foi sendo alterado pela percepção de outras muitas
possibilidades contidas nesse tipo de manifestação como, por exemplo, a evocação dos
estágios de vida que vão desde os inferiores, tidos como inertes e primitivos, até aqueles
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Terça-feira gorda, como era chamado o último dia de carnaval.
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Numa constante incidência do inusitado e do fantástico, o grotesco não distingue
Renascimento, já era visto também com certo terror. Mais do que a designação de uma
determinada arte ornamental, estimulada pela antiguidade, o fenômeno incorre não apenas
como algo lúdico e alegre, leve e fantasioso, mas também como angustiante e sinistro,
estabilidade das coisas e dos domínios até então reconhecidos, como a estática, a simetria e
a ordem natural das grandezas. Nele, ganha vida uma característica marcadamente
dramática, onde não se percebe a típica imobilidade da pintura como retrato da realidade,
O autor russo conclui afirmando que esse sentimento do tempo e das sucessões das
estações acaba por abarcar fenômenos sociais e históricos, fazendo da imagem grotesca o
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alternância histórica surgido de maneira vigorosa no Renascimento. Essa constatação
e questionamento que, por sua vez, lhe conferem um status mesmo de instrumento político.
possibilidade de se ter nessa expressão a fonte para uma arte significativa, trouxeram à
tona a tentativa de também se definir o grotesco enquanto categoria estética. Calcada numa
idealizante que até então norteava toda e qualquer reflexão sobre a arte, fazendo
Pfarrer von X ("Conversas com o Pároco de X"), um estudo sobre o caricaturesco onde
tenta definir o seu caráter e tipologia. Nessa obra, ele menciona três diferentes gêneros de
terror como reação ante a possibilidade do mundo sair dos eixos e de sua suposta
harmonia.
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Porém, embora grande parte das concepções aponte para um espírito puramente
preciso notar que isso não condiz com o seu verdadeiro caráter. Nele, a fantasia totalmente
livre não existe. Ainda que se exibindo por meio de figuras fantásticas e temas contrários à
percepção diferenciada do real e não simplesmente a sua abstração. Para Thomson (1972),
a comoção, sendo de difícil definição justamente pela incerteza e desorientação que causa.
Para ele, algo só se fará grotesco na medida em que o leitor ou observador seja tomado por
grande força expressiva, vendo-os como simples ornamentos ou tornando-os uma fórmula
poética cristalizada.
grotesco é justamente o pêndulo que oscila entre a harmonia que se quer perene e o
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O grotesco no corpo
sem uma efetiva alusão ao "realismo grotesco", ainda conforme entendimento de Bakhtin,
para quem a visão carnavalizante do mundo é base para boa parte da produção artística e,
sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato" (Bakhtin,
1996, p. 17). Neste caso, portanto, rebaixar significa aproximar da terra, tida
períodos da vida em que se mostra rigorosamente moldado, ou seja, numa idade distante
tanto do nascimento quanto da morte. Mesmo um corpo idoso, quando mostrado, aparecerá
aqui como bem cuidado e bem vestido. Com isso, se quer eliminar tudo o que esteja
dos demais corpos. Tais características se reproduzem também na época moderna, mais
afeita à "estética do belo" e para a qual o corpo grotesco parecerá obviamente monstruoso e
horrendo:
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Coloca-se ênfase sobre a individualidade acabada e autônoma do
O corpo grotesco não se mostra acabado nem se isola do mundo. Ele franqueia os seus
limites e se interpenetra com o exterior por meio de orifícios e protuberâncias, tais como a
boca que se abre, o falo e os órgãos genitais que se expõem, o nariz, o ânus e os seios que
denotam vida, morte e transformação constante que ele se mostra: a cópula, a defecação, a
que desafia o sentido de estabilidade das coisas por meio de seu inacabamento, mutilação
ou metamorfismo.
grotesco é plena de um sentido evolutivo, dinâmico, onde a agonia denota na verdade uma
renovação da vida. Daí a relação que habitualmente se faz, a partir de Bakhtin, com a
questão cósmico-topográfica do corpo que vincula o baixo à terra e o alto ao céu, fazendo
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entender por exemplo que o túmulo e o ventre cumprem funções semelhantes de
forma e comportamento, a constância disso sempre incorreu num certo mal estar do corpo
real, aquele que não se mostra ou não se comporta (pelo menos, não o tempo todo)
Mas, agora os hábitos são condenados cada vez mais como tais, em
si, e não pelo que possa acarretar a outras pessoas. Desta maneira,
marcas, o corpo grotesco persistiu irônico e irascível. Subjazendo num mundo de regras e
aparências, ele sempre se impôs como uma espécie de radiografia perturbadora daquilo que
se mostrava como real, expondo uma conflitante relação entre a cultura que se impunha e a
corporalidade manifesta.
para a expressão pública do corpo e das alegorias grotescas. Em seu estudo, Bakhtin situa-
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quando os festejos e atos cômicos, como a "festa dos tolos", a "festa do asno"27 e
contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação temporária
animais "sábios". O fenômeno era antigo e tinha origem em tempos primitivos, onde
paralelamente aos cultos sérios, sempre existiram os cultos cômicos que parodiavam
deuses e heróis. A diferença é que tais manifestações cômicas acabavam tidas como
ainda nem as classes sociais e nem o Estado. É um mundo que, como conclui Eliade
(1992), nada sabe a respeito de atividades profanas, em que todos os atos possuidores de
Enquanto as festas oficiais, organizadas pela Igreja ou pelo Estado, por suas
lógica do avesso, do contrário, das alternâncias entre o alto e o baixo por meio de paródias,
da mesa, do comer e do beber, levado além dos limites da norma cotidiana, até tornar-se
orgia ou porre" (Toschi, 1982, 108)28. Era, portanto, o terreno ideal para a manifestação
viva do grotesco.
27
Festividades ocorridas normalmente na passagem do ano, em que o serviço religioso e o alto clero eram
parodiados e alvos de licenciosidade.
28
Piacere della mensa, del mangiare e del bere, portato oltre i limiti della norma quotidiana, fino a divenire
crapula o sbornia.
65
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Minor devils, demons, satyrs and hobgoblins.
Olaus Magnus', Historia de gentibus septentrionalibus, Roma, 1555.
criaturas híbridas e de aspecto terrível: um corpo de homem com chifres e patas de bode e,
às vezes, com rabo. Se, na mitologia cristã, o fato se justifica pela transformação das
divindades pagãs em diabos, a verdadeira origem dessa relação é bem anterior. Os antigos
rituais propiciatórios da fertilidade – que, por sua vez, decorreram no carnaval – tinham
subterrâneas e potências geradoras, das quais fazem parte os diabos e as almas dos
Ora, para gerar a nova espiga ou a nova planta, a semente deve passar
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rituais apropriados, aparecem sobre a terra, e aqui exercitam a sua
Porém, apesar de serem representados na maior parte das vezes por figuras
clowns e bufões, o que chama a atenção pois que incide num aspecto mais humano e
ridículo por meio de paródias – por vezes, seriamente engendradas – do cotidiano humano,
os bufões são tidos como seres banidos do convívio social em função de suas deformidades
soltos e se manifestam como forma de crítica ou como simples resultado da suspensão das
regras de conduta.
Esse rebaixamento, entretanto, ganha outro sentido quando analisado sob o prisma
cósmico: o alto é o rosto e a cabeça, e o baixo se compõe pelos órgãos genitais, ventre e
29
Ora, per generare la nuova spiga o la nuova pianta, il seme deve trascorrere un periodo piú o meno lungo
sotto terra. Là, nel buio delle plaghe inferne, stanno le potenze delle generazione, le divinità sotterranee, i
dèmoni, le anime degli avi che nella giornata fatidica del ricominciamento dell'anno, dell'eterno ritorno del
ciclo produttivo, evocati da appositi riti, compaiono sulla terra, e vi esercitano la loro forza.
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comportamento corporal daqueles seres, em que rebaixar pode também significar a
os séculos XVI e XVIII, quando então ganha força um projeto de transformação e reforma
social, tido como base para a constituição do homem moderno. Com origem em preceitos
sujeito por meio de seu adestramento corporal e espiritual, o que pressupõe também uma
fundamental nas suas relações com os demais. Ou seja, saber viver passa a ser sinônimo de
um saber falar, em que a eloqüência e a sabedoria andam juntas, como base para a
reação instintiva deve ser controlada, o que incide sobre o contato e a violência física, a
serem substituídos – de acordo com o novo código moral – pelo convencimento e pela
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espaço público leva a uma estigmatização da pessoa considerada rústica e também a uma
acesso ao espaço público, aquele que tivesse domínio de si e cuja aparência fosse
perseguido e alijado do espaço público. É nesse período, que os leprosários e mais tarde as
funções bem mais definidas, em que o desviante, fosse ele o louco, o criminoso ou o
monstro, passa a ter e a ocupar o seu próprio lugar: o hospício, a prisão ou o circo.
Além disso, no controle e vigilância cada vez maiores que o processo civilizador
impõe às atividades humanas, as festas vão sendo apropriadas pelo poder vigente,
impõe medidas e prazos mais e mais ajustados. No correr dos séculos XVIII e XIX, o que
antes era regido pelas estações do ano ou pela atemporalidade dos rituais, passa então a
enquadrar como lazer, pura válvula de escape para uma crescente ansiedade gerada na
manutenção do posto de trabalho e do salário, situação que tende a agravar-se cada vez
mais.
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produzir efeitos colaterais, como o acúmulo e o descontrole populacional urbano e o
surgimento de novas doenças, além de acidentes de trabalho, que resultam numa profusão
de corpos mutilados. Restituído, o fascínio pelo diferente vem acompanhado de uma nova
singular: “o outro não está do lado de fora, ou do outro lado do espelho, mas contém a
Dentre os avanços que marcaram a prática médica, ainda no séc. XIX, estão a
vacina. Estava dada a largada para uma intervenção cada vez mais aguda e constante sobre
busca de cura para os males adquiridos até a alteração de sua forma e aparência, chegando
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experimentos químicos e biológicos levados a efeito a partir da era industrial acabaram por
agricultura, nos laboratórios e nas guerras tornou realidade o que antes era tido apenas
corpo o símbolo de uma era de atomização do tempo e das formas, lugar propício para uma
explicitamente, por meios externos e internos, o grotesco adentra o século XXI e insinua-se
O grotesco em cena
artaudiano da crueldade que, na acepção de Derrida (1995), propõe a cena não como
representação da vida, mas como elo para um princípio transcendente, do qual a vida não é
senão uma imitação: “O teatro da crueldade não é uma representação. É a própria vida no
que ela tem de irrepresentável. A vida é a origem não representável da representação. (...)
Como Nietzsche – e as afinidades não seriam apenas estas – Artaud quer portanto acabar
números cômicos da antiguidade que, por sua vez, continuaram integrando as festas do
adaptados. Nesses festejos, eles apareciam na forma dos bobos, bufões e outros tipos
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coprológica de um mundo subjacente, escatológico, desprovido de regras ou moral,
apresentada aqui em sua "forma ideal ressuscitada". Embora presentes em muitas das
comédias especialmente escritas para a cena, era na praça pública e durante as festividades
do carnaval que os bobos e bufões exerciam a sua verdadeira face, interferindo na vida e
interagindo com o mundo. Personagens quase reais, incorporados à cultura popular, eles
por vezes se faziam representar pelas próprias características dos artistas: anões,
exageradas.
elementos era a máscara, tida mesmo como essência expressiva do grotesco, que por meio
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ideal para presentificar o mundo dos espíritos, das bruxas e dos seres sobrenaturais.
infernal ou o rei do inferno" (Toschi, 1982, p. 197)30. Cobrindo apenas a metade superior
do rosto, essas máscaras incidem sobre o comportamento corporal dos atores, imprimindo
em seus corpos um caráter animalesco: formas e traços híbridos, com narizes enormes e
cuja expressão prescinde por vezes do verbo: "Não é do texto, mas do estilo de
comportamento grotesco, seria um equívoco dizer que ela tenha desaparecido. Cada vez
mais afeito ao texto e ao espaço físico do palco e das salas de espetáculo, o teatro
oficialmente reconhecido vai distanciar-se das ruas e das praças, deixados aos saltimbancos
e a exibições de feira. No âmbito do teatro de sala, pode se dizer que o corpo grotesco foi
insinuado por meio de farsas ou de tipos um pouco mais exagerados. Neste sentido, Kayser
lembra as investidas que, no séc. XVIII, foram feitas pelo classicismo contra o grotesco e a
autor ressalta, entretanto, a atração que o grotesco continuaria a exercer sobre os poetas e
artistas, citando como exemplo nomes ligados ao Sturm und drang, na Alemanha.
30
Arlecchino significa dunque l'infernale o il re dell'inferno.
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É importante reiterar que não é o propósito do presente estudo uma abordagem do
afirmar que entre os séculos XVII e XIX, nas apresentações de sala, as exceções ficavam
que, entretanto, eram levados à cena pela camuflagem e pela simulação corporal dos
olho de vidro e sem dentes tinham que encontrar alguma maneira de ocultar tais
características, fosse pela força do talento ou com a ajuda de recursos não perceptíveis aos
olhos do público. Ao menos era isso que se tentava. Numa publicação de 1859, intitulada
enumera diversos casos de atores e atrizes que apresentavam algum tipo de doença,
realidade em que o objetivo maior era justamente dissimular as dificuldades, o que, claro,
nem sempre era possível: “Na Itália, disse M. de Mercey, ‘há certos atores que não
porque eles são naturalmente coxos, gagos e caolhos” (Fournel, 1859, p. 207)31. Sabe-se,
entretanto, que no geral os atores perfaziam certo perfil, sem qualquer anomalia ou
economicamente ativa se instauraria a partir do séc. XVIII. Exibido em espaços dos mais
diversos, o espetáculo das excentricidades (ou freak show), uma prática perene no correr
31
En Italie, dit M. de Mercey, ‘il est tels acteurs qui ne jouent que les rôles de boiteux ; tels autres, les rôles
de bègues ou de borgnes ; et cela, parce qu´ils sont naturellement boiteux, bègues ou borgnes’.
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dos tempos, ganhava cada vez mais prestigio entre a população e abria caminho para uma
revolução que se daria tanto no conceito e na percepção das anomalias do corpo e da mente
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CAPÍTULO 2
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CENA E CONTÁGIO
necessidade de dissimular tais peculiaridades. Neste sentido, vale frisar a importância que
como decorrência de uma série de acontecimentos no terreno das artes durante o século
XX. Esse fato possibilitou a aproximação e interação do teatro com diversas outras formas
advindos da dinâmica e das características corporais dos atores. Assim, para que o referido
contágio se tornasse possível foi necessário uma contaminação estética do teatro ocorrida
por meio de elementos até então alheios à sua composição, e próprios de linguagens que
ganhariam força ainda na década de 1960, como o happening e a body art, mais tarde
apropriação dos distúrbios do corpo e da mente, não por uma questão ética ou social, e sim
como elemento propriamente cênico, com o qual ou a partir do qual uma cena autêntica
pudesse se desenvolver.
que abarca artistas e demais participantes, podendo tanto envolver o uso de técnicas
específicas quanto se valer da realidade circundante. Embora usado pela primeira vez em
1959 por Allan Kaprow para denominar um de seus environments32, em New York, o
32
Termo utilizado nas artes plásticas, que significa incorporar também o ambiente na concepção da obra.
77
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termo resulta de um procedimento comum a vários artistas da época33. Para alguns, como
artista cresce de importância até se tornar a parte essencial do trabalho". A partir disso, o
que, por sua vez, se valem de linguagens variadas, interagindo com outros procedimentos
próprios. Para Erving Goffman (1996), por exemplo, interessado pela estrutura da
qualquer atividade desenvolvida por alguém com o intuito de intervir junto a outros, numa
determinada ocasião. Ele redimensiona ainda a significação para o termo ator, assim
uma “trama” (situação) previamente estabelecida e repetida, ainda que isto se dê num
âmbito social e cotidiano. Ou seja, sob a sua ótica, a interação social passa a ser
somente realizam atividades como também são assistidas e se exibem diante dos outros por
meio de gestos, atitudes, expressões, enfim, por suas performances e atuações diárias,
esquizofrênico oceano de atores", conforme lembra Raposo (1996, p. 125). Será preciso,
33
Dentre eles, pode se destacar o músico John Cage (1912-1992), a artista plástica Gina Pane (1939- )eo
coreógrafo Merce Cunningham (1919- ).
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portanto, cuidar para que essa compreensão não seja admitida em termos simplificadores e
absolutos, pois, apesar de uma evidente aproximação entre a cena contemporânea e a vida
teatro não tem sentido algum. Não vale a pena fazê-lo. Mas se
pouco diferente. (...) Efetivamente, é a vida mas sob uma forma mais
p. 20-21).34
numa simples intervenção pública não de uma pessoa qualquer mas, especificamente,
emanar diferentes significações por seu aspecto ou maneira de ser, ainda que não queira, o
indivíduo tido como fora de padrão acaba por interferir e provocar efetivas reações em seu
meio. Este fato o aproxima do ator ou performer que, em cena, ainda que não o deseje
pode expressar significados a partir, por exemplo, de sua estatura, timbre ou tom de voz,
maneira de agir ou outra característica que lhe seja peculiar, etc. É o que Ubersfeld (1997)
chama signos não-intencionais, ou seja, elementos significantes que o ator não pode
dominar, ainda que tenha pleno conhecimento deles. Embora não seja proposital, o signo
34
On va au théâtre pour retrouver la vie mais s'il n'y a aucune différence entre la vie en dehors du théâtre et
la vie à l'interieur, alors le théâtre n'a aucun sens. Ce n'est pas la peine d'en faire. Mais si l'on accepte que la
vie dans le théâtre est plus visible, plus lisible qu'à l'extérieur, on voit que c'est à la fois la même chose et un
peu autrement. (...) Effectivement, c'est de la vie mais c'est de la vie sous une forme plus concentrée, plus
courte, ramassée dans le temps et l'espace.
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Admitindo-se que o aqui denominado contágio cênico decorre de um procedimento
já que se trata de uma condição natural e passível a ambos. Quando não, as condições pré-
surpreender que, para De Marinis (1987), ganha extrema importância numa representação:
para ele, a cena deve fazer uso de estratégias capazes de perturbar a percepção habitual do
relativamente recentes, como é o caso dos trabalhos de Robert Wilson e Pippo Delbono, a
cênico esteja numa atividade reprovável e eticamente incorreta para os parâmetros atuais:
as apresentações de feira que, sobretudo a partir do século XVIII, vendiam como atração
não se pode negar que por um período razoável tais atividades protagonizaram um negócio
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aterrorizavam, prendendo a atenção do espectador e evocando sensações e prazeres hoje
rejeitados.
atividades, incomuns ou bizarras, que um indivíduo fosse capaz de realizar como, por
diversos. Mais tarde denominados freak shows, esses espaços se constituiriam num meio
de incidência, também, para o que viria a se difundir como body art, particularmente
apresentação de pessoas cujos corpos haviam sido marcados ou alterados como parte de
costumes tribais ou de forma voluntária, como foi o caso de um albanês conhecido como
Captain Costentenus, tatuado na maior parte do corpo, inclusive no rosto. Ele tornou-se
uma lenda e foi um dos primeiros tatuados a se exibirem nos Estados Unidos da América,
no século XIX.
Captain Costentenus
num de seus cartões de propaganda.35
81
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A “mise en scène” do corpo
diversas. Assim, não será exagero dizer que, na contemporaneidade, uma vez mais é o
grotesco que incide na cena – também e, sobretudo – pela via da imagem corporal e do
cotidiano, tornado lugar cênico por excelência. Nesse contexto, um momento que pode ser
considerado crucial para o movimento de contágio cênico é o advento da body art (ou arte
expressão e linguagem.
36
Le corps est le lieu où est questionné le monde. L'intention n'est plus l'affirmation du beau mais la
provocation de la chair, le retournement du corps, l'imposition du dégoût ou de l'horreur. La mise en avant
des matières corporelles (sang, urine, excrément, sperme, etc) dessine une dramaturgie qui ne laisse pas
indemne les spectateurs et où l'artiste paie de sa personne pour dire, par corps, son réfus de limites imposées
à l'art ou à la vie cotidienne.
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processo de criação e sua instantaneidade um dos principais elementos. Relacionando-se a
diversas outras práticas, como a living art, a carnal art e a body modification, a body art
constitui-se como happening que, mais do que impor a presença física do artista,
idéia de mostrar-se para poder ser. (...) Esses artistas não encenam a
Embora assim denominada e reconhecida haja apenas algumas décadas, a body art
imemoriais. Numa das manifestações mais antigas de que se tem notícia, por exemplo,
tatuagens aparecem no corpo de um homem encontrado nos Alpes tiroleses (entre a Áustria
e a Itália), que teria vivido há cerca de 3.300 a.C. Uma pequena cruz e listas estavam
tatuados nas costas, no tornozelo direito e na parte de trás do seu joelho esquerdo. As
marcas podem ter sido colocadas tanto como ornamentos quanto para sinalizar um status
social ou mesmo, num teor religioso, visando proteção àquelas partes do corpo. Outras
sacerdotisa Amunet, que viveu há quatro mil anos atrás, e o de uma outra mulher que, além
37
La body art (arte realizzata tramite il corpo) è la denominazione sotto la quale si raccolgono tutte le
operazioni paradossali in cui l'autore è ossessionato dalla necessità di agire in funzione dell'altro,
ossessionato dalla necessità di mostrarsi per poter essere. [...] Questi artisti non sceneggiano la storia di un
personaggio, ma diventano essi stessi la storia e il personaggio.
38
Raspagem da pele com objetos pontiagudos, a fim de provocar cicatrizes.
83
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piercing39, escarificações e ornamentos corporais também pela civilização Maya, que
existiu no território onde hoje se encontra o México. Por sua vez, povos de pele escura da
África, América e Ásia, na qual geralmente a pigmentação de uma tatuagem pode não ser
corporais, como a inserção de pratos para esticar os lábios ou a adição de anéis de cobre
sociedade, em sua ocorrência recente o uso de marcas e adereços no corpo pode estar
contrário, de dissidência social. Tomada pela moda, pelo esporte e pelas múltiplas culturas
das novas gerações, a marca corporal se dá também como forma de afirmação individual
branding (desenho ou sinal feito com ferro quente ou laser) e os implantes subcutâneos.
preferências e prazeres por vezes passageiros, que o levam a se apropriar das formas sem
uma preocupação com o seu sentido original, realocando-as para um novo contexto social e
cultural. Para o autor, os desenhos de monstros saídos, por exemplo, da cultura cibernética
e jogos de vídeo, assim como as formas geométricas que hoje compõem as "tatuagens
biomecânicas", constituem uma metáfora tecnicista do corpo: "Por vezes, o estilo tribal se
39
Ornamentos corporais caracterizados pela perfuração da pele e fixação de anéis e peças de metal.
84
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mistura ao estilo biomecânico, já que todas as variações são possíveis, os signos se alteram
Moça no café
Foto: Kaustika, Córdoba, Argentina
contexto reivindicatório, em que todo poder e toda limitação deviam ser contestados e,
Tratava-se de um ato tanto individual quanto político, ou seja, uma ação cuja expectativa
40
Souvent le style tribal se mêle au style biomécanique puisque toutes les variations sont possibles, les signes
s'échangeant pour le plaisir.
85
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O processo comunicacional a nível corporal inclui pressupostos – os
98).
seja, ela é resultante de ações voluntariamente realizadas pelo indivíduo. Neste caso, a
pessoa é quem decide intervir em seu próprio corpo e aparência, seja por meio de cirurgias,
próteses e implantes, seja através de tatuagens e alterações na cor da pele, dentre outras
formas de intervenção. Assim, a body art vai além da simples exploração das
seja, "em sujeito e objeto de sua arte". Valendo-se do estigmato, o artista agora subverte o
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percebido ou consumido por seus iguais, seja pela via da contestação ou mesmo pela mera
necessidade de exibir-se.
como oposição de uma perenal estabilidade que torne sua imagem captável ou reproduzível
pelo espelho. Trata-se de uma atitude que se constitui como manifestação específica, que
Assim, por suas amplas possibilidades de simulação e contínua transformação, o corpo não
precisaria se submeter às regras do reflexo e sim “quebrar o espelho ou passar para o outro
Ocorre, porém, que ao romper a demarcação entre a arte e a vida cotidiana, a exibição
estética do corpo avançou de maneira a cair num processo de estereotipia, auxiliada que foi
pela midiatização.
mas, sobretudo, o que ele ainda pode, para além das exibições já
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A midiatização incide sobre a exibição, fazendo dela um modelo de especularizaçao
social e tornando o que foi exibido uma “representação congelada”, ao contrário dos
maioria das imagens contemporâneas algo sem sombra nem consequências: "O que se
pressente é que, por trás de cada uma, algo desapareceu. Elas são apenas isto: o vestígio de
algo que desapareceu" (Baudrillard, 2004, p. 24). Neste sentido, mesmo o que pareça
O desencantamento do estranho41
remontam a ações praticadas há pelo menos três séculos que, embora comumente excluídas
convencional, esta última exercida nas grandes salas e no circuito oficial do teatro, em
constituiria um tipo de atividade que logo se mostraria bastante lucrativa: os entre-sorts ou,
público se excita, o fenômeno se mostra, bale ou fala, muge ou agoniza. Se entra, se sai, eis
41
Título tomado de empréstimo a um dos estudos de Jean-Jacques Courtine in Corbin, Courtine e Vigarello
(2006).
88
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aí” (Courtine, 2006, p. 202)42. Nos Estados Unidos, a prática se popularizaria como freak
show ou sideshow, dentre outras denominações que, mais tarde, acabariam por englobar
também outros tipos de exibição, como engolidores de faca e performers variados, com
estatura e configuração corporal normal. Essa forma de atividade teve fôlego para manter-
se com força ainda no séc. XX, continuando a manifestar-se nas barracas de feira e no
circo.
miserável, eram exibidos em praça pública pelos próprios pais. Eles, assim, ganhavam e
Riolan, o filho 43, também se refere a outros gêmeos ligados, cujos pais fizeram fortuna
exibindo-os para quem pagasse o preço. O uso espetacular desses seres se dá com
mente se desvencilham de um universo religioso, onde eram tidos como objetos de piedade
ou obras do sobrenatural, para sofrer os efeitos de uma teatralização perpetuada nas feiras e
eventos ocorridos, inclusive, em terrenos pertencentes às abadias e sob tutela real. Dentre
mágicos, além de arrancadores de dente, sendo esta uma das atividades mais procuradas.
42
Le public monte, le phénomène se lève, bêle ou parle, mugit ou râle. On entre, on sort, voilà.
43
Citado na exposição virtual "Les monstres de la renaissance à l'âge classique", exibida no site da
Bibliothèque Interuniversitaire de Médicine (BIUM), Paris, 2006-2007.
89
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Em meio às apresentações, "gigantes" e anões se misturavam com outros seres humanos
Talvez se possa dizer que, da mesma maneira que por muito tempo foi negado aos
maior, sendo colocados à margem e tidos como atividades desumanas, mais do que
manifestações de cunho artístico. Obviamente, as razões para isto são muitas, indo desde
questões éticas, estéticas e morais até a desinformação e o puro preconceito, já que por
personagens e a caracterização dos atores e do espaço cênico: "Em primeiro lugar, figuram
os fenômenos suscetíveis de ser rodeados e envolvidos por toda uma encenação, tais como
44
Ces rassemblements d'origine religieuse, de nature commerciale, avaient toujours été des occasions de
divertissement populaire. La foire est cuisine du carnaval. Mais ils allaient être colonisés de plus en plus
nettement entre 1650 et 1750 par des entrepreneurs de spectacles venant proposer aux foules considérables
qui y affluaient toutes sorts de curiosités et de distractions. Ainsi, au début du XVIIe siècle, le chapitre de
Saint-Germain-des-Prés autorise des comédiens à construire des loges sur son terrain, et va accorder des
permissions semblabes à des danseurs de corde, marionnetistes, montreurs d'animaux sauvages et de
curiosités humaines.
90
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o gigante Bihin no melodrama David et Golliath e o anão Leach em The dwarf of
1965, p. 1455)45.
pleiteando seu lugar como atração também no espaço oficial da comédia até que se fizesse
ouvir. Várias dessas produções acabam por ser mostradas nas salas oficiais e o espetáculo
valiam de suas próprias características, como foi caso de Harvey Leach (ou Leech) que, no
mosca. Num outro exemplo, a peça "La foire Saint-Laurent", de Le Grand, apresentada em
1709 na Comèdie Française, tinha no "homem sem braços" a sua principal atração: era com
Porém, o preconceito com que tais manifestações são historicamente encaradas está
em que elas acabam tidas, sobretudo, como simples meio de exploração comercial do olhar
curioso. Ainda que este seja um dos elementos que as caracterize, a questão é, entretanto
de ordem bem mais ampla, dizendo respeito ao campo cultural e sociológico, uma vez que
não se está falando apenas da finalidade prática do fato, mas também de suas causas e
qual a sua incidência na percepção delas. Além disso, diferentemente do que se acredita,
registros indicam que em muitos casos os freak shows não denegriam a imagem nem
diminuíam a auto-estima das pessoas exibidas que, de outra maneira, seriam apenas motivo
45
En premier lieu figurent les 'phénomènes' susceptibles d'être entourés et encadrés de toutes une mise en
scène, tels le géant belge Bihin dans le mélodrame David et Goliath et le nain Leach dans The Dwarf of
Drachenfels, ou de paraître dans une baraque, telles les géantes: la Belle Espagnole, la Belle Vénitienne et
autres, assises parmi des meubles d'une petitesse voulue.
91
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de compaixão ou zombaria. Ao menos ali, muitas delas encontraram um espaço que
podiam compartilhar com outros na mesma situação, além de fazer de suas condições uma
moeda de troca e, com isto, ganhar mesmo um status social considerável, como o siberiano
Kobelkoff, o homem-tronco, citado em Thétard (1978). Nascido sem braços nem pernas,
constituir a sua própria trupe de teatro ambulante, além de uma numerosa família com dez
filhos.
distúrbios corporais, sendo que a exacerbação do olhar curioso, percebida nas recentes
avidez pelo bizarro. Neste sentido, vale o entendimento de Bogdan (1988), que alerta para
diante de um ser estranho e peculiar na era moderna é antes o resultado de uma ação
indivíduos e o público: "'Freak' [excêntrico] não é uma qualidade que pertence à pessoa em
exibição. É algo que nós criamos: uma perspectiva, um conjunto de práticas – uma
46
Ver no capítulo 1, "Uma estética do estigma?".
47
'Freak' is not a quality that belongs to the person on display. It is something that we created: a perspective,
a set of practices – a social construction.
92
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incidência dessa construção em seu imaginário48, valendo lembrar que o uso do termo
mundo, que a presença de um ser extremamente estranho podia causar. Neste sentido, de
48
Note-se que, em ambos os casos, se está referindo ao locus performático apontado por Richard Schechner,
ou seja, o campo perceptivo e interativo localizado entre o observador e o objeto observado, no qual se
instaura efetivamente a performance: "Em outras palavras, a particularidade de um dado evento está não
apenas em sua materialidade, mas em sua interatividade. (...) A performance não está em nada, mas entre"
(Schechner, 2003, p.28).
49
Suspension du langage, tremblement du regard, déstabilisation de l'expérience perceptive résultant de la
soudaine rencontre avec le corps monstrueux, le monstre est quelque chose de l'ordre du réel, c'est a dire
d'irreprésentable. Le monstrueux, quant à lui, est production de discours, circulation d'images,
consommation attentife et curieuse de signes, inscription du monstre dans le champ imaginaire de la
représentation.
93
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forma natural ou construída, é possível perceber na moderna assistência uma evidente
simpatia pelo estranho e pelo grotesco, ou ao que deles pode decorrer, como é o caso das
reações de sarcasmo, compaixão e constrangimento50. Se, num passado não muito distante,
mendigar pelas ruas como figuras desprezíveis e dignas de pesar, a partir do séc. XVIII – e,
com maior eloqüência, a partir do século seguinte –, ele se vê assediado por um discurso
que inverte a lógica e eleva aqueles seres à condição de atração. Eles passam a ocupar o
centro, sendo vendidos como evento para um público cada vez maior, que se aglomerava
às portas das barracas e tendas. A diferença entre o ato de mendigar e o espetáculo das
anomalias e deformidades não está apenas na atuação isolada do pedinte e na postura com
que o sujeito se coloca no espaço público. Embora em ambos os casos haja uma espécie de
deploráveis condições do sujeito, colocando-se a espera de uma reação que dê o seu preço,
seja ele qual for, enquanto na teatralização, essas condições ganham ares de espetáculo,
50
Conforme tratado no capítulo 1: "A crônica das reações anunciadas".
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Com o passar do tempo, as técnicas de apresentação se aprimorariam, indo desde o
atrações. Na maioria dos casos, não eram mais do que invencionices e exageros
receita. Neste sentido, Robert Bogdan destaca a conexão havida entre a ciência e os freak
shows para distinguir dois tipos de atração então construídos, sendo eles: os exemplos de
espécimes raros e maravilhas distantes que poderiam, obviamente, serem ali apreciadas a
termo médico para pessoas nascidas com uma destacada diferença em sua constituição.
Neste caso, os promotores eram beneficiados pelo feito de que o estudo sobre os lusus
pesquisadores da área médica. Assim, eles promoviam debates entre cientistas e pessoas
de credibilidade ao evento. Além disso, havia ainda a separação entre os born freaks, os
anomalias físicas reais, que vieram pela sua natural condição. Ainda
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mesmas que as tornam suficientemente incomuns para serem
primitivo, estranho ou bestial das atrações. Incitando a imaginação dos ouvintes, eles
mundo, como a África negra, as selvas de Bornéu ou mesmo o antigo Império Asteca.
Num ato de extremo exagero, por exemplo, os gêmeos afro-americanos Willie e George
Muse eram apresentados como extraterrestres: "Nos anos de 1920 e 1930, Eko e Iko,
Marte, descobertos próximos do que restou de sua nave espacial no Deserto de Mojave"
É importante lembrar que até o início do séc. XX, devido às raras informações
classificatória, o que dava margem a especulações de todo tipo. O uso do termo "museu
natural" no título de algumas das casas de exibição atesta o proveito que se tirava da
51
According to this classification, 'born freaks' are people with real physical anomalies who came by their
condition naturally. While this category includes people who developed their uniqueness later in life, central
are people who had an abnormality at birth: Siamese twins and armless and legless people are examples.
'Made freaks' do something to themselves that make them unusual enough for exhibit, such as getting
adorned with tattoos or growing their beards or hair exceptionally long. The 'novelty act' (or 'working act')
does not rely on any physical characteristic but rather boasts an unusual performance or ability such as
sword swallowing (the more contemporary versions used neon tubes) or snake charming.
52
In the 1920s and 1930s, Eko and Iko, brothers with albinism and dreadlocks, were presented as
ambassadors from Mars discovered near the remains of their spaceship in the Mojave Desert.
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como "doutor" e "professor" impunham uma pretensa associação desse tipo de
confiável. Seria apenas com o avanço das pesquisas envolvendo a descoberta dos
ser tidas como anomalias e os seus portadores admitidos como padecentes de algum mal,
passíveis de cuidados médicos. Este fato seria um golpe capital para o modo exótico de
Willie e George Muse (Eko and Iko), Cartaz de divulgação de freak show
os "Embaixadores de Marte"53
atributos eram, por vezes, inventados ou exagerados, como a agregação de títulos (major,
general, princesa etc), o forjamento de origem (eles eram anunciados como provenientes de
53
Foto: Ringling Bros., veiculada pelo site http://sideshowbarker.blogspot.com. A imagem do cartaz foi
veiculada pelo site www.shockedandamazed.com.
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consequência, também as vestes acabavam por merecer um tratamento especial, o que
envolvia uma cara joalheria e o uso de adereços e ornamentos estilizados, como casacos de
instrumento ou fazer acrobacias. Um dos maiores exemplos disso, foram as gêmeas Daisy
organizadas", o que pressupõe uma diferença com relação às apresentações isoladas e não
maior exemplo desse tipo de organização foi o chamado “Museu Natural Americano”,
surgido em 1840 e capitaneado por Phinéas Taylor Barnum, cuja característica maior era a
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exploração do olhar curioso em torno de raridades anatômicas. Anunciando “seres
percorreu triunfalmente também diversos países europeus, sendo recebido pela nobreza e
por membros do poder político e econômico, que viam nisso uma forma excêntrica de
Num primeiro momento, havia as pequenas manifestações de feira, que embora tenham
perdurado mesmo durante o século XIX, apresentavam uma estrutura simples e sem maior
elaborado, que aos poucos transformaria o então chamado "teatro de monstros" num
durante a temporada dos shows. É assim que o "Museu Natural" de Barnum e outros de
menor estatura acabaram por compor um ramo de negócios que faria escola, tornando-se
um exemplo concreto, ainda que primitivo, da cultura de massas e atividade modelar para o
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Gabrielle Fuller, “A Maravilha Viva”, nascida em 1884.
Em cena e em cartaz de divulgação. Panoptikum, Inc., Hamburg St. Pauli.
A exploração das anomalias por meio de sua exibição pública em feiras e praças
não foi apenas um capítulo para sua futura apropriação cênica, mas também uma
desencadeado no correr do século XX. Junto com o avanço da ciência, que poria por terra
vários dos argumentos sensacionalistas usados para atrair a audiência, veio uma multidão
exigir da sociedade uma mudança de olhar com relação aos distúrbios de caráter motor e
mental, além da recém criada ordem psicológica. Os então chamados "inválidos" ou, mais
defesa de seus direitos, que acabaria por refletir na mudança de hábitos e de entendimento,
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GÊNESE DE UMA CENA INTEGRADORA
Nas questões ligadas à percepção social das anomalias, das limitações e das
como etapas complementares, tem ganhado cada vez mais aceitação. No caso da
integração, praticada nas décadas de 1960 e 1970, eram criados e oferecidos aos indivíduos
socialmente o seu espaço: "A integração tinha e tem o mérito de inserir o portador de
deficiência na sociedade, sim, mas desde que ele esteja de alguma forma capacitado a
34). Já a inclusão, em termos mais recentes, denomina uma prática cujo processo é
bilateral. Nele, também a sociedade se move de modo a se tornar mais flexível em sua
"Conceitua-se a inclusão social como o processo pelo qual a sociedade se adapta para
poder incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais e,
simultaneamente, estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade" (Sassaki, 1997,
p. 41). Esse fato decorre numa relativização das fronteiras da normalidade e num
conseqüente processo de aceitação do que antes era tido como irregular e excluído pela
diferença. Ou seja, na integração o sujeito é que deve se adaptar à sociedade e, por outro
lado, na inclusão, a sociedade também busca os meios de admitir esse cidadão como seu
natural integrante.
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auditiva detiveram quase sempre um privilégio em relação aos demais, já que, apesar das
limitações, uma pessoa surda ou cega, além de preservada a sua constituição física, tem
integrar-se socialmente.
ocorreu na França, entre 1801 e 1805, quando foi encontrada uma criança com cerca de
Encarregado de acompanhar o caso, o médico Jean Gaspard Itard – que, mais tarde, se
daria no século XX com a difusão do axioma “reabilitar para integrar”. Esse pensamento
resulta de uma crença de que a deficiência seria um problema exclusivo da pessoa que a
integrar-se pelo espelhamento (ou cópia) de um modelo e não pelas trocas sociais, que
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humana. De certa maneira, isso se reflete no modelo médico da deficiência, levado a efeito
dos direitos até a difusão de práticas envolvendo as chamadas pessoas com deficiência,
associações e entidades com participação direta dos envolvidos entre outras ações. Mas, o
normalidade e à patologia: "o patológico deve ser compreendido como uma espécie do
normal, já que o anormal não é aquilo que não é normal, e sim aquilo que é um normal
diferente" (Canguilhem, 1995, 164). A partir desse entendimento, uma nova postura será
trabalho, nos meios de transporte e nas vias públicas, e em ações de âmbito cultural e
político, dentre outras. Não se pode dizer, entretanto, que a prática cotidiana tenha
se vê no dia-a-dia, por parte da maioria das pessoas e mesmo de entidades em geral, são
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atitudes ainda imbuídas de um caráter reabilitador ou, mais exatamente, normalizador, no
talvez explique ou dê a entender melhor algumas das experiências cênicas levadas a efeito
viabiliza uma enorme variedade de manifestações que, por sua vez, tornam possível a
trabalho com “deficientes” – e não se deve esquecer dos milhões deles que vieram a
também a dança, a música e as artes plásticas compõem esse movimento que, mais tarde,
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ganharia espaço próprio com o surgimento, na década de 1990, de eventos e festivais
projetos ganham destaque seja pelo resultado ou pela estrutura profissional que adquirem,
digna das maiores companhias estáveis de teatro. É o caso, por exemplo, das francesas
se muito mais como prática de inclusão social, no sentido integrador, e valendo-se das
vantagens que passam a ter os projetos com essa característica. A partir de então,
de impostos e com maior facilidade na obtenção de apoio público e privado para suas
deficiência” – e aqui o uso deste termo tem um peso considerável na captação dos recursos.
Embora abertos, a maioria desses grupos se compõe quase que exclusivamente de pessoas
“com deficiência”, estando boa parte deles ainda imbuídos de um forte caráter integrador.
Isto ocorre também com iniciativas envolvendo as artes em geral – dança, música, etc – em
que as condições são dadas para que esses indivíduos sejam vistos e se sintam “capazes”,
fazendo com que a recepção ao resultado acabe se dando muito mais pela via da
mais tarde como Centro de Ajuda para o Trabalho (CAT), passando a receber apoio
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financeiro do governo francês. Desde 2001 está instalada na cidade de Roubaix, ao norte
do país, tendo como sede uma antiga garagem automobilística, agora equipada com
companhia possui hoje um elenco permanente com mais de vinte integrantes que atuam
dança, música, voz, estudo de textos, etc. Trata-se de uma estrutura criada para oferecer a
e intelectual, oportunidade que muito provavelmente eles não encontrariam fora dali.
Paris, é uma iniciativa parcialmente subvencionada pelo governo francês para manutenção
companhia montou por volta de quinze espetáculos sob a direção de profissionais diversos
e possui, atualmente, um repertório com pelo menos quatro peças. No elenco, estão cerca
de quinze atores com variados graus de distúrbios mentais, comandados pelo diretor teatral
consta o seu maior objetivo: “construir uma estética nova pela confrontação de formas
o diretor rechaça o uso do teatro como terapia e reitera a busca de um produto artístico e do
acesso ao fazer teatral por parte de “pessoas marginalizadas”. São apresentados também
54
Construire une esthétique nouvelle par la confrontation de formes brutes avec les codes et les références
du théâtre contemporain (http://theatreducristal.free.fr).
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Embora enfatizando o caráter artístico de suas produções, ambas as companhias
limitações de ordem mental e intelectual. Como consta ainda no site do Théâtre du Cristal:
deficientes à arte e à cultura. Ela se inscreve no movimento atual que visa compensar a
distância de pessoas deficientes das práticas artísticas, situação que aumenta a sua exclusão
social e cultural"55.
Trata-se de um enfoque recente sobre o papel das artes no contexto das ditas
deficiências e da incidência disso num âmbito social, idêntico entendimento que move
diversas iniciativas contemporâneas, dentre as quais, a Very Special Arts (VSA)56, surgida
nos Estados Unidos, e hoje difundida em todo o mundo. Ainda que haja diferenças na
condução dos projetos por parte dessas instituições, teoricamente elas não alteram a base
comum de ambas as propostas, que enxergam nas artes um instrumento eficaz e propício
autores teatrais bastante conhecidos: Beckett, Brecht e Shakespeare. Outro ponto comum é
ater à capacidade e às condições de cada um dos atores. Em Le roi Lear57 (O rei Lear), de
55
Cette activité comble partiellement un déficit important d’accès des personnes handicapées à l’art et à la
culture. Elle s’inscrit dans le mouvement actuel qui vise à compenser l’éloignement des personnes
handicapées des pratiques artistiques, situation qui redouble leur exclusion sociale et culturelle
(http://theatreducristal.free.fr).
56
O Programa Very Special Arts Internacional foi criado em 1974 por iniciativa de Jean Kennedy Smith,
irmã do presidente John F. Kennedy (1917-1963), estando presente hoje em quase uma centena de países.
57
Nesta tese, será informada a ficha técnica apenas dos espetáculos que forem analisados. Ficha de Le roi
Lear: Texto de W. Shakespeare, com adaptação de Jean-Michel Rabeux e Sylvie Reutena. Direção: Sylvie
Reutena. Com: François Daujon, Nathalie Savary, Magdalena Mathieu, Jennifer Barrois, Marc Mérigot,
Georges Edmont, Martial Bourlart, Frédéric Foulon, Thierry Dupont. Cenografia e figurinos: Pierre-André
Weitz. Iluminação: Jean-Claude Fonkenel. Production: La Sybille/Compagnie de l'Oiseau Mouche.
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Shakespeare, dirigida por Sylvie Reutena, e La mère58 (A mãe), de Brecht, dirigida por
de uma trupe composta quase que exclusivamente de atores com distúrbios mentais leves.
Com direção de Olivier Couder, Dramaticules é uma junção de seis pequenas peças
de Samuel Beckett: Actes sans paroles, Va et vient, Solo, Quoi où, Catastrophe e Pas moi.
Na maior parte delas um encontro singular se verifica, já que a condição real dos atores
permite insinuar uma proximidade com aquilo que se convencionou chamar universo
beckettiano, composto por tipos errantes e supostamente loucos, como mendigos e clowns.
Assim, as condições dos atores enriquecem a cena de maneira evidente e, mais do que uma
inusitada da cena e do texto. De início, aliás, se é levado a pensar que estão em cena
L’Oiseau Mouche, sob a direção de Sylvie Reutena, em que alguns dos atores, como o
François Daujon apreende os textos oralmente, o que o leva à apreensão e fixação de uma
singular entonação para suas falas. Em cena, Lear aparece pequeno, encurvado e com uma
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shakespeareana – com o inusitado, onde a loucura de alguns personagens se evidencia e,
atores. E nisso a diretora é enfática: “Pareceu-me que esse texto, atravessado pelo tema do
error e da loucura, marcado pela perda e redistribuição de identidades, que se joga da frágil
fronteira entre razão e desrazão, podia encontrar aqui uma encarnação potente e
singular”60.
prisão, estranho veículo que lembra uma gaiola e que, durante a apresentação, se
transforma em cenário visual e sonoro para a maioria das cenas, com cada um de seus
lados, feitos de tubos e placas de metal, servindo de parede e instrumento para a produção
de diversos sons.
com o público colocado por vezes entre um espaço cênico e outro. Essa multiplicidade de
tocam e jogam em vários momentos com os atores, dão à cena um ritmo justo e uma
60
Il m'a semblé que ce texte, traversé par le thème de l´errance et celui de la folie, marqué par la perte et la
redistribution des identités, qui se joue de la fragile frontière entre raison et déraison, pouvait trouver là une
incarnation puissante et singulière (Conforme programa de apresentação do espetáculo).
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positiva dinâmica. Diferentemente dos trabalhos citados anteriormente, em La mère, nem
atores. Ainda assim, uma interessante questão surge com relação ao inevitável
insinuando-se pela situação da protagonista que, analfabeta, acaba politizada pelo amor ao
filho e pela ideologia que descobre por trás das ações das quais escolhe participar.
Em todos os três trabalhos assistidos, uma questão comum se coloca: até que ponto
o fato de se saber de antemão das condições dos atores – o que é inevitável no caso dessas
olhar negligente ou, o que é pior, a um juízo filtrado pela condescendência. Outro risco
poderia reforçar o caráter de ilusão imposto à cena pela via de uma estrita submissão ao
condições de vários dos atores se inserem não como elemento que reforce essa
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(loucos, mendigos, clowns) ou como recurso de estranhamento, no caso de Brecht, mas sim
como vetores (Pavis, 2003), que interferem apropriadamente nas linhas de força da
representação. Pode se dizer que, apesar desses fatores incidirem de maneira óbvia na
recepção, a qualidade dos elencos e o modo como, em geral, são conduzidos os espetáculos
o que poderia ser uma adequação – as singularidades de seus atores – numa opção cênica.
É difícil negar que o tipo de estrutura apresentada pelas duas companhias francesas
condições para que se incluam socialmente, desde que se adequem a um modelo tido como
reproduzir modelos. É o tipo de ação que, em que pese a sua óbvia importância na
promoção da inclusão social desses indivíduos – e talvez pelo contexto cultural em que se
inserem –, operam mais pelo espelhamento de padrões teatrais já estabelecidos do que pela
considere uma ou outra experiência isolada, que escape a esse modelo, no decorrer da
encenação conhecidas e bem definidas, o que não deixa de operar, afinal, como um
procedimento facilitador para uma necessária forma de controle e vigilância, ainda que
flexível.
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Essa opção não diminui nem invalida o trabalho de tais companhias, pois se tratam
vezes, valer-se de recursos cênicos eficazes, que garantam resultados em curto prazo, além
de uma rápida apropriação por parte dos atores. Tal ação, porém, vai contra o caráter de
contágio e, ainda que presente, a contaminação cênica mostra-se controlada, presa a uma
estrutura que impõe aos atores o limite das personagens, dos textos, das marcações. Sendo
dito e o ser representado, o trabalho cênico com base num texto e numa estrutura
segundo plano e conferindo sua marca à personagem, ao invés de ser ela própria a matéria
de criação cênica. Para que a contaminação se dê efetivamente, nos termos aqui propostos,
faz-se necessário uma apropriação cênica dos distúrbios como qualidade própria da cena e
não como adjetivo conferido à personagem por meio das condições apresentadas pelo ator.
corporais anteriormente citadas, como o happening e a body art, que têm por característica
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ACERCA DA DENEGAÇÃO
o cerne da sociossemiótica descrita em Pavis (2003). Caso se concorde que o teatro é a arte
instante esta ilusão e colocando-se (por que não?) como recurso de distanciamento, ainda
que involuntário, para o espectador. Considerando que todo signo assenta-se e está inserido
se contrapor às condições reais do ator ou serem influenciadas por elas, como ocorre no
caso dos signos não intencionais. A diferença é que as singularidades extremadas, por não
comunicação teatral tradicional, de cunho mimético, a ilusão buscada pela cena estimula
denotando à cena um cunho imaginário: “o que figura no lugar cênico é um real concreto,
objetos e pessoas cuja existência concreta ninguém põe em dúvida. Se, por um lado, eles
são seres de existência indiscutível (presos no tecido do real), por outro, se acham ao
mesmo tempo negados, marcados pelo sinal de menos” (Ubersfeld, 2005, p. 21). Mesmo o
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rompimento da quarta parede e as transformações contemporâneas na forma e na
concepção do lugar cênico foram incapazes de alterar essa distinção básica entre ator e
espectador, pois uma vez teatralizado o objeto ganha um caráter onírico, de “não-
realidade”. Da mesma forma que, para a psicanálise freudiana, uma pessoa sabe quando
está sonhando (ainda que não queira), no teatro o espectador tem a consciência constante
da separação entre as leis que regem o seu cotidiano e as leis próprias do fato teatral, sendo
Cabe dizer que, dentre os sentidos aferidos ao termo, num âmbito geral está o de
concordância com algo. Ou seja, mesmo admitindo a cena como lugar de imitação e de
uma vez que essa singularidade (um corpo parcialmente inerte ou sem algum dos
61
Il apparaît alors comme une évidence que ce qui est denié c´est le caractère iconique du signe scénique :
on ne nie pas du tout la présence réelle du comédien, sa pratique de comédien, pas plus qu´on ne nie celle du
danseur ou du funambule ; le comédien est un homme qui se livre à une pratique artistique réelle, que le
spectateur reçoit comme telle, dans le temps même où il répresente (iconise) une activité imaginaire ; et c´est
cette derniére qui est deniée.
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membros, uma reação ou comportamento imprevisível, etc), por seu caráter naturalmente
Enquanto outros signos não intencionais, como a tonalidade da voz ou a estatura do ator,
realidade cênica. Talvez mais do que qualquer outro signo cênico, a singularidade do corpo
e do comportamento opera sobre o sentido não como expressão de algo conhecido, mas
A ilusão cômica, de Corneille, Ubersfeld declara que o “teatro no teatro”, assim como o
sonho de um sonho, opera por uma dupla denegação, dizendo respeito não ao real, mas ao
verdadeiro: o ato de assistir ao teatro é o ato do próprio espectador, assim como o ato de
sonhar é o ato do próprio sonhador. Dessa maneira, muda-se o signo da ilusão, denunciada
"em todo o contexto cênico que a envolve” (Ubersfeld, 2005, p. 25). Ou seja, se numa cena
do real concreto pelo real cênico, inscrita sob a forma m = -x, na cena envolvendo a
No caso, porém, de uma singularidade extrema apresentada pelo ator, não será o
teatro a se colocar dentro do teatro, mas a realidade a se interpor entre o real e o teatro,
podendo o real cênico simplesmente não dar conta de subtrair o real concreto: as condições
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do ator sobressaem e colocam-se entre a cena e o espectador. Assim, se no teatro dentro do
teatro, a realidade cênica é denunciada por uma segunda realidade cênica, colocada de
fundo e que, por sua vez põe a nu e se identifica com a situação vivida pelo espectador, a
performance onde, abolida a questão da alteridade e não significando outra coisa senão a
interpor entre o espectador e um evento que não se preocupa em iludir mas, ao contrário,
renega essa ilusão para ser ele mesmo – o evento – objeto do real e do concreto. É por esta
razão que pode ser mais sensato atribuir ao ator que apresente distúrbios corporais ou de
condição lhe permite transitar, naturalmente diversa daquela em geral ocupada por um ator
comum.
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CAPÍTULO 3
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A POESIA IMAGÉTICA DE ROBERT WILSON
Tratar aqui sobre o teatro de Robert Wilson como um todo seria não apenas
contemporâneo do teatro, a cena criada por ele sofreu muitas transformações, deixando,
Dessa maneira, se faz importante um enfoque específico sobre o período em que o diretor
norte-americano inicia suas atividades como encenador e criador, que é também quando
justamente conhece e passa a conviver com um universo que se pode intitular “anômalo”,
acabando por sofrer irreversivelmente a sua influência. É possível dizer mesmo que, no
ocidental.
Entre as décadas de 1960 e 1970, depois de atuar como pintor, arquiteto e interior
Antes disso, uma outra experiência já o tinha levado a perceber as possíveis interações
entre a cena e certas disfunções que, ao contrário de serem nocivas, poderiam contribuir na
elaboração de uma linguagem e de uma estrutura espetacular bastante própria. Trata-se das
ajudado a superar um problema de fala – Wilson era gago – que trazia desde a infância. O
trabalho despertou nele o interesse pela prática terapêutica com outros tipos de distúrbios,
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o que lhe permitiu acesso a um programa de exercícios especialmente voltado aos estágios
primários da atividade física humana, cujo intuito seria ativar determinadas células
cerebrais. Isto foi o que lhe deu base para um entendimento mais apurado com relação às
possibilidades de expressão presentes numa mente cuja percepção de mundo fosse alterada
por alguma ocorrência de ordem intelectual ou psicológica, como foi o caso do autismo de
problema de fala que teve parece ter contribuído em muito para suas opções de trabalho, já
silenciosa com o mundo, tomando gosto e se expressando pelo desenho e pela pintura,
aproveitamento criativo àquilo que, aos olhos da sociedade, seria motivo de rejeição ou, no
mínimo, considerado assunto de ordem estritamente médica. Ou seja, aos seus olhos, o que
processado, num efetivo elemento de expressão e de linguagem. Isso constituiu, para ele, o
construção, o que passa por uma percepção não autoritária do processo criativo, com maior
sentido ao espectador.
trabalhar com artistas que se tornaram fundamentais em sua vida no teatro, como o pintor
Martha Graham e Alwin Nicolais, dentre outros. Mas foram, sobretudo, os happenings que
lhe chamaram a atenção. E Wilson identificou-se prontamente com aquelas novas formas
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diversas linguagens. Assim, em 1967, ele apresentava espetáculos experimentais com a
criados com o intuito de provocar o espectador, realçando muito mais o instantâneo do ato
estrutura simples, com o uso do que então se denominava expressão corporal, praticamente
exercícios não-verbais, mas já com o uso de projeções de filmes e slides. É quando procura
reforçar a importância do ato de estar em cena ao invés de representar: “No início, o que
me interessava não era ver uma exposição de virtuosismo em cena. Eu desejava ver
pessoas serem elas mesmas, e eu queria encontrar uma situação na qual elas se sentissem à
vontade para que, em seguida, pudessem estabelecer uma relação com o público” (Féral,
1998, p. 335)62. Também como professor e, mais tarde, presidente da Byrd Hoffman
Foundation, Wilson deixava claro seu propósito de organizar situações em que pessoas
À parte as várias performances produzidas nessa época, seria o espetáculo The king
of Spain (O Rei da Espanha) que marcaria o início de uma nova fase no trabalho do diretor.
Mais tarde inserido como segundo ato de The life and times of Sigmund Freud (A vida e a
época de Sigmund Freud), estreado em 1969, The king of Spain tinha produção grandiosa,
em que, por meio de atividades silenciosas, um elenco gigantesco criava figuras e imagens
que mais tarde se tornariam a marca do trabalho de Wilson. À época, Raymond Andrews já
olhar do surdo) e, no ano seguinte, Ouverture, espetáculo realizado como parte de uma
extensa festa organizada pela Fundação Byrd Hoffman. As apresentações deste último
62
Au début, ce qui m’intéressait, ce n’était pas de voir un étalage de savoir-faire sur scène. J´avais envie de
voir des gens être eux-mêmes et je voulais trouver une situation dans laquelle ils se sentiraient à l´aise pour
qu´ensuite ils puissent établir un rapport avec un public.
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ocorreram durante uma semana, em dois momentos do dia: das 6h às 9h e das 18h às 21h.
Posteriormente, o espetáculo foi trabalhado até atingir a duração de uma semana ou, mais
precisamente, 168 horas, tendo sido o título alterado para KA MOUNTAIN AND THE
neste formato no Festival das Artes de Shiraz, no Irã. Após a entrada de Christopher
Knowles, o grupo produziria, dentre outros, The life and times of Josef Stalin (A vida e a
época de Josef Stalin63), em 1973, A letter for Queen Victoria (Uma carta para a Rainha
Para Wilson, não é função do artista fornecer respostas, mas levantar questões: “O
refletir sobre ele. Se você se comporta como se tivesse o controle de tudo, então o trabalho
está terminado. Ele vive, ele vive através de sua multiplicidade de formas e significações”
(Pavis, 1996, p. 101)64. Assim, ele passa a trabalhar sobre aquilo que, embora captado
pelos sentidos, é geralmente renegado pela razão, que o supõe como não-prioritário nem
necessário. É o que ocorre, por exemplo, em certos momentos do cotidiano, quando vários
eventos acontecem e são percebidos, por um indivíduo, ao mesmo tempo e das mais
diversas formas (audição, tato, olfato, visão). Embora não componham uma sequência
lógica e sejam descolados entre si, esses acontecimentos acabam interligados na mente da
pessoa, como na edição de um filme, compondo algo novo, concreto e real. Wilson busca,
então, o uso de recursos que provoquem esse tipo de percepção e, por meio da destituição
espectador. Aos poucos, desenvolve experiências e incorpora recursos cada vez mais
63
Visando evitar a censura da época, a peça foi apresentada no Brasil com o título de A vida e a época de
Dave Clark, nome de um obscuro criminoso da costa oeste dos Estados Unidos.
64
Theatre should not interpret, but should provide us with the possibility of contemplating a piece of work
and reflecting on it. If you behave as if you’ve grasped everything, then the work is finished. It lives, it lives
through its multilayered forms and meanings.
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Scarpetta, a arte de Wilson é uma espécie de máquina que opera na dissociação das
tradução seria efetuada através de dois processos, denominados por Freud condensação e
deslocamento, sendo que o primeiro instituiria um único símbolo como representante para
Assim, para Counsell, as figuras apresentadas nos trabalhos de Wilson (cowboys, naves
através da mídia visual de nossa cultura: “Elas são, portanto, altamente ressonantes,
65
Il touche là une expérience qui, dans son relief hallucinatoire, est peut être celle d’une folie, d’une
schizophrenie fondamentale, du fait qu’au bout de l´expérience l’unité, l’identité, l’integrité n’existent plus...
Mais si je dis ‘folie’, c’est ne pas pour dire que le théâtre de Wilson serait un tháâtre ‘de fou’ : au contraire,
la mise en relief de cette dissociation est tou a fait maitrisée, controlée. Et si angoisse il y a, elle ne va pas
non plus sans une certaine juissance.
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trazendo inevitavelmente consigo uma abundância de idéias e associações” (Counsell,
1996, p. 184)66.
cena (cores, luzes, movimento, etc) rendeu às obras de Wilson o título de “teatro de
imagens”. Essa preocupação, entretanto, é motivada pelo entendimento que o diretor tem
das possibilidades expressivas de outros meios que compõem a cena, e que podem
significar tanto quanto as palavras: “O teatro é também algo que se vê. Por conseqüência, a
idéias. É uma parte do todo, não apenas um texto que é dito ou uma língua que é falada,
mas igualmente uma linguagem que é constituída de signos e de sinais visuais” (Féral,
1998, p. 343)67.
Referindo-se às imagens como formas mitificadas que não portam a ação se não
como imaginação virtual, Lehmann (2002, p. 123) imputa ao teatro de Robert Wilson a
entre mito e entretenimento resultou positivamente: “Wilson se situa numa longa tradição
do teatro barroco, aos efeitos da ‘máquina’ do séc. XVII, das máscaras jacobinas, do
sempre, sem respeito mas com efeito, inserem a significação profunda e a atração de
66
They are therefore highly resonant, inevitably bringing with them a wealth of ideas and associations.
67
Le théâtre est aussi quelque chose qu’on voit. Par conséquence, le langage du corps, de la lumière, des
décors, ou l’architecture de l’espace communiquent aussi des idées. C’est une partie du tout, ce n’est pas
seulement un texte qui est dit ou une langue qui est parlée, c’est également un langage constitué de signes et
de signaux visuels.
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clichês míticos em seu repertório” (Lehmann, 2002, p. 125)68. Se, por um lado, no teatro de
complementar com um sentido as informações que lhe chegam. É o que Bentley (1988)
qualifica como concepção agonística da cena, que supõe um embate para os sentidos, no
qual é o espectador quem arbitra: “Se por em cena [encenar] é empregar signos, jogar é
deslocar os signos, instituir, num espaço e num tempo definidos, o movimento, e até
Encontros singulares
apenas à questão terapêutica do trabalho teatral com elas, mas, sobretudo à percepção de
apropriado e expressado pela cena. Seria ele mesmo que, pouco depois, admitiria o papel
68
Wilson se situe dans une longue tradition du théâtre baroque à effets, de la ‘machine’ du XVIIe. Siècle, des
masques jacobéens, du théâtre-spectacle victorien jusqu’au show et au spectacle de cirque moderne qui,
depuis toujours, sans respect, mais avec effet, inséraient la signification profonde et l’attraction de clichés
mythiques dans leur répertoire.
69
Si mettre em scène c’est mettre em signes, jouer c’est déplacer les signes, instituer, dans un espace et un
temps definis, le mouvement, voire la dérive, de ces signes.
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movimentação do corpo que respondem diretamente às energias e
xxvii).
extremamente ricas com artistas e criadores cuja percepção de mundo passava ao largo do
que se poderia convencionar como “normal”. Tal fato incidiu de forma inovadora sobre o
seu trabalho, conforme observa Counsell: “Talvez o meio mais bem sucedido empregado
desses artistas foi o pintor Raymond Andrews, menino surdo, pelo qual Wilson
desenvolveu especial afeição. Até que se conhecessem, Andrews nunca tinha ido à escola.
Excluído do mundo e de suas normas estéticas, ele acabou desenvolvendo as suas próprias
ele. Era curioso, ele via por vezes coisas que eu não via,
70
Perhaps the most successful means Wilson employed to generate such idiosyncratic
expression/interpretation were his collaborations with artists who were sensorely or intellectually impaired,
and who moreover conceptualized the world in unique ways.
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consciência. As primeiras peças escritas com Raymond foram
principal resultado dessa cooperação foi um espetáculo que teve a participação de uma
centena de atores e cenários gigantescos, montado em 1970. Em grande parte baseado nos
desenhos e visões de Andrews, que também atuava, Deafman Glance (“O Olhar do
Surdo”), tinha duração de três a quatro horas e chamava a atenção não somente por sua
grandiosidade e belas imagens, mas também por seu sentido hermético e inacessível ao
71
Une des influences les plus profondes sur mon travail fut ma rencontre, en 1967, avec Raymond Andrews,
un enfant afro-américain sourd-muet âgé de treize ans. À l'issue d'un long procès, j'ai pu l'adopter. Mon
premier travail important pour le théâtre a été écrit en collaboration avec lui. C'était curieux, il voyait
souvent des choses que je ne voyais pas, préoccupé que j'étais par l'écoute. Il percevait des gestes, des
mouvements des yeux, un langage dont je n'étais pas conscient. Les premières pièces écrites avec Raymond
furent silencieuses.
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Cena de Deafman Glance. Foto: Ed Grazda , 1970
menino, o próprio Andrews, presente em cena: um coelho branco juntamente com três
mulheres que carregam bebês, atores portando chapas de vidro brilhantes e outros que
dançam ou realizam outras atividades. Counsell descreve: “Em diversos pontos a cadeira
na qual ele se sentava movia-se como se por suas próprias forças, finalmente voando pelo
Em 1973, quando iniciava os trabalhos para a montagem de The Life and Times of
Joseph Stalin, Wilson ouve Emily likes TV, uma gravação que lhe foi passada por um
antigo professor. Nela, as palavras giravam em torno de um mesmo tema que, devido às
codificado, como uma peça musical. A voz era de Christopher Knowles e o material
72
At several points the chair on which he sat moved as if under its own power, finally flying into the air so
that Andrews hovered over the scene, surveying his imagistic domain.
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baseava-se, sobretudo, em estruturas lingüísticas geométricas por ele desenvolvidas.
Knowles era tido como uma criança autista, cujos gestos em geral eram descoordenados e
a fala não oferecia nenhum sentido à primeira audição. As causas para tais dificuldades,
relações” (Counsell, 1996, p. 191)73. Interno de uma escola localizada ao norte de New
York, ele demandaria um novo esforço de Wilson até conseguir trazê-lo para viver
consigo, tornando-o um colaborador, como havia feito com Andrews. Seria com Knowles
que Wilson viria a realizar seu primeiro trabalho com a utilização de palavras, produzindo
juntos diversos espetáculos em que Knowles aparece em cena ou tem sua voz e seus textos
utilizados: The days before (1999), Parzival (1987) e $ Value of Man (1975), dentre tantos
outros. Em Spaceman (1976), por exemplo, sua terceira peça em colaboração com Wilson,
ele datilografava enquanto os seus textos apareciam num dos diversos monitores de TV
73
Brain-damaged at birth, Knowles had difficulty functioning in the social word but possessed an
extraordinary ability to conceptualize systems, elements placed in complex interrelationships.
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A fim de estimular criativamente Knowles, levando-o a travar consigo um diálogo
diversos dos trabalhos que criaram. O recurso seria a evocação de estágios primários do
comunicação pudesse funcionar como estímulo para uma interação entre ambos. Assim,
numa peça longamente intitulada Um homem louco, um gigante louco, um cachorro louco,
uma urgência louca, um rosto louco, estreada em maio de 1974, a frase “Emily likes TV”
comumente utilizada por ele. Impressionado com sua capacidade de romper os códigos e as
Wilson expressou diversas vezes seu desejo em que os trabalhos com Knowles fossem
Chris fala também por modelos ópticos. Por exemplo, ele começa por
uma palavra ou uma frase, alongando-a até que isto resulte numa
pirâmide visual; depois ele encurta até recair numa palavra ou numa
depois abaixa a mão dizendo: ‘Olá! Como vai?’; depois ele coça a
cria assim uma nova linguagem, e uma vez que nós assimilamos essa
10).74
74
Chris parle aussi en modèles optiques. Par exemple, il commence par un mot ou un phrase qu’il allonge
jusqu’à ce que ça donne une pyramide visuel; puis il raccourcit jusqu’à retomber sur un mot ou une phrase.
Il parle visuellement. Un exemple : il se gratte le sourcil, puis il rabaisse sa main en disant : ‘Hello!
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Wilson mantém uma relação de reconhecimento e de apropriação com respeito às
impedimento para que essas pessoas, de alguma maneira, exercitem a cena. Para ele, é
preferível o uso concreto de suas condições a ver atores se fazerem deficientes em cena,
ainda que admitindo a evidente limitação que isso traz em relação a determinadas questões:
"Não são tipos comuns e eles não poderão jamais ser atores na Schaubühne, com um
funcionamento do tipo: 'Bom, você sai, faz isso, depois senta e faz assim'" (Leschig, 1980,
p. 14)75. Numa entrevista76, cita Raymond Andrews como exemplo de alguém cujo
apreciação dos sons, justamente em função de não ouvir. A experiência com Andrews
torna possível a percepção do espaço em torno dos sons. Assim, ele insiste no fato de que
as dificuldades podem ser benéficas e servirem como ponto de partida para o processo
criativo, como ocorria nas atividades com as crianças na Fundação Byrd Hoffman e como
sucedeu com Andrews e Knowles. A disfunção, para ele, seria como a ponta de um
explorados.
Comment ça va?’ ; puis il se gratte le sourcil, rabaisse sa main en disant : ‘Hello! Comment ça va?’; puis il
se gratte le sourcil et rabaisse sa main en disant : ‘Hello! Comment ça va?’. Il crée ainsi un nouveau
langage, et une fois que nous avons assimilé ce langage, il brise le code et en refait un autre.
75
Ce ne sont pas des types moyens et ils ne pourront jamais être comédiens à la Schaubühne avec un
fonctionnement du genre: 'Bon. Tu sors, tu fais ci, et puis tu t'assois et tu fais ça'.
76
Entrevista cedida à Revista “Le monde de la musique”, em trecho publicado no jornal “O Estado de São
Paulo”, de 18/06/1998, p. D1.
130
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Knowles, seu procedimento inicial se restringia a uma observação minuciosa do
procedia de maneira muito mais verbalizada e sonora – embora não num sentido
parece, entretanto, embora tenham sido dois momentos bastante distintos quanto aos
Wilson passou a desenvolver uma prática que se tornou modelar para a maioria deles.
maneira que cada uma das versões ganhasse formas e composições semelhantes. Parte da
músicos, cantores, etc) que atuaria no espetáculo. Em diversos casos, eram recrutados
também performers em condições singulares, como ocorreu em The life and times of Josef
pela justaposição e pela reincidência com que tais eventos se davam. O uso da
multiplicidade possibilita a que Wilson não imponha uma visão unilateral à platéia,
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paisagem onde o olhar é estimulado a vagar de acordo com o interesse de quem observa.
Seria o mesmo que ocorre quando se contempla uma exposição, em que algumas obras são
mais atentamente observadas do que outras, resultando num fenômeno denominado pela
The Life and Times of Joseph Stalin. Foto: Carl Paler © 1973
espetáculos, é natural que as pessoas pisquem mais – muitos chegam a cochilar ou dormir
–, o que é uma espécie de ajustamento, um equilíbrio de ritmos. Para ele, o ato de piscar
(neste caso, demoradamente) modifica a percepção, fazendo com que as imagens interiores
do espectador se misturem com as imagens exteriores que lhe chegam, estimulando sua
única para o espectador, pois que lhe permite sonhar de olhos abertos, fato denominado
psicólogo Ira Progoff (apud Galizia, 1986, p. 155): "Esse fluxo, produto da faculdade da
sob uma forma após outra. O imaginário não é integrado, mas movimenta-se sem nenhum
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princípio coerente aparente, até formar-se um modelo graças ao fluxo do próprio
obra (ou "esqueleto") se compõe, sobretudo, pelo recurso da justaposição, cuja maior
(colagem) iniciada nas artes plásticas, em que, apesar de sua transferência de um contexto
para outro, o material (imagem, objeto, forma) pode manter o seu sentido original, levando
77
Je pense abstraitement. Je commence généralement par une structure ou une forme complètement
abstraite. Et si, dans cette forme ou cette structure, je peux remplir les blancs de manières très diverses,
parfois narratives, le point de départ reste toujours ce squelette abstrait qui porte la chair de l'oeuvre. Puis
cette chair est elle-même; recouverte par une sorte de surface, que l'on peut appeler la peau. On a donc la
peau, la chair, le squelette... Je crois que c'est dans ce remplissage, précisément, que viennent se loger des
éléments très personnels – autobiographiques.
133
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de elementos heterogêneos pertencentes a experiências diferentes" (Ubersfeld, 1996, p.
301)78. Essa descontinuidade pode ganhar vários sentidos, que vão desde o deslocamento
insere o que chama knee plays (peças-joelho), tidas como entreatos. São passagens
um conteúdo e significação próprios que giram em torno de temas variados, como uma
todas as ações, entradas e gestos que compõem o ‘enredo’ acaba por assumir grandes
proporções, não importando tanto como elas ocorram desde que se constituam como
atividades “em si” e se tornem primordiais visual e teatralmente. A esse respeito, Counsell
(1996) observa a extrema preocupação do diretor para com o detalhe, sendo capaz de
estrutura per se. Cenicamente multifacetado, o teatro de Wilson pode ir desde o silencio
instância, o que ocorre é uma alteração no diálogo e na relação entre os atores que, antes de
78
Discontinuidad del espacio al mismo tiempo que discontinuidad del tiempo: uso de espacios de diferente
escala, caleidoscopios de imágenes simultáneas o sucesivas que funcionan como collages de elementos
heterogéneos pertenecientes a experiencias diferentes.
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interrupção e o esquecimento que se constituem como esforço de linguagem podem, na
verdade, ganhar tal status, com um senso próprio mesmo que isolada ou
Christopher Knowles, que possuía um lesionamento no cérebro, sobre a obra de Wilson foi
tão grande quanto a de Raymond Andrews, o garoto surdo. Segundo o diretor, Knowles
tem obsessão por ordem e seus escritos uma estrutura matemática, perfeitamente definida,
que, quando ditos, são capazes de criar imagens poéticas. Trata-se de fragmentos de uma
palavra que podem ser ditos rapidamente, repetidos num ritmo normal ou de trás para
frente, o que acaba por criar um padrão visual na mente daquele que ouve.
que então pode ser usado para criar padrões de diferentes tipos.
192).79
79
In using language in anti-sensical ways – breaking the usual ties between a sound/image and its meaning,
or between one word and those which follow it grammatically – Knowles and Wilson elude the formulations
of the exterior screen. In doing so, however, they reduce word to raw phonetic or visual material which can
then be used to create patterns of a different kind. Knowles and Wilson do not structure their words to
generate new meanings; rather, they strip words of their usual meaning in order to build new structures.
135
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Acreditando que há, na linguagem, uma espécie de energia, um elemento que
uma palavra, respondemos ao seu som. Conclui, então, que algo muito básico e universal
existe na linguagem, tornando-a passível de ser compreendida em qualquer lugar. Para ele,
a comunicação pode perfeitamente ocorrer nesse nível e o teatro pode ser a instância
Concebida e dirigida por Robert Wilson, com música de Philip Glass e textos de
Christopher Knowles, Lucinda Childs e Samuel Johnson, Einstein on the beach inaugurou
uma abordagem completamente nova para o teatro musical no Ocidente. Estreada em 1976,
é tida como a ópera mais influente do período pós-guerra, cuja estrutura de trabalho,
envolvendo recursos tecnológicos, teve uma precisão quase matemática. Para Wilson, uma
peça sem historia e sem heróis, apenas imagens, música, telas, movimentos precisos e
80
Il découpe dans le noir ambient un corps amputé, segmenté, demembré, ou bien, selon l´angle de vue
adopté, un organe fétichisé.
81
Ficha Técnica: Concepção e direção de Robert Wilson. Músicas e letras: Philip Glass. Textos em off:
Christopher Knowles, Lucinda Childs e Samuel Johnson. Coreografia: Andrew de Groat. Iluminação:
Beverly Emmons. Elenco principal: Lucinda Childs, Sheryl Sutton, Samuel Johnson.
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mecânicos. Uma ópera envolvendo cantores, atores e dançarinos num trabalho a partir de
“energias visuais”.
maioria das grandes obras de Wilson, Einstein on the beach utiliza performers diversos
Sutton, que aparecem em diversas outras montagens de Wilson. Elas vestem uniformes
masculinos, que aparentam ser de estudante, com camisa branca de mangas curtas e calças
com suspensórios e, em vários momentos, aparecem ao lado de uma cadeira alta de metal.
Muitos outros atores usam o mesmo figurino. O violinista solo que permanecerá quase
tanto espevitados. Logo no início, três notas descendentes de teclado, vozes recitando e um
poema en inglês e o coro solfeja as mesmas notas descendentes do teclado. Essas ações são
repetidas por quase dez minutos, com poucas variantes, como a ausência de alguma nota
Imagens de trens e relógios incidem em várias cenas. Numa delas, Sutton circula
pelo palco em diversas direções, com os braços esticados. Com ela, diversos atores se
ininterruptamente. Numa passagem seguinte, Sutton e Childs estão sentadas, uma ao lado
simular o contato com um teclado de uma máquina ou piano. A luz recai em dois focos
sobre as cadeiras, num recorte retangular. Em movimentos contínuos, as atrizes saem das
cadeiras e, sempre lentamente, dirigem-se para frente e descem até tocarem os cotovelos
no solo, com movimentos de braço e mãos quase ininterruptos. Tornam a erguer-se, indo
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para trás e retornando às cadeiras. Enquanto se movimenta, Lucinda Childs articula
palavras e frases repetidas. Levantam-se e vão ao solo novamente. Sobre esta cena, Wilson
cogitam uma relação com uma mesa, com um candelabro, com pedras. As frases ditas pela
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Num outro momento, Einstein está sentado, portando seu violino, enquanto ao
fundo Lucinda Childs está sentada na cadeira alta de metal. Um outro ator aproxima-se
dela, vestido com o mesmo uniforme e, aparentando entretanto ser um professor. Parte,
uma lua cheia, constante, ao fundo. De repente, a música aumenta a intensidade, o tom e o
ritmo; do chão, entre fumaça, surge um grande relógio redondo, com numerais romanos.
Ele traz, embaixo, presa a ele, uma caixa com paredes transparentes, onde está aprisionado
um ator, que é levado para o alto até desaparecer, entre fumaças. Então, luzes de néon se
acendem, enquanto um outro ator entra, dançando com duas lanternas nas mãos. Seus
movimentos são rápidos e desajeitados. Ele circula por um grande espaço, indo ao fundo e
voltando, enquanto as luzes em néon piscam e a musica continua num ritmo frenético.
Posicionado numa estrutura que lembra uma corte, o coro canta enquanto, à parte,
Sutton pronuncia repetidamente uma frase. Seu ar é impávido e sua voz soa friamente,
como numa sentença. O coro entoa sons graves e monocórdios, realizando uma vez mais
movimentos similares de mãos, dedos e braços. Mais adiante, Lucinda Childs aparece à
frente do palco, realizando gestos largos e leves, enquanto fala numa voz tranqüila. Ao
mesmo tempo, um casal vestido de presidiários está atrás de grades onde, em torno de dois
abertos e ríspidos. Eles circulam pelo espaço, compondo um dos poucos momentos em que
uma relação direta entre os atores parece existir. Num ensaio desta cena, Wilson aparece
ditando milimetricamente aos atores todos os movimentos a serem realizados, regidos por
amplos de Childs, à frente. A figura de Einstein permanece em cena todo o tempo, sentado
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Cena do casal de presidiários, em Einstein on the beach.
Foto: Fulvio Roiter, 1976
Numa das knee plays, em contraste absoluto com o excesso de elementos das outras
cenas, o palco aparece limpo, vazio. Dançarinos trajando colants escuros vão entrando e
saltam pelo espaço, numa coreografia sincronizada que evolui e dura alguns minutos.
Numa cena seguinte, de novo as duas mesmas duas atrizes aparecem agora deitadas numa
Um coro masculino está à frente. Ouve-se vozes articuladas, enquanto o performer trajado
de Einstein toca o seu violino. Os integrantes do coro, cada um com uma escova, mostram
os dentes e passam a fazer gestos de escovação diante da boca. Ao final, juntamente com o
fim do canto, fazem mostram a língua, numa clara alusão à clássica imagem de Einstein.
chão, com os cotovelos à frente, tocando o solo. Um quadrado de luz incide sobre cada
uma delas. Ao fundo, está projetada uma imagem gigantesca de montanha e mar, feita em
contraste, em preto e branco. A imagem sobe até desaparecer. O som é grave e continuo e
há um tom geral de azul. Entra em cena um ônibus desenhado em tamanho normal, com
um ator dentro dele, no papel de condutor. Os faróis estão acesos e iluminam as atrizes.
Violino.
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Em Einstein, a musica de Philip Glass tem importância capital, tendo sido o
primeiro espetáculo de Wilson a contar com uma trilha sonora completa, do inicio ao fim
do espetáculo. Os atores usam microfones sem fio, o que valoriza suas vozes, colocando-as
na mesma intensidade dos instrumentos musicais utilizados, como violino, órgão elétrico e
fato de que sua estrutura está sempre aparente para quem ouve. É música sobre si mesma,
uma espécie de catálogo de peças rítmicas que contribuem para a estrutura global da peça”
três unidades temáticas dominantes: um trem, uma corte e uma nave espacial. Para
Counsell (1996), se algumas das imagens apresentadas evocam uma óbvia relação com o
Wilson e sua equipe, como é o caso da cama, do julgamento e do trem. Entretanto, Galizia
(1986) afirma que o primeiro tema está relacionado ao trem que Einstein brincava quando
criança e que, mais tarde, utilizaria como ilustração para sua teoria da relatividade. O
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Einstein on the Beach. Foto: Fulvio Roiter, 1976.
para seu trabalho que, basicamente, diria respeito ao tempo. Le Goff (1996), em sua
reflexão sobre os tempos passado e presente, alude a Émile Benveniste, citando a distinção
por ele feita entre três tempos situados em domínios diversos, sendo eles: o tempo físico, o
redutível ao calendário, enquanto o último diria respeito ao tempo do locutor, centrado “no
presente da instância da palavra”. Assim, numa analogia primária, poderia se dizer que a
meio capaz, se não de suspender sua percepção dos demais tempos, levá-lo a transitar de
Outra questão a ser considerada está relacionada ao espaço, já que será justamente a
partir dos estudos desenvolvidos por Einstein que este conceito se altera. É quando se
espaciais para se desenvolver a idéia de que ele se dá como função da matéria (da energia,
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entendimento, segundo Duve (1982), que a escultura minimalista, por exemplo, iria se
assentar ao dar a sensação de uma implosão do espaço, onde o objeto atua metaforicamente
como um "buraco-negro". Neste sentido, Einstein on the beach joga intensamente com a
que não pertencem nem à mesma temporalidade, nem ao mesmo mundo. Ainda o
82
La representación está espacialmente descentrada por la fragmentación del espacio e la multiplicidad de
las pequeñas zonas significantes. (...) Se trata de mostrar el espacio en desequilibrio, sin coordenadas
tranquilizadoras, e incluso, desprovido de centro y de sentido, en la doble acepción de este término.
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O TEATRO ANÔMALO DE PIPPO DELBONO
condições em que isto se dá, pode se dizer que o italiano Pippo Delbono é a síntese literal
de uma cena contaminada. O teatro que realiza está intrinsecamente ligado à sua própria
história de vida e, embora com uma sólida base técnica adquirida no contato com
pessoais – e ligadas também à sua saúde – que ele passa a descrever uma cena
colaboração artística com Pepe Robledo, ator proveniente do "Libre Teatro Libre", de
Depois dos espetáculos Il tempo degli assassini, Morire di musica, Il muro, Enrico
que marca o início de um trabalho cada vez mais aberto, que abole as fronteiras entre arte e
vida, entre atores e pessoas comuns, provenientes de realidades diversas. Nas criações que
uma aventura humana e artística com seu fiel grupo de colaboradores, pessoas capazes de
de junho), solo autobiográfico que lhe rendeu mais uma publicação na França (vide
Delbono, 2008), o diretor italiano fala de sua trajetória no teatro, narrando fatos de sua vida
Scène Ouverte, em dezembro de 2006, a peça foi criada a partir de uma conferência que
lhe foi encomendada sobre o tema do amor. As histórias são perpassadas por fortes
momentos de sofrimento, paixão e uma constante busca pela essência das coisas, com
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temas insistentemente reiterados, como a raiva e o desprezo por certos valores do mundo,
que parecem dizer respeito, ainda hoje, às razões que o movem à criação. Com humor –
uma constante em seu trabalho –, fala de sua primeira participação cênica, ocorrida ainda
seio de uma família extremamente católica. Homossexual, ele conta que depois de uma
grupo Farfa, dirigido por Iben Nagel Rasmussen, por sua vez ligada ao Odin Teatret, de
Eugenio Barba. A experiência da dupla se orientou para a busca de uma linguagem que
intitulado Il tempo degli assassini (O tempo dos assassinos), estreado em 1986. Já naquele
trabalho, uma liberdade extrema com relação a uma dramaturgia lógica, nele se alternando
a dança, ações físicas e textos de autores diversos, dentre os quais, Oscar Wilde. Mais
tarde, em turnê pela Alemanha, eles encontram Pina Bausch, com quem trocam
Anos depois, em 1989, ao retornar de uma excursão ao México, tendo que realizar
percepção da realidade misturada às sensações causadas por seu estado doentio, vive um
tempo de angústia, com altos e baixos emocionais. Tais condições o levam a uma
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meu corpo. Então, pouco a pouco, comecei a amar este novo corpo,
incorpora os participantes das oficinas desenvolvidas em cidades por onde passam. No ano
1995, apresenta La rabbia (A raiva), espetáculo dedicado a Pier Paolo Pasolini. Das crises
diferenciada da vida e assume uma nova postura diante do que já vinha descobrindo no
teatro. Nessa época, desenvolveu o hábito de escrever seus objetivos em pedaços de papel.
Num deles consta: "Viverei a minha vida para comunicar através da arte a força que existe
Guerra, espetáculo criado um ano mais tarde, é quase um complemento, em que atua
praticamente o mesmo grupo, num aprofundamento das relações entre arte e vida. As
Genti di plastica (Gente de plástico), em 2002, Urlo (Urro), em 2004, e Questo buio feroce
(Esta escuridão feroz). Paralelo às criações teatrais, Pippo Delbono se dedica também ao
83
Lo spettacolo tocca quel mondo della differenza e dell´essere fuori, ma ancora con un linguaggio di danza
e teatro, poi io per primo ho iniziato a trovarmi incapace di ballare e a sentire una debolezza sul mio corpo.
E quindi a poco a poco ho iniziato ad amare questo nuovo corpo, ma forse parallelamente ad allontanarmi
sempre di più dalla danza tradizionalmente intesa.
84
Vivrò la mia vita per comunicare attraverso l´arte la forza che esiste dentro ognuno di noi.
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cinema, onde o documentário Guerra (2003), filmado na Palestina, e Grido (Grito), de
2006.
sensorial, no processo de trabalho adotado por Delbono e sua Companhia há uma questão
crucial que o distancia das práticas de caráter social. Foi devido a questões de âmbito
extremamente pessoal, que ele foi sendo levado ao encontro de pessoas que, hoje,
pelas quais passou fizeram com que ele tivesse, no teatro, uma prática necessária, vital. E
foi isto que o aproximou de seres que, como ele mesmo passou a fazer, buscavam na
extraordinários, que acabaram por complementar uma pràtica que ele já adotava no teatro –
com a diversidade: “Falam com tristeza da guerra aqueles que a vêem nos jornais ou a
vivem de longe. É o mesmo com aqueles que falam de deficiência em relação aos
qualquer outra coisa. Assim, vê o termo teatro para deficientes como uma visão burguesa,
a mesma capaz de sacrificar o sagrado pelo conforto: “Alguns dizem que eu faço ‘teatro-
85
Parlano con tristezza della guerra quelli che la guerra la vedono sui giornali o la vivono da lontano. È lo
stesso per quelli che parlano di handicap rispetto agli handicappati.
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quero trabalhar com deficientes, eu busco de outro modo fazer falar o teatro” (Delbono e
Dizendo nunca pensar o teatro como terapia, ele se dispensa da função de agente
social e cita Van Gogh, Artaud e Frida Kahlo, dentre outros, para enfatizar que a arte pode
ter uma relação natural com a chamada deficiência, nascendo justamente da falta, da
em singular consonância com todo o resto. E é justamente essa condição que lhe permite
uma conseqüente incorporação e uso cênico dos distúrbios e disfunções que resultam em
deficientes ou marginais. Em seu teatro, os atores devem ser capazes de evidenciar sua
história de vida, de exercitar uma auto-exposição. Não precisam representar papéis, mas é
86
Certains disent que je fais du ‘théâtre-handicap’. Comme si, il y avait, d´un coté le théâtre et de l´autre les
handicapés. Je ne souhaite pas travailler avec des handicapés, je cherche d´autre façon de faire parler le
théâtre.
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Em todos esses anos fui levado ao encontro de pessoas que, no teatro,
Em seus espetáculos, Delbono atua de forma ativa, intervindo na cena para fazer
uma citação ou dizer textos e passagens poéticas de autoria diversa. Trata-se de uma
prática extremamente pessoal, em que ele evidencia suas memórias, sua percepção de
mundo e referências pessoais, fato que se mostra decisivo na sua relação cênica com as
disfunções, já que o autor-diretor-ator viveu ele mesmo uma disfunção, contaminado que
foi pelo vírus HIV, o que torna a participação de pessoas em condições particulares ou
“fora de padrão” muito bem vinda. Além disso, as especiais condições desses indivíduos
acabam influenciando e sendo aproveitadas pela trupe que, em função das longas e
constantes turnês, divide grande parte do tempo, constituindo uma espécie de comunidade
bastante peculiar.
constituir a cena. Se, antes, havia já uma tendência em desenvolver uma dramaturgia
87
In tutti questi anni mi sonno proietato verso l´incontro con persone che nel teatro portassero vita. Personi
con corpi diversi: grassi, magrissimi, goffi, rigidi, pesanti, ma estremamente poetici. E poi ho scoperto che
alcuni di queste persone avevano dentro di sé naturalmente i segni di un linguaggio primordiale. Nei loro
gesti, nei loro movimenti ci sono dei principi drammatici: per esempio introducono delle sospensioni nei
momenti di massima tensione, dei cambi improvvisi di ritmo che producono una grande concentrazione nel
loro corpo d´attore e una grande attenzione nello spettatore.
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própria, calcada em experiências pessoais, isto se intensificaria a partir de então, levando-o
a adensar às suas narrativas não apenas o que era percebido, mas sobretudo como essa
percepção se dava. Ou seja, ao que dizer passa a se impor também as condições que lhes
são dadas para dizer. Sua fragilidade física, sua confusão mental, sua sensibilidade alterada
e sua nova prática religiosa, o budismo, passam a funcionar como canais diferenciados de
percepção:
corpo que não queria mais ser utilizado, uma outra maneira, em suma,
esse momento extremamente especial. Montado em 1992, o tema apresentado pelo texto
apenas reforçava o que de resto Delbono já vivenciava em seu dia a dia: um ato de fé e a
luta pelo que parecia impossível: "Então essa guerra se torna uma outra guerra, se torna a
guerra que esse homem realiza dentro de si mesmo" (Ghiglione, 2003, p. 53)89. Se para
Olivers Sacks (1995), as patologias podem ser capazes de provocar algo de belo e criativo,
quanto maior seja o perigo tanto maior deverá ser a coragem para enfrentá-lo, pois que
algo de bom habitaria também nas coisas ruins, cabendo aos homens saber extraí-lo. Então
88
À ce moment-là, j´ai tenté d´utiliser mon corps différemment, avec sa folie, sa maladie et ses incapacités.
J´ai tenté d´utiliser un corps qui ne voulait plus être utilisé, une autre façon, en somme, de creuser la
contradiction. En fonction des tensions physiques que j´éprouvais, qui m´étaient imposées par la vie, j´ai
cherché a construire une nouvelle dramaturgie.
89
E poi questa guerra diventa un’altra guerra, diventa la guerra che quest’uomo està conducendo dentro se
stesso.
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essa dor impõe “na carne, nos sentimentos, nas emoções, nos sonhos, nos gestos” (Pino,
2003, p. 105).
ganha uma característica própria, inusitada, que passa a diferenciá-lo do que até então se
fazia no teatro. Seria, para ele, a descoberta de um mundo particular, um universo marginal
até então referido na literatura ou na dramaturgia, como seres de ficção, cuja existência
dos espaços dignos e condizentes com a civilidade, como os restaurantes, shopping centers,
galerias e centros de convenção. Aos poucos, o diretor vai descobrindo o que, na verdade,
sala de espetáculos.
montado em 1997. Um ano antes, instalados no então Ospedale Psichiatrico Santa Maria
della Maddalena, em Aversa, uma pequena cidade ao sul da Itália, Delbono e sua equipe
dos pacientes do hospital. O fato foi um mero acidente e, em condições normais, muito
provavelmente o diretor teria se recusado a trabalhar ali: “Eu nunca tive o projeto ou a
90
Un théâtre essentiel, sur un plateau nu, un théâtre qui repose uniquement sur l´action des acteurs – des
acteurs qui ne jouent pas, mais sont, simplement. Un théâtre qui va, toujours plus, se confondre avec la vie
(Trecho do programa da peça Barboni, citado em Delbono, Bloedé e Palazzolo, 2004, p. 114).
151
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intenção de fazer entrar um louco em minha companhia” (Delbono, Bloedé e Palazzolo,
2004, p. 117)91. Ele vivia, entretanto, um momento de fragilidade, incapaz de tomar uma
vinha toda tarde, sentava-se no mesmo canto e de maneira solícita se punha a observar os
estava internado ali havia quarenta e cinco anos: “Então eu vi Bobò, vi nesse pequeno
corpo, com seus joelhos frágeis, uma beleza inédita, de uma força intensa, que se impôs ao
meu trabalho” (Delbono e Pons, 2007, p.71)92. Sucedeu que, na demonstração apresentada
Bobò para a Companhia e, durante os ensaios do novo espetáculo, em Nápoles, ele era
trazido e levado de volta ao manicômio de Aversa, no final da tarde. Todos os dias, às seis
montagem de Barboni que Pippo Delbono acabou por encontrar uma forma extremamente
saúde e ao encontro com os internos, pôde então experimentar uma situação que lhe
foi bastante confuso, com os ensaios ocorrendo em espaços diversos, sem horários
precisos: “Era uma verdadeira loucura. Barboni nasceu num momento de anarquia total, de
total ausência de regras. Eu não sabia nada do que ia fazer. Como se fosse a primeira vez
91
Jamais je n’ai eu le projet ou l’intention de faire entrer un fou dans ma compagnie.
92
Alors j’ai vu Bobò, j’ai vu dans ce petit corps, avec ces genoux fragiles, une beauté inédite, d’une force
intense, qui s’est imposé à mon travaille.
152
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que eu fazia um espetáculo, sem técnica, sem projeto definido... apenas a idéia de falar do
encontro com Bobò” (Delbono, Bloedé e Palazzolo, 2004, p. 122)93. É quando aceita que
Em seguida, entraria para o grupo Armando Cozzuto, um rapaz que fora vítima de
poliomielite e que, com suas muletas, perambulava desde pequeno pela praça San
num canto ou ficava a observar, depois um dia me disse que o sofrimento ensina o amor e
que isto lhe haviam ensinado as muletas. Eu lhe pedi que viesse ao palco e repetisse aquilo,
e este foi o começo de sua cena em Barboni” (Ghiglione, 2003, p. 68)94. Gianluca Ballarè,
jovem com síndrome de down, chegou à Companhia por sugestão da mãe de Delbono.
Com receio de acolher novos integrantes por mera condescendência e não querendo fazer
teatro de inclusão, o diretor relutou em receber o rapaz, que acabou por encantá-lo: "Ele
traz em si, naturalmente, a inocência do ator. Eu gosto que os atores em cena estejam em
93
C’était une vraie folie. Barboni est né dans un moment d’anarchie totale, de totale absénce de règles. Je ne
savais pas rien ce que j’allais faire. Comme si c’était la première fois que je faisais un spectacle, sans
technique, sans projet défini… juste l’idée de parler de la rencontre avec Bobò.
94
Armando ha incominciato a venire alle prove, si sedeva da una parte o stava a guardare, poi un giorno me
ha detto che la sofferenza insegna l´amore e che questo a lui l´hanno insegnato le stampelle. Gli ho chiesto
di venire sul palco e ripeterlo, e questo è stato l´avvio della sua scena in Barboni.
153
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estado de total inocência" (Delbono e Pons, 2004, p. 52)95. Assim, aos poucos, outros
andarilho Nelson Lariccia e o hiperativo Mister Puma, acabaram por integrar a companhia.
deficientes”, exatamente pelo fato de que o que poderia ser taxado como deficiência é
aquilo que ele vê de mais interessante e cenicamente belo nas pessoas com quem trabalha.
Para ele, o teatro ocidental, mesmo em suas formas mais inovadoras, é extremamente
95
Il porte en lui, naturellement, l’innocence de l’acteur. J’aime que les acteurs sur scène soient en état de
totale innocence.
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alegrias, os seus sofrimentos sem mediações, são pessoas livres. Sinto
que não encontraram a chave para acender sua chama artística interior
Assim, ele questiona a necessidade de uma educação formal para o ator, pois a
escola convencional não preencheria o que, por vezes, se faz necessário a um verdadeiro
sua presença e da sinceridade com que atua, qualidades estas adquiridas por muitos
encontrado alguém que fizesse teatro "com deficientes", muito provavelmente não teria
cena. Tal oportunidade ele teve ao deparar-se com o diretor e seu grupo, naquele
utiliza pessoas tomadas da vida por uma necessidade poética, que trazem em si a
A microcefalia e o fato de não ouvir, não entender as palavras e nem fazer leitura
labial, fizeram com que Bobò buscasse uma maneira autêntica de se expressar e de se
denota um passo existencial, em que o corpo cumpre com o seu papel, conforme Merleau-
Ponty (1971), não apenas simbolizando a existência, mas realizando-a e sendo a sua
96
Io credo che l'arte abbia spesso un relazione con l'handicap. C'è un'arte che nasce da una mancanza, una
deficienza, uno squilibrio.Comunque da una ferita. Mi vengono in mente Van Gogh, Artaud, Frida Kahlo. Io
quando osservo Gianluca o Bobò o Nelson nella loro grande libertà, non mi sembrano per niente
handicappati, riescono a vivere un rapporto diretto con le loro gioie, le loro sofferenze senza mediazione,
sono persone libere. Sento piu spesso la sofferenza, l'handicap nelle persone costrette a vivere una vita di
finzione, in cui ci si nasconde e c'è molta frustrazione, persone che non hanno trovato la chiave per
accendere la loro fiamella artistica interiore.
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constante atualidade. É a ponte que permite ao doente jamais se isolar do mundo. Assim, o
corpo e a maneira de ser de Bobò se traduzem como resultado de uma adaptação necessária
que o sentido deve ser captado no menor tempo possível. Ele teve que aprender isto e, para
tanto, o seu corpo encontrou o caminho. Assim, a precisão dos gestos, sua justeza e força
expressiva, qualidades que o diretor havia buscado antes num âmbito de treinamento e
um gesto é que ele tem alguma coisa a dizer. Seus gestos não são
Barboni estreou em março de 1997, trazendo à cena Pepe, Pippo e outros atores,
que há muito seguiam o trabalho da dupla, além de Bobò, Puma e Armando, novos
integrantes da companhia. Sobre esse trabalho, Oliviero Ponte di Pino declara: “Barboni é
pessoas se apresentam ao público – fazem ver quem são, deixam intuir a sua história,
97
Lorsque j’ai rencontré Bobò, sourd-muet, il y avait dans chacun de ses petits gestes une nécessité de
communication. Lorsque Bobò fait un geste c’est qu’il a quelque chose a dire. Ses gestes ne sont jamais
esthétiques. Chacun est porteur d’un sentiment, d’amour, de violence, de nécessité, d’indifférence, de
désespoir, de solitude, de jeu. J’ai trouvé grâce à Bobò, ce que je cherchais depuis longtemps dans mon
travaille. […] Ce qui demanderait a un acteur énormément de travail, Bobò le fait naturellement.
156
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mostram os seus corpos. Oferecem a si mesmos, a sua experiência, a sua vida” (Pino, 2003,
p. 128)98.
Trata-se, assim, de um teatro feito por indivíduos, pessoas para as quais a expressão
artística, antes de ser um trabalho, mostra-se como uma necessidade de vida. Mas, ao
contrário do que dizem alguns críticos do trabalho de Delbono, elas não são postas em cena
apenas como algo de bizarro a ser apreciado, mas como indivíduos cujas ações ganham
sentido pelo fato de serem verdadeiras, em primeira pessoa, a partir de fatos e memórias
concretamente vividos. Como bem se refere Ponte di Pino, esses indivíduos não se
mostram como signos de suas condições ou como figuras do sofrimento, mas estão em
cena pelo que fazem, por suas ações e palavras. O teatro poderia ser para eles, como
ademais ocorre em muitos casos, uma oportunidade de socialização ou pura terapia, mas,
ao invés disso, como bem afirma Pino (2003, quando em cena eles se mostram plenos em
Uma beleza que habita o hàbito, forjado numa esfera de necessidade e de adaptação a uma
determinada realidade. Seria o que Merleau-Ponty (1971, p. 158) aponta como “poder
fundamental”: o corpo que compreendeu, penetrado que foi por uma nova significação,
dos conteúdos”.
que lhes são próprias, tornadas interessantes sobretudo pela força de sua expressão, pela
autenticidade com que se apresentam. Trata-se da união de uma singularidade com uma
98
Barboni è come il circo, o uno spettacolo di varietà: una sequenza di numeri in qui queste persone si
presentano al pubblico – fanno vedere chi sono, lasciano intuire la loro storia, mostrano i loro corpi.
Offrono si stessi, la loro esperienza, la loro vita.
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capacidade de realização, uma qualidade performática, ou ainda, quem sabe, o
tornam-se uma coisa só. O instante habitado não tem nada a ver com
99
C’est l’instant où le théâtre s’accomplit. (…) Et le sentiment c’est celui d’un accord avec le monde sur
fond d’unité absolue. Non pas avec le personnage, mais avec le théâtre et la vie qui, alors, ne font qu’un.
L’instant habité n’a rien avec l’identification ou l’oubli de soi, bien au contraire, il renforce l’identité du
spectateur ‘instantanément épanoui’. Libre de tout complexe de passivité, il se vit en partenaire nécessaire et
non point en figurant superflu. C’est l’instant de l’absorption réciproque où les partenaires se confondent et
où les frontières s’effacent. Le sommet de la présence.
158
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Também na parte textual, onde se incluem escritos de sua tutoria, além de poesias,
identificar com aqueles considerados loucos e desvalidos, cujo conteúdo geralmente trata
vagabundos que compõem a companhia, em defesa do direito de ser sem precisar copiar,
de agir sem se espelhar num modelo: "Nós, aqueles que para se fazer escutar devemos
morrer. Nós, pequenos mudos. Nós, sem voz. Nós, sem visto. Nós, ausentes da história,
nós, presentes da miséria. Nós, eternas crianças. Nós, incapazes, nós, mortos, nós, aqueles
que não fazem número, nós, aqueles da pura raiva. Nós, aqueles do puro fogo. Nós,
aqueles do agora e basta. Nós, aqueles do tudo para todos e nada para nós. Nós, aqueles da
pelo diretor que, em cena, também faz citações ou breves narrações, não sendo incomum o
100
Noi, quelli che per farci ascoltare dobbiamo morire. Noi, piccoli muti. Noi, senza voce. Noi, senza viso.
Noi, assenti della storia, noi, presenti della miseria. Noi, eterni bambini. Noi, incapace, noi, morti, noi, quelli
che non fanno numero, noi, quelli della pura rabbia. Noi, quelli del puro fuoco. Noi, quelli del’adesso e
basta. Noi, quelli del tutto per tutti e niente per noi. Noi, quelli della parola che sempre cammina (Trecho da
peça Guerra).
101
C’était un an aprés la création de Barboni, expérience ‘vitale’ avec laquelle je m’étais détaché,
totalement libéré, de la nécessité d’une quelconque technique théâtrale. Et la compagnie m’avait suivi
(Delbono, Bloedé e Palazzolo, 2004, p. 130).
159
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uso de parábolas. Os textos que Delbono recolhe podem pertencer a grandes autores, como
citado em Barboni.
Andava em giro pela cidade e tinha consigo somente uma coisa, uma
sua irmã, que não o via há mais de cinqüenta anos e pensava que ele
cunho comumente pessoal. Como exemplo, mostra o movimento de abrir e fechar de mão
que fazia seu antigo companheiro no leito de morte, sem poder falar e quase inconsciente.
Era o único – e foi o último – gesto que conseguia realizar. O movimento é transformado
num gesto de despedida e ele, então, toma uma garrafa com água, dizendo para dentro dela
102
Vorrei raccontarvi, per finire, la storia di un barbone genovese. Andava in giro per la città e aveva con sé
soltanto una cosa, una grossa valigia. Quando l'hanno trovato morto per la strada hanno chiamato la sua
sorella, che non lo vedeva da più di cinquant'anni e pensava che era morto nella guerra in Africa, e le hanno
chiesto di aprire la valigia. Dentro c'era tutto quello che Bernardo Quaranta – così si chiamava il barbone
genovese – possedeva: ed erano le sue poesie. Le poesie che lui aveva scritto sui pezzi di carta igienica, sui
fondi di bicchiere, sui cartoni, le poesie – che stasera leggera Pierino, il musicista – le poesie erano l'unica
cosa che Bernardo Quaranta possedeva nella sua vita. E penso che questo spettacolo sia un pochino
dedicato a Bernardo Quaranta (Monólogo inicial de Barboni).
160
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algumas palavras ao seu falecido companheiro. Esclarece que, em geral, tais seqüências
considerado o interesse de Delbono não apenas em compor formas e imagens, mas valer-se
alguns, como Gianluca e Bobò, a quem Delbono considera naturalmente preparados para o
que precisa: “São pessoas que têm uma relação mais verdadeira com a vida e com o
sofrimento e em cena os seus gestos são sinceros” (Ghiglione, 2003, p. 71)103. Com relação
budista, que apregoa a importância de "ler com a vida" os escritos de grandes mestres:
"Significa que quando ler uma só frase, procure ir além do fato de compreendê-la
racionalmente, busque antes fazê-la entrar mais profundamente em sua vida. [...] Palavras
que se tornam suas, lhe dão a possibilidade de ter coragem, de crescer, de mudar em sua
No início de cada nova criação, é solicitado aos atores que apresentem suas
descobertas mais recentes, ainda que fora do tema proposto para a peça. Escolhidos e
qualquer psicologia. A partir daí, utiliza-se música para marcação rítmica e exercícios
103
Ci sono persone che hanno un rapporto più vero con la vita e con la sofferenza e sulla scena i loro gesti
sono sinceri.
104
Vuol dire che quando leggi anche una sola frase cerchi di andare oltre al fatto di capirla razionalmente,
cerchi piuttosto di fartela entrare più profondamente nella tua vita. [...] Parole che diventano tue, ti danno la
possibilità di avere coraggio, di crescere, di cambiare nella tua vita cotidiana.
161
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físicos, vários deles de origem oriental, que impõem uma extrema disciplina: mudanças de
ritmo, paradas, variação nos pontos de força, etc. Essas seqüências podem resultar, já em
si, numa editoria e as criações, tanto individuais como coletivas, podem ou não ser
mais tarde, onde o importante é não descartar nenhuma possibilidade. Aqui, uma influência
se revela: “Eu me lembro que Pina Bausch anotava tudo o que lhes mostravam os
dançarinos, sem fazer julgamento. Eu faço a mesma coisa, escrevo tudo o que se passa no
palco e na sala” (Delbono, Bloedé e Palazzolo, 2004, p. 142)105. Trata-se de uma forma de
trabalho em que, independente de suas condições, cada um dá a sua contribuição, sem que
um diálogo entre os atores se faça necessário. Tal amplitude do olhar, visando perceber o
que de cada um pode servir à cena, além do sentido aberto que propicia, resulta numa
105
Je me souviens que Pina Bausch notait tout ce que lui montraient les danseurs, sans porter de jugement.
Je fais la même chose, j’écris tout ce qui se passe sur le plateau et dans la salle.
106
Les spectacles de Pippo Delbono sont comme des fresques évocatrices, sans narration textuelle, des
sommes d’impressions, de sentiments, de questions se basant sur nos contradictions. À chaque création ne
prédomine jamais l’intention de dire ou même de montrer. Il s’agit à chaque fois d’un état livré tel quel, né
162
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Juntamente com a poesia, a evocação ou inspiração a partir do cinema é uma
curtas e de efeito, numa síntese quase extrema: “Quando eu trabalho sobre um texto, eu
não procuro entender o que ele quer dizer. Eu escuto as notas, as cores, o ritmo. Eu prefiro
visualizar a linha que traça a minha voz no espaço, mais do que compreender a
significação das palavras que eu pronuncio [...] Eu ouço o som e não o sentido” (Delbono e
Pons, 2007, p. 71)107. Não sem razão, portanto, o uso de microfones em cena se mostra de
grande importância e como outra característica dos espetáculos de Pippo Delbono, ou seja,
também numa intensidade extremamente baixa, em que mesmo a respiração seja captada e
ganhe sentido.
travestimento. Esse recurso, entretanto, não tem por função tratar da homossexualidade ou
significações que o travestimento pode ter. Trata-se de uma prática que visa estimular o
163
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trabalho particular oferece muitas cores de jogo (Delbono e Pons,
2004, p. 61).108
Nesse contexto, a extrema singularidade de alguns pode ser admitida como mais
um elemento de que o diretor se vale para a constituição da cena, como faz com os demais,
requerida por alguns, aliada ao grande número de ações, mudanças de cena e de figurinos,
acaba por incidir no próprio resultado dos trabalhos: “Pode se dizer que todo mundo se
traveste, alguém põe um figurino, passa pela cena, volta, veste Bobò, depois ajuda
Gianluca, mete um outro figurino... Os atores não têm tempo de pensar em seu
personagem, fechados no camarim até o levantar das cortinas!” (Delbono e Pons, 2004, p.
mais forte que a personagem. Eu trabalho com os atores sobre sua personalidade e não
sobre seus personagens, para fazer sair o que eles são e não a idéia que eles têm do
108
Le travestissement c’est une figure emblématique de la contradiction sur laquelle je base mon travail de
l’acteur . Un homme, une femme. L’acteur doit trouver par les mouvements ce qui es oppose, les réunit, les
différencie. Cela demande beaucoup d’ironie et de sensibilité. Ce travail particulier offre beaucoup de
couleur de jeu.
109
On peut dire que tout le monde se travestit, un tel met une veste, il fait une passage sur scène, il revient, il
habille Bobò, puis il aide Gianluca, puis il endosse une autre vêtement... Les acteurs n’ont pas le temps de
penser a leur personnage, cloîtrés dans leur loge jusqu’au lever de rideau!.
110
Le personnage c´est la personne: l´homme ou la femme qui portera des vêtements différents. La personne
est plus forte que le personnage. Je travaille avec les acteurs sur leur personnalité et pas sur leurs
personnages pour faire sortir ce qu´ils sont et pas l´idée qu´ils ont du personnage.
164
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A música constitui fator essencial na estruturação das cenas. Trata-se de canções,
específicos como a música, a luz, excertos de textos e citações, além de bruscas mudanças
no andamento das cenas, buscam cumprir um só objetivo, qual seja, esvaziar os sentidos:
“Eu não quero entrar no sentido e eu prefiro criar imagens, porque elas contam mais que o
sentido. O ritmo é fundamental. Cada espetáculo é construído como uma partitura musical”
(Delbono e Pons, 2004, p. 62)111. O resultado é uma reação geralmente vigorosa por parte
do público, num estado de aparente exasperação. Talvez renovado, talvez perplexo. Ou,
Gente di plastica112
uma homenagem à poeta inglesa Sarah Kane, suicida aos 28 anos, cuja obra tocou
isolamento, conseqüência de uma questão cultural mais profunda, relacionada a uma perda
de crise: “A crise que eu passava no momento da criação de Gente di plastica não estava
ligada a dificuldades relacionais precisas, era antes uma sensação, quase física. Eu estava
111
Je ne veux pas entrer dans le sens et je préfère créer des images, parce qu’elles racontent encore plus que
le sens. Le rythme est fondamental. Chaque spectacle est construit comme une partition musicale.
112
Ficha técnica: Concepção e direção de Pippo Delbono. Com: Dolly Albertin,Gianluca Ballarè, Bobò,
Margherita Clemente, Piero Corso, Pippo Delbono, Lucia Della Ferrera, Ilaria Distante, Fausto Ferraiuolo,
Gustavo Giacosa, Simone Goggiano, Mario Intruglio, Nelson Lariccia, Maura Monzani, Pepe Robledo.
Iluminação: Fabio Sgommino Berselli. Produção: Emilia Romagna Teatro.
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hipersensível à complexidade e à loucura da vida normal, a esta ‘tragédia da normalidade’”
rádio, de onde saúda o público, cita Frank Zappa e, em poucas palavras, conta a história de
uma família. Em seguida, no palco, inicia-se uma cena de pantomima onde um casal
extremamente convencional senta-se à mesa para o que parece ser o café da manhã. Bobò,
o ator microcéfalo e surdo-mudo, está sentado num sofá trajando roupas que lembram uma
velha avó, com uma bengala ao lado. Aos poucos chegam a filha do casal, o filho e outros
de seus papéis sociais: a menina bem comportada e com boas notas na escola, o rapaz com
filha, rebelde e rejeitado, além de um tio, um amigo, etc. De fundo, uma música de Elvis
Presley dá o tom.
A partir dessa ligeira impressão inicial, o espetáculo vai restando sórdido e, aos
poucos, fica claro o que está por trás dessa aparente normalidade. Sempre por meio da
publicitária, assim como o tipo de vida que elas geram, vão sendo denunciados e postos em
cena de maneira sarcástica, por vezes contundente. Numa crítica direta ao consumo
exacerbado e vicioso que se impõe no mundo contemporâneo, Pippo lança mão de recursos
113
La crise que je traversais au moment de la création de Gente di Plastica n’était pas liée à des difficultés
relationnelles précises, c’était plutôt une sensation, presque physique. J’était hypersensible à la complexité
et à la folie de la vie normale, a cette ‘tragédie de la normalité’.
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dúvida, mas também os vendedores de modernidade, de produtos de
contradições vividas pelo homem contemporâneo, o diretor expõe sua revolta como um
poeta-regente de versos e coros indecentes. Às imagens que vai criando, soma expressões
que isoladamente poderiam parecer clichês, mas que ganham força e sentido justamente
pela forma e pelo momento em que se apresentam. Compõem o seu universo criativo,
Em cena, Bobò fuma, come algo que lhe é servido, faz a pantomima de certas ações
e dança em parceria com uma das atrizes. Já Gianluca Balarè, ator com síndrome de down,
114
Pippo Delbono nous convie à un spectacle rock. La structure familiale explose, les gens de plastique
défilent, gens de la mode bien sûr, mais aussi les vendeurs de modernité, de lessive et de sous-vêtement en
latex. Les marchands de rêve à crédit revolving. De rodéos travestis en fête hype au rythme de Gloria
Gaynor, le plastique fond mais les masques demeurent figés.
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aparece em cenas marcantes como aquela em que dança completamente nu, desajeitado e
animais, elegantemente vestidos, riem entre si e caçoam dele. Num outro momento,
demonstrando sensibilidade e perspicácia, ele gera talvez o momento mais cômico da peça.
Dialogando com o público por meio de gestos e olhares, entra em cena com um cesto,
monta uma espécie de piquenique e, após brincar certo tempo com uma bola colorida, ele a
rola na direção da platéia, fazendo-a cair do palco. Com um gesto, pede ao público que a
devolva e, ao recebê-la, repete tudo de novo, obrigando sempre alguém a levantar-se para
apanhar a bola. Em seguida, tira do cesto uma pistola que atira água, disparando para um
lado e para outro. Por fim, olha na direção da platéia, apontando-lhe a pistola cuja pressão
é fortíssima. Claro que é apenas uma gag e ele não a dispara, causando um momento de
apreensão e comicidade.
Gianluca tem no seu corpo uma ternura imensa. Raros são os atores
despretensão, fazem ver toda sorte de pernas (finas, musculosas, peludas ou peladas),
nádegas (flácidas, rígidas, achatadas, quadradas), barrigas, pescoços, tórax, cabeças. Mais
115
Gianluca a dans son corps une tendresse immense. Rares sont les acteurs ou les danseurs qui peuvent à
ce point offrir de la tendresse sur un plateau. Lorsque Gianluca rit en scène tout le monde rit,
automatiquement. Il n’est pas porteur de l’intention de faire rire et c’est précisément pour cette raison que
les gens rient.
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uma vez, num momento de despudorado sarcasmo, o instantâneo da vida se revela,
enquanto a trilha sonora carrega numa atmosfera de fantasia e de festa, como fundo para
Para Delbono, Gente di plastica representa um novo ciclo que começa em seu
trajeto. Já não se faz necessário defender a presença de Bobò em cena, explicar suas
qualidades de ator. Assim como ele, todos os demais que foram trazidos de realidades
vistos como profissionais da cena, à parte qualquer característica que os façam singulares
Palco sem cenários, com solo e paredes laterais e de fundo completamente brancos.
Luz branca plena, quase ofuscante. Um corpo esquelético, seminu e mascarado está no
chão, imóvel. Depois de um tempo, o ator se levanta. Sua magreza é impressionante. Ele se
movimenta, numa quase dança, mantendo a máscara – que lembra a de alguma tribo
africana – ao rosto. Assim se inicia o espetáculo Questo buio feroce, que estreou em Roma,
em outubro de 2006. Em seguida, uma grande parede branca ao fundo se abre e dela saem
homens de branco, que passam a instalar uma ala de cadeiras ao fundo do palco, enquanto
seres diversos transitam pela cena: alguns travestidos com perucas, maquiagem carregada e
116
Ficha técnica: Concepção e direção de Pippo Delbono. Com: Dolly Albertin,Gianluca Ballarè, Raffaella
Banchelli, Bobò, Margherita Clemente, Pippo Delbono, Lucia Della Ferrera, Ilaria Distante, Gustavo
Giacosa, Simone Goggiano, Mario Intruglio, Nelson Lariccia, Gianni Parenti, Pepe Robledo. Iluminação:
Robert John Restinghini. Cenografia: Claude Santerre. Produção: Emilia Romagna Teatro.
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descem duas bolsas plásticas, contendo um líquido vermelho como sangue. Uma mulher
vestida de enfermeira entra, senta-se numa cadeira, de costas para o público, e chama
lentamente uma seqüência de números. Alguns tipos começam a entrar, sentando-se nas
cadeiras ao fundo. Bobò está entre eles. Todos permanecem estáticos, enquanto os
centenas, milhares. A mulher é então retirada de cena pelos homens de branco. Eles estão
brancos, que deixam transparecer apenas o rosto, coberto por um plástico. A referência ao
ambiente hospitalar ou ambulatorial é clara: a morte se faz mais presente num espaço
transitório, que evoque um momento preliminar entre o já vivido e o que está por vir. Um
lugar por onde circulam os corpos, onde quem entra não permanecerá por muito tempo,
Depois de permanecer sentado durante um bom tempo numa das cadeiras, ao fundo,
o ator esquelético da primeira cena, vestindo apenas as cuecas, volta já sem a máscara para
perambulava pelas ruas de Nàpoli. Acompanhado por uma orquestra em play-back, ele
canta ao microfone, tradicional e com fio, o clássico My way, de Frank Sinatra. Sua voz
microfone com desenvoltura, desfila diante da platéia, encontrando espaço para agradecer
cabelo desgrenhado, bigode, rosto cavado e extremamente marcado pelo tempo, contrasta
com aquela imortalizada pela elegância e glamour de Frank Sinatra. Como o norte-
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americano, Nelson diz: "Eu vivi uma vida que está completa / Eu viajei por cada uma e em
todas as estradas"117. Como Sinatra, ele também fez a vida à sua maneira...
Vàrias outras passagens são também marcantes, criadas com um fundo de ironia,
como a cena da Cinderela que, ao calçar o sapato perdido, dança com um príncipe estulto e
patético; ou de sadismo como o corpo dependurado de Pepe Robledo, cegado por uma
venda e como que estigmatizado por marcas e cortes. Em determinado momento, o cenário
se abre uma vez mais ao fundo e novamente o desfile de corpos se faz, com màscaras e
trajes bizarros, agora num mix de estilos e épocas, onde os seres aparecem como bonecos
de cera, saídos de tempos mortos. Por entre eles, na fila que segue do fundo do palco para a
boca de cena, uma figura emblemática da cultura ocidental aparece com seu vasto capuz
que lhe esconde o rosto. Surge em duas versões, com gestuais diferenciados: primeiro em
vermelho, depois em negro. Numa das cenas seguintes, Gianluca Balarè e Bobò atuam
juntos, fazendo cada um o seu Pierrot, em vestes coloridas e bufantes. Seguem numa
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I've lived a life that's full / I travelled each and every highway (Música de Paul Anka/Frank Sinatra).
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precisos e concatenados. Eles aparecem ainda em outros momentos, com Bobò sempre
acompanhado.
Médio, “numa pequena livraria de um país sem livros”, ele descobre uma autobiografia do
ele infectado pelo vírus da AIDS – numa total ausência de discrição, narra a própria morte
e descreve os últimos anos de sua vida: “E nesse livro, nessa viagem, eu encontrei minha
própria viagem, minha história”118, diz o diretor. Assim, o espetáculo é talvez o exemplo
Numa de suas aparições em cena, Delbono realiza uma dança bizarra, que começa
com um dos braços estendido, como num gesto de doação de sangue ou recebimento de
outros vários momentos, a voz do diretor se faz ouvir, em play-back ou ao vivo, citando
Emily Dickinson ou ao som de Joan Baez. Numa das passagens, refere-se à terra como
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Et dans ce livre, dans ce voyage, j’ai trouvé mon propre voyage, mon histoire.
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uma igreja sepulcral, lugar sagrado pelo qual passam ininterruptamente corpos, seres e
parece muito mais um instantâneo autobiográfico. O palco como metáfora para a mente e o
Delbono, ao contrário de fim, a morte poderia ser uma consciência lúcida, constante e
profunda da própria vida, ao invés de medo, dor ou perda. E faz suas as palavras de
Artaud: "Jamais eu poderia fazer um espetáculo que não fosse contaminado pela minha
119
Jamais je ne pourrais faire un spectacle qui ne soit pas contaminé par ma vie. Je n'en serait pas capable
(Programa de apresentação da peça).
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DE IMAGENS E VIAGENS: UMA BREVE APROXIMAÇÃO
Os trabalhos de Robert Wilson e Pippo Delbono se inserem numa forma cênica que
relação entre o texto dramático e a encenação, com esta última ganhando cada vez mais
autonomia e tornando possível ao encenador/diretor criar, ele próprio, uma cena que, por
sua vez, chega mesmo a prescindir de um texto previamente escrito. Mais afeita, na
dramática como trabalho do diretor não se limita à composição de uma fábula linear e
mimético do ator. O texto do diretor desloca o eixo da ação para um outro corpus,
elaborado a partir de códigos e estímulos diversos, que podem ser táteis, sonoros, olfativos,
visuais etc, nem sempre reconhecíveis pelo espectador. A fábula deixa de ser o único
objeto de interesse da obra, exigindo da assistência uma capacidade de lidar com o que
informações (sistemas, cenário, substância, matérias, cores, gestualidade etc) que lhes
para uma manifestação enquanto puro fenômeno acústico e seu respectivo valor sonoro.
Nesse tipo de texto, ganham dimensão determinadas manifestações corporais e vocais que,
mimeticamente constituídas.
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Tais diferenciações encontram-se também numa correlação direta que se pode fazer
entre o teatro ocidental e oriental, este último coincidentemente apreciado e citado por
Robert Wilson e também por Pippo Delbono como importante referência para suas formas
de ver e de criar a cena. Numa analogia entre o teatro da crueldade artaudiano, apresentado
339) traça uma lista que pode ser aqui mencionada visando esclarecer e reiterar tal
referência na prática dos dois diretores. Ainda que por vias diferenciadas, tanto Delbono
quanto Wilson acabam por chegar a uma forma cênica que prima muito mais pelo seu
é físico é verbal
psicológica,
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O conjunto de todas as características anteriormente citadas, em geral presentes
tanto na obra de Wilson quanto de Delbono, é o que permite uma natural incorporação de
ordem corporal ou comportamental, já que são capazes de levar o individuo a uma atitude
Além dessa semelhança no perfil estético de ambos, pode se dizer que diversos são os
acontecimentos e procedimentos comuns na vida dos dois diretores, alguns deles podendo
convencional do termo, bem como o interesse por suas qualidades pessoais ao invés de sua
capacidade mimética. Outro fato curioso é que ambos acabam levados a uma percepção
que o grau e a natureza disto seja incomparável. Enquanto Wilson sofria de gagueira, o que
soropositivo, o que o faz passar por profundas alterações de saúde e a viver momentos
verdadeiramente difíceis, que o tornam mais sensível a uma serie de questões de outra
Fundação Byrd Hoffman são fatos relevantes na vida e no trabalho de ambos. Foi com
alcançaram reconhecimento internacional de crítica e público. Foi por esta via que tanto
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lembrando que tanto Bobò quanto Andrews e Knowles acabam tendo a guarda legalmente
Bastante comum ainda nas criação de ambos é a reincidência de ações e frases, bem
de Wilson, é o jogo de palavras que fazia com Christopher Knowles a partir do mote
“Emily likes TV” (Emily gosta de TV), no início de diferentes peças. Já em Delbono pode-
se citar a frase “Dimmi che mi ami e che me amerai per sempre” (Diga-me que me ama e
que me amará para sempre), além de sua seqüência de ações utilizando uma garrafa com
Por suas características gerais, mas sobretudo pelos recursos utilizados, o trabalho
de ambos os diretores transcende o universo pessoal para se inserir no que Susan Sontag,
(Sontag, 1987, p. 312). No caso de Delbono, essa identificação vai mais além, se
considerado que o requisito mais importante para o espírito que move essa tradição é
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Por outro lado, entretanto, diversos são os procedimentos efetivamente
diferenciadores entre os trabalhos dos dois diretores. Um exemplo para isto é a música,
cuja função e uso ocorrem de maneira bem diferenciada por parte de cada um. Nos
cuja estrutura sonora propõe a decomposição melódica dos padrões tradicionais, ao invés
de aferir novos significados a melodias preexistentes, como ocorre nas criações de Pippo
já tornadas icônicas, que são deslocadas para um contexto específico – geralmente pessoal
Outra diferenciação diz respeito ao uso cênico das disfunções, já que, embora haja
um dos diretores faz um uso diferenciado disto e, ainda que trilhando distintos caminhos,
atingem, ambos, resultados extremamente satisfatórios. Enquanto Wilson opta por uma
cena a partir do que percebe na surdez de Andrews, Delbono a produz com a simples
presença de Bobò. Se o norte-americano está preocupado em criar com base no que lhe
sensibilidade de seus colaboradores o próprio elemento cênico. Neste caso, embora Wilson
Knowles transforma-se na base estrutural para a constituição cênica de seu teatro, enquanto
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objetivamente em cena, como parte de uma estrutura outra, que não se assenta sobre as
condições de alguns de seus performers a um sistema mais amplo, por ele organizado.
mesmo com relação ao teatro de Pippo Delbono: "Sob essa denominação, se poderia reunir
o teatro de objetos, sem atores vivos, o teatro de máquinas e recursos técnicos e um teatro
paisagens" (Lehmann, 2002, p. 127)120. Assim, enquanto Wilson apresenta e trabalha sobre
uma alternativa cênica onde a presença humana se dá como quesito para a composição de
imagens e de formas – ainda que se fale aqui de sua importância para a composição
espaço-temporal dos espetáculos – Delbono faz dessa presença, nua e crua, a própria cena.
Ele se vale justamente do ser humano e das misérias de seu cotidiano121 como elementos
120
Sous cette dénomination, on pourrait rassembler à la fois le théâtre des objets sans acteurs vivants, le
théâtre avec technique et machines et un théâtre qui intègre la forme humaine comme élément dans des
structures spatiales semblables à des paysages.
121
Vale aqui um jogo de palavras com relação à miséria real, conforme vivenciada por alguns dos performers
de Delbono, e a referência poética à "miséria do cotidiano" no âmbito da obra de Vladimir Maiakovski
(1893-1930).
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CONCLUSÃO
É de amplo conhecimento que o corpo cênico vem assumindo um papel cada vez
acabam decorrendo numa transestetização, como sugere Baudrillard (2004, p. 24), capaz
para o imenso museu artificial e para a publicidade desenfreada". Apesar disso, uma vez
de desafiar o olhar ou, nas palavras de Courtine (2006), desestabilizar a sua percepção. Isto
porque atores-performers tidos como "fora de padrão" evocam em suas ações mais
comportamento deste último não será mais que um mero estranhamento, caso as ações não
122
O dramático é um princípio de construção do texto dramático e da representação teatral que dá conta da
tensão das cenas e dos episódios da fábula rumo a um desenlace (catástrofe ou solução cômica), e que sugere
que o espectador é cativado pela ação (Pavis, 2001, p. 110).
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sejam conscientemente adensadas pela habilidade e exata noção de significação por parte
havidos no percurso desses diretores e grupos. Este fato aponta para a existência de
ao exercício poético. Trata-se, nesse âmbito, de práticas que expressam anseios estéticos,
não convencional.
contribuição para a prática teatral e, ao lado da questão tecnológica, talvez seja uma das
grandes novidades ocorridas na cena dos últimos tempos. A partir de seu caráter
desenvolvidas a partir do séc. XX, como fruto de um processo que se manifesta, hoje, nos
Nesse âmbito, a escritura cênica tem se mostrado como principal forma de trabalho
ou, ao menos, a que surte mais efeito, pois é quando as condições do ator-performer podem
desenvolve a composição cênica (Robert Wilson). De acordo com Pavis (2001, p. 132), "a
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escritura cênica nada mais é do que a encenação quando assumida por um criador que
controla o conjunto dos sistemas cênicos, inclusive o texto, e organiza suas interações, de
cênica como a mais notável fonte de aproveitamento estético das disfunções, mas o
A principal contribuição que se busca com a presente reflexão é, pois, tornar claro
outras áreas que lidam com as disfunções, a arte do teatro perfaz o seu próprio caminho.
extremada não deve ser vista como simples motivo ou pretexto, e sim como condição
123
Até recentemente, ainda em vida, Joseph Chaikin (1935-2003), diretor e criador do Open Theatre,
continuava a dirigir e atuar em seus espetáculos, mesmo com as limitações impostas por sua afasia. Um outro
bom exemplo é a companhia italiana Raffaello Sanzio, dirigida pelos irmãos Castellucci, que em vários de
seus trabalhos agrega corpos e seres bastante diferenciados.
182
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relation théâtrale. Paris: Presses Universitaires de Lille, 1980. p. 11-25.
VERGINE, Léa. Dall’informale alla body art – dieci voci dell’arte contemporanea 1960-
1970. Torino: Coop. Ed. Studio Forma, 1976.
VIGARELLO, Georges. "De la renaissance aux lumières". In: CORBIN, Alain;
COURTINE, Jean-Jacques e VIGARELLO, Georges. Histoire du corps. Vol. 1. Paris:
Seuil, 2006.
186
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VYGOTSKY, Lev. Manuscrito de 1929: psicologia concreta do homem. In: Educação e
Sociedade, Campinas, CEDES, N° 71, 2ª ed., 2000, p. 21-44.
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janvier, 1997. Conforme site http://mediatheque.ircam.fr/articles/textes/Ircam97b/
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13, Paris: nov/1976, p. 16-17.
Vídeos e filmes
Absolute Wilson. Documentário de Katharina Otto-Bernstein sobre a vida e a obra de
Robert Wilson. Alba Film Production, 2006.
Deafman glance. Versão televisiva dirigida por Robert Wilson, a partir do espetáculo de
mesmo nome. Produção: Byrd Hoffman Foundation. New York, 1981.
Einstein on the beach. Versão videográfica do espetáculo dirigido por Robert Wilson.
Produção: Brooklyn Academy of Music, 1986.
Grido. Filme concenido e dirigido por Pippo Delbono. Produção: Mikado/Dolmen Home
Video. Itália, 2006.
Il silenzio. Versão videográfica do espetáculo dirigido por Pippo Delbono. Produção:
Compagnia Pippo Delbono/Emilia Romagna Teatro/Théâtre du Rond-Point, 2006.
Sites visitados
http://mediatheque.ircam.fr/articles
http://sideshowbarker.blogspot.com
http://theatreducristal.free.fr
http://www.anarca-bolo.ch
http://www.answers.com
http://www.bium.univ-paris5.fr
http://www.bmezine.com
http://www.bozar.be
http://www.cienciahoje.pt
http://www.oiseau-mouche.org
http://www.phreeque.com
http://www.pippodelbono.it
http://www.portalmedico.org.br
http://www.robertwilson.com
http://www.shockedandamazed.com
http://www.theatermania.com
http://www.theatre-des-salins.fr
http://www.thelizardman.com
http://www.tnt-cite.com
http://www.touregypt.net
187
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ANEXO
188
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LAUTREC: UMA EXPERIÊNCIA SINGULAR
A peça teatral Lautrec124 aborda a vida e a obra do pintor francês Henri de Toulouse-
Lautrec, que viveu no final do século XIX, na França, sendo considerado um dos mais
Campinas (SP), Katia preside a unidade regional do Centro de Vida Independente (CVI),
deficiência. No teatro, foi aluna de Antunes Filho, Cacá Carvalho e Cristina Castrillo,
doença que atinge atualmente 1 em cada 25.000 nascimentos. Embora seja a acondroplasia
– distúrbio genético no feto – a causa mais comum para o nanismo, o pintor Toulouse-
Lautrec sofria de picnodisosteose (do grego ostéon, relativo a osso) ou ainda síndrome de
ambos, as extremidades dos membros são relativamente mais curtas do que o tronco.
124
Ficha técnica: Texto e cenários de Katia Fonseca. Direção e iluminação: José Tonezzi. Direção musical:
Wanderley Martins. Produção: Laboratório do Ator/Centro de Vida Independente (CVI-Campinas).
189
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Foi como aluna especial do curso de pós-graduação em Artes da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP) que Katia aprofundou seus conhecimentos sobre Henri
partida para o texto que desenvolveu. De baixa estatura – cerca de um metro e meio de
altura –, o pintor tinha uma aparência que não exercia atração nenhuma sobre as mulheres.
Com a cabeça grande e certa ausência de ângulo na mandíbula, o que deixava seu rosto
com aspecto estranho, ele possuía braços e pernas curtos e quebradiços. Talvez como
prematuro nos braços da mãe, sofreu diversas alucinações e foi internado pelo pelo pai
respectivas épocas, mostrando que, apesar dos mais de cem anos que os separam, mazelas
Acompanhada por textos em off e outros efeitos sonoros, além da projeção de obras e fotos
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do pintor, Katia Fonseca mostra por cinqüenta minutos a vida – que misturou tragédia e
glamour – do artista francês que, rejeitado pelo pai, renegou sua origem nobre para viver
Belle Époque. Toulouse-Lautrec morreu aos 37 anos e, através de sua obra, tornou-se uma
referência para um processo de inclusão social que hoje encontra seu auge no mundo todo.
O espetáculo
Durante a entrada do público, a cena está aberta e o palco escuro. Vários objetos
estão colocados no espaço: três banquetas extremamente pequenas, duas mesas (uma delas,
tamanhos, por sua vez encaixadas em bases de madeira. Ao iniciar a apresentação, cai a luz
da platéia e um azul tênue deixa entrever apenas a silhueta das bengalas, de pé sobre o
palco. Em off, ouve-se uma voz masculina que narra: "Nasci disputando com a morte o
pelo chão, como um bicho. É um pequeno corpo que, até então imperceptível, locomove-se
Aos poucos, será possível perceber a atriz Katia Fonseca em sua conformidade
para correr à casa, ver rapidamente o filho recém-nascido e, em seguida, voltar à atividade
que mais apreciava: perseguir um javali até o seu momento final, o halali. A partir daí,
Katia representa, auxiliada por efeitos sonoros e visuais, o percurso de vida do artista
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francês que, na adolescência, descobre possuir uma doença nos ossos que, fragilizados, o
que preenchem a cena: seu andar, que impõe um jogo lateral de todo o corpo, já que não
possui articulações nas pernas; seu ato de tomar as coisas e objetos, que requer o uso dos
inusitada com que se vale de sua pequena bengala, tornada extensão do corpo na relação
com o espaço. Diversas atitudes e momentos da vida do pintor são evocados, como as
festas que promovia em sua casa, o hábito de desenhar enquanto bebia nos cabarés, o gosto
sobretudo, do absinto. Várias de suas telas são projetadas, enquanto ele conta suas
histórias, sentimentos, desejos. Muitas de suas frases revelam como Toulouse-Lautrec via
o mundo e como se sentia dentro dele: "Os tipos médios, normais, passam despercebidos,
atravessam a multidão sem que nada aconteça à sua volta. Para existir, eles não precisam
lutar, basta se inserir. Mas eu não, para garantir a minha singularidade, tenho de manter a
espada sempre erguida, pronto para a luta. Técnica de sobrevivência!". Sobre sua relação
com as prostitutas, ele diz: "Acho que elas nunca tiveram um amante tão feio quanto eu!".
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Num dos momentos de crise e alucinação, as bengalas são atacadas e derrubadas
por um personagem furioso, a quem o pequeno corpo da atriz empresta uma característica
ainda mais particular: "Sentia que, a qualquer momento, poderia ser atacado. Por mim
mesmo". Numa das cenas mais marcantes da peça, uma luz branca ilumina todo o teatro e,
tomando um dos banquinhos, a atriz se dirige à boca de cena, onde, pedindo licença ao
uma aproximação que vai além da aparência física entre atriz e personagem. Contando que,
ao nascer, foi batizada às pressas na capela do hospital, pois os médicos não lhe davam
mais do que vinte e quatro horas de vida, ela empresta as palavras do poeta português José
Régio: "Corre, nas vossas veias, o sangue velho dos avós, e vós amais o que é fácil. Eu
Processo de criação
havia sido convidada para apresentar-se no Fórum Social Mundial, a ocorrer dali a poucas
semanas, na cidade de Porto Alegre (RS), e planejava fazer ao menos uma pequena
demonstração cênica. Tinha preparado um texto com cerca de 15min, no qual representava
Toulouse-Lautrec e expunha sua vida quase como numa palestra, sentada num pequenino
se. Ela estava então com 48 anos e cansava-se facilmente em função da vida sedentária que
levava em sua rotina como jornalista. Considerando as condições, o trabalho foi ajustado
de maneira a aproveitar o que ela já havia constituído, sendo mostrado como exercício
cênico na ocasião.
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Após o seu retorno da capital gaúcha, iniciamos um cronograma de ensaios,
visando preparar um espetáculo para meados daquele ano. Uma das primeiras providências
foi obviamente uma maior configuração textual da obra, o que não seria difícil graças ao
farto material reunido sobre o pintor. Além disso, Katia identificara-se plenamente com o
humanidade por trás do estigma. Uma obra que coleciona vidas, que
artística. 125
Mais do que uma identidade de cunho estético, mostrou-se clara uma identificação
limitações físicas que o tornavam alvo de pressões, o sofrimento com a exclusão imposta
perplexidade das pessoas e, por fim, a grande persistência e inconformismo diante da vida
125
FONSECA, Katia. Depoimento apresentado na XVIII Escola Internacional de Atores, realizada pelo
Teatro delle Radici, em julho de 2005, em Lugano, Suíça.
194
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era um dos motivos que mais haviam estimulado a atriz para uma empreitada cênica sobre
a vida do pintor.
poucos ensaios, tornou-se evidente que a simples exposição da conformidade física da atriz
parecia dizer tanto quanto a história contada pelo texto. Assim, vendo-a em cena com seu
encenação.
Houve ainda a opção por abordar também os temas relativos à vida de Katia e às suas
experiências pelo mundo, com o objetivo de fundí-los à história do pintor e, a uma só voz,
concretas. O tom irônico e bem humorado que a atriz passou a adotar – um traço que lhe é
espírito sarcástico que parece ter sido uma das características maiores de Toulouse-
Lautrec. Por outro lado, ela passou a evidenciar e dar voz efetiva também à sua própria
situações que se imaginava terem sido vividas pelo pintor e aquelas efetivamente vividas
pela atriz encontraram um ponto comum em seu corpo e conformidade, numa consonância
plena com as palavras de Ubersfeld (2005, p. 88): "É preciso insistir na evidência de que a
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texto, como se a personagem-texto fosse lida de outro modo, modificada pelos signos
Considerando, ainda de acordo com Ubersfeld, que o texto teatral tende a ser
apresentadas pela atriz-autora tornaram possível uma polifonia de sentidos. Isto porque,
sobrepor aos demais. As suas especiais condições tornam possível uma alusão a si mesma,
enquanto referência valorativa, não dizendo somente por meio do discurso da personagem,
mas também dela própria. Assim, tais características constituíam-se como importante
elemento cênico, pois que agregavam força dramática ao personagem, evocando questões
196
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neste caso transparecem nas estruturas do arquétipo (Abirached,
1994, p. 44).126
Não seria exagero afirmar que o corpo que ali se apresentava, não tratando de
dificuldade em cumprir com tarefas aparentemente simples – foram realçadas as ações que
rolar ou apanhar objetos pelo chão, golpear no espaço com a bengala e mesmo tirar o
casaco ou fixar o pince-nez no nariz. De difícil execução para a atriz, essas ações
que eu possa me ver nas mais diversas situações que talvez a vida, por
126
Por nuestra parte, vemos tres maneras de cristalización del personaje en el imaginario colectivo (...)
Unas vezes el personaje se halla consonancia con la memoria de su público, y lleva consigo entonces los
reflejos perfectamente identificables de un sistema de imágenes ejemplares, valoradas por la ideologia de su
época y atesoradas para su utilización por las generaciones siguientes. Otras vezes está ligado a un
imaginário social, productor de tipos familiares para todo el mundo, y en los que cada uno gusta de
reconocer su visión de la vida cotidiana en la colectividad, de las creencias y de la moral del grupo: en este
caso se halla sometido a un código, admitido por todos, que fundamenta una tipologia general de los roles y
modos de expresión. Otras, por último se halla ligado a las instancias fundadoras del inconsciente colectivo,
y en ese caso se transparentan en él las estructuras del arquetipo.
197
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pergunta que faço é: onde, em mim, é exatamente igual ao espectador,
fora de padrão. Tratava-se do uso e da presença cênica de uma disfunção, que não era
aludida nem representada, mas impunha-se concretamente por meio da atriz. O seu corpo
configurava a partir da simples presença da atriz, com o peculiar comportamento que suas
de algo incerto (coisa, objeto, brinquedo) que dela emanava. Ainda em seu depoimento, a
atriz expõe sobre essa condição e cita exemplos da capacidade performativa que dela
decorre:
não. Não é uma opção, é uma fatalidade. Assim ela provoca reações
127
FONSECA, Katia. Idem.
198
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[...] Entrei num restaurante e, depois de me sentar à mesa, percebo um
olhar fixo sobre mim de uma mulher grávida sentada na mesa ao lado.
amigos e pelo marido que estão com ela. Ela vai melhorando, mas
Percepção imediata do próprio corpo, de sua imagem e dos sentidos por ele
emitidos, bem como sua relação com o espaço circundante são, sem dúvida, qualidades
fundamentais ao ator. Entretanto, por maior que seja sua capacidade de construir
signos inconscientes e/ou involuntários que emite. Assim, o seu trabalho passa a ser
de inconscientes em conscientes.
Para Ubersfeld (1997), seriam três os tipos de signos emitidos pelo ator: os
propriamente não intencionais. O primeiro caso diria respeito aos recursos técnicos
etc, e também aqueles signos convencionalmente admitidos pelo código teatral, como a
forma involuntária – embora nem sempre inconsciente – pelo próprio artista, como é o
128
FONSECA, Katia. Ibidem.
129
Termo empregado por Ubersfeld (1997, p. 172)
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caso de sua estatura, do timbre ou tom de sua voz, de sua aura, e de expressões
contestado e admitido como verdadeiro pelo espectador, que o assemelha ao seu mundo:
"Como a criança (descrita por Freud) que tem prazer na brincadeira do carretel jogado e
depois recuperado, em ser ao mesmo tempo ator e espectador, a denegação faz a cena
Num sentido inverso, como que saído do terreno do sonho e da fantasia para
sua volta como cena e locus teatral, será capaz de estimular a denegação naqueles que o
rodeiam.
sua conformidade física extremamente singular. Seu corpo disforme joga, sobretudo com a
visibilidade, terreno maior das sensações humanas e à qual se delega o principal papel para a
pela deformidade torna-se testemunho inconteste de seu próprio inacabamento e imperfeição, sendo
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