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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO

CENTRO DE LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO

TESE DE DOUTORADO

O TEATRO DAS DISFUNÇÕES


OU A CENA CONTAMINADA

José Amâncio Tonezzi Rodrigues Pereira

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: TEORIAS E TÉCNICAS TEATRAIS

Rio de Janeiro, fevereiro de 2008

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Pereira, José Amâncio Tonezzi Rodrigues.
P436 O Teatro das disfunções, ou, A Cena contaminada / José Amâncio To-
nezzi Rodrigues Pereira, 2008.
200f.

Orientador: Ana Maria de Bulhões-Carvalho.


Tese (Doutorado em Teatro) - Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

1. Representação teatral. 2. Performance (Arte). 3. Artistas deficientes


físicos. 4. Artistas com deficiências mentais. 5. Grotesco na arte. 6. Cor-
po e mente. 7. Teatro – Filosofia e estética. I. Bulhões-Carvalho, Ana Ma-
ria. II. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003-). Cen-
tro de Letras e Artes. Doutorado em Teatro. III. Título.

CDD – 792.028

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO

TESE DE DOUTORADO

O TEATRO DAS DISFUNÇÕES


OU A CENA CONTAMINADA

Autor: José Amâncio Tonezzi Rodrigues Pereira

Texto apresentado à Banca de tese


como requisito necessário para
obtenção do título de Doutor em
Teatro. Orientadora: Profa. Dra.
Ana Maria de Bulhões-Carvalho

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PEREIRA, José Amâncio Tonezzi Rodrigues. O teatro das disfunções ou a
cena contaminada. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro, UNIRIO. Rio de Janeiro, fevereiro de 2008.

_______________________________________
Profa. Dra. Ana Maria de Bulhões-Carvalho
(orientadora)

Banca:

_______________________________________
Profa. Dra. Márcia Maria Strazzacappa Hernández

_______________________________________
Prof. Dr. Frederico Augusto Liberalli de Góes

_______________________________________
Profa. Dra. Nara Keiserman

_______________________________________
Prof. Dr. José Luiz Ligiero Coelho

Suplentes:

_______________________________________
Profa. Dra. Carmen Lúcia Soares

_______________________________________
Prof. Dr. Ricardo Kosovski

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho

Aos meus pais e, em especial, ao meu filho Gabriel.

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AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

Aos caríssimos João Vitti e Valéria Alencar, pela amizade, generosidade e acolhimento.

À Gea Drumbl, pelo apoio e participação em momentos que me foram essenciais.

Ao Prof. Georges Banu, da Université Paris 3 – Sorbonne Nouvelle, pela indispensável


aceitação e colaboração em meu estágio naquela instituição, com bolsa PDEE da Capes.

Aos Profs. Leslie Damasceno, da Duke University (EUA), e Ricardo Kosovski, da


UNIRIO, pelo estímulo e pertinente cooperação em minha qualificação.

À Pepe Robledo (Compagnia Pippo Delbono), Amaro Carbajal e Sylvie Reutena


(Compagnie L'Oiseau Mouche) e Olivier Couder (Théâtre du Cristal), pela gentileza e
disponibilidade.

Agradeço, ainda:

Ao Marcus e à Aline, funcionários do PPGT-UNIRIO; à Selma Trevino; à Dona Lúcia (e


também ao Rafael e ao Francisco); à minha irmã Marinete e colegas do Laboratório do
Ator-Companhia de Arte Intrusa, que estiveram comigo nesse período.

Aos Profs. Joseph Danan, Christophe Bident e C. Triau (Université Paris); às Profas.
Carmen Lúcia Soares (UNICAMP) e Tatiana Motta Lima (UNIRIO).

Ao Programa de Pós-Graduação em Teatro da UNIRIO, em especial aos professores Luiz


Camillo Osório, Ângela Materno, José da Costa e Zeca Ligiéro, além da minha querida
orientadora Profa. Ana Maria de Bulhões-Carvalho.

Aos colegas de curso, pela constante interlocução, e a todos aqueles que, de alguma
maneira, contribuíram para o amadurecimento e evolução deste estudo.

À CAPES, pelo indispensável auxílio no período de pesquisa.

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J'ai voulu qu'il s'agisse toujours d'existences réelles; qu'on puisse
leur donner un lieu et une date; que derrière ces noms qui ne disent
plus rien, derrière ces mots rapides et qui peuvent bien la plupart du
temps avoir été faux, mensongers, injustes, outranciers, il y ait eu
des hommes qui ont vécu et qui sont morts, des souffrances, des
méchancetés, des jalousies, des vociférations. (Foucault, 2001, p.
239)

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Resumo

A cena contaminada de que trata esta tese refere à apropriação cênica de disfunções e

distúrbios do corpo e da mente, observada no espetáculo a partir do séc. XVIII e,

sobretudo, no séc. XX, em movimentos estéticos que fazem do corpo o suporte para sua

manifestação. Com base no processo histórico da percepção social do corpo e do

comportamento ditos fora de padrão, o estudo identifica o momento de aproximação e

posterior intersecção ocorridos entre arte e anomalia, e sua incidência no campo teatral,

para então abordar os resultados disso em práticas e procedimentos realizados pela cena

contemporânea.

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Abstract

The term infected stage used in the title of this thesis refers to the theatrical utilization of

the body and mental disturbances happened in the scene from the 18th century and

especially during the 20th century on artistic manifestations that use the body as a support

for their occurrence. Based in the historical process of the social perception of the

abnormal body and behavior, this research identifies the approach and the intersection

between art and abnormality, and its occurrence in the theatrical area to analyze them in

the contemporary scene.

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Précis

La dénomination scène contaminée qui compose le titre de cette thèse est une référence à

l'appropriation scènique des anomalies corporelles et des maladies mentales verifiée au

théâtre depuis le XVIIIème siècle et, surtout, pendant le XXème siècle, aux mouvements

esthétiques qui font du corps son lieu de manifestation. Basé au procès historique de la

perception social du corps et du comportement anormal, cette rechérche identifie le

moment de raprochement et intersection entre l'art et l'anomalie, et son occurrance au

théâtre, pour réfléchir sur ses conséquences dans la scène contemporaine.

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SUMÁRIO

Introdução................................................................................................................... p. 11
Capítulo 1
1.1. Nomear e punir..................................................................................................... p. 20
1.2. A crônica das reações anunciadas.......................................................................... p. 29
1.3. Uma estética do estigma?....................................................................................... p. 35
1.4. O corpo grotesco e o corpo do mundo................................................................... p. 54
1.4.1. O grotesco no corpo................................................................................ p. 61
1.4.2. O grotesco em cena................................................................................. p. 71
Capítulo 2
2.1. Cena e contágio....................................................................................................... p. 76
2.1.1. A "mise en scène" do corpo...................................................................... p. 81
2.1.2. O desencantamento do estranho............................................................... p. 87
2.2. Gênese de uma cena integradora........................................................................... p. 100
2.2.1.O lugar cênico do apesar.......................................................................... p. 104
2.3. Acerca da denegação............................................................................................. p. 112
Capítulo 3
3.1. A poesia imagética de Robert Wilson..................................................................... p.117
3.1.1. Encontros singulares................................................................................. p.123
3.1.2. Construção dos espetáculos...................................................................... p.129
3.1.3. Einstein on the beach................................................................................ p.135
3.2. O teatro anômalo de Pippo Delbono....................................................................... p.143
3.2.1. Bobò e cia. ou de como nascem flores..................................................... p.150
3.2.2. Construção dos espetáculos..................................................................... p.158
3.2.3. Gente di plastica....................................................................................... p.164
3.2.4. Questo buio feroce................................................................................... p.168
3.3. De imagens e viagens: uma breve aproximação..................................................... p.173
Conclusão..................................................................................................................... p. 179
Bibliografia.................................................................................................................. p. 182
Anexo Lautrec: uma experiência singular.....................................................................p. 187

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INTRODUÇÃO

Nós vivemos num tempo condenado, contaminado que foi pela doença do

consumo, do lucro e do acúmulo de capital a todo custo, sem escrúpulos nem ética. O

tempo dos assassinos, como diria Pippo Delbono1, emprestando as palavras de Rimbaud.

Por isso, o teatro está também contaminado. Mas a contaminação do teatro vai contra a

contaminação do mundo. Ela se dá como forma de defesa, de geração de anticorpos.

A cena contaminada parte de uma concepção de anomalia que invade e ocupa o

teatro (a surdez, a deformação, a loucura, as disfunções cerebrais) para instalar-se como

contágio cultural. É resultado de um campo devastado, onde a vida aflora justamente do

que restou: dos destroços, das sobras, das ruínas.

A ocupação do teatro pelas disfunções do corpo, da mente e do comportamento não

é fruto senão do próprio tempo. Não se trata de um teatro simplesmente democrático, que

dá voz aos excluídos e marginais da sociedade. Não é à inclusão que se refere quando se

diz contaminação. Ao menos, não no sentido de um bom-mocismo, de uma prática de

tolerância ou de compaixão. A contaminação aqui tem um sentido implícito, corrosivo.

Trata-se, isto sim, de um movimento contrário, estrangeiro, com origem do lado de fora e

cuja ação é sorrateira, dissimulada. Uma prática de intromissão, invasiva, contagiosa. Em

outras palavras, o teatro contaminado é uma arte intrusa por natureza.

O presente estudo se dá com base na percepção de um processo histórico e estético

que envolve cenicamente as disfunções e os distúrbios do corpo, da mente e do

comportamento. Sua origem remonta a uma proposta apresentada, em 2004, ao Programa

1
A Companhia Pippo Delbono é um dos casos estudados no capítulo 3, a partir dos trabalhos que assisti em
minha viagem à França com Bolsa PDEE da CAPES. Il tempo degli assassini (O tempo dos assassinos) é o
título dado pelo diretor italiano a um de seus espetáculos.

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de Pós-Graduação em Teatro do CLA-UNIRIO, que se restringia ao universo das afasias2,

como decorrência de um processo iniciado em meu mestrado em Psicologia Educacional

pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE-UNICAMP).

Naquela ocasião, eu era pesquisador do Centro de Convivência de Afásicos do Instituto de

Estudos da Linguagem (IEL) daquela universidade, onde desenvolvia atividades teatrais

com pessoas cérebro-lesadas, estudo que resultou numa publicação em livro3. As

atividades tinham por propósito auxiliar aqueles indivíduos em sua reinserção social após a

lesão, cujas sequelas incidem, em geral, na fala, na construção do pensamento e/ou na

expressão gestual. E a dissertação deu conta das reflexões sobre a experiência realizada.

Para a pesquisa proposta inicialmente ao doutorado, o investimento reflexivo se

deslocaria para as possibilidades de atuação cênica de pessoas afásicas considerando suas

dificuldades de comunicação, isto é, um estudo sobre o que poderia incorrer na arte

produzida, em função da maneira diferenciada de expressão cênica dos afásicos. No

entanto, além de contratempos como a interrupção dos encontros previstos com o grupo,

que obrigaram a suspensão dos trabalhos, inviabilizando a proposta, as discussões

ocorridas durante os seminários de Metodologia, conduzidos pela Profa. Ana Maria de

Bulhões-Carvalho, apontaram para a necessidade de uma revisão nos propósitos da

pesquisa. Na ocasião teve grande importância o filme Les mots perdues (As palavras

perdidas), produção franco-canadense cujo elenco é composto em sua maioria por atores

com afasia, abrindo a percepção de que uma reflexão sobre a presença cênica de atores

com disfunções do corpo e da mente pudesse nortear o novo momento da investigação.

O encaminhamento dado, abrigando a singularidade corporal e comportamental

como elemento cênico, possibilitou um enfoque ampliado da pesquisa, que transcendesse a

questão das afasias e percebesse o quanto a presença, em cena, das disfunções já ocorre e

2
A afasia decorre de uma lesão adquirida no cérebro, cuja causa pode ser um acidente vascular cerebral
(AVC), um traumatismo craneo-encefálico ou um tumor cerebral.
3
Tonezzi (2007).

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tem sido importante na história recente do teatro. Assim, utilizado em princípio, o filme

acabou abandonado devido à opção em se abordar a incidência das disfunções

especificamente no âmbito teatral.

Na mudança de atitude em relação ao que pode oferecer o ator de físico, de mente

ou de comportamento alterados para as propostas da arte contemporânea configura-se a

hipótese fundadora desta tese: afirmar que o que poderia ser considerado negativo,

empecilho ou limitação pode se tornar, ao contrário, matéria efetiva de criação teatral e

experiência estética. A cena que absorve a diferença está de tal modo impregnada pela

força dos traços marcados desses atores, que será por eles contaminada, obrigando o

espectador a um novo olhar sobre ela. A tese exercita este novo olhar sobre a cena.

A metodologia utilizada se vale primeiramente da compreensão dos processos

histórico e estético que perfazem a relação e a percepção social dos distúrbios do corpo e

do comportamento humano. Para isso, evoca-se um conjunto de reflexões advindas de

áreas diversas como a história, a sociologia, a filosofia e as artes, capaz de explicitar que é

justamente pela via da constituição estético-social que a apropriação cênica das disfunções

se torna possível. Neste sentido, a disposição dos tópicos busca favorecer esse

entendimento, ao abrir a discussão pela via da nomeação, uma vez que, em primeira

instância, qualquer fenômeno é reconhecido socialmente a partir de uma denominação, que

indique as propriedades, similitudes, defeitos e atitudes dessa ocorrência. A nominação, em

si, impõe ou pressupõe uma qualidade ou entendimento a um sujeito ou a um objeto com o

qual vá se relacionar. Ora, se este objeto é insólito, incomum, a denominação trará consigo

essa marca.

O primeiro capítulo da tese traça o percurso e acompanha as transformações por

que passou a percepção social dos variados fenômenos relativos ao corpo mal formado e à

mente perturbada, quando a tentativa do seu entendimento acaba tendo consequências em

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sua denominação. Será possível perceber, por exemplo, que o desconhecimento e a

superstição envolvendo o assunto contribuíram para o aumento do preconceito e refletiram

tanto nas alcunhas e no tratamento a eles imputados, quanto nas interpretações sobre as

origens dos fenômenos evidenciados. A estigmatização, nesta tese, é vista como a

imposição que ocorreu durante muito tempo e nas mais diversas civilizações, quando então

esses fenômenos eram associados a fatores sobrenaturais e, em geral, negativizados.

A categoria expressiva do grotesco abre um canal estético entre "a bestialidade da

natureza humana e a humanidade dos animais" (Pavis, 2001, p. 189), num movimento de

inversão de perspectivas provocado pela mistura de gêneros e estilos. Deformação

significativa de formas normatizadas e reconhecíveis, o grotesco coaduna com o real e com

o humano pela derrisão, emprestando um caráter também cômico a figuras híbridas e

monstruosas. Ao envolver a disformidade, o inacabamento e a hibridez de formas, o

grotesco acabaria por se inserir na obra de muitos artistas – sobretudo, de pintores – e nas

manifestações populares, garantindo presença e sentido poético aos seres mal formados,

loucos e supostamente monstruosos e inumanos. Essa incidência desestabilizadora no

âmbito da percepção transforma o grotesco num efetivo canal de manifestação para as

disfunções do corpo e da mente, tornando sua abordagem de extrema importância para a

presente tese.

Cumpre esclarecer, no entanto, que o caráter do grotesco aqui referido não diz

respeito a um determinado estilo de literatura dramática ou ao resultado de um

procedimento forjado no âmbito da encenação. O elemento grotesco que se quer aqui

denotar, o qual poderia ser objetivamente referido como fenômeno natural e cenicamente

exposto não é aquele obtido por tratamento específico de cenários, luzes e trabalhos de ator

para ganhar esse perfil e produzir esse efeito. (E não são raras as obras e personagens que,

no teatro, se destacam pelas características e condições grotescas criadas artificialmente

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para evidenciar os traços dramáticos, melodramáticos, cômicos ou tragicômicos.) Trata-se,

aqui, da presença em cena do que se configura como naturalmente grotesco, como o corpo

disforme e mutilado ou o sujeito cujo comportamento e expressão estejam alterados em

razão de algum distúrbio físico, intelectual ou mental – o grotesco em seu estado natural, o

grotesco como condição existencial. Nesse contexto, a apropriação cênica das disfunções e

das deformidades propriamente ditas tem, em si, força capaz de questionar o entendimento

de que o grotesco só existe como projeção estético-ideológica e de redimensionar esse

conceito4.

No mundo contemporâneo, a manifestação artística e a vida cotidiana incidem um

no outro com uma frequência cada vez maior. Isso faz com que o grotesco ganhe novas

configurações, saltando das obras de arte e de ficção para o espaço real da sociedade, onde

se instala uma verdadeira revolução de caráter protético, embalada pela possibilidade da

substituição, do acréscimo, da transposição e da multiplicação. É quando o grotesco se

propaga, transcendendo questões até então restritas ao âmbito do virtual e revela uma

faceta mais terrível: além de assombrar e desestabilizar o olhar, coloca em xeque o próprio

senso de percepção, quando põe em dúvida a existência daquilo que se percebe como real.

O capítulo dois identifica o momento de aproximação entre a atividade teatral e os

distúrbios de ordem física e mental, delineando o processo que culmina com a apropriação

cênica das disfunções. Constata-se que tal procedimento tem seus primórdios nas exibições

de feira do século XVIII e se efetiva com o advento dos movimentos artísticos no correr do

século XX, quando ocorre uma intersecção entre o teatro, as artes plásticas e várias outras

linguagens. São tomadas como referência dentro do chamado teatro institucional do séc.

XX, duas companhias francesas: Théâtre du Cristal e Compagnie de l’Oiseau Mouche,

propostas de alguma maneira vinculadas à idéia de reabilitação ou de inserção sócio-

4
"Não existe o grotesco, mas projeções estético-ideológicas grotescas (grotesco satírico, parabólico, cômico,
romântico, niilista etc)" (Pavis: 2001, p. 188).

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profissional de seus integrantes. Ainda que se considere o seu valor como objeto artístico,

tais iniciativas mostram-se como decorrência de uma prática de inclusão social em

crescente marcha no correr do século, sobretudo, a partir da década de 1970. Enfatizando a

capacitação e o potencial poético de seus integrantes, elas se mostram como representantes

de um importante estágio no desenvolvimento da contaminação cênica pelas disfunções.

Numa espécie de conclusão para as questões discutidas nos dois primeiros

capítulos, aborda-se o fenômeno da denegação, situação em que o espectador refuta o

caráter ilusório da cena, tendo a sensação de que aquilo que vê e percebe se constitui

realmente. A denegação realça um dos temas cruciais para o presente estudo, que diz

respeito à recepção e reação do público diante das chamadas singularidades. Se está certo

Richard Schechner (2003), para quem a performance ocorre em ação, interação e relação,

não estando em nada, mas entre, é possível afirmar que o elemento performático se

encontra já numa simples intervenção pública de um sujeito com características

explicitamente diferenciadas. Ou seja, o estranhamento ou rejeição provocada pela

presença desse indivíduo seria, em si, resultado de uma performance, instada entre ele (o

ser percebido) e o observador. Pode se concluir, dessa maneira, que as condições pré-

estabelecidas de aparência ou comportamento favorecem na pessoa "fora de padrão"5 a

criação de um estado de surpresa, muitas vezes só alcançável pelo ator comum6 através de

um efetivo trabalho de preparação. Conforme afirma De Marinis (1987), é justamente a

surpresa e o assombro o quê, numa performance, atrai o interesse e mantém a atenção do

espectador, tornando possível perceber nos distúrbios e disfunções de ordem física ou

5
Em consonância com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a lei brasileira (Decreto Federal n.º 914/93)
define a Pessoa Portadora de Deficiência (PPD) como o indivíduo que "apresenta, em caráter permanente,
perdas ou anomalias de sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gerem
incapacidade para o desempenho de atividades dentro do padrão considerado normal para o ser humano".
6
Sobre o ator: em algumas passagens, utilizo os adjetivos comum e incomum, por uma necessidade de
diferenciação entre o ator que não possui uma singularidade extremada e o outro que apresente algum tipo de
disfunção, este que é objeto da tese.

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mental – juntamente com os seus sintomas ou seqüelas – um efetivo instrumento para o

exercício teatral.

O capítulo três refere-se à Robert Wilson e Pippo Delbono como exemplos de

diretores-autores influenciados, no decorrer de suas histórias, pelo contato com os

distúrbios e as disfunções do corpo e da mente. Trata-se de práticas diferenciadas entre si,

desde a forma de abordagem até o momento e lugar de suas incidências. Enquanto Wilson

leva a cabo suas criações entre as décadas de 1960 e 1980, nos Estados Unidos, ampliando-

as depois para outros lugares do mundo, o trabalho do italiano Pippo Delbono torna-se

efetivamente conhecido na década de 1990. Se o diretor norte-americano percebe as

disfunções cerebrais e sensitivas como interessante matéria para a cena praticamente desde

o início de sua vida no teatro, Delbono se dará conta disso apenas quando,

coincidentemente, encontra-se ele mesmo enfermo, passando a acolher em sua trupe atores

com os mais variados tipos de distúrbios. Em ambos os casos, é a prática do bricoleur,

conforme citada em Derrida (1995) que se contempla: "O bricoleur, diz Lévi-Strauss, é

aquele que utiliza 'os meios à mão', isto é, os instrumentos que encontra à sua disposição

em torno de si, que já estão ali, que não foram especialmente concebidos para a operação

na qual vão servir" (p. 239). Embora se referindo à prática discursiva, especialmente no

âmbito da crítica literária, o exemplo de Derrida serve bem ao entendimento dos

procedimentos cênicos operados por Delbono e Wilson, que se valem justamente da

diferença de origem e constituição de seus atores – muitos deles, não-profissionais e sem

contato anterior com o teatro – para a composição de um discurso cênico bastante pessoal e

autêntico.

Por fim, no anexo, apresento uma breve reflexão sobre um processo vivenciado por

mim na direção do espetáculo Lautrec. A opção por juntar à tese esse breve material foi

motivada pelo fato de se tratar de uma prática criativa paralela desenvolvida ao longo da

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pesquisa, sob a influência das reflexões que vinha realizando. O trabalho solo conta com a

participação de Katia Fonseca, atriz com qualidades físicas extremamente peculiares,

advindas de uma má formação óssea congênita, o que empresta ao resultado uma plena

conformidade com as questões aqui abordadas.

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CAPÍTULO 1

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NOMEAR E PUNIR

A nomeação e o entendimento para aquilo que pareça humanamente estranho

apresentam-se, desde sempre, como algo delicado. No caso do presente estudo, por

exemplo, ainda que não se queira punitiva, a distinção nominativa mostra-se como

exigência para um efetivo entendimento na referência ao ator que apresente características

extremamente diferenciadas. E já se mostra difícil encontrar aqui termos qualificados, que

traduzam a real condição do que se quer denotar. Socialmente, porém, isto se torna ainda

mais complexo, constituindo-se como exemplos o monstro e o louco, casos em que se está

lidando não apenas com a denominação de algo, mas com circunstâncias que remetem à

ordem geral das coisas e da existência, ou seja, ao sentido e harmonia da própria vida.

Assim, a percepção de seres extraordinariamente alterados, sobretudo corporalmente,

gerou por muito tempo um questionamento de caráter jurídico-religioso, em que se

pretendeu até mesmo a sua exclusão do cotidiano social, fosse pela eliminação ou pelo

isolamento, relacionando-os por vezes ao sobrenatural, aquilo que não se explica senão

pela intervenção de forças desconhecidas.

Para Malinowski (1972, p. 319), a palavra tem origem na ação humana, estimulada

pela necessidade e pela percepção imediata do mundo ao redor. É quando a palavra só se

define pela presença da realidade que ela significa: “O som ainda não é um símbolo real,

pois não é usado desligado do seu referente”. Na linguagem primitiva, assim como para

uma criança, a palavra cumpre uma função anímica, pois que imbuída de forças ativas e

eficazes, capazes de interferir na realidade, presentificar pessoas e objetos, mover, atrair ou

repelir coisas exteriores. Assim, pode se dizer que a palavra tinha poder sobre aquilo que

representava, sendo idêntica à própria natureza da coisa.

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Esse interesse prático do ser humano decorreria numa noção de denominação como

relação ou posse e, num uso mais avançado – já como esboço para um estágio subjetivo –,

a pessoa ou coisa passa a ser denominada como sujeito de ação, em que o nome dado

advém de uma predicação (aquele que corre, aquilo que voa, etc). Com o desenvolvimento

da linguagem e do pensamento, a ação constante da metáfora, da generalização, da

analogia e da abstração teria levado a uma livre movimentação de palavras e raízes, com o

rompimento de fronteiras e a consolidação de vínculos entre categorias gramaticais. Esse

fato tornou possível ao homem acessar conjecturas e composições complexas de

pensamento, legando-lhe também uma dificuldade cada vez maior na definição semântica

de um termo. Se para o homem primitivo a denominação se dava com base no

conhecimento prático e ativo das coisas e pessoas dentro de certa situação, o deslocamento

– ou ampliação – da palavra para o universo da abstração passa a requerer, em diversos

casos, referentes variados o que dificulta um significado e uma compreensão única, geral e

concreta. Essa é, ao que parece, uma das questões que decorrem numa complexa e

duradoura discussão sobre o sentido e significação não apenas do discurso, mas da própria

formulação do conceito de realidade.

Neste sentido, a não disposição de informações concretas sobre a causa ou

propósito de uma ocorrência imputa-lhe um caráter dúbio e incide sobre o seu conceito e

denominação É o que levou uma população de seres incomuns a serem agrupados, por

muito tempo e em diferentes civilizações, sob uma mesma e genérica alcunha. E o termo

monstro ganhou dimensão também no âmbito humano. Essa terminologia, quando aplicada

à percepção corporal de um indivíduo, investe-se de um desvirtuamento do olhar idêntico

ao que ocorre quando se está diante de algo destituído de forma conhecida, mas que, de

alguma maneira lembre o corpo do observador:

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O termo monstro em seu uso corrente emana então de uma

experiência perceptiva. [...] A subjetividade que pensa a vida permite

também a experiência íntima. E o objeto da teratologia pode ser neste

sentido o objeto de um encontro. Um ser que se assemelha a um

homem não restaria sem valor. Se o conhecimento pode esclarecer a

natureza do monstro, ele não pode evitar que se estabeleça uma

relação mais íntima, quando o observador se vê projetado em sua

pele, nem que seja pelo espaço de um instante (Lecourt, 2004, p.

747).7

A partir do Renascimento, um novo modelo de conhecimento se instituiria com

base na dualidade sujeito/objeto, que coloca de um lado o homem como observador e, de

outro, o mundo (inclusive o corpo humano) como matéria, realidade e objeto dessa

observação. O pressuposto básico desse modelo é que cada objeto possui um sentido

próprio ou concedido, o que tornaria o mundo um conjunto potencial de signos e, portanto,

legível.

O novo paradigma epistemológico orienta especialmente o olhar científico que, aos

poucos, chama para si a função de tentar compreender os fenômenos de âmbito corporal e

de comportamento até então inexplicáveis. Dessa forma, em fins do séc. XVIII, criou-se

em Paris a Societé des Observateurs de l’Homme, que reunia figuras proeminentes,

oriundas de diversas áreas do conhecimento, dentre as quais, Philippe Pinel e Geoffroy

Saint-Hilaire. O objetivo de tal sociedade era justamente rechaçar especulações, a partir de

uma grande coleta de fatos e de sua apurada observação, atitude que, para Jean-Jacques

7
Todas as traduções serão feitas pelo autor, com os textos originais apresentados em notas de rodapé: Le
terme de monstre dans son usage courant relève donc d´une expérience perceptive. (...) La subjectivité qui
pense la vie en fait aussi l´expérience intime. Et l´objet de la tératologie peu être en ce sens l´objet d´ une
rencontre. Un vivant qui paraît bien être un homme ne saurait être sans valeur. Si la connaissance peut
éclairer la nature du monstre, elle ne peut éviter que s´établisse un rapport plus intime, lorsque l´observateur
se voit ramené à sa propre chair, ne serait-ce que l´espace d´un instant.

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Courtine (2006), poria fim ao distúrbio perceptivo responsável pelo fascínio que sempre

moveu a curiosidade pelos prodígios humanos. Segundo esse autor, se antes a percepção

do corpo estranho estava vinculada a um mero voyerismo8 de massa, animado pela

curiosidade diante de algo estranho, o conseqüente reconhecimento pela ciência do caráter

indubitavelmente humano daquelas manifestações inseriu um novo caráter a essa relação.

Comumente classificatória, como é do feitio da ciência, a nova nomenclatura

decorre numa cientificização dos termos, refletindo-se e de alguma maneira concorrendo

com a percepção comum, ainda muito estimulada pelo espanto e pela curiosidade com

relação aos chamados “erros da natureza”: estranhezas anatômicas, retardamentos mentais

ou simples aparências grosseiras. É o tempo dos museus e do comércio teratológico que,

entre os séculos XVIII e XIX, se aproveitam de um suposto aval científico para exibir

comercialmente suas raridades. É também quando as denominações para os fenômenos

ganham um cunho publicitário, vinculadas sobretudo à androgenia e à hibridez: o homem-

tronco, o homem-elefante, a mulher barbada, dentre outros. Há ainda a exposição explícita

de outras anomalias mentais e congênitas, sempre alcunhadas de maneira chamativa, de

forma a atrair o público. Tais denominações, entretanto, não passavam de estratégias para

explorar o lado humano daqueles seres, num apelo à condolência e à piedade do

espectador. Uma “economia da compaixão”, como bem nomeia Courtine (2006, p. 232).

No entanto, com o surgimento da fenomenologia, em fins do séc. XIX, haveria o

que Hans Ulrich Gumbrecht identifica como colapso dessa bipolaridade sujeito/objeto,

com a noção de realidade deixando de ser sinônimo da noção de verdade e ocasionando o

que ele chama “desregulação do signo”.

Neste cenário epistemológico e intelectual emergiu uma nova

disposição a aceitar como 'reais' fenômenos que não podiam ser

8
Termo utilizado por Courtine para a ação do voyeur, ou seja, aquele cujo prazer está em apreciar pelo olhar.

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definidos como existentes independentemente da mente humana. Ela

abriu a brecha entre o 'conhecimento verdadeiro' sobre o mundo dos

objetos e as 'realidades' produzidas pela mente humana (Gumbrecht,

1998, p. 162).

O autor inscreve seu pensamento num gênero acadêmico intitulado

Begriffsgeschichte (história conceitual), cujo intuito dentre outros é “esclarecer as

implicações veladas e recuperar o potencial semântico esquecido de noções no uso

sistemático e corrente” (1998, p. 160), e lembra que este foi também um dos pontos de

partida para a teorização freudiana da Psicanálise. Citando ainda uma série de pensadores

que, segundo ele, contribuíram para essa mudança no conceito de realidade, Gumbrecht

informa, por exemplo, que Nietzsche (1844-1900) teria sido o primeiro a questionar

seriamente o paradigma sujeito/objeto, que Husserl (1859-1938) negava a possibilidade de

observar diretamente o mundo dos objetos e que Bergson (1859-1941) definia como “real”

uma esfera intermediária, fora desse modelo.

No campo do discurso, Michel Foucault chama a atenção para a importância de se

inquietar perante recortes e grupamentos perenes e já familiares. Em seu estudo sobre as

unidades discursivas, trata do emprego de conceitos como a descontinuidade, a ruptura e o

limite, dentre outros, invocando as noções de tradição, de influência, de desenvolvimento e

evolução, e de mentalidade ou de espírito:

É preciso repor em questão essas sínteses acabadas, esses

agrupamentos que, no mais das vezes, admite-se antes de qualquer

exame, esses laços cuja validade é reconhecida desde o início; é

preciso desalojar essas formas e essas forças obscuras pelas quais se

tem o hábito de ligar entre si os discursos dos homens; é preciso

expulsá-las da sombra onde reinam. (Foucault, 1972, p. 32)

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Na mesma obra, Foucault levanta diversas precauções contra o que chama

“continuidades irrefletidas” de organização dos discursos, entre elas, a aceitação de um

começo aparente, que acobertaria uma origem secreta, impossível de ser inteiramente

apanhada, onde todos os começos seriam recomeço ou ocultação: “na verdade, em um

único e mesmo gesto, isto e aquilo” (1972, p. 36). Referindo-se à unidade de uma obra,

afirma que esta não deve ser considerada “nem como unidade imediata, nem como unidade

certa, nem como unidade homogênea” (1972, p. 35), mas variável e relativa, construindo-

se somente a partir de um complexo campo de discursos. E complementa:

(...) Todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já-

dito; e que este já-dito não seria simplesmente uma frase já

pronunciada, um texto já escrito, mas um ‘jamais-dito’, um discurso

sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro, uma escritura

que não é senão o vazio de seu próprio traço. Supõe-se assim que

tudo o que o discurso formula já se encontra articulado nesse meio-

silêncio que lhe é prévio, que continua a correr obstinadamente

abaixo dele, mas que ele recobre e faz calar. O discurso manifesto não

passaria, afinal de contas, da presença repressiva do que ele não diz, e

esse não-dito seria um vazio que mina, do interior, tudo que se diz

(1972, p. 36).

Além dos próprios enunciados, estariam em questão a atividade consciente do

sujeito falante e o jogo inconsciente que, apesar dele, vem à luz, propiciando a

reconstituição de um outro discurso e o restabelecimento de um texto invisível que anima a

voz ouvida. Foucault defende a importância de se reconhecer e preservar o espaço para tal

ocorrência, o que no fundo significaria tornar-se livre para se operar com o que ele chama

jogos de relação. Com isso, parece abrir uma perspectiva de aproximação com o

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pensamento de Gilles Deleuze quanto à manifestação, um das três relações apontadas por

ele como contidas na proposição (as outras duas seriam a designação e a significação).

Para esse autor, a manifestação se constitui de desejos e crenças – tidas como inferências

causais e não como associações – ligadas ao sujeito que fala e se exprime: “O desejo é a

causalidade interna de uma imagem no que se refere à existência do objeto ou do estado de

coisas correspondente; correlativamente, a crença é a espera deste objeto ou estado de

coisas, enquanto sua existência deve ser produzida por uma causalidade externa” (Deleuze,

1998, p. 14).

Já a designação (ou indicação) é sugerida por Deleuze como sendo a relação

daquilo que é proposto com um estado de coisas exteriores, operando “pela associação das

próprias palavras com imagens particulares que devem ‘representar’ o estado de coisas:

entre todas aquelas que são associadas à palavra, tal ou tal palavra à proposição, é preciso

escolher, selecionar as que correspondem ao complexo dado” (1998, p. 13). Neste caso,

certas palavras contidas na proposição serviriam como formas vazias para a evocação de

imagens, não sendo de modo algum conceitos universais, mas singulares formais que

cumprem o papel de puros “designantes” ou indicadores. Trata-se de termos como

isto/aquilo, aqui/acolá, ele, ontem/agora etc.

A terceira dimensão da proposição compreendida por Deleuze é a significação, que

aborda os vínculos da sintaxe com implicações de conceito e a relação da palavra com

conceitos universais ou gerais. Aqui, implicação é o signo definidor da relação entre

premissa e conclusão.

O valor lógico da significação ou demonstração assim compreendida

não é mais a verdade, como o mostra o modo hipotético das

implicações, mas a condição de verdade, o conjunto das condições

sob as quais uma proposição ‘seria’ verdadeira. (...) A significação

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não fundamenta a verdade, sem tornar ao mesmo tempo o erro

possível. Eis porque a condição de verdade não se opõe ao falso, mas

ao absurdo: o que é sem significação, o que não pode ser verdadeiro

nem falso (Deleuze, 1998, p. 15).

Pode-se afirmar que, tanto a crise do paradigma sujeito/objeto apontado por

Gumbrecht, quanto as assertivas de Foucault sobre os jogos de relação e de Deleuze a

respeito das relações contidas na proposição (sobretudo no que diz respeito à significação)

emprestam sentido e incidem também sobre as transformações ocorridas na percepção dos

distúrbios do corpo e do comportamento humano. Afinal, não se pode esquecer que foi

justamente aquele modelo epistemológico que tornou possível, por exemplo, a

classificação e ordenação das espécies teratológicas.

Na verdade, da mesma forma que para a loucura conforme tratada em Foucault

(1997), a unidade dos discursos sobre seres anômalos ou diferentes não se funda na

constituição de um único horizonte de subjetividade nem na existência do objeto em si.

Sujeitos a um jogo de regras, eles sempre foram marcados por medidas de discriminação e

de repressão, diferenciados na prática cotidiana, na jurisprudência, na casuística religiosa e

no diagnóstico médico, manifestando-se em descrições patológicas e limitados por códigos

ou receitas de medicação, de tratamento e de cuidados. É esse jogo de regras que assume o

tom de unidade discursiva em relação às transformações desses diferentes seres/objetos,

“sua não identidade através do tempo, a ruptura que se produz entre eles, a descontinuidade

interna que suspende sua permanência” (Foucault, 1972, p. 45).

Auto-exclusa, intrusa, estranha, a figura intitulada anômala ou simplesmente

diferente passa a freqüentar mais e mais o cotidiano moderno, mostrando-se como

presença que, em si, não diz mais respeito à diferença no sentido corrente de simples falta

de semelhança ou igualdade, mas de uma suspensão referencial de efeito polissêmico que

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se revela pela percepção e não pelo conceito. O corpo marcado reveste-se, assim, da noção

de différance, termo cunhado por Jacques Derrida que, conforme destacado em Santiago

(1976, p. 23), põe em questão o valor de presença justamente por privilegiar o presente

como determinação ou efeito e não mais como matriz absoluta do ser. Trata-se de uma

presença que traz em si o germe da ausência, não como referência substitutiva e vinculada

à necessidade de uma outra presença, e sim na concepção de Derrida, para quem o presente

sofreria um deslocamento, destituindo-se de uma referência privilegiada ou de um centro

fixo de significação: "Trata-se, antes, de pensar o que não foi possível ser, nem ser pensado

de outro modo. Dentro do pensamento da impossibilidade desse outro modo, nesse não-

outro-modo, se produz uma certa diferença, um certo oscilar, um certo descentramento que

não é a posição de um outro centro" (Santiago, 1976, p.12).

O ser incomum, indivíduo de corpo ou comportamento extremamente alterado é,

pois, um exemplo de "desregulação do signo", conforme acepção de Gumbrecht (1998),

impondo-se como fruto da relação entre o homem e aquilo que, mesmo enquadrado em

formalidades preceituais, insiste em rebelar-se contra o domínio e a compreensão do olhar.

Sua denominação, quase sempre de caráter punitivo ou distintivo – marca indelével do já

marcado – torna-se agora uma quase ineficaz (mas ainda necessária) redundância. E, ainda

que com certa reserva, será aqui assumida.

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A CRÔNICA DAS REAÇÕES ANUNCIADAS

Considerando a inexistência de um estudo específico e de estatísticas confiáveis

sobre o fenômeno da recepção a deformidades ou mutilações do corpo e aos distúrbios da

mente, podem servir de base os apontamentos feitos por Thomson (1972) e por Wieland

(séc. XVIII) acerca das reações provocadas pela imagem grotesca9 que, apesar de

suscitadas por figuras fantásticas e temáticas absurdas, incidem de forma efetiva no

universo conhecido, alterando a percepção que se tem das coisas. Neste sentido, reações

análogas às indicadas por aqueles autores, como o sarcasmo, a rejeição e o terror tornam-se

passíveis de ocorrer também em face do inusitado corporal, sensitivo e comportamental

manifestado no homem, dizendo respeito aqui a uma espécie de humana corporificação do

grotesco. Porém, num caso em que a percepção se dá na pessoa de um semelhante,

grotesca e humanamente presente, podem ainda se manifestar de maneira intensa duas

outras respostas: o constrangimento e a compaixão. Assim, para um melhor entendimento,

parece interessante que as reações sejam classificadas em três grandes categorias: o

sarcasmo, a compaixão e o constrangimento, lembrando que elas não ocorrem unicamente

de maneira isolada, podendo haver uma alternância e mesmo a incidência de uma na outra.

Da ordem do escárnio, do irônico e do cômico é o sarcasmo, onde o outro é tido

como idiota, desprezível, inferior. E onde o riso é talvez a principal conseqüência, seja

como divertimento ou como zombaria. No teatro, pertencem a essa categoria os palhaços,

os clowns e parte dos cômicos em geral. Assim, o diferente – que pode ser apenas um

ingênuo ou tolo – torna-se motivo de chacota, ironia e ridicularização.

9
Thomson considera o grotesco intrínseco à recepção, capaz de provocar reações dúbias como o riso, a
repugnância e a comoção, e de causar, no receptor, incerteza e desorientação. De acordo com Kayser (1986,
p. 31), Wieland destaca o riso como reação à deformidade do corpo, enquanto a percepção de sua
monstruosidade decorreria em asco, e o terror seria causado por uma sensação de desordem das coisas.

30
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O sarcasmo se constitui como reação, pelo juízo verbalizado ou simples impressão,

diante de algo ou alguém risível por sua ridicularidade, e está relacionado aos vários traços

de atitude apresentados, segundo Pavis (2001, p. 58), por Sigmund Freud (1856-1939),

como a superioridade moral, a percepção de uma falha no outro, a tomada de consciência

do inesperado e do incongruente, dentre outros.

Ao que tudo indica, o sarcasmo em relação a alguém mutilado ou deformado, com

limitações de ordem física ou mental, de aparência ou comportamento bizarro, pode se dar

com base nos princípios comumente atribuídos ao cômico e erigidos, sobretudo, por sua

dimensão psicológica e social. Enquanto o sentimento de superioridade, liberação e alívio

guiam psicologicamente o espectador, a dimensão social pressupõe suas relações

socioculturais de receptividade ou de exclusão: "A necessária solidariedade entre os que

riem tem por conseqüência ou rejeitar como ridícula a pessoa cômica ou convidá-la a

juntar-se aos que riem através de um movimento unanimista de fraternidade humana"

(Pavis, 2001, 59-60).

Reação que pode dar-se também de maneira irônica, o sarcasmo tem a sua origem

etimológica ligada ao ato de arrancar a pele, escarnar, machucar, ferir. É o ato de

escarnecer que, por sua vez, se traduz como desprezo, humilhação e, metaforicamente,

quer dizer "tirar a pele do outro" por meio do deboche e da chacota. Assim xingamentos e

alcunhas que habitam todas as línguas são exemplos de uma atitude sarcástica verbalizada,

cujo propósito maior é a ridicularização.

A compaixão de caráter puramente piedoso – o que lhe emprestaria um sentido de

superioridade – aparece sobretudo nas sociedades modernas, sendo que classicamente

abarcava também a sensação de terror como purgação das paixões e, dentro da tradição

cristã, envolveria ainda uma expectativa de redenção – estado ou ato em que se crê

possível a expiação dos males por meio da comiseração, ou seja, a remissão da culpa

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através da piedade e da condolência. Termo que no grego clássico designava a ação de um

amo ao resgatar um escravo que caíra prisioneiro, somente na linguagem teológica cristã a

redenção ganharia sentido como libertação do mal e da condenação do pecado através da

solidariedade para com o próximo e do exemplar sacrifício vicário de Cristo. Ou seja,

diferentemente dos gregos, para quem eram os escravos que deveriam ser reavidos

mediante um processo de resgate, Cristo propõe a remissão de almas ao preço de seu

próprio sangue.

Na compaixão como puro sentimento de pena ou como sensação de terror, o

sofrimento e a piedade advêm de um exercício de alteridade, em que o observador é

deslocado para o lugar do outro, enquanto na compaixão de caráter redentor antecede o

padecimento uma ação consciente e deliberadamente assumida, cujo intuito é o perdão dos

pecados. São dessa ordem, no teatro, a catarse pretendida pelos autos religiosos medievais

e pelos autos da Paixão de Cristo, até hoje realizados, além das tragédias na Grécia antiga.

Constrição, coação, incômodo: são essas as reações compreendidas como resultado

para o fenômeno do constrangimento, que se caracteriza por uma espécie de tensão10. É o

estado capaz de ser evocado quando da presença ameaçadora de um outro, cuja aparência

ou comportamento incomum foge ao controle e à dependência, revelando um ser autônomo

ou, pior, um igual. No teatro, são os bufões os clássicos representantes dessa categoria,

graças à sua não exemplaridade e deformidades físicas ou morais, em verdade

características historicamente renegadas da natureza humana.

O constrangimento apresenta um maior grau de incidência a partir da modernidade,

instaurada entre os séculos XIX e XX, quando a ciência promove uma classificação para as

anomalias, dissipando uma confusão até então comum entre o que efetivamente se poderia

considerar extraordinário e aquilo que seria somente um desvio da normalidade,

10
Vale aqui a definição de O’Toole (1992, p. 132) para o termo: “[...] the source of the tension is the gap between
people and fulfilment of their internal purposes, a gap created by deliberately imposing constraints in order to
create an emotional disturbance (the tension itself) in the participants.”

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significando um normal diferente, na acepção de Canguilhem (1995). Até então,

mecanismos de caráter segregacionista eram aplicados não apenas a criminosos e foras da

lei, mas também a todo aquele que, de alguma maneira, se mostrasse fora dos padrões

normativos e socialmente aceitáveis de higiene e saúde – aqui compreendidos também a

aparência e o comportamento. Ao se negar ou ver-se impossibilitado de enquadrar-se, esse

indivíduo ganha um destino certo: as instituições punitivas ou “correcionais”, cuja função

será isolar a todos que fossem considerados anormais e, portanto, ameaçadores da ordem.

Criados no século XVII, e disseminados inicialmente em terreno francês, os chamados

Hospitais Gerais mostram-se como solução a evitar interferências indesejáveis:

Criam-se (e isto em toda a Europa) estabelecimentos para internação

que não são simplesmente destinados a receber os loucos, mas toda

uma série de indivíduos bastante diferentes uns dos outros, pelo

menos segundo nossos critérios de percepção: encerram-se os

inválidos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os

desempregados opiniáticos, os portadores de doenças venéreas,

libertinos de toda espécie, pessoas a quem a família ou o poder real

querem evitar um castigo público, pais de família dissipadores,

eclesiásticos em infração, em resumo todos aqueles que, em relação à

ordem da razão, da moral e da sociedade, dão mostras de 'alteração'.

(Foucault, 1975, p.78)

Em se tratando de interferências indesejáveis, como não lembrar do bufão,

elemento blasonador e fanfarrão, que povoa a sociedade e a cena blefando suas qualidades

e ostentando suas deformidades como galardão:

O bufão é um ser marginal e marginalizado. Tradicionalmente ele tem

deformações físicas como corcundas, um braço a menos, enormes

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barrigas, órgãos genitais exacerbados. São gigantes ou anões, três

olhos, sete dedos. Essas deformações são como a somatização das

deformações humanas interiores, das dores da humanidade. (...) Seu

comportamento é quase agressivo, propositadamente chocante. Ele

não tem vergonha e, assim, desde as suas necessidades fisiológicas

básicas até o sexo, ele os faz em público de maneira

descompromissada e provocadora. (Burnier, 2001, p. 215-16)

O bufão é o grotesco. Por meio de suas exacerbações manifesta, entretanto,

sentimentos humanos. Junto com suas insolências e rudezas, carrega contraditoriamente as

qualidades da malícia e da ingenuidade, da pureza e da crueldade, do romântico e do

libidinoso: suas deformidades e o seu comportamento são como um tumor e refletem os

males das relações sociais e da mesquinhez humana. Assim, serão de sua natureza a

constrição, a coação e o desconforto, ou seja, um contínuo constrangimento. Sua presença

é tida quase sempre como inoportuna, ocasionando um desejo de afastamento e distância.

É a mesma sensação causada em geral pelos miseráveis, mendigos e pedintes que

perambulam pelas ruas, malcheirosos, sujos e maltrapilhos. Quando avistados podem

provocar certa ojeriza, asco e discriminação que, no passado (e ainda hoje, em certas

localidades), causaram a sua perseguição e recolhimento a albergues ou a sua simples

deportação11.

O constrangimento diante de figuras humanas estranhas ganhou literalmente a cena

na passagem durante o século XIX, com a emergência de um olhar racional que explica e

humaniza os fenômenos teratológicos então intensamente presentes nas feiras e

estabelecimentos específicos. Entretanto, o conceito científico que ora se fazia cada vez

mais respeitado, contrapunha-se às representações comuns da figura do “monstro” como

11
Sabe-se de inúmeras cidades no interior do Estado de São Paulo, cujo poder público, como forma de banir seus
mendigos e moradores de rua, dedica-se a oferecer-lhes bilhetes de viagem para destinos distantes.

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desordem da natureza, tendo seus efeitos gradativamente sentidos no mundo do

entretenimento popular, já vigiados de perto pelas preocupações morais e políticas, cujo

intuito não era outro senão o controle e a organização do tempo livre imputado aos

cidadãos comuns. Com isso, os olhares se transformam e passam, aos poucos, a se

incomodar: “Porque se manifestam de mais a mais nitidamente novas sensibilidades para

as bizarrices anatômicas que arrastavam há longo tempo sua existência precária sobre os

tablados das feiras: se reconhece a sua humanidade, e se ressente o seu sofrimento”

(Courtine, 2006, p. 232)12.

Qualquer das reações citadas, seja o sarcasmo, a compaixão ou o constrangimento,

pode ser sentida ainda nos dias de hoje quando se depara com a presença inesperada de

seres marginais e perturbadores da ordem, como loucos, doentes, deformados ou de

aparência e comportamento bizarro. Previsíveis e talvez imutáveis, tais reações denotam

algo de desestabilizador. Mais do que um incômodo, o que a presença desses seres

ocasiona é uma inevitável identificação por meio de sua estranha, porém humana,

condição. E o risco maior de tê-los por perto, além da lembrança de nossa imperfeição, é

talvez a evocação de nossa natural e irrevogável degeneração.

12
Car se manifestent de plus em plus nettement dês sensibilités nouvelles pour les bizarreries anatomiques
que traînaient depuis si longtemps leur existénce précaire sur lês tréteaux des foires : on va reconnaître leur
humanité, et ressentir leur souffrance.

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UMA ESTÉTICA DO ESTIGMA?

Vidas que são como se não tivessem existido, que não sobrevivem se não
pela colisão com um poder que não almeja se não aniquilá-las ou ao
menos apagá-las, vidas que nos chegam apenas pelo efeito de múltiplos
acasos, eis as infâmias que desejei reunir aqui alguns restos (Foucault,
2001, p. 243).13

Tal como criminosos, as pessoas com algum distúrbio físico e/ou mental sempre

sofreram pelo simples fato de serem diferentes ou anômalas, situação que se agrava na

medida em que suas condições em geral se contrapõem aos padrões de beleza

estabelecidos. Por esta razão, antes de significar sua aceitação, integração ou

reconhecimento no âmbito artístico, a presença delas em cena resvala numa questão

sociológica, o estigmato, já que se está referindo a uma categoria social desde sempre

renegada, de maneira explícita ou veladamente. De forma curiosa, porém, percebe-se que a

estigmatização se instala num domínio de ordem predominantemente estético, pois que diz

respeito, sobretudo, à marca inserida no corpo como registro ou qualidade do que deve ser

diferenciado e tido como infame. Assim, ao flertar com a cena, as singularidades corporais

e/ou comportamentais, portam já uma referência de ordem sócio-estética que contrasta com

os padrões tradicionalmente vigentes na cena, o que constitui um diálogo apropriadamente

peculiar.

Por muito tempo – como, por vezes, ainda hoje –, buscou-se afastar do espaço

social as pessoas que, de alguma maneira, não se enquadravam nos padrões estabelecidos

de corpo e de comportamento. A deformidade física, bem como os distúrbios de

comportamento, a partir de um julgamento reforçado por crenças, leis e hábitos exercidos

durante séculos, eram considerados motivo de isolamento, de privação do convívio social

ou, até mesmo, de execração pública. Ao ser humano que apresentasse qualquer

13
Des vies qui sont comme si elles n'avaient pas existé, des vies qui ne survivent que du heurt avec un
pouvoir qui n'a voulu que les anéantir ou du moins les effacer, des vies qui ne nous reviennent que par l'effet
de multiples hasards, voilà les infamies dont j'ai voulu rassembler ici quelques restes.

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desconformidade com o padrão era imposto um estigma, no sentido literal ou figurado:

marca, cicatriz, ferida. São essas referências, situadas num passado ainda não muito

distante, que um ator que apresente alguma disfunção ou distúrbio evoca ao entrar em

cena. E é esta sua condição que torna importante uma abordagem do processo histórico da

estigmatização, antes de se perceber como ela vem a se configurar no espaço cênico.

Os motivos que levam ao estigma, bem como sua gradação, variam muito e podem

ir desde um passado sem reputação e uma limitação de âmbito físico ou mental, até um

mau comportamento em público, uma aparência inadequada e mesmo a simples ignorância

ou desinformação. Com raízes sociais, econômicas, morais e culturais, o estigma pode ser

consequência de uma simples combinação de fatores, com a pessoa sendo estigmatizada a

depender do momento, do lugar e das circunstâncias em que se insere.

De raízes gregas, o estigma se refere originalmente a sinais corporais aferidos com

o intuito de evidenciar qualquer coisa de extraordinário ou maléfico a algo ou alguém.

Cicatrizes ou deformidades causadas propositadamente, por meio de corte ou fogo,

marcavam para sempre o indivíduo, denotando-o como um escravo, um criminoso ou um

traidor a ser rejeitado e mal visto, especialmente em espaços públicos. Goffman (1975, p.

11) afirma ter se ampliado o entendimento para o termo estigma, defendendo que há, nas

sociedades recentes, uma certa categorização das pessoas com base em atributos comuns

de determinados grupos. Para ele, teriam se alterado os tipos de desgraças que levam à

estigmatização, agora mais aplicada "à própria desgraça do que à sua evidência corporal".

Goffman divide o estigma em três categorias principais e distintas: as abominações

do corpo, as culpas de caráter e as denegações tribais. No primeiro caso, se incluem as

diversas deformidades de ordem física e, no segundo, são apontados os desvios de conduta

ocasionados por excesso ou por deficiência de vontades, de paixões ou de crenças.

Incluem-se aí, como causa, questões de âmbito social, moral e de saúde como os distúrbios

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mentais, os vícios, o homossexualismo, o crime, o desemprego e mesmo certas

perturbações psicológicas. Já a terceira categoria, das denegações tribais, se refere

especificamente à discriminação por questões de raça, nação ou credo.

Contemporaneamente, pode se perceber que as reações sociais podem deslocar o

indivíduo de uma categoria a outra como, por exemplo, as discriminações de credo, nação

ou raça que podem estar na base dos desvios de conduta de uma pessoa. Dessa maneira,

questões de imigração e emigração, tão comuns em dias atuais, assim como sinais de

pertencimento ou rejeição a determinado grupo social ou tribo urbana, podem provocar

reações que estimulem ou acelerem uma mudança de comportamento do indivíduo

(depressão, agressividade, alterações de caráter).

Por seu caráter visual, o que facilita a identificação do sujeito e de suas condições já

desde o nascimento, as deformidades do corpo sempre tiveram primazia na ordem dos

grupos estigmatizáveis. Instalando-se como contra-senso da ordem natural, o corpo

disforme desafia o olhar e opõe-se aos padrões clássicos de beleza e proporcionalidade,

cuja principal fonte está nos estudos do arquiteto romano Vitruvius Pollio. Vivendo no séc.

I A.C. e influenciado pelo pensamento do grego Hermógenes (séc. II a.C), Vitruvius

registrou sua obra intitulada De Architectura, também conhecida como Os dez livros da

Arquitetura, na qual ressalta a importância da simetria tanto na arquitetura quanto no

próprio ser humano, para o qual prescreve um modelo de corpo considerado ideal. Único

tratado sobre o tema na era clássica que sobreviveu até os dias de hoje, seus escritos foram

parcialmente recuperados durante o Renascimento, servindo de base para que artistas e

estudiosos buscassem chegar a uma modelar proporcionalidade da forma corporal. Neste

sentido, Vitruvius considera uma figura humana bem constituída a partir, por exemplo, de

uma altura equivalente à medida que vai de uma de suas mãos até a outra, quando de

braços abertos e esticados. É a partir de cálculos como este que Leonardo Da Vinci (1452-

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1519) reconstituiria o que denominou Homem vitruviano, figura tornada símbolo da

perfeita proporcionalidade corporal humana. Tal imagem passa a guiar os ideais de beleza

no Ocidente e sempre que se faça uma alusão aos padrões corporais clássicos esta será uma

referência de extrema importância.

Homem vitruviano (Leonardo Da Vinci, 1492)


Galleria dell´Academnia, Veneza, Itália.

Tidos como inumanos em boa parte das sociedades antigas, os indivíduos nascidos

em excessiva desconformidade com a aparência e constituição humana padrão eram

relegados à categoria de monstro, podendo sofrer sanções legais e chegando mesmo a

pagar com a própria vida o delito de terem nascido nessas condições. Assim, o conceito

para o termo monstruosidade trespassa as fronteiras do conceitual, do imaginário ou do

animalesco para inserir-se também na compreensão dos fenômenos humanos. Neste

sentido, Lecouteux (1999, p. 8) registra que já a noção aristotélica de fenômeno contrário à

natureza supõe que aquele que não se assemelhasse aos pais seria, de certo modo, um

monstro, pois que, para Aristóteles, "neste caso, a natureza se afasta em certa medida, do

tipo genérico. O monstro é um ser defeituoso”.

É preciso lembrar que a história dos monstros se institui a partir de sua construção

social e, sobretudo, de sua definição jurídica. E no domínio dos costumes e das práticas

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jurídicas, diversas são as sociedades suspeitas de infanticídio ou comprovadamente

infanticidas para com os seres considerados prodigiosos, dentre elas, os gregos, os persas,

os gauleses e os romanos. Na Grécia, por exemplo – sobretudo em Esparta –, a legislação

ordenava que o recém-nascido que apresentasse conformação defeituosa fosse alijado da

família e eliminado: “Ele não podia mais retornar ao seio da família e então era

transportado à beira de um despenhadeiro, vizinho do monte Tageto, de onde era atirado”

(Martin, 2002, p. 33)14. Em tais sociedades, quando autorizados a viver, os seres mal

formados tinham geralmente os direitos civis e de herança cassados ou limitados. Em

certos períodos, como ocorreu no Império Romano, a execução era delegada ao próprio pai

e, mesmo com a anuência deste, a sobrevivência da criança dependia ainda da

concordância de vizinhos.

No antigo Egito, berço da metempsicose – doutrina que defende a transmigração de

espíritos entre homens e animais – é onde comprovadamente ocorreu uma das exceções na

prática de combate infanticida aos fenômenos teratológicos. Segundo aquela doutrina,

homem e animal se confundem, podendo o espírito de cada um deles tornar-se livre depois

da morte, vindo a reencarnar em espécies diferentes da anterior. É possível encontrar traços

dessa crença igualmente entre os hindus e os persas, mas já envolvendo também a

transmigração entre animais e plantas. Esse entendimento permitia admitir que uma

pessoa, uma ave ou um animal pudesse nascer com uma conformação diversa à de sua

espécie ou que, de alguma maneira, lembrasse o ser anteriormente encarnado por seu

espírito. Dessa maneira, são comuns os relatos que dão conta, por exemplo, da presença de

animais e seres exóticos entre aqueles povos, sendo que diversos dos deuses adorados pela

antiga civilização egípcia tinham a forma híbrida ou mesmo de algum animal em

particular.

Il ne pouvait plus reparaître au foyer de la famille; alors on le transportait au bord d´un gouffre, voisin du
14

mont Taygète, et on l´y précipitait.

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De maneira que, quando uma mulher trazia ao mundo uma criança

com aspecto monstruoso, a imaginação, preparada pela consciência

de um fenômeno considerado natural, aproximava de súbito o

monstro e o animal cujos traços ele reproduzia, identificando-o com

ele; se, enfim, aquele animal ocupasse um lugar no panteão dos

deuses, dava-se esse lugar ao monstro, divinizando-o (Martin, 2002,

p. 42)15.

As deformidades do corpo ou enfermidades que de alguma maneira o alterem

sempre forneceram farto material para artistas, que as retrataram condignamente – ou

mesmo as vivenciaram em si próprios. Dentre as anomalias congênitas

contemporaneamente conhecidas, o nanismo parece ter sido uma das mais comuns no

cotidiano egípcio. Afrescos existentes nas paredes dos túmulos de faraós e outras grandes

autoridades sugerem ter havido um elevado número de anões na época e, segundo

historiadores, eles pareciam bastante integrados à vida social. Nesses afrescos os anões são

em geral representados com fidelidade: corpos musculosos, membros curtos, pernas por

vezes arqueadas, um pouco obesos e, muitas vezes, corcundas. Em algumas dessas obras,

eles são mostrados cuidando de animais domésticos, caçando aves e trabalhando em

escultura, ourivesaria e joalheria. Alguns chegavam a ocupar cargos públicos, como Seneb,

que era chefe do guarda-roupas real e sacerdote dos ritos funerários. Ele aparece

representado numa estátua, de braços curtos, com suas pernas cruzadas, tendo ao lado sua

esposa numa posição de notável apoio, um filho e uma filha, todos de constituição normal.

A esposa de Seneb fazia parte da corte do faraó e era sacerdotisa.

15
De telle sorte que, lorsqu´une femme avait mis au monde un enfant ayant l´aspect d´un monstre,
l´imagination, preparée par la conscience d´un phénomène consideré comme naturel, rapprochait aussitôt ce
monstre de l´animal dont il reproduisait les traits : il etait identifié avec lui ; et si enfin l´animal occupait une
place au panthéon des dieux, on donnait cette place au monstre, on le divinisait.

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Seneb e sua família. O deus Bés.
Museu do Cairo, Egito. Templo de Dendera, Egito.

De acordo com estudiosos, os anões da raça Dang eram os mais procurados por

serem, de um modo geral, excelentes dançarinos: “ele dançará como um anão diante de

Osíris”, é o que consta numa frase hieroglífica. Um dos deuses do panteão egípcio,

inclusive, denominado Bés, senhor do prazer e da alegria, que é descrito e representado

como sendo um anão disforme de pernas arqueadas e de aparência feroz.

Seria em Roma que a evolução das leis traria uma primeira diferenciação entre a

ocorrência de uma efetiva monstruosidade e aquilo que se poderia admitir como simples

anomalia, caso em que o indivíduo ainda preservava um aspecto humano apesar de sua má

constituição corporal. Tal aparência – supunha-se – preservava a sua capacidade como

pessoa, enquanto que para as ocorrências consideradas monstruosas – destituídas do

aspecto humano – não haveria qualquer possibilidade neste sentido. Nem sempre

constituída por convicções, porém, a legislação experimentou momentos de incerteza

quanto ao lugar social, à capacidade e aos direitos de seres fantasticamente constituídos.

Enquanto a enfermidade comumente encontrava o seu posto no direito civil ou canônico, a

monstruosidade, ao contrário, desestabilizava, questionava e fazia calar os códigos

estabelecidos, obrigados a pensarem sua própria prática e fundamentos. O monstro seria,

no fundo, a casuística necessária invocada pela desordem da natureza, e diante dele o

direito se cala, renuncia ou apela a um outro sistema de referência. Assim, sobretudo no

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período compreendido entre a Idade Média e o séc. XVIII, o fato monstruoso pode ser

definido por seu caráter de desafio à ordem estabelecida:

Não há monstruosidade senão onde a desordem da lei natural

vem tocar, deslocar, inquietar o direito, seja ele civil,

canônico ou religioso. É no ponto de encontro, no ponto de

fricção entre a infração ao quadro de leis, natural, e à lei

instituída por Deus ou instituída pelas sociedades, é nesse

ponto de encontro de duas infrações que irá se marcar a

diferença entre a enfermidade e a monstruosidade (Foucault,

1999, p. 59)16.

Recém nascido, Oxford, 1552. “Moça com duas cabeças” e “Gêmeos unidos”
Reprodução de Jacob Rüff (1587) (Ambroise Paré, 1585)

A oscilação entre o temor e a veneração sempre caracterizou a relação do homem

com as figuras de aspecto fantástico ou extraordinário. Assim, mais do que um ideal de

preservação da estirpe, as leis que autorizavam a punição ou execução sumária de

indivíduos considerados monstruosos tinham, na maioria das vezes, um fundo

16
Il n´y a de monstruosité que là où le désordre de la loi naturelle vient toucher, bousculer, inquiéter le
droit, que se soit le droit civil, le droit canonique, le droit religieux. C´est au point de rencontre, au point de
friction entre l´infraction à la loi tableau, naturelle, et à cette loi instituée par Dieu ou instituée par les
sociétés, c´est en ce point de rencontre de deux infractions que va se marquer la différence entre l´infirmité
et la monstruosité.

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supersticioso, bastante comum nas antigas sociedades, alimentado pela crença de que o

nascimento desses seres era de mau agouro, representando uma desgraça ou tragédia

eminente para a nação.

Porque eles eram vistos como um signo da cólera dos deuses,

como a punição de uma depravação extrema. Assim, um

monstro não era tido apenas como um ser alterado por

imperfeições corporais, mas ainda mais, no pensamento que

se construía, se inseriam noções tomadas ao universo moral, a

suspeita de copulações culpáveis, e inúmeras outras

preocupações de espírito produzidas pela ignorância e pelo

fanatismo (Saint-Hilaire, 1826, p. 6)17.

Essa crença com relação ao mau agouro representado pelos fenômenos

teratológicos pouco mudaria na Idade Média, quando da cristianização de sua

representação no imaginário popular. Na sociedade medieval, os ditames religiosos –

cristãos e muçulmanos, diga-se de passagem – supunham que toda doença que atingisse

fisicamente o indivíduo tinha um valor simbólico, de equivalência espiritual. No caso de

figura humana híbrida, com traços desfigurados, desproporcionais ou bestializados, a

ocorrência era vinculada ao pecado e à danação: “A deformidade corporal torna-se um dos

signos maiores disso e o monstro um cúmplice menor do diabo ou um enviado miraculoso

de Deus, funesto presságio de sua cólera. Testemunha da onipotência dos céus e

mensageiro da desgraça sobre a terra” (Courtine, 2006, p. 375)18.

17
Car ils étaient regardés comme un signe de la colère des dieux, comme la punition d´une dépravation
portée à son comble. Ainsi un monstre ne fut point seulement d´abord un être vicié par des imperfections
corporelles, mais de plus, dans l´idée que l´on s´en formait, on y faisait entrer des notions puisées dans le
monde moral, le soupçon de copulations coupables, et nombres d´autres préocupations d´esprits enfantées
par l´ignorance et le fanatisme.
18
La difformité corporelle devint l´un des signes majeurs de celui-ci et le monstre un suppôt redouté du
diable ou un envoyé miraculeux de Dieu, funeste présage de son courroux. Temoin de la toute-puissance des
cieux et messager du malheur sur terre.

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É o mesmo pensamento que resulta na crença de que a lepra seria na verdade fruto

de um pecado, um mal designado àquele cuja concepção tinha se dado em períodos de

proibição, como a quaresma ou dias santos, quando a copulação era vetada aos cônjuges.

Embora as raízes para tal desígnio sejam bem mais antigas, é no período medieval que os

leprosários alcançam números extraordinários na Europa, assumindo-se como locais de

desterro, segregação e punição para aqueles considerados metaforicamente como hereges

ou produtos de uma heresia:

Pela cerimônia da morte civil, o leproso se tornava um morto-vivo,

privado de seus bens, distanciado de sua família e de seu ambiente

social e material. Autorizado a sair, ele deveria evitar qualquer

contato agitando sua barulhenta matraca, cujo ruído o identificava.

Essa doença e a heresia são freqüentemente associadas (Le Goff,

2006, p. 107).

A partir do séc. XIII, entretanto, a imolação do corpo por uma doença adquirida

(mas não, ao que parece, pela deformidade inata) torna-se uma forma de redenção ou,

segundo o pensamento jansenista, uma aliada para o alcance da perfeição moral e da

virtude. Dessa maneira, chagas, tumores e feridas são mostrados como característica dos

mártires – vide as chagas de São Francisco ou as cinco chagas de Cristo – e tornam-se

símbolos de bem-aventurança, sofrimento necessário à remissão e signo visível de uma

eleição: o doente era um escolhido de Deus. Prisão e veneno da alma, lugar dos vícios e do

pecado original, o corpo medieval é também instrumento para a salvação. Além da

flagelação pública, essa convicção resultaria em sacrifícios silenciosos, em que o indivíduo

acometido de algum mal ocultava o fato até o limite do possível, vendo nisso um esforço

compensador para com a vontade divina. Atitudes bizarras como beijar feridas e úlceras,

além de outras ainda mais repugnantes também resultariam dessa crença.

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Outro fator de preconceito e estigmatização que perduraria por muito tempo se deu

em relação à velhice. Na Idade Média, quando a expectativa de vida era extremamente

baixa, ser velho constituía uma quase exceção. Nesse tempo, era comum considerar uma

pessoa velha quando sua idade não ia além de quarenta e cinco anos. Embora aos homens

ainda fosse atribuído certo respeito por representarem eles a memória viva da

ancestralidade – então um bem precioso –, com as mulheres o tratamento era outro:

Antes de se tornar uma feiticeira em potencial, a velha tem, com

efeito, má reputação. Um termo que se encontra com freqüência nos

textos, e em particular nessas histórias edificantes chamadas de

exempla, ilustra essa reprovação: vetula, a saber a 'velhinha', que

serve sempre para designar uma personagem maléfica. Por

conseqüência, e como ocorre freqüentemente na Idade Média, a

velhice é objeto de uma tensão – entre o prestígio da idade e da

memória e a malignidade da velhice, a feminina em particular (Le

Goff, 2006, p. 104).

Obviamente não são apenas os males relativos à deformidade corporal e ao

envelhecimento que inquietavam e levavam à discriminação e, por vezes, à estigmatização.

Basta lembrar que em muitas das antigas sociedades também a cegueira foi frequentemente

associada a poderes e significados desconhecidos. Assim, um cego podia simbolizar

sabedoria e luz interior, mas também ser visto como um castigado dos deuses. Ao lado do

delírio, a cegueira é tida na Bíblia como símbolo de trevas espirituais e um castigo por

desobediência à Deus. Em seu quadro “Cegos guiando cegos”, o pintor flamengo Pieter

Brueghel (1525-1569) os retratou com perfeição, sendo possível, inclusive, perceber o tipo

de enfermidade que sofre cada um deles: leucemia na córnea, catarata negra e mesmo

aquele cujos olhos foram arrancados. Era comum que os cegos corressem o país,

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mendigando pelos campos e cidades, e Brueghel os pinta sem nenhuma compaixão,

sentimento pouco experimentado no séc. XVI, devido ao grande número de doentes e

deformados que perambulavam pelas ruas.

“Cegos guiando cegos”, de Brueghel, o Velho, 1568.

Já no segundo modo de estigmatização sugerido por Goffman, ou seja, no domínio

específico dos desvios de comportamento, serão as normas de conduta a se impor como

reguladoras para a aceitação e o convívio social. Com raízes na Idade Média, quando a

igreja impunha ao corpo um policiamento no tempo e no espaço, através do controle dos

gestos e de um calendário de proibições, o processo civilizador se instaura efetivamente a

partir do Renascimento, conforme bem demonstra Elias (1994). Visando o adestramento

do comportamento social dos sujeitos, teve papel fundamental um pequeno tratado

intitulado De civilitate morum puerilium (Da civilidade em crianças), de Erasmo de

Rotterdam, publicado em 1530. Com grande circulação e inumeráveis edições nas mais

diversas línguas, a obra dava ênfase, sobretudo, ao "decoro corporal externo":

Com grande cuidado, Erasmo delimita em seu tratado toda a faixa de

conduta humana, as principais situações da vida social e de convívio.

Com a mesma naturalidade fala das questões mais elementares e sutis

das relações humanas. No primeiro capítulo trata das 'condições

decorosa e indecorosa de todo o corpo', no segundo da 'cultura

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corporal', no terceiro de 'maneiras nos lugares sagrados', no quarto em

banquetes, no quinto em reuniões, no sexto nos divertimentos e no

sétimo no quarto de dormir. Na discussão dessa faixa de questões,

Erasmo deu um novo impulso ao conceito de civilitas (Elias, 1994,

p.72).

Era o impulso que faltava para a disseminação de uma norma de conduta que muito

antes já se mostrava presente, redigida principalmente por religiosos cultos ou com origem

na sociedade de corte. Porém, num meio social iletrado, em que era normal a prática de

atos hoje considerados bárbaros – como soltar gases estando à mesa, devolver ossos roídos

à travessa comum ou jogá-los no chão, "esgaravatar o nariz quando se come" ou cuspir em

cima ou por cima da mesa – pode se imaginar o tempo necessário a uma mudança de

hábitos dos indivíduos, sobretudo, camponeses e pessoas do povo.

O fato é que as ações disciplinadoras do corpo e também da fala irão se impondo,

tornando ainda mais difícil a situação daqueles que, pelas mais diversas razões, não

quisessem ou não pudessem se enquadrar, como é o caso de pessoas com algum tipo de

disfunção. Neste sentido, ainda que poeticamente tidos como representantes da verdade, do

amor e da realidade das coisas19, a demência e o desatino nunca deixaram de ser vistos

com ressalvas: no dia a dia, o louco continuava a sofrer com o sarcasmo e com a

intolerância geral. Chamados à época de “idiotas” eles eram tidos como resultado de

imoralidade e, por isso, as primeiras práticas terapêuticas a eles destinadas tinham um

caráter moralizante, valendo-se de exorcismos e castigos físicos.

É preciso lembrar que, após a lepra e a doença venérea, será principalmente a

loucura a ocupar os espaços destinados ao internamento e ao isolamento social. Nessas

instituições, denominadas casas de correção, havia lugar também para velhos, doentes e

19
No teatro, pode se citar a sotie, ou peça dos sots (tolos), espetáculo cômico francês dos séculos XIV e XV,
em que os atores se faziam de loucos para atacar os costumes e o poder.

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deficientes físicos, conforme um recenseamento feito no ano de 1690 e relatado por

Foucault (1997, p. 82): "Madeleine contém 91 'velhas senis ou enfermas'; o de Sainte-

Geneviève, 80 'velhas infantis'; o de Saint-Levège, 72 pessoas epiléticas; Saint-Hilaire, 80

mulheres senis; Sainte-Catherine, 69 'inocentes malformados e disformes' (...)". Além

disso, em 1737, ao se tentar uma divisão racional para os usos de tais instituições, é

sugerido que uma de suas funções seja também a de abrigar "grandes e pequenos

paralíticos".

O tratamento dado aos loucos, que constituíam a imensa maioria dos habitantes

dessas instituições, é talvez o principal exemplo da intolerância para com o diferente. Com

uma existência errante quando soltos, eles eram escorraçados dos limites das cidades, fosse

pelo medo ou pela ignorância que até então imperava: "Acontecia de alguns loucos serem

chicoteados publicamente, e que no decorrer de uma espécie de jogo eles fossem a seguir

perseguidos numa corrida simulada e escorraçados da cidade a bastonadas" (Foucault,

1997, p. 11). Aprisionados, eles podiam se tornar atração, como ocorreu na Alemanha

durante a Idade Média, quando se podia assistir aos internos através de janelas gradeadas

que davam para a rua. Mesmo no séc. XIX, quando esses asilos passaram a ser fechados,

tal costume mostrava-se aperfeiçoado em cidades como Paris e Londres onde, aos

domingos, era possível visitar tais instituições e apreciar loucos furiosos por um preço

bastante módico.

Indivíduos socialmente tidos como inabilitados à aceitação plena, os loucos são

estigmatizados, condenados à exclusão ou chamados a retirarem-se do convívio social por

meio de atitudes e ações nada discretas. Entregues a mercadores e peregrinos, fazem surgir

o que se convencionou chamar Stultifera Navis, a "Nau dos Loucos", embarcação em que

os considerados dementes eram transportados por barqueiros e marinheiros que se

responsabilizavam por levá-los para longe do convívio urbano. Retratado e perpetuado nas

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pinturas de Bosch, Brueghel e Dürer, dentre outros, o espetáculo da loucura transitará pelos

rios da Europa, entre uma cidade e outra:

Confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse

vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de

que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida.

Mas a isso a água acrescenta a massa obscura de seus próprios

valores: ela leva embora, mas faz mais que isso, ela purifica. Além do

mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada

um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é,

potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em

sua barca louca; é do outro mundo que ele chega quando desembarca

(Foucault, 1997, p. 11-12).

As razões para tamanha exasperação e crueldade podem estar ligadas aos caracteres

próprios da alienação ou da anomalia psíquica que, nas palavras de Minkowski, citado em

Canguilhem (1995, p. 89), impedem o indivíduo de se enquadrar "não tanto em relação aos

outros homens mas em relação à própria vida", fazendo dele não apenas um desviado, mas

sobretudo um diferente. Assim, enquanto a doença somática é suscetível a uma precisão

empírica, a uma padronização mais precisa que evita o rompimento entre semelhantes, a

anormalidade psíquica não permite ao sujeito a consciência de seu estado, o que faz com

que esse tipo de anomalia, pela sua imprevisibilidade, mostre-se indomável e

consequentemente mais perigosa, inspirando os excessos.

Muito tempo seria necessário até que a ciência passasse a se ocupar efetivamente

dos diversos fenômenos e alterações do corpo e do comportamento humano – isso

começaria a ocorrer, de fato, somente no séc. XIX. Até então, além da lepra e da loucura

inúmeras outras circunstâncias podiam levar um indivíduo à estigmatização, por se

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destacar ou de alguma maneira se fazer diferente pela emissão de sinais involuntários de

aparência ou de conduta. Distúrbios e disfunções capazes de interromper, evitar ou reduzir

a plena capacidade de funcionamento do corpo, do cérebro ou da mente, resultavam em

alterações passíveis de interferir na auto-imagem20 e, sobretudo, na percepção que os

outros tinham da pessoa afetada. Casos de patologias hoje reconhecidas, como o

cretinismo, o hipertireoidismo, o bócio, a síndrome adiposo-genital, a hipertricose, o

nanismo e a puberdade precoce, dentre outros, são exemplos de alteração que, por sua

incidência na aparência e/ou no comportamento, sempre estimularam a curiosidade, mas

quase nunca evitaram a estigmatização do indivíduo. Isto sem falar nas ocorrências

cerebrais, de caráter lingüístico-cognitivo que podem incidir sobre o controle dos gestos e

movimentos, além de deficiências físicas e constituições corporais de aspecto bizarro, com

exagero ou deformação na configuração geral do corpo (altura ou peso, aparência da pele,

etc) ou de suas partes (nariz, pés, orelhas, barriga, etc).

Originalmente entendido como “narração de coisas maravilhosas” (Ferreira, 1975,

p. 1368) e tomado de empréstimo na referência às formas corporais extraordinárias, o

termo grego teratologia ganharia novos ares a partir da apropriação científica do tema.

Assumindo um caráter patológico, o estudo das deformidades e, mais tarde, o dos desvios

de conduta, demandariam gradativamente um novo olhar e uma conseqüente renovação

também nas relações da sociedade para com os atingidos. Embora oficialmente surgida no

séc. XIX, a teratologia científica tem origem alguns séculos antes, quando a igreja

medieval já havia abandonado a tentativa de relacionar as ocorrências extraordinárias a

fatores sobrenaturais. A partir daí, já uma certa secularização tomava as rédeas do olhar,

permitindo percepções e questionamentos até então impensáveis como, por exemplo, se as

deformidades do corpo não teriam causas acidentais e razoavelmente explicáveis. Assim,

20
Conforme Feldenkrais (1977, p. 19): "Nós agimos de acordo com a nossa auto-imagem. Esta que, por sua
vez, governa todos os nossos atos – é condicionada em graus diferentes por três fatores: hereditariedade,
educação e auto-educação".

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Fortunio Liceti, ainda influenciado pelo pensamento e pelas crenças tradicionais, traria à

luz, em meados do séc. XVII, a sua compreensão para as causas de tais fenômenos. Nela,

além da vontade divina e de possíveis práticas de magia, o autor aponta para a

possibilidade de uma natural falha morfogênica: “E a terceira é puramente natural, e vem

de algum defeito, ou de algum impedimento, que se acha nos princípios naturalmente

destinados à formação do corpo humano” (Liceti, 1708, p. 55)21.

Seria pelas mãos de Etienne e Isidore Geoffroy Saint-Hilaire, na primeira metade

do séc. XIX, que a literatura médica engendraria uma inovada compreensão para com os

fenômenos teratológicos, embasados agora por investigações sólidas e ordenadamente

constituídas. Repudiando a generalização do termo “monstro”, os Geoffroy Saint-Hilaire

passam a classificar as anomalias do corpo de acordo com a sua natureza e grau,

desvelando a circunstância embrionária presente no desenvolvimento do ser monstruoso,

que não seria mais do que um organismo cujo desenvolvimento interrompeu-se num

determinado ponto: “Toda monstruosidade sendo, como se tem percebido, uma

desorganização efetiva em relação ao que deveria ter lugar, uma constituição irregular

deslocando o que deveria ser regular, não é entretanto desorganização ou irregularidade

senão relativamente” (Geoffroy Saint-Hilaire, 1826, p. 19)22.

Em sua conceituação morfológica da anomalia, Isidore Geoffroy Saint-Hilaire

afirma que ela estaria relacionada a dois fatos biológicos, denominados por ele tipo

específico e variação individual. Para ele, embora as espécies vivas apresentem variações

na forma e no volume proporcional dos órgãos, há um conjunto de traços que são comuns à

grande maioria de indivíduos de cada espécie. É a alteração de um desses traços que,

levando o indivíduo a diferenciar-se dos de sua espécie, idade ou sexo, pode ser vista como

21
Et la troisième est purement naturelle, et vient de quelque défaut, ou de quelque empechement, qui se
trouve dans les principes qui sont naturellement destinés à former les corps des hommes.
22
Toute monstruosité étant, comme on l´a abord aperçu, une désorganisation effective en égard à ce qui
devait avoir lieu, une constitution irrégulière remplaçant ce qui devait être régulier, n´est cependant
désorganisation ou irregularité que relativement.

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anomalia. Portanto, ao infringir a norma, ou seja, ao se diferenciar em excesso da média

geral e tolerável, uma pessoa diferente torna-se anômala e, por conseqüência, séria

candidata à estigmatização.

Já com o surgimento da teratologia experimental, em 1932, torna-se possível decifrar

o vínculo entre as anomalias provocadas e as deformidades hereditárias. Seria, portanto, no

período de um século, compreendido entre os anos de 1840 e 1940, que se constituiu a

teratologia científica, cujo desenvolvimento pode ser tido como um grande progresso na

diminuição do caráter estigmatizante do corpo patologicamente alterado.

Apesar da inegável contribuição da ciência, que permitiu um melhor entendimento

dos fenômenos teratológicos, surgem ou se recalcam certos pontos de tensão nas relações

das modernas sociedades com tais incidências. A dinâmica da História traria consigo

fatores de ordem social, política e econômica que acabaram por gerar uma necessidade

crescente de tolerância, aceitação e integração social desses indivíduos. Um desses fatores

foi, sem dúvida, a chegada de uma multidão de mutilados oriunda dos campos de batalha

da Primeira Guerra Mundial23. Isto ocasiona um desfile de corpos alterados e cadáveres

desfigurados que, somados à grande massa de vítimas de acidentes de trabalho já comuns

na virada do século, tornam cotidiana a prática da amputação e o uso de objetos

compensatórios (bengalas, muletas, tapa-olhos, etc).

No bojo desses acontecimentos se deu a aproximação entre a cena e as disfunções

de ordem mental e corporal, tornadas aos poucos objeto de apreciação e espetacularizadas

em feiras e eventos populares. Foram primeiro as crendices e invenções de caráter

fantástico a seu respeito e, mais tarde, a laicização desses fenômenos que estimularam o

seu advento como matéria cênica, aguçando a curiosidade e jogando com a percepção e o

imaginário do público. Assim, tanto a aparente e bem sucedida marcha epistemológica

23
Estima-se em cerca de seis milhões de mutilados na Primeira Guerra Mundial que, somados às vítimas da
Segunda Guerra, totalizaria quase trinta e cinco milhões de indivíduos.

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empreendida pelas ciências naturais, quanto o conjunto de ocorrências históricas no

período de um século, tornam-se determinantes para o moderno processo de subjetivação

dos fenômenos teratológicos. Essa foi a etapa inicial de uma profunda transformação, cujo

resultado maior se reflete na mudança do paradigma da exclusão, que se volta então para o

esforço de inclusão, a partir dos últimos cinqüenta anos de nossa história.

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O CORPO GROTESCO E O CORPO DO MUNDO

A importância do grotesco no processamento cênico das disfunções se impõe na

medida em que é através de sua manifestação e reconhecimento que elas se potencializam

como matéria estética. Espaço de “todos os ridículos, todas as enfermidades, todas as

feiúras”, segundo Hugo (1988, p. 33), o grotesco é o luxurioso, o rastejante, o guloso, o

pérfido, o avaro. E a ele caberiam os vícios, as paixões e os crimes. De natureza

anticanônica, o grotesco não se baliza pela rigidez ou pela fixação, mas, ao contrário, se

contrapõe a uma visão classicamente composta por um agrupamento de regras, normas e

proporções aplicadas à representação do corpo e das formas humanas. Visando conceituá-

lo, entretanto, alguns autores apregoam-lhe um conjunto coerente de qualidades:

Pode-se formular sua originalidade com base em duas leis, que

faziam e fazem sempre o charme irresistível dos grotescos: a negação

do espaço e a fusão das espécies, o desconforto das formas e a

proliferação insolente dos híbridos. Primeiro, um mundo vertical

inteiramente definido pelo jogo gráfico, sem espessura nem peso,

mistura do rigor e da inconsistência que faziam pensar no sonho.

Nesse vazio linear, maravilhosamente articulado, de formas meio-

vegetais, meio-animais, figuras ‘sem nome’ surgem e se confundem

segundo o movimento gracioso ou atormentado do ornamento. (...) Os

domínios dos grotescos são portanto a exata antítese daqueles da

representação, em que as normas seriam definidas pela visão

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‘perspectiva’ do espaço e da distinção, a caracterização dos tipos

(Chastel, 1988, p. 25)24.

Paradoxalmente, o mundo do grotesco é e não é o nosso mundo, estando

essencialmente vinculado ao fenômeno da recepção e podendo causar reações por vezes

simultâneas, dentre as quais, o terror e o riso. Um breve aporte histórico do termo e o

resgate de suas principais incidências apontam para a inegável importância da expressão e

das formas corporais como fenômeno de manifestação cultural, dentre elas o carnaval, cuja

origem remonta às antigas saturnais romanas (festas de Saturno), e a commédia dell'arte.

Vocábulo entendido comumente por algo fabuloso, macabro, caricatural, aberrante ou

demente, o grotesco permaneceu durante muito tempo como uma subclasse do burlesco e

do cômico, relacionado à crueza, à baixeza e ao mau gosto. Sua variedade de sentidos e

multiplicidade de referências motivaram a busca de um entendimento e de um lugar para

tal expressão estética, rica de possibilidades de significação e ao mesmo tempo de

complexa formulação. O grotesco seria, parafraseando Hugo (1988), o pormenor de um

grande conjunto que nos escapa, capaz de harmonizar-se não com o homem, mas com toda

a criação.

Embora se apresentando de maneira incontestável em antigas obras de arte e citado

por motivos de exemplificação cômica já na Grécia Clássica, a arte das formas grotescas

foi assim denominada séculos mais tarde, não obtendo praticamente nenhum estudo

anterior ao séc. XV. O vocábulo, com o sentido convencionalmente adotado nas artes

plásticas, teria se originado na Itália:

24
On peut en énoncer l'originalité à l'aide de deux lois, qui faisaient et font toujours le charme irrésistible
des grottesques: la négation de l'espace et la fusion de l'espéces, l'apesanteur des formes et la prolifération
insolente des hybrides. D'abord un monde vertical entièrement defini par le jeu graphique, sans épaisseur ni
poids, mélange de rigueur et d'inconsistance qui faisait penser au rêve. Dans ce vide linéaire
merveilleusement articulé, des formes mi-végétales, mi-animales, des figures 'sans nom' surgissent et se
confondent selon le mouvement gracieux ou tourmenté de l'ornement. (...) Les domaines des grottesques est
donc assez exactement l'antithèse de celui de la représentation, dont les normes étaient définies par la vision
'perspective' de l'espace et la distinction, la caractérisation des types.

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La grottesca e grottesco, como derivações de grotta (gruta), foram

palavras cunhadas para designar determinada espécie de

ornamentação, encontrada em fins do séc. XV, no decurso de

escavações feitas primeiro em Roma e depois em outras regiões da

Itália. O que se descobriu foi uma espécie até então desconhecida de

pintura ornamental antiga (Kayser, 1986, p. 17-18).

A partir disso, ainda segundo Kayser, o termo reincidiria em publicações sobre

Estética que, na verdade, se limitavam a reproduzir as descrições primeiras, sem qualquer

aprofundamento da questão. À época da criação daqueles ornamentos, na Roma antiga,

Vitruvius Pollio os condenara, descrevendo-os como "voga iníqua" que, em vez de retratar

o mundo real, preferia pintar monstros nas paredes. Ele se refere a figuras híbridas e sem

sentido, como seres metade flor e metade figura humana que, mais tarde, apareceriam

também na obra de artistas de nacionalidades diversas.

Em 1550, o italiano Giorgio Vasari, francamente simpático ao pensamento

difundido por Vitruvius, com base na proporção e simetria dos corpos, definia o grotesco

como uma categoria de pintura livre e divertida, inventada na Antiguidade e aplicada a

murais. Para ele, nessa pintura encontravam lugar apenas formas em suspensão, em que os

artistas representavam deformidades monstruosas originadas de suas próprias fantasias ou

de caprichos da natureza. Essas formas, em princípio, excediam todas as regras: "Aquele

que tinha a imaginação mais louca era tido como o mais dotado. Mais tarde é que as regras

foram introduzidas e se fez maravilhas em baixo-relevo e em compartimentos a serem

decorados” (Chastel, 1988, p. 31)25.

Ainda que remonte à era clássica, é a partir da Idade Média que o grotesco ganha a

cena e se constitui de fato, manifestando-se incessantemente por meio do disforme, do

25
Celui qui avait l'imagination la plus folle passait pour le plus doué. Par la suite des règles furent
introduites et l'on fit merveille dans les frises et les compartiments à décorer.

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horrível, do cômico e do bufo. Sua irrupção nesse período é que permite o grande salto de

possibilidades na arte, uma vez que serve de contraponto fundamental para a própria

evolução do belo e do sublime:

O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-se

necessidade de descansar de tudo, até do belo. Parece, ao contrário,

que o grotesco é um tempo de parada, um termo de comparação, um

ponto de partida, de onde nos elevamos para o belo, com uma

percepção mais fresca e mais excitada (Hugo, 1988, p. 31).

Os primeiros estudos efetivos sobre o grotesco remontam ao séc. XVIII, pelas mãos

de autores germânicos, como o crítico literário Flögel, que publicou a sua História do

cômico-grotesco, em 1788. Grande parte dessa obra, citada em Bakhtin (1996), é dedicada

a manifestações medievais, com o autor debruçando-se sobre as festas populares da época,

como a "festa dos loucos", a "festa do asno", os carnavais, e também sobre farsas e jogos

do Mardi Gras26, além de algumas sociedades literárias e formas do cômico popular da

praça pública. Para Flögel, o grotesco seria tudo aquilo que rejeita drasticamente as regras

estéticas vigentes, valendo-se de marcas e formas corporais e materiais exagerados.

Embora conservando sua importância, a obra de Flögel e de alguns de seus

contemporâneos reconheciam o grotesco com base apenas no princípio do riso, ao qual

atribuíam um valor de regozijo e alegria, o que de certa forma ameniza a sua força

desestabilizadora. Esse entendimento foi sendo alterado pela percepção de outras muitas

possibilidades contidas nesse tipo de manifestação como, por exemplo, a evocação dos

estágios de vida que vão desde os inferiores, tidos como inertes e primitivos, até aqueles

considerados superiores, mais móveis e espiritualizados, "numa guirlanda de formas

diversas, porém unitárias", conforme lembra Bakhtin (1996, p. 29).

26
Terça-feira gorda, como era chamado o último dia de carnaval.

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Numa constante incidência do inusitado e do fantástico, o grotesco não distingue

fronteiras entre os reinos animal e vegetal, superando-as audaciosamente e, desde o

Renascimento, já era visto também com certo terror. Mais do que a designação de uma

determinada arte ornamental, estimulada pela antiguidade, o fenômeno incorre não apenas

como algo lúdico e alegre, leve e fantasioso, mas também como angustiante e sinistro,

capaz de suspender as ordenações da realidade e gerar uma dúvida sobre a permanência e

estabilidade das coisas e dos domínios até então reconhecidos, como a estática, a simetria e

a ordem natural das grandezas. Nele, ganha vida uma característica marcadamente

dramática, onde não se percebe a típica imobilidade da pintura como retrato da realidade,

em que o movimento advém de formas vegetais e animais totalmente acabadas, num

universo também acabado e estável. Diferentemente, no grotesco apresenta-se o

movimento interno da própria existência, que se exprime na transmutação de uma forma

em outra, configurando o "eterno inacabamento da existência":

A imagem grotesca caracteriza um fenômeno em estado de

transformação, de metamorfose ainda incompleta, no estágio da morte

e do nascimento, do crescimento e da evolução. A atitude em relação

ao tempo, à evolução, é um traço constitutivo (determinante)

indispensável da imagem grotesca. Seu segundo traço indispensável,

que decorre do primeiro é a ambivalência: os dois pólos da mudança

– o antigo e o novo, o que morre e o que nasce, o princípio e o fim da

metamorfose – são expressados ou esboçados em uma ou outra forma

(Bakhtin, 1996, p. 21-22).

O autor russo conclui afirmando que esse sentimento do tempo e das sucessões das

estações acaba por abarcar fenômenos sociais e históricos, fazendo da imagem grotesca o

principal meio de expressão artística e ideológica identificado com o sentimento de

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alternância histórica surgido de maneira vigorosa no Renascimento. Essa constatação

empresta ao fenômeno um sentido fortemente social, imbuído de um poder de intervenção

e questionamento que, por sua vez, lhe conferem um status mesmo de instrumento político.

Estudos sobre a caricatura, realizados a partir do séc. XVIII e estimulados pela

possibilidade de se ter nessa expressão a fonte para uma arte significativa, trouxeram à

tona a tentativa de também se definir o grotesco enquanto categoria estética. Calcada numa

expressão disforme, a caricatura intensifica propositadamente a desproporção presente na

realidade. Ao se constituir como força modelar, ela abala o princípio de elevação

idealizante que até então norteava toda e qualquer reflexão sobre a arte, fazendo

exatamente o oposto. Ou seja, ao entendimento de que a expressão artística deveria se dar

como reprodução da bela natureza, idealizada a partir do real, a caricatura identifica e

amplia o que percebe como característico naquilo que retrata.

A questão suscita debates e dá origem a diversos escritos em que teóricos como

Lenz e Gerstenberg, ambos no séc. XVIII, manifestam-se sobre o assunto, enfatizando a

importância e pertinência do tema. Em 1775, Wieland publica Unterrendung mit dem

Pfarrer von X ("Conversas com o Pároco de X"), um estudo sobre o caricaturesco onde

tenta definir o seu caráter e tipologia. Nessa obra, ele menciona três diferentes gêneros de

caricatura: a simples reprodução da disformidade, em si, presente na realidade; o exagero

de formas, onde há um aumento proposital ou necessário da deformação; e, por fim, o

fantástico e o assim denominado grotesco, em que o pintor, "despreocupado com a verdade

e a semelhança", dá asas a uma imaginação selvagem. Para Wieland, o grotesco relaciona-

se ao sobrenatural e ao absurdo, podendo suscitar três sensações distintas: a gargalhada, a

ojeriza e o assombro. O riso decorreria das deformidades, o asco da monstruosidade e o

terror como reação ante a possibilidade do mundo sair dos eixos e de sua suposta

harmonia.

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Porém, embora grande parte das concepções aponte para um espírito puramente

fantasioso e sobrenatural, enaltecendo uma quase exclusiva absurdidade do grotesco, é

preciso notar que isso não condiz com o seu verdadeiro caráter. Nele, a fantasia totalmente

livre não existe. Ainda que se exibindo por meio de figuras fantásticas e temas contrários à

razão, o grotesco incide necessariamente sobre o universo conhecido, permitindo uma

percepção diferenciada do real e não simplesmente a sua abstração. Para Thomson (1972),

o grotesco é intrínseco à recepção, instaurando reações dúbias como o riso, a repugnância e

a comoção, sendo de difícil definição justamente pela incerteza e desorientação que causa.

Para ele, algo só se fará grotesco na medida em que o leitor ou observador seja tomado por

emoções incompatíveis sem ancorar-se em reações secundárias ou racionalizações que

resolvam o conflito em favor de um ou de outro sentimento. Essas reações parecem

constituir-se como um processo ativo de amplificação estético-psicológica bastante

presente na história cultural, ou seja, as pessoas se defenderiam de objetos artísticos de

grande força expressiva, vendo-os como simples ornamentos ou tornando-os uma fórmula

poética cristalizada.

Assim, se perfazem como principais características do grotesco a dubiedade e a

alternância entre o sentido cômico e terrível, risível e fantástico, ridículo e monstruoso. É

da intersecção paradoxal desses universos que se constitui o espírito e a graça desse

fenômeno, manifestado pela presença marcante de elementos e figuras que se destacam do

meio e destituem a ordem e a estabilidade como referências estruturantes do real. O

grotesco é justamente o pêndulo que oscila entre a harmonia que se quer perene e o

improvável e indesejado caos.

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O grotesco no corpo

Pode-se afirmar que as mesmas características reconhecidas em imagens pintadas

ou esculpidas do grotesco se associam também à sua manifestação corporal.

Constantemente suscitando estranheza e bizarria, o grotesco incide no corpo como

evocação de sua imanente provisoriedade, provocando e subvertendo o delineamento

fronteiriço, a plenitude e o acabamento, tão caros aos preceitos clássicos da cultura do

corpo, que o isola do mundo e do espaço em que habita.

Dificilmente se poderia abordar adequadamente a temática do grotesco corporal

sem uma efetiva alusão ao "realismo grotesco", ainda conforme entendimento de Bakhtin,

para quem a visão carnavalizante do mundo é base para boa parte da produção artística e,

sobretudo, para a literatura do Renascimento: "O traço marcante do realismo grotesco é o

rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na

sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato" (Bakhtin,

1996, p. 17). Neste caso, portanto, rebaixar significa aproximar da terra, tida

simultaneamente como um princípio de absorção e de nascimento.

O autor russo observa que, classicamente, os cânones literários e plásticos

vislumbram um corpo em situação de acabamento, situando-o e representando-o em

períodos da vida em que se mostra rigorosamente moldado, ou seja, numa idade distante

tanto do nascimento quanto da morte. Mesmo um corpo idoso, quando mostrado, aparecerá

aqui como bem cuidado e bem vestido. Com isso, se quer eliminar tudo o que esteja

relacionado à sua origem e fim, ao seu crescimento e multiplicação, isolando-o do mundo e

dos demais corpos. Tais características se reproduzem também na época moderna, mais

afeita à "estética do belo" e para a qual o corpo grotesco parecerá obviamente monstruoso e

horrendo:

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Coloca-se ênfase sobre a individualidade acabada e autônoma do

corpo em questão. Mostram-se apenas os atos efetuados pelo corpo

num mundo exterior, nos quais há fronteiras nítidas e destacadas que

separam o corpo do mundo; os atos e processos intra-corporais

(absorção e necessidades naturais) não são mencionados. O corpo

individual é apresentado sem nenhuma relação com o corpo popular

que o produziu (Bakhtin, 1996, p. 26).

Paradoxalmente, o corpo grotesco habita o corpo belo e subjaz em sua existência,

manifestando-se comumente de maneira involuntária ou em momentos de isolamento,

quando o corpo se vê alijado do espaço público. Trata-se de comportamentos e momentos

de manifestação em que o corpo belo se transforma e assume a sua crua condição de

matéria degenerativa e passageira, dando lugar ao orgânico, ao visceral e ao escatológico.

O corpo grotesco não se mostra acabado nem se isola do mundo. Ele franqueia os seus

limites e se interpenetra com o exterior por meio de orifícios e protuberâncias, tais como a

boca que se abre, o falo e os órgãos genitais que se expõem, o nariz, o ânus e os seios que

exalam excrescências, a barriga que revela gravidez ou gula. No corpo grotesco, o

particular e o universal permanecem fundidos e é através da exacerbação de atos que

denotam vida, morte e transformação constante que ele se mostra: a cópula, a defecação, a

comilança, a prenhez, o parto, o estado agonizante. É um corpo eternamente incompleto,

que desafia o sentido de estabilidade das coisas por meio de seu inacabamento, mutilação

ou metamorfismo.

Por vezes sob a forma da deterioração, a transformação evocada pelo corpo

grotesco é plena de um sentido evolutivo, dinâmico, onde a agonia denota na verdade uma

renovação da vida. Daí a relação que habitualmente se faz, a partir de Bakhtin, com a

questão cósmico-topográfica do corpo que vincula o baixo à terra e o alto ao céu, fazendo

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entender por exemplo que o túmulo e o ventre cumprem funções semelhantes de

transmutação e restauração da vida.

Se, a partir do Renascimento, o mundo oficial prescreveu uma visão idealizada de

forma e comportamento, a constância disso sempre incorreu num certo mal estar do corpo

real, aquele que não se mostra ou não se comporta (pelo menos, não o tempo todo)

segundo os preceitos estabelecidos:

Até essa ocasião, os hábitos eram quase sempre julgados claramente

em sua relação com outras pessoas e se eram proibidos, pelo menos

na classe alta secular, era porque podiam ser incômodos ou

embaraçosos para terceiros ou porque revelasse 'falta de respeito'.

Mas, agora os hábitos são condenados cada vez mais como tais, em

si, e não pelo que possa acarretar a outras pessoas. Desta maneira,

impulsos ou inclinações socialmente indesejáveis são reprimidos com

mais rigor. São associados ao embaraço, ao medo, à vergonha ou à

culpa, mesmo quando o indivíduo está sozinho (Elias, 1997, p. 153).

Porém, apesar de uma permanente tentativa de ocultamento e eliminação de suas

marcas, o corpo grotesco persistiu irônico e irascível. Subjazendo num mundo de regras e

aparências, ele sempre se impôs como uma espécie de radiografia perturbadora daquilo que

se mostrava como real, expondo uma conflitante relação entre a cultura que se impunha e a

corporalidade manifesta.

Houve, entretanto, um tempo em que a estrutura oficial convivia e reservava espaço

para a expressão pública do corpo e das alegorias grotescas. Em seu estudo, Bakhtin situa-

o, sobretudo, em algum período entre a Idade Média e o Renascimento, época em que as

festividades se davam como evento de comunhão e manifestação pública e popular. Era

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quando os festejos e atos cômicos, como a "festa dos tolos", a "festa do asno"27 e

principalmente o carnaval ocupavam lugar de destaque na vida das comunidades: "Ao

contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação temporária

da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações

hierárquicas, privilégios, regras e tabus" (Bakhtin, 1996, p. 8)

Naquele tempo, porém, mesmo as festas religiosas assumiam um ar popularesco,

em que os cortejos exibiam sem constrangimento figuras que integravam o imaginário do

povo ou representavam alguns de seus aspectos, como os gigantes, anões, monstros e

animais "sábios". O fenômeno era antigo e tinha origem em tempos primitivos, onde

paralelamente aos cultos sérios, sempre existiram os cultos cômicos que parodiavam

deuses e heróis. A diferença é que tais manifestações cômicas acabavam tidas como

igualmente sagradas e oficialmente incorporadas, considerando que não se reconhecia

ainda nem as classes sociais e nem o Estado. É um mundo que, como conclui Eliade

(1992), nada sabe a respeito de atividades profanas, em que todos os atos possuidores de

um significado definido participam, de algum modo, do sagrado.

Enquanto as festas oficiais, organizadas pela Igreja ou pelo Estado, por suas

naturais características reiteravam a ordem e a hierarquia vigente, o carnaval enaltecia a

igualdade, a dinâmica, o contato e a renovação. Na linguagem carnavalesca, impõe-se a

lógica do avesso, do contrário, das alternâncias entre o alto e o baixo por meio de paródias,

travestimentos, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões: "Prazer

da mesa, do comer e do beber, levado além dos limites da norma cotidiana, até tornar-se

orgia ou porre" (Toschi, 1982, 108)28. Era, portanto, o terreno ideal para a manifestação

viva do grotesco.

27
Festividades ocorridas normalmente na passagem do ano, em que o serviço religioso e o alto clero eram
parodiados e alvos de licenciosidade.
28
Piacere della mensa, del mangiare e del bere, portato oltre i limiti della norma quotidiana, fino a divenire
crapula o sbornia.

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Minor devils, demons, satyrs and hobgoblins.
Olaus Magnus', Historia de gentibus septentrionalibus, Roma, 1555.

Historicamente, as formas grotescas sempre foram de alguma maneira associadas

ao diabólico e ao demoníaco. Os diabos e demônios eram exibidos constantemente como

criaturas híbridas e de aspecto terrível: um corpo de homem com chifres e patas de bode e,

às vezes, com rabo. Se, na mitologia cristã, o fato se justifica pela transformação das

divindades pagãs em diabos, a verdadeira origem dessa relação é bem anterior. Os antigos

rituais propiciatórios da fertilidade – que, por sua vez, decorreram no carnaval – tinham

por finalidade a abundância da colheita e, para isso, evocavam justamente as divindades

subterrâneas e potências geradoras, das quais fazem parte os diabos e as almas dos

antepassados que, em resposta, se manifestavam:

Ora, para gerar a nova espiga ou a nova planta, a semente deve passar

um período mais ou menos longo sob a terra. Lá, na escuridão das

plagas infernais, estão as potências da geração, a divindade

subterrânea, os demônios, as almas dos avós que na fatídica jornada

do reinício do ano, do eterno retorno do ciclo produtivo, evocados em

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rituais apropriados, aparecem sobre a terra, e aqui exercitam a sua

força (Toschi, 1982, p. 167).29

Assim, é importante perceber que o comportamento e as atitudes corporais dos

seres imorais e blasonadores que povoavam os festejos populares da Idade Média e do

Renascimento tinham um caráter ambivalente. O cunho degradante e, por vezes, diabólico

de sua aparência e a baixeza de sua conduta possuíam, simultaneamente, uma função

destruidora e regeneradora, de negação e de afirmação do mundo e da vida.

Porém, apesar de serem representados na maior parte das vezes por figuras

horríveis e ameaçadoras, diabos e demônios podiam também ser apresentados como

clowns e bufões, o que chama a atenção pois que incide num aspecto mais humano e

recalcadamente moral do fenômeno, já que tais figuras relacionam-se especialmente a uma

questão de comportamento mais do que de aparência. Enquanto os palhaços denotam o

ridículo por meio de paródias – por vezes, seriamente engendradas – do cotidiano humano,

os bufões são tidos como seres banidos do convívio social em função de suas deformidades

físicas ou morais. Simbolizam a parte renegada, o aspecto disforme da natureza humana,

ética e esteticamente considerada. Por meio deles, é possível vislumbrar um mundo

amoral, onde a baixeza do corpo, o deboche, a blasfêmia e a obscenidade gestual correm

soltos e se manifestam como forma de crítica ou como simples resultado da suspensão das

regras de conduta.

Esse rebaixamento, entretanto, ganha outro sentido quando analisado sob o prisma

do realismo grotesco, que não diferencia topograficamente o aspecto corporal do aspecto

cósmico: o alto é o rosto e a cabeça, e o baixo se compõe pelos órgãos genitais, ventre e

traseiro. O conceito é extremamente adequado ao sentido assumido pela atitude e pelo

29
Ora, per generare la nuova spiga o la nuova pianta, il seme deve trascorrere un periodo piú o meno lungo
sotto terra. Là, nel buio delle plaghe inferne, stanno le potenze delle generazione, le divinità sotterranee, i
dèmoni, le anime degli avi che nella giornata fatidica del ricominciamento dell'anno, dell'eterno ritorno del
ciclo produttivo, evocati da appositi riti, compaiono sulla terra, e vi esercitano la loro forza.

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comportamento corporal daqueles seres, em que rebaixar pode também significar a

aproximação da terra e a comunhão com ela, assumida como um princípio de absorção e de

nascimento. O baixo representa o começo, a terra, a regeneração da vida:

O corpo e as coisas individuais não coincidem ainda consigo mesmo,

não são idênticos a si mesmos, como no realismo naturalista dos

séculos posteriores; formam parte ainda do conjunto material e

corporal do mundo em crescimento e ultrapassam, portanto, os limites

do seu individualismo; o particular e o universal estão ainda fundidos

numa unidade contraditória (Bakhtin, 1996, p. 21).

E seria justamente o processo de individualização que acabaria por se instituir entre

os séculos XVI e XVIII, quando então ganha força um projeto de transformação e reforma

social, tido como base para a constituição do homem moderno. Com origem em preceitos

religiosos e retóricos, o processo civilizatório ocidental irá propor o enobrecimento do

sujeito por meio de seu adestramento corporal e espiritual, o que pressupõe também uma

adequação da linguagem. O código de civilidade será impresso nas boas maneiras e

também na conversação: a linguagem se torna constitutiva do sujeito e vínculo

fundamental nas suas relações com os demais. Ou seja, saber viver passa a ser sinônimo de

um saber falar, em que a eloqüência e a sabedoria andam juntas, como base para a

construção de uma imagem pessoal e para a apropriação de si.

A primazia da fala e das boas maneiras impõe ao corpo um ajustamento. Suas

atitudes e comportamentos devem coincidir com a elegância e a precisão do verbo, e

qualquer traço de desarmonia e inadequação deve desaparecer. Neste sentido, a própria

reação instintiva deve ser controlada, o que incide sobre o contato e a violência física, a

serem substituídos – de acordo com o novo código moral – pelo convencimento e pela

argumentação. O controle do corpo pela contenção e codificação de suas atitudes no

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espaço público leva a uma estigmatização da pessoa considerada rústica e também a uma

perseguição e conseqüente isolamento de toda e qualquer anomalia, distúrbio ou disfunção

que decorresse numa alteração exagerada da aparência e do comportamento. Só deveria ter

acesso ao espaço público, aquele que tivesse domínio de si e cuja aparência fosse

condizente com as normas de civilidade. O grotesco corporal e comportamental passa a ser

perseguido e alijado do espaço público. É nesse período, que os leprosários e mais tarde as

casas de correção – que abrigavam todo tipo de excluídos e condenados – tornam-se

bastante comuns. Aos poucos, tais espaços transformam-se e segmentam-se, ganhando

funções bem mais definidas, em que o desviante, fosse ele o louco, o criminoso ou o

monstro, passa a ter e a ocupar o seu próprio lugar: o hospício, a prisão ou o circo.

Além disso, no controle e vigilância cada vez maiores que o processo civilizador

impõe às atividades humanas, as festas vão sendo apropriadas pelo poder vigente,

sobretudo nos centros urbanos, tornando-se festividades oficializadas e cujo controle

impõe medidas e prazos mais e mais ajustados. No correr dos séculos XVIII e XIX, o que

antes era regido pelas estações do ano ou pela atemporalidade dos rituais, passa então a

submeter-se a razões de ordem produtiva, em que o relógio se torna instrumento de

controle e o tempo um quase sinônimo de trabalho. Se antes as festas eram manifestações

espontâneas e decorrentes de uma necessidade cultural, passam gradualmente a se

enquadrar como lazer, pura válvula de escape para uma crescente ansiedade gerada na

manutenção do posto de trabalho e do salário, situação que tende a agravar-se cada vez

mais.

Entretanto, é nessa época que o avanço da ciência e depois a revolução industrial

trariam conseqüências que incidiriam profundamente no trato e na relação social com o

corpo e com o comportamento fora de padrão. Enquanto a ciência adquiria paulatinamente

um novo entendimento com respeito a antigas patologias, a sociedade industrial passava a

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produzir efeitos colaterais, como o acúmulo e o descontrole populacional urbano e o

surgimento de novas doenças, além de acidentes de trabalho, que resultam numa profusão

de corpos mutilados. Restituído, o fascínio pelo diferente vem acompanhado de uma nova

percepção diante do corpo anômalo, malformado, deformado, com excrescência ou

ausência de membros ou órgãos, num processo em que o lugar da alteridade torna-se

singular: “o outro não está do lado de fora, ou do outro lado do espelho, mas contém a

própria noção de identidade” (Tucherman, 1999, p. 153).

Dentre os avanços que marcaram a prática médica, ainda no séc. XIX, estão a

disseminação e o aprimoramento das técnicas cirúrgicas, além da descoberta e difusão da

vacina. Estava dada a largada para uma intervenção cada vez mais aguda e constante sobre

o corpo, que decorreria em procedimentos diversificados, cujos propósitos iriam desde a

busca de cura para os males adquiridos até a alteração de sua forma e aparência, chegando

finalmente à manipulação genética praticada nos dias de hoje.

Corpo humano polimerizado, Mulher com braço biônico


por Roy Glover (Foto: divulg.) (Instituto de Reabilitação de Chicago, EUA, 2006)

Se, por um lado, as descobertas e avanços médicos e tecnológicos propiciaram o

combate e a cura de males inatos ou externamente engendrados ao homem, fosse pela

natureza ou pelo meio em que vivia, a possibilidade de manipulação e intervenção sobre o

corpo ocasiona perspectivas tanto maravilhosas quanto terrificantes. Isto porque os

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experimentos químicos e biológicos levados a efeito a partir da era industrial acabaram por

ocasionar resultados drásticos, como o surgimento de novas doenças e a transmutação de

corpos, efetivamente ocorrida no século XX. O uso de armas e implementos químicos na

agricultura, nos laboratórios e nas guerras tornou realidade o que antes era tido apenas

como ficção. Transplantes, cirurgias, ingestão de drogas e intervenções diversas fizeram do

corpo o símbolo de uma era de atomização do tempo e das formas, lugar propício para uma

paradoxal potencialização do novo, do diferente e do uniforme. De forma sutil ou

explicitamente, por meios externos e internos, o grotesco adentra o século XXI e insinua-se

no corpo. Talvez mais do que nunca.

O grotesco em cena

É possível dizer que a manifestação cênica do grotesco evoca o propósito

artaudiano da crueldade que, na acepção de Derrida (1995), propõe a cena não como

representação da vida, mas como elo para um princípio transcendente, do qual a vida não é

senão uma imitação: “O teatro da crueldade não é uma representação. É a própria vida no

que ela tem de irrepresentável. A vida é a origem não representável da representação. (...)

Como Nietzsche – e as afinidades não seriam apenas estas – Artaud quer portanto acabar

com o conceito imitativo da arte” (Derrida, 1995, p. 152).

No teatro, as características gerais do grotesco se mostravam já nas sátiras e

números cômicos da antiguidade que, por sua vez, continuaram integrando as festas do

povo durante a Idade Média e o Renascimento, com seus personagens transformados e

adaptados. Nesses festejos, eles apareciam na forma dos bobos, bufões e outros tipos

mascarados, parodiando divindades, personalidades do poder ou personagens da mitologia.

O seu comportamento esdrúxulo e atos despudorados significavam a materialização

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coprológica de um mundo subjacente, escatológico, desprovido de regras ou moral,

manifestado apenas num contexto de suspensão do tempo e do espaço.

Mesmo não se configurando como resultado convencionalmente aceito do

espetáculo teatral, os festejos carnavalescos sempre fizeram uso de elementos

característicos da representação, situando-se na exata fronteira entre a arte e a vida,

apresentada aqui em sua "forma ideal ressuscitada". Embora presentes em muitas das

comédias especialmente escritas para a cena, era na praça pública e durante as festividades

do carnaval que os bobos e bufões exerciam a sua verdadeira face, interferindo na vida e

interagindo com o mundo. Personagens quase reais, incorporados à cultura popular, eles

por vezes se faziam representar pelas próprias características dos artistas: anões,

barrigudos, gigantes, deformados, narigudos e outras qualidades físicas naturalmente

exageradas.

Detalhes de A batalha do carnaval e da quaresma, de Brueghel, o Velho, 1559.

Além das naturais condições dos indivíduos, os tipos se compunham também de

adereços e elementos que auxiliavam na sua composição e expressão pública. Um desses

elementos era a máscara, tida mesmo como essência expressiva do grotesco, que por meio

da dissimulação e da negação da identidade, revela alternâncias, metamorfoses e

reencarnações. Com origem em tempos imemoriais, a máscara perpassa o tempo e as

civilizações encontrando nos festejos do carnaval e outras manifestações populares o lugar

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ideal para presentificar o mundo dos espíritos, das bruxas e dos seres sobrenaturais.

Interessante notar que, na principal manifestação teatral mascarada do Ocidente, a

commedia dell'arte, o grotesco se realça pelo uso de máscaras e o seu protagonista

Arlecchino parece representar justamente um ser infernal: "Arlecchino significa, pois, o

infernal ou o rei do inferno" (Toschi, 1982, p. 197)30. Cobrindo apenas a metade superior

do rosto, essas máscaras incidem sobre o comportamento corporal dos atores, imprimindo

em seus corpos um caráter animalesco: formas e traços híbridos, com narizes enormes e

embicados, olhos arregalados e vívidos, além de vozes estridentes ou anasaladas, capazes

de lembrar o cacarejar de uma ave ou os rumores de um símio. Um universo quimérico,

cuja expressão prescinde por vezes do verbo: "Não é do texto, mas do estilo de

representação, ou, mais estritamente, do estilo de movimentação que se apreende o caráter

da commedia dell´arte” (Kayser, 1986, p. 43).

Ainda que, a partir do século XVII, a crescente individualização e controle das

atividades humanas coibissem a manifestação pública e espontânea do corpo e do

comportamento grotesco, seria um equívoco dizer que ela tenha desaparecido. Cada vez

mais afeito ao texto e ao espaço físico do palco e das salas de espetáculo, o teatro

oficialmente reconhecido vai distanciar-se das ruas e das praças, deixados aos saltimbancos

e a exibições de feira. No âmbito do teatro de sala, pode se dizer que o corpo grotesco foi

comumente renegado, esporadicamente presente no espírito de algumas manifestações e

insinuado por meio de farsas ou de tipos um pouco mais exagerados. Neste sentido, Kayser

lembra as investidas que, no séc. XVIII, foram feitas pelo classicismo contra o grotesco e a

figura de Arlecchino, numa clara rejeição ao elemento quimérico da commedia. O mesmo

autor ressalta, entretanto, a atração que o grotesco continuaria a exercer sobre os poetas e

artistas, citando como exemplo nomes ligados ao Sturm und drang, na Alemanha.

30
Arlecchino significa dunque l'infernale o il re dell'inferno.

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É importante reiterar que não é o propósito do presente estudo uma abordagem do

grotesco enquanto fenômeno literário (dramaturgia), nem como elemento forjado no

âmbito da encenação (de cenários, luzes e outros recursos), ou de estilos de representação e

caracterização (simulação corporal, maquiagem, adereços, etc). No entanto, é possível

afirmar que entre os séculos XVII e XIX, nas apresentações de sala, as exceções ficavam

por conta de eventuais personagens exóticos ou estereotipados (corcundas, mancos, etc)

que, entretanto, eram levados à cena pela camuflagem e pela simulação corporal dos

atores. Já o corpo ou o comportamento verdadeiramente anômalo era comumente

encoberto, disfarçado. Assim, atores considerados raquíticos, deformados, estrábicos, com

olho de vidro e sem dentes tinham que encontrar alguma maneira de ocultar tais

características, fosse pela força do talento ou com a ajuda de recursos não perceptíveis aos

olhos do público. Ao menos era isso que se tentava. Numa publicação de 1859, intitulada

“Curiosités théâtrales – anciennes et modernes, françaises et etrangères”, Victor Fournel

enumera diversos casos de atores e atrizes que apresentavam algum tipo de doença,

limitação ou problemas de aparência. As situações – na maioria, cômicas – mostram uma

realidade em que o objetivo maior era justamente dissimular as dificuldades, o que, claro,

nem sempre era possível: “Na Itália, disse M. de Mercey, ‘há certos atores que não

representam senão os papéis de coxos; outros, os papéis de gagos ou de caolhos; e isto,

porque eles são naturalmente coxos, gagos e caolhos” (Fournel, 1859, p. 207)31. Sabe-se,

entretanto, que no geral os atores perfaziam certo perfil, sem qualquer anomalia ou

distúrbio aparente, em conformidade com os tipos comuns ou idealizados pelos autores.

Enquanto isso, fora da estrutura convencional do teatro, uma vida dinâmica e

economicamente ativa se instauraria a partir do séc. XVIII. Exibido em espaços dos mais

diversos, o espetáculo das excentricidades (ou freak show), uma prática perene no correr

31
En Italie, dit M. de Mercey, ‘il est tels acteurs qui ne jouent que les rôles de boiteux ; tels autres, les rôles
de bègues ou de borgnes ; et cela, parce qu´ils sont naturellement boiteux, bègues ou borgnes’.

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dos tempos, ganhava cada vez mais prestigio entre a população e abria caminho para uma

revolução que se daria tanto no conceito e na percepção das anomalias do corpo e da mente

quanto na própria prática artística dos séculos seguintes.

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CAPÍTULO 2

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CENA E CONTÁGIO

O contágio cênico, conforme entendimento do presente estudo, se dá como

procedimento de trabalho ou criação a partir do uso e adequação das singularidades

corporais ou comportamentais do artista, sem a obrigatoriedade de fazer-se um outro nem a

necessidade de dissimular tais peculiaridades. Neste sentido, vale frisar a importância que

teve a gradual autonomia do espetáculo em relação ao texto, o que se dá em consonância e

como decorrência de uma série de acontecimentos no terreno das artes durante o século

XX. Esse fato possibilitou a aproximação e interação do teatro com diversas outras formas

de expressão, como a dança, a música e as artes plásticas, aumentando os resultados

advindos da dinâmica e das características corporais dos atores. Assim, para que o referido

contágio se tornasse possível foi necessário uma contaminação estética do teatro ocorrida

por meio de elementos até então alheios à sua composição, e próprios de linguagens que

ganhariam força ainda na década de 1960, como o happening e a body art, mais tarde

agrupados e classificados dentro da categoria geral da performance. É a partir desse

contato, ao assumir denominações e recursos, em princípio ligados a manifestações de

caráter performático, que a cena teatral se abre, tornando-se sensível ao reconhecimento e

apropriação dos distúrbios do corpo e da mente, não por uma questão ética ou social, e sim

como elemento propriamente cênico, com o qual ou a partir do qual uma cena autêntica

pudesse se desenvolver.

Em sua acepção original, o happening (acontecimento) diz respeito a uma atividade

que abarca artistas e demais participantes, podendo tanto envolver o uso de técnicas

específicas quanto se valer da realidade circundante. Embora usado pela primeira vez em

1959 por Allan Kaprow para denominar um de seus environments32, em New York, o

32
Termo utilizado nas artes plásticas, que significa incorporar também o ambiente na concepção da obra.

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termo resulta de um procedimento comum a vários artistas da época33. Para alguns, como

afirma Pavis (2001, p. 191), o happening se dá como forma "especificamente composta de

teatro”, com elementos aleatórios e sem uma maneira previamente preparada de

representar. Já a performance, segundo Glusberg (2003, p. 39), seria “uma dissolução do

happening em modalidades retóricas mais sustentadas, nas quais a presença física do

artista cresce de importância até se tornar a parte essencial do trabalho". A partir disso, o

termo performance se desloca e se amplia, incorporando diversas formas de manifestação

que, por sua vez, se valem de linguagens variadas, interagindo com outros procedimentos

expressivos e influenciando fortemente alguns deles, como foi o caso do teatro.

O conceito acaba assumido também no âmbito sociológico, ganhando contornos

próprios. Para Erving Goffman (1996), por exemplo, interessado pela estrutura da

experiência individual em todos os momentos da vida social, performance é toda e

qualquer atividade desenvolvida por alguém com o intuito de intervir junto a outros, numa

determinada ocasião. Ele redimensiona ainda a significação para o termo ator, assim

denominado todo e qualquer indivíduo a desempenhar “papéis/personagens” que sigam

uma “trama” (situação) previamente estabelecida e repetida, ainda que isto se dê num

âmbito social e cotidiano. Ou seja, sob a sua ótica, a interação social passa a ser

compreendida como uma atividade fundamentalmente dramática, onde as pessoas não

somente realizam atividades como também são assistidas e se exibem diante dos outros por

meio de gestos, atitudes, expressões, enfim, por suas performances e atuações diárias,

ocorridas em seu próprio habitat, seja ele privado ou público.

Embora plausível, no âmbito específico do teatro essa intersecção promovida por

Goffman e outros autores arrisca-se a diluir as individualidades singulares "num caótico e

esquizofrênico oceano de atores", conforme lembra Raposo (1996, p. 125). Será preciso,

33
Dentre eles, pode se destacar o músico John Cage (1912-1992), a artista plástica Gina Pane (1939- )eo
coreógrafo Merce Cunningham (1919- ).

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portanto, cuidar para que essa compreensão não seja admitida em termos simplificadores e

absolutos, pois, apesar de uma evidente aproximação entre a cena contemporânea e a vida

cotidiana, há que se ter em conta o efetivo caráter de ambas:

Vai-se ao teatro para encontrar a vida, mas se não há nenhuma

diferença entre a vida fora do teatro e a vida no seu interior, então o

teatro não tem sentido algum. Não vale a pena fazê-lo. Mas se

aceitarmos que a vida no teatro é mais visível, mais legível que no

exterior, percebemos que é ao mesmo tempo a mesma coisa e um

pouco diferente. (...) Efetivamente, é a vida mas sob uma forma mais

concentrada, mais curta, tomada no tempo e no espaço (Brook, 1991,

p. 20-21).34

Considerada essa precaução, parece plausível reconhecer o elemento performático

numa simples intervenção pública não de uma pessoa qualquer mas, especificamente,

daquela que apresente condições alteradas de expressão ou comportamento. Isto porque, ao

emanar diferentes significações por seu aspecto ou maneira de ser, ainda que não queira, o

indivíduo tido como fora de padrão acaba por interferir e provocar efetivas reações em seu

meio. Este fato o aproxima do ator ou performer que, em cena, ainda que não o deseje

pode expressar significados a partir, por exemplo, de sua estatura, timbre ou tom de voz,

maneira de agir ou outra característica que lhe seja peculiar, etc. É o que Ubersfeld (1997)

chama signos não-intencionais, ou seja, elementos significantes que o ator não pode

dominar, ainda que tenha pleno conhecimento deles. Embora não seja proposital, o signo

não-intencional é diferente e está fora do campo dos signos inconscientes.

34
On va au théâtre pour retrouver la vie mais s'il n'y a aucune différence entre la vie en dehors du théâtre et
la vie à l'interieur, alors le théâtre n'a aucun sens. Ce n'est pas la peine d'en faire. Mais si l'on accepte que la
vie dans le théâtre est plus visible, plus lisible qu'à l'extérieur, on voit que c'est à la fois la même chose et un
peu autrement. (...) Effectivement, c'est de la vie mais c'est de la vie sous une forme plus concentrée, plus
courte, ramassée dans le temps et l'espace.

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Admitindo-se que o aqui denominado contágio cênico decorre de um procedimento

de trabalho ou criação em que a própria condição do artista ou de seus pares constitui

matéria expressiva para a cena, é talvez no signo não-intencional que se encontra o

principal ponto de aproximação entre o trabalho de um ator comum e de um ator incomum,

já que se trata de uma condição natural e passível a ambos. Quando não, as condições pré-

estabelecidas de aparência ou conduta que o alçam do meio comum favorecem no

indivíduo fora de padrão a criação de um estado de surpresa, só alcançável pelo ator

comum através de um efetivo trabalho de preparação. E é justamente a capacidade de

surpreender que, para De Marinis (1987), ganha extrema importância numa representação:

para ele, a cena deve fazer uso de estratégias capazes de perturbar a percepção habitual do

espectador. Neste sentido, as naturais características contidas nas chamadas disfunções e

distúrbios do corpo e da mente mostram-se como elementos que, se eficientemente

trabalhados, poderão sim ter um papel preponderante no exercício da cena e na

mobilização da assistência. Para isso, entretanto, será importante que haja o

reconhecimento, a contextualização e o compartilhamento significativo do objeto em

questão. É o que se pode notar em manifestações cênicas extremamente atuais ou

relativamente recentes, como é o caso dos trabalhos de Robert Wilson e Pippo Delbono, a

serem analisados mais adiante.

Com base em constatações históricas, pode-se pleitear que o embrião do contágio

cênico esteja numa atividade reprovável e eticamente incorreta para os parâmetros atuais:

as apresentações de feira que, sobretudo a partir do século XVIII, vendiam como atração

deformidades humanas e fenômenos teratológicos. Embora questionáveis nos dias de hoje,

não se pode negar que por um período razoável tais atividades protagonizaram um negócio

popular e extremamente lucrativo. Nesses lugares, animalidades exóticas e fenômenos

anatômicos atraíam multidões e, com suas deformidades e bizarrices, divertiam ou

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aterrorizavam, prendendo a atenção do espectador e evocando sensações e prazeres hoje

rejeitados.

Aos poucos, além de estranhezas biológicas, as atrações passam a envolver diversas

atividades, incomuns ou bizarras, que um indivíduo fosse capaz de realizar como, por

exemplo, o contorcionismo, a pirofagia e a engolição de objetos, substâncias e animais

diversos. Mais tarde denominados freak shows, esses espaços se constituiriam num meio

de incidência, também, para o que viria a se difundir como body art, particularmente

alguns de seus aspectos, como o piercing e a tatuagem. Assim, tornou-se comum a

apresentação de pessoas cujos corpos haviam sido marcados ou alterados como parte de

costumes tribais ou de forma voluntária, como foi o caso de um albanês conhecido como

Captain Costentenus, tatuado na maior parte do corpo, inclusive no rosto. Ele tornou-se

uma lenda e foi um dos primeiros tatuados a se exibirem nos Estados Unidos da América,

no século XIX.

Captain Costentenus
num de seus cartões de propaganda.35

Apesar de perder força, os freak shows jamais foram banidos completamente,

adentrando o século XX e alternando-se entre as barracas de feira, o circo e outros locais,

especialmente a eles destinados.


35
Imagem veiculada no site: http://www.thehumanmarvels.com.

81
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A “mise en scène” do corpo

A industrialização, a evolução da ciência, as megaconcentrações urbanas ocorridas

a partir do século XIX e, mais recentemente, a revolução tecnológica, o uso de armas

químicas e nucleares, dentre tantos outros acontecimentos, incrementaram as relações entre

o homem e seu corpo, tido agora como objeto de experimentação ou de expressões

diversas. Assim, não será exagero dizer que, na contemporaneidade, uma vez mais é o

grotesco que incide na cena – também e, sobretudo – pela via da imagem corporal e do

cotidiano, tornado lugar cênico por excelência. Nesse contexto, um momento que pode ser

considerado crucial para o movimento de contágio cênico é o advento da body art (ou arte

corporal), procedimento em que o corpo é usado como suporte ou instrumento radical de

expressão e linguagem.

O corpo é o lugar onde o mundo é questionado. A intenção

não é mais a afirmação do belo, mas a provocação da carne, o

avesso do corpo, a imposição do desgosto ou do horror. A

posta em evidência das matérias corporais (sangue, urina,

excremento, esperma, etc) desenha uma dramaturgia que não

deixa incólume os espectadores e onde o artista padece de si

mesmo para expressar, pelo corpo, sua rejeição aos limites

impostos à arte ou à vida cotidiana (Le Breton, 1999, p. 41).36

De difícil conceituação, a body art apresenta histórico e compreensão variados,

situando-se hoje no amplo terreno da performance, ao lado de procedimentos que têm no

36
Le corps est le lieu où est questionné le monde. L'intention n'est plus l'affirmation du beau mais la
provocation de la chair, le retournement du corps, l'imposition du dégoût ou de l'horreur. La mise en avant
des matières corporelles (sang, urine, excrément, sperme, etc) dessine une dramaturgie qui ne laisse pas
indemne les spectateurs et où l'artiste paie de sa personne pour dire, par corps, son réfus de limites imposées
à l'art ou à la vie cotidienne.

82
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processo de criação e sua instantaneidade um dos principais elementos. Relacionando-se a

diversas outras práticas, como a living art, a carnal art e a body modification, a body art

constitui-se como happening que, mais do que impor a presença física do artista,

transforma o seu corpo na própria obra:

A body art (arte realizada através do corpo) é a denominação sob a

qual se reúnem todas as operações paradoxais em que o autor é

possuído pela necessidade de agir em função do outro, obcecado pela

idéia de mostrar-se para poder ser. (...) Esses artistas não encenam a

história de um personagem, mas tornam-se eles mesmos a história e o

personagem (Vergine, 1976, p. 110-111).37

Embora assim denominada e reconhecida haja apenas algumas décadas, a body art

é fruto artístico de um comportamento que acompanha o ser humano desde tempos

imemoriais. Numa das manifestações mais antigas de que se tem notícia, por exemplo,

tatuagens aparecem no corpo de um homem encontrado nos Alpes tiroleses (entre a Áustria

e a Itália), que teria vivido há cerca de 3.300 a.C. Uma pequena cruz e listas estavam

tatuados nas costas, no tornozelo direito e na parte de trás do seu joelho esquerdo. As

marcas podem ter sido colocadas tanto como ornamentos quanto para sinalizar um status

social ou mesmo, num teor religioso, visando proteção àquelas partes do corpo. Outras

tatuagens foram ainda encontradas em corpos mumificados do antigo Egito, como o da

sacerdotisa Amunet, que viveu há quatro mil anos atrás, e o de uma outra mulher que, além

de tatuagens apresentava também escarificações38 decorativas. Há indícios do uso de

37
La body art (arte realizzata tramite il corpo) è la denominazione sotto la quale si raccolgono tutte le
operazioni paradossali in cui l'autore è ossessionato dalla necessità di agire in funzione dell'altro,
ossessionato dalla necessità di mostrarsi per poter essere. [...] Questi artisti non sceneggiano la storia di un
personaggio, ma diventano essi stessi la storia e il personaggio.
38
Raspagem da pele com objetos pontiagudos, a fim de provocar cicatrizes.

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piercing39, escarificações e ornamentos corporais também pela civilização Maya, que

existiu no território onde hoje se encontra o México. Por sua vez, povos de pele escura da

África, América e Ásia, na qual geralmente a pigmentação de uma tatuagem pode não ser

percebida, se valiam, havia já centenas de anos, de outros tipos de marca e modificações

corporais, como a inserção de pratos para esticar os lábios ou a adição de anéis de cobre

para o alongamento do pescoço e do lobo auricular.

Enquanto naquelas civilizações as marcas corporais estão relacionadas a ritos de

passagem por diferentes momentos da existência ou a significações precisas no seio da

sociedade, em sua ocorrência recente o uso de marcas e adereços no corpo pode estar

vinculado ao fetichismo, à expressão de pertencimento a determinado grupo ou, ao

contrário, de dissidência social. Tomada pela moda, pelo esporte e pelas múltiplas culturas

das novas gerações, a marca corporal se dá também como forma de afirmação individual

por meio de variados recursos. Além do uso largamente difundido da tatuagem e do

piercing, há também a fabricação de cicatrizes em relevo, a escarificação e laceração da

pele e outros procedimentos, como o stretching (alargamento do orifício do piercing), o

branding (desenho ou sinal feito com ferro quente ou laser) e os implantes subcutâneos.

Para Le Breton (1999), na contemporaneidade, os signos corporais tornam-se

variáveis, podendo o indivíduo passar de uma tribo urbana a outra, a depender de

preferências e prazeres por vezes passageiros, que o levam a se apropriar das formas sem

uma preocupação com o seu sentido original, realocando-as para um novo contexto social e

cultural. Para o autor, os desenhos de monstros saídos, por exemplo, da cultura cibernética

e jogos de vídeo, assim como as formas geométricas que hoje compõem as "tatuagens

biomecânicas", constituem uma metáfora tecnicista do corpo: "Por vezes, o estilo tribal se

39
Ornamentos corporais caracterizados pela perfuração da pele e fixação de anéis e peças de metal.

84
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mistura ao estilo biomecânico, já que todas as variações são possíveis, os signos se alteram

pelo prazer" (Le Breton, 1999, p. 35)40.

Moça no café
Foto: Kaustika, Córdoba, Argentina

Os trabalhos de body art surgidos na década de 1960, entretanto, se deram num

contexto reivindicatório, em que todo poder e toda limitação deviam ser contestados e,

nesse ínterim, a linguagem do corpo apareceu como paradigma de liberdade, colocando-se

em favor de um mundo novo, cujo futuro calcava-se então em grandes bipolaridades

ideológicas: comunismo-capitalismo, indivíduo-estado, proletariado-burguesia, etc. Os

trabalhos chamavam a atenção inicialmente por sua violência e sadomasoquismo, em que

os artistas infligiam a si próprios feridas e mutilações, passando a mostrar e a explorar o

corpo em seu aspecto utilitário, do qual o ser humano é cotidianamente dependente.

Tratava-se de um ato tanto individual quanto político, ou seja, uma ação cuja expectativa

era contribuir na transformação do mundo. A partir disso, inéditas possibilidades se abrem

para a compreensão do corpo enquanto matéria significante, capaz de alterar e

desestabilizar as perenes relações entre a obra e o observador:

40
Souvent le style tribal se mêle au style biomécanique puisque toutes les variations sont possibles, les signes
s'échangeant pour le plaisir.

85
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O processo comunicacional a nível corporal inclui pressupostos – os

códigos culturais compartilhados – e seu valor ilocutório se estende

além da zona de consciência do receptor: afeta núcleos profundos,

sobretudo no caso de experiências traumáticas como as amputações

ou a presença de corpos marcados, tatuados, feridos (Glusberg, 2003,

98).

Erik Sprague, o “homem-lagarto”.


Imagem veiculada pelo site www.thelizardman.com

Apesar de operar também com as disformidades do corpo, a body art diferencia-se

da exibição de anomalias ou de fenômenos corporais inatos por seu caráter opcional, ou

seja, ela é resultante de ações voluntariamente realizadas pelo indivíduo. Neste caso, a

pessoa é quem decide intervir em seu próprio corpo e aparência, seja por meio de cirurgias,

próteses e implantes, seja através de tatuagens e alterações na cor da pele, dentre outras

formas de intervenção. Assim, a body art vai além da simples exploração das

características naturais ou dissimuladas do corpo, dizendo respeito a aspectos

simultaneamente individuais e sociais, que transformam o artista em sua própria obra, ou

seja, "em sujeito e objeto de sua arte". Valendo-se do estigmato, o artista agora subverte o

seu antigo sentido, marcando a si mesmo propositadamente a fim de se fazer diferente,

86
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percebido ou consumido por seus iguais, seja pela via da contestação ou mesmo pela mera

necessidade de exibir-se.

Em muitos de seus aspectos, porém, esse tipo de manifestação estética e

contemporânea do corpo não se dá a partir de um comportamento narcíseo mas, ao

contrário, traz consigo certa aversão à idéia do especular, configurando-se justamente

como oposição de uma perenal estabilidade que torne sua imagem captável ou reproduzível

pelo espelho. Trata-se de uma atitude que se constitui como manifestação específica, que

incide na percepção de um processo antropológico no qual o corpo é simulacro, lugar de

paradoxal morada, em que coabitam as possibilidades de alteridade e dissimulação de si.

Assim, por suas amplas possibilidades de simulação e contínua transformação, o corpo não

precisaria se submeter às regras do reflexo e sim “quebrar o espelho ou passar para o outro

lado”, o que transformaria sua exibição em oposto da representação e, consequentemente, a

performance num contrário de espetáculo, conforme observa Henri-Pierre Jeudy (2002).

Ocorre, porém, que ao romper a demarcação entre a arte e a vida cotidiana, a exibição

estética do corpo avançou de maneira a cair num processo de estereotipia, auxiliada que foi

pela midiatização.

A exibição implica sempre uma sobreoferta. Ela faz avançar os

limites da representação e se apóia na ilusão, que é ilimitada. Revela,

consequentemente, o quanto a representação logo se transforma em

estereótipos. As performances artísticas, como veremos, sofrem os

efeitos da saturação, que impelem os protagonistas a fazer sempre

mais. O desafio é de mostrar não somente do que o corpo é capaz,

mas, sobretudo, o que ele ainda pode, para além das exibições já

realizadas (Jeudy, 2002, p. 111).

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A midiatização incide sobre a exibição, fazendo dela um modelo de especularizaçao

social e tornando o que foi exibido uma “representação congelada”, ao contrário dos

propósitos iniciais de transgressão e rompimento dos limites como tentativa de liberação.

Assim, ao invés de um incessante questionamento do processo de representação, a

midiatização opera com a imagem do corpo uma exacerbação de estereótipos,

transformando-a em "imagem sem vestígio", na acepção de Jean Baudrillard, que vê na

maioria das imagens contemporâneas algo sem sombra nem consequências: "O que se

pressente é que, por trás de cada uma, algo desapareceu. Elas são apenas isto: o vestígio de

algo que desapareceu" (Baudrillard, 2004, p. 24). Neste sentido, mesmo o que pareça

original no momento de sua criação primeira, a imagem do corpo se torna, no instante

seguinte, reprodução estereotípica, contrapondo-se ao objetivo inicial de fazer da obra

(corpo vivo e humano) uma negação da própria representação.

O desencantamento do estranho41

O uso cênico de singularidades não é um procedimento recente nem advindo de

manifestações estéticas tradicionalmente reconhecidas. Suas raízes, ao que parece,

remontam a ações praticadas há pelo menos três séculos que, embora comumente excluídas

da história do teatro, ocorriam em paralelo – quando não incidiam diretamente – à cena

convencional, esta última exercida nas grandes salas e no circuito oficial do teatro, em

vigência durante séculos. A partir do séc. XVIII, a exibição de fenômenos teratológicos

constituiria um tipo de atividade que logo se mostraria bastante lucrativa: os entre-sorts ou,

numa tradução direta, os entra-e-sai. É como se denominavam, na França, as apresentações

de prodígios corporais, homens e animais, feitas em tendas, palcos, carros ou barracas: “O

público se excita, o fenômeno se mostra, bale ou fala, muge ou agoniza. Se entra, se sai, eis

41
Título tomado de empréstimo a um dos estudos de Jean-Jacques Courtine in Corbin, Courtine e Vigarello
(2006).

88
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aí” (Courtine, 2006, p. 202)42. Nos Estados Unidos, a prática se popularizaria como freak

show ou sideshow, dentre outras denominações que, mais tarde, acabariam por englobar

também outros tipos de exibição, como engolidores de faca e performers variados, com

estatura e configuração corporal normal. Essa forma de atividade teve fôlego para manter-

se com força ainda no séc. XX, continuando a manifestar-se nas barracas de feira e no

circo.

Na verdade, a exibição pública de fenômenos humanos como forma de ganho é

bastante antiga. Segundo Ambroise Paré, já em 1475, na cidade de Verona, na Itália,

gêmeos unidos corporalmente pelas partes posteriores, pertencentes a uma família

miserável, eram exibidos em praça pública pelos próprios pais. Eles, assim, ganhavam e

garantiam a vida graças à curiosidade do povo, desejoso de ver aquele “espetáculo da

natureza”. Em sua "Dissertation philosophique sur le monstre né à Paris en 1605", Jean

Riolan, o filho 43, também se refere a outros gêmeos ligados, cujos pais fizeram fortuna

exibindo-os para quem pagasse o preço. O uso espetacular desses seres se dá com

freqüência a partir do séc. XVII, em consonância com as manifestações teatrais de rua e

atividades populares em praça pública, vindo a agregar-se a eventuais fixações de uma

população nômade, composta de trupes de atores ambulantes, saltimbancos e charlatães

diversos. Capazes de provocar peregrinações de curiosos, os distúrbios do corpo e da

mente se desvencilham de um universo religioso, onde eram tidos como objetos de piedade

ou obras do sobrenatural, para sofrer os efeitos de uma teatralização perpetuada nas feiras e

eventos ocorridos, inclusive, em terrenos pertencentes às abadias e sob tutela real. Dentre

as atrações que concorriam à atenção do público estavam também acrobatas, funâmbulos e

mágicos, além de arrancadores de dente, sendo esta uma das atividades mais procuradas.

42
Le public monte, le phénomène se lève, bêle ou parle, mugit ou râle. On entre, on sort, voilà.
43
Citado na exposição virtual "Les monstres de la renaissance à l'âge classique", exibida no site da
Bibliothèque Interuniversitaire de Médicine (BIUM), Paris, 2006-2007.

89
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Em meio às apresentações, "gigantes" e anões se misturavam com outros seres humanos

tidos como fenômenos e que, na verdade, sofriam de variadas anomalias.

Esses ajuntamentos de origem religiosa, de natureza comercial,

sempre foram ocasiões de divertimento popular. A feira é prima do

carnaval. Mas foram sendo colonizados claramente entre 1650 e 1750

por empresários de espetáculos, que vinham propor às multidões

consideráveis que ali afluíam toda espécie de curiosidades e

distrações. Assim, no início do séc. XVII, a assembléia de Saint-

Germain-des-Près autoriza comediantes a construir tendas em seu

terreno, concedendo permissões semelhantes aos dançarinos de corda,

marionetistas, apresentadores de animais selvagens e de curiosidades

humanas (Courtine, 1999, p. 53).44

Talvez se possa dizer que, da mesma maneira que por muito tempo foi negado aos

saltimbancos e às manifestações teatrais realizadas em praça pública comporem a história

oficial do teatro, também os freakshows e entre-sorts nunca mereceram uma consideração

maior, sendo colocados à margem e tidos como atividades desumanas, mais do que

manifestações de cunho artístico. Obviamente, as razões para isto são muitas, indo desde

questões éticas, estéticas e morais até a desinformação e o puro preconceito, já que por

várias ocasiões, os procedimentos ali empregados eram muito próximos àqueles de um

contexto teatral convencionalmente aceito, como o uso de texto, a composição de

personagens e a caracterização dos atores e do espaço cênico: "Em primeiro lugar, figuram

os fenômenos suscetíveis de ser rodeados e envolvidos por toda uma encenação, tais como
44
Ces rassemblements d'origine religieuse, de nature commerciale, avaient toujours été des occasions de
divertissement populaire. La foire est cuisine du carnaval. Mais ils allaient être colonisés de plus en plus
nettement entre 1650 et 1750 par des entrepreneurs de spectacles venant proposer aux foules considérables
qui y affluaient toutes sorts de curiosités et de distractions. Ainsi, au début du XVIIe siècle, le chapitre de
Saint-Germain-des-Prés autorise des comédiens à construire des loges sur son terrain, et va accorder des
permissions semblabes à des danseurs de corde, marionnetistes, montreurs d'animaux sauvages et de
curiosités humaines.

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o gigante Bihin no melodrama David et Golliath e o anão Leach em The dwarf of

Drachenfels, ou de aparecer numa barraca, como os gigantes La Belle Espagnole, La Belle

Vénitienne e outros, sentados em meio de móveis de uma pequenez proposital" (Dumur,

1965, p. 1455)45.

Com o passar do tempo, o fenômeno bateria à porta de teatros reconhecidos,

pleiteando seu lugar como atração também no espaço oficial da comédia até que se fizesse

ouvir. Várias dessas produções acabam por ser mostradas nas salas oficiais e o espetáculo

das deformidades adentra o lugar antes reservado ao "artístico". Entretanto, ao contrário do

que geralmente ocorria em produções convencionais, nesses espetáculos os atores se

valiam de suas próprias características, como foi caso de Harvey Leach (ou Leech) que, no

Bowery Theatre, de Londres, em 1840, representava os papéis de gnomo, babuíno ou

mosca. Num outro exemplo, a peça "La foire Saint-Laurent", de Le Grand, apresentada em

1709 na Comèdie Française, tinha no "homem sem braços" a sua principal atração: era com

os pés que o ator movia o chapéu, jogava cartas e tocava tímpano.

Porém, o preconceito com que tais manifestações são historicamente encaradas está

em que elas acabam tidas, sobretudo, como simples meio de exploração comercial do olhar

curioso. Ainda que este seja um dos elementos que as caracterize, a questão é, entretanto

de ordem bem mais ampla, dizendo respeito ao campo cultural e sociológico, uma vez que

não se está falando apenas da finalidade prática do fato, mas também de suas causas e

conseqüências, ou seja, quais razões moveriam as pessoas a apreciar tais acontecimentos e

qual a sua incidência na percepção delas. Além disso, diferentemente do que se acredita,

registros indicam que em muitos casos os freak shows não denegriam a imagem nem

diminuíam a auto-estima das pessoas exibidas que, de outra maneira, seriam apenas motivo

45
En premier lieu figurent les 'phénomènes' susceptibles d'être entourés et encadrés de toutes une mise en
scène, tels le géant belge Bihin dans le mélodrame David et Goliath et le nain Leach dans The Dwarf of
Drachenfels, ou de paraître dans une baraque, telles les géantes: la Belle Espagnole, la Belle Vénitienne et
autres, assises parmi des meubles d'une petitesse voulue.

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de compaixão ou zombaria. Ao menos ali, muitas delas encontraram um espaço que

podiam compartilhar com outros na mesma situação, além de fazer de suas condições uma

moeda de troca e, com isto, ganhar mesmo um status social considerável, como o siberiano

Kobelkoff, o homem-tronco, citado em Thétard (1978). Nascido sem braços nem pernas,

ele consegue, a partir do sucesso obtido em suas apresentações em feiras e circos,

constituir a sua própria trupe de teatro ambulante, além de uma numerosa família com dez

filhos.

Como foi possível notar anteriormente46, motivações de ordem moral e religiosa

podem alterar substancialmente a relação estabelecida entre o observador e os fenômenos e

distúrbios corporais, sendo que a exacerbação do olhar curioso, percebida nas recentes

civilizações ocidentais, não significaria uma prática de desenfreado sadismo ou simples

avidez pelo bizarro. Neste sentido, vale o entendimento de Bogdan (1988), que alerta para

o fato de que, mais do que a manifestação de sensações adormecidas, a reação comum

diante de um ser estranho e peculiar na era moderna é antes o resultado de uma ação

engendrada por determinadas instituições sobre a identidade dessas pessoas. Os freak

shows seriam uma forma de percepção propositadamente elaborada entre aqueles

indivíduos e o público: "'Freak' [excêntrico] não é uma qualidade que pertence à pessoa em

exibição. É algo que nós criamos: uma perspectiva, um conjunto de práticas – uma

construção social" (Bogdan, 1988, p. xi)47. Numa perspectiva semelhante, Courtine se

inspira em Canguilhem para distinguir o monstro do monstruoso, chamando a atenção para

a alteração perceptiva do observador diante do corpo estranho e significativo, bem como da

46
Ver no capítulo 1, "Uma estética do estigma?".
47
'Freak' is not a quality that belongs to the person on display. It is something that we created: a perspective,
a set of practices – a social construction.

92
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incidência dessa construção em seu imaginário48, valendo lembrar que o uso do termo

"monstro" está aqui vinculado à denominação médica de então:

Suspensão da linguagem, estremecimento do olhar, desestabilização

da experiência perceptiva resultante do repentino encontro com o

corpo monstruoso, o monstro é algo da ordem do real, isto é, do

irrepresentável. Já o monstruoso é produto do discurso, circulação de

imagens, consumo atento e curioso de signos, inscrição do monstro

no campo imaginário da representação (Courtine, 2006, p. 460).49

Joseph Merrick, o homem-elefante (séc. XVIII), e Ella Harper, a mulher-camelo,


em foto de Charles Eisenman (1886).

Assim, a curiosidade que movia o espectador surgia, por vezes, de um desejo

expresso de experimentar sensações como a desestabilização do olhar e da percepção de

mundo, que a presença de um ser extremamente estranho podia causar. Neste sentido, de

48
Note-se que, em ambos os casos, se está referindo ao locus performático apontado por Richard Schechner,
ou seja, o campo perceptivo e interativo localizado entre o observador e o objeto observado, no qual se
instaura efetivamente a performance: "Em outras palavras, a particularidade de um dado evento está não
apenas em sua materialidade, mas em sua interatividade. (...) A performance não está em nada, mas entre"
(Schechner, 2003, p.28).
49
Suspension du langage, tremblement du regard, déstabilisation de l'expérience perceptive résultant de la
soudaine rencontre avec le corps monstrueux, le monstre est quelque chose de l'ordre du réel, c'est a dire
d'irreprésentable. Le monstrueux, quant à lui, est production de discours, circulation d'images,
consommation attentife et curieuse de signes, inscription du monstre dans le champ imaginaire de la
représentation.

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forma natural ou construída, é possível perceber na moderna assistência uma evidente

simpatia pelo estranho e pelo grotesco, ou ao que deles pode decorrer, como é o caso das

reações de sarcasmo, compaixão e constrangimento50. Se, num passado não muito distante,

era comum ao cidadão deparar-se com aleijados, cegos, deformados e miseráveis a

mendigar pelas ruas como figuras desprezíveis e dignas de pesar, a partir do séc. XVIII – e,

com maior eloqüência, a partir do século seguinte –, ele se vê assediado por um discurso

que inverte a lógica e eleva aqueles seres à condição de atração. Eles passam a ocupar o

centro, sendo vendidos como evento para um público cada vez maior, que se aglomerava

às portas das barracas e tendas. A diferença entre o ato de mendigar e o espetáculo das

anomalias e deformidades não está apenas na atuação isolada do pedinte e na postura com

que o sujeito se coloca no espaço público. Embora em ambos os casos haja uma espécie de

mise en scène visando a mobilização do olhar alheio, a mendicância se restringe a expor as

deploráveis condições do sujeito, colocando-se a espera de uma reação que dê o seu preço,

seja ele qual for, enquanto na teatralização, essas condições ganham ares de espetáculo,

sendo encaradas como matéria de entretenimento e vendidas como oportunidade para se

vivenciar inusitadas sensações diante de raridades e fenômenos humanos. Não se pode

esquecer que, sobretudo no século XIX, a industrialização traria como consequência o

surgimento de grandes conglomerados urbanos e a necessidade de ocupação para as horas

de lazer de uma população cada vez maior de trabalhadores. É o que impulsionaria as

feiras populares e, em seguida, também os grandes negócios de entretenimento próprios do

período, como os chamados "museus de anatomia". Ou seja, enquanto não surgem o

cinema e outras modernas alternativas de entretenimento, seriam aquelas atividades a

suprir uma necessidade inerente de lazer das populações urbanas.

50
Conforme tratado no capítulo 1: "A crônica das reações anunciadas".

94
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Com o passar do tempo, as técnicas de apresentação se aprimorariam, indo desde o

disfarce e a criação de denominações extravagantes até a simulação de origem das

atrações. Na maioria dos casos, não eram mais do que invencionices e exageros

provocados de maneira proposital pelos promotores, visando atrair o público e fazer

receita. Neste sentido, Robert Bogdan destaca a conexão havida entre a ciência e os freak

shows para distinguir dois tipos de atração então construídos, sendo eles: os exemplos de

novas e desconhecidas raças e as pilhérias ou erros da natureza. O primeiro caso dizia

respeito a apresentar os tipos como oriundos de grupos não-ocidentais, em que se

aproveitava o fato de que expedições científicas começavam a atravessar e a explorar o

mundo, para acrescentar às histórias de culturas estranhas uma pretensa captura de

espécimes raros e maravilhas distantes que poderiam, obviamente, serem ali apreciadas a

um preço bastante módico. A segunda categoria se constituía da exibição de "monstros",

termo médico para pessoas nascidas com uma destacada diferença em sua constituição.

Neste caso, os promotores eram beneficiados pelo feito de que o estudo sobre os lusus

naturae ou freaks of nature (excentricidades da natureza) tinham se tornado hábito entre os

pesquisadores da área médica. Assim, eles promoviam debates entre cientistas e pessoas

escolhidas, o que não apenas incitava a curiosidade da assistência, mas acrescentava um ar

de credibilidade ao evento. Além disso, havia ainda a separação entre os born freaks, os

made freaks e os novelty acts.

De acordo com esta classificação, 'born freaks' são pessoas com

anomalias físicas reais, que vieram pela sua natural condição. Ainda

que esta categoria inclua pessoas que desenvolveram suas

singularidades durante a vida, o principal são aquelas que tiveram

uma anormalidade no nascimento: gêmeos siameses e pessoas sem

braço ou sem perna, por exemplo. 'Made freaks' fazem algo a si

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mesmas que as tornam suficientemente incomuns para serem

exibidas, tal como adornar-se com tatuagens ou deixando suas barbas

ou cabelos excepcionalmente longos. O 'novelty act' (ou 'working

act') não dependem de alguma característica física mas são capazes de

uma performance ou habilidade inusual como os engolidores (a

versão mais contemporânea chegou a usar tubos de néon) ou

encantadores de serpente (Bogdan, 1988, p. 8).51

Num modo exótico de apresentação, os promotores tratavam de anunciar o caráter

primitivo, estranho ou bestial das atrações. Incitando a imaginação dos ouvintes, eles

divulgavam que os tipos a serem mostrados vinham de regiões então misteriosas do

mundo, como a África negra, as selvas de Bornéu ou mesmo o antigo Império Asteca.

Num ato de extremo exagero, por exemplo, os gêmeos afro-americanos Willie e George

Muse eram apresentados como extraterrestres: "Nos anos de 1920 e 1930, Eko e Iko,

irmãos com albinismo e cabelos rastafari, foram apresentados como embaixadores de

Marte, descobertos próximos do que restou de sua nave espacial no Deserto de Mojave"

(Bogdan, 1988, p. 105)52.

É importante lembrar que até o início do séc. XX, devido às raras informações

sobre os sistemas endócrino e genético, a teratologia era uma ciência basicamente

classificatória, o que dava margem a especulações de todo tipo. O uso do termo "museu

natural" no título de algumas das casas de exibição atesta o proveito que se tirava da

desinformação reinante. Também o uso desenfreado de títulos por parte de conferencistas,

51
According to this classification, 'born freaks' are people with real physical anomalies who came by their
condition naturally. While this category includes people who developed their uniqueness later in life, central
are people who had an abnormality at birth: Siamese twins and armless and legless people are examples.
'Made freaks' do something to themselves that make them unusual enough for exhibit, such as getting
adorned with tattoos or growing their beards or hair exceptionally long. The 'novelty act' (or 'working act')
does not rely on any physical characteristic but rather boasts an unusual performance or ability such as
sword swallowing (the more contemporary versions used neon tubes) or snake charming.
52
In the 1920s and 1930s, Eko and Iko, brothers with albinism and dreadlocks, were presented as
ambassadors from Mars discovered near the remains of their spaceship in the Mojave Desert.

96
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como "doutor" e "professor" impunham uma pretensa associação desse tipo de

entretenimento com as ciências naturais, tornando o evento menos leviano e mais

confiável. Seria apenas com o avanço das pesquisas envolvendo a descoberta dos

princípios genéticos, o desenvolvimento da eugenia e um profundo conhecimento das

glândulas tireóide e pituitária, que determinadas peculiaridades de constituição passariam a

ser tidas como anomalias e os seus portadores admitidos como padecentes de algum mal,

passíveis de cuidados médicos. Este fato seria um golpe capital para o modo exótico de

apresentação das singularidades fisionômicas dos freak shows.

Willie e George Muse (Eko and Iko), Cartaz de divulgação de freak show
os "Embaixadores de Marte"53

Um outro modo de apresentação bastante comum era o engrandecimento do

indivíduo, mostrado como alguém superior, de alto status ou de grande talento. Os

atributos eram, por vezes, inventados ou exagerados, como a agregação de títulos (major,

general, princesa etc), o forjamento de origem (eles eram anunciados como provenientes de

países culturalmente superiores) e de qualidades (poliglotas, poetas, pintores). Como

53
Foto: Ringling Bros., veiculada pelo site http://sideshowbarker.blogspot.com. A imagem do cartaz foi
veiculada pelo site www.shockedandamazed.com.

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consequência, também as vestes acabavam por merecer um tratamento especial, o que

envolvia uma cara joalheria e o uso de adereços e ornamentos estilizados, como casacos de

pele, togas, vestidos de noite, chapéus e caudas. No engrandecimento também se podia

enfatizar a capacidade da pessoa em superar as suas particulares condições físicas, mentais

ou comportamentais através de habilidades específicas, como cantar, dançar, tocar algum

instrumento ou fazer acrobacias. Um dos maiores exemplos disso, foram as gêmeas Daisy

e Violet Hilton (1908-1969), nascidas ligadas pelo quadril, e celebrizadas em exibições

musicais de repertório jazzístico.

As famosas gêmeas siamesas Daisy e Violet Hilton e cartaz de divulgação.


Imagens veiculadas nos sites www.theatermania.com e http://www.answers.com

Bogdan prefere se referir a freak shows como sendo exibições formalmente

organizadas, de pessoas com uma real ou alegada anomalia física, mental ou

comportamental, para diversão e lucro. Para ele, é importante a definição "formalmente

organizadas", o que pressupõe uma diferença com relação às apresentações isoladas e não

vinculadas a organizações como o circo e os eventos formalizados, como o carnaval. O

maior exemplo desse tipo de organização foi o chamado “Museu Natural Americano”,

surgido em 1840 e capitaneado por Phinéas Taylor Barnum, cuja característica maior era a

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exploração do olhar curioso em torno de raridades anatômicas. Anunciando “seres

maravilhosos”, “criaturas bizarras”, “caprichos e excentricidades da natureza”, ele

percorreu triunfalmente também diversos países europeus, sendo recebido pela nobreza e

por membros do poder político e econômico, que viam nisso uma forma excêntrica de

celebrizar as suas ações.

Assim, é possível afirmar que a exploração pública e comercial de fenômenos

humanos se dividiu em dois tipos de manifestação, caracterizados por períodos distintos.

Num primeiro momento, havia as pequenas manifestações de feira, que embora tenham

perdurado mesmo durante o século XIX, apresentavam uma estrutura simples e sem maior

elaboração. Promovidas por pequenos "banquistas" e ocorrendo de maneira dispersa e

sazonal, elas eram dependentes do calendário de ajuntamentos populares, como as festas e

feiras, sendo as atrações apresentadas em barracas e, na maioria das vezes, isoladamente.

Já o segundo caso, mostra-se como decorrência de um tipo de empreendimento mais

elaborado, que aos poucos transformaria o então chamado "teatro de monstros" num

grande e oportuno negócio, atingindo um público crescente e requerendo uma estrutura

cada vez mais aprimorada. A partir de um sofisticado esquema publicitário, os produtores

se valiam do alcance possibilitado pela impressão gráfica, através da distribuição de

panfletos, fotografias e painéis chamativos e exagerados, além de anúncios em jornais e da

contratação de profissionais responsáveis pela difusão anterior à chegada da organização e

durante a temporada dos shows. É assim que o "Museu Natural" de Barnum e outros de

menor estatura acabaram por compor um ramo de negócios que faria escola, tornando-se

um exemplo concreto, ainda que primitivo, da cultura de massas e atividade modelar para o

que viria a se firmar como indústria do entretenimento.

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Gabrielle Fuller, “A Maravilha Viva”, nascida em 1884.
Em cena e em cartaz de divulgação. Panoptikum, Inc., Hamburg St. Pauli.

A exploração das anomalias por meio de sua exibição pública em feiras e praças

não foi apenas um capítulo para sua futura apropriação cênica, mas também uma

manifestação cujos elementos estariam no centro de todo um processo ético e de inclusão

desencadeado no correr do século XX. Junto com o avanço da ciência, que poria por terra

vários dos argumentos sensacionalistas usados para atrair a audiência, veio uma multidão

de vítimas de guerra e de acidentes de trabalho, cujo histórico e condições passaram a

exigir da sociedade uma mudança de olhar com relação aos distúrbios de caráter motor e

mental, além da recém criada ordem psicológica. Os então chamados "inválidos" ou, mais

recentemente, "portadores de deficiência" iniciariam uma série de ações visando sua

reinserção e aceitação social, que envolveria a criação de entidades para a divulgação e

defesa de seus direitos, que acabaria por refletir na mudança de hábitos e de entendimento,

levada a efeito sobretudo a partir de meados do século XX.

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GÊNESE DE UMA CENA INTEGRADORA

Nas questões ligadas à percepção social das anomalias, das limitações e das

diferenças de constituição, instituídas a partir da Segunda Grande Guerra, o entendimento

exposto em Sassaki (1997), distinguindo os conceitos de integração e de inclusão social

como etapas complementares, tem ganhado cada vez mais aceitação. No caso da

integração, praticada nas décadas de 1960 e 1970, eram criados e oferecidos aos indivíduos

mecanismos para que se motivassem a se adaptar e a se mostrar capazes de ocupar

socialmente o seu espaço: "A integração tinha e tem o mérito de inserir o portador de

deficiência na sociedade, sim, mas desde que ele esteja de alguma forma capacitado a

superar as barreiras físicas, programáticas e atitudinais nela existentes" (Sassaki, 1997, p.

34). Já a inclusão, em termos mais recentes, denomina uma prática cujo processo é

bilateral. Nele, também a sociedade se move de modo a se tornar mais flexível em sua

relação com aqueles que apresentem impedimentos ou limitações de qualquer ordem:

"Conceitua-se a inclusão social como o processo pelo qual a sociedade se adapta para

poder incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais e,

simultaneamente, estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade" (Sassaki, 1997,

p. 41). Esse fato decorre numa relativização das fronteiras da normalidade e num

conseqüente processo de aceitação do que antes era tido como irregular e excluído pela

diferença. Ou seja, na integração o sujeito é que deve se adaptar à sociedade e, por outro

lado, na inclusão, a sociedade também busca os meios de admitir esse cidadão como seu

natural integrante.

Na verdade, práticas primárias de integração social de pessoas com deficiência

ocorriam já no século XVIII, quando surgiram as primeiras instituições especializadas na

educação e no tratamento de surdos e cegos. Aliás, os problemas de ordem visual e

101
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auditiva detiveram quase sempre um privilégio em relação aos demais, já que, apesar das

limitações, uma pessoa surda ou cega, além de preservada a sua constituição física, tem

geralmente uma maior capacidade de compreensão e mesmo de ação se comparada àqueles

que apresentam distúrbios mentais ou corporais severos, o que amplia as chances de

integrar-se socialmente.

Já uma das primeiras experiências pedagógicas envolvendo doentes mentais

ocorreu na França, entre 1801 e 1805, quando foi encontrada uma criança com cerca de

doze anos apresentando hábitos de animal selvagem e características de subnormalidade.

Encarregado de acompanhar o caso, o médico Jean Gaspard Itard – que, mais tarde, se

especializaria na educação e alfabetização de surdos –, desenvolve um processo de

acompanhamento e educação do menino, a partir de então chamado “criança selvagem”.

Embora sem alcançar grandes progressos, o trabalho ganha repercussão e torna-se

referência em todo o mundo, influenciando médicos e educadores como Edouard Séguin

(1812-1880) e Maria Montessori (1870-1952). Com isso, métodos educacionais e

psicológicos ganham espaço, resultando em práticas sociais consistentes e realmente

inovadoras para com limitações diversas.

Entretanto, mesmo com ganhos significativos, sobretudo no campo pedagógico, a

experiência integradora decorreria em exacerbadas práticas de reabilitação, cujo apogeu se

daria no século XX com a difusão do axioma “reabilitar para integrar”. Esse pensamento

resulta de uma crença de que a deficiência seria um problema exclusivo da pessoa que a

possuísse, bastando apenas o provimento de um tipo de serviço capaz de ajudá-la a

solucioná-lo. Tratava-se de uma visão puramente capacitadora do indivíduo, chamado a

integrar-se pelo espelhamento (ou cópia) de um modelo e não pelas trocas sociais, que

envolveria a aceitação e o reconhecimento das diferentes condições do corpo e da mente

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humana. De certa maneira, isso se reflete no modelo médico da deficiência, levado a efeito

ainda nos dias de hoje.

O sensualismo, o empirismo e o naturalismo modernos, por um lado,

e o nascente positivismo epistemológico, por outro, confluíram para

que a heterogeneidade inerente ao campo da reabilitação passasse a

ser reduzida a uma questão de habilidade sensório-motora e para que

a própria estratégia de intervenção fosse pensada como um mero

tecnicismo mais ou menos laboratorial (Lajonquière, 1994, p. 307).

Por seu turno, a inclusão social se institui contemporaneamente desde a ampliação

dos direitos até a difusão de práticas envolvendo as chamadas pessoas com deficiência,

como a aceitação e a convivência com as diferenças individuais, por meio de

denominações menos preconceituosas, elaboração de leis mais favoráveis, criação de

associações e entidades com participação direta dos envolvidos entre outras ações. Mas, o

maior diferencial da “sociedade inclusiva” está na mudança de paradigmas com relação à

normalidade e à patologia: "o patológico deve ser compreendido como uma espécie do

normal, já que o anormal não é aquilo que não é normal, e sim aquilo que é um normal

diferente" (Canguilhem, 1995, 164). A partir desse entendimento, uma nova postura será

assumida em diversas instâncias, que passam a se adaptar para a recepção e o convívio,

sobretudo, com limitações de ordem motora, intelectual e sensorial. As iniciativas ocorrem

na esfera educacional e nos meios de comunicação, se impondo também no mercado de

trabalho, nos meios de transporte e nas vias públicas, e em ações de âmbito cultural e

político, dentre outras. Não se pode dizer, entretanto, que a prática cotidiana tenha

acompanhado o ritmo das transformações ocorridas no circuito legal e institucional. O que

se vê no dia-a-dia, por parte da maioria das pessoas e mesmo de entidades em geral, são

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atitudes ainda imbuídas de um caráter reabilitador ou, mais exatamente, normalizador, no

sentido de padronizar as diferenças e impor regras comuns.

De qualquer maneira, a diferenciação entre os conceitos de integração e inclusão

talvez explique ou dê a entender melhor algumas das experiências cênicas levadas a efeito

na segunda metade do século XX que, embora envolvendo igualmente artistas com

problemas de ordem física, mental, sensorial ou intelectual, se constituem diferentemente

quanto ao discurso adotado, aos procedimentos cênicos utilizados e aos resultados

alcançados. Por suas amplas possibilidades de procedimento, a cena contemporânea

viabiliza uma enorme variedade de manifestações que, por sua vez, tornam possível a

incorporação de práticas e elementos – aí incluídos indivíduos e recursos –

verdadeiramente incomuns. Intensamente praticado nos domínios da performance, o uso

cênico de corpos diferenciados ou alterados abre um precedente que permitiria enxergar no

trabalho com “deficientes” – e não se deve esquecer dos milhões deles que vieram a

habitar o espaço social no século XX – algo mais do que o simples procedimento

terapêutico. Concomitante a isso, se dá um movimento contrário, partido dos domínios da

saúde e da educação especializada, com práticas inusitadas no tratamento e no

acompanhamento, que passam a se valer do exercício teatral como verdadeiro instrumento,

cujas possibilidades vão além de um mero recurso auxiliar de reabilitação.

Aos poucos, essa aproximação entre o exercício estético e a prática médica

resultaria tanto na busca de qualificação artística por parte de profissionais da saúde

(psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas) e da educação, como na migração de artistas para

o interior de instituições especializadas na educação especial e saúde. Além do teatro,

também a dança, a música e as artes plásticas compõem esse movimento que, mais tarde,

decorreria mesmo na adjetivação daqueles termos (musicoterapia, dançaterapia, etc) e no

surgimento de profissões hibridizadas, como o arteterapeuta. No teatro, essa intersecção

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ganharia espaço próprio com o surgimento, na década de 1990, de eventos e festivais

específicos. Em diversos países europeus torna-se prática comum o apoio governamental a

iniciativas de caráter artístico envolvendo pessoas em situação de handicap, e vários

projetos ganham destaque seja pelo resultado ou pela estrutura profissional que adquirem,

digna das maiores companhias estáveis de teatro. É o caso, por exemplo, das francesas

L´Oiseau Mouche e Théâtre du Cristal.

No Brasil, o exercício do teatro com as chamadas “pessoas com deficiência” ou

“pessoas portadoras de deficiência” ganha espaço a partir da década de 1990, difundindo-

se muito mais como prática de inclusão social, no sentido integrador, e valendo-se das

vantagens que passam a ter os projetos com essa característica. A partir de então,

proliferam as chamadas organizações não governamentais (ONGs), isentas do pagamento

de impostos e com maior facilidade na obtenção de apoio público e privado para suas

realizações. Boa parte das iniciativas é ligada a instituições tradicionais ou convencionais

de amparo e inclusão, dizendo respeito à constituição de grupos de artistas “portadores de

deficiência” – e aqui o uso deste termo tem um peso considerável na captação dos recursos.

Embora abertos, a maioria desses grupos se compõe quase que exclusivamente de pessoas

“com deficiência”, estando boa parte deles ainda imbuídos de um forte caráter integrador.

Isto ocorre também com iniciativas envolvendo as artes em geral – dança, música, etc – em

que as condições são dadas para que esses indivíduos sejam vistos e se sintam “capazes”,

fazendo com que a recepção ao resultado acabe se dando muito mais pela via da

solidariedade do que por um espírito propriamente emancipador.

O lugar cênico do apesar

Surgida em 1978, a Compagnie de l´Oiseau Mouche foi reconhecida quatro anos

mais tarde como Centro de Ajuda para o Trabalho (CAT), passando a receber apoio

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financeiro do governo francês. Desde 2001 está instalada na cidade de Roubaix, ao norte

do país, tendo como sede uma antiga garagem automobilística, agora equipada com

alojamento, lanchonete e salas de ensaio e de espetáculos, com capacidade para 120

espectadores. Depois de dezenas de produções, envolvendo quase uma centena de atores, a

companhia possui hoje um elenco permanente com mais de vinte integrantes que atuam

regularmente nos espetáculos, encenados a cada ano por diferentes profissionais

convidados. Um programa de formação contínua é oferecido ao grupo: improvisação,

dança, música, voz, estudo de textos, etc. Trata-se de uma estrutura criada para oferecer a

possibilidade de um trabalho profissional a atores com variados graus de distúrbios mental

e intelectual, oportunidade que muito provavelmente eles não encontrariam fora dali.

Também o Théâtre du Cristal, sediado em Beaumont-sur-Oise, nos arredores de

Paris, é uma iniciativa parcialmente subvencionada pelo governo francês para manutenção

de uma trupe permanente sob a forma de um ateliê-teatro profissional. Criada em 1989, a

companhia montou por volta de quinze espetáculos sob a direção de profissionais diversos

e possui, atualmente, um repertório com pelo menos quatro peças. No elenco, estão cerca

de quinze atores com variados graus de distúrbios mentais, comandados pelo diretor teatral

e também psicólogo Olivier Couder. No site e no programa de apresentação da companhia

consta o seu maior objetivo: “construir uma estética nova pela confrontação de formas

brutas com os códigos e as referências do teatro contemporâneo”54. Nesse mesmo espaço,

o diretor rechaça o uso do teatro como terapia e reitera a busca de um produto artístico e do

acesso ao fazer teatral por parte de “pessoas marginalizadas”. São apresentados também

outros propósitos do trabalho, como a criação de novas formas cênicas e mudança na

percepção do público, a partir da competência artística dos atuantes.

54
Construire une esthétique nouvelle par la confrontation de formes brutes avec les codes et les références
du théâtre contemporain (http://theatreducristal.free.fr).

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Embora enfatizando o caráter artístico de suas produções, ambas as companhias

assumem explicitamente o discurso de inclusão social, de luta contra o preconceito e pela

transformação do olhar sobre as possibilidades criativas de pessoas com distúrbios ou

limitações de ordem mental e intelectual. Como consta ainda no site do Théâtre du Cristal:

"Essa atividade cumpre parcialmente um déficit importante de acesso de pessoas

deficientes à arte e à cultura. Ela se inscreve no movimento atual que visa compensar a

distância de pessoas deficientes das práticas artísticas, situação que aumenta a sua exclusão

social e cultural"55.

Trata-se de um enfoque recente sobre o papel das artes no contexto das ditas

deficiências e da incidência disso num âmbito social, idêntico entendimento que move

diversas iniciativas contemporâneas, dentre as quais, a Very Special Arts (VSA)56, surgida

nos Estados Unidos, e hoje difundida em todo o mundo. Ainda que haja diferenças na

condução dos projetos por parte dessas instituições, teoricamente elas não alteram a base

comum de ambas as propostas, que enxergam nas artes um instrumento eficaz e propício

para a inserção social de pessoas com limitações e/ou distúrbios diversos.

Nos espetáculos assistidos, as duas companhias francesas partem de obras de

autores teatrais bastante conhecidos: Beckett, Brecht e Shakespeare. Outro ponto comum é

o respeito que apresentam ao texto e às características das personagens, sem deixar de se

ater à capacidade e às condições de cada um dos atores. Em Le roi Lear57 (O rei Lear), de

55
Cette activité comble partiellement un déficit important d’accès des personnes handicapées à l’art et à la
culture. Elle s’inscrit dans le mouvement actuel qui vise à compenser l’éloignement des personnes
handicapées des pratiques artistiques, situation qui redouble leur exclusion sociale et culturelle
(http://theatreducristal.free.fr).
56
O Programa Very Special Arts Internacional foi criado em 1974 por iniciativa de Jean Kennedy Smith,
irmã do presidente John F. Kennedy (1917-1963), estando presente hoje em quase uma centena de países.
57
Nesta tese, será informada a ficha técnica apenas dos espetáculos que forem analisados. Ficha de Le roi
Lear: Texto de W. Shakespeare, com adaptação de Jean-Michel Rabeux e Sylvie Reutena. Direção: Sylvie
Reutena. Com: François Daujon, Nathalie Savary, Magdalena Mathieu, Jennifer Barrois, Marc Mérigot,
Georges Edmont, Martial Bourlart, Frédéric Foulon, Thierry Dupont. Cenografia e figurinos: Pierre-André
Weitz. Iluminação: Jean-Claude Fonkenel. Production: La Sybille/Compagnie de l'Oiseau Mouche.

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Shakespeare, dirigida por Sylvie Reutena, e La mère58 (A mãe), de Brecht, dirigida por

Françoise Delrue, a Compagnie de l’Oiseau Mouche se utiliza também de atores comuns –

ou “sem deficiência” –, enquanto que o Théâtre du Cristal, em Dramaticules59, se ocupa

de uma trupe composta quase que exclusivamente de atores com distúrbios mentais leves.

Com direção de Olivier Couder, Dramaticules é uma junção de seis pequenas peças

de Samuel Beckett: Actes sans paroles, Va et vient, Solo, Quoi où, Catastrophe e Pas moi.

Na maior parte delas um encontro singular se verifica, já que a condição real dos atores

permite insinuar uma proximidade com aquilo que se convencionou chamar universo

beckettiano, composto por tipos errantes e supostamente loucos, como mendigos e clowns.

Assim, as condições dos atores enriquecem a cena de maneira evidente e, mais do que uma

qualidade especial, suas singularidades e comportamento possibilitam uma percepção

inusitada da cena e do texto. De início, aliás, se é levado a pensar que estão em cena

também atores comuns, tal o grau de equilíbrio e dissimulação alcançado ou permitido

entre atores e personagens.

Da mesma maneira, é o que ocorre em Le roi Lear, apresentado pela companhia

L’Oiseau Mouche, sob a direção de Sylvie Reutena, em que alguns dos atores, como o

próprio protagonista, abrem possibilidades diversas para a percepção das personagens de

Shakespeare. Em entrevista, a diretora esclarece que, não sabendo ler, o protagonista

François Daujon apreende os textos oralmente, o que o leva à apreensão e fixação de uma

singular entonação para suas falas. Em cena, Lear aparece pequeno, encurvado e com uma

voz de timbre metálico e monocórdio, o que empresta ao personagem certa estranheza e

uma suposta fragilidade. A peça torna-se, assim, o encontro do já conhecido – a fábula


58
Ficha técnica: Texto de Bertolt Brecht. Direção e tradução: Françoise Delrue. Com: Jennifer Barrois,
Martial Bourlart, François Daujon, Frédéric Foulon, Stéphane Hainaut, Vincent Lefebvre, Hervé Lemeunier,
Thierry Raulin, Valèrie Szmigielski, Valerie Vincent, Ludovic Waroquier. Músicos: Casilda Rodriguez,
Christian Vasseur. Production: La Compagnie de l'Oiseau Mouche.
59
Ficha técnica: Textos de Samuel Beckett. Direção Olivier Couder. Assistência: Patricia Zehme. Com: Raja
Aïtour, Francis Auvray, Clarky Brunier, Marie Colin, Arnaud Grossetti, Yoram Gué, Stéphane Guérin, Trang
Lam, Didier Maya, Stiva Paterno, Frédéric Payen, Marc Poncelet, François Raynal, Nadia Sadji, Patricia
Zehme. Cenários: Jean-Baptiste Manessier. Figurinos: Anne Le Moal. Iluminação: Carlos da Silva.

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shakespeareana – com o inusitado, onde a loucura de alguns personagens se evidencia e,

por vezes, se confunde com os reais distúrbios ou comportamento apresentados pelos

atores. E nisso a diretora é enfática: “Pareceu-me que esse texto, atravessado pelo tema do

error e da loucura, marcado pela perda e redistribuição de identidades, que se joga da frágil

fronteira entre razão e desrazão, podia encontrar aqui uma encarnação potente e

singular”60.

Valendo-se de diversos recursos cênicos, a encenação permite que as condições dos

atores se mostrem ou se insinuem de maneira equilibrada, sem quebrar a progressão da

história. Já no início da peça, os personagens-atores são mostrados numa espécie de carro-

prisão, estranho veículo que lembra uma gaiola e que, durante a apresentação, se

transforma em cenário visual e sonoro para a maioria das cenas, com cada um de seus

lados, feitos de tubos e placas de metal, servindo de parede e instrumento para a produção

de diversos sons.

Cenas de Le roi Lear, de Shakespeare. Compagnie de l'Oiseau Mouche.


Imagem veiculada no site http://www.oiseau-mouche.org

Por sua vez, em La mère, de Brecht, o palco é usado em círculo, multifacetado,

com o público colocado por vezes entre um espaço cênico e outro. Essa multiplicidade de

espaços, a simultaneidade e contraposição de cenas, além da presença de músicos que

tocam e jogam em vários momentos com os atores, dão à cena um ritmo justo e uma

60
Il m'a semblé que ce texte, traversé par le thème de l´errance et celui de la folie, marqué par la perte et la
redistribution des identités, qui se joue de la fragile frontière entre raison et déraison, pouvait trouver là une
incarnation puissante et singulière (Conforme programa de apresentação do espetáculo).

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positiva dinâmica. Diferentemente dos trabalhos citados anteriormente, em La mère, nem

os personagens nem a dramaturgia realça ou se aproxima das naturais qualidades dos

atores. Ainda assim, uma interessante questão surge com relação ao inevitável

estranhamento inaugurado por Brecht, e normalmente presente em recursos de dramaturgia

e encenação de seus textos, como o uso de narrativas, de canções e da inusitada

manipulação de objetos. Trata-se do estranhamento ocasionado pelo natural

comportamento de alguns dos atores que, em determinados momentos, se sobressai à

estrutura estabelecida, sem, no entanto, comprometer a performance deles. No que diz

respeito ao trabalho de composição de personagens e sua interpretação, o elenco em geral

mostra-se seguro e a história flui de maneira convincente, com a metáfora da inclusão

insinuando-se pela situação da protagonista que, analfabeta, acaba politizada pelo amor ao

filho e pela ideologia que descobre por trás das ações das quais escolhe participar.

Em todos os três trabalhos assistidos, uma questão comum se coloca: até que ponto

o fato de se saber de antemão das condições dos atores – o que é inevitável no caso dessas

duas companhias, reconhecidas justamente pelo caráter de suas iniciativas – poderia

interferir na qualidade ou no tipo de recepção por parte do público? Em primeira instância,

jogaria contra os espetáculos uma idéia pré-concebida sobre a as condições e a capacidade

dos atores, considerados “deficientes” e, portanto, limitados, o que poderia levar a um

olhar negligente ou, o que é pior, a um juízo filtrado pela condescendência. Outro risco

seria o fato de os textos escolhidos, especialmente Le roi Lear e La mère, possuírem

estrutura convencional (forma fechada), com enredo e personagens definidos, o que

poderia reforçar o caráter de ilusão imposto à cena pela via de uma estrita submissão ao

texto ou da identificação ator-personagem, por exemplo. Apesar disso, as singulares

condições de vários dos atores se inserem não como elemento que reforce essa

identificação, como poderia ocorrer com os personagens de Beckett e de Shakespeare

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(loucos, mendigos, clowns) ou como recurso de estranhamento, no caso de Brecht, mas sim

como vetores (Pavis, 2003), que interferem apropriadamente nas linhas de força da

representação. Pode se dizer que, apesar desses fatores incidirem de maneira óbvia na

recepção, a qualidade dos elencos e o modo como, em geral, são conduzidos os espetáculos

evitam que isto se dê negativamente. As encenações, em especial de Reutena e Del Rue, se

impõem, garantindo a autonomia daquilo que é de domínio do espetáculo e transformando

o que poderia ser uma adequação – as singularidades de seus atores – numa opção cênica.

É difícil negar que o tipo de estrutura apresentada pelas duas companhias francesas

tenha um caráter integrador, na concepção de Sassaki, oferecendo aos indivíduos

condições para que se incluam socialmente, desde que se adequem a um modelo tido como

geral. Nesses espaços, os participantes recebem informação e treinamento, estudam e

ensaiam sob a orientação e em conjunto com profissionais de vários domínios, como o

canto, a dança, a música, a interpretação. São estimulados a criar, mas também a

reproduzir modelos. É o tipo de ação que, em que pese a sua óbvia importância na

promoção da inclusão social desses indivíduos – e talvez pelo contexto cultural em que se

inserem –, operam mais pelo espelhamento de padrões teatrais já estabelecidos do que pela

efetiva exploração e busca do novo a partir de suas características e possibilidades.

Assim, os programas de treinamento e formação parecem prepará-los e capacitá-los

para um exercício convencional – ainda que diversificado – do teatro, mesmo que se

considere uma ou outra experiência isolada, que escape a esse modelo, no decorrer da

história dessas companhias. Nesse sentido, as produções assistidas calcam-se no texto e na

fábula pré-concebida, sendo balizadas por referências autorais ou por práticas de

encenação conhecidas e bem definidas, o que não deixa de operar, afinal, como um

procedimento facilitador para uma necessária forma de controle e vigilância, ainda que

flexível.

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Essa opção não diminui nem invalida o trabalho de tais companhias, pois se tratam

de iniciativas de caráter também social, com vínculos institucionais e necessitando, por

vezes, valer-se de recursos cênicos eficazes, que garantam resultados em curto prazo, além

de uma rápida apropriação por parte dos atores. Tal ação, porém, vai contra o caráter de

contágio e, ainda que presente, a contaminação cênica mostra-se controlada, presa a uma

estrutura que impõe aos atores o limite das personagens, dos textos, das marcações. Sendo

o exercício da personagem um jogo de alteridade, uma alternância entre o ser propriamente

dito e o ser representado, o trabalho cênico com base num texto e numa estrutura

convencional limita o efeito da contaminação, com a singularidade sendo relegada a um

segundo plano e conferindo sua marca à personagem, ao invés de ser ela própria a matéria

de criação cênica. Para que a contaminação se dê efetivamente, nos termos aqui propostos,

faz-se necessário uma apropriação cênica dos distúrbios como qualidade própria da cena e

não como adjetivo conferido à personagem por meio das condições apresentadas pelo ator.

Isso requer um outro tipo de procedimento, presente em algumas das manifestações

corporais anteriormente citadas, como o happening e a body art, que têm por característica

justamente se afastarem das formas convencionais de representação para gerarem um novo

estatuto, situado num terreno híbrido e altamente caracterizado pela performance.

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ACERCA DA DENEGAÇÃO

Talvez mais do que qualquer outro elemento, a presença em cena de atores

extremamente singulares põe a nu as relações necessárias entre a abordagem

semiocognitiva e as considerações sociológicas e ideológicas do espectador, o que constitui

o cerne da sociossemiótica descrita em Pavis (2003). Caso se concorde que o teatro é a arte

da ilusão por excelência, a singularidade em cena se distingue, questionando a todo

instante esta ilusão e colocando-se (por que não?) como recurso de distanciamento, ainda

que involuntário, para o espectador. Considerando que todo signo assenta-se e está inserido

num contexto socioeconômico e cultural, a presença cênica de alguém com um corpo ou

comportamento alterado desafia o espectador, já que essa pecularidade pode sobressair-se à

fábula e à personagem representada. Ou seja, as condições ideais da personagem poderiam

se contrapor às condições reais do ator ou serem influenciadas por elas, como ocorre no

caso dos signos não intencionais. A diferença é que as singularidades extremadas, por não

se tratarem de simples qualidades pessoais, mas de alterações na conformidade corporal ou

comportamental do indivíduo, podem não apenas influenciar na composição das

personagens, mas subverter os efeitos da chamada denegação teatral.

Oriunda da psicanálise, especificamente do termo alemão Verneinung, a denegação

infunde à consciência do observador elementos por ele recalcados e negados. Na

comunicação teatral tradicional, de cunho mimético, a ilusão buscada pela cena estimula

no espectador um sentimento dúbio, em que a crença se contrapõe à consciência do falso,

denotando à cena um cunho imaginário: “o que figura no lugar cênico é um real concreto,

objetos e pessoas cuja existência concreta ninguém põe em dúvida. Se, por um lado, eles

são seres de existência indiscutível (presos no tecido do real), por outro, se acham ao

mesmo tempo negados, marcados pelo sinal de menos” (Ubersfeld, 2005, p. 21). Mesmo o

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rompimento da quarta parede e as transformações contemporâneas na forma e na

concepção do lugar cênico foram incapazes de alterar essa distinção básica entre ator e

espectador, pois uma vez teatralizado o objeto ganha um caráter onírico, de “não-

realidade”. Da mesma forma que, para a psicanálise freudiana, uma pessoa sabe quando

está sonhando (ainda que não queira), no teatro o espectador tem a consciência constante

da separação entre as leis que regem o seu cotidiano e as leis próprias do fato teatral, sendo

estas refutadas, o que constitui uma forma particular de denegação.

Parece então como uma evidência que o que é denegado é o caráter

icônico do signo cênico: não se nega de maneira nenhuma a presença

real do ator e sua prática, assim como não se nega a prática de um

dançarino ou de um funâmbulo; o ator é um homem que se entrega a

uma prática artística real, que o espectador assim percebe no

momento em que ele representa (iconiza) uma atividade imaginária; e

é esta última que é denegada (Ubersfeld, 1980, p. 15).61

Cabe dizer que, dentre os sentidos aferidos ao termo, num âmbito geral está o de

contradizer, perfazendo o entendimento de que denegar não significa especificamente

negar a existência, podendo ser também a não aceitação ou simplesmente a não

concordância com algo. Ou seja, mesmo admitindo a cena como lugar de imitação e de

ilusão, o espectador refuta a simulação e o imaginário e reconhece no personagem um

semelhante e não um ser fictício.

Já a presença em cena de alguém extremamente singular problematiza a questão,

uma vez que essa singularidade (um corpo parcialmente inerte ou sem algum dos

61
Il apparaît alors comme une évidence que ce qui est denié c´est le caractère iconique du signe scénique :
on ne nie pas du tout la présence réelle du comédien, sa pratique de comédien, pas plus qu´on ne nie celle du
danseur ou du funambule ; le comédien est un homme qui se livre à une pratique artistique réelle, que le
spectateur reçoit comme telle, dans le temps même où il répresente (iconise) une activité imaginaire ; et c´est
cette derniére qui est deniée.

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membros, uma reação ou comportamento imprevisível, etc), por seu caráter naturalmente

performático, coloca-se entre o imaginário e o real, desestabilizando o lugar da denegação.

Enquanto outros signos não intencionais, como a tonalidade da voz ou a estatura do ator,

situam-se num âmbito previsível de normalidade, a extrema singularidade pode infundir

um estranhamento simultâneo, tanto na percepção da realidade concreta quanto da

realidade cênica. Talvez mais do que qualquer outro signo cênico, a singularidade do corpo

e do comportamento opera sobre o sentido não como expressão de algo conhecido, mas

como construção de um significado. Isto se coloca em concordância com o modelo

saussureano do signo, segundo entendimento de Pavis: "Podemos assim, graças a Saussure,

captar o sentido como construção de uma significação e não ingenuamente como a

comunicação de uma significação já existente no mundo" (2003, p. 10).

Citando como exemplo a cena dos atores em Hamlet, de Shakespeare, e também em

A ilusão cômica, de Corneille, Ubersfeld declara que o “teatro no teatro”, assim como o

sonho de um sonho, opera por uma dupla denegação, dizendo respeito não ao real, mas ao

verdadeiro: o ato de assistir ao teatro é o ato do próprio espectador, assim como o ato de

sonhar é o ato do próprio sonhador. Dessa maneira, muda-se o signo da ilusão, denunciada

"em todo o contexto cênico que a envolve” (Ubersfeld, 2005, p. 25). Ou seja, se numa cena

de cunho mimético ou naturalista a mensagem é resultado de uma negação (ou subtração)

do real concreto pelo real cênico, inscrita sob a forma m = -x, na cena envolvendo a

teatralização (ou o teatro dentro do teatro) incorpora-se um signo negativizado entre

parênteses, ficando: m = -x – (-y) = -x + y. O resultado é, assim, a inversão de uma

negação pela presença simultânea de outra.

No caso, porém, de uma singularidade extrema apresentada pelo ator, não será o

teatro a se colocar dentro do teatro, mas a realidade a se interpor entre o real e o teatro,

podendo o real cênico simplesmente não dar conta de subtrair o real concreto: as condições

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do ator sobressaem e colocam-se entre a cena e o espectador. Assim, se no teatro dentro do

teatro, a realidade cênica é denunciada por uma segunda realidade cênica, colocada de

fundo e que, por sua vez põe a nu e se identifica com a situação vivida pelo espectador, a

singularidade do ator põe-se como situação concreta, interpondo-se à cena. Aparentemente,

a questão só se resolveria caso a singularidade extrema fosse regida pelo estatuto da

performance onde, abolida a questão da alteridade e não significando outra coisa senão a

própria realidade do ator, será justamente o seu caráter performático a sobressair-se e a se

interpor entre o espectador e um evento que não se preocupa em iludir mas, ao contrário,

renega essa ilusão para ser ele mesmo – o evento – objeto do real e do concreto. É por esta

razão que pode ser mais sensato atribuir ao ator que apresente distúrbios corporais ou de

comportamento um status de ator/performer, ampliando com isto a zona que a sua

condição lhe permite transitar, naturalmente diversa daquela em geral ocupada por um ator

comum.

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CAPÍTULO 3

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A POESIA IMAGÉTICA DE ROBERT WILSON

Tratar aqui sobre o teatro de Robert Wilson como um todo seria não apenas

inviável, mas desnecessário: ainda que de indubitável importância para o contexto

contemporâneo do teatro, a cena criada por ele sofreu muitas transformações, deixando,

inclusive, de se ater a questões que, em determinado momento, lhe pareciam fundamentais.

Dessa maneira, se faz importante um enfoque específico sobre o período em que o diretor

norte-americano inicia suas atividades como encenador e criador, que é também quando

justamente conhece e passa a conviver com um universo que se pode intitular “anômalo”,

acabando por sofrer irreversivelmente a sua influência. É possível dizer mesmo que, no

âmbito da criação e do uso cênico a partir das disfunções do corpo e do comportamento, os

trabalhos de Robert Wilson permanecem emblemáticos, pois além de determinantes em sua

própria trajetória de encenador, foram marcantes também na história recente do teatro

ocidental.

Entre as décadas de 1960 e 1970, depois de atuar como pintor, arquiteto e interior

designer, Wilson conheceu e desenvolveu trabalhos diversos em colaboração com dois

jovens artistas extremamente singulares: Raymond Andrews e Cristopher Knowles, sendo

o primeiro completamente surdo e o segundo, à época, um garoto considerado autista.

Antes disso, uma outra experiência já o tinha levado a perceber as possíveis interações

entre a cena e certas disfunções que, ao contrário de serem nocivas, poderiam contribuir na

elaboração de uma linguagem e de uma estrutura espetacular bastante própria. Trata-se das

atividades que desenvolveu, ainda na universidade, com a participação de crianças com

alterações de comportamento, sob a orientação da bailarina Byrd Hoffman, que já o tinha

ajudado a superar um problema de fala – Wilson era gago – que trazia desde a infância. O

trabalho despertou nele o interesse pela prática terapêutica com outros tipos de distúrbios,

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o que lhe permitiu acesso a um programa de exercícios especialmente voltado aos estágios

primários da atividade física humana, cujo intuito seria ativar determinadas células

cerebrais. Isto foi o que lhe deu base para um entendimento mais apurado com relação às

possibilidades de expressão presentes numa mente cuja percepção de mundo fosse alterada

por alguma ocorrência de ordem intelectual ou psicológica, como foi o caso do autismo de

Knowles, ou propriamente física, como ocorre com surdez de Andrews. Também o

problema de fala que teve parece ter contribuído em muito para suas opções de trabalho, já

que, comportando-se timidamente durante a infância, Wilson desenvolveu uma relação

silenciosa com o mundo, tomando gosto e se expressando pelo desenho e pela pintura,

além de realizar precocemente experiências teatrais não-verbais na garagem de sua casa.

Todas essas ocorrências permitiram-lhe dedicar uma especial atenção e

aproveitamento criativo àquilo que, aos olhos da sociedade, seria motivo de rejeição ou, no

mínimo, considerado assunto de ordem estritamente médica. Ou seja, aos seus olhos, o que

era tido como incapacidade ou diminuição poderia se transformar, se adequadamente

processado, num efetivo elemento de expressão e de linguagem. Isso constituiu, para ele, o

desenvolvimento de uma atitude bastante particular na relação com a cena e sua

construção, o que passa por uma percepção não autoritária do processo criativo, com maior

aproveitamento das características individuais dos atores e uma não imposição de um

sentido ao espectador.

De formação eclética, Wilson teve a oportunidade de ver, acompanhar ou mesmo

trabalhar com artistas que se tornaram fundamentais em sua vida no teatro, como o pintor

George McNeil, de estilo impressionista abstrato, o performer John Cage e os coreógrafos

Martha Graham e Alwin Nicolais, dentre outros. Mas foram, sobretudo, os happenings que

lhe chamaram a atenção. E Wilson identificou-se prontamente com aquelas novas formas

de expressão, que incorporavam o acaso e a improvisação, além de misturarem as mais

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diversas linguagens. Assim, em 1967, ele apresentava espetáculos experimentais com a

participação de amadores na Byrd Hoffman Foundation que, na verdade, eram happenings

criados com o intuito de provocar o espectador, realçando muito mais o instantâneo do ato

de apresentar do que um resultado já pronto. São dessa época diversos espetáculos de

estrutura simples, com o uso do que então se denominava expressão corporal, praticamente

exercícios não-verbais, mas já com o uso de projeções de filmes e slides. É quando procura

reforçar a importância do ato de estar em cena ao invés de representar: “No início, o que

me interessava não era ver uma exposição de virtuosismo em cena. Eu desejava ver

pessoas serem elas mesmas, e eu queria encontrar uma situação na qual elas se sentissem à

vontade para que, em seguida, pudessem estabelecer uma relação com o público” (Féral,

1998, p. 335)62. Também como professor e, mais tarde, presidente da Byrd Hoffman

Foundation, Wilson deixava claro seu propósito de organizar situações em que pessoas

com diferentes interesses, experiências e capacidades pudessem se encontrar, estimulando

nelas o desenvolvimento da individualidade, em vez da transmissão de informações em

áreas específicas do conhecimento.

À parte as várias performances produzidas nessa época, seria o espetáculo The king

of Spain (O Rei da Espanha) que marcaria o início de uma nova fase no trabalho do diretor.

Mais tarde inserido como segundo ato de The life and times of Sigmund Freud (A vida e a

época de Sigmund Freud), estreado em 1969, The king of Spain tinha produção grandiosa,

em que, por meio de atividades silenciosas, um elenco gigantesco criava figuras e imagens

que mais tarde se tornariam a marca do trabalho de Wilson. À época, Raymond Andrews já

atuava como seu colaborador e, em parceria, produziram em 1971, Deafman´s glance (O

olhar do surdo) e, no ano seguinte, Ouverture, espetáculo realizado como parte de uma

extensa festa organizada pela Fundação Byrd Hoffman. As apresentações deste último

62
Au début, ce qui m’intéressait, ce n’était pas de voir un étalage de savoir-faire sur scène. J´avais envie de
voir des gens être eux-mêmes et je voulais trouver une situation dans laquelle ils se sentiraient à l´aise pour
qu´ensuite ils puissent établir un rapport avec un public.

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ocorreram durante uma semana, em dois momentos do dia: das 6h às 9h e das 18h às 21h.

Posteriormente, o espetáculo foi trabalhado até atingir a duração de uma semana ou, mais

precisamente, 168 horas, tendo sido o título alterado para KA MOUNTAIN AND THE

GUARDenia TERRACE (MONTANHA KA E O TERRAÇO GUARDenia), e exibido

neste formato no Festival das Artes de Shiraz, no Irã. Após a entrada de Christopher

Knowles, o grupo produziria, dentre outros, The life and times of Josef Stalin (A vida e a

época de Josef Stalin63), em 1973, A letter for Queen Victoria (Uma carta para a Rainha

Victoria), em 1974, e Einstein on the beach (Einstein na praia), em 1976.

Para Wilson, não é função do artista fornecer respostas, mas levantar questões: “O

teatro não deve interpretar, mas oferecer a possibilidade de contemplar um trabalho e

refletir sobre ele. Se você se comporta como se tivesse o controle de tudo, então o trabalho

está terminado. Ele vive, ele vive através de sua multiplicidade de formas e significações”

(Pavis, 1996, p. 101)64. Assim, ele passa a trabalhar sobre aquilo que, embora captado

pelos sentidos, é geralmente renegado pela razão, que o supõe como não-prioritário nem

necessário. É o que ocorre, por exemplo, em certos momentos do cotidiano, quando vários

eventos acontecem e são percebidos, por um indivíduo, ao mesmo tempo e das mais

diversas formas (audição, tato, olfato, visão). Embora não componham uma sequência

lógica e sejam descolados entre si, esses acontecimentos acabam interligados na mente da

pessoa, como na edição de um filme, compondo algo novo, concreto e real. Wilson busca,

então, o uso de recursos que provoquem esse tipo de percepção e, por meio da destituição

de um sentido lógico para as imagens e eventos criados, dá uma liberdade interpretativa ao

espectador. Aos poucos, desenvolve experiências e incorpora recursos cada vez mais

variados, como a sobreposição, a câmera lenta, a repetição, a polissemia. Segundo Guy

63
Visando evitar a censura da época, a peça foi apresentada no Brasil com o título de A vida e a época de
Dave Clark, nome de um obscuro criminoso da costa oeste dos Estados Unidos.
64
Theatre should not interpret, but should provide us with the possibility of contemplating a piece of work
and reflecting on it. If you behave as if you’ve grasped everything, then the work is finished. It lives, it lives
through its multilayered forms and meanings.

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Scarpetta, a arte de Wilson é uma espécie de máquina que opera na dissociação das

percepções visuais, auditivas e sensoriais, a fim de questionar o pretenso “in-divíduo”, sua

identidade e sua integridade:

Ele atinge uma experiência que, num relevo alucinatório, é talvez

aquela de uma loucura, de uma esquizofrenia fundamental, pelo fato

de que ao cabo da experiência a unidade, a identidade, a integridade

não existem mais (...) Mas, se eu digo ‘loucura’, não é significando

que o teatro de Wilson seja um teatro ‘de louco’: ao contrário, trata-se

de uma dissociação matrizada, controlada. E, se nela há a angústia,

isto não se dá sem um certo prazer (Scarpetta, 1980, p. 4).65

Numa tentativa de esclarecer tais efeitos sobre o espectador, Counsell (1996)

recorre à teoria freudiana do sonho, em que as formas oníricas seriam a materialização de

sensações e sentimentos ordinariamente reprimidos e banidos pela consciência. Essa

tradução seria efetuada através de dois processos, denominados por Freud condensação e

deslocamento, sendo que o primeiro instituiria um único símbolo como representante para

inúmeras ansiedades e preocupações do indivíduo, enquanto o segundo tomaria

originalmente símbolos diversos para transformá-los em algum novo e inofensivo objeto.

Assim, para Counsell, as figuras apresentadas nos trabalhos de Wilson (cowboys, naves

espaciais, ursos, dinossauros e personalidades como Abraham Lincoln e Albert Einstein),

ofereceriam ao espectador uma experiência idêntica à ocorrida no sonho, não sendo

simplesmente imagens, mas ícones, espécie de símbolos que circulam continuamente

através da mídia visual de nossa cultura: “Elas são, portanto, altamente ressonantes,

65
Il touche là une expérience qui, dans son relief hallucinatoire, est peut être celle d’une folie, d’une
schizophrenie fondamentale, du fait qu’au bout de l´expérience l’unité, l’identité, l’integrité n’existent plus...
Mais si je dis ‘folie’, c’est ne pas pour dire que le théâtre de Wilson serait un tháâtre ‘de fou’ : au contraire,
la mise en relief de cette dissociation est tou a fait maitrisée, controlée. Et si angoisse il y a, elle ne va pas
non plus sans une certaine juissance.

122
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trazendo inevitavelmente consigo uma abundância de idéias e associações” (Counsell,

1996, p. 184)66.

Sua preocupação com o caráter visual e com os detalhes na composição formal da

cena (cores, luzes, movimento, etc) rendeu às obras de Wilson o título de “teatro de

imagens”. Essa preocupação, entretanto, é motivada pelo entendimento que o diretor tem

das possibilidades expressivas de outros meios que compõem a cena, e que podem

significar tanto quanto as palavras: “O teatro é também algo que se vê. Por conseqüência, a

linguagem do corpo, da luz, dos cenários, ou a arquitetura do espaço também comunicam

idéias. É uma parte do todo, não apenas um texto que é dito ou uma língua que é falada,

mas igualmente uma linguagem que é constituída de signos e de sinais visuais” (Féral,

1998, p. 343)67.

Referindo-se às imagens como formas mitificadas que não portam a ação se não

como imaginação virtual, Lehmann (2002, p. 123) imputa ao teatro de Robert Wilson a

qualidade de “neo-mítico”, atentando para uma certa tendência “pós-moderna” em tão

somente citar os mundos imaginados. O autor compara sua obra a um “caleidoscópio

multicultural, etnológico e arqueológico”, que confunde épocas, culturas e espaços. Em

contrapartida, porém, refere-se aos momentos, na história do teatro, em que o encontro

entre mito e entretenimento resultou positivamente: “Wilson se situa numa longa tradição

do teatro barroco, aos efeitos da ‘máquina’ do séc. XVII, das máscaras jacobinas, do

teatro-espetáculo vitoriano até o show e ao espetáculo de circo moderno que, desde

sempre, sem respeito mas com efeito, inserem a significação profunda e a atração de

66
They are therefore highly resonant, inevitably bringing with them a wealth of ideas and associations.
67
Le théâtre est aussi quelque chose qu’on voit. Par conséquence, le langage du corps, de la lumière, des
décors, ou l’architecture de l’espace communiquent aussi des idées. C’est une partie du tout, ce n’est pas
seulement un texte qui est dit ou une langue qui est parlée, c’est également un langage constitué de signes et
de signaux visuels.

123
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clichês míticos em seu repertório” (Lehmann, 2002, p. 125)68. Se, por um lado, no teatro de

Wilson o fenômeno precede a narração, criando o tempo “do olhar”, na acepção de

Lehmann, onde o efeito de imagem se sobressai ao ato individual, e a contemplação se

impõe à interpretação, é justamente porque ele transfere ao espectador a tarefa de

complementar com um sentido as informações que lhe chegam. É o que Bentley (1988)

qualifica como concepção agonística da cena, que supõe um embate para os sentidos, no

qual é o espectador quem arbitra: “Se por em cena [encenar] é empregar signos, jogar é

deslocar os signos, instituir, num espaço e num tempo definidos, o movimento, e até

mesmo a deriva, desses signos” (Bentley, 1988, p. 182)69.

Encontros singulares

Parece inquestionável que o contato com as crianças da Byrd Hoffman Foundation

teve importância fundamental na trajetória de Robert Wilson, tornando-o sensível não

apenas à questão terapêutica do trabalho teatral com elas, mas, sobretudo à percepção de

que condições alteradas de comportamento podiam representar algo inusitado, a ser

apropriado e expressado pela cena. Seria ele mesmo que, pouco depois, admitiria o papel

desse evento na sua maneira de trabalhar:

Estou profundamente comprometido com o trabalho corporal. Este

comprometimento originou-se quando de meu trabalho com crianças

deficientes, em que utilizei a atividade física como método para

sensibilizar o corpo e estimular a percepção. Desde então tenho

desenvolvido uma série de exercícios e princípios relativos à

68
Wilson se situe dans une longue tradition du théâtre baroque à effets, de la ‘machine’ du XVIIe. Siècle, des
masques jacobéens, du théâtre-spectacle victorien jusqu’au show et au spectacle de cirque moderne qui,
depuis toujours, sans respect, mais avec effet, inséraient la signification profonde et l’attraction de clichés
mythiques dans leur répertoire.
69
Si mettre em scène c’est mettre em signes, jouer c’est déplacer les signes, instituer, dans un espace et un
temps definis, le mouvement, voire la dérive, de ces signes.

124
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movimentação do corpo que respondem diretamente às energias e

necessidades de cada participante das oficinas (apud Galizia, 1986, p.

xxvii).

A partir de 1967, ele iniciaria um procedimento de colaborações e parcerias

extremamente ricas com artistas e criadores cuja percepção de mundo passava ao largo do

que se poderia convencionar como “normal”. Tal fato incidiu de forma inovadora sobre o

seu trabalho, conforme observa Counsell: “Talvez o meio mais bem sucedido empregado

por Wilson para gerar semelhante idiossincrasia expressão/interpretação foram suas

colaborações com artistas sensorial ou intelectualmente deteriorados e que, de mais a mais,

conceitualizaram o mundo por caminhos únicos” (Counsell, 1996, p. 182)70. O primeiro

desses artistas foi o pintor Raymond Andrews, menino surdo, pelo qual Wilson

desenvolveu especial afeição. Até que se conhecessem, Andrews nunca tinha ido à escola.

Excluído do mundo e de suas normas estéticas, ele acabou desenvolvendo as suas próprias

por meio de intensa vida interior:

Uma das influências mais profundas em meu trabalho foi o

meu encontro, em 1967, com Raymond Andrews, uma

criança afro-americana surda-muda com treze anos de idade.

Após um longo processo, eu pude adotá-lo. Meu primeiro

trabalho importante no teatro foi escrito em colaboração com

ele. Era curioso, ele via por vezes coisas que eu não via,

preocupado que estava em escutar. Ele percebia gestos,

movimentos de olhos, uma linguagem que eu não tinha

70
Perhaps the most successful means Wilson employed to generate such idiosyncratic
expression/interpretation were his collaborations with artists who were sensorely or intellectually impaired,
and who moreover conceptualized the world in unique ways.

125
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consciência. As primeiras peças escritas com Raymond foram

silenciosas (Wilson, 1997).71

Deafman glance, com Raymond Andrews em primeiro plano.


Ensaio na Universidade de Iowa. Foto: Mel Andringa, 1971.

Andrews possuía um grande sentido de cor e composição espacial, executando

pinturas a partir de um sistema de imagens considerado extraordinário. O primeiro e

principal resultado dessa cooperação foi um espetáculo que teve a participação de uma

centena de atores e cenários gigantescos, montado em 1970. Em grande parte baseado nos

desenhos e visões de Andrews, que também atuava, Deafman Glance (“O Olhar do

Surdo”), tinha duração de três a quatro horas e chamava a atenção não somente por sua

grandiosidade e belas imagens, mas também por seu sentido hermético e inacessível ao

público. Ao contrário de oferecer códigos reconhecíveis, derivados de uma ordem de

sentido passível de decodificação em massa, o espetáculo gerava uma aparente ausência de

lógica, com uma multiplicidade de sons e formas desconexas, aparentemente não

compartilháveis culturalmente, resultados de referências bastante particulares de seus

realizadores. Isto se tornaria uma das principais marcas do teatro de Wilson.

71
Une des influences les plus profondes sur mon travail fut ma rencontre, en 1967, avec Raymond Andrews,
un enfant afro-américain sourd-muet âgé de treize ans. À l'issue d'un long procès, j'ai pu l'adopter. Mon
premier travail important pour le théâtre a été écrit en collaboration avec lui. C'était curieux, il voyait
souvent des choses que je ne voyais pas, préoccupé que j'étais par l'écoute. Il percevait des gestes, des
mouvements des yeux, un langage dont je n'étais pas conscient. Les premières pièces écrites avec Raymond
furent silencieuses.

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Cena de Deafman Glance. Foto: Ed Grazda , 1970

É um tempo de pouca ou nenhuma palavra em cena, o que rende ao trabalho de

Wilson a denominação “teatro do silêncio”. Em Deafman glance, as imagens e atividades

não verbalizadas deixavam abertas inúmeras significações: rãs, anões, um homem

enfaixado caminhando com muletas, um mágico de fraque e cartola, pirâmides e ossos de

animais. Em determinado momento, uma série de ações ocorrem sob o olhar de um

menino, o próprio Andrews, presente em cena: um coelho branco juntamente com três

mulheres que carregam bebês, atores portando chapas de vidro brilhantes e outros que

dançam ou realizam outras atividades. Counsell descreve: “Em diversos pontos a cadeira

na qual ele se sentava movia-se como se por suas próprias forças, finalmente voando pelo

ar então Andrews pairava sobre a cena, contemplando o seu imagístico domínio”

(Counsell, 1996, p. 182)72.

Em 1973, quando iniciava os trabalhos para a montagem de The Life and Times of

Joseph Stalin, Wilson ouve Emily likes TV, uma gravação que lhe foi passada por um

antigo professor. Nela, as palavras giravam em torno de um mesmo tema que, devido às

variações e repetições que soavam bem humoradas, acabavam impondo um ritmo

codificado, como uma peça musical. A voz era de Christopher Knowles e o material

72
At several points the chair on which he sat moved as if under its own power, finally flying into the air so
that Andrews hovered over the scene, surveying his imagistic domain.

127
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baseava-se, sobretudo, em estruturas lingüísticas geométricas por ele desenvolvidas.

Knowles era tido como uma criança autista, cujos gestos em geral eram descoordenados e

a fala não oferecia nenhum sentido à primeira audição. As causas para tais dificuldades,

entretanto, parecem ter origem numa lesão extremamente prematura: “Cérebro-lesado no

nascimento, Knowles teve dificuldade de relacionar-se no mundo social, possuindo uma

enorme habilidade para conceituar sistemas, elementos situados em complexas inter-

relações” (Counsell, 1996, p. 191)73. Interno de uma escola localizada ao norte de New

York, ele demandaria um novo esforço de Wilson até conseguir trazê-lo para viver

consigo, tornando-o um colaborador, como havia feito com Andrews. Seria com Knowles

que Wilson viria a realizar seu primeiro trabalho com a utilização de palavras, produzindo

juntos diversos espetáculos em que Knowles aparece em cena ou tem sua voz e seus textos

utilizados: The days before (1999), Parzival (1987) e $ Value of Man (1975), dentre tantos

outros. Em Spaceman (1976), por exemplo, sua terceira peça em colaboração com Wilson,

ele datilografava enquanto os seus textos apareciam num dos diversos monitores de TV

utilizados durante a apresentação.

Christopher Knowles em $ Value of Man


Foto: Dominique Ponzo, 1975

73
Brain-damaged at birth, Knowles had difficulty functioning in the social word but possessed an
extraordinary ability to conceptualize systems, elements placed in complex interrelationships.

128
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A fim de estimular criativamente Knowles, levando-o a travar consigo um diálogo

composto de jogos verbais, Wilson faria uso de um procedimento que se repetiria em

diversos dos trabalhos que criaram. O recurso seria a evocação de estágios primários do

relacionamento entre eles, como se a reativação daqueles momentos bem sucedidos de

comunicação pudesse funcionar como estímulo para uma interação entre ambos. Assim,

numa peça longamente intitulada Um homem louco, um gigante louco, um cachorro louco,

uma urgência louca, um rosto louco, estreada em maio de 1974, a frase “Emily likes TV”

serviria como estímulo à improvisação de Knowles, desencadeando a forma de expressão

comumente utilizada por ele. Impressionado com sua capacidade de romper os códigos e as

palavras da linguagem convencional, combinando os fragmentos de maneira inovadora,

Wilson expressou diversas vezes seu desejo em que os trabalhos com Knowles fossem

discutidos por lingüistas ou filósofos:

Chris fala também por modelos ópticos. Por exemplo, ele começa por

uma palavra ou uma frase, alongando-a até que isto resulte numa

pirâmide visual; depois ele encurta até recair numa palavra ou numa

frase. Ele fala visualmente. Um exemplo: ele coça a sobrancelha,

depois abaixa a mão dizendo: ‘Olá! Como vai?’; depois ele coça a

sobrancelha, abaixa a mão dizendo: ‘Olá! Como vai?’; depois ele

coça a sobrancelha e abaixa a mão dizendo: ‘Olá! Como vai?’. Ele

cria assim uma nova linguagem, e uma vez que nós assimilamos essa

linguagem, ele quebra o código e o refaz em outro (Leschig, 1980, p.

10).74

74
Chris parle aussi en modèles optiques. Par exemple, il commence par un mot ou un phrase qu’il allonge
jusqu’à ce que ça donne une pyramide visuel; puis il raccourcit jusqu’à retomber sur un mot ou une phrase.
Il parle visuellement. Un exemple : il se gratte le sourcil, puis il rabaisse sa main en disant : ‘Hello!

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Wilson mantém uma relação de reconhecimento e de apropriação com respeito às

disfunções e distúrbios de alguns de seus performers e colaboradores, não vendo nisso um

impedimento para que essas pessoas, de alguma maneira, exercitem a cena. Para ele, é

preferível o uso concreto de suas condições a ver atores se fazerem deficientes em cena,

ainda que admitindo a evidente limitação que isso traz em relação a determinadas questões:

"Não são tipos comuns e eles não poderão jamais ser atores na Schaubühne, com um

funcionamento do tipo: 'Bom, você sai, faz isso, depois senta e faz assim'" (Leschig, 1980,

p. 14)75. Numa entrevista76, cita Raymond Andrews como exemplo de alguém cujo

problema as pessoas não conseguiam entender, e que o estimulou a um trabalho que

permitisse penetrar em seu mundo e descobrir como se processava sua sensibilidade e

apreciação dos sons, justamente em função de não ouvir. A experiência com Andrews

reforçou-lhe o entendimento de que a escuta no teatro é o que há de mais importante, pois

torna possível a percepção do espaço em torno dos sons. Assim, ele insiste no fato de que

as dificuldades podem ser benéficas e servirem como ponto de partida para o processo

criativo, como ocorria nas atividades com as crianças na Fundação Byrd Hoffman e como

sucedeu com Andrews e Knowles. A disfunção, para ele, seria como a ponta de um

iceberg, a indicar a possibilidade de uma enormidade de elementos a serem descobertos e

explorados.

Construção dos espetáculos

No período referido, entre as décadas de 1960 e 1980, quando Wilson desenvolvia

seus espetáculos em colaboração, sobretudo com Raymond Andrews e Christopher

Comment ça va?’ ; puis il se gratte le sourcil, rabaisse sa main en disant : ‘Hello! Comment ça va?’; puis il
se gratte le sourcil et rabaisse sa main en disant : ‘Hello! Comment ça va?’. Il crée ainsi un nouveau
langage, et une fois que nous avons assimilé ce langage, il brise le code et en refait un autre.
75
Ce ne sont pas des types moyens et ils ne pourront jamais être comédiens à la Schaubühne avec un
fonctionnement du genre: 'Bon. Tu sors, tu fais ci, et puis tu t'assois et tu fais ça'.
76
Entrevista cedida à Revista “Le monde de la musique”, em trecho publicado no jornal “O Estado de São
Paulo”, de 18/06/1998, p. D1.

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Knowles, seu procedimento inicial se restringia a uma observação minuciosa do

comportamento e das formas de expressão que ambos utilizavam. No caso de Andrews,

uma linguagem basicamente visual, calcada em cores e formas, enquanto Knowles

procedia de maneira muito mais verbalizada e sonora – embora não num sentido

convencional, o que se tornava determinante na composição estrutural das obras. Ao que

parece, entretanto, embora tenham sido dois momentos bastante distintos quanto aos

procedimentos originais ou pontos de partida para a criação cênica, os recursos utilizados

ou desenvolvidos durante os trabalhos foram sendo sistematizados e, diversos deles,

aperfeiçoados em montagens posteriores.

Em função da grandiosidade das produções e dos elencos de alguns espetáculos,

Wilson passou a desenvolver uma prática que se tornou modelar para a maioria deles.

Assim, a fim de que um mesmo trabalho fosse praticamente remontado em diferentes

partes do mundo, um elenco local passou a ser requerido e a produção sistematizada de

maneira que cada uma das versões ganhasse formas e composições semelhantes. Parte da

equipe chegava com algumas semanas de antecedência ao local de apresentação,

selecionando e iniciando a preparação do grupo de performers (atores, dançarinos,

músicos, cantores, etc) que atuaria no espetáculo. Em diversos casos, eram recrutados

também performers em condições singulares, como ocorreu em The life and times of Josef

Stalin, em que um grupo de surdos era convidado a participar.

Um dos recursos mais utilizados nas obras de Wilson é a descontinuidade narrativa,

provocada por meio da fragmentação do texto e da ação, além da repetição e

simultaneidade de eventos (imagens, movimentos, sons, etc). E também pelo ralentamento,

pela justaposição e pela reincidência com que tais eventos se davam. O uso da

multiplicidade possibilita a que Wilson não imponha uma visão unilateral à platéia,

permitindo ao espectador perceber simultaneamente uma série de imagens, a compor uma

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paisagem onde o olhar é estimulado a vagar de acordo com o interesse de quem observa.

Seria o mesmo que ocorre quando se contempla uma exposição, em que algumas obras são

mais atentamente observadas do que outras, resultando num fenômeno denominado pela

psicanálise “atenção flutuante”.

The Life and Times of Joseph Stalin. Foto: Carl Paler © 1973

O diretor observa que, devido ao ritmo extremamente ralentado de seus

espetáculos, é natural que as pessoas pisquem mais – muitos chegam a cochilar ou dormir

–, o que é uma espécie de ajustamento, um equilíbrio de ritmos. Para ele, o ato de piscar

(neste caso, demoradamente) modifica a percepção, fazendo com que as imagens interiores

do espectador se misturem com as imagens exteriores que lhe chegam, estimulando sua

imaginação. A combinação entre o piscar e o dormir torna-se, assim, uma experiência

única para o espectador, pois que lhe permite sonhar de olhos abertos, fato denominado

"imaginário crepuscular". É uma situação em que o indivíduo relaxa e, quando de olhos

fechados, se permite observar e perceber o fluxo do imaginário, conforme esclarece o

psicólogo Ira Progoff (apud Galizia, 1986, p. 155): "Esse fluxo, produto da faculdade da

psique que cria imagens, é caleidoscópico. Ele simplesmente continua, apresentando-se

sob uma forma após outra. O imaginário não é integrado, mas movimenta-se sem nenhum

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princípio coerente aparente, até formar-se um modelo graças ao fluxo do próprio

imaginário, desprovido de forma". Numa referência ao seu processo criativo, de

ressonância por vezes autobiográfica, o diretor afirma:

Eu penso abstratamente. Eu começo geralmente por uma estrutura ou

uma forma completamente abstrata. E se, nessa forma ou nessa

estrutura, eu posso preencher os brancos de maneiras mais diversas,

por vezes narrativas, o ponto de partida permanece sempre esse

esqueleto abstrato que suporta a carne da obra. Depois, essa carne é

recoberta por uma espécie de superfície, que se pode chamar de pele.

Tem-se então a pele, a carne, o esqueleto... Eu creio que é nesse

enchimento, precisamente, que vêm se alojar os elementos mais

pessoais – autobiográficos (Wilson, 1997).77

O que Wilson denomina preenchimento ou "carne" agregada à estrutura básica da

obra (ou "esqueleto") se compõe, sobretudo, pelo recurso da justaposição, cuja maior

característica é a re-contextualização de materiais. A origem desta prática está na collage

(colagem) iniciada nas artes plásticas, em que, apesar de sua transferência de um contexto

para outro, o material (imagem, objeto, forma) pode manter o seu sentido original, levando

o observador a uma dupla percepção: a do fragmento em relação à sua origem e como

elemento incorporado um novo conjunto. A conseqüência seria uma quebra na linearidade

ou na continuidade do discurso, dizendo respeito ao tempo e ao espaço: "Descontinuidade

do espaço ao mesmo tempo que descontinuidade do tempo: uso de espaços de diferente

escala, caleidoscópio de imagens simultâneas ou sucessivas que funcionam como colagens

77
Je pense abstraitement. Je commence généralement par une structure ou une forme complètement
abstraite. Et si, dans cette forme ou cette structure, je peux remplir les blancs de manières très diverses,
parfois narratives, le point de départ reste toujours ce squelette abstrait qui porte la chair de l'oeuvre. Puis
cette chair est elle-même; recouverte par une sorte de surface, que l'on peut appeler la peau. On a donc la
peau, la chair, le squelette... Je crois que c'est dans ce remplissage, précisément, que viennent se loger des
éléments très personnels – autobiographiques.

133
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de elementos heterogêneos pertencentes a experiências diferentes" (Ubersfeld, 1996, p.

301)78. Essa descontinuidade pode ganhar vários sentidos, que vão desde o deslocamento

referencial do mundo, com a destruição de sua visão coerente e representável, até o

desprendimento com relação a um único sujeito enunciador.

Entre as unidades principais que geralmente compõem seus espetáculos, Wilson

insere o que chama knee plays (peças-joelho), tidas como entreatos. São passagens

articuladas e independentes, descoladas do sentido geral do espetáculo e constituídas por

um conteúdo e significação próprios que giram em torno de temas variados, como uma

árvore, um barco ou um livro. Nos trabalhos de Robert Wilson, a concentração extrema de

todas as ações, entradas e gestos que compõem o ‘enredo’ acaba por assumir grandes

proporções, não importando tanto como elas ocorram desde que se constituam como

atividades “em si” e se tornem primordiais visual e teatralmente. A esse respeito, Counsell

(1996) observa a extrema preocupação do diretor para com o detalhe, sendo capaz de

atentar para a organização de componentes mínimos no interior de um todo grandioso, cuja

conseqüência não é a produção de simples sistemas e estruturas de significação, mas a

estrutura per se. Cenicamente multifacetado, o teatro de Wilson pode ir desde o silencio

absoluto até a incorporação de elementos outros ligados ao fenômeno sonoro, como a

acústica e a espacialidade e, ainda que privilegiando a palavra, fazê-lo de forma autônoma,

com o enredo e a evolução dramática não se dando convencionalmente. Em primeira

instância, o que ocorre é uma alteração no diálogo e na relação entre os atores que, antes de

constituírem um diálogo balizado por determinado contexto, fazem de si mesmos o próprio

contexto. Os diálogos diretos, quando aparentemente ocorrem, tornam-se apenas um

acercamento para uma espécie de “monólogo coletivo”, constituído de várias vozes.

Assim, em contraposição à fluência verbal, os atos falhos, a tautologia, a tartamudez, a

78
Discontinuidad del espacio al mismo tiempo que discontinuidad del tiempo: uso de espacios de diferente
escala, caleidoscopios de imágenes simultáneas o sucesivas que funcionan como collages de elementos
heterogéneos pertenecientes a experiencias diferentes.

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interrupção e o esquecimento que se constituem como esforço de linguagem podem, na

verdade, ganhar tal status, com um senso próprio mesmo que isolada ou

descontextualizadamente. O sentido do texto desloca-se, pois, de uma estrutura

convencional e da construção gramatical e dialógica para sua manifestação enquanto

fenômeno acústico e seu respectivo valor sonoro. Neste sentido, a influência de

Christopher Knowles, que possuía um lesionamento no cérebro, sobre a obra de Wilson foi

tão grande quanto a de Raymond Andrews, o garoto surdo. Segundo o diretor, Knowles

tem obsessão por ordem e seus escritos uma estrutura matemática, perfeitamente definida,

que, quando ditos, são capazes de criar imagens poéticas. Trata-se de fragmentos de uma

palavra que podem ser ditos rapidamente, repetidos num ritmo normal ou de trás para

frente, o que acaba por criar um padrão visual na mente daquele que ouve.

Usando a linguagem de maneira anti-sensitiva – rompendo os laços

habituais entre um som/imagem e o seu significado, ou entre uma

Palavra e o que a complementa gramaticalmente, Knowles e Wilson

transcendem as formulações do mundo exterior. Entretanto, ao fazer

isso eles reduzem a palavra a um material fonético ou visual bruto,

que então pode ser usado para criar padrões de diferentes tipos.

Knowles e Wilson não estruturam suas palavras de modo a gerar

novos significados; para além disto, eles despojam as palavras do seu

significado habitual para construir novas estruturas (Counsell: 1996,

192).79

79
In using language in anti-sensical ways – breaking the usual ties between a sound/image and its meaning,
or between one word and those which follow it grammatically – Knowles and Wilson elude the formulations
of the exterior screen. In doing so, however, they reduce word to raw phonetic or visual material which can
then be used to create patterns of a different kind. Knowles and Wilson do not structure their words to
generate new meanings; rather, they strip words of their usual meaning in order to build new structures.

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Acreditando que há, na linguagem, uma espécie de energia, um elemento que

precede o significado tornando possível a comunicação, Wilson observa semelhantes

reações entre Knowles e Andrews, percebendo que antes de aprendermos o significado de

uma palavra, respondemos ao seu som. Conclui, então, que algo muito básico e universal

existe na linguagem, tornando-a passível de ser compreendida em qualquer lugar. Para ele,

a comunicação pode perfeitamente ocorrer nesse nível e o teatro pode ser a instância

privilegiada para esse processo.

Os recursos de iluminação sempre foram motivo de muito cuidado nas produções

do diretor norte-americano, que explora intensamente os códigos que compõem as artes

pictóricas, esculturais e fotográficas, com os quais cria efeitos de esfacelamento de

imagens ou mesmo de mutilação de corpos. Assim, no teatro de Robert Wilson, recursos

como o claro-escuro, a sobreposição e a contraluz incidem quase sempre como um

princípio de descontinuidade espacial e de desorganização corporal: "Ele talha no ambiente

escuro, um corpo amputado, segmentado, desmembrado, ou mesmo, segundo o ponto de

vista adotado, um órgão fetichizado" (Maurin, 1994, p. 235)80.

Einstein on the beach81

Concebida e dirigida por Robert Wilson, com música de Philip Glass e textos de

Christopher Knowles, Lucinda Childs e Samuel Johnson, Einstein on the beach inaugurou

uma abordagem completamente nova para o teatro musical no Ocidente. Estreada em 1976,

é tida como a ópera mais influente do período pós-guerra, cuja estrutura de trabalho,

envolvendo recursos tecnológicos, teve uma precisão quase matemática. Para Wilson, uma

peça sem historia e sem heróis, apenas imagens, música, telas, movimentos precisos e

80
Il découpe dans le noir ambient un corps amputé, segmenté, demembré, ou bien, selon l´angle de vue
adopté, un organe fétichisé.
81
Ficha Técnica: Concepção e direção de Robert Wilson. Músicas e letras: Philip Glass. Textos em off:
Christopher Knowles, Lucinda Childs e Samuel Johnson. Coreografia: Andrew de Groat. Iluminação:
Beverly Emmons. Elenco principal: Lucinda Childs, Sheryl Sutton, Samuel Johnson.

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mecânicos. Uma ópera envolvendo cantores, atores e dançarinos num trabalho a partir de

“energias visuais”.

De conteúdo onírico, com estrutura não narrativa e toques surrealistas, como a

maioria das grandes obras de Wilson, Einstein on the beach utiliza performers diversos

(atores, cantores e dançarinos). No espetáculo, estão as atrizes Lucinda Childs e Sheryl

Sutton, que aparecem em diversas outras montagens de Wilson. Elas vestem uniformes

masculinos, que aparentam ser de estudante, com camisa branca de mangas curtas e calças

com suspensórios e, em vários momentos, aparecem ao lado de uma cadeira alta de metal.

Muitos outros atores usam o mesmo figurino. O violinista solo que permanecerá quase

todo o tempo em cena, é a própria figura do personagem-título, extremamente bem

caracterizado e maquiado como Einstein na idade madura, de bigode e cabelos brancos um

tanto espevitados. Logo no início, três notas descendentes de teclado, vozes recitando e um

coro cantando números de um a quatro e, depois, de um a oito. Outras vozes sussurram um

poema en inglês e o coro solfeja as mesmas notas descendentes do teclado. Essas ações são

repetidas por quase dez minutos, com poucas variantes, como a ausência de alguma nota

ou pausas durante a récita.

Imagens de trens e relógios incidem em várias cenas. Numa delas, Sutton circula

pelo palco em diversas direções, com os braços esticados. Com ela, diversos atores se

movimentam bem mais lentamente, enquanto o som desconstrutivista incide

ininterruptamente. Numa passagem seguinte, Sutton e Childs estão sentadas, uma ao lado

da outra, e se movimentam sincronizadamente, com gestos de mãos e braços que parecem

simular o contato com um teclado de uma máquina ou piano. A luz recai em dois focos

sobre as cadeiras, num recorte retangular. Em movimentos contínuos, as atrizes saem das

cadeiras e, sempre lentamente, dirigem-se para frente e descem até tocarem os cotovelos

no solo, com movimentos de braço e mãos quase ininterruptos. Tornam a erguer-se, indo

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para trás e retornando às cadeiras. Enquanto se movimenta, Lucinda Childs articula

palavras e frases repetidas. Levantam-se e vão ao solo novamente. Sobre esta cena, Wilson

comenta a importância de gestos e movimentos de mãos milimetricamente ensaiados, que

cogitam uma relação com uma mesa, com um candelabro, com pedras. As frases ditas pela

atriz coincidem ritmicamente com a musica, inclusive as pausas, repetitivas, reincidentes.

Cena do tribunal, Einstein on the Beach. Foto: Fulvio Roiter, 1976.

Cena do tribunal, Einstein on the Beach, em produção retomada para o evento


MC 93, Bobigny, França, em dezembro/1992 Foto: Tilde de Tullio

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Num outro momento, Einstein está sentado, portando seu violino, enquanto ao

fundo Lucinda Childs está sentada na cadeira alta de metal. Um outro ator aproxima-se

dela, vestido com o mesmo uniforme e, aparentando entretanto ser um professor. Parte,

enquanto é Sheryl Sutton que se aproxima dela. Os movimentos sempre mecânicos. Há

uma lua cheia, constante, ao fundo. De repente, a música aumenta a intensidade, o tom e o

ritmo; do chão, entre fumaça, surge um grande relógio redondo, com numerais romanos.

Ele traz, embaixo, presa a ele, uma caixa com paredes transparentes, onde está aprisionado

um ator, que é levado para o alto até desaparecer, entre fumaças. Então, luzes de néon se

acendem, enquanto um outro ator entra, dançando com duas lanternas nas mãos. Seus

movimentos são rápidos e desajeitados. Ele circula por um grande espaço, indo ao fundo e

voltando, enquanto as luzes em néon piscam e a musica continua num ritmo frenético.

Posicionado numa estrutura que lembra uma corte, o coro canta enquanto, à parte,

Sutton pronuncia repetidamente uma frase. Seu ar é impávido e sua voz soa friamente,

como numa sentença. O coro entoa sons graves e monocórdios, realizando uma vez mais

movimentos similares de mãos, dedos e braços. Mais adiante, Lucinda Childs aparece à

frente do palco, realizando gestos largos e leves, enquanto fala numa voz tranqüila. Ao

mesmo tempo, um casal vestido de presidiários está atrás de grades onde, em torno de dois

bancos, interagem movimentando todo o corpo de maneira ininterrupta. Os gestos são

abertos e ríspidos. Eles circulam pelo espaço, compondo um dos poucos momentos em que

uma relação direta entre os atores parece existir. Num ensaio desta cena, Wilson aparece

ditando milimetricamente aos atores todos os movimentos a serem realizados, regidos por

um padrão de contagem e tempo. As ações do casal contrastam com os movimentos leves e

amplos de Childs, à frente. A figura de Einstein permanece em cena todo o tempo, sentado

com o violino à mão.

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Cena do casal de presidiários, em Einstein on the beach.
Foto: Fulvio Roiter, 1976

Numa das knee plays, em contraste absoluto com o excesso de elementos das outras

cenas, o palco aparece limpo, vazio. Dançarinos trajando colants escuros vão entrando e

saltam pelo espaço, numa coreografia sincronizada que evolui e dura alguns minutos.

Numa cena seguinte, de novo as duas mesmas duas atrizes aparecem agora deitadas numa

espécie de cama de vidro e uma vez mais se movimentam simultânea e sincronizadamente.

Um coro masculino está à frente. Ouve-se vozes articuladas, enquanto o performer trajado

de Einstein toca o seu violino. Os integrantes do coro, cada um com uma escova, mostram

os dentes e passam a fazer gestos de escovação diante da boca. Ao final, juntamente com o

fim do canto, fazem mostram a língua, numa clara alusão à clássica imagem de Einstein.

Novamente Childs e Sutton, trajando uniformes de estudante. Elas aparecem ao

chão, com os cotovelos à frente, tocando o solo. Um quadrado de luz incide sobre cada

uma delas. Ao fundo, está projetada uma imagem gigantesca de montanha e mar, feita em

contraste, em preto e branco. A imagem sobe até desaparecer. O som é grave e continuo e

há um tom geral de azul. Entra em cena um ônibus desenhado em tamanho normal, com

um ator dentro dele, no papel de condutor. Os faróis estão acesos e iluminam as atrizes.

Vozes. Elas sentam-se e retomam os movimentos de braços e dedos. Mistura de vozes.

Violino.

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Em Einstein, a musica de Philip Glass tem importância capital, tendo sido o

primeiro espetáculo de Wilson a contar com uma trilha sonora completa, do inicio ao fim

do espetáculo. Os atores usam microfones sem fio, o que valoriza suas vozes, colocando-as

na mesma intensidade dos instrumentos musicais utilizados, como violino, órgão elétrico e

flautas. Invertendo a ordem de prioridade normalmente aplicada no ocidente à estrutura

musical, Glass baseia sua composição primeiramente na estrutura rítmica, vindo em

seguida a harmonia e a melodia: “O que é peculiar em relação a este tipo de música é o

fato de que sua estrutura está sempre aparente para quem ouve. É música sobre si mesma,

uma espécie de catálogo de peças rítmicas que contribuem para a estrutura global da peça”

(Galizia, 1986, p.50).

Apesar da abundância de imagens, o espetáculo estrutura-se em nove cenas, com

três unidades temáticas dominantes: um trem, uma corte e uma nave espacial. Para

Counsell (1996), se algumas das imagens apresentadas evocam uma óbvia relação com o

universo de Einstein, como as páginas de equações matemáticas e os diversos relógios

ofuscados durante a apresentação, algumas outras acabam restritas ao entendimento de

Wilson e sua equipe, como é o caso da cama, do julgamento e do trem. Entretanto, Galizia

(1986) afirma que o primeiro tema está relacionado ao trem que Einstein brincava quando

criança e que, mais tarde, utilizaria como ilustração para sua teoria da relatividade. O

julgamento que compõe a segunda unidade diria respeito às conseqüências catastróficas

passíveis de se desencadear a partir de suas descobertas. Por fim, a transcendência a ser

alcançada pela humanidade a partir da evolução e das experiências cientificas, estaria

representada pela nave espacial.

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Einstein on the Beach. Foto: Fulvio Roiter, 1976.

Numa de suas declarações, Wilson refere-se a um jardim japonês como metáfora

para seu trabalho que, basicamente, diria respeito ao tempo. Le Goff (1996), em sua

reflexão sobre os tempos passado e presente, alude a Émile Benveniste, citando a distinção

por ele feita entre três tempos situados em domínios diversos, sendo eles: o tempo físico, o

tempo cronológico e o tempo lingüístico. O primeiro, seria “contínuo, uniforme, infinito,

linear, divisível à vontade”, o segundo é o “tempo de acontecimentos”, socializável e

redutível ao calendário, enquanto o último diria respeito ao tempo do locutor, centrado “no

presente da instância da palavra”. Assim, numa analogia primária, poderia se dizer que a

face sonora – incluída aí a verbalizada – de Einstein on the beach parece pretender a

criação de um estado de sensações relativas ao espaço-tempo, incidindo ritmicamente

quase como um mantra (tempo lingüístico) na percepção do espectador, e fazendo disto um

meio capaz, se não de suspender sua percepção dos demais tempos, levá-lo a transitar de

um domínio temporal (o cronológico) a outro (o físico).

Outra questão a ser considerada está relacionada ao espaço, já que será justamente a

partir dos estudos desenvolvidos por Einstein que este conceito se altera. É quando se

deixa de considerar o espaço como um cubo infinito e simples receptáculo de objetos

espaciais para se desenvolver a idéia de que ele se dá como função da matéria (da energia,

da massa), algo físico, gravitacional e, portanto, curvo. É justamente a partir desse

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entendimento, segundo Duve (1982), que a escultura minimalista, por exemplo, iria se

assentar ao dar a sensação de uma implosão do espaço, onde o objeto atua metaforicamente

como um "buraco-negro". Neste sentido, Einstein on the beach joga intensamente com a

fragmentação espaço-temporal, implicando não apenas num desafio à questão do

"logocentrismo" – o que se dá também pelo tratamento textual agregado a partir da

colaboração de Knowles – mas numa incompatibilidade entre os diversos espaços criados,

que não pertencem nem à mesma temporalidade, nem ao mesmo mundo. Ainda o

descentramento da representação será outra conseqüência dessa fragmentação espacial do

espetáculo, valendo aqui a acepção de Derrida que, ao cunhar o termo, dá a ele o

entendimento de "ausência de centro ou de origem" e não apenas o seu fracionamento.

Com isto, se concebe a possibilidade de uma desestabilização do espaço, como observa

Ubersfeld: "A representação está espacialmente descentrada pela fragmentação do espaço e

a multiplicidade das pequenas zonas significantes. (...) Trata-se de mostrar o espaço em

desequilíbrio, sem coordenadas tranqüilizadoras, e inclusive, desprovido de centro e de

sentido, na dupla acepção deste termo" (Ubersfeld, 1996, p. 121)82.

82
La representación está espacialmente descentrada por la fragmentación del espacio e la multiplicidad de
las pequeñas zonas significantes. (...) Se trata de mostrar el espacio en desequilibrio, sin coordenadas
tranquilizadoras, e incluso, desprovido de centro y de sentido, en la doble acepción de este término.

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O TEATRO ANÔMALO DE PIPPO DELBONO

Desde a sua presença e participação em todos os espetáculos que dirige até as

condições em que isto se dá, pode se dizer que o italiano Pippo Delbono é a síntese literal

de uma cena contaminada. O teatro que realiza está intrinsecamente ligado à sua própria

história de vida e, embora com uma sólida base técnica adquirida no contato com

discípulos diretos de Eugenio Barba e de Grotowski, foi a partir de questões bastante

pessoais – e ligadas também à sua saúde – que ele passa a descrever uma cena

efetivamente autêntica e de forte cunho existencial. Fundamental em seu trajeto foi a

colaboração artística com Pepe Robledo, ator proveniente do "Libre Teatro Libre", de

Buenos Aires, iniciada em 1983 na Dinamarca.

Depois dos espetáculos Il tempo degli assassini, Morire di musica, Il muro, Enrico

V e La rabbia, chegam o reconhecimento e a fama internacional com Barboni, em 1997,

que marca o início de um trabalho cada vez mais aberto, que abole as fronteiras entre arte e

vida, entre atores e pessoas comuns, provenientes de realidades diversas. Nas criações que

se seguiriam, dentre as quais, Guerra, Il Silenzio e Genti di plastica, Delbono prossegue

uma aventura humana e artística com seu fiel grupo de colaboradores, pessoas capazes de

se manter ao seu lado em situações das mais difíceis e imprevisíveis.

Num de seus espetáculos mais recentes, denominado Racconti di Giugno (Contos

de junho), solo autobiográfico que lhe rendeu mais uma publicação na França (vide

Delbono, 2008), o diretor italiano fala de sua trajetória no teatro, narrando fatos de sua vida

e reconstituindo trechos de diversos trabalhos anteriores. Apresentado no Festival Reims à

Scène Ouverte, em dezembro de 2006, a peça foi criada a partir de uma conferência que

lhe foi encomendada sobre o tema do amor. As histórias são perpassadas por fortes

momentos de sofrimento, paixão e uma constante busca pela essência das coisas, com

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temas insistentemente reiterados, como a raiva e o desprezo por certos valores do mundo,

que parecem dizer respeito, ainda hoje, às razões que o movem à criação. Com humor –

uma constante em seu trabalho –, fala de sua primeira participação cênica, ocorrida ainda

na infância, quando representava o papel do menino Jesus, experiência levada a efeito no

seio de uma família extremamente católica. Homossexual, ele conta que depois de uma

relação extrema e conturbada, envolvendo o consumo de drogas pesadas, perde seu

companheiro num acidente de moto, no início da década de 1980, passando então a

dedicar-se intensamente ao teatro. É quando, juntamente com Pepe Robledo, integra o

grupo Farfa, dirigido por Iben Nagel Rasmussen, por sua vez ligada ao Odin Teatret, de

Eugenio Barba. A experiência da dupla se orientou para a busca de uma linguagem que

traduzisse cenicamente suas realidades e, como resultado, nasce o primeiro espetáculo

intitulado Il tempo degli assassini (O tempo dos assassinos), estreado em 1986. Já naquele

trabalho, uma liberdade extrema com relação a uma dramaturgia lógica, nele se alternando

a dança, ações físicas e textos de autores diversos, dentre os quais, Oscar Wilde. Mais

tarde, em turnê pela Alemanha, eles encontram Pina Bausch, com quem trocam

experiências e colaboram no espetáculo Ahnen.

Anos depois, em 1989, ao retornar de uma excursão ao México, tendo que realizar

um exame para diagnosticar malária, Delbono descobre-se soropositivo. Fragilizado, com a

percepção da realidade misturada às sensações causadas por seu estado doentio, vive um

tempo de angústia, com altos e baixos emocionais. Tais condições o levam a uma

percepção diferenciada do corpo, fato fundamental para a prática que passará a

desenvolver. É quando então monta Il muro (O muro), envolvendo dançarinos de Bausch:

O espetáculo toca o mundo da diferença e da existência externa, mas

ainda com uma linguagem de dança e teatro, logo depois que eu

comecei a me achar incapaz de dançar e a sentir uma fraqueza em

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meu corpo. Então, pouco a pouco, comecei a amar este novo corpo,

mas talvez a distanciar-me paralelamente cada vez mais da dança

tradicionalmente admitida (Ghiglione, 2003, p. 51).83

Já em 1992, o espetáculo produzido é Enrico V (Henrique V), de Shakespeare, que

incorpora os participantes das oficinas desenvolvidas em cidades por onde passam. No ano

seguinte, a companhia se estabelece na cidade de Loano, situada na região da Ligúria e, em

1995, apresenta La rabbia (A raiva), espetáculo dedicado a Pier Paolo Pasolini. Das crises

de depressão apega-se ao budismo e, em 1996, descobre possuir uma infecção na medula.

Paradoxalmente, é desse período de dificuldade e sofrimento que ganha uma percepção

diferenciada da vida e assume uma nova postura diante do que já vinha descobrindo no

teatro. Nessa época, desenvolveu o hábito de escrever seus objetivos em pedaços de papel.

Num deles consta: "Viverei a minha vida para comunicar através da arte a força que existe

dentro de cada um de nós" (Ghiglione, 2003, p. 64)84.

A partir de 1997, em decorrência de encontros com internos do Hospital

Psiquiátrico de Aversa e integrando artistas de rua e cantores de rock, a companhia estréia

Barboni (Mendigos), peça que obtém sucesso e reconhecimento em diversos países.

Guerra, espetáculo criado um ano mais tarde, é quase um complemento, em que atua

praticamente o mesmo grupo, num aprofundamento das relações entre arte e vida. As

produções se sucedem: Esodo (Êxodo), em 1999, Il silenzio (O silêncio), em 2000 – criado

em memória das vítimas de Gibellina, na Sicília, cidade destruída por um terremoto –,

Genti di plastica (Gente de plástico), em 2002, Urlo (Urro), em 2004, e Questo buio feroce

(Esta escuridão feroz). Paralelo às criações teatrais, Pippo Delbono se dedica também ao

83
Lo spettacolo tocca quel mondo della differenza e dell´essere fuori, ma ancora con un linguaggio di danza
e teatro, poi io per primo ho iniziato a trovarmi incapace di ballare e a sentire una debolezza sul mio corpo.
E quindi a poco a poco ho iniziato ad amare questo nuovo corpo, ma forse parallelamente ad allontanarmi
sempre di più dalla danza tradizionalmente intesa.
84
Vivrò la mia vita per comunicare attraverso l´arte la forza che esiste dentro ognuno di noi.

146
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cinema, onde o documentário Guerra (2003), filmado na Palestina, e Grido (Grito), de

2006.

Embora envolvendo performers com dificuldades de ordem motora, intelectual e

sensorial, no processo de trabalho adotado por Delbono e sua Companhia há uma questão

crucial que o distancia das práticas de caráter social. Foi devido a questões de âmbito

extremamente pessoal, que ele foi sendo levado ao encontro de pessoas que, hoje,

compõem a matéria indispensável para o seu teatro: a singularidade. As circunstâncias

pelas quais passou fizeram com que ele tivesse, no teatro, uma prática necessária, vital. E

foi isto que o aproximou de seres que, como ele mesmo passou a fazer, buscavam na

sobrevivência diária a motivação e o sentido para sua existência. Foram encontros

extraordinários, que acabaram por complementar uma pràtica que ele já adotava no teatro –

a de unir a criação cênica à experiência de vida – e lhe possibilitaram a incorporação do

inusitado e do “fora de padrão”, abrindo-lhe um canal de percepção e convivência natural

com a diversidade: “Falam com tristeza da guerra aqueles que a vêem nos jornais ou a

vivem de longe. É o mesmo com aqueles que falam de deficiência em relação aos

deficientes” (Ghiglione, 2003, p.73)85.

Delbono admite claramente a influência dos atores em seu processo de criação.

Consagrando-se desde sempre ao estudo do corpo, constrói seus espetáculos a partir da

possibilidade poética presente em cada um dos participantes. Para ele, deficiência é um

conceito intelectual, que faz as pessoas enxergarem a diminuição e a incapacidade antes de

qualquer outra coisa. Assim, vê o termo teatro para deficientes como uma visão burguesa,

a mesma capaz de sacrificar o sagrado pelo conforto: “Alguns dizem que eu faço ‘teatro-

deficiência’. Como se houvesse de um lado o teatro e, de outro, os deficientes. Eu não

85
Parlano con tristezza della guerra quelli che la guerra la vedono sui giornali o la vivono da lontano. È lo
stesso per quelli che parlano di handicap rispetto agli handicappati.

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quero trabalhar com deficientes, eu busco de outro modo fazer falar o teatro” (Delbono e

Pons, 2004, p. 50)86.

Cena de Urlo, em apresentação no Bozar Theatre, de Bruxelas, 2007.


Imagem veiculada pelo site: www.bozar.be

Dizendo nunca pensar o teatro como terapia, ele se dispensa da função de agente

social e cita Van Gogh, Artaud e Frida Kahlo, dentre outros, para enfatizar que a arte pode

ter uma relação natural com a chamada deficiência, nascendo justamente da falta, da

incapacidade e, consequentemente, de uma necessidade vital. Uma arte que surge de um

defeito, de uma lacuna, de um desequilíbrio, em suma, de uma ferida.

Neste sentido, o universo em que atua é naturalmente anômalo e autônomo, onde o

diferente, o anormal, o "fora de padrão" é, na verdade, elemento constitutivo e normativo,

em singular consonância com todo o resto. E é justamente essa condição que lhe permite

uma conseqüente incorporação e uso cênico dos distúrbios e disfunções que resultam em

particularidades extremas, distanciando-o de uma restrita prática de inclusão social de

deficientes ou marginais. Em seu teatro, os atores devem ser capazes de evidenciar sua

história de vida, de exercitar uma auto-exposição. Não precisam representar papéis, mas é

necessário que sejam capazes de se mostrarem verdadeiramente, sem nada esconder:

86
Certains disent que je fais du ‘théâtre-handicap’. Comme si, il y avait, d´un coté le théâtre et de l´autre les
handicapés. Je ne souhaite pas travailler avec des handicapés, je cherche d´autre façon de faire parler le
théâtre.

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Em todos esses anos fui levado ao encontro de pessoas que, no teatro,

portam vida. Pessoas com corpos diversos: gordos, magríssimos,

desajeitados, rígidos, pesados, mas extremamente poéticos. E

descobri que algumas dessas pessoas tinham dentro de si,

naturalmente, os signos de uma linguagem primordial. Em seus

gestos e movimentos estão os princípios dramáticos: por exemplo, a

suspensão em momentos de máxima tensão, mudanças repentinas de

ritmo que produzem grande concentração no seu corpo de ator e

grande atenção no espectador” (Ghiglione, 2003, p. 30).87

Em seus espetáculos, Delbono atua de forma ativa, intervindo na cena para fazer

uma citação ou dizer textos e passagens poéticas de autoria diversa. Trata-se de uma

prática extremamente pessoal, em que ele evidencia suas memórias, sua percepção de

mundo e referências pessoais, fato que se mostra decisivo na sua relação cênica com as

disfunções, já que o autor-diretor-ator viveu ele mesmo uma disfunção, contaminado que

foi pelo vírus HIV, o que torna a participação de pessoas em condições particulares ou

“fora de padrão” muito bem vinda. Além disso, as especiais condições desses indivíduos

acabam influenciando e sendo aproveitadas pela trupe que, em função das longas e

constantes turnês, divide grande parte do tempo, constituindo uma espécie de comunidade

bastante peculiar.

O fato, aliàs, de descobrir-se soropositivo parece ter desempenhado um papel

fundamental na trajetória de Pippo Delbono, interferindo em seu modo de pensar e de

constituir a cena. Se, antes, havia já uma tendência em desenvolver uma dramaturgia

87
In tutti questi anni mi sonno proietato verso l´incontro con persone che nel teatro portassero vita. Personi
con corpi diversi: grassi, magrissimi, goffi, rigidi, pesanti, ma estremamente poetici. E poi ho scoperto che
alcuni di queste persone avevano dentro di sé naturalmente i segni di un linguaggio primordiale. Nei loro
gesti, nei loro movimenti ci sono dei principi drammatici: per esempio introducono delle sospensioni nei
momenti di massima tensione, dei cambi improvvisi di ritmo che producono una grande concentrazione nel
loro corpo d´attore e una grande attenzione nello spettatore.

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própria, calcada em experiências pessoais, isto se intensificaria a partir de então, levando-o

a adensar às suas narrativas não apenas o que era percebido, mas sobretudo como essa

percepção se dava. Ou seja, ao que dizer passa a se impor também as condições que lhes

são dadas para dizer. Sua fragilidade física, sua confusão mental, sua sensibilidade alterada

e sua nova prática religiosa, o budismo, passam a funcionar como canais diferenciados de

percepção:

Naquele momento, eu tentei utilizar meu corpo diferentemente, com a

sua loucura, sua doença e suas incapacidades. Eu tentei utilizar um

corpo que não queria mais ser utilizado, uma outra maneira, em suma,

de cavar a contradição. Em função das tensões físicas que eu

vivenciava, que me eram impostas pela vida, eu busquei construir

uma nova dramaturgia (Delbono e Pons, 2004, p. 47).88

Enrico V, espetáculo criado a partir da obra de William Shakespeare, coincide com

esse momento extremamente especial. Montado em 1992, o tema apresentado pelo texto

apenas reforçava o que de resto Delbono já vivenciava em seu dia a dia: um ato de fé e a

luta pelo que parecia impossível: "Então essa guerra se torna uma outra guerra, se torna a

guerra que esse homem realiza dentro de si mesmo" (Ghiglione, 2003, p. 53)89. Se para

Olivers Sacks (1995), as patologias podem ser capazes de provocar algo de belo e criativo,

passível de existir somente a partir de um estado de alteração, Shakespeare defende que

quanto maior seja o perigo tanto maior deverá ser a coragem para enfrentá-lo, pois que

algo de bom habitaria também nas coisas ruins, cabendo aos homens saber extraí-lo. Então

se faz necessário atravessar o território do sofrimento e perceber as transformações que

88
À ce moment-là, j´ai tenté d´utiliser mon corps différemment, avec sa folie, sa maladie et ses incapacités.
J´ai tenté d´utiliser un corps qui ne voulait plus être utilisé, une autre façon, en somme, de creuser la
contradiction. En fonction des tensions physiques que j´éprouvais, qui m´étaient imposées par la vie, j´ai
cherché a construire une nouvelle dramaturgie.
89
E poi questa guerra diventa un’altra guerra, diventa la guerra che quest’uomo està conducendo dentro se
stesso.

150
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essa dor impõe “na carne, nos sentimentos, nas emoções, nos sonhos, nos gestos” (Pino,

2003, p. 105).

Depois do encontro com Bobò e da montagem de Barboni, o trabalho de Delbono

ganha uma característica própria, inusitada, que passa a diferenciá-lo do que até então se

fazia no teatro. Seria, para ele, a descoberta de um mundo particular, um universo marginal

até então referido na literatura ou na dramaturgia, como seres de ficção, cuja existência

pertencia apenas ao imaginário ou, no máximo, a lugares especialmente a eles reservados,

como os manicômios, as casas de caridade ou a rua, lugares de preferência externos, longe

dos espaços dignos e condizentes com a civilidade, como os restaurantes, shopping centers,

galerias e centros de convenção. Aos poucos, o diretor vai descobrindo o que, na verdade,

é já na origem do teatro em suma, a diversidade. E, uma vez mais, o contágio rondava a

sala de espetáculos.

Bobò e Cia. – ou de como nascem flores

“Um teatro essencial, sobre um palco nu, um teatro que repousa


unicamente sobre a ação dos atores – atores que não interpretam,
mas são, simplesmente. Um teatro que vai, sempre mais, se
confundir com a vida”90

A integração de pessoas consideradas marginalizadas, singulares ou "fora de padrão"

à Companhia dirigida por Pippo Delbono aconteceu a partir do espetáculo Barboni,

montado em 1997. Um ano antes, instalados no então Ospedale Psichiatrico Santa Maria

della Maddalena, em Aversa, uma pequena cidade ao sul da Itália, Delbono e sua equipe

desenvolviam um seminário para atores, do qual participavam como observadores alguns

dos pacientes do hospital. O fato foi um mero acidente e, em condições normais, muito

provavelmente o diretor teria se recusado a trabalhar ali: “Eu nunca tive o projeto ou a

90
Un théâtre essentiel, sur un plateau nu, un théâtre qui repose uniquement sur l´action des acteurs – des
acteurs qui ne jouent pas, mais sont, simplement. Un théâtre qui va, toujours plus, se confondre avec la vie
(Trecho do programa da peça Barboni, citado em Delbono, Bloedé e Palazzolo, 2004, p. 114).

151
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intenção de fazer entrar um louco em minha companhia” (Delbono, Bloedé e Palazzolo,

2004, p. 117)91. Ele vivia, entretanto, um momento de fragilidade, incapaz de tomar uma

decisão, importando-se apenas em retomar o trabalho.

Dentre os pacientes que observavam, estava um pequeno senhor que, pontualmente,

vinha toda tarde, sentava-se no mesmo canto e de maneira solícita se punha a observar os

trabalhos. Vincenzo Cannavacciuolo, apelidado Bobò, era microcéfalo e surdo-mudo, e

estava internado ali havia quarenta e cinco anos: “Então eu vi Bobò, vi nesse pequeno

corpo, com seus joelhos frágeis, uma beleza inédita, de uma força intensa, que se impôs ao

meu trabalho” (Delbono e Pons, 2007, p.71)92. Sucedeu que, na demonstração apresentada

ao final do curso, os três participantes considerados “loucos” eram os protagonistas,

enquanto os “atores” faziam o coro e a contra-regragem. Delbono encoraja-se a trazer

Bobò para a Companhia e, durante os ensaios do novo espetáculo, em Nápoles, ele era

trazido e levado de volta ao manicômio de Aversa, no final da tarde. Todos os dias, às seis

horas da manhã, já esperava diante da porta, apegado a uma grande bandeira da

Internacional, famoso clube de futebol da cidade de Milão.

Foi, de fato, a partir daquela experiência no hospital psiquiátrico de Aversa e da

montagem de Barboni que Pippo Delbono acabou por encontrar uma forma extremamente

singular de expressar-se como encenador e como dramaturgo. Devido às suas condições de

saúde e ao encontro com os internos, pôde então experimentar uma situação que lhe

permitiu novas perspectivas de mundo e de vida, reavaliar expectativas, vivenciar

incertezas. Nessa época, tomava medicamentos e dormia muito. O processo de montagem

foi bastante confuso, com os ensaios ocorrendo em espaços diversos, sem horários

precisos: “Era uma verdadeira loucura. Barboni nasceu num momento de anarquia total, de

total ausência de regras. Eu não sabia nada do que ia fazer. Como se fosse a primeira vez

91
Jamais je n’ai eu le projet ou l’intention de faire entrer un fou dans ma compagnie.
92
Alors j’ai vu Bobò, j’ai vu dans ce petit corps, avec ces genoux fragiles, une beauté inédite, d’une force
intense, qui s’est imposé à mon travaille.

152
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que eu fazia um espetáculo, sem técnica, sem projeto definido... apenas a idéia de falar do

encontro com Bobò” (Delbono, Bloedé e Palazzolo, 2004, p. 122)93. É quando aceita que

entrem para a companhia aquelas pessoas de extrema singularidade e sem qualquer

experiência anterior em teatro. Era o início de encontros de outra maneira improváveis.

Bobò e Pippo Delbono em cena de Barboni.


Imagem veiculada pelo site http://www.anarca-bolo.ch

Em seguida, entraria para o grupo Armando Cozzuto, um rapaz que fora vítima de

poliomielite e que, com suas muletas, perambulava desde pequeno pela praça San

Domenico Maggiore, em Nàpoli: “Armando começou a freqüentar os ensaios, sentava-se

num canto ou ficava a observar, depois um dia me disse que o sofrimento ensina o amor e

que isto lhe haviam ensinado as muletas. Eu lhe pedi que viesse ao palco e repetisse aquilo,

e este foi o começo de sua cena em Barboni” (Ghiglione, 2003, p. 68)94. Gianluca Ballarè,

jovem com síndrome de down, chegou à Companhia por sugestão da mãe de Delbono.

Com receio de acolher novos integrantes por mera condescendência e não querendo fazer

teatro de inclusão, o diretor relutou em receber o rapaz, que acabou por encantá-lo: "Ele

traz em si, naturalmente, a inocência do ator. Eu gosto que os atores em cena estejam em
93
C’était une vraie folie. Barboni est né dans un moment d’anarchie totale, de totale absénce de règles. Je ne
savais pas rien ce que j’allais faire. Comme si c’était la première fois que je faisais un spectacle, sans
technique, sans projet défini… juste l’idée de parler de la rencontre avec Bobò.
94
Armando ha incominciato a venire alle prove, si sedeva da una parte o stava a guardare, poi un giorno me
ha detto che la sofferenza insegna l´amore e che questo a lui l´hanno insegnato le stampelle. Gli ho chiesto
di venire sul palco e ripeterlo, e questo è stato l´avvio della sua scena in Barboni.

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estado de total inocência" (Delbono e Pons, 2004, p. 52)95. Assim, aos poucos, outros

indivíduos considerados marginalizados ou com alterações de comportamento, como o

andarilho Nelson Lariccia e o hiperativo Mister Puma, acabaram por integrar a companhia.

A qualidade singular do corpo e a linguagem natural dessas pessoas passaram a ser a

principal marca do trabalho da companhia.

Armando Cozzuto em sala de ensaio. Foto: Jean-Louis Fernandez.

Pippo Delbono recusa definitivamente o termo “teatro de inclusão” ou “teatro para

deficientes”, exatamente pelo fato de que o que poderia ser taxado como deficiência é

aquilo que ele vê de mais interessante e cenicamente belo nas pessoas com quem trabalha.

Para ele, o teatro ocidental, mesmo em suas formas mais inovadoras, é extremamente

burguês e falar de teatro-deficiencia é um exemplo dessa visão burguesa do teatro.

Acredito que a arte apresenta frequentemente uma relação com o

handicap [deficiência]. É uma arte que nasce de uma falta, de uma

desvantagem, um desequilíbrio. Ou mesmo de uma ferida. Me vêm

em mente Van Gogh, Artaud, Frida Kahlo. Quando observo Gianluca

ou Bobò ou Nelson em sua grande liberdade, não se parecem em nada

com deficientes, arriscam viver uma relação direta com as suas

95
Il porte en lui, naturellement, l’innocence de l’acteur. J’aime que les acteurs sur scène soient en état de
totale innocence.

154
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alegrias, os seus sofrimentos sem mediações, são pessoas livres. Sinto

mais o sofrimento, a deficiência nas pessoas forçadas a viver uma

vida de ficção, na qual se escondem e há muita frustração, pessoas

que não encontraram a chave para acender sua chama artística interior

(Ghiglione, 2003, p. 71-72).96

Assim, ele questiona a necessidade de uma educação formal para o ator, pois a

escola convencional não preencheria o que, por vezes, se faz necessário a um verdadeiro

artista: a capacidade de concentração e mobilização da assistência por meio unicamente de

sua presença e da sinceridade com que atua, qualidades estas adquiridas por muitos

daqueles considerados marginais ou deficientes. Segundo Delbono, se Bobò tivesse

encontrado alguém que fizesse teatro "com deficientes", muito provavelmente não teria

alcançado o merecido reconhecimento como artista e, efetivamente, como um poeta da

cena. Tal oportunidade ele teve ao deparar-se com o diretor e seu grupo, naquele

determinado momento e circunstancia. Como Fellini, Pasolini ou Caravaggio, afirma, ele

utiliza pessoas tomadas da vida por uma necessidade poética, que trazem em si a

necessidade natural de um gesto primordial, fundamental à cena. E é simplesmente por esta

razão que se tornaram membros da companhia.

A microcefalia e o fato de não ouvir, não entender as palavras e nem fazer leitura

labial, fizeram com que Bobò buscasse uma maneira autêntica de se expressar e de se

comunicar. Essa forma autentica de atuar no mundo e de operar com a intersubjetividade

denota um passo existencial, em que o corpo cumpre com o seu papel, conforme Merleau-

Ponty (1971), não apenas simbolizando a existência, mas realizando-a e sendo a sua

96
Io credo che l'arte abbia spesso un relazione con l'handicap. C'è un'arte che nasce da una mancanza, una
deficienza, uno squilibrio.Comunque da una ferita. Mi vengono in mente Van Gogh, Artaud, Frida Kahlo. Io
quando osservo Gianluca o Bobò o Nelson nella loro grande libertà, non mi sembrano per niente
handicappati, riescono a vivere un rapporto diretto con le loro gioie, le loro sofferenze senza mediazione,
sono persone libere. Sento piu spesso la sofferenza, l'handicap nelle persone costrette a vivere una vita di
finzione, in cui ci si nasconde e c'è molta frustrazione, persone che non hanno trovato la chiave per
accendere la loro fiamella artistica interiore.

155
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constante atualidade. É a ponte que permite ao doente jamais se isolar do mundo. Assim, o

corpo e a maneira de ser de Bobò se traduzem como resultado de uma adaptação necessária

e, em si, extremamente singular, cuja expressão se dá por grunhidos e gestos precisos, em

que o sentido deve ser captado no menor tempo possível. Ele teve que aprender isto e, para

tanto, o seu corpo encontrou o caminho. Assim, a precisão dos gestos, sua justeza e força

expressiva, qualidades que o diretor havia buscado antes num âmbito de treinamento e

plenitude corporal, ele acaba por encontrar onde menos esperava.

Quando eu encontrei Bobò, surdo-mudo, havia em cada um de seus

pequenos gestos uma necessidade de comunicação. Quando Bobò faz

um gesto é que ele tem alguma coisa a dizer. Seus gestos não são

jamais estéticos. Cada um é portador de um sentimento, de amor, de

violência, de necessidade, de indiferença, de desespero, de solidão, de

jogo. Eu encontrei, graças a Bobò, aquilo que eu buscava havia muito

tempo no meu trabalho. [...] O que demandaria enorme trabalho a um

ator, Bobò o faz naturalmente (Delbono e Pons, 2004, p. 49).97

Barboni estreou em março de 1997, trazendo à cena Pepe, Pippo e outros atores,

que há muito seguiam o trabalho da dupla, além de Bobò, Puma e Armando, novos

integrantes da companhia. Sobre esse trabalho, Oliviero Ponte di Pino declara: “Barboni é

como o circo, ou um espetáculo de variedades: uma seqüência de números em que essas

pessoas se apresentam ao público – fazem ver quem são, deixam intuir a sua história,

97
Lorsque j’ai rencontré Bobò, sourd-muet, il y avait dans chacun de ses petits gestes une nécessité de
communication. Lorsque Bobò fait un geste c’est qu’il a quelque chose a dire. Ses gestes ne sont jamais
esthétiques. Chacun est porteur d’un sentiment, d’amour, de violence, de nécessité, d’indifférence, de
désespoir, de solitude, de jeu. J’ai trouvé grâce à Bobò, ce que je cherchais depuis longtemps dans mon
travaille. […] Ce qui demanderait a un acteur énormément de travail, Bobò le fait naturellement.

156
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mostram os seus corpos. Oferecem a si mesmos, a sua experiência, a sua vida” (Pino, 2003,

p. 128)98.

Trata-se, assim, de um teatro feito por indivíduos, pessoas para as quais a expressão

artística, antes de ser um trabalho, mostra-se como uma necessidade de vida. Mas, ao

contrário do que dizem alguns críticos do trabalho de Delbono, elas não são postas em cena

apenas como algo de bizarro a ser apreciado, mas como indivíduos cujas ações ganham

sentido pelo fato de serem verdadeiras, em primeira pessoa, a partir de fatos e memórias

concretamente vividos. Como bem se refere Ponte di Pino, esses indivíduos não se

mostram como signos de suas condições ou como figuras do sofrimento, mas estão em

cena pelo que fazem, por suas ações e palavras. O teatro poderia ser para eles, como

ademais ocorre em muitos casos, uma oportunidade de socialização ou pura terapia, mas,

ao invés disso, como bem afirma Pino (2003, quando em cena eles se mostram plenos em

sua consciência, de uma beleza capaz de assumir o mistério da diversidade e a transcender.

Uma beleza que habita o hàbito, forjado numa esfera de necessidade e de adaptação a uma

determinada realidade. Seria o que Merleau-Ponty (1971, p. 158) aponta como “poder

fundamental”: o corpo que compreendeu, penetrado que foi por uma nova significação,

tendo assimilado um novo centro significativo, onde o intelectualismo se torna “incapaz de

dar conta da variedade de nossa experiência, do que nela é contra-senso, da contingência

dos conteúdos”.

Opostamente a um virtuosismo carente de compaixão ou de um esforço que clame

pela condescendência, os atores de Delbono mostram-se capazes de ser e de realizar coisas

que lhes são próprias, tornadas interessantes sobretudo pela força de sua expressão, pela

autenticidade com que se apresentam. Trata-se da união de uma singularidade com uma

98
Barboni è come il circo, o uno spettacolo di varietà: una sequenza di numeri in qui queste persone si
presentano al pubblico – fanno vedere chi sono, lasciano intuire la loro storia, mostrano i loro corpi.
Offrono si stessi, la loro esperienza, la loro vita.

157
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capacidade de realização, uma qualidade performática, ou ainda, quem sabe, o

estabelecimento do que Georges Banu denomina “instante habitado”:

É o instante em que o teatro se completa. (...) E o sentimento é aquele

de uma harmonia com o mundo num princípio de unidade absoluta.

Não com o personagem, mas com o teatro e a vida que, então,

tornam-se uma coisa só. O instante habitado não tem nada a ver com

a identificação ou o esquecimento de si, ao contrário, ele reforça a

identidade do espectador 'instantaneamente tocado'. Livre de todo

complexo de passividade, ele se vê em parceria necessária e não

como figurante supérfluo. É o instante de absorção recíproca onde os

parceiros se confundem e onde as fronteiras se apagam. O auge da

presença (Banu, 1993, p. 15).99

Bobò e Lucia Della Ferrera em cena de Il silenzio.


Imagem veiculada pelo site: www.theatre-contemporain.net/.../accueil2.jpg

99
C’est l’instant où le théâtre s’accomplit. (…) Et le sentiment c’est celui d’un accord avec le monde sur
fond d’unité absolue. Non pas avec le personnage, mais avec le théâtre et la vie qui, alors, ne font qu’un.
L’instant habité n’a rien avec l’identification ou l’oubli de soi, bien au contraire, il renforce l’identité du
spectateur ‘instantanément épanoui’. Libre de tout complexe de passivité, il se vit en partenaire nécessaire et
non point en figurant superflu. C’est l’instant de l’absorption réciproque où les partenaires se confondent et
où les frontières s’effacent. Le sommet de la présence.

158
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Também na parte textual, onde se incluem escritos de sua tutoria, além de poesias,

citações e trechos tomados de autores variados, Delbono tende a se encontrar e a se

identificar com aqueles considerados loucos e desvalidos, cujo conteúdo geralmente trata

de situações-limite ou de modos singulares de enxergar a vida: Rimbaud, Sarah Kane,

Beethoven, Pasolini. Também eles se unem à trupe marginal, de doidos, palhaços e

vagabundos que compõem a companhia, em defesa do direito de ser sem precisar copiar,

de agir sem se espelhar num modelo: "Nós, aqueles que para se fazer escutar devemos

morrer. Nós, pequenos mudos. Nós, sem voz. Nós, sem visto. Nós, ausentes da história,

nós, presentes da miséria. Nós, eternas crianças. Nós, incapazes, nós, mortos, nós, aqueles

que não fazem número, nós, aqueles da pura raiva. Nós, aqueles do puro fogo. Nós,

aqueles do agora e basta. Nós, aqueles do tudo para todos e nada para nós. Nós, aqueles da

palavra que sempre caminha" (Ghiglione, 2003, p. 136)100.

Construção dos espetáculos

“Foi um ano depois da criação de Barboni, experiência ‘vital’, com a qual


eu me tinha desligado, totalmente liberado, da necessidade de qualquer
técnica teatral. E a companhia me havia seguido"101

O trabalho criativo de Pippo Delbono se institui como um processo de montagem,

ou ainda, de colagem propriamente dita com a reunião de elementos autônomos, colocados

lado a lado e desvinculados entre si, sem a constituição de um sentido prévio. Os

espetáculos se valem frequentemente da poesia emprestada de autores diversos ou criadas

pelo diretor que, em cena, também faz citações ou breves narrações, não sendo incomum o

100
Noi, quelli che per farci ascoltare dobbiamo morire. Noi, piccoli muti. Noi, senza voce. Noi, senza viso.
Noi, assenti della storia, noi, presenti della miseria. Noi, eterni bambini. Noi, incapace, noi, morti, noi, quelli
che non fanno numero, noi, quelli della pura rabbia. Noi, quelli del puro fuoco. Noi, quelli del’adesso e
basta. Noi, quelli del tutto per tutti e niente per noi. Noi, quelli della parola che sempre cammina (Trecho da
peça Guerra).
101
C’était un an aprés la création de Barboni, expérience ‘vitale’ avec laquelle je m’étais détaché,
totalement libéré, de la nécessité d’une quelconque technique théâtrale. Et la compagnie m’avait suivi
(Delbono, Bloedé e Palazzolo, 2004, p. 130).

159
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uso de parábolas. Os textos que Delbono recolhe podem pertencer a grandes autores, como

Rimbaud, Emily Dickinson e Oscar Wilde, ou a desconhecidos como Bernardo Quaranta,

citado em Barboni.

Queria contar-lhes, para finalizar, a história de um mendigo genovês.

Andava em giro pela cidade e tinha consigo somente uma coisa, uma

grande mala. Quando o encontraram morto pela estrada, chamaram a

sua irmã, que não o via há mais de cinqüenta anos e pensava que ele

havia morrido na guerra na África, e lhe pediram que abrisse a mala.

Dentro estava tudo aquilo que Bernardo Quaranta – assim se chamava

o mendigo genovês – possuía: eram as suas poesias. As poesias que

ele havia escrito em pedaços de papel higiênico, em fundos de copo,

em papelões, as poesias – que esta noite lerá Pierino, o musicista – as

poesias eram a única coisa que Bernardo Quaranta possuía na sua

vida. E penso que este espetáculo seja um pouquinho dedicado a

Bernardo Quaranta (Ghiglione, 2003, p. 74-75).102

Durante a apresentação do solo Racconti di Giugno, Delbono expõe sua técnica de

criação, com seqüências de movimentos retomadas a partir do seu sentido original, de

cunho comumente pessoal. Como exemplo, mostra o movimento de abrir e fechar de mão

que fazia seu antigo companheiro no leito de morte, sem poder falar e quase inconsciente.

Era o único – e foi o último – gesto que conseguia realizar. O movimento é transformado

num gesto de despedida e ele, então, toma uma garrafa com água, dizendo para dentro dela

102
Vorrei raccontarvi, per finire, la storia di un barbone genovese. Andava in giro per la città e aveva con sé
soltanto una cosa, una grossa valigia. Quando l'hanno trovato morto per la strada hanno chiamato la sua
sorella, che non lo vedeva da più di cinquant'anni e pensava che era morto nella guerra in Africa, e le hanno
chiesto di aprire la valigia. Dentro c'era tutto quello che Bernardo Quaranta – così si chiamava il barbone
genovese – possedeva: ed erano le sue poesie. Le poesie che lui aveva scritto sui pezzi di carta igienica, sui
fondi di bicchiere, sui cartoni, le poesie – che stasera leggera Pierino, il musicista – le poesie erano l'unica
cosa che Bernardo Quaranta possedeva nella sua vita. E penso che questo spettacolo sia un pochino
dedicato a Bernardo Quaranta (Monólogo inicial de Barboni).

160
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algumas palavras ao seu falecido companheiro. Esclarece que, em geral, tais seqüências

são “descoladas” do contexto cênico em que são apresentadas, dando ao espectador a

oportunidade de reconstituí-las para si, a partir de suas próprias referências.

Num teatro em que encenação e dramaturgia caminham lado a lado, a diversidade

de corpos pode ser admitida como recurso extremamente interessante, sobretudo se

considerado o interesse de Delbono não apenas em compor formas e imagens, mas valer-se

das características próprias de seus atores. Apesar de um aparente caos, as cenas

demonstram um rigor extremo em sua constituição. Os atores desenvolvem uma pesquisa

individual em paralelo às atividades da companhia, o que obviamente não se aplica a

alguns, como Gianluca e Bobò, a quem Delbono considera naturalmente preparados para o

que precisa: “São pessoas que têm uma relação mais verdadeira com a vida e com o

sofrimento e em cena os seus gestos são sinceros” (Ghiglione, 2003, p. 71)103. Com relação

ao trabalho a partir de textos teatrais já constituídos, como Enrico V, de Shakespeare,

Delbono justifica sua liberdade em transformar e adaptar a obra a partir de um princípio

budista, que apregoa a importância de "ler com a vida" os escritos de grandes mestres:

"Significa que quando ler uma só frase, procure ir além do fato de compreendê-la

racionalmente, busque antes fazê-la entrar mais profundamente em sua vida. [...] Palavras

que se tornam suas, lhe dão a possibilidade de ter coragem, de crescer, de mudar em sua

vida cotidiana" (Ghiglione, 2003, p. 54)104.

No início de cada nova criação, é solicitado aos atores que apresentem suas

descobertas mais recentes, ainda que fora do tema proposto para a peça. Escolhidos e

isolados, os gestos e ações tornam-se seqüenciais, compondo uma estrutura descolada de

qualquer psicologia. A partir daí, utiliza-se música para marcação rítmica e exercícios

103
Ci sono persone che hanno un rapporto più vero con la vita e con la sofferenza e sulla scena i loro gesti
sono sinceri.
104
Vuol dire che quando leggi anche una sola frase cerchi di andare oltre al fatto di capirla razionalmente,
cerchi piuttosto di fartela entrare più profondamente nella tua vita. [...] Parole che diventano tue, ti danno la
possibilità di avere coraggio, di crescere, di cambiare nella tua vita cotidiana.

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físicos, vários deles de origem oriental, que impõem uma extrema disciplina: mudanças de

ritmo, paradas, variação nos pontos de força, etc. Essas seqüências podem resultar, já em

si, numa editoria e as criações, tanto individuais como coletivas, podem ou não ser

aproveitadas no espetáculo, sofrendo alterações, sendo rejeitadas ou mesmo retomadas

mais tarde, onde o importante é não descartar nenhuma possibilidade. Aqui, uma influência

se revela: “Eu me lembro que Pina Bausch anotava tudo o que lhes mostravam os

dançarinos, sem fazer julgamento. Eu faço a mesma coisa, escrevo tudo o que se passa no

palco e na sala” (Delbono, Bloedé e Palazzolo, 2004, p. 142)105. Trata-se de uma forma de

trabalho em que, independente de suas condições, cada um dá a sua contribuição, sem que

um diálogo entre os atores se faça necessário. Tal amplitude do olhar, visando perceber o

que de cada um pode servir à cena, além do sentido aberto que propicia, resulta numa

multiplicidade de elementos que, ao contrário da restrição, permite a diversificação. Dessa

maneira, a agregação da diferença torna-se natural, uma marca no trabalho da companhia.

Os espetáculos de Pippo Delbono são como afrescos evocadores, sem

narração textual, somas de impressões, de sentimentos, de questões

que se baseiam em nossas contradições. Em cada criação jamais

predomina a intenção de dizer ou mesmo de mostrar. Trata-se a cada

vez de um estado liberado tal e qual, nascido de improvisações, de

músicas, de imagens, de fotos, de textos, de eventos da vida. Um

pequeno inventário do mundo, sensível, à escala de um teatro no qual

tudo e cada um pode se fundar, se perder, se reencontrar (Delbono e

Pons, 2007, p.15)106

105
Je me souviens que Pina Bausch notait tout ce que lui montraient les danseurs, sans porter de jugement.
Je fais la même chose, j’écris tout ce qui se passe sur le plateau et dans la salle.
106
Les spectacles de Pippo Delbono sont comme des fresques évocatrices, sans narration textuelle, des
sommes d’impressions, de sentiments, de questions se basant sur nos contradictions. À chaque création ne
prédomine jamais l’intention de dire ou même de montrer. Il s’agit à chaque fois d’un état livré tel quel, né

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Juntamente com a poesia, a evocação ou inspiração a partir do cinema é uma

constante. Assim, além de Shakespeare ou Sarah Kane, as referências ao universo de

Fellini, Chaplin ou Pasolini mostram-se exemplares, constituindo a estrutura dramática de

vários de seus espetáculos, em que o diretor-autor se vale de imagens e frases, em geral

curtas e de efeito, numa síntese quase extrema: “Quando eu trabalho sobre um texto, eu

não procuro entender o que ele quer dizer. Eu escuto as notas, as cores, o ritmo. Eu prefiro

visualizar a linha que traça a minha voz no espaço, mais do que compreender a

significação das palavras que eu pronuncio [...] Eu ouço o som e não o sentido” (Delbono e

Pons, 2007, p. 71)107. Não sem razão, portanto, o uso de microfones em cena se mostra de

grande importância e como outra característica dos espetáculos de Pippo Delbono, ou seja,

pela possibilidade de uma fala cinematográfica e equalizada, cujo registro de vozes se dá

também numa intensidade extremamente baixa, em que mesmo a respiração seja captada e

ganhe sentido.

Ainda outro procedimento constante nos trabalhos da companhia italiana é o

travestimento. Esse recurso, entretanto, não tem por função tratar da homossexualidade ou

defender uma causa específica, o que, segundo Delbono, limitaria as possibilidades e as

significações que o travestimento pode ter. Trata-se de uma prática que visa estimular o

ator, deixando-o livre para a exploração de um jeito de ser, diferente do seu:

O travestimento é uma figura emblemática da contradição sobre a

qual eu baseio meu trabalho de ator. Um homem, uma mulher. O ator

deve encontrar pelos movimentos o que os opõe, os reúne, os

diferencia. Isso demanda muito de ironia e de sensibilidade. Esse

d’improvisations, de musiques, d’images, de photos, de textes, d’événements de la vie. Un petit état du


monde, sensible, à l’échelle d’un théâtre dans lequel tout un chacun peut se fondre, se perdre, se retrouver.
107
Lorsque je travaille sur un texte, je ne cherche pas à comprendre ce qu’il veut dire. J’écoute les notes, les
couleurs, le rythme. Je préfère visualiser la ligne que trace ma voix dans l’espace plutôt que de comprendre
la signification des mots que je prononce […] J’écoute le son et pas le sens.

163
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trabalho particular oferece muitas cores de jogo (Delbono e Pons,

2004, p. 61).108

Nesse contexto, a extrema singularidade de alguns pode ser admitida como mais

um elemento de que o diretor se vale para a constituição da cena, como faz com os demais,

cujas características são realçadas ou disfarçadas através da máscara, da maquiagem, do

travestimento ou mesmo do desnudamento. Assim, a necessária e constante ajuda

requerida por alguns, aliada ao grande número de ações, mudanças de cena e de figurinos,

acaba por incidir no próprio resultado dos trabalhos: “Pode se dizer que todo mundo se

traveste, alguém põe um figurino, passa pela cena, volta, veste Bobò, depois ajuda

Gianluca, mete um outro figurino... Os atores não têm tempo de pensar em seu

personagem, fechados no camarim até o levantar das cortinas!” (Delbono e Pons, 2004, p.

59)109. Com fortes referências ao cotidiano, a composição por meio de fragmentos de

situações, de gestos e ações soltas entre si constitui um recurso essencial, propondo

variados níveis de existência para as "personagens", que podem ir desde as estruturas

elementares do significado até o nível da encenação e dos atores-indivíduos: "O

personagem é a pessoa: o homem ou a mulher que portará as diferentes vestes. A pessoa é

mais forte que a personagem. Eu trabalho com os atores sobre sua personalidade e não

sobre seus personagens, para fazer sair o que eles são e não a idéia que eles têm do

personagem” (Delbono e Pons, 2004, p. 57)110.

108
Le travestissement c’est une figure emblématique de la contradiction sur laquelle je base mon travail de
l’acteur . Un homme, une femme. L’acteur doit trouver par les mouvements ce qui es oppose, les réunit, les
différencie. Cela demande beaucoup d’ironie et de sensibilité. Ce travail particulier offre beaucoup de
couleur de jeu.
109
On peut dire que tout le monde se travestit, un tel met une veste, il fait une passage sur scène, il revient, il
habille Bobò, puis il aide Gianluca, puis il endosse une autre vêtement... Les acteurs n’ont pas le temps de
penser a leur personnage, cloîtrés dans leur loge jusqu’au lever de rideau!.
110
Le personnage c´est la personne: l´homme ou la femme qui portera des vêtements différents. La personne
est plus forte que le personnage. Je travaille avec les acteurs sur leur personnalité et pas sur leurs
personnages pour faire sortir ce qu´ils sont et pas l´idée qu´ils ont du personnage.

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A música constitui fator essencial na estruturação das cenas. Trata-se de canções,

peças ou composições, em geral bastante conhecidas do público, recolhidas a partir de

motivações diversas, que podem dizer respeito a um momento de vida, a um contexto

cultural específico ou ao imaginário universal. A combinação e alternação de elementos

específicos como a música, a luz, excertos de textos e citações, além de bruscas mudanças

no andamento das cenas, buscam cumprir um só objetivo, qual seja, esvaziar os sentidos:

“Eu não quero entrar no sentido e eu prefiro criar imagens, porque elas contam mais que o

sentido. O ritmo é fundamental. Cada espetáculo é construído como uma partitura musical”

(Delbono e Pons, 2004, p. 62)111. O resultado é uma reação geralmente vigorosa por parte

do público, num estado de aparente exasperação. Talvez renovado, talvez perplexo. Ou,

simplesmente, perturbado. Em sua principal acepção, o teatro de Pippo Delbono trata da

ruptura, do inacabamento e, sobretudo, da finitude das coisas, incluídos aí o corpo e a vida.

Gente di plastica112

O título do espetáculo é uma referência à música Plastic people, de Frank Zappa,

um compositor eclético, a quem Delbono considera um grande mestre. Trata-se também de

uma homenagem à poeta inglesa Sarah Kane, suicida aos 28 anos, cuja obra tocou

profundamente o diretor. Gente di plastica denuncia um mundo de falsas aparências e de

isolamento, conseqüência de uma questão cultural mais profunda, relacionada a uma perda

de sentido da vida e da morte. Como de outras vezes, o trabalho nasceu de um sentimento

de crise: “A crise que eu passava no momento da criação de Gente di plastica não estava

ligada a dificuldades relacionais precisas, era antes uma sensação, quase física. Eu estava

111
Je ne veux pas entrer dans le sens et je préfère créer des images, parce qu’elles racontent encore plus que
le sens. Le rythme est fondamental. Chaque spectacle est construit comme une partition musicale.
112
Ficha técnica: Concepção e direção de Pippo Delbono. Com: Dolly Albertin,Gianluca Ballarè, Bobò,
Margherita Clemente, Piero Corso, Pippo Delbono, Lucia Della Ferrera, Ilaria Distante, Fausto Ferraiuolo,
Gustavo Giacosa, Simone Goggiano, Mario Intruglio, Nelson Lariccia, Maura Monzani, Pepe Robledo.
Iluminação: Fabio Sgommino Berselli. Produção: Emilia Romagna Teatro.

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hipersensível à complexidade e à loucura da vida normal, a esta ‘tragédia da normalidade’”

(Delbono, Bloedé e Palazzolo, 2004, p. 223)113.

No início do espetáculo, o diretor encontra-se ao fundo, numa espécie de cabine de

rádio, de onde saúda o público, cita Frank Zappa e, em poucas palavras, conta a história de

uma família. Em seguida, no palco, inicia-se uma cena de pantomima onde um casal

extremamente convencional senta-se à mesa para o que parece ser o café da manhã. Bobò,

o ator microcéfalo e surdo-mudo, está sentado num sofá trajando roupas que lembram uma

velha avó, com uma bengala ao lado. Aos poucos chegam a filha do casal, o filho e outros

membros e agregados da família. Cada um aparenta enquadrar-se numa visão equilibrada

de seus papéis sociais: a menina bem comportada e com boas notas na escola, o rapaz com

uniforme de marinheiro e de comportamento tipicamente “masculino”, o namorado da

filha, rebelde e rejeitado, além de um tio, um amigo, etc. De fundo, uma música de Elvis

Presley dá o tom.

A partir dessa ligeira impressão inicial, o espetáculo vai restando sórdido e, aos

poucos, fica claro o que está por trás dessa aparente normalidade. Sempre por meio da

pantomima e com o uso de máscaras, travestimento, expressões apavorantes e, sobretudo,

de um humor corrosivo, segue-se a desconstituição da família. A hegemonia midiática e

publicitária, assim como o tipo de vida que elas geram, vão sendo denunciados e postos em

cena de maneira sarcástica, por vezes contundente. Numa crítica direta ao consumo

exacerbado e vicioso que se impõe no mundo contemporâneo, Pippo lança mão de recursos

simples para questões bastante complexas.

Pippo Delbono nos envia a um espetáculo rock. A estrutura familiar

explode, as pessoas de plástico desfilam, pessoas da moda sem

113
La crise que je traversais au moment de la création de Gente di Plastica n’était pas liée à des difficultés
relationnelles précises, c’était plutôt une sensation, presque physique. J’était hypersensible à la complexité
et à la folie de la vie normale, a cette ‘tragédie de la normalité’.

166
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dúvida, mas também os vendedores de modernidade, de produtos de

limpeza e de roupas de baixo em látex. Os mercadores de sonho a

crédito revolving. De rodeios travestidos de festa hype ao ritmo de

Gloria Gaynor, o plástico se funde mas as màscaras permanecem

congeladas (Pons, 2007, p. 15).114

Gianluca Ballarè e Gustavo Giacosa em cena de Gente di plastica.


Imagem veiculada pelo site http://www.theatre-des-salins.fr

Em Genti di plastica, ao desfilar sua ironia e sarcasmo diante do mundo e das

contradições vividas pelo homem contemporâneo, o diretor expõe sua revolta como um

poeta-regente de versos e coros indecentes. Às imagens que vai criando, soma expressões

que isoladamente poderiam parecer clichês, mas que ganham força e sentido justamente

pela forma e pelo momento em que se apresentam. Compõem o seu universo criativo,

críticas ao “mainstream” vigente como o consumismo exacerbado, o apego ao dinheiro e às

coisas ou ainda a construção de um nome e de uma aparência.

Em cena, Bobò fuma, come algo que lhe é servido, faz a pantomima de certas ações

e dança em parceria com uma das atrizes. Já Gianluca Balarè, ator com síndrome de down,

114
Pippo Delbono nous convie à un spectacle rock. La structure familiale explose, les gens de plastique
défilent, gens de la mode bien sûr, mais aussi les vendeurs de modernité, de lessive et de sous-vêtement en
latex. Les marchands de rêve à crédit revolving. De rodéos travestis en fête hype au rythme de Gloria
Gaynor, le plastique fond mais les masques demeurent figés.

167
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aparece em cenas marcantes como aquela em que dança completamente nu, desajeitado e

gracioso, enquanto diversos personagens mascarados com cabeça de porco e outros

animais, elegantemente vestidos, riem entre si e caçoam dele. Num outro momento,

demonstrando sensibilidade e perspicácia, ele gera talvez o momento mais cômico da peça.

Dialogando com o público por meio de gestos e olhares, entra em cena com um cesto,

monta uma espécie de piquenique e, após brincar certo tempo com uma bola colorida, ele a

rola na direção da platéia, fazendo-a cair do palco. Com um gesto, pede ao público que a

devolva e, ao recebê-la, repete tudo de novo, obrigando sempre alguém a levantar-se para

apanhar a bola. Em seguida, tira do cesto uma pistola que atira água, disparando para um

lado e para outro. Por fim, olha na direção da platéia, apontando-lhe a pistola cuja pressão

é fortíssima. Claro que é apenas uma gag e ele não a dispara, causando um momento de

apreensão e comicidade.

Gianluca tem no seu corpo uma ternura imensa. Raros são os atores

ou dançarinos oferecer no palco uma ternura desse nível. Quando

Gianluca ri em cena, todo mundo ri, automàticamente. Ele não porta

uma intenção de fazer rir e é precisamente por esta razão que as

pessoas riem (Delbono e Pons : 2004, p.52).115

No espetáculo, o travestimento e a dissimulação constante abrem espaço para uma

sensação de terror, onde corpos circulam continuamente, estimulando dúvidas e

provocando a certeza do estranho, do bizarro, do mórbido. Tragicômico é o desfile onde,

um a um, os homens caminham na direção da platéia, praticamente nus. Com suposta

despretensão, fazem ver toda sorte de pernas (finas, musculosas, peludas ou peladas),

nádegas (flácidas, rígidas, achatadas, quadradas), barrigas, pescoços, tórax, cabeças. Mais

115
Gianluca a dans son corps une tendresse immense. Rares sont les acteurs ou les danseurs qui peuvent à
ce point offrir de la tendresse sur un plateau. Lorsque Gianluca rit en scène tout le monde rit,
automatiquement. Il n’est pas porteur de l’intention de faire rire et c’est précisément pour cette raison que
les gens rient.

168
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uma vez, num momento de despudorado sarcasmo, o instantâneo da vida se revela,

enquanto a trilha sonora carrega numa atmosfera de fantasia e de festa, como fundo para

uma dissimulação permanente do real.

Para Delbono, Gente di plastica representa um novo ciclo que começa em seu

trajeto. Já não se faz necessário defender a presença de Bobò em cena, explicar suas

qualidades de ator. Assim como ele, todos os demais que foram trazidos de realidades

distintas, estranhas ao percurso convencional de atores, conquistaram o direito de serem

vistos como profissionais da cena, à parte qualquer característica que os façam singulares

no cotidiano social. Depois da reiterada qualidade de seus trabalhos, explorando a

diversidade e agregando as características mais particulares de seus atores, a forma de

trabalho de Pippo Delbono e sua companhia ganhou ares incondicionais de metodologia.

Questo buio feroce116

Palco sem cenários, com solo e paredes laterais e de fundo completamente brancos.

Luz branca plena, quase ofuscante. Um corpo esquelético, seminu e mascarado está no

chão, imóvel. Depois de um tempo, o ator se levanta. Sua magreza é impressionante. Ele se

movimenta, numa quase dança, mantendo a máscara – que lembra a de alguma tribo

africana – ao rosto. Assim se inicia o espetáculo Questo buio feroce, que estreou em Roma,

em outubro de 2006. Em seguida, uma grande parede branca ao fundo se abre e dela saem

homens de branco, que passam a instalar uma ala de cadeiras ao fundo do palco, enquanto

seres diversos transitam pela cena: alguns travestidos com perucas, maquiagem carregada e

vestes em cores berrantes, outros desajeitados ou simulando deformidades e amputações.

Eles saem e, em seguida, a parede se fecha. À frente do palco, à direita e à esquerda,

116
Ficha técnica: Concepção e direção de Pippo Delbono. Com: Dolly Albertin,Gianluca Ballarè, Raffaella
Banchelli, Bobò, Margherita Clemente, Pippo Delbono, Lucia Della Ferrera, Ilaria Distante, Gustavo
Giacosa, Simone Goggiano, Mario Intruglio, Nelson Lariccia, Gianni Parenti, Pepe Robledo. Iluminação:
Robert John Restinghini. Cenografia: Claude Santerre. Produção: Emilia Romagna Teatro.

169
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descem duas bolsas plásticas, contendo um líquido vermelho como sangue. Uma mulher

vestida de enfermeira entra, senta-se numa cadeira, de costas para o público, e chama

lentamente uma seqüência de números. Alguns tipos começam a entrar, sentando-se nas

cadeiras ao fundo. Bobò está entre eles. Todos permanecem estáticos, enquanto os

números continuam a ser anunciados. De repente, passam a ser chamados às dezenas,

centenas, milhares. A mulher é então retirada de cena pelos homens de branco. Eles estão

vestidos como em laboratórios, a fim de se evitar o contágio: luvas, macacões e capuzes

brancos, que deixam transparecer apenas o rosto, coberto por um plástico. A referência ao

ambiente hospitalar ou ambulatorial é clara: a morte se faz mais presente num espaço

transitório, que evoque um momento preliminar entre o já vivido e o que está por vir. Um

lugar por onde circulam os corpos, onde quem entra não permanecerá por muito tempo,

retornando ao lugar anterior ou prosseguindo rumo ao desconhecido. Um lugar e um

momento de reparação ou de preparação. De despedida, partindo. Ou de retorno, ficando.

Depois de permanecer sentado durante um bom tempo numa das cadeiras, ao fundo,

o ator esquelético da primeira cena, vestindo apenas as cuecas, volta já sem a máscara para

um intrigante número solo. É Nelson Lariccia, ex-mendigo ítalo-americano, que

perambulava pelas ruas de Nàpoli. Acompanhado por uma orquestra em play-back, ele

canta ao microfone, tradicional e com fio, o clássico My way, de Frank Sinatra. Sua voz

impressiona pela gravidade e afinação. Durante a canção, desce do palco e, conduzindo o

microfone com desenvoltura, desfila diante da platéia, encontrando espaço para agradecer

o acolhimento, em inglês e em francês. A imagem de seu corpo anoréxico e seminu, com o

cabelo desgrenhado, bigode, rosto cavado e extremamente marcado pelo tempo, contrasta

com aquela imortalizada pela elegância e glamour de Frank Sinatra. Como o norte-

170
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americano, Nelson diz: "Eu vivi uma vida que está completa / Eu viajei por cada uma e em

todas as estradas"117. Como Sinatra, ele também fez a vida à sua maneira...

Nelson Lariccia em cena de Questo buio feroce.


Imagem veiculada pelo site: www.tnt-cite.com

Vàrias outras passagens são também marcantes, criadas com um fundo de ironia,

como a cena da Cinderela que, ao calçar o sapato perdido, dança com um príncipe estulto e

patético; ou de sadismo como o corpo dependurado de Pepe Robledo, cegado por uma

venda e como que estigmatizado por marcas e cortes. Em determinado momento, o cenário

se abre uma vez mais ao fundo e novamente o desfile de corpos se faz, com màscaras e

trajes bizarros, agora num mix de estilos e épocas, onde os seres aparecem como bonecos

de cera, saídos de tempos mortos. Por entre eles, na fila que segue do fundo do palco para a

boca de cena, uma figura emblemática da cultura ocidental aparece com seu vasto capuz

que lhe esconde o rosto. Surge em duas versões, com gestuais diferenciados: primeiro em

vermelho, depois em negro. Numa das cenas seguintes, Gianluca Balarè e Bobò atuam

juntos, fazendo cada um o seu Pierrot, em vestes coloridas e bufantes. Seguem numa

movimentação que lembra uma brincadeira de esconde-esconde. Depois, param lado a

lado, à frente do palco e, embora realizando graciosamente a mesma seqüência de gestos, o

fazem num estilo marcadamente pessoal, improvisando perceptivelmente em algumas

passagens: os de Gianluca são ligeiros e fluente, enquanto os de Bobò são contidos,

117
I've lived a life that's full / I travelled each and every highway (Música de Paul Anka/Frank Sinatra).

171
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precisos e concatenados. Eles aparecem ainda em outros momentos, com Bobò sempre

acompanhado.

Bobò e Gianluca Ballarè em cena de Questo buio feroce.


Imagem veiculada pelo site: www.tnt-cite.com

Questo buio feroce é fruto de um encontro inusitado. Segundo afirma o diretor

Pippo Delbono no programa de apresentação da peça, quando de uma viagem ao Oriente

Médio, “numa pequena livraria de um país sem livros”, ele descobre uma autobiografia do

escritor norte-americano Harold Broadkey, publicada em italiano. Nela, o autor – também

ele infectado pelo vírus da AIDS – numa total ausência de discrição, narra a própria morte

e descreve os últimos anos de sua vida: “E nesse livro, nessa viagem, eu encontrei minha

própria viagem, minha história”118, diz o diretor. Assim, o espetáculo é talvez o exemplo

mais concreto de contaminação da cena pela vida em seu teatro.

Numa de suas aparições em cena, Delbono realiza uma dança bizarra, que começa

com um dos braços estendido, como num gesto de doação de sangue ou recebimento de

substancia intravenal. Os movimentos são curtos e, aos poucos, tornam-se rápidos. A

musica em play-back é constante e quase ininterrupta, apenas com variação de ritmos. Em

outros vários momentos, a voz do diretor se faz ouvir, em play-back ou ao vivo, citando

Emily Dickinson ou ao som de Joan Baez. Numa das passagens, refere-se à terra como

118
Et dans ce livre, dans ce voyage, j’ai trouvé mon propre voyage, mon histoire.

172
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uma igreja sepulcral, lugar sagrado pelo qual passam ininterruptamente corpos, seres e

coisas, num contínuo falecimento. Morte. Morte constante.

Questo buio feroce, como de outra maneira os demais espetáculos de Delbono,

parece muito mais um instantâneo autobiográfico. O palco como metáfora para a mente e o

pensamento do diretor-autor. Um momento de espera, um contínuo despedir-se. Para

Delbono, ao contrário de fim, a morte poderia ser uma consciência lúcida, constante e

profunda da própria vida, ao invés de medo, dor ou perda. E faz suas as palavras de

Artaud: "Jamais eu poderia fazer um espetáculo que não fosse contaminado pela minha

vida. Eu não seria capaz"119.

119
Jamais je ne pourrais faire un spectacle qui ne soit pas contaminé par ma vie. Je n'en serait pas capable
(Programa de apresentação da peça).

173
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DE IMAGENS E VIAGENS: UMA BREVE APROXIMAÇÃO

Os trabalhos de Robert Wilson e Pippo Delbono se inserem numa forma cênica que

se dá como resultado de um longo processo ocorrido no teatro ocidental, envolvendo a

relação entre o texto dramático e a encenação, com esta última ganhando cada vez mais

autonomia e tornando possível ao encenador/diretor criar, ele próprio, uma cena que, por

sua vez, chega mesmo a prescindir de um texto previamente escrito. Mais afeita, na

maioria das vezes, à corporeidade, à espacialização e à multimodalidade cênica, a obra

dramática como trabalho do diretor não se limita à composição de uma fábula linear e

lógica nem à constituição de personagens identificados e levados a termo pelo trabalho

mimético do ator. O texto do diretor desloca o eixo da ação para um outro corpus,

elaborado a partir de códigos e estímulos diversos, que podem ser táteis, sonoros, olfativos,

visuais etc, nem sempre reconhecíveis pelo espectador. A fábula deixa de ser o único

objeto de interesse da obra, exigindo da assistência uma capacidade de lidar com o que

Richard Demarcy intitula “leitura transversal” do espetáculo teatral: um modo de recepção

distanciado, provocado pela relação do espectador-receptor com uma multiplicidade de

informações (sistemas, cenário, substância, matérias, cores, gestualidade etc) que lhes

chegam de forma simultânea ou fragmentada.

A constituição textual na obra do diretor é móvel e por vezes multifacetada,

podendo ir de uma estrutura convencional envolvendo a construção gramatical e dialógica

para uma manifestação enquanto puro fenômeno acústico e seu respectivo valor sonoro.

Nesse tipo de texto, ganham dimensão determinadas manifestações corporais e vocais que,

destituídas de um contexto ou sentido prévio, impõem uma percepção mais afeita às

sensações do que aos sentimentos e emoções advindos do intelecto, ou seja, do

entendimento racional que se dá pela via verbal e dialógica das personagens

mimeticamente constituídas.

174
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Tais diferenciações encontram-se também numa correlação direta que se pode fazer

entre o teatro ocidental e oriental, este último coincidentemente apreciado e citado por

Robert Wilson e também por Pippo Delbono como importante referência para suas formas

de ver e de criar a cena. Numa analogia entre o teatro da crueldade artaudiano, apresentado

como de caráter oriental, e as características gerais do teatro ocidental, Abirached (1998, p.

339) traça uma lista que pode ser aqui mencionada visando esclarecer e reiterar tal

referência na prática dos dois diretores. Ainda que por vias diferenciadas, tanto Delbono

quanto Wilson acabam por chegar a uma forma cênica que prima muito mais pelo seu

parentesco com os procedimentos tradicionais da cena oriental do que com as práticas

convencionais fortemente empregadas no Ocidente até meados do século passado.

O teatro cruel (oriental) O teatro ocidental

é físico é verbal

tudo ocorre em cena o essencial está no texto

suprime o autor subordina a cena ao autor

desencadeia o pensamento especifica idéias

está em união com o absoluto imita o acidental

tem uma eficácia intelectual procura distração

busca a verdade por trás das se interessa pela atualidade

psicológica,

formas moral e social

está enraizado no universo se limita ao “eu”

atua no espaço procede no tempo

revela um vazio oferece uma falsa plenitude

175
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O conjunto de todas as características anteriormente citadas, em geral presentes

tanto na obra de Wilson quanto de Delbono, é o que permite uma natural incorporação de

elementos advindos da performance, categoria em que parecem se inserir os distúrbios de

ordem corporal ou comportamental, já que são capazes de levar o individuo a uma atitude

performática na sua relação com o mundo, diferenciada da norma e do senso comum.

Além dessa semelhança no perfil estético de ambos, pode se dizer que diversos são os

acontecimentos e procedimentos comuns na vida dos dois diretores, alguns deles podendo

ser genericamente admitidos, como a presença constante de ambos em cena, o uso de

microfones pelos atores, a participação de amadores ou de não atores no sentido

convencional do termo, bem como o interesse por suas qualidades pessoais ao invés de sua

capacidade mimética. Outro fato curioso é que ambos acabam levados a uma percepção

diferenciada do mundo através de disfunções pessoalmente vividas ou adquiridas – ainda

que o grau e a natureza disto seja incomparável. Enquanto Wilson sofria de gagueira, o que

o levou a um isolamento e crescente interesse por formas de expressão que prescindiam do

verbo (o desenho, a pintura, a musica, a dança, dentre outras), Delbono torna-se

soropositivo, o que o faz passar por profundas alterações de saúde e a viver momentos

verdadeiramente difíceis, que o tornam mais sensível a uma serie de questões de outra

maneira praticamente impensáveis, como a readequação do corpo a uma nova realidade e a

consciência permanente da fragilidade da vida e de seu fim iminente.

Coincidências ainda como o encontro de Delbono com Bobò num hospital

psiquiátrico e o encontro de Wilson com crianças com desvios comportamentais na

Fundação Byrd Hoffman são fatos relevantes na vida e no trabalho de ambos. Foi com

Bobò e Raymond Andrews, ambos surdos, que os trabalhos de Delbono e Wilson

alcançaram reconhecimento internacional de crítica e público. Foi por esta via que tanto

um quanto outro passam a perceber e a incorporar indivíduos singulares às suas criações,

176
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lembrando que tanto Bobò quanto Andrews e Knowles acabam tendo a guarda legalmente

assumida, respectivamente, por Delbono e Wilson. A convivência diária e a proximidade

desses indivíduos propiciariam o reconhecimento e apropriação de questões-chave para o

procedimento criativo de ambos. Este fato é indubitavelmente diferenciador se comparadas

as práticas de Delbono e Wilson a outras tantas iniciativas que se valem também da

singularidade e da especificidade humana na criação cênica, pois dá a ambos uma

percepção talvez impossível num outro contexto.

Bastante comum ainda nas criação de ambos é a reincidência de ações e frases, bem

como a reutilização de cenas e trechos de um espetáculo em outros. Um exemplo, no caso

de Wilson, é o jogo de palavras que fazia com Christopher Knowles a partir do mote

“Emily likes TV” (Emily gosta de TV), no início de diferentes peças. Já em Delbono pode-

se citar a frase “Dimmi che mi ami e che me amerai per sempre” (Diga-me que me ama e

que me amará para sempre), além de sua seqüência de ações utilizando uma garrafa com

água e da história de vida de Bobò, contada em vários espetáculos diferentes.

Por suas características gerais, mas sobretudo pelos recursos utilizados, o trabalho

de ambos os diretores transcende o universo pessoal para se inserir no que Susan Sontag,

ao abordar a questão do happening, chama "tradição surrealista", que se difere do

movimento iniciado na pintura em 1924: "A tradição surrealista em todas as artes é

unificada pela idéia de destruição dos significados convencionais, e da criação de um novo

significado ou contra-significado pela justaposição radical ('o princípio da colagem')"

(Sontag, 1987, p. 312). No caso de Delbono, essa identificação vai mais além, se

considerado que o requisito mais importante para o espírito que move essa tradição é

justamente o uso de materiais comuns, tradicionalmente sem grande valor artístico e

geralmente encontrados nas sobras, nos restos, no lixo.

177
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Por outro lado, entretanto, diversos são os procedimentos efetivamente

diferenciadores entre os trabalhos dos dois diretores. Um exemplo para isto é a música,

cuja função e uso ocorrem de maneira bem diferenciada por parte de cada um. Nos

trabalhos de Wilson, a trilha é geralmente original, especialmente criada para as produções,

cuja estrutura sonora propõe a decomposição melódica dos padrões tradicionais, ao invés

de aferir novos significados a melodias preexistentes, como ocorre nas criações de Pippo

Delbono. Na nova música de Wilson, a base rítmica se antecipa e se impõe à estrutura

melódica, através da repetição e da sobreposição, enquanto nas criações de Delbono é

comum a reutilização de canções bastante conhecidas do grande público e, em certos casos

já tornadas icônicas, que são deslocadas para um contexto específico – geralmente pessoal

–, escolhido pelo diretor.

Outra diferenciação diz respeito ao uso cênico das disfunções, já que, embora haja

em ambos os casos o que se pode denominar apropriação cênica de condições e elementos

decorrentes de distúrbios de ordem física ou psíquica de determinados performers, cada

um dos diretores faz um uso diferenciado disto e, ainda que trilhando distintos caminhos,

atingem, ambos, resultados extremamente satisfatórios. Enquanto Wilson opta por uma

cena a partir do que percebe na surdez de Andrews, Delbono a produz com a simples

presença de Bobò. Se o norte-americano está preocupado em criar com base no que lhe

parece uma linguagem possível e diferenciada, se valendo da maneira de escrever e de

falar de Knowles, o italiano percebe no comportamento, na presença e na natural

sensibilidade de seus colaboradores o próprio elemento cênico. Neste caso, embora Wilson

também se valha da presença naturalmente “performática” de Knowles, o que o diferencia

de Delbono é a abordagem cênica de tal singularidade, já que a forma de expressão de

Knowles transforma-se na base estrutural para a constituição cênica de seu teatro, enquanto

Delbono estimula Gianluca, Bobò ou Armando, por exemplo, a se colocarem

178
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objetivamente em cena, como parte de uma estrutura outra, que não se assenta sobre as

suas características. Assim, enquanto Wilson constitui – em graus que variam de um

espetáculo para outro – um sistema de significação com base na visão de mundo e na

estrutura de linguagem de seus dois colaboradores, Delbono incorpora as singulares

condições de alguns de seus performers a um sistema mais amplo, por ele organizado.

Por fim, se é possível reconhecer, conforme pleiteia Lehmann, que o teatro de

Robert Wilson se reveste de uma característica pós-antropocêntrica, não se poderá dizer o

mesmo com relação ao teatro de Pippo Delbono: "Sob essa denominação, se poderia reunir

o teatro de objetos, sem atores vivos, o teatro de máquinas e recursos técnicos e um teatro

que integra a forma humana como elemento em estruturas espaciais semelhantes à

paisagens" (Lehmann, 2002, p. 127)120. Assim, enquanto Wilson apresenta e trabalha sobre

uma alternativa cênica onde a presença humana se dá como quesito para a composição de

imagens e de formas – ainda que se fale aqui de sua importância para a composição

espaço-temporal dos espetáculos – Delbono faz dessa presença, nua e crua, a própria cena.

Ele se vale justamente do ser humano e das misérias de seu cotidiano121 como elementos

concretos e ainda centrais para suas criações.

120
Sous cette dénomination, on pourrait rassembler à la fois le théâtre des objets sans acteurs vivants, le
théâtre avec technique et machines et un théâtre qui intègre la forme humaine comme élément dans des
structures spatiales semblables à des paysages.
121
Vale aqui um jogo de palavras com relação à miséria real, conforme vivenciada por alguns dos performers
de Delbono, e a referência poética à "miséria do cotidiano" no âmbito da obra de Vladimir Maiakovski
(1893-1930).

179
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CONCLUSÃO

É de amplo conhecimento que o corpo cênico vem assumindo um papel cada vez

mais midiático, transcendendo a questão corporal e verbal do ator para congregar

características de essência polissêmica e eleger, a cada momento, elementos diversos para

constituição do fenômeno teatral. Esta ocorrência se dá em consonância com um processo

ocorrido na arte como um todo, em que a dinamização e a multiplicação de imagens

acabam decorrendo numa transestetização, como sugere Baudrillard (2004, p. 24), capaz

mesmo de instituir o desaparecimento da arte como pacto simbólico, e "deixando o espaço

para o imenso museu artificial e para a publicidade desenfreada". Apesar disso, uma vez

em cena, um corpo ou comportamento naturalmente diferenciado e incomum ainda é capaz

de desafiar o olhar ou, nas palavras de Courtine (2006), desestabilizar a sua percepção. Isto

porque atores-performers tidos como "fora de padrão" evocam em suas ações mais

sensíveis a esfera do vivido, incidindo sobre o domínio da linguagem e da expressão, e

apontando naturalmente para o elemento performático em si. Sua presença em cena

sobrecarrega o sentido do dramático inerente ao fato teatral122, invocando a relação

passado-futuro que constitui um dos paradoxos de sentido apontado em Deleuze (1998):

neste caso, o corpo e o comportamento alterado sugerem uma incompletude ou desvio

subversivo da ordem, capaz de evocar, no espectador, uma negligência do presente em

favor de uma simulação imaginária da gênese ou devir do corpo observado.

Entretanto, ainda que o ato e a presença cênica de indivíduos capazes de perturbar o

espectador sejam fatores essenciais no exercício da cena aqui abordada, a reação e o

comportamento deste último não será mais que um mero estranhamento, caso as ações não

122
O dramático é um princípio de construção do texto dramático e da representação teatral que dá conta da
tensão das cenas e dos episódios da fábula rumo a um desenlace (catástrofe ou solução cômica), e que sugere
que o espectador é cativado pela ação (Pavis, 2001, p. 110).

180
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sejam conscientemente adensadas pela habilidade e exata noção de significação por parte

dos envolvidos (atores e diretores). Fala-se, então, em competência poética para a

constituição cênica, já que essa consciência pressupõe uma capacidade de elaboração e

desenvolvimento concreto de sentidos, a partir do conhecimento e da apropriação dos

elementos que compreendem a composição e a estruturação dramática. Como foi possível

perceber em vários dos casos, a incidência cênica de distúrbios e disfunções não se dá

como característica prévia, e sim de aproximações e de encontros (ou desencontros)

havidos no percurso desses diretores e grupos. Este fato aponta para a existência de

iniciativas que, sem se valer do discurso da inclusão social, enaltecem a humana

peculiaridade como matéria cênica, ou simplesmente vêem na pessoa o atributo necessário

ao exercício poético. Trata-se, nesse âmbito, de práticas que expressam anseios estéticos,

observando o mundo por um viés diferenciado e intervindo nele de maneira cenicamente

não convencional.

Os exemplos e procedimentos aqui apontados tornam possível afirmar que a

contaminação cênica pelas disfunções do corpo e da mente se impôs como efetiva

contribuição para a prática teatral e, ao lado da questão tecnológica, talvez seja uma das

grandes novidades ocorridas na cena dos últimos tempos. A partir de seu caráter

desestabilizador, o corpo e o comportamento alterado deixaram de ser tidos como

impedimento ou mero objeto de excentricidade para protagonizar diversas das práticas

desenvolvidas a partir do séc. XX, como fruto de um processo que se manifesta, hoje, nos

mais variados graus.

Nesse âmbito, a escritura cênica tem se mostrado como principal forma de trabalho

ou, ao menos, a que surte mais efeito, pois é quando as condições do ator-performer podem

ser evidenciadas como qualidade dramática em si (Pippo Delbono) ou a partir da qual se

desenvolve a composição cênica (Robert Wilson). De acordo com Pavis (2001, p. 132), "a

181
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escritura cênica nada mais é do que a encenação quando assumida por um criador que

controla o conjunto dos sistemas cênicos, inclusive o texto, e organiza suas interações, de

modo que a representação não é o subproduto do texto, mas o fundamento do sentido

teatral". Assim, as práticas de Wilson e Delbono diferenciam-se de uma situação em que as

condições do ator-performer são tornadas coadjuvantes e postas a reboque de um pretexto

fabular ou de um exercício de alteridade, como a composição mimética de outrem. Alguns

outros exemplos da cena contemporânea poderiam ser citados123, sugerindo a escritura

cênica como a mais notável fonte de aproveitamento estético das disfunções, mas o

importante é que se percebam todas as formas de procedimento como complementares,

representantes de estágios diferenciados do contágio que se instaurou na cena, sobretudo, a

partir do século XIX.

A principal contribuição que se busca com a presente reflexão é, pois, tornar claro

que mais do que se constituir como terreno de intersecção ou instrumento a reboque de

outras áreas que lidam com as disfunções, a arte do teatro perfaz o seu próprio caminho.

Ela institui-se como instância de expressão e experiência estética, onde a singularidade

extremada não deve ser vista como simples motivo ou pretexto, e sim como condição

efetiva e propícia à criação.

123
Até recentemente, ainda em vida, Joseph Chaikin (1935-2003), diretor e criador do Open Theatre,
continuava a dirigir e atuar em seus espetáculos, mesmo com as limitações impostas por sua afasia. Um outro
bom exemplo é a companhia italiana Raffaello Sanzio, dirigida pelos irmãos Castellucci, que em vários de
seus trabalhos agrega corpos e seres bastante diferenciados.

182
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Compagnia Pippo Delbono/Emilia Romagna Teatro/Théâtre du Rond-Point, 2006.

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187
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ANEXO

188
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LAUTREC: UMA EXPERIÊNCIA SINGULAR

"E me deixarão falar um instante, espero, deste outro aspecto da


linguagem teatral pura, que escapa à palavra, da linguagem por signos,
gestos e atitudes que têm um valor ideográfico tal como existem ainda em
certas pantomimas não pervertidas(...) pantomima direta em que os
gestos, em vez de representarem palavras, corpos de frases(...)
representam idéias, atitudes do espírito, aspectos da natureza, e isso de
um modo efetivo, concreto, isto é, evocando sempre objetos ou detalhes
naturais.(...) Essa linguagem que evoca ao espírito imagens de uma
poesia natural (ou espiritual) intensa dá bem a idéia do que poderia ser
no teatro uma poesia no espaço, independente da linguagem articulada."
(Artaud, 1993, p. 33-34)

A peça teatral Lautrec124 aborda a vida e a obra do pintor francês Henri de Toulouse-

Lautrec, que viveu no final do século XIX, na França, sendo considerado um dos mais

destacados artistas plásticos da modernidade. O trabalho, com autoria e interpretação de

Katia Fonseca e direção de José Tonezzi, é um monólogo produzido pelo Laboratório do

Ator, coletivo teatral da cidade de Campinas (SP).

Formada em jornalismo e trabalhando no caderno de cultura de um jornal de

Campinas (SP), Katia preside a unidade regional do Centro de Vida Independente (CVI),

uma organização não governamental de âmbito internacional de e para pessoas com

deficiência. No teatro, foi aluna de Antunes Filho, Cacá Carvalho e Cristina Castrillo,

dentre outros. Assim como Toulouse-Lautrec, a atriz também é portadora de nanismo,

doença que atinge atualmente 1 em cada 25.000 nascimentos. Embora seja a acondroplasia

– distúrbio genético no feto – a causa mais comum para o nanismo, o pintor Toulouse-

Lautrec sofria de picnodisosteose (do grego ostéon, relativo a osso) ou ainda síndrome de

Maroteaux e Lamv. Já com a atriz, a deficiência física decorre de má formação óssea

congênita, que lhe provocou o atrofiamento dos membros superiores e inferiores. Em

ambos, as extremidades dos membros são relativamente mais curtas do que o tronco.

124
Ficha técnica: Texto e cenários de Katia Fonseca. Direção e iluminação: José Tonezzi. Direção musical:
Wanderley Martins. Produção: Laboratório do Ator/Centro de Vida Independente (CVI-Campinas).

189
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Foi como aluna especial do curso de pós-graduação em Artes da Universidade

Estadual de Campinas (UNICAMP) que Katia aprofundou seus conhecimentos sobre Henri

de Toulouse-Lautrec (1864-1901), desenvolvendo uma monografia sobre ele, ponto de

partida para o texto que desenvolveu. De baixa estatura – cerca de um metro e meio de

altura –, o pintor tinha uma aparência que não exercia atração nenhuma sobre as mulheres.

Com a cabeça grande e certa ausência de ângulo na mandíbula, o que deixava seu rosto

com aspecto estranho, ele possuía braços e pernas curtos e quebradiços. Talvez como

forma de compensar essa frustração, Toulouse-Lautrec bebia muito e, antes de um final

prematuro nos braços da mãe, sofreu diversas alucinações e foi internado pelo pelo pai

num hospital psiquiátrico.

Henri de Toulouse-Lautrec, 1892.


Musée Toulouse-Lautrec, Albi, França.

Na peça, atriz e personagem expõem a deformidade social existente em suas

respectivas épocas, mostrando que, apesar dos mais de cem anos que os separam, mazelas

sociais como o preconceito e a estigmatização continuam encravadas na sociedade.

Acompanhada por textos em off e outros efeitos sonoros, além da projeção de obras e fotos

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do pintor, Katia Fonseca mostra por cinqüenta minutos a vida – que misturou tragédia e

glamour – do artista francês que, rejeitado pelo pai, renegou sua origem nobre para viver

no submundo parisiense. Em meio a prostitutas e dançarinas de cabaré, tornou-se um dos

personagens principais do Impressionismo europeu e, por extensão, do período dourado da

Belle Époque. Toulouse-Lautrec morreu aos 37 anos e, através de sua obra, tornou-se uma

referência para um processo de inclusão social que hoje encontra seu auge no mundo todo.

O espetáculo

Durante a entrada do público, a cena está aberta e o palco escuro. Vários objetos

estão colocados no espaço: três banquetas extremamente pequenas, duas mesas (uma delas,

com uma garrafa e um copo), máscaras e boás pendurados em bengalas de diversos

tamanhos, por sua vez encaixadas em bases de madeira. Ao iniciar a apresentação, cai a luz

da platéia e um azul tênue deixa entrever apenas a silhueta das bengalas, de pé sobre o

palco. Em off, ouve-se uma voz masculina que narra: "Nasci disputando com a morte o

meu lugar no mundo". De repente, algo começa a mover-se, arrastando-se vagarosamente

pelo chão, como um bicho. É um pequeno corpo que, até então imperceptível, locomove-se

até o banquinho localizado no centro do palco.

Aos poucos, será possível perceber a atriz Katia Fonseca em sua conformidade

física extremamente singular: braços e pernas curtíssimos, em contraste com um tronco e

quadris nas dimensões médias de um adulto. A voz em off continua a descrever os

primeiros momentos de vida de Toulouse-Lautrec e a atitude de seu pai, deixando à caça

para correr à casa, ver rapidamente o filho recém-nascido e, em seguida, voltar à atividade

que mais apreciava: perseguir um javali até o seu momento final, o halali. A partir daí,

Katia representa, auxiliada por efeitos sonoros e visuais, o percurso de vida do artista

191
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francês que, na adolescência, descobre possuir uma doença nos ossos que, fragilizados, o

fariam permanecer com uma estatura bem abaixo da média.

Em diversos momentos da apresentação, são as peculiares formas de agir da atriz

que preenchem a cena: seu andar, que impõe um jogo lateral de todo o corpo, já que não

possui articulações nas pernas; seu ato de tomar as coisas e objetos, que requer o uso dos

dois pequeninos braços a funcionarem como prendedores; a necessidade e a maneira

inusitada com que se vale de sua pequena bengala, tornada extensão do corpo na relação

com o espaço. Diversas atitudes e momentos da vida do pintor são evocados, como as

festas que promovia em sua casa, o hábito de desenhar enquanto bebia nos cabarés, o gosto

pela cozinha e pela criação de drinks personalizados, o consumo extremado da bebida,

sobretudo, do absinto. Várias de suas telas são projetadas, enquanto ele conta suas

histórias, sentimentos, desejos. Muitas de suas frases revelam como Toulouse-Lautrec via

o mundo e como se sentia dentro dele: "Os tipos médios, normais, passam despercebidos,

atravessam a multidão sem que nada aconteça à sua volta. Para existir, eles não precisam

lutar, basta se inserir. Mas eu não, para garantir a minha singularidade, tenho de manter a

espada sempre erguida, pronto para a luta. Técnica de sobrevivência!". Sobre sua relação

com as prostitutas, ele diz: "Acho que elas nunca tiveram um amante tão feio quanto eu!".

Katia Fonseca, em cena de Lautrec. Fotos: Maneco Silva.

192
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Num dos momentos de crise e alucinação, as bengalas são atacadas e derrubadas

por um personagem furioso, a quem o pequeno corpo da atriz empresta uma característica

ainda mais particular: "Sentia que, a qualquer momento, poderia ser atacado. Por mim

mesmo". Numa das cenas mais marcantes da peça, uma luz branca ilumina todo o teatro e,

tomando um dos banquinhos, a atriz se dirige à boca de cena, onde, pedindo licença ao

público, passa a falar de si mesma. Trata-se de um breve testemunho, onde se evidencia

uma aproximação que vai além da aparência física entre atriz e personagem. Contando que,

ao nascer, foi batizada às pressas na capela do hospital, pois os médicos não lhe davam

mais do que vinte e quatro horas de vida, ela empresta as palavras do poeta português José

Régio: "Corre, nas vossas veias, o sangue velho dos avós, e vós amais o que é fácil. Eu

amo o longe e a miragem. Amo os abismos, as torrentes, os desertos...".

Processo de criação

Quando iniciei o trabalho de direção da montagem, em janeiro de 2005, Katia

havia sido convidada para apresentar-se no Fórum Social Mundial, a ocorrer dali a poucas

semanas, na cidade de Porto Alegre (RS), e planejava fazer ao menos uma pequena

demonstração cênica. Tinha preparado um texto com cerca de 15min, no qual representava

Toulouse-Lautrec e expunha sua vida quase como numa palestra, sentada num pequenino

banco. Valia-se de algumas projeções de obras do artista e utilizava um casaco, um chapéu

côco e uma bengala, mantendo-se praticamente fixa, devido à dificuldade em locomover-

se. Ela estava então com 48 anos e cansava-se facilmente em função da vida sedentária que

levava em sua rotina como jornalista. Considerando as condições, o trabalho foi ajustado

de maneira a aproveitar o que ela já havia constituído, sendo mostrado como exercício

cênico na ocasião.

193
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Após o seu retorno da capital gaúcha, iniciamos um cronograma de ensaios,

visando preparar um espetáculo para meados daquele ano. Uma das primeiras providências

foi obviamente uma maior configuração textual da obra, o que não seria difícil graças ao

farto material reunido sobre o pintor. Além disso, Katia identificara-se plenamente com o

artista francês desde a primeira informação que obteve sobre ele:

[Toulouse-Lautrec] começou a descobrir a deformidade social de seu

tempo. E percebeu que, na verdade, assim como ele, aquilo que

aparentemente era disforme e repugnante – como as prostitutas, as

lésbicas ou os mendigos – estava pleno de humanidade e beleza. (...)

[Seus trabalhos] São imagens extremamente simples, que revelam a

humanidade por trás do estigma. Uma obra que coleciona vidas, que

cria indivíduos e impõe o sujeito à frente do rótulo. Lautrec foi

protagonista de si mesmo. Assumiu plenamente sua deformidade e

sentiu-se à vontade para denunciar outras deformidades ocultas. Ele

inverte os papéis e coloca no centro da cena parisiense os que, como

ele, estão à margem, marcados pela diferença. Com isso, consegue

subverter a arte oficial hipócrita dos salões e afirmar sua originalidade

artística. 125

Mais do que uma identidade de cunho estético, mostrou-se clara uma identificação

com as condições de vida de Toulouse-Lautrec: a singularidade de sua aparência e as

limitações físicas que o tornavam alvo de pressões, o sofrimento com a exclusão imposta

pela sociedade, o uso da arte para expressar-se. Também a boemia, o estranhamento e a

perplexidade das pessoas e, por fim, a grande persistência e inconformismo diante da vida

mostravam-se como características inerentes a ambos. Evidentemente, essa aproximação

125
FONSECA, Katia. Depoimento apresentado na XVIII Escola Internacional de Atores, realizada pelo
Teatro delle Radici, em julho de 2005, em Lugano, Suíça.

194
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era um dos motivos que mais haviam estimulado a atriz para uma empreitada cênica sobre

a vida do pintor.

Entretanto, embora essa identidade fosse positiva e pudesse auxiliá-la numa

constituição – sobretudo realista – da personagem, as condições e os elementos aparecidos

durante o trabalho apontavam para uma possibilidade inusitada na concepção da cena. Em

poucos ensaios, tornou-se evidente que a simples exposição da conformidade física da atriz

parecia dizer tanto quanto a história contada pelo texto. Assim, vendo-a em cena com seu

aspecto físico marcadamente singular e já em si tão cheio de sentidos, não me ocorreu

outra idéia senão aproveitar essas mesmas características e transformá-las

propositadamente em elementos de composição dramatúrgica e em objeto da própria

encenação.

Houve ainda a opção por abordar também os temas relativos à vida de Katia e às suas

experiências pelo mundo, com o objetivo de fundí-los à história do pintor e, a uma só voz,

trazer à tona problemáticas intrínsecas e comuns a ambos, personagem e atriz. A partir

disso, as imagens e situações evocadas na narrativa varbal tornaram-se muito mais

concretas. O tom irônico e bem humorado que a atriz passou a adotar – um traço que lhe é

comum – ao representar fatos e situações ocorridos consigo mesma, veio de encontro ao

espírito sarcástico que parece ter sido uma das características maiores de Toulouse-

Lautrec. Por outro lado, ela passou a evidenciar e dar voz efetiva também à sua própria

singularidade, mesmo quando se remetia a situações vividas pelo pintor. Assim, as

situações que se imaginava terem sido vividas pelo pintor e aquelas efetivamente vividas

pela atriz encontraram um ponto comum em seu corpo e conformidade, numa consonância

plena com as palavras de Ubersfeld (2005, p. 88): "É preciso insistir na evidência de que a

personagem só tem existência concreta por meio de uma representação concreta: a

personagem textual é apenas virtual. [Evidencia-se] uma reversão da representação sobre o

195
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texto, como se a personagem-texto fosse lida de outro modo, modificada pelos signos

acrescidos pela presença física do ator".

Considerando, ainda de acordo com Ubersfeld, que o texto teatral tende a ser

rigorosamente dependente das circunstâncias de enunciação – constituídas pelo discurso

enunciador do autor e o discurso enunciado, cujo locutor é a personagem –, as condições

apresentadas pela atriz-autora tornaram possível uma polifonia de sentidos. Isto porque,

além de significar ao mesmo tempo o destinador (autor) e o locutor (personagem), a sua

configuração física permite enxergar um terceiro elemento, autônomo e capaz de se

sobrepor aos demais. As suas especiais condições tornam possível uma alusão a si mesma,

enquanto referência valorativa, não dizendo somente por meio do discurso da personagem,

mas também dela própria. Assim, tais características constituíam-se como importante

elemento cênico, pois que agregavam força dramática ao personagem, evocando questões

ligadas ao imaginário do público:

De nossa parte, vemos três maneiras de cristalização do personagem

no imaginário coletivo (...) Umas vezes, o personagem se mostra em

consonância com a memória de seu público, e leva consigo então os

reflexos perfeitamente identificáveis de um sistema de imagens

exemplares, valoradas pela ideologia de sua época e tomadas para sua

utilização pelas gerações seguintes. Outras vezes, está ligado a um

imaginário social, produtor de tipos familiares para todo mundo, nos

quais cada um gosta de reconhecer sua visão da vida cotidiana na

coletividade, das crenças e da moral do grupo: neste caso se mostra

submetido a um código, admitido por todos, que fundamenta uma

tipologia geral dos papéis e modos de expressão. Outras, por último,

se mostra ligado às instâncias fundadoras do inconsciente coletivo, e

196
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neste caso transparecem nas estruturas do arquétipo (Abirached,

1994, p. 44).126

Não seria exagero afirmar que o corpo que ali se apresentava, não tratando de

dissimular nem de fazer-se representante, era capaz de aceder-se um sentido inconsciente e

diverso, ocasionando uma sensação inusitada, provavelmente caracterizada pela dimensão

ao mesmo tempo grotesca e singela de sua aparência. Neste sentido, aproveitando as

naturais características desse corpo – o seu tamanho diminuto, a sua deformidade e

dificuldade em cumprir com tarefas aparentemente simples – foram realçadas as ações que

adensassem tensão e expectativa em relação à sua performance. Ações como caminhar,

rolar ou apanhar objetos pelo chão, golpear no espaço com a bengala e mesmo tirar o

casaco ou fixar o pince-nez no nariz. De difícil execução para a atriz, essas ações

transformavam-se por vezes no próprio cerne da cena.

Em primeiro lugar, o teatro que faço é para mim mesmo, para me

transformar, para ser protagonista do meu viver. O teatro serve para

que eu possa me ver nas mais diversas situações que talvez a vida, por

si só, não pudesse me possibilitar, mas que o teatro pode.

[...] O teatro possibilita que eu use, conscientemente, a minha

fatalidade (a de ser diferente). Ela – a fatalidade – será um elemento

de aproximação ou de distanciamento do espectador, conforme o que

eu queira dizer ou demonstrar em determinada ação teatral. A

126
Por nuestra parte, vemos tres maneras de cristalización del personaje en el imaginario colectivo (...)
Unas vezes el personaje se halla consonancia con la memoria de su público, y lleva consigo entonces los
reflejos perfectamente identificables de un sistema de imágenes ejemplares, valoradas por la ideologia de su
época y atesoradas para su utilización por las generaciones siguientes. Otras vezes está ligado a un
imaginário social, productor de tipos familiares para todo el mundo, y en los que cada uno gusta de
reconocer su visión de la vida cotidiana en la colectividad, de las creencias y de la moral del grupo: en este
caso se halla sometido a un código, admitido por todos, que fundamenta una tipologia general de los roles y
modos de expresión. Otras, por último se halla ligado a las instancias fundadoras del inconsciente colectivo,
y en ese caso se transparentan en él las estructuras del arquetipo.

197
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pergunta que faço é: onde, em mim, é exatamente igual ao espectador,

apesar da diferença física? O que há em mim que atrai ou que repulsa

o espectador? Até que ponto minha deformidade é só minha e até que

ponto é a dele (espectador) também?127

Além da realidade vivida pela personagem, tornou-se possível uma abordagem

diferenciada de questões que diziam respeito à própria acepção de um corpo deformado e

fora de padrão. Tratava-se do uso e da presença cênica de uma disfunção, que não era

aludida nem representada, mas impunha-se concretamente por meio da atriz. O seu corpo

pequeno e disforme mostrava-se como testemunho inconteste de sentidos que, de outra

maneira, se tornariam intangíveis.

Além de denotar um inacabamento possível, presentificando a notável

provisoriedade das formas e, pode-se dizer, da própria manifestação corporal, a natural

compleição física de Katia embaralhava conceitos e incidia sobre as condições do discurso.

Uma sensação inusitada e notadamente grotesca, na acepção de Thomson (1972), se

configurava a partir da simples presença da atriz, com o peculiar comportamento que suas

características impunham: a sua maneira de locomover-se, o seu timbre de voz, a evocação

de algo incerto (coisa, objeto, brinquedo) que dela emanava. Ainda em seu depoimento, a

atriz expõe sobre essa condição e cita exemplos da capacidade performativa que dela

decorre:

A pessoa diferente, com deficiência física, está exposta, queira ou

não. Não é uma opção, é uma fatalidade. Assim ela provoca reações

das mais diversas naqueles que a vêem. A pessoa diferente

fisicamente toca e transforma quem a vê, assim como o teatro.

127
FONSECA, Katia. Idem.

198
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[...] Entrei num restaurante e, depois de me sentar à mesa, percebo um

olhar fixo sobre mim de uma mulher grávida sentada na mesa ao lado.

De repente, ela explode num choro convulsivo e é consolada pelos

amigos e pelo marido que estão com ela. Ela vai melhorando, mas

sempre que olha em minha direção, o choro aumenta.128

Percepção imediata do próprio corpo, de sua imagem e dos sentidos por ele

emitidos, bem como sua relação com o espaço circundante são, sem dúvida, qualidades

fundamentais ao ator. Entretanto, por maior que seja sua capacidade de construir

intencionalmente um sem número de significações, ele sempre haverá de lidar com os

signos inconscientes e/ou involuntários que emite. Assim, o seu trabalho passa a ser

também o de se apropriar, desneutralizar129 e adaptar conscientemente tais sinais. Ou seja,

o ator deve ser capaz de transformar os signos involuntários em voluntários e, se possível,

de inconscientes em conscientes.

Para Ubersfeld (1997), seriam três os tipos de signos emitidos pelo ator: os

intencionais icônicos, os intencionais representativos de signos não intencionais, e os

propriamente não intencionais. O primeiro caso diria respeito aos recursos técnicos

propositadamente utilizados a fim de se alcançar um resultado de cunho intelectual ou

afetivo, como o discurso oral, a emissão de mensagens, o trabalho de persuasão, sedução,

etc, e também aqueles signos convencionalmente admitidos pelo código teatral, como a

dicção, o fraseado, a gestualidade, etc. A segunda categoria trata de signos ligados à

emoção, normalmente emitidos de forma não intencional por alguém e conscientemente

assumidos pelo ator, como comportamentos e atitudes corporais resultantes de um

determinado estado emocional. Os signos não intencionais, em si, se manifestariam de

forma involuntária – embora nem sempre inconsciente – pelo próprio artista, como é o

128
FONSECA, Katia. Ibidem.
129
Termo empregado por Ubersfeld (1997, p. 172)

199
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caso de sua estatura, do timbre ou tom de sua voz, de sua aura, e de expressões

caracterizadas por papéis que ele tenha representado anteriormente.

A partir de seu caráter naturalmente performático, um corpo disforme é capaz de

mover o imaginário das pessoas e, de modo decisivo, ocasionar o que na psicanálise se

denomina denegação ou, mais precisamente, a manifestação de elementos ao mesmo

tempo reprimidos e negados. No âmbito do teatro, o fenômeno se configura no

reconhecimento da cena como lugar de imitação e ilusão, simultânea e paradoxalmente

contestado e admitido como verdadeiro pelo espectador, que o assemelha ao seu mundo:

"Como a criança (descrita por Freud) que tem prazer na brincadeira do carretel jogado e

depois recuperado, em ser ao mesmo tempo ator e espectador, a denegação faz a cena

oscilar entre o efeito de real e o efeito teatral, provocando alternadamente identificação e

distanciamento" (Pavis, 2001, p. 40).

Num sentido inverso, como que saído do terreno do sonho e da fantasia para

inserir-se no mundo, um corpo deformado ou extremamente fora de padrão quebra a

relação de estabilidade das coisas, interferindo na percepção imediata e na referência

corrente de normalidade. Impondo-se como elemento performático e elegendo o espaço à

sua volta como cena e locus teatral, será capaz de estimular a denegação naqueles que o

rodeiam.

No exemplo de Katia, é marcante a presença de signos não intencionais, forjados a partir de

sua conformidade física extremamente singular. Seu corpo disforme joga, sobretudo com a

visibilidade, terreno maior das sensações humanas e à qual se delega o principal papel para a

certificação do real. Veículo e mensageiro de inumeráveis significações, o corpo quando marcado

pela deformidade torna-se testemunho inconteste de seu próprio inacabamento e imperfeição, sendo

talvez essa paradoxal afirmação-negação de si mesmo o seu fator mais determinante.

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