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Agradecimentos

Se fosse agradecer todas as pessoas que de alguma forma


me auxiliaram na gestação e parto dessa obra não caberia em
mil folhas. Mas preciso agradecer destacadamente algumas
pessoas.
Minha família secular que aturou meu mau humor, resmungos,
conversas sozinho, luz nas madrugadas inesperadamente acesas.
Minha família religiosa, que me suportou divagando horas em
assuntos sem interesse ou compreensão sem, no entanto
abandonarem o barco.
Meus amados Pretos e Pretas velhas, que tanto elucidaram fatos
que a história comprovou depois. Em especial meu rabugento
Rei Congo, minha ranzinza Vó Chica, minha doce Mãezinha
Maria Mineira, minha amorosa Mamãe Maria Redonda, e
minha implacável Mãe Maria do Ferro.
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Introdução

Esta humilde e despretensiosa obra é fruto de alguns anos


de pesquisa, primeiro, para um canal no YouTube onde
publicamos em forma de documentários, e depois, pela evolução
de nosso sonho, nesse formato de livro.
Apesar dos personagens contidos nesse livro serem fictícios,
suas histórias são reais, os modos de tratarem e transportarem os
escravizados são reais, e infelizmente, as agonias e torturas
infligidas a essa pobre gente também é toda baseada na
realidade.
Como todo romance histórico, aconselho a checarem,
quando disponíveis, as notas elucidativas de rodapé.

Boa leitura, e muito obrigado

Milton Ricardo Serafim Puccinelli.


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Índice da obra

Agradecimentos .................................................................................................................. 3
Introdução ......................................................................................................................... 5
O Navio Tumbeiro ............................................................................................................. 8
Caís do Valongo, Rio de Janeiro .......................................................................................... 16
Porto do Desterro .............................................................................................................. 25
Rio Grande de São Pedro ................................................................................................... 31
O Casarão ...................................................................................................................... 37
Conhecendo a Baronesa ...................................................................................................... 41
Senzala de dentro .............................................................................................................. 43
Primeiro olhar da cidade ..................................................................................................... 47
O Caís de Vó Miquelina ................................................................................................... 56
O Pelourinho do Largo do Moinho ....................................................................................... 61
Negro Tomás e a forca ....................................................................................................... 64
Manoel decide morrer ................................................................................................. 70
Chega Inácio e acaba o segredo ............................................................................................. 76
Os filhos de Pai João .................................................................................................... 83
Chegam novos escravizados.................................................................................................. 87
Otacília mata seu bebê ....................................................................................................... 91
A Laranjeira ................................................................................................................... 95
Eugênia, negra senhora de escravos ....................................................................................... 99
O Lobo do tempo ............................................................................................................ 105
A noite, velhos viram meninos ........................................................................................... 110
Boas notícias enfim .......................................................................................................... 112
E finalmente, a festa ........................................................................................................ 114
Inácio, passarinho querendo voar.............................................................................. 117
O anjinho ...................................................................................................................... 122
O Juíz da comarca ...................................................................................................... 126
Notícias de Pedrinho .................................................................................................. 129
Miguel chega a casa grande ...................................................................................... 132
Miguel conta seu plano.............................................................................................. 136
Seis anos depois ... ..................................................................................................... 139
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Miguel entrega seu coração ...................................................................................... 142


De viagem para o Prata ............................................................................................. 145
Maldito tronco sangrento .......................................................................................... 148
Segundo dia de horror ............................................................................................... 152
Joaquim vira passarinho ............................................................................................ 156
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O Navio Tumbeiro

Quando no tombadilho a tampa do porão se


fechou parece que caiu sobre nós um silêncio
indescritível, quase palpável. Ouvia-se ainda o som do
lamento de algumas mulheres, o choro das crianças e o
resmungo dos anciãos, mas ouvia-se tudo isso como
vindo de um sonho, distante, intangível, quase
sobrenatural. Minha cabeça ainda doía da pancada
recebida dias atrás, e a essa dor unia-se a da caminhada
ate o porto do Adeus, onde nos embarcaram. Eu que a
muito não sabia o que era andar alem dos limites de
meu reino, caminhei dias inteiros ate a exaustão. Na
verdade o silêncio do porão, e o calor que percorria
meu corpo, junto ao de outros cativos, ate que se
tornava cálido, inebriante, diferente dos gritos dos
meus captores instigando o tempo todo que
andássemos mais rápido. A língua deles, de origem
otomana, era quase incompreensível a mim, negro de
origem Fon, onde falávamos yorubá.
Ao meu lado na escuridão ouvi a voz de Yantu,
sacerdote de Sangóo1, Deus da justiça, entoando uma
reza pedindo misericórdia aos nossos deuses. Os
sentíamos ali, junto a nós, apesar das incômodas
correntes em nossas mãos e pescoços, da excessiva
proximidade uns dos outros, sentíamos que
embarcados conosco, ou melhor, em nós, uma parte

1
Sangó, ou Xangô no Brasil, é a divindade africana da Justiça, dono dos trovões. Sincretizado
no RS com São Jerônimo.
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da África nos acompanhava. Esú2 já não ria sério


observava a tudo em um canto, Ogum3 agitava-se
nervoso brandindo sua espada de mariô4, clamando
por guerra, Yansã5 encantava os antepassados,
chamando-os para auxílio. A Africa certamente ia
conosco mesmo que sentíssemos que jamais
pisaríamos de novo em suas terras. Saíamos do
continente africano, mas ele jamais sairia de nossas
almas.
O tumbeiro, como chamavam os navios que
transportavam escravos para o Novo Mundo, sacudiu-
se inteiro, ouvíamos abafado o grito dos marinheiros
em uma língua inteligível para nós. O mover agitado
causou um efeito imediato em mim e em vários dos
cativos, já famintos e debilitados pela caminhada até o
porto. Parecia que todas as minhas entranhas queriam
saltar para fora. Aos poucos conforme ganhávamos
mar alto o movimento brusco foi amainando, ate que
exausto e febril adormeci um sono agitado. Sonhava
com uma Yá6, idosa, que me acariciava o rosto e
soluçava. Lembro de que no sonho ela me chamava
pelo meu nome: - Olakundê, filho de Lumumba,
soberano dos homens da terra dos Fon, prepara teu
coração para o que teus olhos vão ver e tua carne

2
Esú, ou Bará no RS, divindade africana das encruzilhadas, porteiras, mercados. Esú é o
mensageiro dos outros Orixás, elo entre Eles e os homens.
3
Ogum, deus africano das guerras, protetor dos guerreiros, violento, defende o povo de
santo dos seus inimigos
4
Mariô. Espécie de palmeira africana, usada nas vestes de Ogum, e de seu talo cortante sua
espada é feita.
5
Yansã, ou Oyá, deusa africana das tempestades e dos eguns, almas dos mortos.
6
Yá, Palavra yorubá para senhora, mulher.
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sentir... Despertei com a nítida impressão que da


minha garganta tinha saído enrouquecido o grito de
Salubah7, a saudação de Nanã Buruku8, a mais velha
dos deuses de minha terra, senhora dos pântanos,
lodo, e de iku, a morte.
Perdi a noção do tempo, parecia que os minutos
se misturavam ao pranto de uns, enjoo e vômitos de
outros. Só percebi que provavelmente passara um dia
quando a tampa do porão se abriu como a boca de
uma das feras dos itans, lendas da minha terra,
contadas as crianças. Dela despejou ao chão sujo do
porão um caldo malcheiroso e de ruim aspecto, onde
se adivinhava pedaços de peixe, cascas de legumes,
sobras, uma verdadeira lavagem. Mesmo com fome
nos olhamos na semi escuridão em um acordo
silencioso de que não éramos porcos, éramos gente, e
não nos sujeitaríamos aquilo, mas fico pensando ate
quando? Não sabemos quanto essa viagem há de
durar, e temos anciãos, crianças, e que me lembre de
quatro ou cinco mulheres grávidas, sei que aguardam
que eu, os sacerdotes, e as duas princesas também
cativas tomemos a decisão por todos, sinto os olhos
em mim buscando gestos de aprovação ou desagrado.
No momento que vi uma ratazana se esgueirar
sorrateira em direção a horrenda comida senti no meu
ombro o peso da mão acorrentada de Yantu, o
sacerdote. Sua boca próxima a minha orelha sussurra: -

7
Salubah, saudação do Orixá Nanã Buruquê.
8
Nanã Buruquê, Deusa africana considerada a vovó, a mais antiga. Senhora da lama
primordial, da morte.
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Soberano, comamos hoje para vivermos o amanhã,


coragem! Relutante estendi minha mão ao chão
imundo do convés, ainda com resquícios de outras
cargas tão nefastas quanto a nossa, apanhei um bocado
daquela mistura e levei a boca tentando controlar o
vômito que insistia em me rondar. Vi logo as mãos
acorrentadas se espremendo em direção ao caldo,
outras mãos alcançando a mistura aos distantes. Ouvi
ânsias de vomito e mães tentando animar seus filhos.
Ao fundo ouvi uma voz idosa de mulher entoando a
reza do inicio do Olubaje,9 de Xapanã10 "Aara we aje
umbo, olubaje aje umbo awe" convidamos o senhor
da terra a comer conosco, logo outras vozes foram se
unindo, mansas, suaves, e o gosto daquilo parece que
melhorou que ficou mais aceitável.
Pouco depois dessa horrenda experiência, Nyiak,
um guerreiro Mauí que tinha tido contato já com os
brancos e entendia um pouco sua língua disse ter
ouvido falarem no tombadilho que a viagem duraria
noventa dias. Ao ouvir isso um arrepio de mau agouro
me assombrou, e disfarçando usei as correntes e
grilhões para marcar na madeira do navio o primeiro
dia, assim teria controle do tempo.
No quinto dia meus olhos enfraquecidos pela
escuridão foram feridos dela luz abundante vinda do
convés. Não só abriram a tampa por onde jogavam
comida, mas sim um grande alçapão por onde

9
Olubajé, Festa do inhame dedicada ao Orixá Xapanã.
10
Xapanã, Deus africano das doenças, senhor da terra, dono da varíola.
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entramos quando fomos embarcados. Pelas escadas


desceram alguns homens brancos fortemente armados
com arcabuzes e espadas. Via-se pela sua expressão
que sentiam nojo do cheiro nauseante de comida
podre, fezes, urina e suor que empesteava todo porão.
Um deles usando uma tocha observava atentamente a
todos como se procurasse alguma coisa, ate que seus
olhos bateram em Tiombe, uma jovem quase menina,
da região da Costa do Marfim. Inconscientemente a
menina tentou cobrir seus seios adolescentes pelos
trapos que vestia quando um dos homens se
aproximou e foi soltando seus grilhões. Oluwafemi seu
irmão tentou erguer-se e impedir o homem, mas levou
um chute em pleno rosto que explodiu em sangue o
deixando inconsciente. Fechei meus olhos ardendo e
agora com lágrimas enquanto ouvia a menina ser
arrastada aos prantos, suplicando "rara, adjowo" ( não,
por favor). Depois que o porão voltou a ser fechado e
a escuridão tomou conta caiu sobre nós um assustador
silêncio, silêncio de culpa por não fazermos nada, de
impotência, de medo.
Começava ali a ceifa do "banzo" ( tristeza), talvez
nosso maior algoz nessa viagem. Ouvia os risos dos
homens que me lembrava das hienas, apertei tanto
minhas mãos, envolvido em ódio, que sentia os nós
dos dedos quase rompendo a carne, mas tudo isso era
inútil. Depois de uma eternidade o porão abriu-se e a
jovem Tiombe foi lançada abaixo, nua, ferida,
inconsciente. As mais velhas, mais próximas,
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atenderam como podiam, acalentando como a um


bebê mas nessa madrugada a menina foi a primeira de
vários que morreriam naquele maldito lugar. Seu corpo
foi com todo cuidado sendo passado de um por um
ate um canto do porão. Nos dias seguintes outros
corpos se juntariam ao dela, somando aos odores ja
existentes ali o cheiro de morte, que seria nosso
companheiro dali para frente.
No décimo sexto dia começaram as hemorragias.
Vários em torno de mim começaram a sangrar nas
gengivas, queixar-se de dor, de dentes frouxos, e nada
incomum ver dentes caindo. Ate que a primeira vítima
desse novo vilão morreu, era o escorbuto atacando, a
deficiência aguda de vitamina C. O mais triste nisso
era que vi barris incontáveis de limões e laranjas
embarcados em nosso tumbeiro. Bastava um desses
barris despejado no porão e seria resolvido todo
problema.
No meio desse caos chorei lembrando que era
época do Oloroguúm, as monções na minha terra.
Época que clamamos aos deuses por chuvas fartas,
colheita boa, gado com saúde e mulheres férteis.
Chorei lembrando o cheiro das fogueiras, as yaôs
dançando em transe, Deuses montando homens,
falando aos homens, lutando por eles, e quando
percebi estava em meio ao meu choro gritando alto,
minha voz irreconhecível, rouca, quase um rosnado
selvagem, pleno em ódio. Gritava Ogunhê, patacory
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Ogum11, saudava o rei da guerra, o Deus que tendo em


sua casa água preferia banhar-se com sangue. Logo do
tombadilho veio uma ordem que imaginei fosse pra
me calar, algo bateu forte nas grades, mas o grito já
tinha ecoado nos corações dos meus irmãos. De vários
cantos do porão ouvia-se gritos de saudação a Ogum.
Senti olhos selvagens a minha frente... As correntes de
Otieno, filho do Daomé tremiam em seus pulsos...seu
corpo todo tremia, ate que se ouviu de sua boca
"Oogum kape dan megi dan pelu onibam" ( Ogum
chamou sua serpentes e elas se lançaram contra seus
inimigos) . Ogum estava na terra, estava ali com seus
filhos e filhas, estava no nosso brado, no nosso grito,
no nosso desespero. Meu coração pulou. Já não se
ouvia mais os homens do tombadilho gritando,
somente se ouvia o choro dos mais antigos, choro de
mágoas contadas a seus Deuses.
Em retaliação não derrubaram comida ao porão,
mas nossa maior fome tinha sido aplacada. Fome do
sagrado. Fome de sabermos não ser órfãos. Nosso Pai
guerreiro estava conosco, viajava para o novo mundo
conosco. Era estranho como o passar dos dias naquele
navio me despertava ideias. Passei a sentir saudade de
coisas que ate então eram detestáveis para mim.
Lembrei com lagrimas minha irmã Uboro, sacerdotisa
de Yansã, cozinhando e me obrigando a provar.
Saudade de Yanan, a mais velha, e seus conselhos
intermináveis sobre assuntos sem nenhuma

11
Ogunhê, patacory, Saudação do Orixá Ogum.
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importância, saudade de Aito e Bilia, as crianças,


voando pela aldeia em seus brinquedos imaginados,
em suas batalhas e gritaria com os invisíveis. Tudo
agora era parte de um mundo inacessível, passado.
Meu mundo agora tinha a cor do chumbo, o cheiro de
podridão e morte, e suas canções, ao contrario das da
minha aldeia, que contavam de batalhas épicas,
guerreiros, deuses e lendas, eram pontuadas por choro
baixo, gemidos de dor e muxoxos de tristeza. Sentia
falta de tudo, coisas que minha arrogância nunca me
permitiu darem valor. Percebi que a sabedoria
realmente mora com gente humilde como os anciãos
sempre falaram e nunca ouvi, percebi que não ha
honra alguma no orgulho, e em orgulho eu era
profissional. Assim chegávamos mais próximos aos
portos do novo mundo, sem sabermos que toda dor
estava só começando.
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Caís do Valongo, Rio de Janeiro

Percebi que estava chegando ao final nossa


viagem quando a agitação dos homens no tombadilho
aumentou consideravelmente, e comecei a sentir
pequenos solavancos do tumbeiro. Os cheiros
também em breve foram mudando, mesmo sendo
difícil perceberem pelo meu nariz saturado pelos
horrores do porão. Senti ao longe o indistinto cheiro
de maresia, de pescados frescos, e por incrível que
pareça senti o cheiro de grama, grama verde. Mas o
cheiro que mais me impressionou, tirou lagrimas de
mim, foi o cheiro de chuva na terra seca. Cheiro de
saudade, de frescor, de vida. Quando finalmente o
tumbeiro parou os porões se abriram e desceram
homens brancos armados, desnecessário porque
debilitados de corpo e alma como estávamos éramos
inofensivos. Foram nos soltando dos grilhões em que
estávamos e nos colocando a outros, que nos uniam a
outros escravizados por correntes, depois soube que a
esses grupos os brancos chamavam balões.
Empurrávamos-nos violentamente escadas acima,
muitos de nós vindos a cair e serem fustigados por
chicotadas. Quando sai do porão a chuva batendo no
meu rosto foi um bálsamo, mas meus olhos doíam
com a claridade do sol mesmo em meio a chuva fina.
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Vi a cidade do Rio de Janeiro pela primeira vez, e


o cais do Valongo12, que passaria a historia com a
tristeza do maior porto de desembarque escravo das
Américas. Ao lado se via o cemitério negro do
Valongo, valas imensas abertas na terra, onde meus
irmãos eram jogados sem nenhum gesto de
humanidade ou bondade. Vi o movimento incessante
no cais. Homens negros semi despidos com seus
corpos reluzentes de suor descarregando barris, fardos
e todo tipo de mercadorias, enquanto o tumbeiro
aonde eu vinha e mais outros dois já ancorados
despejavam em terra uma legião de seres famintos,
sujos, de mulheres tentando apesar das correntes
ocultar seus corpos quase nus em trapos rotos, e
crianças, crianças que apesar da fome e dor que
viveram ainda se maravilhavam com as novidades, os
olhos brilhando febris tentando capturar o máximo de
detalhes por onde eram empurradas.
Pararam-nos bruscamente em cima de uma laje,
próximo a um poço. E percebi grande comoção em
nosso "balão" quando homens rudes começaram
rasgar os trapos que vestíamos deixando-nos a todos
praticamente desnudos. As mulheres choravam
copiosamente tendo sua privacidade exposta assim, em
praça pública, enquanto homens, mulheres e crianças
brancas e bem vestidas passeavam próximos, nos

12
Cais do Valongo é localizado no Rio de Janeiro entre as atuais ruas Coelho e Castro e Sacadura
Cabral.Recebeu o título de Patrimônio Histórico da Humanidade pela UNESCO em 9 de julho de 2017 por ser o único
vestígio material da chegada dos africanos escravizados nas Américas.Construído em 1811 foi local de desembarque e
comércio de escravizados africanos até 1831. Durante os vinte anos de sua operação, entre 500 mil e um milhão de
escravizados desembarcaram no cais do Valongo.
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observando como se observa um bezerro que se busca


comprar.
Negros se aproximaram de nós com baldes de
água e esfregões rudes, limpando as crostas de sujeira
grudadas em nossa pele. Quando um deles se
aproximou de mim não resisti e perguntei, torcendo
que entendesse yorubá:
-"Arakunrin bi o ce le ce?" ( irmão, como você
pode?)
Ao que ele baixando os olhos me respondeu:
-"Mace ce idajÍ mi, ati pe a ko le sÍ ede wa, Íba ti
fonutolohun" (nao me julgue, e nao podemos falar
nossa lingua, rei dos fon)
Aquele homem me conhecia...meu Pai Sangó..eu
não lembrava seu rosto, sua voz, mas ele me conhecia,
talvez um súbito, um embaixador de outra nação...
-"Kini orukÍ arakunrin re?" (Qual seu nome
irmão?)
-"Nibi a ko ni awÍn orukÍ, ko si ede, ko si awÍn
ori Íba, nikan irora"(aqui não temos nomes, nem
lingua, nem deuses rei, só a dor)
Falou o triste homem antes que uma bofetada
estalasse em seu rosto e um homem forte, branco, o
empurrasse gritando em direção ao próximo a ser
lavado. Não pude esconder o meu olhar de ódio ao
homem, que não passou desapercebido por ele. Logo
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desceu sobre minhas costelas um vigoroso soco que


me tirou o ar. Segurando meus cabelos e gritando algo
que não entendi. E ao me soltar acabei caindo ao solo
arrastando outros acorrentados junto comigo. A falta
de ar do golpe não impediu de sentir a pele rompendo
com o contato com as pedras que cobriam o cais.
Senti mãos gentis me ajudando a erguer e vi um rosto
jovem, de um negro que parecia Nagô. Trajava roupas
parecidas com as dos brancos porém com pés
descalços. Ao ser chamada por uma idosa senhora
branca, ainda sussurrou ao meu ouvido:
- "Ko ikí ede laipe, oluwa mi yi, ifí ti o fi, awÍn
baba fi Í ni Ína naa. wÍn n gbe ni il yii nisisiyi. Mo le
bukun fun Í" (aprenda logo a língua, sobreviva meu
senhor, os encantados querem assim, os ancestrais
querem assim. eles agora moram nessa terra. que
Yemanjá13 lhe abençoe)
Aquele gesto foi um alivio a toda minha dor
naquele momento. Senti que apesar da degradação, das
correntes, da minha nudez, ainda havia uma espécie de
resistência silenciosa a tudo isso, que ainda havia
irmãos e irmãs, unidos pela ancestralidade e pelo
sagrado, e que tudo isso tinha que sobreviver, mesmo
custando nosso sangue, nossa vida. Inconscientemente
bati meus pés no solo, como afirmando a mim mesmo
que aquele agora era nosso solo, nossa terra, e como
um teimoso cacto, que insiste em nascer e viver em

13
Yemanjá, Deusa africana das águas salgadas, dos mares. Considerada a Mãe dos demais
Orixás.
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meio a secura também eu iria viver ali, nesse deserto


de dor que me trouxeram. Os encantados
sobreviveriam sim, os ancestrais não seriam
esquecidos. Agora germinaríamos nessa terra,
infiltraríamos nela nosso suor, lagrimas e sangue,
também nossa história, nosso passado, nosso eu.
Enquanto aguardamos todos serem lavados vi se
aproximar um homem branco estranho, vestia roupas
como mulher, mas todas elas pretas, e deveria ser
muito importante, pois alem de um negro escravizado
trazia ainda dois jovens brancos vestidos estranho
também, porem de vestes brancas. Onde passavam os
outros brancos abriam passagem e muitos beijavam a
mão do homem, onde se via um enorme anel
brilhante. Aproximou-se do homem que me batera
mais cedo e falou algo para ele. Ele de pronto saiu
correndo buscar algo. Em pouco tempo voltou
acompanhado com um homem branco franzino, tão
branco como nunca tinha visto. No rosto presos com
metal pedaços de vidro sobre o nariz, que pareciam
incomodar o visto arruma-los todo tempo. Um
negrinho os seguia trazendo um pesado volume como
já tinha visto usarem no Porto do Adeus, era
composto por uma capa de couro e finas folhas em
seu interior.
O homem de preto aproximou-se da primeira
escravizada de nosso balão, e tendo em mãos algo
brilhante de metal lançou-lhe gotas de água ao rosto,
enquanto falava com o franzino, que apoiando o
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volume nas costas do negrinho, e usando uma pena,


riscava algo nas finas e alvas folhas. Parecia tão exótico
tudo que cheguei a esboçar um sorriso, para minha
infelicidade quando os homens estavam já próximos
de mim. Rapidamente o homem mais rude, que me
agredira antes, lançou-me uma sonora bofetada e
gritou algo. O homem de Preto jogou a água e o
franzino anotou em suas folhas. O abrutalhado
pegando meu rosto com sua mão enorme e áspera
repetia:
-Joaquim Fon...teu nome negro..Joaquim Fon.
Sinceramente não entendia nada daquilo e
lembrei da frase do jovem bondoso...aprende a
língua...tentei desajeitado repetir:
-Juquim fon...nom nego..Juquim.
Os homens riram debochadamente e não saberia
se fui bem ou não naquela hora.
Alguns balões junto com o meu foram levados a
um grande depósito, ali mesmo, no porto. O chão
coberto com palha seca era confortável. Ouvia o
tamborilar da chuva que engrossava la fora. Entraram
alguns escravizados com grandes tachos e nos
serviram comida...Kao Kabiecile14, comida de verdade
finalmente, morna quase quente, cheirosa, limpa...
Deixaram ao alcance das correntes alem dos tachos de
comida um barril de água fresca e canecas de estanho.

14
Saudação do Orixá Xangô.
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Todos nos servimos fartamente, e saciado encostei a


cabeça em um dos troncos que mantinham o telhado e
adormeci profundamente.
Não sei quanto tempo passou ate que no meu
sono ouvisse longe gritos desesperados. Sacudi a
cabeça tentando banir de vez o sono e percebi que não
era sonho, alguém gritava desesperadamente. As
mulheres e crianças do balão começaram a chorar,
quando percebi que um dos negros que nos trouxera
comida, deve ter ficado de guarda imagino. Ele olhou
para fora do galpão e vendo que não havia ninguém
começou falar em yorubá:
-Olha bem..aprendam. Se falar nossa língua...
Trinta chicotadas! Se falar nosso nome... Trinta
chicotadas! Teu nome agora e de branco, o nome que
o padre te deu quando te jogou água. Aprende logo a
língua de branco, aprende logo o nome de branco, e
qualquer coisa usa o nome do deus dos brancos, Jesus.
Só podemos rezar pra ele! Senão te matam.
Dizendo isso cuspiu no chão com desdém
olhando os brancos passarem fora do galpão e voltou
para seu canto.
Não consegui, apesar do cansaço, adormecer
enquanto os gritos de desespero não pararam la fora, e
continuaram ate o entrar da noite. Passamos assim os
próximos quatro dias, comida boa e farta, água, e
apesar do incômodo das correntes e de pessoas que
vinham nos olhar como se fossemos animais a
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exposição, perto do que passamos no tumbeiro


estávamos confortáveis.
No quinto dia cedo pela manhã, a chuva tinha
voltado e sobre todo o lugar havia uma bruma de calor
úmido e sufocante. O rapaz que nesses dias passara
seu tempo nos vigiando e alimentando acordou com a
entrada de quatro ou cinco homens armados, que
começaram a nos arrastar de volta ao porto, ao cais.
Ancorado estava um velho patacho, e em seu convés
homens com roupas estranhas aos outros que já
viramos. Usavam calças muito largas nas pernas, e nos
pés calçados com longos canos. Usavam chapéus
arredondados e quase todos traziam aos pescoços
lenços vermelhos. Nas cinturas usavam cintos largos
sobre faixas que pareciam de lã crua, e longas adagas
nuas aparecendo na cintura.
Entramos no patacho e diretamente ao porão,
mas este era muito diferente do tumbeiro. O porão era
bem menor e mais ventilado, em um canto totalmente
preenchido por barris e volumes de carga. Nesse
momento não sabíamos, mas uma viagem ainda longa
nos aguardava ate o Porto de Rio Grande. Os escravos
que trabalhavam no porto do Rio de Janeiro acabaram
de abastecer o Patacho, e logo estávamos a caminho.
O mar calmo balançava suavemente a
embarcação, e adormeci pensando se o pior já não
tinha passado, afinal, nos últimos dias tínhamos sido
alimentados, e nenhuma agressão, como no inicio.
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Ate as meninas de nosso balão pareciam pensar


assim. Via as mais velhas traçando e desembarcando o
cabelo das mais novas vi alguns sorrisos, e o medo ia
desaparecendo de seus olhos. Mal sabia ainda o que
nos aguardava.
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Porto do Desterro

No quarto dia de viagem minhas narinas ardiam


com o salitre no ar. O tempo denso e abafado fazia-
nos transpirar em profusão. Os movimentos do
patacho passaram a ser mais agressivo e enjoativo.
Ouvíamos ao longe trovoadas cada vez mais fortes e
os raios cortavam o céu vazando sua luz pelo gradil do
porão. Lembrei-me de Yansã, a linda Deusa da
tempestade, queria acreditar que os raios eram sua
fúria pelo que estávamos passando.
Finalmente no entardecer do quinto dia a
tempestade lançou-se com toda sua fúria sobre nós.
Ouvíamos os homens de o tombadilho gritar uns com
os outros, pois o único modo de se fazerem ouvir
acima do medonho som do temporal era gritando.
Certo momento parecia que íamos sucumbir tal força
éramos jogados pelas ondas encapeladas.
A tampa do porão abriu-se violentamente quase
sendo arrancada de suas dobradiças e dois homens
desceram rapidamente. Pareciam nervosos, e o mais
jovem relutante ate em caminhar. Observaram bem a
nós todos e separaram das correntes Baka, o ancião, e
Chimwalla, também a mais velha das mulheres.
Não consegui acreditar nem esboçar movimentos
quando senti no meu rosto um jato forte e quente, era
o sangue de Baka, só então notei nas mãos dos
homens as longas adagas que antes tinha visto em seus
P á g i n a | 26

cintos. Os dois anciãos jaziam degolados, sem vida, o


sangue escorrendo pelo chão do porão. Ouvia como
em um sonho meu próprio grito ecoando e o choro
das mulheres. Quando notei os homens tinham subido
ao convés e em seu lugar dois crioulos15 desceram.
Traziam nas mãos sacos de aniagem rústicos com os
quais envolveram os corpos. Eu ainda ouvia meus
gritos com eles como se nem fossem meus. Um deles
ficou tão incomodado que tentou falar em minha
língua, aprendida com certeza com os pais ou mais
velhos:
-"Ni oye, a gbÍdÍ calawÍn iwuwo nikan nigbati
awÍn igbi omi bii wa." (Entenda, o peso tinha que ser
aliviado senão as ondas nos tombavam).
Os anciãos foram levados um a um para o
convés, e mesmo com o barulho do temporal ouvi
nitidamente o baque de seus corpos ao mar. Meu pai
Sangó, que mundo é esse, com tanta carga podendo
ser jogada ao mar, mataram dois anciões, dois
detentores da sabedoria, do conhecimento, sem
pestanejar. Kao meu Pai, que mundo hediondo, que
mundo perverso onde homens valem menos que
grãos, lã, ou seja o que continham aqueles fardos e
barris. Que mundo meu Pai, Senhor de todas as
Justiças.
Após algumas horas entramos no porto de
Desterro16 ainda sobre forte tempestade, mas maior
15
Criolo era assim chamado o negro nascido já no Brasil.
16
Desterro, atual cidade de Florianópolis.
P á g i n a | 27

era a tormenta da minha alma inquieta com tudo isso.


Ainda sentia o cheiro do sangue dos mais velhos,
apesar da chuva que caia pelas frestas da tampa do
porão ter lavado de fato tudo. Ainda via o olhar doce
de Chimwalla, a mais velha. Lembrei-me de sua voz
tremula ainda no tumbeiro, entoando rezas baixinho,
clamando por força, misericórdia. Partiam desse
mundo deixando-nos mais órfãos. Órfãos de sua
sabedoria, seu afeto, seus conselhos. Partiam sem
direito a um Eressum17, sem rezas, sem nada..
Acolhidos pelas águas bravias e revoltas voltavam pra
Africa.
Ancoramos mas o resto daquela noite não
consegui dormir. Algo havia se quebrado em mim,
vinha se quebrando desde o tumbeiro e finalmente
rompeu-se. Aproveitei-me da escuridão da noite
tempestuoso e chorei como nunca me permiti. Estava
exausto, alquebrado, minhas forças e esperanças
haviam chegado ao final. Nesse momento daria tudo
por uma faca, ou uma das ervas de mal pressagio das
Yamii18, que interrompem o fio da existência.
Minha mente só tinha desejos de morte, nem
para vingança tinha forças. Pensava tudo isso quando
senti o mexer de correntes perto de mim e uma
pequena mão procurando minhas lagrimas para seca-
las.

17
Eressum, Ritual africanista de desenlace do defunto a esse mundo.
18
Yamii Oshoronga, Divindades que formam uma Trindade, pois são três irmãs. Tecem o
destino dos homens em seus teares. Também chamadas respeitosamente como as Velhas
Tias.
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-Sou eu Rei, Dikeledi, filha de Abunan, não chore


mais Rei, vi Yemonja, a mãe peixe...Ela manda lhe
falar que guarde suas lágrimas para regar a semente.
-Que semente criança? Tiveste um sonho...
-Não Rei dos Fon, tão certo quanto sou uma
Princesa, e que minha vida será amarga nessa terra,
pois minha Mãe já me mostrou, não sonhei. A Mãe
peixe manda lhe falar que és um desses barris.
Carregas em ti sementes, a Africa já era pequena para
nossos Deuses Rei, Eles estão de mudança, e nós, nós
somos as sementes que trazemos Eles para esse solo.
Seremos regados com dor, sangue, lágrimas, mas
floresceremos. Agora dorme meu Rei, dorme e sonha
com esse novo mundo que a África preparou. Sonha
com tempos que vão vir...dorme!
De repente senti um cansaço inumano, como se
meus olhos pesassem mais que mil javalis... Senti meu
corpo escorregar pelo assoalho e o colo miúdo de
Dikeledi me acolher, sua mãozinha pequena afagando
meu cabelo, e já dormente me pareceu ouvir sua voz
acompanhada pela voz rouca de Chimwalla entoarem:
-"Yemoja sélè olodò bàbà òròmi wou Yemoja
elemí jà’lé wou bàbà
Òròmi wou “ (Yemanjá perdeu um filho, Proprietária
do rio, do cobre, Espírito
do agua,Yemanjá proprietária de vida, luta pela casa,
OH! Espírito do
cobre e da água)
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Apesar do frio nunca conhecido por meu povo


nessa intensidade, adormecer ouvindo aquela reza me
aqueceu o corpo e a alma. Parece que cada músculo do
meu corpo lutou bravamente expulsando a sombra da
morte, a vontade de morrer em mim, e exaustos
tombamos, meus músculos, minha mente. Só sentia as
vozes de Chimwalla e Dikeledi, a mão suave dela em
minha cabeça, a inocência dela tocando meu "ori",
morada de meu Orixá, e dormi pesadamente.
Acordei pela manha, um solzinho débil insistia
em quebrar o gelo da noite e vazar pelo porão como
pequenos raios de esperança. Ficaríamos ainda no
porto da cidade de Desterro por mais dois dias, mas
sem sairmos do porão e sem maiores incidentes.
Gymbiàá, uma jovem hausa instruída, tentava acalmar
as crianças contando histórias, e confesso que
agradaram mais aos adultos que aos infantes. Lembro-
me desses dias e sorrio. Vem a mente o idoso
Babatunji, da Guiné, torcendo as mãos, os dedos
ossudos, cheio de ansiedade, falando toda hora:
-fale logo menina.
-e dai?
-oooh coitados.
Foi o mesmo Babatunji, sacerdote e oráculo de
Ifá, o Deus africano da adivinhação, que na nossa
ultima noite em Desterro nos acordou a todos se
sentando, em transe, primeiro balbuciando
P á g i n a | 30

incompressivelmente, depois apontando seu dedo


ossudo em minha direção falou:
-"Adelabu" (A coroa passou por mares
profundos). Essa e tua djina19, teu nome secreto Rei.
Tua coroa viverá em caras negras e brancas livres, em
xirés20 livres, o atabaque soará nesse lugar, o cheiro do
epô21 invadirá as casas. Teremos cavalos brancos
montados por Deuses negros, tua coroa passou o mar,
passou águas profundas.
Falando isso tossiu, resmungou algo e
acomodou-se de novo soltando uma alta flatulência
que fez a todos sorrirem, como se nada lembrasse e
nada acontecesse. O sagrado, nosso sagrado e assim.
Permeia nossa vida diária, entranha-se, molda-se como
se sempre assim o fora. Esse sagrado que nessa noite
me deixou pensativo, cismado, a palavra Adelabu não
me saia da cabeça mas ao mesmo tempo sentia que o
sacerdote havia visto tempos muito a frente, tempos
onde nenhum de nós teria vida nem fôlego. Pela
manhã partimos novamente ao mar alto, rumo a
cidade de Rio Grande. O frio do extremo sul nos
afetava demais e cada vez mais fazia com que nos
amontoássemos uns nos outros, buscando calor.

19
Djina é o nome secreto dado ao Orixá no momento de sua feitura, sabido só pelo iniciado e
pelo Pai oi Mãe de Santo.
20
Xiré, Roda formada pelos iniciados de Batuque, onde se dança para os Orixás.
21
Epô, Azeite manufaturado com o coco do dendê.
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Rio Grande de São Pedro

Entramos na barra de Rio Grande ainda de São


Pedro nas primeiras horas da manhã. Quando
atracamos no porto já havia grande movimento de
pessoas. Gritos dos pescadores, resmungos dos
escravos carregando e descarregando embarcações. Os
cascos dos cavalos batendo no calçamento estilo
lisboeta, o Entramos na barra de Sao Pedro do Rio
Grande ainda nas primeiras horas da manhã. O cheiro
do café e frituras vindo do mercado público, tudo isso
se juntava e nos aturdia. Esses cheiros me reviraram o
estômago e só então percebi que devido ao temporal e
tudo o que aconteceu não fomos alimentados, estava
faminto, sentindo a cabeça girar. Tiraram-nos do
porão e vimos finalmente o cais. A nossa direita havia
uma construção solida, porém aberta por todos os
lados, onde se misturavam a ser comercializados tanto
negros, quanto pescados e legumes da região. Mais
alem um grande prédio, o Mercado Público. E entre
estes prédios uma praça que servia aos arremates e
leilões do meu povo. Quem olhasse a esquerda veria
imponente o prédio lindamente acabado da Alfândega,
em todo seu esplendor. O homem que nos conduzia
pelas correntes entregou a outro um maço de folhas, e
esse em retribuição entregou-lhe uma sacola de couro
cru, que pelo tilintar portava moedas, provável paga
pelos seus serviços.
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Apesar do intenso frio no lugar, o homem


chamou garotos criolos que passaram a colher água da
lagoa mesmo e jogar por cima de nós. A água gelada
caiu na minha pele como milhões de finas agulhas
causando uma dor aguda. As crianças começaram
chorar instantaneamente com isso. Fomos arrastados
violentamente ate a praça, onde um homem atiçava as
brasas de um grande aparador, parecido com o que ja
vira usar por ferreiros no Daomé. O homem olhou as
folhas que o outro trazia e nos separou em dois
grupos. Notei no aparador em brasas, vários ferros
incandescentes, como os que já vira usarem para
marcar gado, mas me perguntei por onde passariam
tantos bois, pelo meio de toda essa gente e bancas. Ao
canto, sentada, uma velha com aparência de índia
mascava fumo e misturava em um tacho, pelo que
pude observar, pimenta, sal grosso e aguardente. Um
grito de dor chamou minha atenção e vi revoltado um
negro já de certa idade caído junto a um pesado cesto
de vime, enquanto um branco o chutava e fustigava
com um tipo de chicote curto, para que se erguesse.
Imediatamente esqueci minha condição e me lancei
em socorro do idoso, mas para minha surpresa quase
cai quando o grilhão me segurou o pescoço. Ouvi o
homem do aparador gritar algo como :
-Te aquieta negro do inferno!
A muito custo me recompus, e o pior que para
todos que passavam e ate para o coitado que apanhava
P á g i n a | 33

parecia algo normal, nos seus olhos so se via


acomodação com tudo isso.
O homem que gritava comigo falou algo com o
que nos conduzia e este me separou dos outros,
atando minhas correntes e grilhões a uma coluna onde
se viam argolas. Eu não entendi no momento o
porquê disso, nem o porque do homem me segurar
tão firme contra a coluna. Vi o ferreiro remexer as
brasas com um dos ferros de marcação, e tira-lo
incandescente do braseiro. Minha mente não queria
aceitar o que viria devido a falta de senso e crueldade.
Aproximou o ferro em brasa de mim e sem aviso
pressionou-o com toda força contra meu peito. O
cheiro de carne queimada e a dor lancinante causou
um efeito estranho no momento. Fiquei entorpecido,
parecia ter tomado vinho de palma. Só recobrei meu
sentido quando a velha índia numa agilidade
surpreendente para alguém de sua idade encharcou um
trapo fétido naquele tacho com a mistura por ela
preparada e emplastou meu peito ferido. A dor da
pimenta, cachaça e sal grosso na queimadura grave
deixada pelo ferro me fez urrar como um animal, e
creio que desmaiei após por nada mais me lembro
depois, só de estar acorrentado próximo de uma das
portas do mercado, esperando nosso dono chegar.
No meio do mar de carroças, carruagens e
pessoas a cavalo, notei que uma delas aproximou-se de
nosso grupo. Só ai me dei conta que todos nós
tínhamos sofrido a mesma bárbara marcação a fogo,
P á g i n a | 34

não foi somente algo pessoal comigo mas sim,


pasmem, um costume com todos escravizados.
Olhando melhor os escravizados que trabalhavam por
ali, semi desnudos, vi que todos portavam algum tipo
de marca igual, no peito, costas, ou coxa. Algumas já
se via pela cicatrização, serem bem antigas.
Via grande quantidade de escravizados nas mais
diversas tarefas possíveis. Uns descarregavam os
navios, enquanto outros limpavam peixes, os vendiam,
engraxavam botas e calçados, crianças com cestos de
Paes, doces e frutas tentando vender aos passantes,
mulheres carregando em suas cabeças tinas de água ou
roupas lavadas, e o pior, negrinhas novas ainda,
oferecendo seus corpos aos marinheiros e passantes.
Impressionava-me que nestes que citei, não via
próximo seus proprietários, cheguei a pensar se já não
seriam libertos, mas o desencanto e medo estampado
em seus olhares desmentia isso, bem como o modo
como baixavam as cabeças, num misto de repúdio e
vergonha, ao passarem por nós, os acorrentados. Duas
rústicas carroças pararam na nossa frente e da primeira
desceu um mulato, com aspecto hostil. Desceram
também mais três homens ao todo, todos
notoriamente escravizados, que sobre as ordens do
mulato começaram embarcar nas carroças fardos,
barris e provisões. Quando o mulato concluiu o
embarque o ferreiro se aproximou do mesmo com
folhas nas mãos, ao que o mulato molhou o dedo
numa espécie de almofada, esfregando o dedo sujo de
P á g i n a | 35

tinta nas folhas, recebendo depois permissão para


soltar do pilar nossas correntes.
Já imaginava como caberíamos nas carroças,
visto estarem lotadas e nós sermos muitos. Um dos
acorrentados tentou se aboletar na carroça recebendo
um puxão na corrente pelo mulato, que o lançou ao
chão. O mulato rindo com uma boca onde se viam
dentes escuros e podres gritou algo ao negro enquanto
atava as correntes ao final da carroça.
Seguimos assim pelas ruas, divididos em dois
grupos, meio caminhando meio sendo arrastados pelas
carroças. Minha maior preocupação eram os idosos e
crianças não acompanharem o ritmo e serem
arrastados pelas pedras. Apesar de tudo ainda pude
observar na Praça maior, em frente ao mercado,
crianças brancas brincando acompanhadas de suas
amas negras, e uma delas ainda com um negrinho de
cinco ou seis anos que servia como montaria ao
menino branco, que a imitação de um cavaleiro,
fustigada sua "montaria" com uma varinha, exigindo
que o negrinho relinchasse como um cavalo.
Abruptamente sai das minhas observações
quando algo me atingiu o peito. Olhei e percebi uma
metade de laranja, meio comida. Por infelicidade o
suco ácido da fruta escorreu lavando o ferimento
recente da queimadura do ferro em brasa, causando
uma pontada atroz de dor. Ouvi os risos e vi de onde
a laranja tinha vindo. Dois meninos brancos
P á g i n a | 36

acompanhados por uma ama escrava riam-se do feito.


Um deles, o maior, começou a produzir sons e andar
imitando os gestos de um macaco, ao passo que o
outro e a ama riam-se dele. A ama quando percebeu
meu olhar duro sobre ela abaixou o olhar,
envergonhada, mas mal sabia ela que eu estava mais
envergonhado que ela. Envergonhado por nossa gente
servir de montaria. Envergonhado por ver nosso povo
rindo da crueldade imposta sobre nossa própria gente,
e envergonhado por não saber se eu mesmo não agiria
assim, debaixo das botas dos meus opressores.
Vergonha era tudo o que tinha nesse momento, alem
da dor física, e da dor da minha alma confusa.
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O Casarão

Chegamos a uma casa enorme, em uma rua onde


por sinal só se viam casas enormes, cheias de árvores
em seu entorno. Janelas e portas amplas e ventiladas, e
sem exceção, todas elas com grandes pátios. As duas
carroças que nos arrastavam entraram por um grande
portão de ferro que conduzia a um lindo pátio com
pomar, tudo muito bem cuidado. Via-se em todo
trajeto negros e negros, ocupados das mais diversas
funções. Cuidando as plantas, lavando e secando
roupas, transitando com cestos e baldes para o interior
da enorme casa. Gente branca não vi nenhuma
naquele momento.
As carroças adentraram mais ao fundo da casa e
vimos grandes galpões de madeira, um deles aberto, e
por sua entrada via-se nele grandes sacos, ferramentas
de diversos usos, utensílios pendurados que pareciam
ser para carroças e montaria. O outro galpão, maior
em tamanho, este sim parecia um mistério. Sem
janelas, sem portas abertas, nada que desvendasse seu
conteúdo. E foi justamente na frente desse galpão que
as carroças pararam.
Quando um negro cabra22 chegou perto de nós,
seu olhar frio confesso me causou arrepios. Olhava a
todos nós ,um por um, detalhadamente como se
avaliando cada detalhe mais sutil, analisando o risco ou

22
Cabras eram chamados negros filhos de negros africanos com mulatas.
P á g i n a | 38

incomodação que poderíamos causar a ele. Vestia uma


daquelas calças largas nas pernas, uma camisa grossa, e
na cinta, alem da adaga que tanto usavam aqui, ainda
trazia um horrendo e escuro chicote de tira de couro
trançados. Preso ao cinto ainda, tilintava um grosso
molhe de chaves grandes. Ele calmamente escolheu
uma e dirigiu-se a porta trancada do galpão, abrindo-a.
Ao escancarar a rústica porta uma lufada de ar viciado
e abafado escapou ao pátio, mas meus olhos
ofuscados pelo sol não podiam imaginar o que se
guardava ali, na escuridão.
Os auxiliares do negro cabra nos puxaram para
dentro do galpão e a medida que meus olhos foram se
acostumando com a pouca luz, avistei talvez uns trinta
escravizados, todos presos no galpão. Homens,
mulheres, crianças, todos sentados no chão gelado
recoberto por palha seca, alguns apertando os olhos
fustigados pela claridade vinda do pátio. Fomos presos
em argolas que pendiam de travas grossas de madeira,
mas diferente do tumbeiro, as correntes eram o
suficientemente grandes para nos proporcionar algum
movimento.
A essa altura, já totalmente acostumado a
obscuridade do galpão, passei a observar melhor meus
companheiros de infortúnio, assim como nosso grupo
recém-chegado era observado por eles, talvez na
esperança de não ver entre nós nenhum de seus
queridos que ficaram em liberdade na África.
P á g i n a | 39

Percebi que se aproximou de mim um ancião,


carapinha23 já bem embranquecida pelos anos, assim
como a barba que apresentava.
-Sou João, todos me chamam de Pai João por
aqui, pela minha sina nessa terra como reprodutor.
Gerar mais escravinhos para a fome incontrolável de
ouro da Senhora Branca nossa dona.
-"Olakunde, Íba ti fonutoonu naa" (Olakunde, rei
dos fon)
-Ah meu bom amigo jovem, três erros em uma
frase, e todos três te levam ao tronco...Olakunde FOI
teu nome, passado, hoje teu único nome é o que te
deram no porto na hora do batismo. Se ouvirem isso,
trinta chicotadas. Yorubá FOI tua língua, agora
falamos a língua dessa terra, mais trinta chicotadas. E
meu amigo, aqui não há reis, rainhas, princesas,
sacerdotes. Existem somente escravizados. E isso, se
ouvem, uma novena, ou seja, nove dias à trinta
chicotadas por dia. Total dos teus erros dá trezentas e
trinta chicotadas se meus miolos de velho não erraram.
Vamos recomeçar então... Meu nome é Pai João.
-Juquim...nom meu Juquim
-Ah criança temos muito que aprender- disse
com um riso gostoso o preto- Joaquim, repete comigo,
Joaquim.
-Jo..a..quim!

23
Carapinha, Cabelo denso e crespo, próprio de gente negra.
P á g i n a | 40

-Isso -disse batendo palmas- repete, Meu nome é


Joaquim!
-Me nom Jo.a.quim.
-Pronto, para inicio está ótimo meu filho, ótimo.
Vamos aprendendo com calma, e com descrição te
explico na língua de nossa terra as coisas. Ótimo.
Pai Joaquim foi interrompido pela entrada de
dois negrinhos trazendo água e comida, bem como
roupas, grossas e simples, feitas de saco.
-Negrada- disse um deles, de olhar arrogante-
tratem de comer e depois se vestir que nem gente, não
que nem uns macacos imundos. Mais tarde a baronesa
quer vê-los.
P á g i n a | 41

Conhecendo a Baronesa

Havíamos nos alimentado e depois, com o


Maximo de pudor possível, vestido as roupas rústicas
que nos ofereceram. Eram grossas e agrediam a pele,
mas eram quentes, e a temperatura nessa região caia
cada vez mais. As pontas dos dedos chegavam a ficar
anestesiadas pelo frio e ainda era pela tarde. Imaginava
a noite nesse lugar como seria.
A porta do galpão, que ouvi chamarem de
Senzala, abriu-se e o negro cabra entrou novamente,
trazendo em sua mão o chicote escuro de couro
trançado. Olhava com ferocidade a todos nós, havia
algo diferente em seu olhar, em seu andar, e quando
ela entrou percebi o que era. Ele queria ser notado
pela Baronesa, ser reconhecido por seu trabalho.
-De pé negrada, rápido, a senhora Baronesa não tem
tempo para perder com vocês – gritou o cabra.
Levantamos todos e o homem separou-nos em
homens e mulheres. A Baronesa, uma mulher muito
branca e muito magra, vestida totalmente de preto dos
pés a cabeça, passou a olhar cada mulher e menina do
grupo, as vezes sinalizando uma ou outra que era
separada em um canto. Depois foi a vez dos homens e
se repetiu o mesmo processo. Fiquei no grupo onde
haviam homens mais idosos, enquanto no outro
restaram somente os bem jovens.
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-Antenor – disse a baronesa ao cabra – leva esses pra


senzala de dentro e os outros amanhã seguem para as
fazendas, depois te digo quantos vão para cada.
Já quase na porta do galpão, a Baronesa virou-se
numa ultima olhada aos cativos. Entre eles, Njanu, um
jovem quase menino, negro bantú24, que tinha
recebido aqui o nome de Manoel. Vi nos olhos da
Baronesa um brilho maldoso de cobiça olhando o
corpo jovem de Njanu, ainda forte apesar das
provações recentes.
-Esse- apontando o rapaz -manda banhar, da
roupas decentes e coloca no quartinho perto das
mucamas, mas tranca, sabes bem porque.
Saindo a mulher odiosa o negro cabra com um
sorriso amargo, onde se notava uma ponta de inveja,
soltou o jovem Manoel e com um empurrão o
entregou aos seus auxiliares.
-Leva esse imundícia. Baronesa mandou está
mandado. Vai saber o que viu nessa praga.
Saiu batendo com força a porta do galpão,
deixando no ar uma fina camada de pó, pairando
sobre nós. Os auxiliares do cabra trataram de mover
nosso grupo para o interior da casa por uma porta aos
fundos, que dava acesso a uma grande cozinha. O
outro grupo permaneceu no galpão, aguardando os
desejos da Baronesa.

24
Bantú, Uma das etnias africanas dos escravizados.
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Senzala de dentro

Entrando pela cozinha da casa grande passamos


por um corredor estreito, ate nos depararmos com
uma porta pesada que foi aberta por um dos auxiliares
do cabra. Atrás da porta havia um grande salão, gelado
devido a janelas gradeadas sem vidro, ao nível do chão
do pátio. Parte do piso era coberto por palha seca
cuidadosamente arrumada, e em um canto havia um
amontoado de mantas de lã crua e pesada. Em outro
canto dois baldes de lata que presumi serem para as
necessidades fisiológicas dos meus colegas de
infortúnio. Toda a peça era iluminada pela luz da rua
que entrava pelas janelas sem vidro mas tambem se
viam tochas pelas paredes. Nas paredes de um dos
lados havia argolas de metal presas na parede que
adivinhei logo para que servissem. E próximo a parede
das argolas vi também uma estrutura em madeira bruta
que pela forma parecia servir para manter imobilizados
mãos e pés.
Pelas janelas percebi que a noite já chegava e
senti nos ossos um frio indescritível vindo com o
vento, que os do lugar chamavam de Minuano25. O
negro Cabra, que chamavam feitor, entrou causando
medo em todos.

25
Vento minuano ou simplesmente minuano é o nome dado à corrente de ar que tipicamente acomete os
estados brasileiros do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. É um vento frio de origem polar
(massa de ar polar atlântica), de orientação sudoeste, algumas vezes também classificado como cortante.
P á g i n a | 44

-Negro João, vamos logo que a Baronesa ja


separou uma das novas. Quer uma cria dela para
ontem.
Pai João se ergueu pesadamente e ao passar por
mim desviou envergonhadamente seu olhar do meu.
Pobre Pai João, não sabia que apesar de eu não falar a
língua local ja a entendia um pouco, assim como já
tinha aprendido que a nós escravizados, restava fazer o
que ordenavam e permanecer vivos para um dia dar o
troco. Ainda pensando nisso agradeci a cuia de comida
que uma das escravizadas me alcançava, comi em
silêncio e tratei de me enrolar numa das mantas de lã,
tendo por colchão a palha seca. Procurando aplacar o
frio intenso adormeci assim.
Acordei com um cheiro gostoso invadindo
minhas narinas. Duas anciãs estavam agachadas junto
a um tipo de fogareiro, alimentado o fogo com carvão,
e sobre esse braseiro borbulhava um tacho de lata que
perfumava de café toda a senzala. Quando me viram
acordado fizeram um gesto para que me aproximasse e
me brindaram com uma caneca fumegante. Tomar
aquele café espantou todo o frio da noite. Mesmo
sendo escuro lá fora agora o vento amainava e o ar se
tornava mais suportável.
A porta foi aberta e Pai João passou por ela,
cabisbaixo, soturno. Sentou-se ao meu lado sendo
servido também de uma caneca de café. Uma das
anciãs olhou com pena para ele. O pobre homem se
P á g i n a | 45

remoia de angústias e isso transparecia em seu rosto


sulcado pelo tempo, mas ainda forte.
-Joaquim, tu vai sair comigo por uns dias. A
patroa permitiu que tu me ajudasses nas entregas e
mandaletes pela cidade, e assim já conheces esse
“paraíso” que é Rio Grande de São Pedro.
-Pai João, ontem...
Tentei começar falar, mas a mão do negro
interrompeu o diálogo, erguendo-se firme a frente de
seu rosto.
-Filho nos poupa dessa conversa. Um dia falamos
sobre isso. Toma teu café e vamos.
Terminei meu café, agradeci, e vi se levantar
aquele homem remoído de lembranças dolorosas.
Seguimos ao pátio onde a carroça já nos aguardava
com o cavalo preso a ela, as cargas e tachos todos
colocados em seu interior. Seguindo as ordens de Pai
João subi na carroça junto à carga, amparando-a para
que não caísse ao chão de tão carregados íamos.
Pai João tratou de, com destreza, tocar os cavalos
para alem dos portões da propriedade da Baronesa.
Tão logo saímos ele começou a falar mansamente,
como era de seu próprio costume.
-Meu filho, pedi esse favor de te deixarem vir
junto porque assim podes ir aprendendo a língua dessa
gente, bem como conhecendo a cidade e as pessoas.
Aqui nem só porque e negro é de confiança e nem só
P á g i n a | 46

porque é branco é ruim. Acostuma-te com isso. Aqui


senzala tem ouvido, rua tem ouvido, e tu, guardas tua
língua o mais que puder, e nunca fala de quem fosses
no passado, na nossa terra. Aqui muitos de nossa
gente guardam mágoas de tua gente coroada, culpam
os reis pelo cativeiro.
-Mas como sei em quem confiar Pai? – disse em
minha língua atravessada.
-Tu vais aprender calma, o tempo ensina tudo
meu filho, e os olhos! Cuida os olhos das pessoas. Às
vezes a boca fala uma coisa e os olhos outra. Fica
sempre com a fala dos olhos.
P á g i n a | 47

Primeiro olhar da cidade

O casarão da Baronesa ficava em uma rua


chamada Rua do Poço26, que desembocava na Praça
do Poço27, onde ficava o poço público que abastecia
toda a cidade. Pai João me falou que ali começava a
cidade. Um forte de nome Jesus, Maria e José foi
construído exatamente ali, mas desse forte não se via
mais nada agora. Só o Poço, e os escravizados que dele
tiravam água. Moleques com cestos enormes na cabeça
vendiam quitutes e frutas, enquanto Yas idosas
vendiam frituras e lavavam roupas branquíssimas na
beira do poço. Pai João colocou a carroça a uma
sombra e um dos moleques correu para tomar a
benção do ancião e lhe oferecer uma laranja. Os olhos
escuros e brilhantes do menino me fitaram enquanto
me estendia na mãozinha uma laranja.
-Obrigado, não precisa. – falei com pena do menino.
-Aceita filho – disse Pai João discretamente – senão
ele se magoará.
Estendi a mão para a fruta e agradeci o menino,
que transbordou de alegria com isso. Saiu pela praça
correndo e cantando coisas de moleque, enquanto
oferecia aos passantes suas frutas.
Pai João me apontou um prédio imponente na
esquina de frente a praça do Poço.
26
Rua do Poço, atual Rua Andrade Neves.
27
Praça do Poço, atual Praça Sete de Setembro.
P á g i n a | 48

-Ali filho, o Hospital Carmine, das irmãs de


caridade, da Ordem das Carmelitas. Maria Cabinda28,
mãe de Pedrinho, o moleque das laranjas, morreu aqui
mesmo, ano passado, de Hemoptíase29, e ninguém
ajudou... As irmãs de caridade e seus rosários, cruzes e
cristos passavam ao largo. Somos as rodas invisíveis
que movimentam essa cidade. A pobre negra esvaiu-se
aos olhos do filho, sem nenhum socorro. Eu cheguei
ainda para ver a triste cena.
-Pobre criança vendo isso tudo... E ainda alegre
hoje, correndo.
-Mamãe Oxum30 abraçou o pequeno, hoje ele é
Dela. Agora vamos ao encontro das freiras Carmelitas.
Dona Baronesa tem um acordo de buscar lavagem
para os porcos no hospital.
Chegamos ao Hospital Carmine, um enorme
prédio bem de esquina, e entramos por um portão
lateral. Haviam grandes tinas de restos de comida que
Pai João mandou despejar em dois barris da carroça.
Enquanto fazia isso não pude deixar de pensar que
aquela lavagem de porcos era melhor que aquilo que
nos jogavam no porão do navio tumbeiro. Tão
absorto nos pensamentos estava que nem percebi uma
das irmãs, com seu hábito impecavelmente branco,
usado no hospital, se aproximava.

28
Cabinda, região da África.
29
Hemoptíase, pneumo expectoração de sangue proveniente dos pulmões, traqueia e
brônquios, mais comumente observável na tuberculose pulmonar.
30
Oxum, Deusa africana dos rios, lagos e cachoeiras.
P á g i n a | 49

-Bom dia irmã – disse Pai João


A freira fez um ruído de desagrado com a
boca em nossa direção e sua mão agarrou o crucifixo
que trazia pendurado ao pescoço, de prata e ouro
velho. Parecia quando nos olhava que via o próprio
demônio de sua religião.
-Não dirige tua palavra a mim negro, não te dei
esse direito. Junta tua lavagem e segue teu caminho. Se
dependesse de mim nem isso levavas daqui.
Pai João baixou os olhos e tão logo a mulher se
afastou, abaixando-se riscou algo ao chão que não
pude ver e sussurrou:
- Que o Senhor da Terra31 te recompense bruxa
velha. – e riu-se para mim – Bom meu filho, já
apanhamos água para o casarão, lavagem para os
porcos, agora é hora do Pai João beber água que afoga
as mágoas.
-Como assim Pai?
-Te aboleta na carroça e já vais entender. –disse o
velho subindo na carroça com uma habilidade
surpreendente.
Saímos do Hospital Carmine e margeando a Rua
do Poço, entramos na rua chamada Rua dos
Cômoros32, e depois de andarmos umas duas quadras
paramos em um tablado, onde uma negra de carapinha

31
Senhor da Terra, um dos adjetivos dados a Xapanã.
32
Rua dos Cômoros, antigo nome da Avenida Silva Paes.
P á g i n a | 50

branca vendia cocadas e outros doces que não eu


conhecia, amarelos como ouro. Ao seu lado um negro
mais velho que o tempo, com os olhos brancos pela
cegueira.
-Bom dia Mãe Sabina, Pai Nicolau. – disse Pai
João.
-Dia Pai João, Nicolau anda amolado, cismando
que está voltando para África. Disse que viu essa noite
seu Pai Ossanha... disse Mãe Sabina.
-Que isso homem, de visagem agora? Tu nunca
foi disso!
-Ah João..meu bom! Visagem nada. Ví meu
Paizinho, Ossanha dançou para mim mano, e me disse
que está vindo me buscar, me levar para minha terra.
Essa carcaça fica para o senhor branco mas eu...ah
mano, eu vou com meu Paizinho.
-E quem vai fazer cachaça para nós? – disse Pai
João rindo, e sentando-se do lado do homem, que
procurou tateando debaixo do tabuleiro uma caneca
de metal cheia de bebida.
-Ué, o filho de Xangô aí. –o homem disse isso
olhando em minha direção como se me visse, por um
momento duvidei que fosse cego.
Pai João, Mãe Sabina e Pai Nicolau começaram
rir de mim.
P á g i n a | 51

-Negrinho tu perdeu tua coroa, mas teu Pai não


perdeu a Dele. E como brilha. Até cego vê. Tu não
veio para as mãos do João a toa negrinho. – me
passou a caneca e ao tomar um gole quase desencarnei
de tão forte o aguardente.
Os velhos riram de novo, e seguiram falando de
coisas que não entendi. Após uns goles lá se fomos
nós de volta ao casarão, mas ao passarmos de novo
pela Praça do Poço algo me chamou atenção. Algo
que antes na euforia da história do menino Pedrinho.
Um prédio diferente dos outros, cheio de detalhes,
com grandes portas abertas por onde entravam e
saiam pessoas todo tempo.
-Pai João, que prédio é esse? O que acontece ali?
-Chama-se igreja meu filho. É como se fosse um
terreiro de nossos Orixás, só que destinado ao deus
dos brancos. Essa é a Igreja de Nossa Senhora da
Conceiçao.
-Com um nome grande desses ela deve ser
poderosa. – disse eu rindo.
-Filho nossos Deuses se chamam por muitos
nomes, e aqui nessa terra Eles para serem lembrados e
cultuados assumem nomes de santos. Santos são como
se fossem escravos do deus deles, algo assim. Daí,
nosso Pai Ogum aqui vira São Jorge, um santo
guerreiro que nem nosso Pai. Assim enganamos essa
brancada toda. – O velho soltou uma risada gostosa –
Enquanto eles pensam que estamos rezando para São
P á g i n a | 52

Jorge, pedimos ao Pai Ogum que a espada Dele tome


nossa vingança.
-Entendi Pai, mas... E os brancos acreditam?
-“Neguinho” branco é tudo besta, eles acreditam
no que da menos trabalho. Se não fosse a igreja deles
proibir nossa fé acho que muitos nem se importariam
com isso desde que não déssemos problemas.
Um negro mina33, forte e andando gingado, tendo
na cabeça um chapéu de palhinha clara, passou por
nós, e tirando o chapéu cumprimentou Pai João.
-Bom dia meu Pai, sua benção!
-Que Deus lhe abençoe meu filho. Bom lhe ver
tão alegre.
-Vou a roça de Mãe Inácia meu Pai. Hoje mais
tarde tem Jongo34 por lá.
-Mande lembranças a Mãe Inácia meu filho.
O negro seguiu seu caminho e Pai João passou
me explicar.
-Este negro, Aloísio, é mestre em capoeira, uma
forma de luta disfarçada em dança que alguns negros
daomeanos trouxeram e aprimoraram aqui. Os
brancos pensam que é dança. –disse rindo- Viu,
branco é besta. Mãe Inácia é uma velha amiga, ainda
escrava mas vivendo como livre. Sua senhora morreu
33
Mina, região de origem de alguns escravos.
34
Jongo, dança de roda de origem africana do tipo batuque ou samba, com
acompanhamento de tambores,
P á g i n a | 53

e a herdeira deu permissão a Inácia ter seu cantinho,


sua roça. Logo vai ter jongo lá, queria poder ir.
O rosto do velho ficou pensativo, remoído de
saudades sei lá de que passado carregava. Já
chegávamos a casa grande e tratamos de descarregar a
carga da carroça, para dar de comer e descanso ao
cavalo, pois a tarde sairíamos de novo. As mais velhas
na senzala de dentro já nos aguardavam com cuias
borbulhantes de um caldo quente e bem temperado.
Sentamos em silêncio e comemos tranquilamente,
apreciando o gosto bom da comida. Me lembrei tudo
que já passara até ali, tudo que vira, e isso apertou meu
coração porque comecei pensar no que ainda veria
nessa terra. Deuses assumindo outros nomes, pessoas
morrendo como animais no meio de uma praça sem
socorro, pessoas que deveriam ser caridosas sendo
cruéis, parecia que este era outro mundo, outra
realidade. Não parecia muitas vezes ser real tudo isso,
tanto que, em alguns momentos cheguei a pensar se
não tinha morrido em minha terra, meu reino, e isso
era um teste de Olorum35 para que eu pudesse merecer
a Aruanda36. Mas nem o brincalhão e quase sádico
Exú poderia arquitetar um mundo assim, tão nefasto.
Crianças sofrendo e marcadas a ferro, velhos sendo
degolados para aliviar carga, mulheres sendo
humilhadas e abusadas, e homens sendo forçados a
desonra-las para que ambos sobrevivam. Tudo nesse

35
Olorum, Deus maior da criação Yorubana.
36
Aruanda, céu mítico dos africanos, destinado aos guerreiros com honra e aos que tiveram
vida correta.
P á g i n a | 54

local era caótico, invertido, como se a ordem das


coisas tivesse sido mudada em algum momento
enquanto estávamos no interior daquele porão
tumbeiro. A voz de Pai João me tirou de meu estado
introspectivo:
-Filho, foste longe agora menino. Parece que tua
mente era um passarinho, querendo voar pra descobrir
qual estrela ia namorar. Foste a África e voltasse, não
é? Aqui negrinho todos nós carregamos um peso alem
do normal. Carregamos nossos “iwin”37. Então a gente
vai vivendo, levando dia após dia, aprendendo a levar
o barco conforme a onda.
-Mas Pai, e dá para um dia, ser feliz assim?
-Filho, o que é felicidade? Aquele guri correndo
na praça hoje, não era feliz? E tudo isso porque tu
aceitou a laranja da mão dele. As vezes filho a
felicidade é tão pouca coisa, é tão simples de se achar
ou se dar a alguém, outras vezes, nós mesmos, a
tornamos inacessível, impossível de se achar, ou de se
ter. Felicidade é esse caldo quente, um cigarro numa
palha boa, ou dançar jongo na Mãe Inácia. Felicidade é
termos sobrevivido mais um dia e em vingança a isso,
entrarmos no sangue dessa gente, plantarmos nossa
raiz no meio das salas de jantar deles neguinho. Entrar
na mente e na mesa deles, e em alguns anos, eles que
vão implorar para aprender capoeira, fazer acarajé,
dançar jongo, e olha lá se branco não bolar38 em santo.
37
Iwin, fantasma em yorubá.
38
Bolar no santo, diz-se quando o iniciado recebe o seu Orixá pela primeira vez.
P á g i n a | 55

– disse isso rindo e já se levantando, nosso descanso


chegara ao fim e a lida do dia seguiria- Vamos que
agora a tarde vais conhecer o caís do porto, passaste lá
na chegada a essa cidade mas tua cara de assustado
quando entrasses aqui prova que não tivesses cabeça
de ver nada em detalhe, ah e vou te apresentar Vó
Miquelina, a melhor quituteira desse lugar esquecido
por Deus.
Agradecemos as cuias de comida as mais velhas e
atrelamos de novo a carroça. Percebi que Pai João,
apesar de ter certas regalias do feitor, o olhava com
um desgosto descomunal. Sempre que passávamos por
ele, como agora na saída, via quase nojo estampado no
rosto do velho, mas não me atrevi a comentar sobre o
assunto, até porque teria que respeitar o direito aos
segredos dele.
P á g i n a | 56

O Caís de Vó Miquelina

Atravessamos a Rua Nova das flores39. O cheiro


de maresia e de peixe fresco tomava todo o lugar.
Negros musculosos com o dorso nu brilhavam ao sol,
banhados em suor, entrando e saindo dos barcos e
navios com toda sorte de carga as vezes tão pesadas
que eram necessários três ou mais homens, munidos
de cordas para realizarem a empreitada. Mulheres mais
velhas ofereciam seus quitutes e mais novas muitas
vezes seu próprio corpo, se é que ainda podíamos
dizer isso sobre nossos corpos, se ainda eram nossos
"próprios" e não parte de um fúnebre inventário
escravagista.
Paramos a carroça e enquanto Pai João
encomendava os peixes que a Baronesa mandara pegar
fiquei observando o movimento. A tristeza no rosto
das meninas era visível. Notava-se o desgosto de
estarem ali bem como o desgaste físico, algumas era
impossível adivinhar a idade dado ao sofrimento
estampado. Me condoí disso e fiquei atônito, tão
distante em minha mente que não ouvi Pai João:
-Filho acorda. Chamei-te várias vezes.
-Pai João, porque? - perguntei olhando as
meninas.

39
Rua Nova das Flores, atual Riachuelo.
P á g i n a | 57

-São negras de diária filho. Alguns compram


nosso povo para alugar a outros, ou para jornadas de
trabalho nas ruas. Lembra-se do Pedrinho? Então,
todo dia ele sai para vender, e ao final do dia presta
contas das vendas ao seu senhor. Se não atingir o que
o senhor acha aceitável vai para o tronco, ou outro
castigo. Entendes agora o gesto de amor dele contigo?
Quando te ofereceu a fruta? Aquela fruta pode ser a
diferença entre dormir bem ou apanhar ate desmaiar.
E essas infelizes não são diferentes, só que foram
compradas por exploradores de sexo. A fruta que elas
vendem e a si próprias.
Meus olhos encheram-se de lágrimas e de repente
não conseguia andar, falar, só sentir. Sentia a dor do
mundo nos meus ossos, cada mínima parte do meu
corpo clamava por justiça nessa terra. Sentia como se
meus poros transpirassem fogo consumindo os que
faziam isso ao meu povo. Não sei exatamente o tempo
que fiquei prostrado assim, no meio da rua, mas só
lembro-me de Pai João me carregando e sentando em
uma grosseira caixa de madeira. A minha frente vi a
personificação da palavra avó em seu sentido mais
profundo. Vó Miquelina era baixinha, pouco chegava a
um metro e meio, gordinha, os cabelos totalmente
brancos pareciam algodão maduro, pronto a ser
colhido, e os olhos, ah os olhos eram dois lagos
tranquilos, como se neles Vó Miquelina acalmasse
toda a dor que eu sentia, como se me perdendo neles
eu me achasse. Ela sorriu pra mim e me alcançou uma
P á g i n a | 58

quartinha40 com água fresca e um pedaço de pão com


torresmos. Mesmo ainda fora de mim instintivamente
comi e bebi, como se neles, água e pão, houvesse um
antídoto, um remédio para toda essa agonia que nem
eu mesmo sabia de onde via. Vó Miquelina pousou sua
mão sobre a minha, com a outra mão ergueu meu
rosto e com a voz mais maternal do mundo me disse:
-Pobre e ti Ojuobá41, coitado do teu coração
apertado. Chora Ojuobá, e lava essa cidade com tuas
lagrimas amargas.
-Vó não entendo. -eu disse.
Pai João começou falar:
-Os olhos de Xangô na terra filho, olhando tudo,
sentindo a injustiça, a dor, o medo, e contando tudo
para o Rei da justiça. Ojuobá são os olhos de Xangô.
Ele escolhe de vez em quando um Ojuobá sobre a
terra. - dirigindo os olhos para Vó Miquelina- tem
certeza vózinha? Ele e o Ouobá?
-Joãozinho, não tem erro filho. Os olhos de
Xangô estão na terra. Kaô meu Pai, protege teu
Ojuobá. - falando isso a anciã ergueu-se e tomou
minha benção o que me deixou sem ação, sem saber o
que fazer disso. – O velho Nicolau tinha visto isso já,
mas tinha que ver com meus próprios olhos. O
Ojuobá na terra.

40
Quartinha, espécie de garrafa, botija, feita de barro.
41
Ojuobá, literalmente traduzido do yorubá Ojú= olhos, Obá=Rei, Olhos do Rei
P á g i n a | 59

As infelizes meninas, vendo a anciã abalada e


tomando minha benção, o fizeram tambem,
aumentando meu desconforto com tudo isso.
-Vó, mas o que faço? Como faço? – perguntei.
-Meu rico filho – disse a velha rindo – só abre
bem teus olhos e ouvidos, O Rei sabe tudo e vê tudo
pelos teus olhos.
Já tínhamos nos perdido na hora e a carroça já
estava cheia de pescados para a Baronesa, então
tratamos de nos dirigir rapidamente para o casarão. Na
volta nem uma palavra tocamos eu e Pai João, dado
aos acontecimentos vividos por mim.
Chegamos ao casarão e descarregamos a carga.
Indo a senzala ainda vi Pai João cochichando com as
mais velhas, e vi quando uma delas levou
disfarçadamente a mão ao solo trazendo-a a sua testa,
modo ritual de saudar seu Orixá, quando falamos nele.
Imaginei que a conversa girava em torno de tudo o
que tinha acontecido, e não fosse a seriedade dos
idosos talvez pensasse tratar-se de uma grande
brincadeira comigo.
Tratei de me banhar, comi em silêncio a cuia de
alimento oferecido pelas mais velhas, e adormeci logo.
Mas um sono agitado, inquieto, repleto de visões de
tempos que nem eu sabia quais eram. O peito parecia
explodir de dor e a cabeça girava. Revivi o tumbeiro e
a doce menina Tiombe, violentada e morta. Vivi
novamente o paquete, e o sangue jorrando de Baka e
P á g i n a | 60

Chimwalla, os anciões. Vi Babatunji tremendo e


gritando “Adelabu, sua coroa atravessou o mar
profundo adelabu”. Juro que em alguns momentos
incomodei o sono dos outros, talvez murmurando,
gritando ou chorando, envolto em todas essas
lembranças trazidas no meu sonho.
O amanhecer chegou acolhedor, como se uma
longa tempestade tivesse passado sobre mim.
P á g i n a | 61

O Pelourinho do Largo do Moinho42

Saímos cedinho, com o sol ainda escondido.


Notava no rosto de Pai João uma sombra, uma
seriedade desmedida, algo fora do usual. Tentei
entabular conversas banais algumas vezes e ele as
protelou educadamente. A cidade tinha uma aura
diferente nesse dia, não sabia explicar o que era. As
pessoas brancas pareciam eufóricas, enquanto os do
meu povo pareciam soturnos, absortos em
pensamentos. Até cheguei pensar que chegava outro
paquete igual ao que eu vinha, mas me dei conta que
isso não era novidade nessa terra, e já não causava essa
comoção toda. Cumprimos nossas missões com
rapidez, e em todo lugar que eu ia com Pai João
notava a mesma atmosfera.
Notava tambem que a noticia do Ojuobá havia se
espalhado entre nossa gente. Não sei como acontecia
isso mas parece que havia algum sistema de
comunicação eficiente de senzala a senzala, de rua em
rua.
Numa dessas obrigações que cumprimos notei
cochichos entre Pai João e Mestre Aloísio, o capoeira.
Não entendi todo o diálogo mas peguei retalhos do
mesmo:

42
Largo do moinho, depois chamado Largo da Caridade, e finalmente Praça Coronel São José
do Norte, ou Praça da Santa Casa como conhecemos hoje.
P á g i n a | 62

-Não sei Aloísio, é muito para esse rapaz. Ele caiu


nisso tudo e vai acabar enlouquecendo.
-Meu Pai perdoe mas ele é o Ojuobá, ele precisa ver,
precisa saber. Xangô sabe o que faz...
-Vamos ver meu filho, vamos ver.
A carroça ia raspando suas rodas de madeira no
calçamento de pedra, que chamavam lisboeta,
enquanto minha mente ia tecendo ideias. O que
Mestre Aloísio queria que eu visse? E porque Pai João
queria me poupar? Já não tinha visto o pior dos
homens em minha vinda para cá? Já não conhecia a
maldade e crueldade desses em seu apogeu? A carroça
parou me causando um tremor. Estávamos na Rua
Direita43, e o movimento começava a ser grande a essa
hora da manhã. Pai João desceu habilmente da carroça
e catou em seu interior um fardo de tecidos brutos,
entregou a uma escravizada em uma porta e lhe falou
algo. Depois me mandou tambem descer e
caminhamos um pouco em silêncio, lado a lado.
Finalmente Pai João começou a falar:
-Filho duas coisas aconteceram, e nenhuma delas
boa. Nosso povo acha que tu tens que presenciar as
duas, por mim isso não acontecia.
-O que houve meu Pai?
-Então, primeiro o velho Nicolau. Não é que o
Ossanha veio buscar ele? Essa madrugada Nicolau

43
Rua Direita, atual Bacelar
P á g i n a | 63

voltou para a África meu filho. E depois, agora pela


manhã, no paço do moinho o negro Tomás será
punido. Haverá a execução dele hoje filho.
-Mas porque meu Pai? O que esse homem fez?
-Ser negro – disse Pai João rindo azedo- ser
negro e estar na hora errada no lugar errado. Tomás
estava passando pela Bodega do gringo Antão, na Rua
dos Comoros, quando viu um branco espancando um
negrinho engraxate porque sujou sua meia de graxa. O
pobre negrinho sangrava e implorava que parasse. Dai
Tomás empurrou o branco, que caiu e bateu a cabeça,
morrendo para azar do negro. Resultado, morte por
enforcamento. E o negrinho ainda começa hoje uma
novena44 de açoite.
-Pai João, mas não quero ver isso Pai.
-Ah Ojuobá, querer é uma coisa, precisar é outra
Ojuobá. Vamos logo, apura o passo.

44
Novena, as chicotadas eram aplicadas pelo rito católico, de novenas e trezenas, no número
de trinta ao dia. Ou seja, condenado a novena seriam nove dias de trinta chicotadas ao dia.
P á g i n a | 64

Negro Tomás e a forca

Quanto mais nos aproximávamos do largo do


moinho mais pessoas víamos indo em sua direção.
Crianças, idosos, famílias completas em suas roupas de
domingo indo ver um homem ser pendurado pelo
pescoço até perder a vida. Senhores de escravos
levando suas propriedades para que vissem o preço
pela rebeldia, ou mandando seus negros de jornada
vender aos que iriam assistir o espetáculo macabro,
frutas, doces, sucos. Tudo montado como uma grande
atividade lúdica ao povo. E os negros, ah os negros,
com sua tristeza estampada no rosto, seus olhos
tristonhos e úmidos, desviando o olhar da maldita
corda pendurada no patíbulo, ou no tronco onde o
negrinho estava já preso esperando as primeiras
chicotadas. Homens bem vestidos com seus charutos
no meio dos dedos falavam de negócios e plantações,
e no meio da conversa sobre o exemplo dado pelo
delegado, ao punir exemplarmente esse negro
assassino. Ora, matar um homem por ele ter dado
umas bordoadas num negrinho relaxado? Onde se via
isso? Qualquer dia se não cortassem as asas dessa
gente iriam querer entrar numa bodega como pessoas
de bem e beber ao lado dos brancos?
A comoção aumentou quando o cortejo macabro
apareceu, trazendo a frente o Padre e dois sacristãos,
um deles carregando uma grande cruz cravejada de
pedras preciosas e detalhes em ouro e prata. Logo
P á g i n a | 65

atrás vinham o Juiz da Comarca, que condenava o


negro, e o Delegado, que orgulhosamente faria que se
cumprisse a sentença. Os dois ganhavam aplausos e
assovios do povo, bem como sorrisos e gracejos das
mulheres mais desprendidas. Logo atrás destes, a
guarda imperial trazendo entre eles o pobre negro,
sem camisa, com uma calça branca de juta, mostrando
no rosto e costas machucados recentes, com certeza,
corretivos dados pela ousadia de matar um branco.
Seu rosto era esculpido em mármore, impassível,
totalmente insondável. Parecia isento a balburdia do
povo que comemorava sua morte. Ao passar por nós,
como que atraído por um imã invisível, me olhou e em
nossa língua disse alto e em bom som:
-“Woni daradara Ojuoba, wo ati ki o sọ ọba
xango, ṣii oju rẹ ati fun gbogbo eyi arakunrin mi, baba
mi, ore mi” (Olha bem ojuobá, olha e conta para o rei
Xangô, abre bem teus olhos para tudo isso meu irmão,
meu pai, meu amigo)
Um dos guardas apressou-se e deu um tapa na
cara do negro.
-Fala língua de gente negro do diabo. Língua de
gente!
Tomás cuspiu o sangue como se cuspisse uma
maldição sobre aquele lugar. Olhou em torno e sorriu
apenas. Haviam chegado ao patíbulo mas o Juíz da
comarca decidiu que a forca seria o espetáculo
principal, então mandou que o feitor do passo público
P á g i n a | 66

do pelourinho começasse o castigo do pequeno


negrinho. O chicote cantou uma canção sinistra
quando balançou no ar, nas mãos do feitor, e sem
aviso despencou sua ponta maléfica, como uma cobra
negra de couro trançado, sobre as costas nuas do
negrinho amarrado. O corpo do negrinho
convulsionou fortemente e um grito rouco escapou de
sua garganta. O sangue brotou da ferida aberta
imediatamente nas suas costas e começou empapar as
calças do pobre, escorrendo ao chão, formando já uma
pequena poça. O povo batia palmas e contava
gritando feliz:
-Um, dois, três, quatro...
Eu tentava desviar meus olhos da cena mas Pai
Joâo pegou meu rosto e o forçou em direção ao
tronco. Percebi que o pequeno na terceira chicotada já
tinha desfalecido, e me perguntava se aguentaria o
primeiro dia de novena. Finalmente aquilo acabou, e
jogaram água no negro, que fez escorrer mais ainda o
sangue sobre a terra, empapando-a. O negro ainda
desmaiado deu um longo e agonizante suspiro, misto
de gemido e ar retido nos pulmões. O negrinho
sobrevivera, feliz ou infelizmente, e amanhã tudo se
reiniciaria.
O Padre aproximou-se do negro Tomás, e em
latim entoou sua ladainha:
P á g i n a | 67

-Pater noster, qui es in caelis, sanctificetur nomen


tuum, in terra sicut in caelo et...45
Enquanto lançava água benta sobre o condenado,
o ato que deveria ser de piedade e compaixão, era
desmentido pelo brilho dos olhos do padre, que se via
notoriamente feliz pelo destino do negro.
Após o ritual, cumprindo as boas e humanas
práticas da província, negro Tomás foi subido ao
patíbulo aos gritos de comemoração do povo. A corda
passada por seu pescoço. Em um golpe seco o
carrasco chutou o apoio onde Tomás tinha sido
colocado e seu corpo pendeu no ar, balançando como
um boneco estranho e assustador. Os instintos o
negro lutavam por ar, pois seu pescoço não quebrara
no golpe da corda. Suas pernas se agitavam no ar, até
que tudo acabou. O corpo quedou-se inerte, e o Juiz
da comarca anunciou que Tomás tinha sido executado
conforme as leis, e que seu corpo permanecesse
pendurado ate que apresentasse sinais de
apodrecimento. O espetáculo acabara, e aos poucos o
povo foi se dirigindo as suas casas. Alguns meninos
brancos ainda lançavam contra o corpo pendurado
frutas meio chupadas, ou pequenas pedras, sendo
observados sob os risos dos adultos. Pai João nesse
momento parecia que tinha esgotado suas forças, e
antes que eu pudesse ajudá-lo ele cambaleou e caiu
sobre um dos joelhos por terra. Não havia notado,
mas o feitor da Baronesa estava próximo a nós e
45
“Pai nosso, que estás no céu...
P á g i n a | 68

tentou ajudar Pai João a erguer-se, mas o velho


tomada de fúria e desgosto no olhar sacudiu
violentamente o braço que o feitor segurara, tirando-o
de sua mão:
-Me larga, nunca mais toca em mim! – disse o
velho para minha surpresa e medo que o feitor o
castigasse. – Me ajuda meu filho Joaquim, MEU
FILHO!
Não entendi nada da cena, mas corri para auxiliar
Pai João a erguer-se e sacudir o pó das calças já rotas e
desbotadas. O feitor remoendo o chapéu no meio das
mãos se afastou e percebi atônito, vergonha em seu
olhar. Apoiei o velho até onde estava a carroça e o
ajudei a subir. Toda a força e vigor que vira naquele
homem parecia que tinha se esvaído como o sangue
do menino, encharcando a terra. Ao sentar-se Pai João
colocou a cabeça entre as mãos e começou a chorar,
primeiro suavemente, depois agonizantemente,
sufocado.
-Pai, sei que tudo isso abala mesmo, ver esse
homem morrer, esse menino...
-Tu não sabe nada menino. – disse Pai João quase
ríspido
-Perdoa Pai.
-Não meu filho – disse pegando minha mão na
sua – tu que perdoa esse velho imbecil, arrogante,
cheio de segredos e vergonhas. Perdoa meu filho, esse
P á g i n a | 69

homem que se envergonha da semente podre que


lançou na terra.
Preferi me calar e deixar o homem em seus
pensamentos íntimos. Tomei as rédeas da carroça e
segui para o casarão. Ainda via no caminho as pessoas
pelas ruas, rindo, lembrando o acontecido.
Comemorando tudo como se fosse algo lindo,
esplendoroso.
Chegando no casarão ajudei o velho a descer da
carroça e ir até a senzala. Vó Adriana, uma das mais
velhas correu vendo-nos entrar. No olhar que
trocaram, cheio de dor, havia mais de mil palavras não
ditas. Deixei os dois com seus segredos e fui me lavar,
para comer algo. A tarde passamos fazendo os
mandaletes da Baronesa, mas mantivemos nossas
conversas amenas e evitando alguns assuntos.
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Manoel decide morrer

Quando retornamos para o casarão, estávamos


cansados física e mentalmente. Só consegui me limpar
e engolir algo, e adormeci profundamente, mas até em
meus sonhos algumas perguntas ecoavam. Como
estaria o menino chicoteado? Que prazer as pessoas
viam em manter o pobre negro Tomás, já morto,
pendurado no passo ate apodrecer? E que mistério
terrível cercava Pai João e Antenor, o feitor? Essas
perguntas me atormentavam a alma, e inquietavam o
sossego. Juro que em um despertar, ouvi uma voz
entoando :
-"Kan’lù’lù, kan’lù’ lù dê ". (Esse é o caminho que
chega ao toque do tambor)
Kao meu Pai, teu Ojuobá vê tudo que queres mas
confesso entendo cada vez menos. Finalmente
adormeci mais profundo e só acordei com o cheiro do
café invadindo minhas narinas. O movimento na casa
e na senzala aos poucos aumentava. Já viam-se os
negros e negras acordando. No piso superior onde era
a cozinha se ouvia o arrastar de pés das mucamas, e
cozinheiras preparando o desjejum dos senhores. E no
pátio os cavalariços já cuidavam os animais, enquanto
se ouvia um machado rachando lenha, para os grandes
fogões.
Um grito cortou a aparente tranquilidade de tudo
isso, um grito de mulher, denotando mais surpresa que
medo. Pai João ergueu-se tão rápido que sua caneca de
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lata voou pela senzala, derramando no assoalho o


resto de café que havia nela. Como a porta da senzala
já estava aberta para que alguns dos escravos
cuidassem seus afazeres, passamos rapidamente por
ela e pelas escadas, buscando a origem do que
espantava a mulher.
Achamos logo saindo da cozinha, em um
canteiro de verduras recém-plantadas. Isabel, uma
parda que auxiliava as cozinheiras, encontrava-se
estática, em choque. As mãos ao rosto de onde
escorriam pesadas lagrimam.
- O que houve minha filha? - falou pai João.
A parda mal conseguiu estender um dedo
apontando algo no meio dos canteiros recém abertos.
No inicio pensei tratar-se de um animal grande, um
bezerro ou cavalo novo, mas chegando mais perto por
entre a plantação vi que era um jovem. Era o jovem
Manoel, que a Baronesa tinha escolhido para morar na
casa grande e que dele nunca mais tínhamos visto. Pai
João lentamente virou o corpo de barriga para cima, e
pude ver que o menino estava com a boca cheia da
mesma terra preta dos canteiros.
-Meu pai...quem fez isso? Porque fizeram isso
com o menino pai?
-Joaquim. Ele mesmo fez isso negrinho! Queria
voltar para a Africa antes do tempo.
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Quando ia perguntar mais alguma coisa o feitor


chegou empurrando os escravos que se aglomeravam
na volta.
-Que isso negrada? Que tumulto é esse? - e
finalmente viu o corpo- Puta merda sabia que não ia
longe. Neemias corre negro e pega um carrinho para
levar esse negro.
-Não! - gritou Pai João - Ninguém toca no
negrinho.eu levo...
Pai João se dobrou e num impulso colocou o
negrinho nos ombros. Com dificuldade foi indo em
direção a senzala enquanto todos olhavam em silencio.
Corri para alcança-lo e ele me vendo ao seu lado falou:
-Filho, procura mãe Mariana, pede a ela trapos
limpos e um balde com água, e que ela peça a
Inocência preparar uma mortalha. Depois vai ao
fundo do terreiro e manda Augusto e Nicanor
cavarem uma cova. E vem depois me encontrar.
Nem pensei em questionar nada, sai em
desabalada carreira tratar tudo que Pai João me
mandara, e depois fui ter com ele, na senzala.
Encontrei Pai João sozinho com Vó Adriana. No
chão o corpo nu do menino. Vó Adriana passava um
trapo molhado pelo corpo morto o limpando da terra.
Quando cheguei perto me horrorizei. No corpo de
Manoel havia muitas marcas recentes de mordidas
humanas, nas coxas, nadegas e ate próximo ao próprio
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membro. Alem disso se viam marcas de queimaduras


tambem recentes, redondas, como se causadas por
uma cigarrilha ou cigarro.
-Filho alguns de nós não aguentam e querem
voltar antes para a África. Nessa tentativa alguns
comem terra ate morrer sufocados como fez o infeliz
Manoel, outros engolem a própria língua se sufocando
com ela. Essa maldita Baronesa e uma mulher de
costumes e fomes estranhas que não pode saciar com
os brancos, por isso escolhe um negro que lhe agrade
ao apetite, desgraçada. O Antenor sonhava em cair nas
graças da cama da Baronesa, achando que isso ia lhe
dar poder sobre os outros, mas o maldito teve tanta
sorte que ela não sentiu fome por ele, dai, ele buscou
virar feitor, e soube muito bem o oficio, serpente
peçonhenta.
Vó Adriana olhou com piedade para Pai João, e
lhe afagou a mão
-Conta velho, conta para o Joaquim. Alivia um
pouco essa magoa que devora que nem um corvo tua
alma. Velho turrão!
Pai Joaquim fez que não ouviu a velha, e logo
me deu ordens a cumprir, algumas disparatadas, que
percebi eram só para me afastar dali um pouco e
deixar o assunto iniciado morrer. Tratei de buscar a
mortalha e duas varas de eucalipto bem firmes, para
carregarmos o infeliz.
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Ainda na porta da senzala ouvi Vó Adriana


rezando:
-"Onixa urê awu laje.Onixa urê obé
rioman.Onixa urê. Awu laje baba" (Oh meu pai e meu
mestre, o que será de mim agora que cheguei em terra
estranhas para ser escravizado. Tenha misericórdia de
mim e se eu morrer salve a minha alma).
Aquela reza, cantada, de nossa terra, me fez
chorar enquanto caminhava a buscar as coisas. Meu
Pai, teu Ojuobá tem os olhos já cansados de injustiça
meu Pai. Tenho a alma pesada pela covardia, o espírito
exausto pelo sofrimento. Tem misericórdia meu Pai.
Enquanto levávamos o corpo, enrolado no pano
simples preparado por Inocência, vi a Baronesa,
espiando por uma das janelas do casarão. Seu olhar
irônico me causava náuseas, e uma vontade incrível
que pudesse acabar sua vida nessa mesma hora. Pai
João colocou sua mão em meu ombro pressentindo
meus pensamentos sombrios. A cova simples e rasa
aberta pelos homens estava próxima, e me perguntei
como seriam os preparativos, o eressum caso
necessário fosse. Vó Adriana adivinhando minhas
dúvidas, sussurrou ao meu ouvido:
-Joaquim, não temos direito a isso. Nossos
Deuses agora moram escondidos, disfarçados de
santos brancos. Logo pela madrugada sim, na noite de
Exú, na escuridão, ai sim chamamos a Dona das
Almas para levar o coitado do Manoel.
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-Vó, entendo isso, mas não aceito!


-E quem aceita meu filho? Mas temos que
sobreviver, temos que manter nossa África viva em
nós. Temos!
Colocamos Manoel em sua cova, e os rapazes
começaram a jogar terra sobre ele. Enquanto olhava
isso pensei que parecia um pesadelo. Manoel a pouco
tempo atrás era livre, em África, tinha seu nome, sua
língua, seus sonhos e amores. Nem sei o nome
verdadeiro desse menino meu Pai. Não sei nada.
Quem era, o que queria ser. E agora, só mais um
morto, sepultado em qualquer canto de um pomar,
sem rituais de morte, sem seus Deuses, sem suas rezas.
Sem sua família para prantea-lo. Sem seus amigos para
beberem vinho de palma , aquecidos em uma fogueira
enquanto relembravam sua vida. Sem nada!
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Chega Inácio e acaba o segredo

A noite, já madrugada, Vó Adriana chamou a


todos na senzala. Colocou no meio da roda que se
formou com os escravizados uma caneca de água, e
um pedaço de pão, havia também uma vela de sebo
acesa próxima a tudo. Vó Adriana sussurrava velhas
rezas e encantamentos de nossa terra enquanto nós
permanecíamos em reverente silêncio.
Era importante que Manoel encontrasse o
descanso que este mundo o negara. Que seu Orixá se
desligasse do plano material e o egum46 pudesse seguir
sua jornada. Devíamos isso a Manoel, devíamos isso
ao Orixá do menino. E devíamos uma vingança
também. Esse menino não poderia ser esquecido e
tudo o que passou sepultado com ele em uma cova
rasa.
Os próximos dez quinze dias passaram de forma
estranha. Parecia que havíamos esquecido todo o
ocorrido. Ninguém falava em Manoel, ou na Baronesa
e suas maldades, nem no feitor. Pai João tentava ser
engraçado, animado, mas várias vezes o peguei com
olhar perdido, como se o mundo de repente virasse
todo cor de chumbo, como antes de uma enorme
tempestade.

46
Egum, espírito, aquele que viveu fisicamente e passou pela morte.
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Algumas vezes vi Pai João e Vó Adriana


conversando baixinho, e em uma dessas vezes pude
ouvi-la dizendo:
-Sabes bem o preço disso João. Já pagasses antes
e sabes o quanto doeu e dói em ti. Obaluaiê sabe o que
passa na tua alma velho, calma.
A resposta de Pai João não pude ouvir, mas não
era o que Vó Adriana esperava. Isso notei pela
expressão dela, mais de lastima e pena do que de
contrariamento.
Essa rotina de magoas não faladas foi quebrada
no dia que a carroça chegou de uma das fazendas da
Baronesa trazendo Inácio. Um negro perto dos seus
cinquenta anos, mas de constituição forte. A cabeça
volumosa emoldurada pela carapinha toda pintada de
grisalho, e o que mais chamava atenção de todos, o
olho esquerdo, totalmente cinza, apagado, delineado
por uma longa cicatriz que ia dele, passando pela boca
ate o queixo. Quando gritaram seu nome Pai João pela
primeira vez em dias demonstrou alegria, correu e
abraçou o homem como quem abraça um irmão
querido que a muito não se vê.
-Inácio, Inácio, que saudade homem! Quanto
tempo não nos vê. O que fazes por essas paragens.
-João, meu velho rabugento e turrão! Deixa te
contar as novas. Sinhá Baronesa mandou esse pobre
homem quase cego para cá para o povoado, porque
meu peito anda ruim, e eu sei trabalhar a madeira
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ainda bem. Dai ela quer moveis novos, e quer que eu


faça tambem alguns mimos para presente dessa gente
de bem. Mas, vim já com outra missão. Onde está
Damiana?
-Quase não sai da senzala homem. A luz dos
olhos dela se apagou a meses. Hoje ajuda no de comer
para os escravos, mas não vai longe volta para a
Africa. - disse Pai João com lastima na voz.
-Me leva ate ela vai.- disse Inácio pegando uma
sacola de pano na carroça com todo cuidado
- E esse ai? Por acaso é quem eu penso? - disse
apontando para mim.
-Inácio esse é Joaquim.
-O Ojuobá! Meu pai Exú me falou dele em um
sonho, mas confesso que não é grande coisa - disse
rindo- esperava um negro maior, mais parrudo, e mais
bonito.
Sorri para ele enquanto caminhávamos para a
senzala. A chegada de Inácio trazia um ar novo aquele
lugar. Parecido com o sol quando aparece depois de
uma chuva intensa. Entrando na senzala os mais
velhos, que conheciam Inácio, vieram cumprimenta-lo
efusivamente, enquanto era levado a um canto onde
Vó Damiana estava sentada em um rústico banco feito
com troncos. Ela ouvindo a voz dele abriu um sorriso
sem dentes, mas que iluminou a senzala.
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-Meu menino, minha Mãezinha Oxum, é meu


menino que voltou. Vem aqui deixa te tocar.
Vi aquele homem forte virar um menino em
festa, os olhos cheios de água. Aproximou-se da velha
tomando sua bênção, e colocando sua cabeça ao solo
próximo aos seus pés como era nosso costume de
saudar os orixás daquela pessoa que encontrávamos.
-Sua benção minha velha. Teu menino ta velho e
besta, mas voltou para tomar tua benção.
-Que minha Mãe te abençoe e Meu Pai te de vida
longa.-disse a velha tocando a cabeça de Inácio.
Inácio desenrolando o que trazia nos panos
entregou a velha. Era uma imagem entalhada em
madeira. Parecia uma santa das que vi com os padres.
-Nossa senhora da Conceição, Joaquim.- me
explicou Pai João -Mãe Oxum é adorada assim agora,
aqui. E a forma que achamos. Oxum Adocô virou
senhora da Conceição.
A velha, encantada "olhava" com os dedos a
imagem, conversando carinhosamente com ela.
Traçava confidências e elogios a imagem entalhada
cuidando em seu colo como se fosse um grande
tesouro, digno de reis e rainhas, e no outro lado, a
cabeça enorme do negro Inácio repousava. A velha se
dividindo entre acariciar o negro e a imagem. A alegria
no rosto dele era enorme, visível. Parecia ter ganhado
seu maior sonho, aliás, os dois pareciam assim.
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Ainda estava absorto nessa cena quando a porta


da senzala se abriu rudemente e por ela passou
Antenor, o capataz. Inácio levantou-se de um salto,
como diria Vó Adriana mais tarde, parecendo um gato
acuado. Os dois se mediram por um tempo e dava
impressão que iam se lançar um contra o outro. A mão
de Vó Damiana procurar a mão de Inácio e apertar
firme como quem quer agarrar o mundo.
-Então tu voltaste mesmo negro? E eu que achei
que nunca mais ia ver essa tua cara feia e esse olho
branco. -disse o feitor.
-Não tem doce ruim nem negro cabra bom..o
povo ta certo.- retrucou Inácio.
O feitor levando a mão ao cabo da adaga que
trazia ao cinto vociferou:
-Repete negrinho de merda para ver se não te
cego o outro olho como ceguei esse! Lembra-se da
ponta do meu chicote lanhando tua cara feia e
apagando a luz desse olho?
Quando Inácio ia se lançar em cima do feitor Pai
João se interpôs entre os dois. As mais velhas
seguraram Inácio e o feitor encarava Pai João com
fúria.
-Tu já fez dano demais Antenor. Deixa as coisas
como estão. Vai embora. - disse Pai João
-Vou porque quero negro João. Nem tu nem
ninguém me manda. E controla esse negro de merda
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senão acabo matando. E é bom que em meia hora ele


esteja na carpintaria senão volto.
O feitor saiu batendo a porta tão forte que tudo
na senzala estremeceu. Ainda se ouvia os passos
pesados de raiva dele subindo as escadas quando
Inácio falou:
-Esse meu olho ainda vai custar caro para esse
infeliz. Meu olho, a primeira Oxum que fiz para
Damiana, que foi pisoteada por esse cabra, e a morte
de Anastácia, a própria mãe desse desgraçado. Tudo
isso vai custar caro.
Eu estava chocado com o que vira, e ainda mais
com o que ouvia agora, mas o pior ainda iria ser dito.
Inácio continuou:
-João te amo como a um pai, me perdoa. Mas
esse teu filho Antenor não vale a comida dada aos
porcos.
Vó Adriana interveio nessa hora, vendo o
constrangimento de Pai João.
-Bom, chega disso na senzala. Ajeita-te e vai para
a carpintaria. E toma cuidado.
Inácio saiu ainda acabrunhado e Vó Adriana
seguiu resmungando a titulo de consolo.
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-Ah Exú Olodê47, teu filho Inácio tem a boca


grande meu Paizinho. Poxa, Inácio não era para ter
falado isso...
-Deixa Adriana. Ele não falou mentira nenhuma
pobre do Inácio. É tudo verdade. E Joaquim já estava
na hora de saber toda essa historia. Deixa Inácio
coitado.
Se dirigindo a mim Pai João disse:
-Filho vamos dar uma volta com esse velho
imbecil, que tenho uma historia para te contar Ojuobá.
Colocando a mão no meu ombro saímos da
senzala ao pátio, ainda a tempo de ver Inácio, que nem
doido, jogando capoeira sozinho, dando mortais em
pleno ar para deleite dos outros escravos que viam.
Era destemido e inconsequente mesmo, não media as
consequências de seus atos. Mas vi naquelas miquices
e brinquedos dele uma forma de ocultar a dor,
mascarar o que tinha por dentro, lhe causando tanto
ou mais sofrimento que o chicote causara em seu
rosto.

47
Exú Olodê, ou aqui no sul Bará Olodê, uma qualidade de Orixá Bará, Senhor das Ruas,
encruzilhadas e caminhos.
P á g i n a | 83

Os filhos de Pai João

Pai João, como que tomando coragem para


ingerir um remédio de gosto ruim, lentamente
começou falar enquanto caminhávamos.
-Eu era novo, tinha acabado de chegar nessa
terra, vindo da África. Lembra-me muito de ti que te
vi chegando, perdido, sem rumo. Eu estava assim. Mal
falava essa língua, machucado, revoltado, não sabia
nada de nada. E o pai da Baronesa me comprou,
naquele mesmo mercado que tu foste comprado. A
Baronesa ainda era novinha, mas já se via a maldade
estampada nela. Ela que sugeriu o pai dela me deixar
como "reprodutor". Disse que eu ia dar crias fortes
para eles. Dai alguns meses depois compraram
Anastácia, uma mulata vinda das minas gerais.
Novinha, linda, perdida como todos nós. Fizemos
amizade e isso logo cresceu. Acabamos juntos nessa
dor toda. Uma noite, acabamos na mesma cama, ela
ainda moça, eu querendo apagar a vergonha que ter
que deitar a força, para procriar, me dava. Bom meu
filho, dessa noite rendeu uma criança, um negrinho
cabra, que o senhor batizou de Antenor. Desde
pequeno se via algo errado com o menino, a
crueldade, o olhar de superioridade que olhava os
outros. E as conversas? Essas apavoravam! Queria ser
livre e rico, para comprar muitos escravos. Ser barão.
Quando um de nos era castigado o cabrinha fazia
questão de assistir, com deleite, como se aprendendo
P á g i n a | 84

tudo. Foi crescendo, o senhor morreu, a Baronesa


assumiu tudo e ele botou na cabeça que iria ser o
homem dela, dormir na cama dela, tudo para apressar
a fome de poder, mas a mulher nunca o escolheu.
Passado um tempo virou ajudante do feitor, depois
farejador, e finalmente feitor. E a primeira coisa que
fez como feitor foi por Anastácia, sua mãe, no tronco.
Disse que ela ia apanhar para nunca mais ter a
petulância de chama-lo de filho. Bateu tanto na pobre
Anastácia que ela saiu do tronco quase morta, ficou
acamada uns dias, respirando mal, botando sangue
vivo pela boca a pobre mulher. Ate que Yemanjá, Mãe
dela a levou. Eu quis a morte desse infeliz, clamei aos
céus e ao escuro pela morte dele. Queria fazer com
minhas próprias mãos ate se possível. Um dia filho,
passei a linha que não se passa. Afastei meu pai
Obaluaiê48 e em busca de vingança me aliei a seres
obscuros, kiumbas49, Antenor caiu mal, quase
desencarna o maldito, mas não era sua hora e ele
melhorou. Em vingança, pois sabia que não era natural
o que passara, um dia pegou a pobre Damiana com
uma imagem entalhada por Inácio, uma santinha como
aquela que visse hoje. A negra rezava a Oxum,
pedindo por todos, mas o maldito botou na cabeça
que ela tinha jogado feitiçaria nele. Pisoteou a imagem
toda e ia bater na negra quando Inácio se pegou com
ele a socos. Bom, acabou isso no tronco, Inácio quase
morrendo depois de uma trezena de chicotadas, e na

48
Obaluaiê, o mesmo que Xapanã.
49
Kiumbas, espíritos de mortos que não seguiram em frente, maldosos, furiosos.
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ultima delas, só por maldade, o infeliz acertou a cara


do negro Inácio, rasgando a carne e vazando o olho. A
Baronesa com medo de ter problemas com o juiz da
comarca mandou Inácio para as fazendas... e estamos
hoje assim.
Pai João parou debaixo de uma figueira enorme,
carregada de frutos...disfarçou, olhou se ninguém
observava e levando a mão as raízes da Figueira e a
testa saudou.
-Esse iroko50 filho, foi plantado nas raízes pelo
velho Matias, negro do Daomé51. É aqui que venho
pedir justiça para tudo isso meu filho. De tantos filhos
que dei aos senhores brancos, contra minha vontade,
fui amaldiçoado por o único filho fruto do amor ser
uma serpente traiçoeira.
-Pai a culpa não é sua.- falei
-Ah neguinho será? Será que não estou pagando
pela minha vaidade? Por usar mal os dons que ganhei?
Será que a Africa não cobrou minhas dividas pelo
sangue de Anastácia? Pelo olho de Inácio? Agora vai
meu filho querido, filho do meu coração. Deixa esse
velho sozinho deixa. Preciso ouvir meus antepassados,
escutar a voz deles no vento, nas raízes do iroko, em
tudo. Minha ancestralidade quer falar comigo filho,
vai.

50
Iroko, árvore tornada sagrada, representando determinado Orixá.
51
Daomé, região da África.
P á g i n a | 86

Pela primeira vez Pai João beijou minha testa,


como a uma criança. Tomei sua bênção e o deixei com
seus fantasmas, seus pensamentos e lembranças. Eu
também fiquei imerso em meus pensamentos
enquanto me afastava de Pai João. Os rumos
inacreditáveis que minha vida tomara me
assombravam. Ontem, rei poderoso de meu povo,
senhor sobre a vida e a morte de meus súditos,
mergulhado em minha arrogância, para depois comer
lavagem despejada no porao do tumbeiro, me banhar
com o sangue de anciãos inocentes, ser marcado como
gado a ferro em brasas. Perder minha terra, coroa,
língua, nome, deuses, tudo. Cruzar essas terras como
mercadoria e acabar aos amparos e cuidados de um
homem como Pai João, mestre, pai, tutor...tudo que
me restara. E Ojuobá? Eu que abandonara meus
preceitos em troca do poder, esquecera meus deuses e
seus rituais, agora Ojuobá do senhor da justiça, em
uma terra sem justiça, e onde para cultuarmos
tínhamos de mascarar nossos deuses em vestes e cores
de brancos. Que vida alucinante e louca, essa minha.
Vida em uma terra onde o filho executa sua mãe por
vaidade, renega seu pai por poder, oprime seus irmãos
para se auto-afirmar. Realmente esse novo mundo me
surpreendia a cada momento com suas novidades
macabras.
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Chegam novos escravizados

O dia que o feitor mandou eu e Pai João ao cais


buscar as novas aquisições da Baronesa foi talvez um
dos dias mais utópicos da minha existência. Via-me
em cada um deles assim como me via do outro lado
tambem agora. Estranho e inquietante tudo aquilo.
Pai João tentou me aconselhar todo o trajeto para
que eu pensasse com a cabeça e não o coração, mas
confesso que era tudo quase impossível para mim.
Chegamos ao cais, graças ao Pai Xangô, com os
negros já marcados de onde vinham, porque não sei se
resistiria sem me intrometer. Vi com ódio o marcador
em brasas, assim como o ferreiro e a velha índia. Mas
agora, olhando-os a distancia, via neles resignação,
frustração, e não maldade como imaginara ver
anteriormente quando eu mesmo fui marcado. Na
verdade eramos todos escravos, uns em correntes e
outros não, mas todos a serviço de quem muito
possuía e nada sentia pelos outros. Gente com tanto
poder e nenhum coração. Aquele homem calejado do
fogo, a índia velha sem dentes, eram tão ou mais
infelizes que nós, em nossas senzalas e castigos. O
balão era composto por doze escravos, cinco homens,
seis mulheres e uma criança ainda de colo. Pelo
aspecto deles achei que eram haussás52 e nao me
enganei. Os haussás não compartilhavam a crença do

52
Haussá, região da África com grande número de muçulmanos.
P á g i n a | 88

resto de nos, nos Orixás, e sim em um deus chamado


Alah, eram muçulmanos.
Notei que todos os homens, sem exceção,
mancavam da perna direita, e perguntei sobre isso a
Pai João.
-Neguinho, isso é picada de barbeiro.
-Já ouvi falar desse mosquito pai mas não sabia
que deixava mancando, e todos da mesma perna.
Pai João riu da minha inocência, e explicou:
-Não, neguinho! Quem dera. A picada e o veneno
e de um animal muito pior, o homem. Quando o
negro é muito fujão se chama o barbeiro ou boticário
do povoado e ele com uma faca fininha, muito afiada,
corta o tendão, um cordão que passa dentro da perna,
perto do pé. Assim o negro não fica inutilizado como
se cortassem a perna, e manco assim não vai longe.
Ou seja, trabalha e não foge.
Olhei melhor, disfarçando, e realmente todos os
homens apresentavam perto do tornozelo a mesma
cicatriz, ainda avermelhada mostrando não ser muito
antiga. Meu Pai, a maldade nessa terra não tem limites
mesmo! Açoites, negros comendo terra para morrer, e
cortes dados para aleijar um homem por toda sua vida.
Hienas eram o que pareciam os homens dessa terra,
rindo-se da maldade que cometiam, de cada bocado de
carne inocente que arrancavam em seus dentes. Quis
ainda saber de Pai João porque a Baronesa precisava
P á g i n a | 89

de mais escravos. Para que mais essa compra, e ainda


de negros mancos, coitados.
-Filho, esses ela não comprou, ganhou de
herança.
-Como assim Pai?
-Joaquim somos produtos, mercadorias, e como
tais somos vendidos, comprados, alugados, dados
como garantia para algum negócio, deixados de
herança, e usados como bem de penhor, ou seja, o
senhor nos penhora por certa quantia, e quando paga
nos leva de novo.
Essa revelação, mesmo tão obvia me pegou de
surpresa. Nunca tinha imaginado isso, ou sequer
parado para pensar que fosse possível. Éramos
homens, não moeda, não gado nem terras ou
sementes, mas homens. Como essa gente não via isso?
Como podiam dividir famílias, nos alugar como um
objeto deixar-nos como herança o em penhor por
dinheiro? Como podíamos ser trocados, dados,
deixados como garantia se éramos homens, homens
com a cor da pele diferente, mas homens! Que mundo
louco era esse?
Enquanto pensava nisso, Pai João me avisou que
estava tudo pronto para levarmos os novos escravos,
atados a carroça como eu mesmo fui levado, e isso
apesar dos protestos de Pai João não pude aceitar, fui
caminhando ao lado daqueles homens e mulheres, ate
que um deles, o mais velho, discretamente me falou:
P á g i n a | 90

-Rapaz, não faça isso a ti e a nós, o senhor da


carroça está certo. As coisas são como são, e não
podemos mudar isso. Como dizem em nossa terra, na
língua do Alcorão, "Macktub", estava escrito. Se virem
castigam a ti, a nós e ao senhor da carroça. Sabemos
tua bondade e ainda hoje, em minhas orações, pedirei
a Alah e seu profeta por ti. Agora sobe a carroça vai!
A muito custo subi com Pai João, mas toda hora
olhava aqueles homens e mulheres, para me certificar
que íamos lento o suficiente para que não os
molestássemos em demasia.
E assim chegamos ao casarão, a nova casa
daqueles escravizados. Balbina, a principal mucama da
casa grande se encarregou de banho, alimentos e
roupas aquela gente. Acabávamos formando nas
correntes a família que o navio separara, virávamos
irmãos de infortúnio, apesar de povos distintos,
costumes e credos diferentes a chibata nos unia em
uma grande família. Talvez, por isso, custei tanto a
entender o que veria em seguida.
P á g i n a | 91

Otacília mata seu bebê

Pela noite notei a agitação diferente entre as


mulheres, principalmente as mais velhas, em torno de
Otacilia, uma criola que estava grávida de alguns
meses. Via Vó Adriana indo e vindo, até Vó Damiana
em sua cegueira era levada para lá e para cá, e mesmo
as mulheres recém chegadas ajudavam como podiam.
Fiquei receoso de perguntar algo por se tratar de coisa
tão intima das mulheres, e eu que não queria carregar a
fama de abusado. Em determinado momento Vó
Adriana cochichou com Pai João, e ele chamou os
homens e as crianças para um canto da senzala.
Fumava em silencio ao meu lado o seu palheiro e às
vezes, ele e os homens mais velhos trocavam olhares
de compreensão.
Me sentia um peixe fora d’água naquele
momento. Os gemidos de Otacilia cresciam
angustiantes e eu já me perguntava se isso era normal.
Vira partos já em minha vida, mas a negra ainda estava
com poucos meses para isso. Minha surpresa foi
aumentando quando Antônio, um dos escravos nagô,
sob ordem de Pai João começou cavoucar num canto
da senzala. Meu Pai o que era aquilo? Seria o que eu
pensava? Uma covinha? Mas ainda havia vida naquela
criança dentro de Otacilia, e mesmo que morresse
sepultar ali, na senzala? Não me aguentando perguntei
tudo isso a Pai João.
P á g i n a | 92

-Filho, ela vai perder a cria. As mulheres estão só


ajudando para que não fique nada nela.
-Mas Pai, por quê? Ela parecia tão bem. E não e
melhor avisar a Baronesa? Vó Adriana não sabe nada
para salvar o bebê?
-Filho foi a velha Adriana mesmo que deu as
ervas para que Otacilia botasse a cria fora filho.
-Que? Pai será que me enganei tanto assim com
Adriana? Pensei que ela fosse uma mulher boa pai.
-Não julga Adriana meu filho, ela e uma das
melhores pessoas que conheci na vida.
-Boa pai? E dando ervas para matar um bebê?
Pai João perdeu a paciência e me olhou duro.
-Matar o que já nasce morto negro? O que já
nasce acorrentado e em senzala? Quem a mãe não
pode nem escolher o nome? Presta bem atenção
negrinho arrogante, a sobrinha da Baronesa mora ai
em cima, e espera um bebe para mesma época. Tu
sabes o que vai acontecer? - tinha baixado os olhos e
Pai João puxou minha cabeça para que o olhasse nos
olhos - A branca não vai querer as tetas caídas de dar
de mamar. Se sabem que Otacilia está prenha para
mesma época, o leite das tetas da pobre é da cria
branca, enquanto o que dela nascesse ou morria de
fome, ou era vendido, ou deixado para morrer em
algum canto. Otacilia merece respeito negrinho
arrogante, tu não sabe nada! Elas estão sofrendo, mas
P á g i n a | 93

a decisão foi tomada. Essa cria nasce livre, volta para


Africa. E tu, calas tua boca, e ajuda no que Adriana
mandar.
Fiquei calado por horas ali. Prostrado no mesmo
canto. Assisti as velhas juntarem o feto em uns panos
e carinhosamente deita-lo na covinha feita por
Antônio. Vi Otacilia chorar toda noite, um choro não
de dor física, mas de dor da alma. Vi Vó Adriana,
quando achava que ninguém as observava, se agarrar
em Vó Damiana e chorar como uma criança, enquanto
a velha cega a confortava em seu colo. E vi Pai João,
que sentado perto da covinha já tapada, resmungava
baixinho, como que falando com o bebê, quem sabe
explicando o porquê tinha que ser assim. Vi tudo isso
e o sono não veio. Fiquei no mesmo canto, ate que as
velhas se movessem para o café. Sai do meu nicho de
solidão quando Pai João me alcançou uma caneca
fumegante, e sentando-se ao meu lado falou:
-Me perdoa filho, fui duro contigo. Mas precisas
entender as coisas como são. Abre os olhos Ojuobá,
um dia tu vais contar tudo isso. Xangô e seus juízes
vão saber porque esse neguinho foi abiiku53.
-Pai fui idiota, e arrogante. O silencio me ensinou
essa noite. A escuridão me aconselhou e nela pude ver
a dor que vocês sentiam..e eu só pensando como um
idiota, me revoltando.

53
Abiiku, criança com o destino de morrer ao nascer.
P á g i n a | 94

-Nao Ojuobá, tu só viu com o coração, e parecia


errado o que vias. Mas era piedade. Não somos donos
nem de nossas crias e nossas mulheres não governam
nem o leite de suas tetas. Agora toma teu café que a
lida segue. Alguns dias passaram depois disso, e
Otacilia nunca mais se recuperou. Uma manhã
encontraram-na enforcada no pomar, perto das
laranjeiras onde as crianças trabalhavam separando as
frutas. A mágoa de não deixar nascer o fruto de seu
ventre a consumiu inteira. Agora, mãe e filho iam para
a África.
P á g i n a | 95

A Laranjeira

Depois da morte em desatino de Otacilia as


crianças escolhiam outro local para seu trabalho, todos
passaram a ter medo daquele lugar. Inácio ainda
colaborava com o medo inventando aos pequenos que
passando por ali teria ouvido gemidos, e choros de
criança. Vó Adriana reclamou com ele sem sucesso,
pois o danado só se ria do medo na cara dos menores.
Com o passar do tempo aquele local do pomar se
tornou meu refugio, assim como Pai João tinha sua
figueira. Ia para lá sempre que podia, pôr minha
cabeça em ordem enquanto pitava o cachimbo que
ganhara de Inácio, feito por ele mesmo com maestria.
Cachimbo esse que se tornaria meu amigo mais fiel e
inseparável ate meus últimos dias.
Em um desses momentos a só, nas laranjeiras, vi
as folhas se agitarem sem ter um vento sequer. E juro,
ouvi gemidinhos, como se uma criança fizesse força,
ou se machucasse. No momento cheguei a pensar que
Inácio não brincara, que o local era mesmo mal
assombrado. Mas a curiosidade foi maior em mim e
me pus com todo cuidado observar. Dai um tempo
ouvi o baque das frutas no chão, e o barulho de
alguém as apanhando,fui pé ante pé e...a assombração
tinha olhos pretos e graúdos, e mãozinhas pequenas, e
tinha nome tambem, que brotou de minha boca em
meio a um sorriso abafado:
P á g i n a | 96

-Pedrinho! O que tu estás fazendo aqui moleque?


Ah se a baronesa ou o feitor te pegam menino.
-Sua benção Ojuobá, estou colhendo minha
liberdade ora.
-Como assim? Me explica.
-O negro Odair Angola me falou que está
juntando uns réis para sua alforria, Ojuobá. Eu não
tenho mais mãezinha e nem pai para ajudar dai, pensei.
Tenho que vender as frutas do meu dono, mas se no
meio delas vendo umas minhas. Ele não me bate
porque não falta o dele, e eu junto meus réis, para
minha carta de forro. Viu, sou esperto!
Acariciei a cabeça do menino e falei.
-Muito Pedrinho. Tu és muito esperto. Mas
mesmo assim se te pegam? Não sei como ainda não te
pegaram neguinho. Faz assim, todo dia que sair com
Pai João vou colher algumas laranjas e esconder na
carroça. Quando passarmos pela praça do poço te
dou. Pode ser?
-Muito obrigado, que seu Pai me abençoe
Ojuobá. E vou juntar mais réis para comprar tua carta
tambem. A bênção...Aaah - estendendo a mãozinha
para mim e os olhos brilhando - aceita uma laranja?
Rindo do menino aceitei a fruta, agradeci mal a
tempo de o ver correndo com o cesto entre as arvores,
todo feliz da vida, e me deixando ali, afogado em
pensamentos. Uma carta, a liberdade de uma criança
P á g i n a | 97

em uma maldita carta, escrita e assinada a peso de


sangue. Carta que podia de uma hora por outra, ser
revogada, ate pelo pretexto de ingratidão54. Sim,
tínhamos a obrigação de sermos gratos por nossas
costas marcadas pelo açoite, nossa terra perdida,
gratos por termos que procriar a mando do senhor,
sem sentimento, gratos pela humilhação, maus tratos,
marcas no corpo e na alma. Gratos!
Mas,claro, nunca iria falar isso a Pedrinho, na sua
ânsia por liberdade, sua busca por ser seu próprio
dono. Claro que nos sonhos do menino ele não levou
em conta que sendo forro não teria mais casa, nem
comida, e o fato de não ter ninguém por ele. A mim só
cabia apanhar laranjas e contrabandea-las na carroça
para alimentar o sonho do menino de olhos de
jabuticaba. E assim passei a faze-lo religiosamente,
para alegria do menino, que todos os dias me prestava
contas do que já amealhara em suas peripécias, que se
tornaram conhecidas em toda Rio Grande de São
Pedro. Os escravos da Rua do Açougue55 foram os
primeiros que se compareceram, e passaram a dar
colaborações ao pequeno. A Rua do açougue era
conhecida por ser local de abate e preparo de carne
animal na cidade, apesar do mau cheiro que causava
ainda tinha ali um grande curtume e tenda de couros.
Depois vieram as doações dos negros alfaiates da rua

54
Revogação por ingratidão, o senhor podia revogar a carta de alforria se achasse que o
escravo teria sido ingrato com ele
55
Rua do Açougue, atual Rua Conde de Porto Alegre.
P á g i n a | 98

Yatahy56, dos ferreiros da rua Constância57 e ate dos


pobres encarregados dos cabungos, nas trincheiras58 e
além delas. O projeto do negrinho ia de vento em
popa para alegria dele, e confesso, minha preocupação.
Não sei se temia mais pelo sucesso do projeto, e
Pedrinho se ver jogado em um mundo cruel, ou pela
desilusão do menino caso o projeto fracassasse. Um
negro forro ainda era um negro na mente dessa gente
toda. E nesses medos todos que conheci Eugênia, uma
das piores pessoas que meus olhos já viram.

56
Rua Yatahy, atual Rua Doutor Nascimento.
57
Rua Constância, atual Rua João Alfredo.
58
Trincheiras. Ficavam aos fundos do Quartel do Exército, atual Major Carlos Pinto.
P á g i n a | 99

Eugênia, negra senhora de escravos

Tínhamos ido as trincheiras nos livrar de algumas


tralhas a mando da Baronesa. Pediríamos autorização
aos militares do quartel posto ali e passaríamos para o
lado extra muros, sempre vigiados das trincheiras. O
extra muros era um lugar de enormes dunas de areia
solta, banhados e atoleiros. Morada de cobras e outros
animais que mais causavam medo a mim do que dano,
e tambem local onde alguns dos cabungueiros59
exerciam seu oficio. Alguns iam ate o saco da
mangueira se livrar do conteúdo dos cabungos
enquanto uns iam extra-muros.
Estávamos colocando fora da carroça as tralhas
quando ouvi um som perto onde estávamos. Pai João
tambem movido pela curiosidade me acompanhou e,
logo próximo, após uma duna de areia solta, dois
negrinhos angola cavavam um imenso buraco.
Quando nos viram se apavoraram, e Pai João a custo
os acalmou. Contaram-nos então que eram
propriedade de Eugênia, que os mandava a toda sorte
de trabalhos arriscados, como agora, onde após
burlarem a guarda da trincheira cavavam para ocultar
pesadas bolsas oriundas dos chibeiros60 que vinham da
banda oriental61. Precisavam ser rápidos ou
apanhariam desmedidamente na volta.

59
Cabungueiros, carregadores de cabungo, caixas onde a população colocava suas fezes e
urina.
60
Chibeiros, traficantes do sul do País, levando cargas e pessoas de um País a outro.
61
Banda oriental, países do Prata, Uruguai, Argentina.
P á g i n a | 100

Como tínhamos algum tempo me ofereci a ajudar


cavar em troca de ouvir sua historia, pois confesso que
todo esse assunto me despertou a curiosidade. O
pobre garoto nos contou então que sua mãe era amiga
de Eugênia, sendo ambas escravas de um português
chamado Ambrósio. Quando a mãe de Felipe, esse era
o nome do rapaz, adoeceu do peito implorou que
Eugênia cuidasse seu menino, o que a amiga de pronto
o fez. Era de conhecimento de todos que o português
dono delas mantinha há anos um relacionamento com
Eugênia, e tanto a mãe de Felipe quanto o português
vieram a falecer quase na mesma época.
Para surpresa de todos, Ambrósio em testamento
deixou a Eugênia uma boa quantia de dinheiro, bem
como sua carta de alforria. Deixou ainda para ela a
carta de alforria de todos os outros escravos dele, ao
total de oito. Todos, como Felipe, pensaram que
finalmente a sorte batera em sua porta, mas, que tolo
engano. Eugênia mudou-se da senzala para uma casa
na Rua do Pito, ou Rua Direita62 como a chamam, e
mandou buscar os escravos da antiga senzala.
-Quando chegamos lá, na casa de Eugênia- disse
Felipe- Eu imaginava que moraria com ela lá, visto a
promessa a minha mãe. Entramos na casa logo nos
viu, começou a gritar muito alto, sendo atendida por
Alaor, antigo feitor do português, e agora feitor dela,
que nos tirou a bicos da casa ate uma senzala imunda
debaixo da habitação. Agora amigo, nos homens
62
Rua Direita, atual General Bacelar.
P á g i n a | 101

trabalhamos enterrando cadáveres, limpando


cabungos, descarregando barcos ou escondendo chibo
para que os chibeiros peguem mais tarde, e as
mulheres...bom, as mais velhas quase todas morreram
de fome ou maus tratos, e as mais novas estão na rua
nova das Flores. Lembrei-me das meninas, magrinhas,
se vendendo aos pescadores.
-Sim, já as vi por lá.
-Minhas irmãs me falaram do senhor, Ojuobá.
Lembrei da dor indescritível que senti quando as
vi pela primeira vez. Odiava essa mulher com toda
minha força. Como podia fazer isso com seu povo?
Tendo passado o que passamos? Lembrei
imediatamente do filho de Pai João, o feitor, que era
quase a mesma situação. Não conseguia entender essa
lógica distorcida. Será que achavam que humilhar sua
própria gente os tornava brancos? Ou que iam
merecer alguma consideração da sociedade branca?
Nossa cor era o que definia nosso tratamento, mas
eles, cegos de ganância nao entendiam isso.
Quando encerramos o trabalho oferecemos aos
homens que fossem conosco na carroça, já que a
caminhada era longa ate as tricheiras e o Centro da
cidade, o que eles alegremente aceitaram.
Passamos pelas trincheiras sem nenhum
problema e íamos em direção a Praça do Hospital63

63
Praça do Hospital, atual Praça Tamandaré.
P á g i n a | 102

quando fomos interrompidos por uma outra carroça


que nos fechou o caminho. Nela um homem rude de
chicote na mão, tendo ao lado uma negra
imensamente gorda, que apesar de vestir roupas que
eram notadamente finas, destoavam de seu aspecto de
desleixo.
-Então, que bonito! - disse o homem - essa
negrada passeando de carroça sinhá. Onde se viu
isso...matando tempo do trabalho.
Quando um dos jovens, Felipe, foi explicar o
acontecido, a mulher tirou rapidamente o chicote da
mão do homem e fustigou o rapaz no rosto. Na
mesma hora um vergão sanguinolento surgiu na pele
suada de Felipe.
Eu tomado de ódio saltei da carroça e me
interpus entre eles.
-Como podes fazer isso sendo negra tambem?
Uma de nós?
A mulher, transtornada, passou a gritar a ponto
de atrair atenção dos passantes.
-Eu negra? Negrinho ridículo. Quem tu pensa
que tu és para falar comigo? Toma jeito senão te
mando por a ferros pelo delegado.
Pai João vendo a coisa feia saltou também da
carroça e me puxou pelo braço, a muito custo
fazendo-me subir novamente a boleia. O ódio em mim
tomava minha sanidade tornando-me quase homicida.
P á g i n a | 103

Felipe nos olhou como que pedindo que não nos


envolvêssemos mais e seguiu a carroça de sua senhora,
que mesmo já se afastando, ainda deixávamos ouvir os
gritos e baixarias da mulher.
-Filho não adianta isso. Só fazes aumentar o
castigo nos pobres negrinhos. O que ela não pode nos
bater bate neles. Deixa que a vida se encarregue dela
neguinho.
Consenti calado, mas meu corpo todo tremia de
ódio e frustração na volta ao casarão. O resto do meu
dia foi azedo, inquieto. Nem o brincar das crianças no
terreiro, nem os gracejos de nossa criança grande,
Inácio, me tiraram desse sentimento ruim,
macambúzio, de ira e sede de justiça.
Enquanto um menino alegre planejava buscar sua
alforria juntando uns cobres outro tão menino quanto
era traído por aquela que jurara cuidar dele, o proteger.
Já não sabia mais como agir no meio disso tudo. O
tempo passara voando, tanto que ja me consideravam
ladino64 por aqui, e ainda me assombrava com as
coisas que via.
A noite caiu e eu ainda ranzinza, fumando meu
cachimbo, minhas ideias virando fumaça com a
fumaça do fumo que subia aos céus. Por um momento
olhei as estrelas e pensei na minha terra. Como estaria
tudo por la? O rio Ossun, manso, suave em sua

64
Ladino, dizia-se do negro oriundo de África já aculturado, que falava bem nosso idioma a
ponto de passar por um criolo (vd. Criolo)
P á g i n a | 104

corrida pelos vales, o rio Oba, caudaloso, arriscado. O


contraste do verde das matas com o acinzentado do
árido. Meus amigos, parentes, família. Será que tinham
se mantido livres, ou caído escravos em algum lugar
como esse? Lembrei-me das festas, a comida, as
danças, meu reino, coisas que antes me causavam
enfado e agora me tiram lagrimas de saudade. Recolhi-
me para dormir ainda assim, embalado nesse
saudosismo. Será que a Africa que eu lembrava ainda
existia? Ou só ainda se mantinha na minha mente?
Esse era meu desespero calado, como se tudo fosse a
preto e branco e somente minha terra, em minhas
memórias, tivesse colorido e vida. Que vida era essa
que vivia morrendo? Ao longe ouvi um berimbau
tocar, tristonho, lento. Olhei as pessoas ali, na senzala,
e em um segundo eu vi tanta dor estampado no olhar
de quem já se acostumou a enfrentar as correntes dia a
dia.
P á g i n a | 105

O Lobo do tempo

É incrível como quando não se tem nada e se


vive em extrema inquietação, pequenos momentos de
alegria dosados a conta-gotas nos unem. Negros
bantu, haussas, nagos, monjolo, cabindas, mina, ketu,
angola, moçambiques, independente de credo,
costumes, ou tribos, tornávamos um nesse cativeiro.
E, na noite da licença para festejar65, isso ficou muito
claro em minha memória. Quando foi anunciado que
haveria a licença para a festa da senzala, as mais velhas
começaram um trabalho de "formiguinha" separando
dia a dia um pouco do que nos era permitido comer,
para ter na festa as comidas e gulodices. Inácio nas
horas vagas juntava restos de madeira para os joguetes
dos pequenos, e um mimo surpresa, que me
confidenciou. Alguns dos mais velhos gostaram
demais do cachimbo que ele me fizera, então fazia um
para cada homem, exclusivo, único, prova de sua
habilidade impar com madeira. Os jovens varriam o
terreiro com suas vassouras de guanchuma66, enquanto
as crianças olhavam tudo cheias de curiosidade. Inácio
e alguns capoeiras tambem esticavam ao sol o couro
de seus atabaques, para jogarem nesse dia. A principio
achei futilidade aquilo tudo e confesso, reagi mal, ate
com azedume excessivo, mas uma boa conversa com
Mãe Paulina me mudou.
65
Licença para festejar, era comum ser dada uma vez ao ano pelos senhores, com o intuito
de manterem a relativa paz em seus domínios. Nessa noite eram permitidas manifestações de
festa, mas sem caráter religioso destoante dos da igreja Católica.
66
Guanchuma, planta tradicional do sul, usada para confecção de vassouras.
P á g i n a | 106

Ela entrou em meu santuário da ranzinzice, o


laranjal "assombrado". Pegou-me de surpresa, pois
fora os colhedores ninguém ia mais por ali, e mesmo
esses iam cedinho da manhã. Eu sentado em meu
tronco que já virara um amigo, com meu cachimbo na
mão, perdido em mim mesmo vi sua presença como
uma invasão e creio que meu rosto mostrou isso.
A mais velha calmamente como se não fosse com
ela procurou onde se sentar, tirou do meio das saias
uma faquinha de ferro e apanhou uma laranja.
Lentamente a descascou, quase que demorando-se
para me irritar mais. Depois de sugar a fruta ai sim, me
falou:
-Meu filho, parece que foi ontem que tu
chegastes, jovem, inquieto, com um olhar como
Adriana falava de Coelho assustado. Hoje és um de
nós, velhos, teu cabelo branqueando, e a vivência com
João te fez ficar turrão - deu uma gostosa
risada..baixinha, fininha, de fazer rir junto - Ah meu
filho não sejas assim. Essa pobre gente não tem nada,
como nós tambem nada temos, e um dia que possam
esquecer toda essa dor, esse lamaçal, vale ouro. Olha
quantos enterramos, quantos vimos partir vendidos,
quantas feridas curamos feitas pela maldade e o
chicote. Não queira tirar isso desse povo. A alegria de
um dia. E tudo o que eles têm Joaquim. E tudo que
nos temos! Velho rabugento.
P á g i n a | 107

Tornou a rir. Envergonhei-me de mim mesmo.


Tentei entabular uma desculpa, mas não havia. Era
ranzinza mesmo e só agora, com Mãe Paulina falando,
que me dei conta que o lobo chamado tempo andara
nos devorando, rodeando. Olhei ao longe Pai João e
só então vi o peso dos anos. Antes um negro forte,
desprendido, hoje caminhava lentamente, e seu cigarro
tremia entre os dedos. O cabelo antes grisalho agora
branqueara totalmente. E o mesmo valia para mim.
Estávamos velhos. E eu, um velho rabugento. Sorri
envergonhado. Mãe Paulina continuou:
-Joaquim, os mais novos se espelham em ti,
esperam de ti que dês partida nas coisas, inicio. Veem-
te ai, pelos cantos, resmungando com as sombras e
ficam com vergonha de quererem esse dia de alegria.
Sabemos sim que esse dia não apaga a maldade dessa
infeliz da Baronesa, nem paga a dor que esse cabra do
inferno nos causa. Sabemos que os mortos não vão
voltar, mas filho, os mais novos precisam disso para
criar força de seguir, e os mais velhos, bom, nos
precisamos um dia, um só dia de risos não e?
Concordei com a cabeça, e mãe Paulina me
tomou pela mão, me levando para o terreiro. Inácio
correu e em um salto estava em minha frente,
comicamente, pedindo meus conselhos em coisas mais
descabidas:
P á g i n a | 108

- O Senhor acha que devo usar os sapatos67


pretos ou de cromo alemão? E qual gravata? Devo por
um cravo na lapela?
Brinquei que dava um tapa na cabeça dele, mas
para minha surpresa o homem me puxou para ele,
bem próximo a boca do meu ouvido, e sussurrou:
-Meu pai, obrigado, to voltando pra África meu
pai, logo logo, e queria tanto o senhor comigo nessa
festa.
-Deixa de bobagem homem..que África nada...
Inácio disfarçou e tirou o lenço do bolso.
Manchado com sangue.
-Falei que não andava bem dos pulmões meu
paizinho. Mas vou feliz se jogar capoeira e pular que
nem louco com o senhor e Pai João olhando.
Tentei falar mas meus olhos cheios d’água e a voz
rouca não permitiram. Inácio me puxou mais forte,
beijou meu rosto carinhosamente e pediu:
-Não fala para ninguém meu pai, só tu sabe. E
pedi para meu Pai Exú, que na hora de ir ninguém
veja. Não quero tristeza. Sou ou não sou filho do dono
da alegria? Antes que pudesse falar algo o homem deu
um dos seus saltos mortais, uma cambalhota e saiu
pelo terreiro que nem um doido. Ah Inácio, mais um
irmão querido que escorregaria de minhas mãos como

67
Usar sapatos, a referência se dá ao fato de escravos serem terminantemente proibidos do
uso de sapatos, para deixar bem clara a diferença social.
P á g i n a | 109

areia da praia? Não conseguia não chorar, e não queria


chamar atenção dos outros. Vó Damiana que me
salvou do embaraço, pois tentava mesmo cega, separar
os grãos para os jogos dos moleques, e fui ajuda-la.
Chegando perto ela só disse uma coisa:
-Filho, mais vale ter tido irmãos e perde-los do
que viver sem tê-los.
Aquela mulher, sofrida, idosa e cega,
definitivamente era quem mais enxergava de todos
nós.
P á g i n a | 110

A noite, velhos viram meninos

A noite após me lavar e comer algo, já me deitava


quando Mãe Adriana me chamou, fazendo gestos para
que não fizesse barulho. Levantei e a segui ate o canto
da senzala para ver algo inusitado. Pai João, Pai
Agenor, Pai Libório e mais alguns dos mais velhos se
riam abafado, enquanto se dobravam por sobre
buracos feitos no chão. Jogavam Mankala, esse jogo
possui estratégias relacionadas à semeadura, onde se
usam sementes colocadas nos buracos feitos em fileira
na terra com o intuito de quem semeia mais. Pai João
me puxou pelo braço e sussurou rindo como a muito
eu não o via fazer:
-Neguinho estamos encrencados. - e se ria com
os outros, como crianças- Mankala só se joga pelo dia,
com sol, quando anoitece quem joga sao os deuses.
Mas não deu para resistir quando vimos os pequenos
preparando jogo no terreiro..bateu saudade
filho.saudade.
Mãe Juvência e Vó Adriana se sentaram perto e
todos baixinho conversavam.
-João- falou mãe Juvência - eu sinto saudade de
kukulo, lembra?
-Claro mãe, aqui chamam esconde-esconde.
P á g i n a | 111

-Então. Sinto saudade. Os baobás68 enormes da


minha terra, a gente correndo e gritando. Kukulo,
kukulo69. Será que um dia João, esses negrinhos vão
ser livres para gritar kukulo para o mundo?
-Vão minha mãe, vão sim tenho certeza.
Pai João foi interrompido por pai Luiz que
aproveitando a conversa roubava no mankala e fora
pego por pai Vendelino. Fui aos poucos me afastando
e indo para minha cama de palhas, mas sorrindo
vendo aqueles velhos meninos, como se em uma volta
no tempo. Tinham tirado as correntes, as dores, os
grilhões, para brincarem, somente brincarem. Ao
amanhecer todos os mais velhos pareciam renovados,
apesar de certamente terem dormido nada ou muito
pouco. Aquele foi o café da manhã mais gostoso que a
senzala já vira.

68
Baobá, espécie de árvore de enormes proporções.
69
Kululu, kululu, referência ao grito “livre” do jogo atual.
P á g i n a | 112

Boas notícias enfim

Ao irmos ao mercado publico buscar as


encomendas, e os peixes no cais algo me chamara
atenção, mas não sabia exatamente o que era.
Enquanto conversava com Pai João, ainda eufórico
pela noite de criança, minha mente tentava encontrar o
que havia de estranho naquelas ruas tão conhecidas já
por mim. Somente na rua nova das flores foi que me
dei conta, as meninas magrinhas que se vendiam, não
estavam mais por lá. Conversando com o Negro
Everaldo Monjolo70, sapateiro, desvendei o mistério. A
dona das meninas e do menino Felipe estava presa,
condenada as galés a ferros. O juiz da comarca deu um
basta para as atividades da mulher a pedido do padre
da cidade e de alguns cidadãos incomodados pela
prostituição. Seu feitor e homem de confiança fora
tambem preso com ela, pois tentara defende-la dos
guardas desacatando-os. Mas, e as meninas, e os
rapazes? Que fins tomaram? Segundo o negro
monjolo, corria o comentário que ao saberem da
prisão da dona, tomaram o barco de um ilhéu, caído
de amores por uma das meninas, e tinham ido se
refugiar na Ilha chamada dos marinheiros, onde
tentariam nova vida por lá.
O sapateiro me contou que este ilhéu, Eduardo,
moço simples, mas trabalhador, pescador como os
pais e os avós antes dele, caíra de amores por uma das
70
Monjolo, negros de determinada região da África.
P á g i n a | 113

meninas, e diversas vezes tentou compra-la de sua


cruel dona, que ao saber do amor dos dois, sempre
subia o preço da negrinha quando o homem conseguia
o valor pedido, e só por maldade obrigava-a a
trabalhar exatamente onde o rapaz atracava o barco,
para os torturar assim. Varias vezes viram o rapaz
chorando no cais por isso. Agora poderiam recomeçar
suas vidas escondidos na ilha.
Finalmente uma noticia que me aquecia o
coração. A vontade era gritar alto Kaô kabiecile, omiô,
omiodo odoiá. Que sejam felizes minha Mãe. Que tuas
águas salgadas lavem toda dor e magoa..felizes e livres.
Agora a festa teria significado para mim, finalmente eu
estava em festa. Vira a justiça feita. Vira meu povo
podendo sonhar em ser feliz mesmo que em uma
tapera no fundo de uma ilha.
P á g i n a | 114

E finalmente, a festa

O dia da festa me trazia agora uma alegria impar.


No fundo minha festa particular era devido a prisão de
Eugênia e seu carrasco, bem como a nova vida de
Felipe e os seus. Como será que andavam em seu
novo lar?
A única coisa que me entristecia era a conversa
tida com Inácio e sua situação. Sabia que o homem
não era dado a exageros nem a dramas, então isso me
tirava o sono. Todo o tempo buscava ver onde ele
estava, e achando-o tentava ler os sinais de seu estado.
As crianças corriam pelo terreiro desde cedo com
seus jogos, enquanto os mais velhos sentados,
observavam. Me atrevi a falar baixinho para Pai João:
-O senhor e seu bando não vão jogar hoje?
O velho deu uma sonora risada e me afagou a
mão carinhosamente.
-Sabes filho, bem que eu podia voltar para África
já. Vivi muito, vi muito, e agora tenho a ti para cuidar
dessa gente desmiolada. Brinquei como criança, chorei
como velho, ja fiz de tudo nessa terra.- seu olhar
cansado se perdeu no horizonte -Só queria mais um
presente de meu Pai Obaluaiê e partia em paz.
-Que conversa é essa Pai João? Partir nada! E
quem vai me puxar as orelhas? E me fazer calar a boca
P á g i n a | 115

e subir na carroça? E alem disso- baixando minha voz


-quem vai aturar o mau humor de Vó Adriana?
A velha passando, me deu um tapa suave na
orelha e falou:
-Eu ouvi hein! E quem vai comer a rapadura que
trouxe?
Rindo colocou uns pedaços de rapadura em uma
gamela próxima a nós. Pai João colocando um deles a
boca riu de novo:
-Viu filho, tudo se ajeita...com rapadura tudo se
ajeita.
Ficamos rindo e olhando as crianças por um bom
tempo, perdidos, contemplando a inocência no meio
de tanta dor.
Os capoeiristas de Inácio jogavam Angola71 em
um canto, observados pelas mulheres mais novas entre
risos e flertes. Os meninos tentavam
desengoncadamente imitar os golpes e movimentos,
um ou outro gritando:
-
-Eu sou Inácio!
-Pois eu sou Damião.
-Eu que sou bom, sou o negro Andorinha.

7171
Angola, nesse caso, estilo de capoeira.
P á g i n a | 116

Os atabaques tirando as cantigas para o jogo me


lembraram que antes, eles soavam chamando nossos
Deuses. Será que ainda nessa terra haveria o dia de
chegar onde eles soariam de novo para chama-los?
Inácio dando uma serie de piruetas no ar veio ate
onde estávamos e agilmente roubou um pedaço de
rapadura de nossa gamela. De repente empacou. Seu
olhar parecia perdido, vago, e cada musculo de seu
corpo se retesou. De sua garganta saiu um grito, único,
vibrante, O Bará estava na terra montando seu cavalo.
Pai João rapidamente se levantou e disfarçando fez os
rituais que precisava para firmar o Orixá em sua
morada humana. Bará humildemente, porque
arrogantes são os homens, mas os deuses quanto mais
poderosos mais humildes são, cumprimentou os mais
velhos, e por último a mim. Parecia pesado,
entristecido. Olhou bem em meus olhos e senti meu
corpo todo tremer. Aproximou-se mais de mim e
sussurrou:
-"Ojubá, loni gbogbo irora dopin fun ÍmÍ mi"
(Ojuobá, hoje toda dor acaba para o meu filho).
Temos tempo, não vou leva-lo sem te contar sua
história. Mais uma história para que tu contes ao povo.
P á g i n a | 117

Inácio, passarinho querendo voar

-Inácio na verdade nasceu em um limbo, nunca


foi decidido se era negro ou criolo. Aduna, sua mãe,
aqui batizada Antonia, o teve dentro do tumbeiro, já
em aguas brasileiras para alegria dos seus donos, mais
um lucro inesperado. Quando o Pai da Baronesa os
comprara Antônia já vinha com o pequeno Inácio no
colo, criança forte apesar das privações que sua mãe
passara na viagem. Quis a "ko dara"72 que a mãe de
Inácio já chegasse doente aqui, e veio a falecer poucos
dias depois de estar na casa grande. Vó Damiana na
época era uma mulher ainda saudável, forte, e tinha
leite sobrando devido a ter ganho um menino que era
abiiku73, então o próprio destino encarregou-se de unir
os dois como mãe e filho de fato. Esse laço que se
criou foi tão forte que perdura até nossos dias. Inácio
cresceu rápido, inteligente e forte e logo chamou
atenção do senhor das Terras. Exímio com madeira,
desde menino criou fama, recebendo o pai da
baronesa encomendas de várias localidades. Mas de
novo a ko dara movia as rodas da vida para Inácio. Na
verdade ele e a baronesa tinham quase a mesma idade
e ela mostrou interesse pelo negro. Um dia estando ele
a consertar o docél74 do quarto dela se surpreendeu
quando ela trancou a porta do quarto e assediou-o. O
rapaz, talvez mais por inocência do que por rejeição
recusou o assedio da baronesa e a mesma, como de
72
Ko Dara, má sorte em yorubá.
73
Abiiku, criança que nasce já destinada a morrer em breve.
74
Docél, estilo de armação de cama comum nass famílias abastadas do século XIX.
P á g i n a | 118

praxe entre gente dessa laia, pôs-se a gritar que Inácio


tinha trancado o quarto com ela dentro. O Barão,
dono das terras, lastimoso pelo lucro que Inácio dava
com seu oficio, mas tendo de lavar a honra da filha,
mandou o jovem para uma novena de acoites, a
primeira da vida de Inácio. Quase tendo morrido no
tronco, e só não o fazendo pelos cuidados de
Damiana, suas orações e beberragens de ervas que pela
noite escura a velha fazia chegar aos lábios do rapaz
acorrentado. Inácio sobreviveu mas saiu daquele
castigo modificado, irado, impetuoso, passional em
tudo, e com uma sede de vingança inimaginável.
Comenta-se até hoje que o comportamento lascivo e
cruel da baronesa de deve a esse dia, a rejeição que
sofreu por Inácio, e que a mulher maltrata seus
escravos de alcova imaginando serem Inácio a sofrer
em suas mãos. Quando o Barão morreu e a Baronesa
sua filha assumiu tudo, pôs em movimento um
intrincado plano de vingança. Sabendo que Inácio era
pavio curto instigou o feitor, que queria mostrar
serviço. Um dia ela vira Inácio entalhando em um
cerne de grápia75 uma santa, viu seu carinho e cuidado,
e deu ordens ao feitor que vigiasse atentamente o
destino dessa imagem, pois já ouvira de outros
senhores sobre a desconfiança de que os negros
usassem imagens cristãs para cultuarem seus deuses
pagãos. Antenor, que conhecia os sistemas religiosos
da senzala, não entregou o caso ao Santo Oficio76,

75
Grápia, madeira muito usada em entalhes por ser fibrosa.
76
Santo Ofício, órgão católico encarregado de instaurar os processos de Inquisição.
P á g i n a | 119

através dos familiares77, mas destruiu a imagem da


santa arrancada das mãos de Damiana enquanto orava
a Oxum. Este fato moveu com mais intensidade a
roleta da vida de Inácio, levando-o ao tronco, a perda
de um olho, e ao degredo, pois a Baronesa vendo
Inácio cego de um olho se sentiu tão inquieta com isso
que o mandou as Charqueadas onde tinha fazenda. O
sal, umidade, vísceras bovinas em decomposição, tudo
isso aliado ao trabalho duro e em demasia destruíram
os pulmões de Inácio, o que nos traz hoje, a esse final.
Assim, Bará terminava sua historia conhecida por
todos menos por mim. E vi Inácio com outros olhos.
Aquele homenzarrão na verdade era corpo de gigante
mas cabeça e alma de passarinho querendo voar, para
descobrir apenas um lugar seu, de paz. O menino não
voou mas cresceu, e aprendeu que nesse mundo não
há tempo para olhar as flores, rir como criança, brincar
no rio. Que tristeza me deu isso tudo. Quando me dei
conta estava chorando, ao que o Bará me abraçou e
disse:
-Não Ojuobá, não chore, meu menino volta hoje
comigo para a África que ele não conheceu. Vai
entalhar muito ticun, baobá, grápia, fazer muito
paramento para mim e meus irmãos dançarmos. Ele
agora está feliz podendo ter a ti e o negro João, e vai

77
Familiares do Santo Ofício, em locais como aqui, na Província de São Pedro, e na cidade de
Rio Grande de São Pedro, não havia tribunal inquisitorial, mas sim “familiares”. Notáveis ricos
da comunidade encarregados de denunciar qualquer alteração. Os casos mais graves eram
levados a Torre do Tombo, em Portugal.
P á g i n a | 120

feliz comigo. Vou dessa terra com meu filho, e quero


que tu, somente tu, nos veja partir.
Levantou-se e eu o segui a senzala. Pegou uma
esteira de palha e me olhando falou:
-Vou deitado na figueira de João, não nessas
paredes, sujas de dor. Manchadas de sangue e
humilhação. Vou debaixo de onde tudo começa, nas
folhas78.
Caminhamos atá a figueira onde Pai João
sentava-se sempre. O Bará estendeu a esteira e
encostou a cabeça no tronco da figueira. Lembrou-me
Inácio no colo de Damiana. Pediu-me um cigarro e
conversamos sobre o tempo, as pessoas, ate que ele
silenciasse, o cigarro caísse de sua mão tocando a terra.
Inácio tinha partido, Bará Olodê tinha partido, os dois
iam em direção a Aruanda, o céu dos guerreiros, iam
para a África. Vi movimento perto de mim e quando
olhei juro que vi dois vultos de homem, abraçados,
caminhando, sumindo na neblina dos pampas
gaúchos. Vai Inácio, entalha teus Deuses, não mais
disfarçados de santos católicos, mas livres, livres para
serem o que sempre foram. Vai meu amigo, vai para
Aruanda.
Voltei contando os passos até Pai João, que me
abraçou. Procuramos Damiana no meio do povo, e
quando a achamos a velha estava sentada, sorrindo,

78
Começa nas folhas, referência sobre os rituais africanistas, onde se iniciam as obrigações
por infusões de ervas, chamada Amací.
P á g i n a | 121

em suas mãos a santa entalhada por Inácio. Damiana,


que o destino fizera mãe de Inácio, partia com ele para
a África. A mais velha partia como que dormindo,
sonhando um sonho bom, um sorriso nos lábios.
Sepultamos-a no outro dia assim, com a santa tão
amada em seus braços e na simples cova ao seu lado,
repousava Inácio, seu filho de alma. Lembrei uma
cantiga antiga que ouvira um dia, "Perdoa Nanã
perdoa, perdoa que vou chorar, quem amava foi
embora está nos braços de Oxalá". Perdoa Inácio,
perdoa Damiana, e perdoa Bará Olodê, mas eu vou
chorar de saudade por pessoas como vocês, que
tornaram mais suportável minha vida nessa terra.
Perdoa mas não quero nem pensar em Pai João nos
braços de Oxalá e eu sozinho nesse mundo. Perdoa
nana...
P á g i n a | 122

O anjinho

A normalidade relativa havia voltado a senzala,


apesar de Inácio e Antenor nao poderem se olhar sem
que os olhos flamejassem. Pressentia que ainda dessa
história surgiria um desafortunio terrível. Pela manhã
como de costume carregamos a carroça e partimos
para as obrigações que tínhamos, e nesse dia eram
varias. Passei pelo local onde conheci Nicolau e senti
saudade do velho. Parecia ainda o ver sentado ali, com
seu olhar cego como que perscrutando outros
mundos, e seus diálogos consigo mesmo, cismando
algo que só ele mesmo entendia. Vi as meninas que se
vendiam no cais e de novo senti pena delas, como se
meu coração inundasse de piedade pela triste sina
delas.
Chegando à Praça do poço notei certo
constrangimento nos negros e negras que ali
ganhavam a vida. Mal descemos da carroça e alguns
deles vieram ter conosco.
-Ojuobá, acode. Que injustiça está sendo feita. Já
não basta o que o menino sofreu?
Não entendi nada na hora mas com calma e
ouvindo a todos compreendi o pior. O menino,
Pedrinho, estava no pelourinho, no Paço do moinho.
Iam coloca-lo no anjinho, instrumento de tortura que
esmagava lentamente os dedos da mão com um girar
P á g i n a | 123

de manivela. Meu Pai Xangô, porque isso ao menino?


A resposta veio de Mariana, uma negra hausa:
-A Baronesa sua dona Ojuobá, ela que mandou.
Disse que Pedrinho andava nas terras do casarão dela
a roubar frutas do seu pomar. Que assim ele venderia
e ficaria com os cobres para ele e não para seu dono, o
Miguel taberneiro.
Pai João e eu abandonamos o povo agitado e
voamos na carroça para o pelourinho. Havia algumas
pessoas por lá, esperando o espetáculo terrível.
Pedrinho chorava amarrado a um poste e sua
mãozinha já colocada no instrumento maldito de dor.
O juiz cercado por Miguel o taberneiro e a Baronesa
acertava os termos de encerramento do processo, e
ouvi do povo que esperavam que o menino
confessasse quem lhe dava entrada nas terras da
Baronesa para os roubos cometidos.
O carrasco da cidade acompanhado pela guarda
imperial ja se preparava para seu infame ofício, quando
se ouviu uma grande comoção próximo ao juiz,
seguido de som de luta intensa. Onde estávamos não
conseguíamos entender direito o que se passava
porque o povo se aglomerava em torno dos
envolvidos. Somente com um disparo da pela guarda
imperial, feito para o alto, que se afastaram e então
pude ver a Baronesa amparada pelo juiz, com uma
grande mancha de sangue crescendo em suas vestes
finas de seda. Já desfalecia e se via que não
P á g i n a | 124

sobreviveria ao ferimento. Caído próximo dela, tendo


perto ainda a adaga pingando sangue, Antenor,
tambem ferido mortalmente por um dos guardas. Com
sua mão trêmula acenou como implorando que Pai
João se aproximasse. Pai João atônito, paralisado pela
cena, precisou de um suave empurrão meu para que se
aproximasse de Antenor.
O homem em meio ao sangue que lhe escorria
pelos lábios tentava balbuciar algo, e os guardas
ocupados em assistir a Baronesa não se opuseram que
Pai João se aproximasse.
-Só me ... chama.. de filho, por favor! -disse
Antenor.
Pai João relutante ficou calado e o homem
morrendo voltou implorar:
-Pai fui mal, errei, me perdi, mas não podia mais
seguir, nem deixar ela machucar o menino
coitado...estou morrendo pai, só me chama de filho
para mim poder ir pra Aruanda pai.
-Filho. Meu filho que amei como nenhum outro,
e que me matou quando se perdeu.
Os dois choravam em meio ao tumulto no paço,
como se em outra dimensão. Pai João colocou a
cabeça de Antenor em seu colo.
-Paizinho, me perdoa paizinho, só não queria
sofrer como vocês. Fui fraco pai, fui fraco e mal.
Perdoa teu filho que te deu tanto desgosto.
P á g i n a | 125

-Meu filho...sempre te amei meu filho. Descansa


agora..Aruanda já te espera meu menino, que Oxum te
lave toda maldade dessa vida no rio dela. Meu filho
que dei o nome Abadekun, e mudaram para Antenor.
Descansa Abadekun, vai conhecer a terra dos teus
ancestrais.
A cabeça de Antenor tombou sem vida no colo
de Pai João, que ficou prostrado, chorando
silenciosamente. Ele me olhou e falou:
-Olakunde, teu nome é Olakunde, ninguém tem o
direito de mudar nosso nome e quem somos meu
filho. Esse velho te mentiu, nunca pedi na figueira a
morte dele...eu pedia que ele se arrependesse, que visse
quem ele era..que era preto como pretos eram quem
ele maltratava. Meu filhinho esta morto
Olakunde...não me sobrou mais nada nessa terra..nada.
Ajudei ele a se levantar com dificuldade. Perguntei se
podíamos levar o corpo de Antenor para a casa grande
ao que nos foi permitido. Levamos ele para a carroça e
só então me dei conta, e o menino Pedrinho? Quando
olhei para o lugar do anjinho não vi nem sinal do
menino, mas isso eu ia tentar entender mais tarde,
agora era hora de ajudar meu Pai a enterrar seu filho
que voltava para Aruanda.
P á g i n a | 126

O Juíz da comarca

Com a morte da baronesa muita coisa mudou na


casa grande, e não posso dizer que para melhor.
Primeiro de tudo, passamos a ter um novo senhor.
Como a baronesa não era casada e nem tinha filhos,
um primo herdou todos seus bens, incluindo seus
escravos. O problema que esse primo morava em
Portugal ainda, e interinamente, a sua ordem, assumiu
as propriedades o juiz da comarca, o mesmo que
amparara a baronesa em seus últimos momentos. Sua
chegada à casa grande se deu com novidades. Um
novo feitor trazido por ele, um negro fula79, de cara
marcada e olhar ruim. Também trouxera quatro
jaguns80, um deles com fama de farejador81. Aqueles
homens provocavam arrepios a todos que cruzassem
seu caminho. Pouco falavam, se entendendo com
olhares ou palavras meio que mastigadas e seus
movimentos eram como de felinos, quase
imperceptíveis. Na verdade nada se sabia sobre
aqueles homens, até porque nem tínhamos contato
com eles. Dormiam em uma tapera no fundo do
terreiro, porem um dos moleques disse que um deles
dormia sempre na rua, sentado. Como de guarda,
como se esperasse algo. e ai começaram as piores
mudanças.

79
Fula, origem étnica de povo africano.
80
Jagun,
81
Farejador, por incrível que pareça, eram usados negros para farejarem outros negros,
rastrearem suas fugas.
P á g i n a | 127

O novo feitor era sedento de sangue negro,


levando ao tronco qualquer um por qualquer coisa.
Passamos a viver com mais medo ainda que o normal.
Homem extremamente religioso parecia farejar o ar
em busca de supostas heresias. A capoeira, ensinada
pelo nosso Inácio, foi proibida na casa grande.
Histórias da nossa terra contada às crianças tambem.
Todos os dias quase os ajaguns davam buscas na
senzala atrás de traços de nosso culto antigo.
E para piorar tudo isso, Pai João definhava a
olhos vistos. Parece que a morte de Antenor drenara
todas as forças do velho. Passava os dias em um canto
cismando consigo mesmo. Nem Vó Adriana o
conseguia resgatar dessa prostração apesar das
ameaças do novo feitor, de que se Pai João não
voltasse as atividades iria para o tronco. Todos os dias
eu quase tinha de coloca-lo na carroça como a um
inválido, para manter as aparências. Mas não sabia ate
quando daria certo isso.
Uma das exigências do juiz era de que aos
domingos toda senzala fosse a missa, na capela de São
Francisco de Assis, aos fundos da matriz de São
Pedro. Um desses domingos, enquanto ia e vinha
trazendo os negros ate a praça de São Pedro, para
irmos a capela, ouvi que tinha sido iniciada por um
homem, Raphael Pinto Bandeira, e depois doada a
ordem franciscana. Que no inicio era dedicada a uma
santa, Virgem da Conceição, pois sua mãe era devota.
Tambem ouvi do rapaz que falava, que esse homem,
P á g i n a | 128

Raphael, criara uma tropa de negros escravos, os


Dragões Negros, e os dera liberdade. Como queria ter
conhecido esse homem branco, porem justo.
A capela era simples, com bancos rústicos de
madeira, e o padre encarregado de rezar a missa para
nós, negros, demonstrava todo seu descontentamento
por isso. Todas as missas eram em intenção da alma da
baronesa, e eu por minha vez, tinha certeza que nem
um milhão de missas ajudaria a alma daquela mulher
cruel.
P á g i n a | 129

Notícias de Pedrinho

Os ajaguns às vezes sumiam por dias, e nesses


dias parecia que a senzala respirava melhor. Realmente
eram dias cinzentos aqueles, e em nossa mente ainda
havia o luto por todas nossas perdas mais recentes. O
único raio de sol para mim veio no lugar mais terrível
da cidade, o paco do moinho. Só pisar lá relembrava
tudo o que já presenciara por ali. O enforcamento do
negro Tomás, o negrinho engraxate chicoteado, a
morte do filho de Pai João... Tudo.
Quando parei a carroça e desci dela, para buscar
mantimentos na quitanda próxima, deixando Pai João
aboletado com suas cismas e monólogos, um negrinho
gritou por mim e veio em desabalada carreira.
-Pai Joaquim, esperei tantos dias pelo senhor-
disse o menino tomando fôlego- tenho um recado.
-Pois fale- disse eu afagando a cabeça do menino.
-Mandaram dar ao senhor- e me alcançou uma
laranja, o que me lembrou de Pedrinho- e falaram para
o senhor ir à rua do açougue e procurar por Seu
Alipio, o coureiro.
Quando ia agradecer já se ia o moleque correndo
e cantando, indo se juntar aos outros meninos que o
esperavam.
Tratei de arrumar algum pretexto para ir à rua do
açougue e procurar Alípio, o que foi fácil de acontecer.
P á g i n a | 130

Era um homem rude, grande, mãos calejadas e


curtidas como o couro que ele comercializava. Cabelos
brancos apareciam em sua cabeça escapando pelo
chapéu tradicional de gaúcho. Nas mãos uma faca com
a qual exercia seu oficio. Confesso que me aproximei
com receio, mas a reação do homem ao me ver me
deixou desatinado. Erguendo-se beijou minha mão
antes de falar:
-Sua bênção Ojuobá.
Vendo minha surpresa explicou mais baixo.
-Ojuobá, a alguns anos me apaixonei por Maria,
uma negra nagô, linda meu pai. Trabalhei duro, sol a
sol, e a comprei para casarmos, pois ela tambem queria
esse teatino82 redomão83 aqui. -disse sorrindo - O
senhor sabe como é, quando souberam todos me
viraram as costas, mas não liguei. Dai meu pai, uma
bela noite, bolei no santo! É Ojuobá, meu Paizinho
Ogum me confirmou como seu filho, esse branco de
alma negra aqui, filho do Guerreiro. A alguns meses
pai, meu Pai Ogum me mandou viajar lá para as
bandas orientais, o senhor sabia que lá já não há
escravos? Então... meus couros são finos, coisa boa
pai, e lá carecem disso. Dai meu Pai Ogum deu a
ordem de eu tirar do meu trabalho só o do sustendo
meu e de minha negra, e o resto usar para
contrabandear para o Prata, adivinha o que pai?

82
Teatino, diz-se de ou animal (cavalo, boi, cachorro etc.) sem dono ou cujo dono é
desconhecido..
83
Redomão, diz-se de ou cavalo recém-domado, que ainda não está bem manso.
P á g i n a | 131

Aturdido com tudo aquilo só consegui balançar a


cabeça.
-Contrabandear vida pai, liberdade.- baixando
mais a voz- ajudo negro fujão meu pai a atravessar
para o Prata. Para recomeçar. Ainda levam uns cobres
na guaiaca para o inicio. E a próxima carga te
interessa. Já vai a caminho o negrinho Pedrinho pai,
tem uma negra kabinda lá que vai criar ele, livre..livre
meu paizinho- e deu um sorriso.
Senti vontade de gritar kukulo, como o jogo.
Livre, livre, Pedrinho livre como toda criança deveria
ser. Meu pai Xangô que alegria esse filho de Ogum me
deu, livre, kukulo. Contrario a vontade do homem eu
que beijei sua mão pedindo a benção de seu Pai
Ogum, e agradecendo por tudo. A volta para o
casarão ganhou novas cores nesse dia.
P á g i n a | 132

Miguel chega a casa grande

Após alguns dias da festa, e ainda com a tristeza


da perda de Inácio e Damiana, o casarão recebeu um
novo e enigmático morador, que chegou numa tarde
fria e chuvosa. Miguel era um negro haussa, magrelo,
alto, o nariz em nada parecia o de nosso povo, mas
antes tinha uma forma aquilina. Calado, introspectivo,
mas extremamente observador. Seus olhos não
paravam em um local por muito tempo.
Logo os outros haussas tentaram acolher o rapaz
e souberam sua história. Ele era escravo do juiz a
alguns anos, filho de negra haussa com árabe, devido a
isso suas feições. Fora capturado ainda menino, mas
grande o suficiente para já saber ler e escrever na
língua dos otomanos e seu pai.
A principio o juiz o trouxera para aliviar espaço
em sua própria senzala, mas como aqueles eram
tempos estranhos, sua presença na senzala criou o
temor de que se tratasse de um espião. O medo só
acabou quando teve a oportunidade de condenar aos
mais duros castigos Vó Adriana e não o fez. Mariana,
uma jovem bantu estava por demais febril,
convulsionando, o que era pior. Vó Adriana se
achando sozinha e segura não viu outra saída senão
recorrer aos Orixás para curar Mariana, e para isso
tratou de retirar do esconderijo o Ocutá84 de Xapanã.
84
Ocutá, no ritual africanista aos Orixás, cada Orixá tem sua pedra determinada, de forma
característica, onde é assentado o axé desse Orixá.
P á g i n a | 133

Quando estava nessa empreitada, usando o Ocutá do


Senhor de todas moléstias para pedir por Mariana, o
jovem Miguel entra na senzala para horror de Vó
Adriana. Ele vendo a tudo se aproximou dela e do
Ocutá, e em sinal de respeito tocou o peito, os lábios e
a testa como era costume de seu povo, para depois sair
silenciosamente por onde entrara.
Vó Adriana, temerosa não por sua vida, mas pela
segurança do Ocutá sagrado, não sabia o que fazer.
Escondeu-o como pode e esperou. A noite, quando
todos voltaram para a senzala sem que nenhum
incidente tivesse acontecido, Vó Adriana se
surpreendeu quando Miguel perguntou-lhe:
-Avó, a menina esta bem?
]-Sim, melhorando meu filho.
-A senhora...me ensina?
-Ensinar o que garoto?
-O poder que tem nas pedras de seus Deuses.
Quem são. Como adorá-los. Preciso saber tudo!
-Mas porque isso?
-Avó tenho fome. Fome de conhecer. E essas
correntes não vão ficar para sempre nos meus pulsos
avó. Preciso saciar essa fome.
Joaquim viu quando aprendiz e tutora falavam
baixinho. Ela relembrando, ele com os olhos
brilhando, curiosos, a mente inquieta.
P á g i n a | 134

Os próximos dias passaram assim, todo tempo


sobrando que Miguel tinha estava ao lado da velha,
cheio de perguntas, curiosidades, dúvidas, que a mais
velha respondia uma a uma, as vezes chamando
alguma das outras mais velhas para auxiliar em alguma
explicação. Com o resto de nós o rapaz era arredio,
distante, de pouco falar, mas com Vó Adriana ele
mudava da água para o vinho, parecia outra pessoa.
Um dia desses, Vó Adriana me pediu para inclui-
lo nas idas a cidade, no intuito de me ajudar, já que Pai
João cada vez mais se distanciava da realidade desse
mundo, vivendo em sua própria realidade. Assuntei
aqui e ali, dei sugestões veladas e me permitiram levar
o garoto junto.
Em nossa primeira ida a cidade me lembrei da
minha vez, e Pai João me orientando, mostrando as
ruas e coisas. Passamos os próximos dias assim,
Miguel de olhos brilhantes, absorvendo tudo como
uma esponja, inquieto em sua mente. Cada rua, cada
pessoa, cada detalhe, nada passava despercebido da
fome dele.
Ao mesmo tempo que Miguel crescia em
conhecimento e vivacidade meu velho e querido Pai
João me preocupava cada dia mais. As vezes me
olhava como se nem mesmo lembrasse de mim, de
meu nome ou de nossas histórias, lágrimas e risadas
juntos. Era como se um véu tivesse descido sobre ele,
o isolando do resto de nós. Comia porque lhe
P á g i n a | 135

colocavam nas mãos a cuia, Dormia porque eu o


deitava em suas palhas. Virara um autômato. Uma
noite eu o peguei falando com as sombras, chamando
de Antenor o vazio. Conversava animadamente, e
quando afinei o ouvido para escutá-lo chorei, pois o
velho estava em algum lugar do passado, ensinava seu
filho ainda menino a fazer arapucas para passarinhos,
orientava quanto aos ataques de Quero-queros. Pobre
Pai João, tudo que ocorrera foi demais para ele.
P á g i n a | 136

Miguel conta seu plano

Em uma de nossas idas a cidade Miguel estava


absorto em silêncio, reservado demais até mesmo para
seus próprios padrões de conduta. Mas, como tinha
aprendido com Pai João, respeitei seu silêncio e lhe dei
o tempo necessário. Quase na hora de retornamos a
casa grande ele criou coragem e começou:
-Pai Joaquim, o senhor sabe quanto custa a nossa
liberdade?
-Depende negrinho. Depende de quanto o
senhor pagou por ti, e quanto ele decidir que vales
hoje.
-Sim Pai, eu sei disso, mas falo em valores
maiores. Para mim ser livre vale minha vida Pai. Não
aceito as correntes, não aceito não ter meu nome de
verdade, não aceito Pai.
-Ah meu filho, sei que é duro negrinho mas é
assim. Tens que acostumar.
-Não Pai, perdoe contraria-lo mas não. Não me
acostumarei em viver assim nunca.
Eu tentando por um final a essa conversa, usei de
um subterfúgio:
-Então negro, junta uns réis, e um dia, compra
tua carta de livre, de fôrro.
Ele deu uma risada amarela e passou a me contar
P á g i n a | 137

-Pai, o senhor já ouviu falar da loteria dos livres?


Então, no Rio de Janeiro, brancos “bondosos”
decidiram criar uma loteria cujo lucro era para ajudar
negro a comprar suas cartas. Sabes qual era o segundo
prêmio: Um escravo! Um escravo Pai, prêmio de
loteria para ajudar negro a ser livre. E a negrada
comprando bilhete, iludida. Não confio na palavra
desses brancos Pai, e nem em suas rifas e associações,
e saraus. Branco defende que negro seja livre se lucrar
com isso meu Pai.
Tive que rir dessa história da loteria mas Miguel
seguiu:
-Não Pai, é verdade isso, o primeiro prêmio era
um cavalo, o segundo prêmio um escravo, nem para
primeiro prêmio servimos meu pai. Essas associações,
saraus, são só gente branca querendo passar por
boazinha. Eles sabem meu pai que um dia essas
correntes vão se romper e ninguém quer estar na
frente dessa manada de negros enlouquecidos e
inebriados pela liberdade.
-Está bem senhor rei da manada, e o que o
senhor pretende fazer?
-Pai, quero ir para as bandas Orientais, lá negros
são gente, são livres meu pai.
Lembrei da minha conversa com o coureiro
sobre esse assunto.
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-Mas negrinho, e a língua dessa gente, tu sabes


falar?
-E sabíamos essa língua quando viemos para cá
meu pai? E uma criança nascerá sabendo falar alguma
língua senão a dos choros e resmungos?
Não é que o danado tinha resposta para tudo?
Coloquei meu braço sobre ele e disse:
-Está certo Miguel, tens razão em tudo isso. Dê
tempo ao tempo e vamos ver o que o destino nos
oferece. Enquanto isso vais aprendendo, olhando,
curioso que és.
-Faminto meu pai, faminto.
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Seis anos depois ...

Já se tinham ido seis anos, e com eles a saudade


tomou cada um dos meus dias. Pai João e Vó Adriana
já tinham voltado para a África, e eu me sentia cada
vez mais sozinho nesse mundo.
Pai João partiu no final dos meses frios. Andava
cada vez mais isolado de todos até que deixou de
caminhar, prostrou em um canto e ali passava os dias
mudo, cismado, isolado em seu próprio mundo. Doía
a alma de todos vê-lo assim. Parecia que quando seu
filho morrera uma parte de Pai João morreu junto. Até
a comida devia ser dada a ele quase que na boca. Em
seus olhos todo o viço e brilho tinham sumido.
Em um amanhecer ainda frio, enquanto as mais
velhas preparavam o café, senti-me inquieto,
incomodado por algo que eu mesmo não sabia o que
era. No canto do olho percebi o vulto enorme,
vestido com palhas da cabeça aos pés, imponente. Era
Xapanã, Obaluaiê viera livrar seu filho do sofrimento
e do cativeiro.Passou entre nós desapercebido pelos
mais novos e temido pelos mais velhos.
Aproximou-se de seu filho amado e então Pai João
abriu os olhos e sorriu. Estendeu a mão no ar, em
direção ao Orixá, que lhe ergueu da cama de palha no
chão. Ao passarem por mim Pai João me brindou com
um sorriso como nunca tinha visto antes em seu rosto.
Meus olhos derramavam lágrimas e Vó Adriana me
abraçando tentava me consolar, sem sermos
P á g i n a | 140

entendidos pelos mais novos. Pai João estava livre.


Livre da dor e das correntes. Livre da maldade dos
homens brancos e pretos. Livre da ignorância que te
avalia pela cor de tua pele. Pai João estava de viagem.
Voltava ao nosso velho mundo, nosso continente
África. Hoje mesmo remoçaria correria pelos campos
e pradarias, pescaria e nadaria em nossos rios. Vai meu
velho pai, amigo, mestre. Vai que logo logo chego
tambem ai. Prepara lugar meu velho que esse negrinho
que tu ensinou a ser gente vai te encontrar.
Vó Adriana ainda manteve a senzala de pé por
mais um ano e alguns meses. Sua partida foi em meio
a um temporal como nunca se vira antes na casa
grande. O vento agitava as palhas no chão da senzala e
atiçava o fogo onde as mais velhas cozinhavam. Os
animais inquietos no terreiro pressentiam algo
diferente no ar. Vó Adriana se levantou e foi onde eu
estava, com meu velho cachimbo, acariciou meus
cabelos brancos e falou baixinho:
-Joaquim, olha Joaquim. Como é linda minha
Mãe.
Nessa hora um enorme relâmpago cortou os
céus, como se desenhando algum símbolo secreto e
mágico nas nuvens. A terra tremeu com o trovão que
o seguiu. Por segundos pareceu-me ver realmente uma
moça linda, negra, armada com uma espada a dançar
em meio aos raios. Apertei a mão de Vó Adriana
P á g i n a | 141

como quem não quer deixá-la seguir seu caminho,


como quem não podia deixá-la.
-Meu menino, calma. Sempre terás a nós meu
menino. Vivemos na casa, no terreiro, nas laranjeiras
que amas. Vivemos em ti. Olha, o velho João, também
veio me buscar. Como está moço!
-Vó o que vai ser de mim?
-Tu meu filho, vais seguir ainda mais um tempo.
É tua missão, sabes disso. Meu Ojuobá! Toma conta
dessa negrada desmiolada meu menino, e tu mesmo
cria juízo. Agora deixa eu deitar no teu colo como um
dia deitasse no meu, choroso, assustado. Essa velha
precisa descansar. Filho sabes, não é justo os mais
velhos enterrarem os mais novos, é errado. O certo é
isso, os velhos se vão e os mais novos seguem.
Beijou-me o rosto e deitou-se em meu colo, se
aninhou nele agarrando minha mão, e assim ficamos
até que senti a vida se escoar dela. Minha velha tinha
ido também, viajado. As correntes dela tinham
rompido, a marca a ferro tinha se apagado agora.
Espera por mim minha velha, espera que já chego.
Teu menino já cria asas e voa alto, até a Aruanda para
te encontrar.
Enquanto sepultava Vó Adriana perto de Pai
João pensava quantos amigos tinha sepultado, quantas
covas tinham sido abertas. Como o tempo doía em
mim agora.
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Miguel entrega seu coração

Miguel passara a ser meu braço direito e mais fiel


amigo. Talvez o que mais entendesse minha solidão e
minhas rabugices. Me acompanhava dia e noite por
onde andasse e até no meu santuário de laranjeiras ele
tinha fincado os pés e não pude enxotá-lo de lá. Po
um tempo achei que as ideias dele de fuga tinham
ficado no passado dado ao fato de não mais
mencionarmos isso. Até a chegada de Doralice.
Doralice era uma negra magrinha, calada, mas
esperta. Vinda do povo Ijexá, chegara ao Brasil ainda
muito menina, e passara por algumas fazendas nas
Minas Gerais até ser comprada pelo Juiz, que a
propósito, seguia administrando os bens deixados pela
Baronesa. O herdeiro nunca aparecera em suas posses
e o juiz usava a tudo como dono, incluindo
comprando mais escravizados para seu plantel.
Quando Doralice chegou notei que Miguel
mudara. Andava calado mais que o costume. O olhar
perdido no horizonte, divagando. As vezes falava com
ele duas, três vezes, para que ele atendesse. Passei a me
preocupar com isso até o dia que entendi, quando vi
os dois conversando animadamente em um canto.
Miguel explicando as ervas, pois após a morte de Vó
Adriana ele tomara para si o sacerdócio dela.
Preparava unguentos, chás, rezas e tudo o mais. Que
belo aluno Vó Adriana deixara! Mas agora, Miguel
estava amando em uma terra que era proibido amar.
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Tinham nos roubado tudo. Nosso nome, língua, terra,


deuses, família, e o direito ao amor. Não tínhamos
esse direito e sabia que Miguel e Doralice iam sofrer
por isso. Mas o amor deles era forte, grande, se via nos
olhares, nas mãos que se procuravam, na conversa
muda dos sorrisos trocados mesmo em meio a dor.
Tudo parecia calmo na senzala e por um momento
esqueci a nossa sina. Mas um dia notei o olhar de um
dos ajaguns para a moça, olhar frio, escuro, sombrio.
Olhar de quem toma o que quer, não importando de
quem. Aquele homem e seu bando era perigosos
demais e decidi me envolver. No outro dia indo ao
centro da cidade tratei de procurar um velho amigo,
Alípio de Ogum, o coureiro contabandista de
liberdade. Alípio ficara viúvo a uns meses e tambem
andava cabisbaixo, isolado de tudo mas tinha que
tentar:
-Ó de casa! Alípio.
-Ojuobá, sua benção meu Pai, entra, a casa é tua.
Só perdoa a desarrumação, depois que minh preta
voltou para a África...sabe como é.
-Sei Alípio, mas toma coragem homem, ela
haveria de querer isso.
-Então, o que posso fazer pelo senhor meu Pai?
-Amor meu amigo, venho para salvar o amor.
-Mas me conta essa história- falou o coureiro
pegando duas canecas de café.
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Contei-lhe as aventuras de Miguel e seu amor por


Doralice, e meus temores por eles.
-Pai conheço esses ajaguns, são gente sem alma,
sem moral, sem coração. Vamos dar um jeito e para
ontem nisso. Sabe Pai, tenho uns cobres de reserva,
vou deixar tudo para eles, não preciso de nada sem
minha preta, só de uma resposta.
-Pois fale homem.
-Pai, minha negra foi para a Aruanda...e será que
eu entro lá branco desse jeito?
Tive que rir do temor do pobre homem, o
abracei e falei.
-Tu és mais negro que muito negro que conheço
Alípio, se alguém tem entrada certa na Aruanda é tu,
fica tranquilo. Tú e tua preta vão se encontrar no céu
dos guerreiros
Acertamos tudo para dai dois dias, a fuga de
Miguel e Doralice, e os detalhes da viagem.
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De viagem para o Prata

Custei a convencer Miguel do plano, insistia que


eu fosse com eles, mas meu lugar era ali, na casa
grande. Expliquei mil vezes ao cabeça dura mas ainda
alem de não se convencer envolveu Doralice no plano
de me arrastar em sua fuga.
Miguel não abria mão da ideia, eu tinha que ir
com eles. Mas ir como? E meu povo? Agora sem Pai
João, sem Vó Damiana, sem Vó Adriana, só restava
eu, dos mais velhos. Ah Inácio, que falta me fazes
Inácio. E alem do mais, tem cabimento um casal
novinho arrastando um velho azedo e cansado por ai?
Concordei com minha ida junto somente para
que se preparassem mas era impossível, queria partir
ali, nas minhas laranjeiras, perto de onde jaziam as
pessoas que amei. Miguel não cabia em si de felicidade,
e para evitar algum problema mantivemos Doralice o
mais oculta possível do ajagun. Afinal estava próxima
sua partida. Mantivemos segredo ate mesmo na
senzala seguindo um Conselho do meu saudoso Pai
João. Que nem todo negro era bom e nem todo
branco era ruim. Melhor que ninguém de nada
soubesse.
No dia marcado bem cedo ocultamos Doralice na
carroça carregada, debaixo de sacos vazios e caixotes,
desconfortável porem eficaz. Miguel eu mantinha sob
controle para que não demonstrasse sua ansiedade.
Tocamos direto a cidade e a casa do coureiro, por
P á g i n a | 146

onde entrei pelo portão lateral ocultando a carroça dos


passantes. Doralice, magrinha, torcendo as mãos de
ansiedade desceu amparada por seu amado Miguel,
trazia uma trouxinha nas mãos com sei lá o que
dentro.
Ao ver o coureiro se espantou, mas acalmei-a
explicando quem ele era. Feitas as apresentações,
despedi-me de Alípio agradecendo por tudo. Miguel
percebendo correu:
-Pai aonde o senhor vai? Preciso do senhor...
-Filho minha missão é aqui..e a tu Miguelzinho, e
botar filho no mundo, mesclar essa brancagem, com
nossa pretidão! - dei um sorriso mas Miguel chorava -
Vai,filho. Vai pro Prata. Vó Adriana te deu tudo que
tu precisava, Alípio deu o resto, e eu filho, só posso te
dar minha bênção.
Miguel beijando minha mão falou:
-Tua benção é o que mais quero meu pai, e sem
ela nao dou um passo. Vivo e morro cativo mas sem
tua bênção não vou a lugar algum.
Alipio nos apressava pelo risco corrido. Já havia
um carroção esperando para a próxima etapa da
viagem. Iam até Santa Vitoria, pela estrada das
fazendas era arriscado por haver muita senzala e muito
feitor, então seguiriam as trilhas antigas dos chibeiros,
mais longa porem segura.
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-Que meu Pai te abençoe Miguel, e abençoe tua


mulher, e a cria que ela carrega!
Doralice me olhou envergonhada, e Miguel
surpreso.
-Cria pai?
-Sim filho, ela sai daqui levando o maior tesouro
de vocês dois, uma cria, livre. Abracei os dois e a
Alípio e tratei de seguir minha jornada, sabia que a
volta a casa grande seria dolorosa para mim.
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Maldito tronco sangrento

Ao retornar a casa grande não falei nada. Queria


poder dar o máximo de tempo que pudesse ao casal
em fuga. Quanto mais tarde soubessem mais longe
eles iriam. Desatrelei o cavalo, arrumei as compras,
mais devagar do que o normal, e fui para a senzala. Já
estava comendo algo quando a porta se abriu
violentamente, dois ajaguns e o feitor entraram
revirando tudo, molestando a todos já acomodados.
O feitor de forma brutal me ergueu da palha por
um braço:
-Fala negro velho, cadê o guri e a negrinha
magrela?
-Não sei!
-Como tu não sabe negro se o guri saiu contigo.
-E voltou comigo, depois não vi mais. Deve estar
nas cocheiras.
-Vamos ver se tu não visse mesmo negro. -
olhando para um dos ajaguns falou - leva pro meio do
terreiro, esse inútil de merda vai servir de exemplo. E
manda os outros atrás desses negros. Se aproximando
de onde Doralice dormia catou um punhado de palha
e entregou para um ajagun, o que tinha fama de
farejador.
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-Vê se tu achas o cheiro dessa negra, a trilha


ainda deve estar fresca, eles não foram longe.
Levaram-me com violência ao pátio do terreiro. Da
janela onde anos atrás a baronesa observava-nos
passar com o corpo de Manoel, o juiz observava a
tudo tendo ao seu lado alguns convidados.
Tinham colocado no meio do terreiro uma
rústica bancada de madeira e sobre ela o anjinho, que
ja conhecera no pelourinho. Enfiaram minha mão no
instrumento e o ajagun deu as primeiras voltas no
mecanismo. A dor que senti foi indescritível, atroz,
profunda. Sentia minhas unhas quebrando e rasgando
a carne sob elas, sentia o sangue latejando e os ossos
quase partindo.
-Fala negro inútil, onde foram os fujoes?
-Para a África.
Mais uma volta no mecanismo e da minha
garganta escapou um grito que não parecia meu, não
parecia nem humano, antes parecia de algum animal
agonizante
-Mula negra, para que essa teimosia? Meus
ajaguns vão achar eles de qualquer jeito negro. Onde
eles foram?
Juntei minhas forças todas e sorri. O mecanismo
deu mais uma volta e senti meus ossos quebrando.
Senti as pernas falharem e quase cai ficando
pendurado pela mão presa ao anjinho.
P á g i n a | 150

-Tira o negro do anjinho e coloca ele preso no


tronco, com grilhão de cravos. Quando o ajagun girou
o mecanismo para tirar minha mão, ai sim a dor foi
insuportável. Senti a carne desgrudar dos ossos, o
sangue empapava a bancada. Senti que desmaiava, e só
não o fiz pelo balde de água gelada que o ajagun
lançou em mim. A água, naqueles dias frios, parecia
um milhão de agulhas entrando em minha pele. O
homem colocou em mim um pesado grilhão, com
correntes saindo para os quatro lados, e cravos
voltados para seu interior. Se eu cochilasse, ou
tentassem me mover, os cravos enterrariam em minha
garganta e pescoço. Acorrentou-me assim ao tronco e
ali fui deixado. Ainda pude ver quando o juiz fechou
as cortinas de sua janela certamente para banquetear
com suas visitas.
O terreiro ficou vazio, silencioso, gélido como o
pior dos meus dias nessa terra. Sentia o cansaço e a
dor me abraçando como em um convite para que
adormecesse, mas era preciso resistir. Minha mão
mutilada pelo anjinho doía muito, e ainda sentia o
sangue vivo escorrer dela.
Perto de mim vi um movimento e um dos
cachorros da casa chegou perto. A principio timido,
receoso, mas depois me olhando profundamente, e
juro que vi piedade nos olhos do animal, coisa que nao
vi nos olhos dos meus agressores. Chegou com todo
cuidado perto de mim como dizendo que entendia
minha dor, depois se enrodilhou deitado na minha
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frente, de guarda, contra a maldade do bicho homem.


Quando alguém passava próximo indo as latrinas ou
ao poço da propriedade o pobre animalzinho rosnava
agressivo tentando me proteger, e se não fosse ele para
conversar aquela madrugada não teria passado.
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Segundo dia de horror

Os primeiros raios de sol trouxeram o cheiro de


café vindo da senzala. Meu amigo de quatro patas
tendo cumprido sua missão sacudiu o frio e a geada da
noite e correu atrás de comida. Meu corpo todo doía,
devido a tensão de me ferir com os cravos, e a dor da
mão mutilada que agora latejava por inteiro.
Percebi alguém se esgueirando sorrateira pelo
terreiro e reconheci a jovem Ana Maria, negra
monjolo tambem entendida nos mistérios de
Ossanha85 e suas ervas. Trazia uma cuia nas mãos e vi
lagrimas grossas em seus olhos quando chegou mais
perto.
-Toma meu pai, vai ajudar, aliviar a dor, toma.
-Filha se te pegam aqui...
-Esquece isso e toma paizinho..malditos negros
vendidos, fazerem isso ao senhor.
-Calma minha criança, tudo e como tinha que ser.
Um dia isso acaba e vira história. Agora corre, vai
antes que te vejam, e que meu Pai te abençoe.
As ervas amargas da bebida dada pela menina
caíram em meu estômago como uma bomba de
energia. A dor amainou e criei animo para o que vinha
pela frente.

85
Ossanha, Orixá senhor das ervas e da medicina.
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A manhã nascia e a agitação no terreiro


começava. O povo da senzala passava desviando os
olhos ou então me olhando com lagrimas, e perto do
meio dia um tropel de cavalos acelerou meu coração.
Teriam pego o casal? Vi um dos ajaguns entrando
rápido e apeando de seu cavalo, o feitor correu e
cochicharam. As noticias não eram boas para eles pois
o feitor ficou enfurecido e veio em minha direção.
-Negro maldito, fala, cadê os fujões?
-Foram para a África, já disse.
Ele sacando a adaga cutucou com a ponta dela
minha mão destroçada pelo anjinho, gritei desesperado
de dor.
-Fala desgraçado.
Só olhei nos olhos dele e sorri. Aquilo lhe
enfureceu mais ainda. Saiu gritando ordens ao ajagun:
-Amarra esse negro e começa uma novena, bem
dada e bem contada, depois segue no tronco, e se
derem água ou comida também vão para o tronco.
O ajagun tirou o grilhão de cravos, o que foi um
alivio temporário, e me virou no tronco, as costas nuas
expostas. Tomou distância e ouvi o chicote silvar
girando no ar, para depois explodir em minhas costas.
-Um, só faltam vinte e nove negro.
O sangue escorreu da ferida aberta e senti ele
encharcando minha calca. De novo outra explosao.
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-Dois, vinte e oito maldito. Fala!


Mais um silvo e outra dor lancinante nas costas
-Três. Vinte e sete.
Senti meus sentidos entorpecerem e as pernas
falharem. Ainda ouvia a voz do homem e o som do
chicote, mas quando atingia minhas costas sentia mais
o impacto, a batida, do que propriamente a dor. Perdi
os sentidos e não sei quanto tempo fiquei
inconsciente, mas quando dei por mim já era tardinha,
pela posição do sol.
Me movi dolorosamente e o sangue, já
coagulado, estralou se partindo. Não pude deixar de
sorrir pensando que se ainda estava ali era porque
Miguel e sua amada estavam cada vez mais longe.
A noite caiu sem que me incomodassem mais,
com exceção do ajagun que me colocou de novo a
ferros, os grilhões de cravos. Pela noite, a cerração
intensa ocultava quase todo o terreiro, e não pude ver
em minha dor quem me dava água e colocava em
minha boca um naco de charque, mas lembro de pedir
que não se arriscasse por mim.
Precisava ficar lúcido. Meu medo era trair o casal
em um de meus desvarios de dor e da febre que já
começava a queimar por dentro. Precisava de forças,
como nunca antes. Lembrei-me do navio tumbeiro e
tudo que já passara, da lavagem intragável jogada ao
chão. Vamos Olakundê, se tu suportastes isso suportas
P á g i n a | 155

tudo velho. Não sei se foi delírio ou espíritos mas vi


ao meu lado Pai João, me olhava terno, lúcido mas
triste.
-Está feia a coisa negrinho.
Tentei rir mas saiu um som estranho de minha
garganta seca e ferida pela febre.
-Está sim meu pai, mas podia ser pior. Podia
estar preso com Inácio falando todo tempo.
Pai João riu docemente.
-Coragem Olakundê, em breve terás de volta
tudo o que essa gente te roubou. Teu nome, tua
língua, teu santo... Tudo.
Adormeci ou desmaie de novo, não sei ao certo,
mas recobrei a lucidez pela manha com o sol já
ardendo no meu rosto cansado. O feitor já rondava o
terreiro de chicote na mão, impaciente.
-Acordasse negro inútil. E ai, fala, cadê os pretos
fujões?
- Longe de tua fome maldito.
O homem se possuiu de ódio e começou a me
chutar, socar. Gritou a plenos pulmões para o ajagun :
-Começa de novo o chicote... Canta no lombo
desse negro de merda.
Fui novamente virado, mas não me importava
mais. Nada importava mais.
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Joaquim vira passarinho

Quando a primeira chicotada chegou as minhas


costas já não gritei, apenas sorri. Ouvi o ajagun gritar:
-Fala negro de merda.
Ouvi minha própria voz, límpida, clara, ecoando
no Terreiro.
-Meu nome e Olakundê, rei dos fons e de suas
terras, Ojuobá de Xangô sobre a Terra. Olha no meu
olho negrinho vendido antes de me matar. Olha e vê
minha semente se espalhando por essa Terra.
Invadindo as casas grandes e fazendas, as ruas e vielas.
Olha negro vendido os olhos de Xangô na terra! Olha
meu sangue alimentando a árvore negra que brotou
nessa terra e que branco nenhum vai impedir. O
atabaque vai voltar a tocar chamando nossos Deuses,
que agora moram aqui, os brancos os trouxeram nos
mesmos tumbeiros que nós. Vê minha gente
misturada com a gente branca, gerando filhos e filhas
mestiças, comedores de acarajé, jogadores de capoeira.
Bate negro vendido em um rei, bate com força porque
o que está feito não volta atrás. Olha os negros
entrando nas vidas dos brancos até não ter mais negro
e branco, só Brasil. Olakundê é meu nome, rei dos
fon.
Tudo acalmou como acalma uma tempestade. Vi
Damiana, enxergando, com a santa nas mãos. Inácio
dava mortais, aus batidos e rabos de arraia no terreiro.
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Vó Adriana e Vô Nicolau riam. Vi Manoel, feliz. Ao


meu lado Pai João me abraçava.
Criei asas e voei sobre o terreiro, a casa e as
pessoas ficando pequenas, sumindo. Vi Miguel e sua
amada, de mãos dadas, chegando ao Prata, livres,
crianças jogando e gritando...kukulo...kukulo.
Voei a leste sobre o mar, e vi minha mamãe
África, vi minha terra. Mas ali não era mais meu lugar.
Não voltaria para a África. Minha casa agora era outra,
era o Brasil. Voei de volta, encantado com o sol
brilhando.
Vi Chimwalla e Baka no Desterro, passei pelo
Valongo e vi Babatunji com seus dedos ossudos me
lembrando quem eu era. Nas costas brasileiras vi
Tiombe, a menina violentada, acolhida ao colo de
Yemonja, e Yantu seu sacerdote.
Vi meu Pai Xangô nas pedreiras e tremi ouvindo
seu brado, e então, novamente vi a casa grande, vi a
mim mesmo sem vida, no tronco.
Ouvi no vento a voz firme de Yansã:
-Está feito Ojuobá, Xangô ouviu teus pedidos e
viu pelos teus olhos a injustiça. Está feito filho, bem
vindo a tua casa.
Estava na aruanda finalmente, livre. Podia correr
e gritar kukulo.
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Ainda vi em meu vôo um outro tempo, tempo


mulato, de brancos bolando no santo, jogando angola,
encrespando o cabelo, e ouvindo velhas lendas em
uma língua mais antiga ainda. Tempos que a semente
plantada em cada senzala já germinou, e tomou conta
da Terra.
Ví tempos de liberdade, e meu voo me levou a
terras que nunca sonhei, terras onde a cor de pele não
importava, nem o santo, nem o modo de falar. Partia
feliz, pois tinha cumprido minha função. A semente
tinha morrido para que virasse fruto, e o fruto se
espalharia por toda a parte, pelo nome de seus filhos,
pelos seus Orixás e cantigas, e lendas, e comidas. Eu,
Olakundê, filho de Lumumba, Rei dos fons e Ojuobá
de Xangô ia seguir em paz, finalmente.

Y|Å

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