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C o le ç ã o E d u c a ç ã o F ís ic a

uando falamos de teoria


da Educação Física não
insistimos na sua adjetivação
como teoria científica. Isso não
significa que tenhamos abandonado
a pretensão de racionalidade para essa
teoria,- muito mais, significa alertar para
a necessidade de elucidar o conceito
de racionalidade científica que
é utilizado no discurso e na prática, bem
como para as dificuldades de
tal empreendimento. O debate
epistemologia) atual parece indicar
muito mais, por um lado, no sentido
da superação da racionalidade científica
clássica ou predominante (originada no
plano da física e adotada pelas ciências
naturais e também pelo positivismo
como modelo para as ciências sociais
e humanas), e, por outro, no sentido
de certo relativismo que desloca
a racionalidade científica do pedestal Cenas de um casamento (in)feliz
da racionalidade enquanto tal e a coloca
no mesmo nível de outras "racio­
nalidades" ou discursos acerca T edição
da realidade. As dificuldades e os
movimentos aludidos parecem indicar
prudência no que diz respeito
à reivindicação de adjetivar uma teoria
da Educação Física de científica,
embora indique também prudência
quanto à propensão de abandonar
precocemente a pretensão da funda­
mentação racional da prática. Nem
consumar o casamento nem o divórcio.

Editora Unijuí
Ijuí - Rio Grande do Sul - Brasil
2003
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Segunda edição: 2003
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B796e Bracht, Valter Valter Bracht - UFES
Nelson Carvalho Marcellino - Unicamp
Educação física & ciência : cenas de um casa­
Paulo Evaldo Fensterseifer - Unijuí
mento (in)feliz / Valter Bracht. 2.ed. - Ijuí: Ed. Unijuí,
2003.- 160 p. - (Coleção educação física). Vicente Molina Neto - UFRGS
Elenor Kunz - UFSC
ISBN 85-7429-102-1
Victor Andrade de Melo - UFRJ
1.Educação física 2.Ciência do esporte 3.Motri­
Silvana Vilodre Goellner - UFRGS
cidade humana 4.Prática pedagógica 5.Epistemo­
logia I.Título II.Série.
CDU: 796 Comitê de Redação
796:001
Paulo Fensterseifer
______________________________________ 001: 796____________ _
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Joel Corso
A sso ciação B ra sile ira
das E d ito ras U n iv ersitárias
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................. 9

PARTE I - EDUCAÇÃO FÍSICA E CIÊNCIA

A CONSTITUIÇÃO DO CAMPO ACADÊMICO


DA EDUCAÇÃO FÍSICA............................................... 15
As características da teorização na Educação Física.. 16
As Ciências do Esporte e a despedagogização
do teorizar em Educação Física................................. 18
Repedagogizando o discurso acadêmico no campo
da Educação Física..................................................... 24
Considerações finais (perspectivas)............................ 25

A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA............. 27


O campo acadêmico da Educação Física.................. 28
Considerações finais (problematizações) ................... 37
A PRÁTICA PEDAGÓGICA DA EDUCAÇÃO FÍSICA: A TESE DA CIÊNCIA DA MOTRICIDADE HUMANA,
CONHECIMENTO E ESPECIFICIDADE........................41 DE MANUEL SÉRGIO.................................................... 99
As diferentes concepções do objeto Kefren Calegari dos Santos
da Educação Física..................................................... 42
Sobre Manuel Sérgio e a tese da Ciência
A especificidade pedagógica da cultura corporal da Motricidade Hum ana.......................................... 101
de movimento .......... .................................................. 48
Levantando questões............................................... 104
PARTE II - A(S) CIÊNCIA(S) DO ESPORTE, Discutindo questões................................................. 105
A CIÊNCIA DA MOTRICIDADE HUMANA
Considerações finais................................................ 113
Quadro da evolução do pensamento
AS CIÊNCIAS DO ESPORTE: QUE CIÊNCIA É ESSA?. 57
de Manuel Sérgio em torno da C M H ...................... 114
O conhecimento do conhecimento............................ 61
A questão da identidade epistemológica da área..... 63
PARTE III - DIÁLOGOS (IM)PERTINENTES
O debate em tomo do “objeto” da Educação Física .. 65
Breves olhares sobre o caso da pedagogia............. 68
A Educação Física e a cientificidade...................... .70 A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA:
UM DIÁLOGO COM MAURO BETTI......................... 117
As Ciências do Esporte:
fragmentação versus unidade................................. 71 Debatendo com M. Betti ......................................... 119
Considerações finais................................................... 73 Considerações finais................................................ 128

AS CIÊNCIAS DO ESPORTE NO BRASIL:


UMA AVALIAÇÃO CRÍTICA......................................... 75 EPISTEMOLOGIA E POLÍTICA NA EDUCAÇÃO
FÍSICA BRASILEIRA..................................................... 129
Como se caracterizam as práticas científicas
no âmbito das Ciências do Esporte?.......................... 76 Delineando as posições presentes na Educação
Física brasileira e no CBCE...................................... 132
O esporte e as Ciências do Esporte:
empreendimentos da modernidade........................... 85 Considerações finais................................................ 139
Dimensões da interdisciplinaridade nas Ciências
do Esporte................................................................... 91 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................... 143
A Condição pós-moderna, a crise da razão
científica e as Ciências do Esporte............................ 95 BIBLIOGRAFIA 149
INTRODUÇÃO

O pior casamento é o que dá certo.


(Millôr Fernandes, 1994)

Os escritos aqui reunidos discutem uma relação que,


guardadas as limitações de uma metáfora, apresenta algu­
mas características presentes nas relações conjugais.
Não há aqui, obviamente, um julgamento de valor acerca
do próprio casamento, entendido no seu sentido tradicional
de união de dois seres humanos, embora o texto em epígrafe
assim o sugira. Muito mais, pretende discutir a possibilidade
de que uma relação bem-sucedida, neste caso, pode trazer
antes um resultado negativo do que positivo. Assim como
podemos questionar ser o casamento condição indispensável
para a felicidade humana, também podemos colocar em
dúvida a positividade da relação da Educação Física (EF)
com a ciência, ou mesmo a transformação da Educação Físi­
ca em ciência.
De qualquer forma é uma relação de risco (menos para
a ciência do que para a Educação Física). Eliminar a identi­
dade de um dos pólos desta relação (do casamento), trans-
formando um no outro, confundindo os dois, ou subordinan­ sua crise de identidade. Nessa ótica, um tal casamento não
do uma identidade à outra (no caso a EF à ciência), pode, só não superaria a crise da Educação Física, como desvirtua­
assim como no casamento, ter resultados desastrosos. ria suas características mais importantes.

Se ilidirmos o fato de que a EF é, em certo sentido, Outros, como é o nosso caso, advogam para a EF uma
filha da ciência moderna (o que significaria em caso de casa­ relação com a ciência que é ao mesmo tempo de proximida­
mento uma relação incestuosa), o casamento entre a EF e a de e de distanciamento. Isto significa que as identidades dos
ciência sempre foi almejada, mesmo porque, até há bem “parceiros” não se confundem. Só com esta condição a rela­
pouco tempo a ciência era um grande “partido”. Um tal ção parece ser produtiva. Isto significa refletir sobre as pos­
casamento poderia trazer à EF (ao noivo ou à noiva, como sibilidades, mas também, sobre as limitações da ciência,
se queira) prestígio e status social (o dote da ciência seria exatamente para não tomá-la como um dogma.
enorme) e, por extensão, a todos que a sustentam e a fa­ Os textos aqui reunidos foram escritos em diferentes
zem. momentos da discussão que vem-se travando nos últimos
Embora hoje a ciência continue a ser um grande “par­ anos, na nossa área. Assim, minhas posições aparecem no
tido”, ela perdeu muito de seu glamour; a imagem da seu processo de desenvolvimento.
racionalidade científica está muito mais arranhada hoje do E sempre muito difícil organizar textos escritos de for­
que estava há vinte anos. Muitas vozes, em função deste ma esparsa numa ordem lógica. A forma encontrada e que
questionamento, hoje falam na necessidade do divórcio ou pareceu menos problemática foi a de organizá-los em três
no rompimento do noivado. partes: “I - Educação Física e Ciência”, discute a constitui­
ção do campo acadêmico da EF, as questões epistemológicas
O esporte, a partir de sua crescente importância no
que se colocam a partir da EF e a especificidade do conheci­
contexto da cultura corporal de movimento, entra em cena e
mento tratado pela EF; “II - A(s) Ciência(s) do Esporte, a
vai constituir com a EF e a ciência um “triângulo amoroso”.
Ciência da Motricidade Humana”, reúne os textos que
Assumiu o lugar do noivo ou da noiva (EF); falou em seu
enfocam especificamente as tentativas de se constituirem as
nome e ofereceu-se para contrair o matrimônio (ou patrimô­
Ciências do Esporte e a Ciência da Motricidade Humana,
nio) com a ciência. A reivindicação por ciência pelo fenôme­
bem como uma avaliação crítica da sua produção. Nesse
no esportivo redundou na tentativa de se instituir as chama­
ponto tivemos a colaboração de um jovem e tale ato :o pro­
das Ciências do Esporte e nestas a EF foi renomeada de
fessor de Educação Física, Kefren Calegari dos Santos, que
área pedagógica.
levanta pontos importantes para a discussão da tese de Ma­
A crise de identidade da EF foi entendida então como nuel Sérgio; “III - Diálogos (im)pertinentes”, reúne os textos
resultado da incapacidade da EF concretizar o casamento. que debatem com posições expressas por outros pesquisa­
Hoje, ao contrário, alguns entendem que sua ligação com a dores da área que se ocupam com essa questão, num caso
ciência já foi forte/longe demais e que seria preciso resgatar identificando o interlocutor, Mauro Betti, e em outro dialo­
outros valores que lhe são próprios para que possa superar gando com posições presentes na área.
Cabe neste momento agradecer às várias instituições e
aos colegas que foram fundamentais para o desenvolvimen­
to destas reflexões; Ao Conselho Nacional de Desenvolvi­
mento Científico e Tecnológico (CNPq), que por algum tem­
po colaborou mediante a concessão de uma bolsa de pesqui­
sa; à UFES, que me acolheu como docente; aos colegas de
trabalho do LESEF; aos colegas de diálogo que não nomino
para não cometer injustiças esquecendo alguém.
A CONSTITUIÇÃO
DO CAMPO ACADÊMICO
DA EDUCAÇÃO FÍSICA1
„stssss*'** v" ' ‘

Neste capítulo tomamos como foco de atenção a cons­


trução do campo acadêmico da EF no Brasil, com especial
atenção para o período que vai do final da década de 60 até
nossos dias.
E importante desde logo ressaltar que nossa atenção
recai sobre a produção acadêmica da “área”, vale dizer, a
teorização que envolve e acompanha esta prática social que
convencionamos chamar de Educação Física, ou seja, é um
estudo sobre o pensamento da EF brasileira e sobre como
ela vem-se pensando. Especificamente, perseguimos a ques­
tão de como foram pensados os limites/contornos deste cam­
po, quem dele participa legitimamente, quais problemáticas
são privilegiadas e reconhecidas como pertencentes ao cam­
po, ou seja, como a partir deste conjunto de práticas forja-se
o próprio campo.
Outro aspecto que considero necessário aclarar desde
logo, dadas as posições que venho defendendo em relação
ao uso do termo EF (Bracht, 1992 e 1995), é de que enten-
1 Este texto foi inicialmente apresentado no IV Encontro Nacional de História do
Esporte, Lazer e Educação Física (Belo Horizonte/MG, 1996).
do esta, fundamentalmente, como uma prática que tematiza basicamente nas ciências naturais, levou a se fundamentar a
com a intenção pedagógica as manifestações da cultura cor­ propriedade das práticas corporais pertencerem ao currículo
poral de movimento. Esse entendimento, sabemos, está lon­ escolar (Cachay, 1988). O século XIX vai ser o século da
ge de ser unanimidade. Ele convive com vários outros que sistematização dos chamados métodos ginásticos cujo dis­
estendem o significado do termo para, por exemplo, todas curso científico fundamentador era predominantemente de­
as manifestações da cultura corporal de movimento, ou en­ rivado das ciências biológicas, sendo os intelectuais que cons­
tão, como é mais comum, para todos os campos de atuação truíram esse discurso do campo médico e também pedagó­
do profissional de EF. E nítido que ao longo do desenvolvi­ gico, sendo, neste último caso, a fundamentação também
mento do campo acadêmico da “EF”2nem sempre foi esse o fortemente marcada por pressupostos biológicos. Outra ins­
entendimento, muito ao contrário, os limites deste campo tituição importante e que foi cadinho da elaboração teórica
sempre estiveram difusos (e confusos). Assim, embora parta da EF é a militar.
da posição acima aclarada, será preciso, para analisar a Assim, as estruturas de pensamento, com seus pressu­
construção do campo acadêmico “EF”, adentrar e enfocar as postos científicos e filosóficos, estavam ancoradas tanto na
produções que se colocam como pertencentes ao campo, instituição médica quanto na militar, mas também na pró­
mas que partem de uma outra visão de quais são seus con­ pria pedagogia. Neste sentido é interessante a hipótese le­
tornos. vantada por Ferreira Neto (1999), de que, no caso brasileiro,
a instituição militar construiu, nas décadas de 30 e 40 deste
século, um projeto de EF para o país, articulado com um
As características da teorização na Educação Física projeto para a educação brasileira como um todo.
Sem adentrar aos detalhes dessa produção de forma
O surgimento ou a incorporação de práticas corporais diferenciada, como aliás seria necessário, gostaria apenas
nos currículos escolares na Europa no século XVIII e princi­ de destacar uma sua característica que julgo ser possível
palmente XIX foi precedida e portanto resultou de uma série identificar. Refiro-me ao fato de que a teorização da ginásti­
de mudanças e desenvolvimentos no âmbito da medicina e ca escolar era realizada a partir de um olhar pedagógico
da própria pedagogia3. Na medicina, os avanços provoca­ (médico-pedagógico, moral-pedagógico), ou seja, as práti­
ram uma valorização da atividade física, como elemento cas corporais eram construídas e vistas como instrumentos
fomentador e garantidor de saúde, e, na pedagogia, a acei­ para a educação para a saúde e para a educação moral.
tação crescente de uma visão de homem calcada na ciência, Teorizar4 era fundamentar uma prática pedagógica envol­
vendo práticas corporais, embora com base em um arcabouço
2 Coloco aspas exatamente para chamar a atenção de que é uma denominação
provisória, porque concorrente com denominações (e propostas) como as de Ciên­ 4 E importante ressalvar que os intelectuais ativos no âmbito da ginástica escolar ou
cias do Esporte, Ciência do Movimento Humano ou Ciência da Motricidade EF trabalhavam mais na perspectiva da recepção dos métodos ginásticos do que na
Humana. construção fundamentada destes. Quem sabe a única iniciativa neste sentido na
3 Essas mudanças estão ancoradas no complexo processo de mudanças societárias época tenha sido o concurso promovido em 1942 para a elaboração de um método
nacional de EF (Ministério da Educação e da Saúde, 1952).
mais amplas, mas que aqui não serão discutidas.
teórico-metodológico marcadamente biológico. Outra carac­ era uma ciência ou uma disciplina acadêmica ou científica.
terística é a de que essa teorização era realizada, necessaria­ Questão levantada muito em função de uma pressão exter­
mente, por intelectuais de outros campos (medicina, forças na para que a EF se legitimasse no campo científico, que
armadas, pedagogia, ciências políticas), uma vez que o campo tem nas universidades seu locus privilegiado.
acadêmico “EF” (ou ginástica escolar) não havia ainda se
constituído. Isto passa a se realizar com a formação em nível Fator determinante para essa nova onda cientificista
de terceiro grau, de profissionais civis de EF, bem como com na EF, no entanto, foi o enorme desenvolvimento que so­
a afirmação da EF enquanto curso de formação de professo­ freu, após a II Guerra Mundial, o fenômeno esportivo e como
res, nas instituições superiores de ensino. ele foi absorvido ou se impôs à EF.
As características da formação de instrutores de ginás­ As décadas de 60 e 70 são cruciais para o campo
tica, inicialmente, e de professores de EF, mais recentemen­ acadêmico da EF e isto não somente no caso do Brasil.
te, fortemente marcada pela idéia de treinamento através Aliás, no Brasil, esse movimento apresenta um atraso de
da execução de movimentos, fizeram retardar o apareci­ quase uma década em relação aos países capitalistas desen­
mento do intelectual da EF. Não me refiro aqui ao intelectual
volvidos. Whitson e Macintosh (1990), retratam como, no
no singular, mas, sim, ao agente social pertencente a um
Canadá, nas décadas de 60 e 70, o discurso humanista da
campo acadêmico capaz e instrumentalizado para construir
EF foi substituído por um outro, de tipo cientificista, com
teoria que fundamente a prática pedagógica em EF. Exis­ base nas Ciências do Esporte (CE) ou Ciências do Movimen­
tem indicadores de que os intelectuais que pensaram a EF
to Humano, sob a influência dos EUA. Willimczik (1987),
brasileira, neste período, trouxeram/adquiriram o instrumental
por outro lado, analisando o desenvolvimento da Ciência
para tanto em outros campos, ou seja, o campo da “EF” não
Desportiva (Sportwissenschaft) na Alemanha, afirma que a
dispunha dos meios para teorizar sua prática. De qualquer
discussão teórico-científica naquele país sobre a questão do
forma o discurso, a teorização neste campo emergente, era,
objeto desta “área”, centrou-se no período de 1935 a 1970,
até a década de 60, marcadamente de caráter pedagógico.
na contraposição entre teoria da EF (Leibeserziehung) e te­
oria dos exercícios corporais (Leibesübungen). Mas, em pri­
meiro plano, o objeto era visto como um objeto pedagógico.
As Ciências do Esporte e a despedagogização No final dos anos 60 se impôs a denominação Ciência
do teorizar em Educação Física Desportiva e isso, segundo o autor, em função da tendência
internacional nesse sentido, bem como do fato de que o
Se nas suas origens, no Brasil, e até aproximadamente esporte tornou-se o fenômeno dominante nesta área. Dietrich
a década de 60 o discurso no âmbito da EF era marcado e Landau (1987, p. 384s.) vão além, afirmando que o con­
pelo viés pedagógico (de tom muitas vezes fortemente ceito de pedagogia desportiva (Sportpädagogik) determinou
normativo), a partir de então passa a ganhar espaço um o fim da época do conceito de teoria da EF (Leibeserziehung)
“teorizar” cientificista. Logo levantou-se a questão se a EF com suas concepções orientadas nas teorias da educação.

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Além disso, também a pedagogia desportiva, como outras desempenho esportivo do país em nível internacional) que
subdisciplinas da Ciência Desportiva, vão ser funcionalizadas confere legitimidade ao próprio campo acadêmico da EF ou
a partir dos interesses da instituição desportiva. das Ciências do Esporte7 ou EF e Ciências do Esporte (EF &
CE).
Podemos perceber então pelas análises de Greendorfer
(1987), Whitson e Macintosh (1990), Willimczik (1987) e E nesse contexto que se permite afirmar a EF nas
Dietrich e Landau (1987), que tanto na Alemanha como no universidades, que se permite um discurso científico na área,
Canadá e nos EUA, nas décadas de 60 e 70, a EF esteve com reivindicação conseqüente de cursos de pós-graduação,
orientada para a melhoria do desempenho esportivo no país5. simpósios científicos, entidades científicas, financiamento de
O “Diagnóstico da EF/Desportos no Brasil” (Costa, 1971) pesquisas científicas, estruturação de laboratórios de pesqui­
apontou uma deficiência no âmbito da medicina desportiva, sa, etc., que é forjado um “novo” agente social, o intelectual
considerada uma das razões da deficiência da área. A partir da EF, ou seja, intelectual com formação original em EF e
daí investimentos foram orientados para melhorar o nível de que agora almeja também a prática científica, isto é, reivin­
desenvolvimento científica da “área”, como o incentivo à dica e se lança à prática de teorizar (cientificamente) so­
pós-graduação e os investimentos em laboratórios de fisiolo­ bre... Bem, qual é o objeto deste teorizar? Em princípio o
gia do exercício. Nesse contexto é fundada, no final dos objeto é construído ou ganho enfocando o fenômeno esporti­
anos 70, uma nova entidade científica, o Colégio Brasileiro vo e a problemática central é a melhoria da performance
de Ciências do Esporte (CBCE). esportiva.

A produção acadêmica volta-se para o fenômeno es­ A partir de 1970 a EF é colocada explicitamente e
portivo. É a importância social e política desse fenômeno planejadamente a serviço do sistema esportivo, desempe­
que faz parecer legítimo o investimento em ciência neste nhando o papel de base da pirâmide, sistema esse que pos­
campo. Por sua vez, aqueles que atuam no campo ou tem suía como culminância a alta performance esportiva. Plane­
interfaces com ele privilegiam o tema do esporte porque é jou-se constituir a EF como elemento do sistema esportivo.
ele que oferece as melhores possibilidades de acumulação EF e esporte ou EF/esporte deveriam elevar o nível de apti­
de capital simbólico por via de seu tratamento científico. dão física da população.
São pesquisas que dele se ocupam que têm maiores chances O campo da EF/CE é permeado, nas décadas de 70 e
de serem reconhecidas no campo e fora dele6. Ou seja, é a 80, por profissionais de diferentes disciplinas. Ele é
importância política e social do fenômeno esportivo (ou do pluridisciplinar: médicos, psicólogos, sociólogos, professores
de EF, etc. É.importante destacar, no entanto, que o teorizar
5 Evidências disso podem ser encontradas nos documentos: Diagnóstico da EF e dos
Desportos no Brasil (Costa, 1971); Plano Nacional de EF e Desportos 1976-1979
(Brasil, 1976) e era Gonçalves, J. A. P. Subsídios para implantação de uma política 7 Segundo Paiva (1994), a iniciativa de “elevar” a profissão de EF à condição de
nacional de desportos. Brasília, 1971, entre outros. Ciências do Esporte tem seu ápice na publicação do editorial da RBCE 2(2), onde
se lê: “o professor de EF não pode mais ser representado como um homem forte e
6 Como lembra Bourdieu (1983, p. 124), “é inútil distinguir entre determinações'
de boa vontade [...]: em resumo, ele hoje não é mais o ‘professor de ginástica’, mas
propriamente científicas e as determinações propriamente sociais das práticas es­
o mestre em ciências do esporte”.
sencialmente sobredeterminadas”.

— nr-
de caráter cientificista vai-se dar fundamentalmente a partir produz em termos educacionais. As ações no sistema espor­
das ciências-mãe, como a fisiologia, a psicologia, etc. como tivo não serão redefinidas em função de um melhor ou pior
ainda hoje diagnosticam Gaya (1994), Greendorfer (1987) e resultado educacional e, sim, em função de um melhor ou
Willimczik (1987), com tendências à especialização a partir pior resultado esportivo8.
de subdisciplinas. Ora, o profissional de EF, num primeiro
momento, premido pela busca de reconhecimento no e para Assim, o esporte se impôs à EF, como conteúdo e
o campo, vincula-se a uma especialidade ou a uma como sentido da própria EF (Bracht, 1992). O esporte é
subdisciplina das Ciências do Esporte (ou da EF ou ainda da que legitima a EF porque faz coincidir seu discurso com o
Ciência do Movimento Humano) e torna-se um “cientista” daquela no que diz respeito ao seu papel nos planos
educativo e da saúde - o esporte se impôs também enquan­
no âmbito da fisiologia do exercício, da biomecânica, da
to tema e orientador da teorização neste campo acadêmico
sociologia do esporte e não um cientista da EF. É fácil perce­
em construção. Em suma, o discurso pedagógico na EF foi
ber que a EF enquanto prática pedagógica quase que desa­
quase que sufocado pelo discurso da performance esportiva;
parece do horizonte de preocupações deste teorizar, com
literalmente afogado pela importância sociopolítica das me­
exceção das preocupações como as que buscavam identifi­
dalhas olímpicas, ou pelo “desejo”, tornado público, por
car o método mais eficiente para ensinar determinada des­
medalhas.
treza (esportiva).
O discurso pedagógico que havia caracterizado este Chegou-se aqui a uma situação que, na esteira de
Bourdieu (1996), poderíamos denominar de subordinação
campo em construção, até mais ou menos a década de 60,
estrutural, com o campo acadêmico da “EF/CE” usufruindo
é deslocado para um plano secundário - só no final da déca­
da de 80 é que as pesquisas mostram que há um aumento de quase nenhuma autonomia para determinar a problemá­
tica teórica a ser privilegiada no campo. Essa tendência à
crescente das pesquisas na área que vai ser denominada, no
interior das Ciências do Esporte, de ‘pedagógica (Matsudo, funcionalização deste campo acadêmico a partir dos interes­
ses da instituição esportiva também foi detectada por Whitson
1983; Gaya, 1994).
e Macintosh (1990) e Dietrich e Landau (1987) para os ca­
Isso acontece porque o sistema esportivo somente apela sos do Canadá e Alemanha, respectivamente.
para a categoria educação como forma de buscar legitimida­
de social. Estando, no entanto, orientado por outros princí­
pios, permanece a questão educacional apenas como recur­
so retórico. O que importa mesmo é a medalha! Isso não
significa que ele não tenha efeito educativo, ao contrário.
Significa, isto sim, que a lógica que define as ações no cam­
po esportivo (que determina o que está em jogo no campo) 8 Aos poucos o sistema esportivo vai sentindo-se forte o suficiente para abandonar o
discurso da promoção da educação e da saúde. O presidente da Confederação
ignora e não é influenciada pelo resultado educativo — o Brasileira de Natação, Coaracy Nunes Filho, afirmou, em entrevista à revista Veja,
campo ou o sistema esportivo é indiferente ao resultado que que educação não tem nada a ver com esporte, mesmo que esporte também seja
educação (Nunes Filho, 1995, p.8).

....—n r *
portivo, é elemento importante para a construção da auto­
Repedagogizando o discurso acadêmico
nomia (pedagógica) da EF. É claro que, no momento em que
no campo da Educação Física a educação e o magistério estão numa situação caótica em
nosso país, só mesmo pensando na perspectiva da resistên­
No mesmo processo de busca de reconhecimento aca­ cia é possível alimentar essa necessidade.
dêmico da EF e dos seus profissionais no âmbito universitá­
rio, alguns destes freqüentaram cursos de pós-graduação
(mestrado) em programas da área da Educação (filosofia da Considerações finais (perspectivas)
educação, principalmente)9.
É a partir do contato, não com as Ciências do Esporte, O campo acadêmico da EF ou da EF/CE11, como
e sim com o debate pedagógico brasileiro das décadas de 70 convencionou-se chamá-la no interior do CBCE, é hoje cru­
e 80, que profissionais do campo da EF passam a construir zado e recortado por basicamente três perspectivas diferen­
objetos de estudo a partir do viés pedagógico. Independen­ tes de caracterização ou de delimitação: a) tentativa de deli­
temente da matriz teórica que esses profissionais vão ado­ mitação de um campo acadêmico que teorize a prática pe­
tar, o que caracteriza suas reflexões é que estão orientadas dagógica que tematiza manifestações da cultura corporal de
pelas ciências humanas e sociais e isso por via do discurso movimento, ou seja, o teorizar aí estaria voltado para a cons­
pedagógico10. trução de uma teoria da EF, entendida enquanto uma práti­
Essa vertente vai representar não só um pólo de resis­ ca pedagógica; b) tentativa de construir um campo interdis-
tência política no campo, defendendo interesses não-domi- ciplinar a partir das Ciências do Esporte, que, em alguns
nantes, interesses aliás ligados aos do sistema esportivo, mas, casos (Gaya, 1994), reivindica uma Ciência do Esporte vol­
também, resistência acadêmica ao cientificismo das Ciên­ tada para as necessidades da prática esportiva; c) a tentati­
cias do Esporte. Mais recentemente alguns autores (Coletivo va de construção de uma nova ciência, a Ciência da Motri­
de Autores, 1992; Bracht, 1992; Betti, 1992) vêm refor­ cidade Humana (Sérgio, 1989; Tojal, 1994; Cavalcanti,
çando a necessidade de construção de uma teoria da EF, 1994). O que é importante e interessante ressaltar é que
entendida esta como uma prática pedagógica, ou seja, uma todas essas perspectivas vão buscar a tradição e as institui­
repedagogização do teorizar na EF, uma vez que essa práti­ ções da original EF (ginástica escolar) - se colocam como
ca pedagógica foi quase que alijada do campo enquanto herdeiras desta.
objeto. A construção de um corpo teórico com base num Existe uma forte pressão, já que a total instrumentali­
discurso pedagógico, que possa filtrar e reconverter, à luz da zação da EF não foi possível em função de uma resistência
lógica desse campo, a influência “externa” do sistema es­ interna (com desdobramentos acadêmico-científicos e políti-

9 Alguns dos mais influentes na área: Vítor Marinho de Oliveira, João Paulo Subirá 11 No CNPq a área é tratada como a subárea EF e faz parte das ciências da saúde. Na
Medina, Apolônio Abadio do Carmo, Lino Castellani Filho e Carmen Lúcia Soares. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) a área é denominada de
Ciências do Esporte/Motricidade Humana e faz parte das ciências aplicadas.
10 Isso também vai redundar numa certa fragilidade teórica dessa produção.
cos), no sentido da construção de um campo acadêmico liga­
do/voltado ao esporte. Existem sinais de que se está cons­
truindo um discurso para justificar o surgimento de um cam­
po acadêmico autônomo ligado ao esporte - que não estaria
subordinado aos códigos da pedagogia como é o caso da EF.
A reivindicação de uma ciência do esporte tem como base a
importância sociopolítica (e econômica) do esporte e a con­
tribuição da ciência para o seu progresso.
Parece-nos claro, por exemplo, que os cursos de ba­
A EPISTEMOLOGIA
charelado em esporte sejam já o resultado dessa pressão (do DA EDUCAÇÃO FÍSICA1
mercado). Os dirigentes esportivos, cada vez mais claramen­
te, reivindicam uma formação universitária específica para
os profissionais do campo esportivo, argumentando inclusive
que as atuais faculdades de EF não suprem as suas necessi­ Quando abordamos o tema da epistemologia da Edu­
dades: “Quero uma universidade do esporte para formar cação Física (EF) assalta-nos uma série de questões que tem
técnicos, em vez das atuais faculdades de EF” (Nuzman, aparecido muito frequentemente em nossas discussões nos
1996, p. 8). últimos anos, afetando, inclusive, a questão da (crise de)
Outro elemento indicador é o de que o ex-ministro identidade da EF. Algumas dessas questões são:
extradordinário dos Desportos, Edson Arantes do Nascimen­ - a EF é uma ciência ou uma disciplina científica?
to (Pelé), reivindicou uma linha de financiamento de pesqui­
sas específica para as Ciências do Esporte junto ao CNPq. - Deve a EF almejar/pretender ser uma ciência? E essa uma
Além disso, o Instituto Brasileiro do Desenvolvimento do reivindicação legítima? Essa pretensão é orginária do inte­
Desporto (INDESP) dispõe de dotação orçamentária para rior da própria EF ou de “fora” dela?
pesquisas e publicações das Ciências do Esporte. - Qual a epistéme predominante na EF? E a científica? A
Se, por um lado, isso indica uma autonomização do prática científica ligada à EF filia-se aos princípios das ci­
campo acadêmico da EF em relação ao sistema esportivo - ências naturais ou aos das ciências sociais e humanas? Ou
e indica no sentido do surgimento de um campo acadêmico então, com qual concepção de ciência opera a EF?
que estaria voltado para o teorizar especificamente desta
- Quais são as especificidades ou peculariedades da questão
prática social, sem ter como viés central o pedagógico - co­
loca questões para a EF como a de obter, urgentemente, le­ epistemológica da EF?
gitimidade no interior do campo pedagógico, enquanto práti­ - Quais são os limites e as possibilidades do paradigma cien­
ca e disciplina acadêmicas, sob pena de ter sua própria exis­ tífico para fundamentar a prática do profissional da EF?
tência ameaçada e isso não simplesmente no sentido da ex­
tinção, mas de simples substituição pelo esporte (na escola). 1 Este texto (Bracht, 1997) foi originalmente publicado no V. 5 de Ensaios: Educação
Física e Esporte, de Carvalho & Maia (p. 5-17).
- É a interdisciplinaridade científica uma imposição à produ­ damentar-se no conhecimento das disciplinas científicas emer­
ção do conhecimento em EF? gentes (como a física orgânica = fisiologia). Portanto, não é
gratuita a presença influente da instituição médica na EF
É claro que o conjunto das questões acima listadas não (ver a respeito Cachay, 1988, e Soares, 1994).
esgota os questionamentos possíveis, mas pode dar uma
Num primeiro momento, em função do papel atribuí­
idéia da complexidade da questão.
do à EF (na perspectiva higienista), o aporte de conhecimen­
Quero iniciar com a pergunta sobre se a EF é uma tos científicos vinha exatamente das ciências biológicas. O
ciência. Essa questão assumiu importância no debate em corpo e as atividades físicas eram estudados como fatos/
torno da crise de identidade da EF, porque levantou-se a fenômenos biológicos2. Por isso mesmo, falava-se menos em
hipótese (ou a tese) de que a superação dessa crise (que movimento humano e mais em atividade física. O que é
seria de legitimidade também no plano acadêmico universi­ importante ressaltar é que o campo da EF era marcado me­
tário) viria com a sua afirmação como ciência, ou seja, com nos como um campo acadêmico de produção do conheci­
a definição de objeto, método e linguagem próprios. mento, e mais, como de aplicação do conhecimento (cientí­
fico). Os métodos ginásticos eram construídos aplicando-se
os conhecimentos da anatomia, da fisiologia e da medicina
0 campo acadêmico da Educação Física ao campo dos exercícios físicos.
Quando a EF passou a se afirmar no âmbito dos siste­
Para tratar dessa questão é preciso resgatar um pouco mas de ensino como componente curricular, ascendendo ao
o processo de construção do campo acadêmico da EF. A ensino superior (em alguns casos universitário), para a for­
chamada EF moderna é filha da modernidade. Isso significa mação de professores, já um número bastante grande de
que ela surge num quadro social em que a racionalidade disciplinas se ocupava do estudo do corpo/movimento hu­
científica se afirma como a forma correta de ler a realidade, mano ou de suas objetivações culturais como o esporte.
em que o Estado burguês se afirma como forma legítima de Aliás, não esqueçamos de que o esporte, como fenômeno
organização do poder e a economia capitalista baseada na social, teve papel importante no reconhecimento da necessi­
indústria emerge e se consolida. A EF moderna sofre a influên­ dade de formação de profissionais em nível universitário e
cia, desde seus primeiros passos, do pensamento científico. da necessidade da produção do conhecimento científico nes­
Vale o princípio: exercitar cientificamente o corpo, ou exer­ se âmbito. Em grande parte foi sua importância sociopolítica
citar o corpo de acordo com o conhecimento científico a que determinou o surgimento de organizações científicas de
respeito. Ling e Amoros esmeraram-se em construir seus Ciências do Esporte.
métodos ginásticos em estreita consonância com os conheci­
2 Não estou desconhecendo ou ignorando a influência grega sobre alguns filantropos,
mentos oriundos da fisiologia e da anatomia humana. Ling que no final do século XVIII e no início do XIX buscavam legitimar a ginástica ou a
falava inclusive, em movimento racional com economia de exercitação corporal nas suas escolas a partir do ideal da “harmonia entre corpo e
espírito”. Apesar dessa influência, vários estudos mostram (Cachay, 1988; Krüger,
esforço. Ou seja, desde logo, esta prática, qual seja, este 1990) que as ciências naturais logo se impuseram como elemento fundamentador,
conjunto sistematizado de exercitações corporais, buscou fun­ como base legitimadora dessas práticas.

" 28 *' •
O que observávamos naquele momento, e aqui estou por outras disciplinas). Assim, no processo de sua constitui­
falando basicamente das décadas de 60 e 70 deste século ção, o campo acadêmico EF fragmentou-se; as línguas cien­
(em alguns países mais cedo, em outros mais tarde), era, tíficas faladas são diferenciadas, específicas. No campo da
por um lado, o surgimento e, por outro, a consolidação de EF, no que diz respeito à produção do conhecimento científi­
uma série de subdisciplinas ligadas epistemologicamente às co, surgiram os especialistas, não em EF, mas, sim, em
tradicionais disciplinas científicas: fisiologia do esforço, a fisiologia do exercício, em biomecânica, em psicologia do
biomecânica (do esporte), a psicologia do esporte, a sociolo­ esporte, em aprendizagem motora, em sociologia do espor­
gia do esporte, etc. te, etc.4. Os professores de EF, enquanto “cientistas”, pas­
Já aqui devo dizer que entendo a EF como aquela prá­ saram a se identificar como especialistas em fisiologia, em
biomecânica, etc. e não em EF. Em função do processo de
tica pedagógica que trata/tematiza as manifestações da nossa
especialização não demorou a instalar-se no campo um “diá­
cultura corporal e que essa prática busca fundamentar-se em
logo de surdos”. Dada a importância e o status que a ciência
conhecimentos científicos, oferecidos pelas abordagens das
diferentes disciplinas. Ou seja, o campo acadêmico da EF goza na sociedade e principalmente no meio acadêmico, a
vem se constituindo a partir da absorção e/ou incorporação EF coloca como meta tornar-se ela própria uma ciência.
de práticas científicas fortemente marcadas por abordagens Passa então, a sofrer de certo tipo de complexo de édipo;
monodisciplinares do fenômeno do movimento humano ou quer ser mas não pode ser, não consegue ser (não pode
da atividade física3. consumar o ato). Esse complexo é tão grande que alguns
entenderam ter surgido, como que de dentro do campo da
Ora, o fato do campo acadêmico EF incorporar cada EF, uma nova ciência, a Ciência da Motricidade Humana,
vez mais intensamente as práticas científicas, não só conhe­ para alguns, ou a Ciência do Movimento Humano, para ou­
cimento científico (isso no Brasil se dá mais intensamente na tros. Se essa se concretizasse, finalmente os professores de
década de 70), determinou a criação de entidades científi­ EF poderiam dizer-se “cientistas”, poderiam dizer-se perten­
cas próprias, realização de eventos científicos próprios, cria­ centes a um campo científico, o da Ciência da Motricidade
ção de cursos de pós-graduação, definição de programas de Humana.
apoio à pesquisa, etc. No entanto, na produção do conheci­
Por outro lado, uma forte pressão para a cientifização
mento predomina o enfoque disciplinar ou monodisciplinar
da EF vem das chamadas Ciências do Esporte. E exatamen­
determinado pela chamada disciplina-mãe. Um pouco da
te quando a EF deixa de se apresentar como ginástica (mé­
crise de identidade da EF vem daí, do desejo de tornar-se
todos ginásticos) e consolida-se o esporte enquanto seu con­
ciência, e da constatação de sua dependência de outras dis­
teúdo maior, que as chamadas Ciências do Esporte insta­
ciplinas científicas (a EF é “colonizada” epistemologicamente
lam-se no campo, inicialmente chamado de EF. Hoje, não é
3 Existem indicadores de que lá onde a EF desde logo obteve o status universitário, possível distinguir os campos de produção do conhecimento
a incorporação das práticas científicas ao campo processou-se mais rápida e inten­
samente. Em alguns países, como a Argentina, o fato da formação de professores de 4 E interessante notar que análises recentes feitas por importantes autores do campo
EF dar-se em cursos não-universitários tem dificultado tal processo; por exemplo, da pedagogia também identificam esse problema em seu campo (Arroyo, 1998;
naquele país não existem até hoje cursos de mestrado na área da EF. Brandão, 1998; Libâneo, 1996).
da EF e das Ciências do Esporte. Publicam-se os mesmos teriza é a intenção pedagógica com que trata um conteúdo
trabalhos em revistas de EF e/ou de Ciências do Esporte, que é configurado/retirado do universo da cultura corporal
apresentam-se trabalhos em congressos de um e de outro, de movimento. Ou seja, nós, da EF, interrogamos o movi-
sem qualquer discriminação ou alteração. A EF, nesse âmbi­ mentar-se humano sob a ótica do pedagógico.
to, costuma ser tratada como pedagogia do esporte. Acredito que, influenciados exatamente pela pressão
Portanto, embora sejam profissionais de EF e não mais cientificista, sempre entendemos a definição de nosso obje­
apenas biólogos, médicos, fisiólogos, psicólogos e sociólogos to como a definição de um “objeto científico”. Ora, o objeto
que pesquisam em torno do movimento humano e suas de uma prática pedagógica não tem as mesmas característi­
objetivações culturais, a situação concreta é que essas pes­ cas fundantes de um objeto de uma ciência. O objeto da EF
quisas têm sua identidade epistemológica ancorada nas ciên- enquanto prática pedagógica é retirado do mundo da cultura
cias-mãe e não na EF, ou seja, a EF não é capaz de ofere­ corporal/movimento, ou seja, é selecionado a partir de crité­
cer/fornecer uma identidade epistemológica5 própria a es­ rios variáveis, ou seja, dependentes de uma teoria pedagógi­
sas pesquisas. A pesquisa em fisiologia do exercício não é ca, desse universo. Podemos chegar ao ponto de configurar
ciência da EF e, sim, ciência fisiológica, assim como história nosso objeto de forma mais abstrata e aí diríamos ser a
do esporte não é Ciência do Esporte e, sim, ciência his­ cultura corporal de movimento.
tórica.
A EF está interessada nas explicações, compreensões
Aqui, neste âmbito, ocorreu um equívoco que reputo à e interpretações sobre as objetivações culturais do movimen­
influência de uma concepção empirista ingênua de ciência. to humano fornecidas pela ciência, com o objetivo de funda­
Refiro-me ao fato de confundirmos objeto científico com al­ mentar sua prática, e isso porque nós, da EF, estamos con­
gum fato/fenômeno ou recorte da realidade: ou seja, o en­ frontados com a necessidade de constantemente tomar deci­
tendimento de que ter um objeto próprio seria o mesmo que sões sobre como agir. Por exemplo: decisões sobre o conteú­
identificar um fenômeno do mundo concreto/empírico que do dos meus planos de ensino; sobre a quantidade e a inten­
seria propriedade dessa ciência ou disciplina. O movimento sidade de exercícios; sobre õ método de ensino a adotar
humano por si só não é um objeto científico, são antes os para ensinar um esporte; sobre a forma de reagir de frente a
problemas que lhe são colocados sob uma nova perspectiva uma atitude agressiva de um aluno, etc. Com base em qual
que podem configurar um novo campo do conhecimento.
conhecimento eu tomo essas decisões? Como ter certeza
Objeto científico é algo construído a partir de determinada
de que as decisões que tomei são as corretas?
abordagem.
Bem, em princípio achamos que a ciência nos auxilia­
Defendo a idéia de que a EF não é uma ciência. No
ria nessa tarefa. Há (ou houve) o entendimento de que a
entanto, está interessada na ciência, ou nas explicações cien­
ciência faria com que tivéssemos respostas mais seguras/
tíficas. A EF é uma prática de intervenção e o que a carac­
verdadeiras para essas questões. Mas, o que é conhecer cien­
5 Identidade epistemológica significa a forma própria com que cada disciplina cientí­ tificamente a realidade? Por que ela nos ofereceria um co­
fica interroga e explica a realidade, o que é determinado pelo tipo de problema que
nhecimento ou uma base mais segura?
levanta, pelos métodos de investigação e pela linguagem que desenvolveu e utiliza.
A ciência moderna parte do pressuposto de que as ção. Compreender (verstehen) é uma operação diferente da
explicações da realidade estão contidas nela mesma, ou seja, de explicar (erklären) e, para o caso das humanidades, o
rompendo com o pensamento mítico, entende que as expli­ adequado é o primeiro: compreender o sentido/significado
cações do que acontece na natureza não precisam apelar subjetivo das condutas humanas.
para forças externas a ela (como a vontade divina). Existem Tem também leis (universais) capazes de explicar o
leis internas que determinam o movimento das coisas. A comportamento humano, regularidades sociais/históricas do
descoberta dessas leis permite prever o comportamento dos mesmo tipo das presentes na natureza? O debate em torno
corpos ou das coisas de forma universal. Ou seja, a realidade de um possível dualismo metodológico ou epistemológico
contém regularidades e possui uma ordem. A ciência está entre as ciências naturais e as ciências sociais e humanas
interessada na regularidade, na rotina, no que é comum na continua. Para nós interessa a pergunta: o estudo do movi­
realidade, para controlá-la (desvelar, desvendar a realidade, mento humano deve ser feito a partir dos princípios das
descobrir as leis que a regem). ciências naturais ou das ciências sociais e humanas, ou, ain­
da, de ambas?6
Por exemplo: eu posso prever o comportamento da
queda de um dardo, porque sobre qualquer corpo físico age Parece que o mais importante é ter a capacidade de
uma lei universal, que é a lei da gravidade. Posso prever, entender o tipo de conhecimento do movimentar-se humano
que uma e outra abordagem possibilita, as possibilidades e
com relativa precisão, a repercussão de um treinamento de
limitações de cada uma das abordagens. Toda abordagem
corridas contínuas em determinada intensidade sobre a con­
científica é “pré-conceituosa”, portanto, oferece explicações/
dição aeróbica de uma pessoa, porque estou de posse de
interpretações da realidade que são relativas (a um ponto de
uma teoria (que expressa uma lei ou leis) construída no âm­
vista) e, por conseqüência, limitadas pelo aparato teórico-
bito da fisiologia, que diz que, quando uma pessoa é subme­
metodológico próprio daquela disciplina. Por exemplo: quando
tida a uma atividade X, o organismo reage de forma Y. faço uso do instrumental teórico-metodológico da biomecânica
Teorias expressam leis que permitem prever o comporta­ para estudar o movimento humano, o conhecimento produ­
mento da realidade e assim nela intervir e/ou controlá-la. zido falará algo do movimento humano mas se “calará” em
Buscou-se aplicar esses mesmos princípios para o co­ relação a uma série de aspectos desse mesmo movimento.
nhecimento “científico” da realidade social e do comporta­ Assim, não farão parte desse conhecimento os aspectos li­
mento humano. Durkheim dizia que a realidade social devia gados à afetividade do sujeito que se move, os aspectos
ser estudada como “coisa” e Comte chamava a atual socio­ sociais ligados ao contexto em que se realiza o movimento e
logia de física social. No entanto, movimentos acadêmicos que o influenciam, etc. O mesmo acontece em relação às
logo questionaram a possibilidade e a validade da aplicação outras disciplinas científicas - não existe uma abordagem
desses princípios científicos ao estudo da realidade social global que “esgote” a realidade.
e humana. Dilthey, por exemplo, entendia que as humani­
6 Aliás, M. Sérgio coloca a Ciência da Motricidade Humana no âmbito das ciências
dades (Geisteswissenschaften) devem operar com a catego­ do homem, mas, em momento algum reporta-se ao que isso, epistemologicamente,
ria da compreensão, ao passo que as ciências naturais significa; pelo menos não se refere ao aludido debate epistemológico e não toma
posição a respeito, de maneira que fica-se sem saber das conseqüências (metodo­
(Naturwissenschaften) operam com a categoria da explica­ lógicas) que tal vinculação/classificação teria.
Essa característica do saber científico - toda aborda­ Considerações finais (problematizações)
gem ser “pré-conceituosa” e relativa a um ponto de vista -
impõe, para o caso da EF, a questão da interdisciplinaridade. Para finalizar este capítulo gostaria de pontuar algu­
Entendo que a questão da interdisciplinaridade se impõe ao mas problemáticas que, considero, devem ser enfrentadas
campo acadêmico da EF. Para a EF (para fundamentar essa pela reflexão espistemológica do campo da EF.
prática) não basta somar o conhecimento da biomecânica,
com o da fisiologia do exercício, com o da psicologia. Há a Precisamos, por exemplo, analisar a tese da Ciência
necessidade de operar uma síntese ou sínteses, o que é dife­ da Motricidade Humana de M. Sérgio (1989), como possível
rente da soma das partes (ao mesmo tempo, mais que a fornecedora do estatuto epistemológico da EF. Adianto mi­
soma das partes e menos que cada parte, como diria E. nha posição, embora sem fazer aqui uma análise mais exaus­
Morin, 1993); uma síntese operada a partir das necessida­ tiva dessa tese: ela não apresenta uma solução para os pro­
des e dos interesses específicos da EF, da prática pedagógi­ blemas epistemológicos da EF. Aliás, em M. Sérgio, a EF
ca em EF (descolonização científica). O que hoje predomina aparece, em relação à Ciência da Motricidade Humana, com
são as problemáticas/temáticas disciplinares. duas conotações: ora como a Pré-Ciência da Motricidade
Gostaria de dar um exemplo para demonstrar a neces­ Humana, e ora como ramo pedagógico dessa ciência. A
sidade de superar as perspectivas disciplinares. Partirei de idéia ou tese de que a EF é a Pré-Ciência da Motricidade
uma pergunta: qual é o método que devo usar nas aulas Humana é sustentável apenas à medida que sob essa deno­
para ensinar um esporte, como o volibol? O método sintéti­ minação esse campo acadêmico se constituir; resta no en­
co ou o método analítico? Se escuto as pesquisas da apren­ tanto, demonstrar que esse constitui-se hoje na forma de
dizagem motora posso ter a resposta, hipotética, de que é o uma nova disciplina científica ou de uma nova ciência. Já a
método analítico. Se escuto as pesquisas da fisiologia do tese de que a EF8 seria o ramo pedagógico da Ciência da
exercício, posso ter a resposta de que é o método sintético Motricidade Humana me parece altamente questionável. Em
(que propicia maior movimentação). Se escuto a sociologia nenhum momento, aliás, os autores que referendam essa
ou a psicologia social, seria, talvez, o método sintético pela tese explicam o que significa para a EF (ou Educação Motora)
maior possibilidade de contato social. Se atento para a socio­
ser o ramo pedagógico de uma tal ciência (partindo-se do
logia do currículo questionarei inclusive o próprio esporte
pressuposto de que tal ciência existe). Significa que essa
enquanto fenômeno cultural que expressa relações de poder,
prática pedagógica tematiza os conhecimento oriundos de
etc. Qual abordagem devo considerar para minhas decisões
tal ciência? Significa que os fundamentos dessa prática pe­
de professor de EF? Como integrar essas distintas aborda­
gens? E possível decidir com base no conhecimento discipli­ dagógica vêm dessa mesma ciência? As “outras ciências”
nar? E possível decidir sempre no plano da racionalidade
8 O autor da tese, M. Sérgio, prefere denominar a EF de educação motora, Yio que é
científica?7 seguido por um grupo de professores brasileiros, principalmente atuantes na Facul­
dade de Educação Física da UNICAMP. No livro, que foi publicado como resultado
7 Interessante é observar que, apesar da flagrante necessidade de mediação entre os de um simpósio sobre educação motora (De Marco, 1995), alguns autores, ao invés
saberes disciplinares presentes no campo da EF, os especialistas nas diferentes de falar em educação motora (ex-EF) como ramo pedagógico da Ciência da
subdisciplinas do nosso campo não conseguem dialogar, ou seja, a partir de sua Motricidade Humana, falam em ramo pedagógico da teoria da motricidade huma­
especialidade interagir com outra, como ficou claro no IX Congresso Brasileiro de na, sem justificar, no entanto, o porquê dessa opção por teoria, em vez de ciência.
Ciências do Esporte (Vitória/ES, Set. 95).
também possuem um ramo pedagógico? Por acaso o ensino te na integração das diferentes abordagens, seria um teorizar
da biologia constitui-se no ramo pedagógico da biologia? O sintetizador de conhecimento à luz das necessidades especí­
que se ensina na biologia é o conhecimento biológico. O que ficas da prática pedagógica. Vale lembrar que isso ocorre
se ensinaria na EF ou educação motora? Seria o conheci­ também com a pedagogia. O que complexifica a questão é
mento da Ciência da Motricidade Humana? Essas são ques­ a possível existência de um saber prático ou corporal que
tões que estão a merecer uma resposta. resiste à teorização, como diz Mauro Betti (1994) em
instigante artigo. Por outro lado, não é possível ignorar o
Continua me parecendo mais importante para nosso
debate em torno das limitações da racionalidade científica (e
campo acadêmico interpretar a EF como prática pedagógi­
sua crise) e da polêmica relação entre o saber fático e o éti-
ca. Parlebas (1993) também entende que a EF não é uma
co-normativo, questões re-colocadas pelo pós-modernismo.
ciência e, sim, uma “pedagogia das condutas motrizes”. En­
tende como objeto específico da EF as “ações motrizes”. Já, E preciso considerar os limites da própria racionalidade
Gamboa (1994) situa a EF no âmbito do que chama de científica, quanto ao fornecimento dos fundamentos de nos­
“novos campos epistemológicos”, pois, superando a pers­ sa prática. Como sabemos, a prática pedagógica envolve
pectiva de “ciência aplicada”, tem como característica ser sempre uma dimensão ética de caráter normativo, ou seja,
uma ciência da e para a ação educativa ou uma ciência da se a ciência se atém ao fático, a prática pedagógica opera
ação, como a pedagogia. O autor considera que o “eixo da também no plano do contrafático (do dever-ser). Outra di­
sistematização científica” (p. 37) e o que lhe fornecer especifici­ mensão importante presente no âmbito pedagógico é a di­
dade é o movimento/ação do corpo humano (motricidade). mensão estética. Sem me alongar no assunto, diria que o
Entendo que as reflexões de Gamboa (1994) significam um teorizar na EF precisa ultrapassar as limitações da racionali­
avanço para a discussão da área sobre suas questões dade científica, para integrar no seu teorizar/fazer a dimen­
epistemológicas e isso porque: primeiro, o autor afirma a são do ético e do estético.
especificidade da EF no plano pedagógico e, com isso, subli­
Assim, o apelo para a cientifização da EF é problemá­
nha a dimensão de intervenção imediata própria de nosso
tico porque a racionalidade científica (tradicional) é limitada
campo; segundo, aponta para novos elementos e a necessi­
em relação às necessidades de fundamentação de sua práti­
dade da interdisciplinaridade.
ca - o que indica a superação do modelo tradicional de ra­
Mas, algumas questões precisam ser aprofundadas. Por cionalidade científica (por exemplo, com o projeto da razão
exemplo, sabemos quase nada sobre como realizar a comunicativa de J. Habermas) - e sofre, ao mesmo tempo,
interdisciplinaridade (não dispomos de uma epistemologia o abalo da nova filosofia da ciência que é relativista no senti­
interdisciplinar). Como comenta Parlebas (1993, p. 131), do de não reconhecer superioridade na racionalidade cientí­
“se postula que a adição de conhecimentos que provém de fica de frente às outras formas de conhecer a realidade.
distintos horizontes vão harmonizar-se numa unidade. Tal
milagre, porém, não pode produzir-se”. Assim, entendo que
o teorizar específico da EF deveria concentrar-se exatamen­
A PRÁTICA PEDAGÓGICA
DA EDUCAÇÃO FÍSICA: CONHECIMENTO
E ESPECIFICIDADE1

Parece-me que o tema remete a uma questão que


tornou-se fator de frustração e, em alguns casos, motivo de
pesadelos para o professor de Educação Física (EF): a tão
propalada crise de identidade da EF, que em muitos mo­
mentos foi entendida como resultado da falta de definição
do seu “objeto”, da falta de definição clara de sua especifi­
cidade (identidade no sentido de sua singularidade). Entendo
que a temática colocada, em última instância, nos remete a
essa questão.
Para adentrar ao tema e colocar minha posição desejo
fazer, inicialmente, uma demarcação.
Quando falo em objeto da EF me refiro ao “saber”
específico de que trata essa prática pedagógica. Não estou
me referindo, portanto, ao objeto de uma prática científica
específica - não coloco, para responder a essa questão, as
exigências que são feitas para definir o objeto de uma ciên­
cia. Essa diferenciação é importante porque entendo que

1 Artigo originalmente publicado na Revista Paulista de Educação Física. Supl.2,


1996, p. 23-8.
parte das dificuldades na superação da “crise de identidade” c) “cultura corporal”, “cultura corporal de movimento” ou
advém do fato de se insistir em ver na EF uma disciplina “cultura de movimento”.
científica e, mais, como uma disciplina com estatuto episte- Pretendo defender, aqui, a tese/idéia de que, para a
mológico próprio. Entendo que a especificidade da EF no configuração do saber específico da EF, devemos recorrer ao
campo acadêmico é a de que ela se caracteriza, fundamen­ conceito de cultura corporal de movimento.
talmente, como prática pedagógica2, no que concordamos
É importante termos claro que a definição do objeto da
com Lovisolo (1995). A necessidade e a reivindicação de
EF está relacionada com a função ou com o papel social a
fundamentar “cientificamente” a EF é que a levou a incor­
ela atribuído e que define, em largos traços, o tipo de conhe­
porar as prática cientificas ao seu campo acadêmico (o que
é muito diferente de passar a ser uma ciência com estatuto cimento buscado para sua fundamentação3. Os termos “ati­
epistemológico próprio). Então, quando nos referimos ao objeto vidade física”, e “exercícios físicos” são fortemente marca­
da EF, pensamos num saber específico, numa tarefa peda­ dos pela idéia de que o papel da EF é contribuir para o
gógica específica, cuja transmissão/tematização e/ou reali­ desenvolvimento da aptidão física e pertencem claramente,
zação seria atribuição desse espaço pedagógico que chama­ no plano do conhecimento, ao arcabouço conceituai das dis­
mos EF. ciplinas científicas do âmbito da biologia, das ciências bioló­
gicas4.
A definição clássica de EF, nessa perspectiva, é a que
As diferentes concepções a considera como disciplina que, por meio das atividades
do objeto da Educação Física físicas, promove a educação integral do ser humano - mas,
a conotação, na prática, é a do desenvolvimento físico-mo-
tor ou da aptidão física, servindo a “educação integral do ser
Feita essa demarcação, vejamos como se entendeu o humano” para satisfazer/caracterizar o discurso pedagógico.
“saber” próprio da EF ou a sua especificidade. As expres-
sões-chave para tal identificação foram ou são: A absorção na EF do discurso da aprendizagem motora,
do desenvolvimento motor, da psicomotricidade e, mesmo,
a) “atividade física”; em alguns casos, “atividades físico-es- em certo sentido, da antropologia filosófica, resultou numa
portivas e recreativas”; mudança de denominação de nosso objeto (embora nem sem-
b) “movimento humano” ou “movimento corporal humano”,
3 Aqui estamos de frente a uma via de mão dupla: a função atribuída à EF determina
“motricidade humana” ou, ainda, “movimento humano o tipo de conhecimento buscado para fundamentá-la e o tipo de conhecimento
consciente”; predominante sobre o corpo/movimento humano determina a função atribuída à
EF. No entanto, nem um nem outro são auto-explicativos: eles precisam ser analisa­
dos integradamente como componentes de um movimento mais geral e complexo
da sociedade.
2 Gamboa (1994) entende que a EF, assim como a pedagogia, estariam situadas no
que chama de “novos campos epistemológicos”, cuja característica específica seria 4 Não é necessário aqui resgatar o tipo de educação (física) que é postulado e
exatamente a dimensão da “ação” (que estou chamando de “intervenção"); para acontece a partir desse entendimento. Basta lembrar que ela ficou conhecida como
esse autor, a EF é uma ciência da e para a ação. uma perspectiva biologicista de EF.
pre numa mudança de paradigma ou de concepção). Pas­ histórica e, sim, como elemento natural5 e universal, portan­
sou-se a privilegiar os termos “movimento humano” (em al­ to, não histórico, neutro politica e ideologicamente, caracte­
guns casos, “motricidade humana”). Destaca-se, a partir dessa rísticas que marcam, também, a concepção de ciência onde
perspectiva, a importância do movimento para o desenvolvi­ vão sustentar suas propostas.
mento integral da criança e esse é o papel atribuído à EF.
A outra perspectiva presente é a de que o objeto da EF
A definição clássica, nesse caso, é a de que a EF é a é a cultura corporal de movimento. É importante salientar
educação do e pelo movimento. Como exemplo paradig­ que se, em princípio, fala-se neste caso das mesmas ativida­
mático temos a abordagem desenvolvimentista de Tani, des humanas presentes nas concepções anteriores, as ex­
Manoel, Kokubun & Proença (1988), mas, também, com pressões usadas para denominá-las denunciam, além de uma
nuanças, a educação de corpo inteiro, de Freire (1992). A diferença terminológica, diferenças e conseqüências subs­
base teórica advém, fundamentalmente, da psicologia da tanciais no plano pedagógico6, pois, o objeto de uma prática
aprendizagem e do desenvolvimento, uma com ênfase no pedagógica é uma construção - e não uma dimensão inerte
desenvolvimento motor e outra no desenvolvimento cognitivo. da realidade - para a qual pressupostos teóricos são fundantes
e/ou constitutivos. Não é possível dissociar o fenômeno do
Fala-se, nesses casos, em repercussões do movimento
discurso da teoria que o constrói enquanto objeto (pedagó­
sobre a cognição e a afetividade ou o domínio afetivo-social;
gico).
fala-se dos diversos arranjos e tarefas motoras para garantir
o desenvolvimento das habilidades motoras básicas (Tani et Nessa perspectiva, o movimentar-se é entendido como
alii, 1988), com repercussões sobre os domínios cognitivo e forma de comunicação com o mundo que é constituinte e
afetivo-social. Mas ambas as propostas não superam a pers­ construtora de cultura, mas, também, possibilitada por ela.
pectiva da psicologia, o que, para a questão pedagógica, é E uma linguagem, com especificidade, é claro, mas que,
problemático, como salienta Silva (1993a), em “Descons- enquanto cultura habita o mundo do simbólico7. A naturali­
truindo o Construtivismo”. zação do objeto da EF, por outro lado, seja alocando-o no
plano do biológico ou do psicológico, retira dele o caráter
A psicologização da educação implica, necessariamen­
histórico e com isso sua marca social. Ora, o que qualifica o
te, a sua despolitização. Não é suficiente afirmar, a título de
movimento enquanto humano é o sentido/significado do
defesa - de forma simplista -, que determinada psicologia
mover-se, sentido/significado mediado simbolicamente e que
leva em conta os fatores sociais. O que importa, ao contrá­
o coloca no plano da cultura.
rio, é destacar a existência de um aparato social e político,
como é a educação institucionalizada, e as implicações disso
(Silva, 1993a, p.5). 5 E “naturalmente social”.

6 Como diria Assmann (1993): “não são apenas festejos diferentes de linguagem”.
As duas definições, ou melhor, construções do objeto
7 Daí a importância do artigo de Mauro Betti (1994) que remete a novos horizontes
da EF, tratadas até aqui (biologia/psicologia do desenvolvi­ do estudo do movimento humano ou das manifestações da cultura corporal de
mento), permitem ver o objeto não como construção social e movimento através da semiótica.

44 C..,,.. '-- ..
No entanto, trabalhar na EF com o movimentar-se na Uma das razões para entendermos nosso objeto valen­
perspectiva da cultura (cultura corporal de movimento) não do-nos do conceito de cultura diz respeito ao fato de que ela
basta para colocá-la no âmbito de uma concepção progres­ é uma categoria-chave para o empreendimento educativo
sista de educação, mesmo porque, o conceito de cultura de maneira geral. A relação entre educação e cultura é orgâ­
pode ser definido e operacionalizado em termos social e nica. Como lembra Forquin (1993),
politicamente conservadores. É preciso portanto, articular
um conceito de cultura que se coadune com os pressupostos “o que justifica fundamentalmente o empreendimento educativo
é a responsabilidade de ter que transmitir e perpetuar a expe­
sociofilosóficos da educação crítica. riência hum ana considerada com o cultura” (p. 13).

Para Geertz, citado por Thompson (1995, p. 176), “A cultura é o conteúdo substancial da educação, sua fonte e
sua justificação última” (p. 14).
“cultura é o padrão de significados incorporados nas for­
mas simbólicas, que inclui ações, manifestações verbais e ob­
Nas abordagens de EF baseadas no conceito (biológico)
jetos significativos de vários tipos, em virtude dos quais os
indivíduos comunicam-se entre si e partilham suas experiên­ de atividade física e no conceito (psicológico) da abordagem
cias, concepções e crenças”. desenvolvimentista, o corpo e o movimentar-se humano apre­
sentam-se desculturalizados8.
Thompson aponta a insuficiência dessa concepção, di­
zendo que Duas observações ainda se fazem necessárias quanto à
relação cultura-educação:
“estas formas simbólicas estão também inseridas em contex­
tos e processos sócio-históricos específicos dentro dos quais, a) “a educação ‘realiza’ a cultura como memória viva, reativação
e por meio dos quais, são produzidas, transmitidas e recebi­ incessante e sempre ameaçada, fio precário e promessa
das. Estes contextos e processos estão estruturados de várias necessária da continuidade hum an a” (Forquin, 1993, p.
maneiras. Podem estar caracterizados, por exemplo, por rela­ 14);
ções assimétricas de poder, por acesso diferenciado a recur­
b) “U m a teoria cultural da educação, vê a educação, a peda­
sos e oportunidades e por mecanismos institucionalizados de
gogia e o currículo com o campos de luta e conflito
produção, transmissão e recepção de formas simbólicas (1995,
simbólicos, como arenas contestadas na busca da imposi­
p. 181).
ção de significados e de hegemonia cultural. (Silva, 1993b,
p. 122)
Dessa forma, a análise cultural como o estudo de for­
mas simbólicas deve considerar os “contextos e processos
específicos e socialmente estruturados dentro dos quais, e
por meio dos quais, essas formas simbólicas são produzidas,
transmitidas e recebidas”. Portanto, o movimentar-se e mesmo 8 Desculturalizados não no sentido de que os movimentos, os jogos e as brincadeiras
o corpo humano precisam ser entendidos e estudados como utilizados nessas abordagens não emanem do universo cultural - por exemplo,
Freire (1992) e valoriza sobremaneira a cultura infantif- mas, sim, no sentido de
uma complexa estrutura social de sentido e significado, em que os critérios a partir dos quais são sistematizados e tratados pedagogicamente
contextos e processos sócio-históricos específicos. advêm, exclusivamente, de análises do desenvolvimento infantil, descontextualizadas
social e historicamente.
que o que se estava propondo, nesse caso, era transformar a
A especificidade pedagógica EF num discurso sobre o movimento, retirando o movimen-
da cultura corporal de movimento tar-se do centro da ação pedagógica em EF.
Betti, enfocando essa questão, observa:
Para a construção de uma teoria da EF coloca-se aqui
uma questão central: qual é a especificidade pedagógica da “N ão estou propondo que a EF transforme-se num discurso
sobre a cultura corporal de movimento, mas num a ação pe­
cultura corporal de movimento enquanto saber escolar?9 dagógica com ela [grifo nossoj. E evidente que não estou
abrindo m ão da capacidade de abstração e teorização da lin­
Os saberes tradicionalmente transmitidos pela escola guagem escrita e falada, o que seria desconsiderar o simbolis­
provêm de disciplinas científicas ou então, de forma mais m o que caracteriza o homem. Mas a ação pedagógica a que se
geral, de saberes de caráter teórico-conceitual. Entendo que, propõe a EF estará sempre impregnada da corporeidade do
sentir e do relacionar-se.” (1995, p. 41)
diferentemente do saber conceituai, o saber de que trata a
EF (e a Educação Artística) encerra uma ambigüidade ou um
Nos parece que, no fundo, está aqui presente a ambigui­
duplo caráter: a) ser um saber que se traduz num saber-
dade insuperável que radica-se no nosso estatuto corpóreo.
fazer, num realizar “corporal”; b) ser um saber sobre esse
Simultaneamente, somos e temos um corpo.
realizar corporal10.
Um desdobramento ou uma vertente dessa ambigüida­
No caso do entendimento de que o objeto da EF era a de refere-se à relação natureza-cultura, que é uma questão
atividade física ou o movimento humano, a ambigüidade era que afeta o entendimento geral de ser humano e que se
resolvida a favor da dimensão “prática” ou do fazer corporal. aguça sobremaneira quando falamos de corpo e movimento.
Esse fazer corporal é que repercutia sobre a “totalidade” (os
diferentes domínios do comportamento) do ser humano. Nesse É interessante colocar aqui o que Cullen11 chama de
caso, o debate se desenvolveu em torno da polarização: edu­ encruzilhada quando buscamos situar o lugar do corpo na
cação do ou pelo movimento, ou ambos. cultura. Para esse filósofo argentino, o corpo, ou a existên­
cia corporal do homem, é fonte de certo mal-estar para a
Já, trabalhando a partir da idéia da cultura corporal de cultura, pois seriam marcas do corpo a singularidade, ao
movimento como objeto da EF, a questão do saber sobre o passo que a cultura seria o reino do comum, o remeter
movimentar-se do homem passa a ser incorporado enquanto imediatamente ao desejo e à morte, necessitar de espaço e
saber a ser transmitido (não é apenas instrumento do profes­ movimento e depender do meio ambiente. A cultura cir­
sor). Desenvolveu-se aqui, rapidamente, o “pré-conceito” de cunscreve o corpo, que parece querer negá-la, ao plano da
natureza, impondo-o, assim, um vazio, ou então fá-lo reger-
9 Outras questões aderem a esta, como: o que é possível ensinar/aprender quando se por uma idéia ou modelo - é o simulacro. Por isso estamos,
trato pedagogicamente essa parcela da cultura? Quais são os critérios para selecio­
nar e sistematizar essa dimensão da cultura? segundo o autor, numa encruzilhada: culturalizar o corpo e
10 Essa questão está magistralmente tratada no artigo mais instigante de nossa área 11 Anotações pessoais da palestra proferida por C. Cullen durante o II Congresso
publicado em 1994. Refiro-me ao artigo de Mauro Betti, publicado na revista Argentino de Educación Física y Ciência (La Plata, outubro/1995).
Disco rpo: O que a Semiótica Inspira ao Ensino da EF.
torná-lo semelhante (reprimindo sua singularidade) ou descul- Ghiraldelli Júnior (1990) detectou essa questão e colo­
turalizar o corpo e reduzi-lo à diferença. O corpo naturaliza­ cou frente a frente duas tendências no âmbito da chamada
do ou o corpo culturalizado? Ou, talvez o grande desafio do EF progressista: a tendência racionalista e a tendência anti-
projeto educativo: como culturalizar sem desnaturalizar?
racionalista. Segundo o autor, as tendências racionalistas
Como isso se expressou na EF? A EF sempre fez um buscam uma saída pela janela:
discurso, baseado nas ciências naturais, de controle do cor­
“Detectando no movimento, na “prática corporal”, elemen­
po, de “construção” de um corpo saudável e produtivo,
tos não desejáveis, acabam por tomá-los como a própria e ex­
treinável, capaz de grandes e belos desempenhos motores. clusiva essência do movimento e, na sequência, concluem que
Era o corpo “natural” submetido ao entendimento dominan­ é preciso que ‘alguma coisa de fora’ venha acrescentar-lhe cri-
te de nossa corporeidade. Não há aqui espaço para conside­ ticidade, venha libertá-lo, libertando seu praticante. Essa coi­
rar o corpo “sujeito” de cultura, produtor de cultura, ele ape­ sa exterior é o discurso, que pode ter caráter sociológico, an­
tropológico, político, etc. [...] A aula de EF torna-se uma aula
nas “sofre cultura”. E interessante notar que em alguns casos sobre o movimento e não mais uma aula com movimento.
ainda temos a denominação de órgãos públicos de Secreta­ O u então, uma aula com o movimento nas condições da EF
ria de Esportes e Cultura; cultura é o que retrata artistica­ ‘tradicional’ agregada ao estudo e discurso crítico.” (p. 197-8)
mente o corpo, ou então, aquelas atividades corporais que
são realizadas sob o signo da cultura (ballet, por exemplo). Por outro lado,
Outra postura é aquela que enaltece o sensível (o lúdico), “as correntes anti-racionalistas captam que o movimento cor­
enquanto instância ainda não submetida às regras do mundo poral humano, por não ser algo que passe pela verbalização,
racional ou social, que busca e valoriza aquelas experiências pode escapar da razão e, por essa via, se aproximar da intui­
que atestam a unidade homem-mundo, uma certa unidade ção. Afinal, o movimento não é algo que pode ser descrito e
explicado (positivismo e afins) nos seus últimos detalhes, mas
primordial, experiências em que somos corpo e mundo. Uma é algo que pode ser compreendido (historicismo e afins), vivi­
terceira postura quase que elimina a primeira natureza em do, sentido; é algo do plano subjetivo e que esconde que este
favor da segunda natureza, a cultura, privilegiando nesta a plano foi construído subjetivamente.” (p. 198)12
racionalidade científica.
Parece-me que aqui a EF é levada a uma encruzilhada
O movimento instalado na EF brasileira a partir da ou mesmo um paradoxo: racionalizar algo que, ao ser racio­
década de 80, ao menos em uma de suas vertentes (aquela
nalizado, se descaracteriza. Ou seja, existiria uma dimensão
que vai buscar fundamentação pedagógica na pedagogia his­
das experiências/vivências humanas passíveis de serem pro­
tórico-crítica), situa-se na terceira perspectiva descrita, que
piciadas também pelo movimentar-se (nas mais diferentes
tem pelo menos um aspecto em comum com a primeira:
uma perspectiva racionalista do movimento humano. Ou seja, formas culturais) que “resiste às palavras”, ou, dito de outra
em vez de controlar o movimento apenas no sentido mecâ- forma, não é possível pedagogizá-las por via da sua descri­
nico-fisiológico, encarando-o agora como fenômeno cul­
12 Ghiraldelli Júnior (1990) entende que ambas as correntes ficam a meio caminho e
tural, pretende dirigi-lo a partir da “consciência crítica propõe uma visão alternativa baseada numa leitura dialética materialista. No nosso
dos determinantes sociopolítico-econômicos que sobre ele entendimento, a busca da contradição interna, por via da historicização, acaba se
circunscrevendo na própria perspectiva racionalista, não superando, portanto, o
recaem”.
impasse identificado pelo autor.
o conceito de linguagem a todo tipo de ativações da
ção científica; fogem ao controle, à previsão (da ciência);
corporeidade15. Parafraseando Chauí (1994), poderíamos
são, de certa forma, únicas, singulares. Aliás, para Nietzsche,
dizer que, na filosofia e nas ciências, falamos de “movimen­
citado por Naffah Neto (1991, p. 23),
to e pensamento” (um discurso filosófico e científico sobre o
“Nossas experiências verdadeiramente fundamentais não são, movimento), mas que, na EF, deveríamos falar de movimen-
de forma alguma, tagarelas. Elas não saberiam se comunicar, to-pensamento.
mesmo que quisessem. É que lhes falta a palavra. Aquilo para
que encontramos palavras, já ultrapassamos [...] A língua, Por algum tempo pensei e falei (em círculos mais pró­
parece, foi inventada somente para as coisas medíocres, co­ ximos) em uma “epistemologia do movimento”. Ao contrá­
muns, comunicáveis. Pela linguagem, aquele que fala se vul­ rio das conhecidas taxionomias do domínio psicomotor, tra­
gariza13.”
tava-se, pensava eu, de identificar o tipo de conhecimento
Como tratar na EF essas experiências? Nos subordinar da realidade que o movimentar-se humano pode propiciar,
ao “desfrute lúdico”? Como construir uma prática pedagógi­ que tipo de leitura da realidade essa forma de comunicação
ca que, por definição, é uma intervenção racional/conscien­ com o mundo pode propiciar e quais conhecimentos e leitu­
te sobre o desenvolvimento da personalidade dos indivíduos, ra da realidade determinadas formas culturais do movimen­
de maneira a contemplar essas dimensões do movimen- tar-se propiciariam. Estou inclinado a complementar essa
tar-se humano? proposta com uma “fenomenologia/hermenêutica do movi­
A questão se complexifica porque sabemos que a edu­ mento”, uma vez que a expressão epistemologia está exces­
cação da sensibilidade ou o afeto é tão importante quanto a sivamente comprometida com uma postura racionalista no
cognição na definição do comportamento social (político) dos sentido cognitivista, que não abre espaço para a ampliação
indivíduos. Por isso retomo aqui uma pergunta que formulei do conceito de verdade. Como pergunta Gadamer, citado
em um simpósio de nossa área14: é possível falar em “movi­ por Hekman (1990, p. 147):
mento crítico”? A criticidade ou a educação crítica em EF “É correto reservar o conceito de verdade para o conheci­
somente pode acontecer através de um discurso crítico so­ mento conceptual? Não devemos também admitir que a obra
bre o movimento? E preciso não incorrer no erro de enten­ de arte possui verdade? Veremos que o reconhecimento des­
der criticidade, neste caso, apenas como um conceito da tes aspectos coloca não só o fenômeno da arte, mas também
o da história [e o do movimento, VB], sob uma nova luz”.
esfera da cognição. E preciso alargá-lo abarcando a dimen­
são estética. Aliás, Carlos R. Brandão, no VIII Congresso
15 Lembro aqui das palavras de Benedito Nunes (1994, p. 403), discorrendo sobre a
Brasileiro de Ciências do Esporte (Recife/1987), afirmou “poética do pensamento”. Vale a pena ouvi-lo: “A poesia-canto desobjetifica a
que, para ele, crítico só poderia ser o sujeito amoroso, aque­ linguagem, retira-a do âmbito da visão prática, da ação e do intercurso cotidiano,
a que serve de instrumento de comunicação, para o da abertura, temporal e
le que tem a capacidade de se sensibilizar com o drama do histórica. Do mesmo modo que na arte a terra se torna terra, e não é propriamente
mundo. É preciso, valendo-me de Assmann (1993), ampliar usada, ao contrário do que sucede com o instrumento material, absorvido em seu
próprio emprego, a poesia usa a palavra como palavra, sem gastá-la, librando o seu
13 Há, nessa interpretação, uma redução das possibilidades da linguagem, o que é poder de nomear, de fundar o ser, de desencobri-lo no poema. E o que distingue o
reconhecido por Naffah Neto (1991), que vai, na seqüência discutir, essa questão a poeta do pensador é que a nomeação naquele alcança o que excede à compreen­
partir de Merleau-Ponty, com seu “uso criativo da linguagem”. são do ser em torno do qual o último gravita: o sagrado, indizível, estranho ao
pensamento”.
14 Precisamente em Goiânia, no ano de 1991.

....52 t ____
Assim, uma educação crítica no âmbito da EF tem
igual preocupação com a educação estética, com a educa­
ção da sensibilidade, o que significa dizer, “incorporação”,
não por via do discurso e, sim, por via das “práticas corpo­
rais”16 de normas e valores que orientam gostos, preferên­
cias, que junto com o entendimento racional, determinam a
relação dos indivíduos com o mundo. Sem me alongar na
polêmica da crise da razão (iluminista) ou da racionalidade
científica, entendo que não se trata de subsumi-la à sensibi­
lidade, mas, sim, de não pretender absolutizá-la.
O desafio parece-me ser: nem movimento sem pensa­
mento, nem movimento e pensamento, mas, sim, mouimen-
topensamento17.

16 Coloquei o termo entre aspas para demonstrar, por um lado, que reconheço a falta
de um termo que supere o dualismo inevitavelmente presente na nossa linguagem
quando usamos a palavra “corpo", mas, por outro lado, preciso reconhecer, tam­
bém, que ele é fruto da possibilidade que temos de reconhecer nossa existência
corporal.

17 Deixo a cargo dos prezados leitores a interpretação do porquê aglutinei a palavra


“pensamento" à palavra “movimento” e não, por exemplo, “sentimento”. Talvez,
ambigüamente, intuitiva-racionalmente, esteja me contrapondo às posturas relativistas
que postulam uma pluralidade radical da razão, sem hierarquia de qualquer tipo.
AS CIÊNCIAS DO ESPORTE:
QUE CIÊNCIA É ESSA?1

No ano em que o Colégio Brasileiro de Ciências do


Esporte (CBCE) completou quinze anos de existência fize­
mos a pergunta: que ciência é essa que fizemos nestes anos
todos?
Tomar essa questão como tema de congresso pareceu
refletir uma necessidade do colegiado e da “área”. Essa orien­
tação/necessidade estava já presente na temática do VII
Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (CONBRACE),
realizado em Uberlândia, em 1991, e, também, no livro do
ano editado pela Sociedade Brasileira para o Desenvolvi­
mento da Educação Física2.
Entendemos que depois de uma certa euforia e “inge­
nuidade” cientificista dos seus primeiros anos de existência,
com conseqüente aversão à reflexão filosófica, a que se se­
guiu um predomínio ideológico com a sobreposição do polí­
tico ao acadêmico, o CBCE chegou aos seus quinze anos

1 Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 13(1),


1993.
2 Existem vários indicadores nesse sentido, como os recorrentes reclamos de pesqui­
sadores da área como Tani (1988) e Carmo (1987) e de órgãos financiadores
como o CNPq e a F1NEP.
como que possuído pelo desejo de complementar o conheci­ Mas, a década de 70 parece ter sido realmente decisi­
mento das coisas com o conhecimento de si mesmo - dos va para a área da EF/CE. O Diagnóstico da Educação Físi­
pressupostos epistemológicos com que opera. ca e dos Desportos, realizado pelo MEC em 1969/1970,
identificara a falta de pesquisa científica na área. Lembre­
O VIII CONBRACE foi então organizado e estruturado
mos rapidamente, que a ciência (objetiva e neutra) fazia
fundamentalmente para servir de palco para uma discussão
parte do credo e do discurso tecnocrático e era entendida
em torno dos pontos que ao longos destes anos apresenta­
como fundamental instrumento para garantir a eficiência dos
ram-se como problemáticos para o desenvolvimento científi­
programas de ação governamentais nas diferentes áreas (no
co da área da EF/CE (Educação Física/Ciências do Esporte).
caso na EF/esportes). Datam dessa década uma série de
Pretendeu-se dar também um caráter deliberativo a esse
congresso, para que a síntese dos debates nele desenvolvi­ iniciativas no setor:
dos, bem como as perspectivas e as ações possíveis para a - envio de grande número de professores para cursar pós-
superação dos problemas, sejam consubstanciadas em docu­ graduação no exterior, principalmente nos EUA;
mento aprovado pelo colegiado em assembléia. Com isso, o - convênios e intercâmbios com centros de pesquisa no ex­
CBCE, entidade da sociedade civil, busca a iniciativa e cha­ terior - por exemplo com a Escola Superior de Colônia, da
ma para si a responsabilidade de orientar o desenvolvimen­ Alemanha;
to científico da área da EF/CE.
- criação e implantação de cursos de pós-graduação na área
E importante situar historicamente essa iniciativa e seu da EF/CE;
significado sociopolítico. Essa iniciativa constrói-se após um - implantação de laboratórios de pesquisa, principalmente
período de institucionalização da pesquisa científica na “área”3 de fisiologia do esforço e cineantropometria, em alguns
(criação e implantação de cursos de pós-graduação, incenti­ centros universitários - por exemplo, na UFRJ e UFRGS.
vo à capacitação docente, financiamento e fomento de pes­
Não se deve esquecer que é nesse âmbito que vão
quisa científica), em cujo âmbito as ações governamentais
surgir o CELAFISCS e, posteriormente, o próprio CBCE.
foram sempre as norteadoras e decisivas. Pode-se levantar a
hipótese de que isso tenha significado que a pesquisa na A partir da reforma univerisitária, através da Lei ng
área tenha estado fortemente atrelada aos interesses dos 5.540, de 1968, que estabeleceu as regras para a pós-gra­
sucessivos governos do regime ditatorial vigente, principal­ duação, baseadas basicamente no modelo norte-americano,
mente na década de 70. Ou seja, estamos apontando, com a Educação Física vai almejar/reivindicar o status acadêmi­
mais essa iniciativa do CBCE, para o aumento da possibili­ co da pós-graduação. Isto é, as “práticas científicas” passam
dade de construirmos uma prática científica mais afinada a fazer parte, de maneira agora mais intensa, da atividade
com os interesses democráticos da sociedade brasileira. Isso acadêmica dos docentes dos cursos superiores de Educação
dependerá, é claro, do grau de legitimidade que alcançar­ Física.
mos com essa ação coletiva. Ora, já se instalara a relação de simbiose (parasitismo)
entre o esporte e a Educação Física, já havia-se consolidado
3 Uso a palavra área entre aspas por entender que um dos problemas é exatamente
identificar/explicitar os seus contornos. a esportivização da Educação Física, com a instrumentalização
desta última pelo primeiro, instrumentalização aprofundada Mas, antes de apontar mais precisamente os proble­
pelos sucessivos planos governamentais da área que coloca­ mas que consideramos sejam os que mais obstaculizam o
vam a Educação Física como base para o desporto nacional. desenvolvimento científico da área, gostaríamos de rever ra­
Assim, pesquisa em esporte e em Educação Física podiam- pidamente o conhecimento do conhecimento produzido.
se confundir. Faço essa digressão para a) explicar a razão do
uso privilegiado da expressão “Ciências do Esporte”, e b)
evidenciar que apesar da pesquisa da época orientar-se, 0 conhecimento do conhecimento
majoritariamente, por uma matriz teórico-científica que ad­
voga a neutralidade da ciência, o fomento à pesquisa tinha
Entendo que uma das possibilidades de fazer a avalia­
como objetivo garantir a eficiência do sistema esportivo (e
ção da ciência que fizemos nestas últimas três décadas é
da EF a ele atrelado).
recuperar as análises e os estudos já realizados sobre a pro­
Neste contexto, a comunidade acadêmica da EF/CE dução do conhecimento em nossa área. Essas análises ou o
busca legitimidade no âmbito das organizações vinculadas à conhecimento do conhecimento produzido é, a nosso ver,
pesquisa científica. Ela reivindica cursos de pós-graduação, denunciador do próprio estágio de desenvolvimento científi­
reivindica recursos para financiar pesquisa científica, etc. co da área no seu percurso histórico, ou seja, no próprio
Mas, é preciso adentrar ao campo científico para solicitar/
autoconhecimento é possível identificar as limitações cientí­
exigir esclarecimentos ou respostas a questões do tipo: Ef é ficas da área.
ciência, ou devemos falar em Ciências da EF ou do Esporte?
Qual é o objeto desta ou destas ciências? E esse objeto o E possível caracterizar pelo menos dois momentos dis­
esporte, a atividade física ou o movimento humano? Lem­ tintos nos estudos sobre a produção do conhecimento na
bremos que os órgãos de fomento à pesquisa científica pre­ área. Num primeiro grupo pode ser alocada uma série de
cisam e exigem classificá-la para reconhecê-la4. trabalhos produzidos na década de 80, como os de Matsudo
Embora sempre reclamadas, as respostas a essas ques­ (1983), Canfield (1988), Tubino (1984) e Faria Jr. (1987).
tões nunca apresentaram grande consistência teórica e, por Nesses estudos encontramos basicamente uma descrição e/
vezes, essas questões foram solenemente ignoradas5, per­ ou identificação das “subáreas” onde mais se concentrava a
manecendo a área no plano do que o sociólogo francês P. pesquisa, como também suas tendências de crescimento.
Bourdieu chama de doxa (no plano do não-discutido). Ou seja, os estudos consistiam em dividir a “área” em
“subáreas” e verificar o percentual de pesquisas realizadas
4 Junto ao CNPq nossa classificação ss dá a partir do nome Educação Física e no (apresentadas/publicadas) em cada uma dessas.
âmbito das Ciências da Vida - Coordenação de Saúde. Na SBPC se dá com o
nome de Motricidade Humana/Esportes e como Ciência Aplicada. A pergunta “Que ciência é essa?”, era na verdade
5 Isso me faz lembrar a observação de M. Sérgio (1988, p. 6): “A Educação Física
nunca precisou autolegitimar-se epistemologicamente, ou seja, de encontrar em si
traduzida nas perguntas “Em quais subáreas mais se pesqui­
as formas e razões de sua própria cientificidade, precisamente porque o poder sa?” Qual é a tendência em termos de crescimento da pes­
sempre se serviu dela e nunca a serviu como instrumento insubstituível de conheci­
mento e transformação".
quisa nas diferentes subáreas?”
Esses estudos constataram então que havia um predo­ mentadas na fenomenologia e no materialismo histórico
mínio das “subáreas” da medicina esportiva, da fisiologia e dialético, aliás, tendência encontrada também por Gamboa
da cineantropometria, enfim, uma forte influência das ciên­ (1989) no âmbito da educação, o que nos leva a suspeitar de
cias naturais, mas que, principalmente a partir de 1980, uma forte influência do pensamento pedagógico na Educa­
podia-se verificar um crescimento das “subáreas” pedagógi­ ção Física.
ca e sociocultural, essas sob a influência das ciências sociais Lembrando rapidamente: Souza e Silva (1990) chegou
e humanas. A discussão propriamente epistemológica esta­ à conclusão, em seu estudo
va na verdade ausente, mas o crescimento da influência das
“que o entendimento dominante de ciência nas pesquisas está
ciências sociais e humanas vai fazer aflorar esse debate ne­ atrelado aos princípios da quantificação e matematização dos
cessário6. fenôm enos, da análise e descrição dos m esm os segundo
parâmetros estatísticos, da descontextualização e isolamento
Um segundo momento do conhecimento do conheci­ dos fenômenos ou fatos para sua experimentação e neutrali­
mento marca o início da discussão propriamente epistemo­ dade dos pesquisador, entre outras características que apon­
tam para uma visão de ciência voltada para a vertente posi­
lógica. No início dos anos 90 aparecem os estudos que bus­
tivista”. (p. 154)
cam não mais identificar em quais “subáreas” mais se pes­
quisa, mas, sim, quais são as “matrizes teóricas”, ou seja, as Ao mesmo tempo propunha-se a adoção do materia­
concepções de ciência, que orientam as pesquisas na área. lismo histórico dialético ou a abordagem crítico-dialética (como
O estudo central nesse caso é a dissertação de mestrado da na pedagogia), como o caminho para a superação dos
professora Rossana Valéria S. e Silva (1990), que analisou as reducionismos e equívocos da pesquisa da área.
teses de mestrado produzidas na década de 80. Faria Jr. Eu mesmo (Bracht, 1991) procurei avaliar a produção
(1991), também baseado em Gamboa (1989), amplia seu do conhecimento sobre o esporte com um referencial basea­
estudo original (Faria Jr., 1987), incorporando a discussão do na distinção habermasiana dos interesses norteadores do
epistemológica. Mas, recentemente, Gaya (1993) publicou conhecimento, ressaltando que, no caso dos estudos enfocando
estudo que situa-se também nessa perspectiva de análise. o esporte no Brasil, o interesse norteador é basicamente o
Que ciência é essa? Como se apresentava/apresenta interesse técnico - o que explica a predominante adoção da
a produção científica quando interrogada sua matriz teórica? matriz empírico-analítica - e, em bem menor grau, os inte­
resses prático e emancipatório.
Os resultados encontrados “denunciam” que a produ­
A virtude desses estudos foi questionar os critérios de
ção do conhecimento na área baseia-se numa concepção
cientificidade até então legítimos na área, preparando o ca­
positivista (Souza e Silva, 1990) ou empírico-analítica (Faria
minho para uma possível superação do senso comum cientí­
Jr., 1991 e Gaya, 1993) de ciência, identificando uma ten­
fico predominante.
dência (embora tímida) de crescimento das pesquisas funda­
E importante salientar que a incorporação dessa dis­
6 Mesmo porque muito do que se apresentava como científico nas subáreas pedagó­
cussão, no âmbito da EF/CE, foi propiciada pelo amplo e
gica e sociocultural não era assim reconhecido pelo segmento orientado nas ciên­
cias naturais. radical debate que instalou-se no início da década de 80 e
que consubstanciou-se na chamada “crise” (Medina, 1983) to produzido decorrente da falta de publicações periódicas a
da EF. Esse “movimento” teve conseqüências fundamentais falta de rigor científico do que é produzido e publicado e a
na história e construção do próprio CBCE, que a exigüidade excessiva proliferação de eventos em detrimento das publi­
do espaço impede desenvolver aqui7. cações.
Atenho-me, assim, um pouco mais às questões da iden­
A questão da identidade epistemoiógica da área tidade ou estatuto epistemológico (estatuto científico) da EF/
CE. Parece-me claro o quanto essa questão é também fun­
damental para os aspectos listados anteriormente, ou seja,
Além dos estudos que descreviam a incidência das pes­
para a estruturação dos cursos de pós-graduação, para os
quisas nas diferentes subáreas, apontando suas tendências,
esforços de publicação, para a pesquisa e para a própria
e daqueles que buscavam identificar as matrizes teóricas com
discussão curricular.
as quais se operava na área, alguns autores preocuparam-se
com o que poderíamos chamar de estatuto ou identidade Um dos pontos sempre levantados para a construção
epistemoiógica da área da EF/CE. Destaco neste caso os da identidade epistemoiógica é a necessidade de esclarecer
estudos do filósofo português Manoel Sérgio, com sua tese o objeto9 da EF/CE.
da Ciência da Motricidade Humana (Sérgio, 1988), de Go
Tani (1988), de Apolônio A. do Carmo (1987), de Silvino
Santin (1992) e, mais recentemente, de Hugo Lovisolo (1993 0 debate em tomo do “objeto” da Educação Física
e 1995)8. A esses estudos gostaria de acrescentar minha
modesta contribuição, tomando como interlocutores princi­
Nem sempre, no entanto, na busca do objeto da EF
palmente os trabalhos de Tani et al.(1988) e Lovisolo (1993).
(deixo de lado, por um instante, a expressão Ciências do
Antes, porém, gostaria de ressaltar que os problemas Esporte), teve-se claro que ela é antes de tudo uma prática
no âmbito da produção e veiculação do conhecimento na pedagógica, portanto uma prática de intervenção imedia­
área da EF/CE não se restringem à questão da identidade ta10. Tani (1988) busca clareza nesse sentido, a partir da
epistemoiógica. Além desse aspecto, mas também a ele vin­ distinção entre a EF enquanto profissão e enquanto discipli­
culado, o Departamento Científico do CBCE tem identifica­ na acadêmica.
do outros, como o baixo grau de significação do conheci­
mento produzido no sentido de dar resposta aos problemas
colocados pela prática a socialização restrita do conhecimen- 9 “Uma disciplina acadêmica se caracteriza pela existência de um objeto de estudo,
de uma metodologia de estudo e de um paradigma próprios” (Tani, 1988, p. 388).
7 Remeto o leitor a esse respeito ã obra de Paiva (1994).
10 Lovisolo (1993, p. 39) de certa forma comunga desta idéia. Ele entende o “educa­
8 Observe-se que estou me atendo aos estudos no âmbito da lingua portuguesa, não dor físico” como uma espécie de brícoleur “que a partir de fragmentos de antigos
ignorando os estudos a respeito no âmbito dos países de línguas inglesa, francesa, objetos, guardados no porão, constrói um objeto novo no qual as marcas dos antigos
espanhola e alemã. Além dos citados anteriormente, outros dois autores da área não desaparecem". Assim, o educador físico articula os diferentes conhecimentos
desenvolveram estudos recentes. São eles Adroaldo Gaya e Vítor M. de Oliveira. sobre as práticas corporais com vistas a uma intervenção social.
Essa distinção é fundamental para a discussão epistemo­
o problema de demarcação ou construção de um objeto cien­
lógica, como procurarei demonstrar a seguir. Quando per­ tífico. Parece-me que Tani (1988), de certa forma, é refém
guntamos pelo objeto da EF, estamos perguntando por um de uma postura empirista que busca delimitar o objeto a
“objeto” de uma prática de intervenção imediata que tem partir de um recorte da realidade empírica. Bourdieu et al.
seu “sentido não na compreensão, mas no aperfeiçoamento (1993), tratando dessa questão, citam Saussure: “o ponto
da praxis” (Schmied-Kowarzik, 1983, p. 23), ou por um de vista cria o objeto” (p. 51). Isto é, uma ciência não poder
“objeto científico”? definir-se por um setor do real que lhe corresponder. Conti­
Tani (1988) reclama do fato de que sempre se privile­ nuam os autores, citando então Marx: “a totalidade concre­
giou o entendimento da EF enquanto profissão negligencian- ta, como totalidade do pensamento é, de fato, um produto
do pensamento na concepção” (idem, p. 51).
do-se o entendimento enquanto disciplina acadêmica, suge­
rindo algum tipo de antagonismo. Entendemos que não há Laplantine (1991) segue essa linha de raciocínio ao
antagonismo, mas, reconhecer a EF primeiro enquanto prá­ afirmar que
tica pedagógica é fundamental para o reconhecimento do “uma disciplina científica (ou que pretende sê-lo) não deva ser
tipo de conhecimento, de saber necessário para orientá-la e caracterizada por objetos empíricos já constituídos, mas, pelo
contrário, pela constituição de objetos formais. O u seja, a
para o reconhecimento do tipo de relação possível/desejável
única coisa possível, a nosso ver, de definir um a disciplina
entre a Educação Física e o “saber científico”, ou as discipli­ (qualquer que seja), não é de forma alguma um campo de in­
nas científicas11. vestigação dado (a tecnologia, o parentesco, a arte, a religião
... o esporte - V.B.), muito menos uma área geográfica ou um
Entendemos que enquanto área de estudo da realidade período da história, e sim a especificidade da abordagem utili­
com vistas ao aperfeiçoamento da prática pedagógica, a EF zada que transforma esse campo, essa área, esse período em
objeto científico”, (p. 96)
precisa construir seu objeto a partir da intenção pedagógica.
Essa é que deve nortear a construção da problemática teóri­ Voltemos para Bourdieu et al. (1993). Os autores en­
ca que vai orientar o estudo do seu objeto. Mas, por que tendem que Max Weber formulou um princípio epistemológico
falar em “construção do objeto”? Ele já não está dado na que é instrumento de ruptura com o realismo ingênuo. Eles o
realidade? citam:
Como reconhecido por muitos autores o objeto da EF “N ão são as relações reais entre ‘coisas’ o que constitui o
princípio de delimitação dos diferentes campos científicos, e
situa-se no plano do movimento humano (Tani, 1988, Santin,
sim, as relações conceituais entre problemas. Somente assim,
1992)12. Mas esse reconhecimento está longe de solucionar onde se aplica um método novo a novos problemas e onde,
portanto, se descobrem novas perspectivas nasce um a ‘ciên­
11 Confundir os dois papéis, o do cientista e o do bricoleur ou “interventor", é o cia nova’.” (p. 51).
primeiro e freqüente mal-entendido que encontramos entre os educadores físicos"
(Lovisolo, 1993, p. 40). Assim, a investigação científica se organiza de fato em
12 Lovisolo (1993) entende que “o campo dos fenômenos que ocupa a EF é o das torno de objetos construídos que não têm nada em comum
atividades corporais num sentido amplo” (p. 37). Nós temos denominado esse cam­ com aquelas unidades delimitadas pela percepção ingênua
po como o da cultura corporal (Coletivo de Autores, 1992, Bracht, 1992).
ou imediata.
ver, recuperar a unidade teórica necessária, a não ser que nas
Ora, não temos no âmbito da EF/CE uma construção distintas regionalidades do saber, como é a educação, haja
única ou unívoca do objeto (científico) denominado de movi­ um a ciência articuladora do eixo interno dos saberes e práti­
cas, a partir do qual possa a reflexão inserir-se dinamicamente
mento humano. Ou seja, na biomecânica, na aprendizagem no universo teórico mais am plo do saber, das ciências e da
motora, na sociologia do esporte, na fisiologia do esforço, filosofia”, (p. 10)
etc., o movimento humano enquanto objeto científico não é
o mesmo. Então não temos um objeto científico. Isso modi­ O que é reivindicado aqui, e gostaria de analogamente
fica a percepção do problema que se tem colocado como o estendê-lo à Educação Física, é a construção de uma disci-
da fragmentação do conhecimento em torno do movimento plina-síntese (no caso ainda adjetiuada de científica) ou
humano. Isso explica por que as chamadas Ciências do Es­ articuladora que pudesse fornecer o saber necessário - ou
porte cada vez menos mantêm diálogo entre si (mesmo ten­ que pudesse construir esse saber - para orientar a prática
do como “objeto” o movimento humano ou o esporte) e dos educadores. Uma ciência da e para a prática, como
tendem ou a criar organizações específicas (na verdade, fóruns diria Schmied-Kowarzik (1983).
específicos de discussão; por exemplo a Sociedade Brasilei­ Outro pensador da educação que tem tratado da
ra de Biomecânica), ou a buscarem o abrigo das disciplinas- especificidade da pedagogia enquanto ciência é L. C. de
mãe (psicologia, fisiologia, sociologia, etc.), onde a identida­ Freitas (1995). Ele introduz o problema citando Ribes (1982),
de epistemológica é determinada pela disciplina-mãe e não para quem
pela especialidade, ou seja, sociologia do esporte ou fisiolo­
“a identidade de uma disciplina configura-se, em primeiro lu­
gia do esforço não é Ciência do Esporte e sim ciência socio­
gar, a partir de sua especificidade epistemológica como modo
lógica ou fisiológica. de conhecimento científico [...]. A identidade da psicologia
educacional não pode ser encontrada como uma ciência da
educação, mas sim, como ciência psicológica” (p. 84-5).

Breves olhares sobre o caso da Pedagogia Para Ribes (1982) apud Freitas (1995, p. 27), “se uma
disciplina não possui campo epistemológico próprio - como
Talvez seja produtivo lançar um olhar sobre a pedago­ no caso da pedagogia - o que a define é a sua responsabili­
gia ou as “ciências da educação”, onde problemas seme­ dade social13, ou seja, sua vinculação com a solução de pro­
lhantes podem ser encontrados. blemas concretos sob o marco de uma instituição social”. E
conclui Freitas (1995):
Vejamos o que diz o professor M. O. Marques (1990):
“A pedagogia [a Educação Física - V.B., portanto, opera em
“buscamos [...] justificar as pretensões de uma Pedagogia, ao
um nível qualitativo diferente daquele das ciências individuais
mesmo tempo como ciência e como a ciência do coletivo dos
que lhe dão suporte epistemológico tais como a psicologia, a
educadores, em oposição tanto à separação entre o pensar/
sociologia e outras. Este nível qualitativamente diferente está
decidir e o fazer [...], quanto às incursões atomizadoras das
chamadas ciências da educação, que operam com conceitos
13 Lovisolo (1993), traçando um paralelo entre a EF e a medicina, tem um entendi­
gerados em outros contextos a respeito de outros temas. Os mento muito próximo ao de Ribes (1982).
esforços das interdisciplinaridades não conseguem, a nosso
expresso na própria elaboração da teoria educacional e peda­ car a questão ético-normativa16 como necessariamente pre­
gó gica, em relação dialética com a prática educacional sente na teorização em EF coloca-se (na pretensão de
multifacetada. Este é o papel de uma ciência pedagógica”, (p.
cientificidade desse teorizar) a questão da separação clássica
87)
entre o saber fático e o saber ético-normativo - e estamos
então no difícil terreno do debate em torno da dimensão
ético-política da produção do conhecimento e da prática
A Educação Física e a cientificidade pedagógica em Educação Física.
Para que a EF se desse por satisfeita com o conheci­
Mas, se reivindicamos para a EF (e a pedagogia) o mento científico precisamos ampliar o significado da ciên­
estatuto de uma ciência especial (da e para a prática), o que cia, ou fazê-la operar, como querem K. O. Apel e J.
estamos reivindicando? Tornar a EF uma tal ciência significa Habermas, com um novo conceito de razão, a razão comuni­
institucionalizar no seu âmbito as ditas práticas científicas e cativa, que engloba a razão teórica, a razão prática e a
trabalhar com as categorias epistemológicas da “ciência”? dimensão da subjetividade.
Precisaríamos aclarar se a EF operaria a partir dos princípios
Entendo que há a necessidade de voltar a produção do
epistemológicos das ciências naturais14 ou das ciências so­
ciais e humanas15? Se formos operar a partir dos princípios conhecimento nas faculdades, institutos, departamentos e
centros de EF (e Desportos) para as necessidades da prática
da “ciência clássica” poderíamos introduzir reducionismos no
pedagógica em EF, ou seja, superar a fragmentação a partir
estudo do movimento humano que precisariam ser evitados.
das necessidades da prática, que são globais.
Ou seja, o teorizar em EF precisa ultrapassar o próprio teorizar
científico. A teorização permitida ou realizada com as cate­
gorias epistêmicas da ciência tradicional não atende às ne­
cessidades da EF que tem no objeto “movimento humano” e As Ciências do Esporte: fragmentação versus unidade
na intenção pedagógica suas características definidoras. Pre­
cisaríamos teorizar de forma a contemplar o biológico, o Quanto às Ciências do Esporte ou Ciências do Movi­
psicológico e o social, mas também o ético e o estético, mento Humano parece-me inevitável neste momento usar o
numa perspectiva de globalidade - portanto numa nova cons­ plural. A tendência parece ser ainda a da fragmentação.
trução de nosso objeto. Ora, o ético e o estético, como sabe­ Não me parece ter sido construída na área urna problemáti­
mos, sempre foram alijados do âmbito da “ciência” e reme­ ca teórica que possa agrupar/reunir os esforços das discipli-
tidos ao decisionismo subjetivista ou a uma disciplina especí­
fica da filosofia e/ou para as expressões artísticas. Ao colo­ 16 Lovisolo (1993) parece ter captado esse problema com clareza ao dizer que “os
valores não são nem verdades científicas nem questão de mero gosto individual” (p.
31) e enfatiza que “a velha solução de dialogar sobre os valores continua sendo um
14 É o que faz ver Santin (1992) com ceticismo e como problemática a reivindicação caminho transitável se acreditarmos na razoabilidade do homem” (p. 32). A esse
da EF por cientificidade. respeito gostaria de remeter o leitor ainda ao interessante texto de Klafki (1992)
15 Estou partindo do dualismo epistemológico que é negado, por exemplo, pelo que discute os limites do conhecimento produzido pelas “ciências da educação" no
positivismo e pelo racionalismo crítico popperiano. estabelecimento dos objetivos educacionais.
nas que se ocupam cientificamente do esporte ou do movi­ Considerações finais
mento humano. Elas continuam operando, cada uma, com
seu referencial teórico-metodológico, com problematizações Procurei demonstrar que estamos de frente a grandes
próprias/específicas, que são, como denuncia Sobral (1992) desafios, que, aliás, somente serão vencidos com um enor­
as das disciplinas-mãe. me esforço coletivo.
E comum ouvir que o esporte ou o movimento humano Por falar em coletivo, entendo que o CBCE, organiza-
são tão complexos que exigem um tratamento interdiscplinar cionalmente, pode trilhar basicamente dois caminhos: a) apos­
ou “crossdisciplinar”. Ora, isso é permanecer no âmbito de tar numa possível unidade do conhecimento produzido na
uma visão empirista. O movimento humano ou o esporte área, ou b) se curvar de frente à “fragmentação” (uma das
não exigem por si só tratamento interdisciplinar, nós é que tendências nesse sentido é a criação de comitês de, por
podemos problematizá-lo de modo a exigir tratamento exemplo, sociologia, de fisiologia, etc.) e correr o risco de,
interdisciplinar17, e isso está na dependência dos interesses em breve, ser palco de uma “diálogo de surdos”.
norteadores do conhecimento.
Por outro lado, para outro tipo de pluralidade o CBCE
Então, as dificuldades no sentido da (re)unificação ou precisa dar solução adequada. Refiro-me à diversidade de
síntese do conhecimento, que hoje se assemelha às ofertas entendimento do que é e por que fazer ciência: o chamado
de um supermercado, são inúmeras. Talvez um caminho seja
pluralismo científico. Esse, como lembra Martins (1993, p.
interrogarmo-nos sobre a legitimidade do pesquisar em 105),
“Ciências do Esporte”. Tradicionalmente essa legitimidade
advinha do objetivo de (a) fornecer conhecimento para a “reflete o problema de que o caráter, o estatuto, o conceito e
os limites da própria ciência são controvertidos e de que o
prática pedagógica em EF, (b) fornecer conhecimento útil
conflito entre concepções de ciência, com suas pretensões
para os órgãos públicos, para a indústria, etc. e (c) fornecer divergentes de verdade e relevância, não exclui (nem méto­
conhecimento para o crescimento e desenvolvimento do pró­ dos, nem teorias, nem o cânon das disciplinas, nem ainda os
prio sistema esportivo. Não se deve esquecer de que há critérios de suas avaliação)”.

aqueles que defendem a pesquisa em Ciências do Esporte a


E preciso não incorrer no equívoco de reduzir a multipli­
partir do simples objetivo de conhecer (desinteressadamen­
te) essa dimensão da realidade. cidade, “nem a uma unidade inconstante, imune à contro­
vérsia, dotada de critérios unívocos de cientificidade, nem a
A pergunta que fica é se essas legitimações são suficien­ uma mera diversidade, supostamente neutra”, pois, “o con­
tes e/ou ainda podem ser sustentadas e se elas podem ori­ ceito de pluralismo científico abrange uma diversidade anta­
ginar uma problemática teórica unificadora. gônica e não neutra” (Martins, 1993, p. 105). Para que não
se busque uma solução simplista e negativa como a de ex­
17 Como lembram Bourdieu et al. (1993), “não há que se esquecer que o real não tem
a iniciativa, posto que só pode responder o que se lhe pergunta. Bachelard susten­ cluir o antagônico, parece-nos só existir o lábil caminho da
tava, em outros termos que o ‘vetor epistemológico [...] vai do racional para o real e democracia interna; a humildade democrática de não pos­
não o inverso’.” (p. 55).

-----í 73 "v
suir a verdade acabada e absoluta e ao mesmo tempo reco­
nhecer e fazer valer os melhores argumentos. Unir a vigilân­
cia epistemológica à vigilância democrática.
Retomando o início de nossa intervenção relembro que
o CBCE, a comunidade reunida sob essa entidade, está cha­
mando para si a responsabilidade de orientar a prática cien­
tífica na área, o que, como procurei colocar brevemente,
nos coloca de frente a desafios de várias naturezas. Mas, AS CIÊNCIAS DO ESPORTE NO BRASIL:
gostaria de lembrar que o metadesafio continua a ser, a meu AVALIAÇÃO CRÍTICA1
"

ver, colocar mais essa prática a serviço da humanização do


homem.

“O saber não é um lugar, é antes uma porta


que abrimos, sem saber ao certo
ou previamente para onde vamos." (Fichtner, 1993)

Partindo de uma avaliação da produção do conheci­


mento nas Ciências do Esporte, buscamos mapear os princi­
pais problemas desta “área do conhecimento”, para então
problematizar em torno da legitimidade, do sentido das Ciên­
cias do Esporte, em torno das exigências e possibilidades (ou
não) da interdisciplinaridade, e, brevemente, situar e discutir
as Ciências do Esporte no âmbito do debate a respeito da
crise da razão científica.
Esperamos com esta abordagem ter êxito quanto ao
levantar de questões que nos auxiliem no processo de
autoconhecimento, fundamental para o desenvolvimento de
uma área do conhecimento.

1 Artigo originalmente publicado na coletânea organizada por Goeltner, S., Ferreira


Neto, A., Bracht, V. As ciências do esporte no Brasil. Campinas : Autores Associa­
dos, 1995.

...—
A opção por esta abordagem deveu-se ao nosso enten­ niência (que não podem ser submetidas ao critério de verda­
dimento de que se faz necessário realizar uma crítica radical de/falsidade, como lembra Japiassu, 1976), elas podem nos
das Ciências do Esporte enquanto empreendimento científi­ colocar algumas armadilhas e nos levar, no plano conceituai,
co, enquanto projeto que se coloca no plano de determinada a equívocos. Não raras vezes, é bom que se diga, o caos
racionalidade, para chegarmos (expormos) à base, aos fun­ terminológico evidencia já dificuldades de ordem teórico-
damentos, aos modelos (entendido num certo sentido como conceituais.
paradigmas) que determinam nosso pensar, nosso teorizar. Refiro-me à necessidade de definição do âmbito, do
objeto a ser focalizado: as chamadas “Ciências do Esporte”.
E possível distingui-las das “ciências da Educação Física”? ou
Como se caracterizam as práticas científicas das ciências ou “Ciência do Movimento Humano (ou da
no âmbito das Ciências do Esporte? Motricidade Humana)? ou, ainda, das “ciências da atividade
física”2?
“Nunca houve tantos cientistas-filósofos como atualmente [...].
Depois da euforia cientista do séc. XIX e da conseqüente aver­
Referindo-se a esse problema, Sobral (1992), observa,
são à reflexão filosófica, bem simbolizada pelo positivismo, por exemplo, que os
chegamos a finais do séc. X X possuídos pelo desejo quase
desesperado de complementarmos o conhecimento das coi­ “adeptos da Pedagogia do Desporto são ‘tão flexíveis’ ao ponto
sas com o conhecimento do conhecimento das coisas, isto é, de publicarem a mesma obra, num país, com o título de didá­
com o conhecimento de nós próprios”. (B. S. Santos, 1988) tica das atividades físicas, em outro, Pedagogia da Educação
Física, em outro ainda, Pedagogia do Desporto. E tudo isto
Não serei propriamente original na tentativa de res­ sem alterarem uma linha do texto original.” (p.58)
posta a esta questão. Vou valer-me aqui de alguns estudos
recentes que considero fundamentais para conhecer critica­ Ora, os estudos que buscam analisar a produção do
mente o que vem sendo as Ciências do Esporte no âmbito conhecimento nessa “área” se deparam com esse problema;
dos países de língua portuguesa, ou, mais especificamente, alguns simplesmente o ignoram (Matsudo 1983, Tubino,
no Brasil e em Portugal. Refiro-me à dissertação de mestrado 1984), outros a tomaram como “área” indiferenciada, inde­
de Rossana V. e Souza e Silva (1990), à tese de doutorado pendentemente de sua denominação, enquanto que alguns
de Adroaldo Gaya (1994), à dissertação de mestrado de estudos mais cuidadosos problematizaram exatamente essa
Fernanda Paiva (1994) e aos estudos de Francisco Sobral questão, embora sem chegar a uma sugestão mais consis­
(1992). Assim, neste ponto, procurarei apresentar as princi­ tente. Tanto Paiva (1994), quanto Gaya (1994) e Sobral
pais conclusões desses estudos e dialogar criticamente com (1992) identificam esse problema. Sobral (1992) e Gaya
eles, perspectiva de construir um ponto de partida para as (1994) advogam a necessidade de diferenciar claramente os
problematizações anunciadas. campos da Educação Física e das Ciências (ou Ciência, como
Claro, logo de início somos confrontados com uma ques­ propõe Gaya) do Esporte; enquanto que Paiva (1994) colo­
tão terminológica. Embora as definições de termos coloquem
uma questão de vocabulário e, por conseguinte, de conve- 2 Quase que exclusivamente artigos de fisiologia do exercício.

"76 “ S 77-N
cando das dificuldades concretas de diferenciação, opta por Um dos primeiros estudos foi o de Rossana V. Souza e
usar a expressão “Educação Física/Ciências do Esporte (EF/ Silva (1990), que analisou as dissertações de mestrado dos
CE)”, como, aliás, tornou-se hábito no interior do próprio cursos existentes no Brasil. Nesse estudo, Souza e Silva (1990)
Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, afirmando que buscou identificar as matrizes teóricas que orientavam essas
essa “ambigüidade” acompanha o processo de construção pesquisas, concluindo que a concepção de ciência ampla­
desse campo, no sentido de Bourdieu. mente predominante é a de cariz positivista (empírico-analí­
Parece-me claro que, hoje, não é possível diferenciar a tica), com tímido crescimento, nos últimos anos da década
identidade epistemológica de uma e de outra, nem sequer de 80, de pesquisas orientadas na fenomenologia herme­
uma identidade própria. Daí, também, alguns autores pro­ nêutica e no materialismo histórico dialético.
porem, como solução, uma “nova ciência”: a do movimento Essa conclusão não é negada pelos estudos subsequentes
humano ou a da motricidade humana3, ou, ainda, como foi (Gaya, Sobral e Paiva). De certa forma, ou de forma indire­
o caso da Alemanha, a Ciência (no singular) do Esporte. Isso ta, eles a reforçam. No entanto, outras foram acrescenta­
significaria concretizar uma identidade epistemológica nova das.
e própria.
A. Gaya (1994) chegou às seguintes conclusões bási­
Portanto, estaremos aqui fazendo uma análise da pro­ cas ao analisar um amplo conjunto de pesquisas (teses,
dução científica da “área” que envolve as “Ciências do Es­ dissertações, artigos em periódicos), tanto brasileiras quanto
porte” e a “Educação Física”, pela impossibilidade de dife- portuguesas:
renciá-las concretamente.
1. as investigações respondem predominantemente a ques­
A quais conclusões básicas chegaram os estudos que tões das disciplinas de origem;
avaliaram nossa produção científica (no âmbito da EF/CE)?
2. a própria delimitação das variáveis independentes de in­
É importante destacar que os primeiros estudos nesse vestigação, se bem que normalmente referenciadas ao des­
sentido preocuparam-se mais com a identificação de em porto, encontram-se distanciadas das práticas desportivas
quais subáreas mais se pesquisava, estudos esses, com ca­
concretas;
racterísticas mais descritivas, por exemplo, Matsudo (1983),
Canfield (1988), Tubino (1984) e Faria Jr (1987). Os estu­ 3. os conhecimentos produzidos são, em grande parte, parcia­
dos com preocupações mais acentuadamente epistemológicas lizados, fragmentados e desarticulados;
são mais recentes. Poderíamos dizer, como já identificado 4. predominam as concepções empiristas e objetivistas;
por Paiva (1994) para o caso do CBCE, que essa discussão
ganha espaço no final dos anos 80 e início dos 90. 5. há uma forte tendência para o aumento de investigações
com abordagem metodológica especulativa;
6. desenvolve-se pesquisas com interesses em temas de ou­
3 Neste caso, ao menos é a proposta de M. Sérgio, a Educação Fisica seria “o ramo
pedagógico da Ciência da Motricidade Humana”.
tras áreas específicas;

■o^78 — —
c) como conseqüência, a investigação em ciências do des­
7. os conteúdos não têm qualquer preocupação inicial com
porto apresenta uma configuração heterogênea, sem um
referenciais teóricos orientadores (definem-se variáveis,
paradigma nítido, realçando a acumulação de fatos em
coletam-se dados, aplicam-se técnicas estatísticas, apre-
prejuízo da construção da teoria.
sentam-se os resultados e publicam-se os trabalhos);
Paiva (1994), analisando a história do Colégio Brasilei­
8. os conteúdos não tem o adequado cuidado com o conjun­
ro de Ciências do Esporte e os trabalhos publicados no seu
to de regras lógicas, o que determina falta de coerência,
periódico, identificou três fases diferenciáveis quanto ao en­
consistência e originalidade em muitos dos trabalhos pu­
tendimento de ciência: 1978-1985, 1985-1989 e 1989-
blicados;
1993.
9. há uma evidente dificuldade de interações entre as di­
De 1978 a 1985:
versas disciplinas que co-habitam o seu espaço (multidis-
ciplinar); - a ciência e a prática científica são neutras e “possuem” a
verdade; fazer ciência é medir e comparar dados;
10. nas ciências do desporto configura-se uma produção in­
telectual com pressupostos epistemológicos e metodoló­ - as ciências do desporto são as diversas ciências instru­
gicos dicotômicos; como mostram nossas análises, de mentalizando a “melhor” forma de fazer atividade física e
modo geral as investigações apresentam um caráter empi- praticar esportes.
rista e objetivista, ou assumem delineamentos discursivos De 1985 a 1989:
e subjetivistas.
- A ciência e a prática científica são instâncias ideológicas
Analisando os problemas da investigação científica em e devem trabalhar para a “transformação social”. Fazer
ciências do desporto, Sobral (1992) levanta três teses: ciência é analisar um dado fenômeno de forma a possibili­
a) as ciências do desporto procuram compensar, através de tar uma interferência nele, visando a conservá-lo ou
um formalismo exacerbado, tomado de empréstimo a ou­ transformá-lo;
tros campos da iniciativa científica, as suas limitações pró­ - as ciências do desporto são a Educação Física transforma­
prias no domínio da Problematização (sofrem de um feu­ da em ciência, tenha ela o predicativo “do movimento”,
dalismo epistemológico das ciências suseranas; falta auto­ “da motricidade humana”, “do esporte” (no singular) ou
nomia científica às ciências do desporto); “da EF”.
b) as ciências do desporto têm-se imposto mais como uma De 1989 a 1993:
operação estratégica de alguns quadros acadêmicos oriun­
- a ciência deve discutir na sua dimensão epistemoiógica e a
dos da EF, em busca de influência num mercado apetecí­
sua dimensão ideológica; fazer ciência é analisar e teorizar
vel, como é o desporto de rendimento, do que pelo trata­
dado fenômeno buscando instrumentalizar uma possível e
mento sério dos problemas que emergem dos domínios do
necessária intervenção no real;
treino e da competição.
- as ciências do desporto são a assunção valorativa de que é autonomia científica; segundo, que muito raramente os
possível e necessário tratar do ponto de vista científico problemas investigados revestem-se de importância para
fenômenos referentes á prática pedagógica, á prática de o destinatário em potencial, o próprio esporte; e terceiro,
atividades esportivas, ao esporte, ao lazer, ao movimento, uma falta de interação entre as diferentes subdisciplinas
ao corpo, etc. (temos uma multidisciplinaridade e não interdisciplinaridade);
Fica claro no estudo de Paiva (1994) que a comunida­ d) metodologicamente as investigações oscilam entre um ob-
de científica do CBCE, mais recentemente, passa a diferen­ jetivismo empirista ingênuo (onde fazer ciência significa
ciar os fenômenos da Educação Física (entendida como uma medir/quantificar, comparar e acumular dados, sem exer­
disciplina curricular que tematiza a cultura corporal ou física) cício propriamente teórico)4, e um discurso hiperpolitizado,
e os do esporte (uma prática corporal específica que é que negando a neutralidade científica postulada pela ver­
tematizada na EF). são objetivista, descuidou-se da autovigilância epistemoló­
gica; no afã da crítica à rigidez metodológica, descui­
Num esforço de síntese, podemos resumir os resulta­
dos desses estudos em alguns pontos básicos: dou-se do rigor metodológico5;
e) não existem critérios claros elaborados que permitam di­
a) a investigação no âmbito das Ciências do Esporte se a-
ferenciar as pesquisas classificáveis como pertencentes às
presenta extremamente heterogênea, tanto no que diz res­
Ciências do Esporte daquelas pertencentes à Educação
peito à matriz teórica, quanto à orientação teórico-
Física; a partir da criação dos cursos de pós-graduação
metodológica disciplinar, não sendo possível identificar, cla­
vinculados aos centros universitários de Educação Física e
ramente, algum tipo de unidade (nem mesmo quanto ao
Esportes, têm crescido o número de professores de Edu­
fenômeno estudado, que nem sempre é o esporte); isto
cação Física que investigam o âmbito das Ciências do
significa, na linguagem kuhniana, ausência de situação
paradigmática, ou ausência de paradigma; Esporte.

b) predominam as investigações orientadas numa concepção E claro que uma tal síntese peca, necessariamente,
de ciência oriunda das ciências naturais, de cariz empírico- por insuficiência e por inevitáveis reducionismos. Mas, a partir
analítica, que privilegia técnicas quantitativas de pesquisa do quadro esboçado, já é possível levantar alguns
(dentro do credo objetivista); nos últimos anos observa-se questionamentos que podem ser frutíferos no sentido de au­
um incremento das investigações orientadas na fenome- xiliar no processo de nosso autoconhecimento.
nologia hermenêutica e no materialismo histórico-dialético
(que foram classificados por A. Gaya como orientação
especulativa/discursiva e subjetivista). 4 Em editorial do periódico alemão Sportwissenschaft (Ciência Desportiua, 20(1),
1990), pode-se ler a reclamação da dificuldade de se conseguirem bons artigos de
c) as investigações estão atreladas aos interesses e aos pro­ revisão ou síntese.

cedimentos teórico-metodológicos das disciplinas científi­ 5 O entendimento de ciência polarizou-se, como mostraram Gaya (1994), e Paiva
(1994) para o Brasil, entre uma visão “empirista ingênua” e uma visão “político-
cas de origem, o que determina, primeiro, uma falta de instrumentalista”, ambas com insuficiência crônica de debate epistemológico.
Pretendo, na seqüência, não propriamente responder
Muitos dos problemas levantados podem nos levar à
a esses questionamentos, mas balizar caminhos que nos per­
pergunta: como resolvê-los6? Para muitos desses problemas,
mitam uma reflexão frutífera a respeito.
portanto, buscaríamos soluções como “aperfeiçoar os méto­
dos de investigação” e “melhorar o nível de teorização”. Para
outros, no entanto, entendo ser necessário radicalizar o
0 esporte e as Ciências do Esporte:
questionamento, perguntando se é possível dar outro
direcionamento às investigações ou à produção do conheci­
empreendimentos da modernidade
mento na área, mantendo-nos no interior do paradigma de
ciência hoje hegemônico. Seguindo essa trilha (radicalização), Para discutir o sentido das Ciências do Esporte, enten­
chegamos rapidamente à questão da própria legitimidade do necessário buscar, brevemente, a gênese do fenômeno
das Ciências do Esporte7: por que e para que elas existem8? esportivo e a da própria ciência moderna, relacionando-as.
O que move ou moveu a ciência (as diferentes disciplinas Ainda que discutível, podemos entender o esporte (mo­
científicas) a objectualizar o esporte? Entendo também apro­ derno) como um fenômeno que é gestado sob a influência do
priado perguntar: até que ponto as Ciências do Esporte al­ que se convencionou chamar de “modernidade”. Nas socie­
cançaram o que se poderia chamar de “consciência de si”, dades tradicionais, as práticas corporais, assim como todas
no sentido de reconhecer com quais princípios (epistemoló- as atividades sociais, estiveram fortemente marcadas pela
gicos) opera? Quais são as bases (teoria da ciência) sobre as influência da religião. A religião constituía-se no primeiro
quais assenta sua prática científica, sua produção do conhe­ discurso, no centro, que totaliza o sentido das práticas soci­
cimento? ais e culturais e as dota de significação (por exemplo o jogo
de pelota entre os maias)9. O esporte moderno, no seu pro­
cesso de construção, sofre influência das transformações so-
6 Sobral (1992) lançou-se nessa tarefa, propondo quatro conjuntos de atitudes para
superar os problemas levantados e aqui já referidos: a) cultivar o pensamento diver­
cioculturais e absorve uma série de características da socie­
gente; b) problematizar a partir dos fenômenos e não dos quadros de interpreta­ dade industrial moderna. Guttmann (1979) sumarizou nos
ção; c) desenvolver a crítica e formular teorias; d) definir problemas mais amplos, seguintes termos as características do esporte moderno: secu-
utilizar metodologias mais abrangentes.
larização; igualdade de chances; especialização; racionaliza­
7 Tenho dúvidas se a comunidade científica das ciências do desporto mantém a
capacidade de perguntar sobre o sentido das ciências do desporto. Parece-me que ção; burocratização, quantificação; busca do recorde10. Como
o mito moderno da ciência como que eliminou das mentes tal necessidade. Ou, mostrou Rigauer (1981), há um paralelismo entre o processo
como lembra Santos (1988, p. 68), “a explicação científica dos fenômenos é
autojustificação da ciência enquanto fenômeno central da nossa contempora- de racionalização do treinamento esportivo e a racionaliza­
neidade". ção do sistema produtivo na sociedade capitalista industrial.
8 Em tempos marcados pelo utilitarismo, conservador ou revolucionário, parece-me
que é muito bom manter viva a tradição de que conhecer é um bem em si mesmo, 9 Veja-se a respeito. La función dei juego de pelota entre los antiguos mapas.
independentemente das utilidades imediatas ou mediatas que se derivem do conhe­ (Weis, 1979).
cer. Essa posição “academicista” entendo ser uma posição unilateralizada como
10 Veja-se a respeito também Eichberg, H. Der Weg des Sportos in die industrielle
também o é a utilitarista. Precisamos é buscar um “compromisso” entre estas duas
Zivilisation e Sport und Arbeit (Rigauer, 1981).
posturas.

84 L —
Para entendermos, portanto, a relação entre ciência e chamou de Zweckrationalitat, racionalidade com vistas-a-
esporte, é importante situar um pouco melhor o advento da fins), foi co-produtora do esporte moderno; ou então, que o
modernidade que viu e fez surgir o fenômeno esportivo. desenvolvimento do esporte moderno se dá no mesmo caldo
sociocultural em que se desenvolveu a ciência moderna.
Como sabemos, para Max Weber (cf. Rouanet, 1987)
a modernidade é o produto do processo de racionalização A ciência entra como coadjuvante/auxiliar para a
que ocorreu no Ocidente, desde o final do século XVIII, e concretização de uma das características centrais do esporte
que implicou a modernização da sociedade e a moderniza­ moderno: a maximização do rendimento. A esse objetivo
ção da cultura. Nesse contexto, adapta-se exemplarmente a racionalidade científica hegemô­
“a modernização cultural é o processo de racionalização das
nica (denominada pelos frankfurtianos de razão instrumen­
visões de mundo e especialmente da religião. Em conseqüên­ tal), porque está voltada exatamente para o aumento da
cia desse processo, vão se diferenciando esferas axiológicas eficiência dos meios, excluindo, por definição, a discussão
(Wertsphãren) autônomas, até então embutidas na religião: a
em torno dos fins dessa prática11.
ciência, a moral e a arte. A ciência moderna permite o au­
mento cumulativo do saber empírico e da capacidade de prog- Ora, o aumento da importância social do esporte, prin­
nose, que podem ser postos a serviço do desenvolvimento
das forças produtivas. A moral, inicialmente derivada da religião,
cipalmente da importância sociopolítica (e mais recentemente
se torna cada vez mais secular [...]. Enfim, surge a arte autô­ econômica), requisitou os serviços da ciência, para eliminar
nom a, destacando-se do seu contexto tradicionalista (arte re­ o acaso, o imprevisto, e, assim, “garantir” o sucesso. Basta
ligiosa) em direção a formas cada vez mais independentes,
com o o mecenato secular e finalmente a produção para o
ver o incremento das investigações em torno do esporte a
mercado”. (Rouanet, 1987, p. 231-2) partir da sua inserção nos movimentos da Guerra Fria e,
mais recentemente, com a transformação do esporte num
Numa outra perspectiva sociológica é possível identifi­ segmento importantíssimo da economia mundial.
car o processo de diferenciação social abrangendo o despor­
to; este vai-se constituir, aos poucos, em uma instituição Dentro dessa perspectiva e de forma consequente, o
diferenciada das outras esferas. interesse norteador da produção do conhecimento, usando
uma expressão de J. Habermas, é o interesse técnico e,
Isso tudo levou a formulações, entre outras, do tipo: o
num plano muito secundário, os interesses prático e emanci­
desporto é a racionalização ou institucionalização do jogo, ou
um crescente alijamento do lúdico, para falarmos com Huizinga
(1980).
11 Um episódio da copa do mundo de futebol realizada nos EUA, em 1994, é, em
Com isso quero argumentar que a racionalidade cientí­ meu entender, indicado para exemplificar a “racionalização” do desporto. Os co­
mentaristas da emissora de TV Bandeirantes, indignados com a forma de jogar da
fica, característica da modernidade, cujo paradigma hegemô­ equipe de Camarões, chamaram seus jogadores de irresponsáveis porque encara­
nico estava voltado para a identificação das leis inerentes às vam os jogos como brincadeiras; ao contrário, para os comentaristas, a Copa do
Mundo, o futebol, é coisa séria. Segundos eles, a equipe de Camarões praticava
coisas ou fenômenos, com o objetivo de aumentar nosso uma forma de jogar que era absurda, não voltada para a vitória e sim para o
poder/controle sobre esses (M. Weber apud Rouanet, 1987) espetáculo.
empírico-objetivista para poder discutir, ainda com reivindi­
patório12. Isso, de certa forma, confirma-se nos estudos an­
teriormente citados, que demonstram a predominância da cação racional para essa reflexão, o sentido da prática cien­
abordagem empírico-analítica, que J. Habermas associa, jus­ tífica no âmbito das Ciências do Esporte. Trata-se, também,
tamente, ao interesse técnico. de mostrar que, apesar do postulado inerente à concepção
empírico-objetivista de ciência predominante nas ciências
A razão instrumental impôs-se também nas Ciências
do desporto (de neutralidade política), essa prática esteve
do Esporte. Hegemonizou-se determinada visão de ciência
sempre inserida num contexto (do desenvolvimento sociocul­
que inscreve-se no âmbito do “agir-racional-com-respeito-a-
tural, aí incluído o esporte), que confere uma determinada
fins” (Zweckrationalitãt), o qual, estando os objetivos estabe­
finalidade ao conhecimento científico produzido, indepen­
lecidos em situações preconcebidas, acaba extraindo da
dentemente das vontades subjetivas de seus pesquisadores13.
racionalidade o que ela tem de característico, que é refletir
Trata-se de alertar, mais uma vez, para o condicionamento
levando em consideração os interesses globais da sociedade.
social de todo conhecimento científico.
Interessantes são algumas consequências que Habermas
(1988a) extrai para a comunidade científica. Segundo ele, Nesse sentido vale aqui lembrar a advertência de Mar­
ques (1993, p. 88):
“a comunidade comunicativa dos pesquisadores, que tom a
com o sua tarefa a justificação de um auto-entendim ento “As ciências empírico-analíticas não podem ignorar-se cons­
cientificista da ciência, pode se auto-tematizar apenas a partir tituídas por atos humanos, sustentadas por uma comunidade
dos conceitos de uma ciência objetiva. [...] Assim, a comuni­ científica e inseridas no processo cultural mais am plo da lin­
dade científica não pode se perceber enquanto sujeito; a sua guagem ordinária. Estão elas sujeitas ao processo de valida­
postura objetivista obriga-a a uma auto-objetivação” (p. 374). ção de suas premissas, à prova da argumentação, não da ex­
perimentação em si mesma, porque se voltam à interpreta­
Daí o porquê da minha observação de que a comu­ ção, n ão à simples p ro d u ção de novas experiências ad
nidade das Ciências do Desporto perdeu a capacidade de infinitum . Não pode, por isso, o interesse técnico do conhe­
refletir sobre o seu sentido numa perspectiva que não seja cim ento desvincular-se dos interesses prático e em a nci­
p a tó rio .”
funcional-pragmática.
Não se trata aqui de fazer uma sociologia do esporte, Gostaria de apenas citar, como indicadores da necessi­
mas é necessário mostrar, na esteira da sociologia da ciên­ dade da superação da unilateralidade da ciência empírico-
cia, como o processo de produção do conhecimento está analítica, as repercussões das pesquisas nas Ciências do Es-
atrelado aos processos de desenvolvimento da sociedade como
um todo e da conseqüente necessidade de superar a visão
12 Habermas (1988a) argumenta que toda produção do conhecimento tem a norteá-
la um interesse cognitivo. Ele classifica esses interesses em técnico, prático e 13 Lovisolo (1995), defende a legitimidade da pesquisa pelo fato de que “conhecer é
emancipatório. O interesse cognitivo determina como o fenôm eno será bom porque é bom conhecer”, o que não reduz nem amplia as conseqüências
objectualizado. “As ciências estritamente empíricas estão sob as condições sociais do conhecimento produzido, independentemente das satisfações pessoais
transcendentais da ação instrumental, enquanto que as ciências hermenêuticas do pesquisador.
procedem ao nível das ações comunicativas” (Habermas, 1988a, p. 236).
porte na questão do doping14 e nas consultorias (por exem­ Dimensões da interdisciplinaridade
plo, Matsudo, 1991, discutindo a pílula anticoncepcional nas Ciências do Esporte
enquanto doping).

Temos como perspectiva dominante a posição de legi­ Falta unidade, o campo é excessivamente heterogê­
timar as Ciências do Esporte pela importância que têm para neo, dizem os estudos. Uma das possibilidades da superação
desse problema é o caminho da interdisciplinaridade? Mas o
o sistema esportivo (deixando inquestionável sua função so­
que é interdisciplinaridade?
cial, que é positiva). Nesse sentido, vale observar o que diz a
respeito K. H. Bette (apud Rütten, 1990), que opera com a Existem vários argumentos a favor da interdisciplinari­
teoria dos sistemas de N. Luhmann. O autor, analisando a dade. Um deles diz respeito ao fato de termos construído
relação de dois sistemas complexos (esporte e ciência), pro­ uma cultura de especialistas, o que tem-se mostrado, embo­
cura demonstrar como o sistema esportivo cria dificuldades ra não necessariamente, antagónico a visões mais amplas,
para as abordagens científicas que não trabalham com os que são necessárias (tanto quanto o conhecimento discipli­
nar especializado) para a solução dos problemas e para evi­
códigos dessa instituição, por exemplo, a maximização do
tar outros15.
rendimento na perspectiva do crescimento infinito, e, ao
contrário, propõe uma relativização do conceito de rendi­ Para Japiassu (1976, p. 40-1), a exigência da interdisci­
mento a partir de razões pedagógicas, sociais ou de saúde. plinaridade,
O sistema esportivo tende a funcionalizar para si, a partir de “longe de constituir progresso real, talvez seja mais o sintoma
seus códigos, a ciência. Isso tem conseqüências importantís­ da situação patológica em que se encontra hoje o saber [...], o
especialista converteu-se neste hom em que, à força de co­
simas para as discussões em torno das razões/necessidades
nhecer cada vez mais sobre um objeto cada vez menos exten­
de uma Ciência do Esporte de caráter aplicado. so, acaba por saber tudo sobre o nada. Nesse po nto do
esmigalhamento do saber, a exigência interdisciplinar não passa
Para finalizar este ponto: o que estou a reivindicar é da manifestação, no domínio do conhecimento, de um esta­
uma reflexão sobre a legitimidade das Ciências do Esporte, do de carência”.

que ultrapasse uma legitimação funcional pela obviedade do E claro que podemos observar reivindicações por coo­
desporto busque ancorar-se num projeto emancipatório. peração (inter)disciplinar fundamentadas em interesses ain­
da disciplinares. Por exemplo, um biomecânico que busca
auxílio do estatístico, do matemático, do engenheiro eletrô­
nico e do fisiologista para a solução de um problema, ainda
biomecânico; o que na verdade não é interdisciplinaridade,
mas sim, “intradisciplinariedade”.
14 A Sociedade Alemã de Ciência Desportiva, no Congresso de 1992 (Oldenburg),
tomou posição a respeito da pesquisa em torno de substâncias dopantes, dizendo 15 O problema da ecologia é sempre citado como exemplo da ação unilateral, sem o
que a comunidade científica precisa assumir a responsabilidade política que a ela entendimento das repercussões sistêmicas sobre o meio ambiente das ações par­
cabe nesses casos. ciais, o que somente poderia ser alcançado com uma abordagem interdisciplinar.

90 t — *-...-
Para além dessa visão simplista e equivocada de Existem muitos obstáculos para a superação dessa frag­
interdisciplinaridade, esta tem o objetivo de superar a frag­ mentação (outros nem a entendem necessária). Japiassu
mentação naquilo que ela dificulta colocar a ciência a serviço (1976) identifica três ordens de obstáculos: a) os de ordem
da vida humana em geral. Nesse caso, estamos também epistemológica (já brevemente discutidos aqui); b) os de or­
falando na mediação entre ciência e filosofia, ou da media­ dem institucional; c) os de ordem psicosociológica.
ção entre ciência e arte, ou, em outros termos, entre os
Também a partir do modelo de J. Habermas (dos dife­
diferentes saberes ou racionalidades.
rentes interesses que norteiam a produção do conhecimento)
Se observarmos o quadro das Ciências do Esporte, é possível prever/identificar dificuldades.
verificaremos que o movimento dominante ainda é o da frag­
mentação, que é crescente, com o aparecimento de sempre Outra dificuldade é a idéia equivocada que se instalou
novas especialidades e subespecialidades, inclusive com a em nosso imaginário, de que temos um objeto científico
criação de entidades específicas (Sociedade Brasileira de comum: o esporte (o que justificaria a existência de organi­
Biomecânica, Medicina Esportiva, etc.), e isso porque não zações que congreguem pesquisadores com um objetivo co­
existe nada que sirva de elo de ligação entre as Ciências do mum). Embora, sob a perspectiva da prática, exista real­
Esporte absortas em seus problemas específicos. Não existe mente um objeto comum, o mesmo não acontece com a
uma identidade epistemológica das Ciências do Esporte. produção do conhecimento. O esporte, enquanto objeto
Como demonstram os estudos de Gaya (1994), não é possí­ empírico, não é, necessariamente, um objeto científico
vel identificar, na atual produção do conhecimento na área, unívoco. Um objeto científico é algo construído; construído
elementos que indiquem no sentido de uma unidade. pela abordagem específica de cada disciplina. “Cada méto­
Mas, no caso das Ciências do Esporte, a reivindicação do é uma linguagem e a realidade responde na língua em
por interdisciplinaridade está baseada nas necessidades da que é perguntada” (Santos, 1988, p. 66).
prática, que exige um conhecimento sintético (interdisciplinar).
Um outro equívoco é o de ver as dificuldades da
No entanto, pela subordinação, já referida por Sobral (1992)
interdisciplinaridade como um problema de simples falta de
e Gaya (1994) às problemáticas das disciplinas de origem, a
comunicação entre os pesquisadores (por isso deveríamos
produção do conhecimento é fragmentada disciplinarmente
continuar a realizar congressos pluridisciplinares e apelar para
e não tematicamente como reivindica Santos (1988).
a “vontade” dos cientistas de estabelecerem relações). Vale
As Ciências do Esporte vivem num estágio pluridisci- lembrar, nesse sentido, o que dizem Bourdieu et al. (1993):
plinar16. Convenhamos, em nossos congressos cada um dá
seu recado em meio à indiferença simpática dos demais, o “Ver, como normalmente se faz, o princípio de todas as difi­
que leva à pergunta: faz algum sentido ainda organizarmos culdades de comunicação entre as disciplinas na diversidade
das linguagens, é abster-se de descobrir que os interlocutores
congressos multidisciplinares? se encerram em sua linguagem porque os sistemas de expres­
16 Essa é também a avaliação de Roberto Prohl (1991), que analisou exaustivamente são são ao mesmo tem po os esquemas de percepção e de
a situação da Ciência do Esporte (Sportwissenschaft) na Alemanha, que havia se pensamento que fazem existir os objetos sobre os quais vale a
colocado como projeto explícito a construção, por via da interdisciplinaridade, de pena falar.
uma nova ciência (no singular).
São realmente objetos e não um objeto, no caso das - A Educação Física (ou pedagogia, onde o esporte é um
Ciências do Esporte. dos temas) oferece uma problemática teórica que pode
ser tratada também cientificamente; essa problemática
Gostaria de observar, sem poder desenvolver, já que
exige exercício/tratamento interdisciplinar, tanto entre di­
não é esse o tema aqui, que a questão da interdisciplinaridade
ferentes disciplinas científicas, quanto entre as diferentes
é particularmente importante para a Educação Física (en­ racionalidades.
tendida essa enquanto prática pedagógica).
A interdisciplinaridade não pode ser tomada como pa-
nacéia. A necessidade da interdisciplinaridade não é algo A condição pós-moderna, a crise da razão científica
abstrato; está ligada ao interesse na realização de determi­ e as Ciências do Esporte
nado projeto, para o qual é (ou não) necessária. Portanto, a
unidade interdisciplinar só pode ser uma unidade ética. As­ “Nas questões fundamentais, o conhecimento
sim, voltamos à questão discutida anteriormente, ou seja, o científico desemboca em insondáveis incertezas”
sentido das Ciências do Esporte, como também, a questão (Morin, 1993)
da mediação entre os diferentes saberes ou racionalidades.
Os estudos sobre a interdisciplinaridade esbarram, por um Alguns desenvolvimentos recentes no plano da ciência
lado, nas dificuldades da construção de uma epistemologia e da epistemologia deveriam fazer eco nas Ciências do Es­
interdisciplinar (não alcançada até hoje) e, por outro lado, porte e isso porque afetam as bases, os princípios do pensa­
nas fronteiras da própria epistemologia. mento científico, que supõe-se serem seguidos pelas Ciên­
cias do Esporte, isto é, sejam os fundamentos de nossas
Um mini-resumo pontual:
práticas científicas.
- as Ciências do Esporte não possuem objeto científico em Além do debate, não concluído no plano da epistemo­
comum; operam a partir dos mais diferentes interesses; logia (e nem sequer iniciado ou percebido nas Ciências do
não possuem identidade epistemológica própria; reúnem- Esporte), sobre a questão do possível dualismo metodológico/
se em organizações em função de interesses corporativos epistemológico entre ciências naturais e ciências sociais/hu­
(as ciências, independentemente das organizações de manas, o que hoje está em questão é o próprio paradigma
ciências ou Ciência do Esporte, continuam a estudar o da ciência moderna ou da racionalidade científica. Segundo
esporte); Marques (1993), “de inquiridora a razão converter-se-á em
inquirida”.
— uma Ciência do Esporte, de cunho aplicado, está forte­
mente atrelada aos interesses da instituição esportiva; com O desenvolvimento da ciência17, incluídos aí tanto os
isso, é subordinada aos seus códigos e interesses; assim, desenvolvimentos da micro e da macrofísica, da química e
perderia seu pontencial crítico, tornando-se pragmático- da biologia, quanto os da hermenêutica e os da filosofia da
funcional; legitima-se pela importância do fenômeno es­ 17 “O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em
portivo; que se funda” (SANTOS, 1988, p. 54).

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linguagem e das por elas suscitadas e a elas ligadas discus­ lução eletrônica a base das modificações socioeconômicas e
sões epistemológicas, chegamos ao que se poderia chamar culturais que geraram a condição pós-moderna), evoco aqui
de limites/fronteiras da epistemologia (que sempre procurou a versão marxista, defendida por Frederic Jameson e Marilena
Chauí, de que o pós-modernismo (e sua versão no plano da
um ponto de vista privilegiado como garantia de certeza) e
cultura e do saber) é fruto da nova fase do capitalismo, cuja
que coloca os epistemólogos em dois lados:
característica central é a acumulação flexível do capital.
a) os fundacionalistas ou criterialistas; Malgrado a precariedade desses debates e o caráter de
b) os antifundacionalistas (ou relativistas) ou não-criterialistas. transição do momento que vivemos, parece-me importante
perguntar como as Ciências do Esporte estão a reagir ou
Alguns autores associam a segunda postura à condição
reagirão a essas questões. É interessante notar que, se por
ou ao pensamento pós-moderno que, no que diz respeito à
um lado, as Ciências do Esporte buscam satisfazer as exi­
questão do saber científico, coloca-se como uma postura
gências de rigor científico do paradigma dominante, por ou­
relativista. Ou seja, critica/relativiza a posição absolutista da tro, são abalroadas nesse processo, pela crise desse mesmo
razão (científica). Advoga a pluralidade irredutível da razão; paradigma.
pleiteia o livre jogo das diferentes racionalidades (num livre
Ciências do desporto! Pois bem, a qual cientificidade
jogo de linguagens), sem postular/almejar unidade, muito
se ligam ou querem se ligar essas ciências? Abrir-se-ão as
menos hierarquia.
ciências do desporto à possibilidade de ampliação do concei­
Isso não significa que a ciência, repentinamente, per­ to de razão, abarcando a racionalidade estético-expressiva e
deu sua capacidade de prognose, de fornecer elementos que a prático-moral, para falar com Habermas?
permitam interferir na realidade. Significa muito mais, que Finalizando: ou as ciências do desporto dão respostas a
ela deve abdicar de sua condição/aspiração de conhecimen­ essas questães, ou melhor, as enfrentam e assumem a res­
to privilegiado da realidade e da aspiração de fornecer a ponsabilidade das respostas, ou estaremos num barco ao
chave de todos os “mistérios” do mundo18. Nas questões qual nos compete imprimir velocidade, mas não determinar-
fundamentais, como afirma Morin (1993, p. 22), “o conhe­ lhe a direção. A direção.... Bem, esta será determinada pelo
cimento científico desemboca em insondáveis incertezas”. jogo das forças do mercado (A própria racionalidade neoli-
beral!), ou pelas forças do poder constituído e nós, das Ciên­
Essa crise, que, na opinião de B. Santos (1988, p. 54),
cias do Esporte, embora constituída de seres humanos com
não apenas é profunda, mas irreversível (ou indica um reco­
capacidade para optar por determinados fins, nos restringi­
meço, como querem M. O. Marques e F. S. Rouanet), é o
remos a mantê-lo em movimento (ao menos enquanto for­
resultado de condições sociais e teóricas. As condições teóri­
mos nutridos com capital financeiro e simbólico).
cas já foram rapidamente aludidas aqui. Quanto às condi­
ções sociais, entre tantos (como os que identificam na revo­ E preciso, portanto, fortalecer esse tipo de debate/
reflexão no âmbito das organizações científicas da área, para
18 “Ampliando-se os espaços do conhecimento, ampliam-se também as fronteiras do que possam assumir a condição de sujeito coletivo que assu­
desconhecido, na direção do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, me posturas políticas e age de acordo com elas.
para além do alcance dos homens" (Marques, 1993, 57).

' 96
Para concluir quero enfatizar a importância do
reconhecimento do “envolvimento” (no duplo sentido) do cien­
tista (do esporte), valendo-me das palavras da filósofa M.
Chauí (1994, p. 481), comentando a obra de M. Ponty:

O artista, como o filósofo, [e eu diria um cientista], nunca


está no centro de si mesmo, estão sempre fora de si, rodea­
dos pela miséria empírica do mundo e pelo mundo que devem
realizar e revelar pela obra [...]. Por isso interrogam o mundo,
a si mesmos, seu próprio trabalho, não podendo parar de A TESE DA CIÊNCIA
pintar, compor, dançar, escrever. Sua obra é interminável por­
que nunca abandonamos nossa vida e o mundo, nunca vemos DA MOTRICIDADE HUMANA,
a idéia, o sentido e a liberdade cara a cara".
DE MANUEL SÉRGIO1

Kefren Calegari dos Santos2

Está caracterizado, por meio de diversas publicações a


respeito, que as décadas de 70/80 apresentam-se como um
período de “crise” para a Educação Física. Sérgio (1988,
p. 12) citado por Bracht, por exemplo, afirma que “o discur­
so da Educação Física é, desde a década de 60,
declaradamente de crise”. Mas é Medina (1983) que, no
início da década de 80, denuncia publicamente a “crise” da
Educação Física no cenário brasileiro, momento este de um
intenso e proveitoso debate na área. Entretanto o(s) motivo(s)
desta denominada crise não está(ão) totalmente claro(s). Bracht
(1992) relata que diferentes causas são aludidas, “uma de­
las, por exemplo, parte do argumento de que não existe
uma profissão de professor de Educação Física” enquanto
1 Este texto é um resumo da monografia apresentada ao CEFD/UFES como requisito
parcial ã conclusão do curso de graduação em Educação Física (97/1), sob orienta­
ção de Valter Bracht.

2 Especialista em Fisiologia do Exercício pelo CBM/UFES; professor de Educação


Física no Centro Educacional Gênesis/Cooperativa Educacional (C E G /
COOPEDUC) e de natação na Associação Esportiva Siderúrgica Tubarão (AEST).
então, analisar a evolução do pensamento de Manuel Sérgio
outros “entendem que a crise é de cunho epistemologia”
em torno da tese da Ciência da Motricidade Humana, desta­
(p. 36). Para esse autor a crise de identidade da Educação
cando o referencial teórico utilizado pelo autor e buscando
Física está relacionada com a sua possível falta de legitimi­
identificar a necessidade e as possibilidades de uma tal ciên­
dade e lembra que esta não pode ser confundida com legali­
cia. Com isso, esperamos estar contribuindo no sentido de
dade.
oferecer alguns elementos para o debate epistemológico acer­
Para alguns a legitimação desejada somente seria ca da (crise de) identidade da Educação Física. Este estudo
alcançada quando a Educação Física fosse reconhecida como caracteriza-se como uma pesquisa de cunho teórico através
ciência. Para tanto, propostas de “cientifização” dessa área da reflexão hermenêutica de textos do autor acerca de sua
surgem, apresentando-se como Ciências do Esporte, Ciên­ tese. Para construção deste trabalho foram seguidos alguns
cia da Motricidade Humana (ambas de raiz européia) e passos, a saber:
Ciência do Movimento Humano (esta de origem americana), I - levantamento da produção de Manuel Sérgio que diz res­
entre as mais conhecidas atualmente. Devemos lembrar, peito à tese da Ciência da Motricidade Humana (CMH);
entretanto, que para a aceitação de alguma, ou mesmo al­ II - levantamento da produção acadêmica que se baseia na
gumas dessas teses/teorias pela comunidade “científica” da tese da CMH, de Manuel Sérgio;
área, questões devem ser respondidas, principalmente num
III - levantamento das referências na bibliografia da área à
momento em que a própria racionalidade científica encon­ tese da CMH3;
tra-se em crise, como defendem alguns filósofos da ciência.
IV - análise da evolução do pensamento de Manuel Sérgio
Dessa forma a crise da Educação Física não é apenas de
em torno da tese da CMH, destacando o referencial
cunho epistemológico como uns afirmam, mas diante das
teórico utilizado pelo autor;
propostas apresentadas a busca de sua legitimação não pode
prescindir do debate epistemológico. V - identificação dos autores que servem como pilares da
tese da CMH; leitura e análise desses autores, com vis­
Em nosso estudo abordamos a tese da Ciência da tas a avaliar a adequação do seu uso por Manuel Sérgio.
Motricidade Humana (CMH), do filósofo português Manuel
Sérgio Vieira e Cunha, que afirma estarmos de frente a uma
nova ciência. A escolha da Ciência da Motricidade Humana Sobre Manuel Sérgio e a tese da Ciência da
justifica-se pela considerável penetração que essa tese al­ Motricidade Humana
cançou na comunidade acadêmica da Educação Física (diga­
mos que de forma um pouco passiva), ao mesmo tempo em
Manuel Sérgio é um filósofo português que há muito
que identificamos algumas questões preliminares não res­
tem contribuído para a reflexão a respeito da Educação Físi­
pondidas e/ou não bem compreendidas em sua tese, por
ca. Podemos dizer que a sua contribuição através de ensaios
meio das quais pudemos visualizar a abertura para um possí­
vel debate com o autor, a fim de buscarmos soluções coeren­ 3 Na monografia, disponível na biblioteca do CEFD/UFES, encontram-se em anexo
tes para o problema (da crise) ora levantado. Objetivamos, os levantamentos I, II e III.

— ^J101
iniciou-se no ano de 1974 quando publicou o livro Para uma Daí em diante, Manuel Sérgio assumiu com determi­
Nova Dimensão do Desporto. Antes, porém, já havia publi­ nação o seu maior projeto - a tese da CMH - e com isso deu
cado obras literárias, como crônicas e poesias, e posterior­ prosseguimento à sua elaboração teórica, concentrando-se
mente escreveu também narrativas de cunho jornalístico. quase que exclusivamente nesse intento. Isso fica bem evi­
Entre a sua extensa obra (considerando seus livros e artigos dente na vasta publicação a respeito - em média um livro ou
temos mais de trinta publicações), interessa-nos a bibliogra­ artigo por ano. Entre elas, podemos destacar: Filosofia das
fia referente à tese da CMH. Nesse sentido, a publicação Atividades Corporais (1981); Uma Nova Ciência do Ho­
que inaugura o seu pensamento acerca daquela tese, apa­ mem -a Quinantropologia (1983); A Investigação Epistemo­
renta ser Prolegómenos a uma Ciência do Homem, publi­ iógica na Ciência da Motricidade Humana (1985); Motri­
cado pela primeira vez na revista Ludens, em 1979, e pos­ cidade humana: uma nova ciência do Homem (1986); Edu­
teriormente num livro intitulado Filosofia das Atividades cação Física ou Ciência da Motricidade Humana? (1991);
Corporais, em 1981. Como o próprio título sugere a inten­ Para uma Epistemologia da Motricidade Humana (1994);
ção do autor é apresentar de forma ainda sincrética a nova Motricidade Humana: um Paradigma Emergente (1995).
ciência que futuramente denominaria de CMH. Naquele Entretanto, é no decorrer das leituras que percebemos varia­
momento Manuel Sérgio oscilava na dúvida sobre a sua me­ ções no trato com a sua tese, apresentando-a de formas
lhor denominação: Ciência do Movimento Humano ou diferentes, bem como fundamentando-a a partir de referen­
Quinantropologia? Entretanto, é interessante ressaltar que, ciais diversos.
em 1974, Manuel Sérgio já perguntara pela existência de Com o objetivo de levantar essas diferenças, discutimo-
uma Ciência do Movimento Humano (Quinantropologia?). as em torno das seguintes categorias: motricidade humana;
Trata-se de uma rápida passagem, num pequeno capítulo homem; Ciência da Motricidade Humana; e corte epistemo­
intitulado “Educação pelo Desporto”, do livro Para uma Nova lógico.
Dimensão do Desporto, de sua própria autoria. Nesse livro, Cabe ressaltar que essas são apenas categorias cen­
dizia Sérgio (1975), que, se confirmada a existência da Ciên­ trais, escolhidas por aparecerem constantemente em sua obra
cia do Movimento Humano (Quinantropologia?), faria parte e porque, no decorrer do estudo, evidenciaram variações ao
dela a “iniciação desportiva”, tendo, aí, o pedagogo lugar longo do pensamento do autor - ocorrendo inclusive mudan­
privilegiado e função imprescindível. Sua grande preocupa­ ças nas suas denominações. Contudo, devido à limitação de
espaço, dada pelo caráter deste livro, não foi possível apre­
ção centrava-se na “humanização” do desporto, possibilita­
sentar essa evolução de forma resumida sem esvaziar seu
da, segundo ele, somente pela adequada orientação peda­
conteúdo e/ou prescindir das relações possíveis e reflexões
gógica - diga-se científica4.
necessárias. Desse modo, ao final deste capítulo encontra-se
um quadro resumo da evolução do pensamento de Manuel
4 Nesse texto Sérgio (1975) considera a pedagogia uma ciência e por isso reclama Sérgio em torno da CMH, que pretende apenas situar o
sua inserção na educação desportiva. Afirma ele que “no campo da ‘iniciação
desportiva’ [...] a atualização científica mais se torna necessária, já que a pedagogia
leitor, ilustrando suas tendências ao longo da sua obra. Para
é uma ciência e não é possível orientar uma criança (seja no que for) à base da maiores esclarecimentos, remetemos à leitura do capítulo II
intuição, esquecendo as exigências hodiernas da pedagogia” (p. 82).
da monografia em questão.
uma criança (seja no que for) à base da intuição, esquecen­
Levantando questões do as exigências hodiernas da pedagogia” (p. 82). Em que
se baseia a necessidade de afirmar a E. F. como ciência?
Partindo do que foi evidenciado na obra de Manuel Ela realmente possibilita um acesso superior ao conheci­
Sérgio acerca da tese da CMH, recuperamos, abaixo, algu­ mento do homem, como quer Manuel Sérgio? No plano
mas dúvidas/contradições levantadas por nós e, em seguida pedagógico, quais são suas limitações?
estabelecemos um debate com autores que nos serviram de
auxílio nesta discussão. Acreditamos que nesses momentos
estaremos também contribuindo para aclarar um pouco aque­ Discutindo questões
las variações que citamos anteriormente.
- Qual é a concepção de ideologia defendida por Sérgio em Ciência e ideologia
sua relação com a ciência?
- Quais implicações surgem ao considerar-se a motricidade Podemos dizer que, com base no pensamento
humana como objeto de estudo e a ciência que dela se althusseriano, categorias como corte epistemológico e pro­
ocupa pertencente às ciências do homem, como defende blemática dão início à fundamentação teórica do surgimento
Manuel Sérgio? da nova ciência proclamada por Manuel Sérgio. No texto,
“Louis Althusser ou uma Certa Maneira de Ler o Desporto”,
- Está claro qual é a especificidade dessa nova ciência?
Sérgio (1984) faz uma leitura do desporto à luz do pensa­
- O que significa a educação motora ser considerada um mento epistemológico de Althusser. Para ele “o Desporto
ramo pedagógico da CMH? Como se daria a relação da­ integra uma nova ciência do Homem (a Cinantropologia)” e
quela com esta? “o Desporto é ciência e filosofia” (p. 140). Sintetizando,
- O que significam algumas mudanças conceituais, de fun­ Sérgio (1984) apresenta as idéias de Althusser a respeito da
damentação teórica e/ou de termos, identificadas na tese relação entre ciência, filosofia e política:
da CMH? “Em meia dúzia de palavras podemos afirmar que a prática
- Qual é a possibilidade de conjugarem se dois autores, con­ filosófica se recorta no labor da produção de teses respeitantes
à rotura entre ciência e ideologia. Fazer filosofia equivale a
siderados pela discussão epistemológica atual como repre­ um a expressão intensa de vitalidade intelectual ao traçar
sentantes legítimos de tendências opostas, para fundamentar linhas de demarcação entre o científico e o ideológico [grifo
a existência da CMH? Tais autores são Popper e Kuhn. nosso], entre o idealismo e o materialismo [neste segundo
caso, a filosofia intervém na prática social, fornecendo teses
- Nesse texto Sérgio (1975) considera a pedagogia uma a uma das classes em luta], (p.137)
ciência e por isso reclama sua inserção na educação despor­
Diante disso ocorrem-nos duas questões referentes à
tiva. Afirma ele que “no campo da ‘iniciação desportiva’
[...] a atualização científica mais se torna necessária, já dicotomia estabelecida entre ciência e ideologia e o papel
atribuído à filosofia:
que a pedagogia é uma ciência e não é possível orientar
a) Entendendo a realidade como um campo de luta de clas­ Evangelista (1990) nos lembra que, para Althusser,
ses (Althusser é de filiação marxista), se está realmente “a principal palavra de ordem era reduzir oposições, como
garantindo uma prática científica isenta de ideologia ao por exemplo as propostas por Kuhn entre os paradigmas a
proclamar-se que a filosofia deve optar por uma das clas­ uma única e absoluta oposição, à oposição entre A ciência e
A ideologia”, (p. 222)
ses em luta e fornecer-lhe teses? Para “desideologizar” a
ciência, basta vinculá-la a uma das classes? A verdade, E prossegue ele:
nomeadamente científica, pertence a esta ou àquela clas­
“quem decretava a cientificidade da ciência era um a filo­
se social?
sofia científica, o Marxismo enquanto filosofia científica”
Entender a ciência como campo permeado por relações (p. 222).
de poder, onde os cientistas ficam submetidos a instâncias
Entretanto, Evangelista (1990) ressalta que Althusser,
burocráticas que nada ou pouco têm relação com a ativi­
diante da
dade propriamente racional, é facilmente compreensível;
mas propor sua “desideologização” e seu “preenchimen­ “demonstração de Dominique Lecourt será forçado [...] a fa­
to” com a ideologia de uma das classes em luta é desconsi­ zer uma auto-crítica”. (p. 222).

derar o avanço do conhecimento científico alcançado até


Nas palavras de Althusser (1966) citado por Evangelista
os nossos dias.
(1990):
b) Na leitura apresentada por Manuel Sérgio, a filosofia apa­
“necessário [...] reconhecer a ilusão e a impostura de seu pro­
rece como orientadora dos rumos que a ciência deve se­ jeto [ou seja de uma epistemologia]. É preciso (...) ele renun­
guir. Antes vejamos de que forma isso se daria. A partir ciar e criticar o idealismo ou os m ofos idealistas de toda
da distinção althusseriana entre leitura literal e leitura epistemologia”, (p. 222)
sintomal, Sérgio (1984) relaciona-as com o aparecimento
Parece que, assim como Althusser, Manuel Sérgio tam­
das categorias de problemática e corte epistemológico. A
bém reviu algumas de suas colocações anteriores sobre cate­
leitura literal aparece como descrição aparente, enquanto
a leitura sintomal é responsável pelos questionamentos, gorias utilizadas, bem como a relação entre ciência e ideolo­
através de uma contextualização histórico-política. Apres­ gia. Em “Carta Aberta à Presidente do CBCE”, à época, a
sadamente podemos dizer que neste segundo tipo de lei­ professora Celi Taffarel, Sérgio (1989), depois de quase dois
tura é possível buscar uma problemática, ou seja, explicitar anos de permanência no Brasil, despede-se do CBCE. Nes­
questões que a ciência coloca ao seu objeto, possibilitando sa carta, além dos gentis agradecimentos a todos que o re­
um corte epistemológico, que consagra “a linha de sepa­ ceberam neste país, Manuel Sérgio reflete rapidamente a
ração entre a ciência e a ideologia” (p. 136). Nesse senti­ respeito de alguns pontos que a Educação Física brasileira
do, a filosofia cumpre o papel de vigilância epistemoiógica precisa observar, defendendo, obviamente, a tese da CMH.
operando com teses/teorias que garante aquela ruptura. Num desses pontos, Sérgio (1989) afirma que “a Educação
Podemos adentrar agora na segunda questão; pergunta­ Física brasileira precisa de criar uma teoria, que nasça do
mos, então, pelo ponto de vista onde reside a superiorida­ diálogo com a sua prática específica” (p. 74). Contudo, lem­
de da filosofia. bra que não defende atualmente, “um corte epistemológico
(grifo do autor) ao jeito althusseriano” (p. 74). Ainda, segun­ como sua filiação epistemológica às ciências do homem5.
do ele, “a ideologia não é o simples reverso das Ciências” Sérgio (1981, p. 126), afirma, por exemplo, que “a Ciência
(p. 74). Entretanto, aí reside uma dúvida: Manuel Sérgio do Movimento Humano tem portanto o seu lugar assegurado
não explicita em nenhum momento (nesse e nos seus outros entre as Ciências do homem, como uma região da realidade
escritos) os motivos que o levaram a pensar diferentemente, bem específica: o movimento humano” (p. 126). Diante dis­
bem ao contrário do que fez anteriormente, quando preferiu so perguntamos se de fato podemos afirmar o objeto de
a categoria de problemática (da linha Bachelard-Althusser) à estudo de uma ciência a partir da delimitação de uma “re­
de paradigma (formulada por Kuhn). gião da realidade”, como defende Manuel Sérgio.
Pensamos não ser possível demarcar claramente o que Bracht (1993), partindo de uma breve contextualização
é ideológico daquilo que é científico. Não existe uma linha histórica acerca da incorporação das “práticas científicas”
clara que pode consagrar essa separação, nem tampouco no interior da EF/CE, bem como da reivindicação desta por
uma disciplina pode ser responsável por isso. Essa tentativa um “status científico”, indaga que ciência é essa (EF/CE),
poderia ser (talvez seja realmente) inócua. Uma alternativa apresentando-nos nesse sentido algumas questões que na
que achamos viável é aquela trilhada pela “epistemologia sua opinião devem necessariamente acompanhar essa rei­
crítica”, que, segundo Japiassu (1991), surge da interroga­ vindicação. Entre elas, uma pode-nos ser útil na discussão do
ção sobre a significação real da ciência, de uma reflexão objeto de estudo da CMH: o objeto de estudo desta(s)
histórica feita pelos cientistas sobre os resultados, o lugar, o
ciência(s)6 é o esporte, a atividade física ou o movimento
alcance, os limites e as significações socioculturais da ativi­
humano? Especificamente nesta última, a tentativa de se
dade científica, interrogando-se portanto sobre a responsa­
fazer do movimento humano o objeto de estudo de uma
bilidade social dos cientistas. Japiassu constata que a
ciência7 é criticada por Bracht (1993). Ele entende que o
racionalidade científica transformou-se em ideologia, quan­
objeto de estudo não é um simples recorte da realidade
do pretendeu impor-se como a única forma de racionalidade
empírica, caracterizando essa visão como uma concepção
possível, criando, assim, a ideologia do cientificismo, em
empirista ingênua de ciência. No entanto, sabendo-se que o
que o homem alienado deposita toda a sua confiança na
objeto de estudo não está dado na realidade, a construção
ciência, como se ela fosse uma nova religião. E a fé cega na
ciência e nos seus resultados: o domínio da natureza, a ri­ desse objeto de estudo8 se dá pela maneira como essa reali­
queza material, a organização eficaz da vida social, etc. dade é abordada (p. 114). Dessa forma o movimento huma­
no, como bem-lembram Ferreira e Bracht (1995), pode ser
5 Muitas vezes a CMH é confundida mesmo com a própria ciência do homem.

Objeto de estudo, especificidade e filiação epistemológica 6 Bracht indaga se a melhor denominação não é ciências da Educação Física ou do
esporte (no plural)
7 Aí incluímos a CMH.
É bastante evidente, desde o início dos escritos de
8 Para Bracht (1993) a EF “é antes de tudo uma prática pedagógica, e portanto uma
Manuel Sérgio, a consideração da/do Motricidade Humana/ prática de intervenção imediata” (p. 114). Neste caso a construção de seu objeto de
Movimento Humano como objeto de estudo da CMH, bem estudo deve partir da intenção pedagógica.
moderna, “começa deixar de fazer sentido a distinção entre
abordado de diversas maneiras ou pontos de vista, cada qual ciências naturais e ciências sociais” (1998, p. 48). Ainda
a partir d& condição epistemológica de cada disciplina que segundo este, o paradigma emergente que se anuncia no
dele se ocupa (p. 57). Essa fragmentação do conhecimento horizonte fundamenta-se na superação daquela dicotomia
observada em torno do movimento humano apresenta-se entre Ciências Naturais e Ciências Sociais, cuja “distinção
então como um obstáculo a qualquer ciência que intente assenta numa concepção mecanicista de matéria e da natu­
construir seu objeto de estudo tendo o movimento humano reza a que contrapõe, com pressuposta evidência, os concei­
como objeto de estudo9. tos de ser humano, cultura e sociedade” (p. 60). Sabendo-se
Nesse sentido ainda, sabemos que as diferentes disci­ da insistente tentativa de Manuel Sérgio de entender o ho­
plinas que se ocupam do estudo do movimento humano se mem através da sua tese, que se daria pela superação das
orientam por matrizes epistemológicas específicas1^ ou seja, dicotomias inauguradas com a modernidade, torna-se difícil
pautam-se por princípios epistemológicos das ciências da aceitar que ele ao longo de toda a sua obra, defenda a CMH
natureza ou das ciências sociais e humanas11. Enquanto, por enquanto ciência do homem, principalmente quando busca
exemplo, a fisiologia e a biomecânica (CN) estão interessa­ sustentação em Souza Santos. Ademais, essa sua considera­
ção vem carregada de todo tipo de problema epistemológico
das em explicar os aspectos fisiológicos ou biomecânicos do
detectado acima. Ele não deveria, na verdade, caminhar
movimento humano, a sociologia e a filosofia (CSH) ínteres-
para essa superação? Ou será que está-se apoiando na tese
sam-se pela compreensão do movimento humano nos seus
da curvatura da vara12?
aspectos sociológicos ou filosóficos. Constatado isso, uma
interrogação surge: como defender a inserção da suposta Parece que Manuel Sérgio é capturado também por
CMH no interior das ciências do homem (CSH), inclusive uma armadilha que afeta a própria ciência: a fragmentação
do conhecimento. Veiga Neto (1996) ressalta que o conheci­
com o mesmo status das demais, se a ela não pode prescin­
mento disciplinar (fragmentado) é fruto da própria moder­
dir dos conhecimentos acerca do movimento humano oriun­
nidade, ou seja, “a disciplinariedade é a maneira pela qual
dos das ciências da natureza? Ao mesmo tempo, contradito­
não só o conhecimento se organizou como, ainda e princi­
riamente, Manuel Sérgio afirma que os princípios da expli­
palmente, organizou o próprio mundo contemporâneo” (p.
cação e da compreensão cabem inteiramente na CMH
132). Além dessa perspectiva foucaultiana de entender a
como foi evidenciado no capítulo II da monografia em ques­
constituição das ciências13, ele lembra que a causa dessa
tão. As contradições se ampliam aprofundando a incoerên­
12 Observação feita, em tom de brincadeira, pelo professor Francisco Caparroz, em
cia da sua tese, quando ele, Manuel Sérgio, começa a conversa particular. Grosso modo, essa tese afirma que para alcançarmos um ponto
referenciar o filósofo português Boaventura Souza Santos. de chegada a partir de um extremo devemos buscar o outro extremo, como na
tentativa de endireitar uma vara torta. Analogamente, será que defendendo a CMH
Esse autor defende que, na transição para uma ciência pós- enquanto ciência do homem, Manuel Sérgio busca um ponto de superação a partir
da negação da ciências da natureza? Pensamos ser essa uma hipótese improvável.
9 A respeito da fragmentação do conhecimento, bem como dos limites e das possibi­
lidades da interdisciplinaridade, consultar Veiga Neto (1996). 13 Segundo Japiassu (1991) a constituição das ciências, numa perspectiva foucaultiana,
está alicerçada no importante conceito de epistéme, ou seja, como a infra-estrutura
>o Essa é uma discussão bastante complexa e polêmica que neste momento deixare-
cultural do saber propriamente dito , caracterizado como representação, como
mos suspensa. registro epistemológico específico de todo um período do pensamento e da cultura.
11Esta última Manuel Sérgio prefere nominar de ciências do homem.
^JTÍT*N
mos, no entanto, até especular se ele não está mais interes­
suposta doença do conhecimento científico14 pode ser bus­
sado em reconstruir as próprias ciências do homem, que por
cada mais na “separação entre a res cogitans e a res exten­
muito tempo estiveram pautadas por princípios positivistas
sas [grifos do autor], ou seja, no nosso afastamento, enquan­
que ele tanto condena. Com isso afastou-se de uma aborda­
to pensantes, do resto do mundo” (p. 136). Lembra ainda as
gem nova que vem anunciando, a qual pode conferir especifi­
contribuições recentes da filosofia que apontam no sentido
cidade e, portanto, uma identidade epistemoiógica15 à uma
de ser impossível “o estabelecimento de um campo
área (EF) que, como ele tão bem observa/denuncia, sempre
epistemológico único” (p. 132). Kuhn ressalta que foi usada a serviço das mais variadas formas de poder. Res­
“os paradigmas, nos quais se circunscrevem áreas do conhe­ ta, para Manuel Sérgio, explicitar a especificidade da CMH,
cimento (e seus praticantes), são partilhados por comunida­ que traduz uma maneira própria de abordar o movimento
des de linguagem. Isso significa que cada paradigma tem não
só seu próprio discurso e sua própria maneira de colocar suas
humano. Entendemos que o primeiro passo é apresentar um
questões e de determinar o que é e o que não é relevante e conjunto de questões que configura uma problemática pró­
problemático. Tal especificidade paradigmática faz com que pria a essa “ciência”.
aquilo que é visto como um problema e/ou objeto de pesquisa
num a com unidade possa até nem ser visto ou notado por
outra comunidade.” (p. 132).
Considerações finais
Com as considerações acima, tentamos evidenciar que
a constituição de uma ciência que tenha o movimento hu­ Para a aceitação da tese da Ciência da Motricidade
mano como objeto de estudo encontra obstáculos erguidos Humana tornam-se necessários esclarecimentos e/ou res­
pela própria maneira como o conhecimento se organizou, o postas a questões respeitantes, por exemplo, à sua
que leva a diferentes possibilidades de abordar o movimento especificidade, à sua filiação epistemoiógica, à sua relação
humano, cada qual a partir da sua especificidade (para­ com outras “ciências” e com a prática pedagógica de Edu­
digma?). Dessa forma a proposição de uma CMH que tenta cação Física e às suas necessidades e possibilidades. Essas
abarcar todo o conhecimento (científico) em torno do movi­ questões foram levantadas durante o decorrer do trabalho e
mento esbarra nos mesmos obstáculos observados anterior­ acreditamos que são questões geradoras de dúvidas e
mente, pois, como bem-lembra Veiga Neto (1996), “o co­ impasses que comprometem o/a surgimento/afirmação da
nhecimento disciplinar [no caso do movimento humano, frag­ CMH. Entretanto, uma autocrítica também nos cabe: não
mentado por disciplinas como a fisiologia, a biomecânica, a foi possível discorrer sobre todas as questões levantadas, bem
sociologia e a filosofia] não pode ser extinto por atos de como aprofundar as exposições desenvolvidas. Dessa forma,
vontade e por decretos epistemológicos” (p. 132). na revisitação de alguns pontos e na exploração dos outros,
É notável a boa vontade e o otimismo impregnados no estamos abertos e esperamos, críticas e sugestões para a
concretização deste trabalho.
espírito de Manuel Sérgio, todavia, um projeto dessa enver­
gadura é fruto nada menos do que de muita audácia. Pode- Bracht (1996) lembra-nos que identidade epistemoiógica “significa a forma pró-
pria com que cada disciplina científica interroga e explica a realidade, o que é
14 Para Veiga Neto a fragmentação do conhecimento não pode ser considerada uma determinado pelo tipo de problema que levanta, pelos métodos de investigação e
doença. J á Japiassu a vê assim, inclusive publicou um livro intitulado linguagem que desenvolveu e utiliza” (p. 6).
Interdisciplinariedade e Patologia do Saber.

J 1Í3
QUADRO DA EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO DE MANUEL SÉRGIO EM TORNO DA CMH
A EPISTEMOLOGIA
DA EDUCAÇÃO FÍSICA: UM DIÁLOGO
COM MAURO BETTI1

Avoluma-se e cresce em qualidade a discussão em tor­


no da caracterização científica da área da Educação Física
(Ciências do Esporte; Ciência do Movimento Humano; Ciên­
cia da Motricidade Humana)2. A preocupação com tal carac­
terização tem-se concentrado em três aspectos distintos e
complementares: a) a identificação da distribuição da produ­
ção do conhecimento nas diferentes “subáreas” (biológica,
sociológica, psicológica, pedagógica, etc.); b) a identificação
das concepções de ciência (positivismo, neopositivismo,
fenomenologia-hermenêutica, materialismo histórico dialético)
que têm orientado as pesquisas na área; e c) a tentativa de
delimitar e caracterizar epistemologicamente a área ou o
campo, ou seja, caracterizar a identidade da área no que diz
respeito à sua relação com a ciência.
Em estudos anteriores (Bracht, 1992, 1993, 1995,
1996 e 1997) enfocamos esses três aspectos. Uma tese
recorrente nesses nossos estudos, entre outras, é a da não
1 Trabalho apresentado no GTT de Epistemologia do X CONBRACE (Goiânia/GO,
1997).
2 A denominação da área se dá de forma diferenciada. No entanto, qualquer que seja
a denominação, sempre está-se referindo a uma tradição que teve como denomina­
ção comum o termo Educação Física (e anteriormente a esta, ginástica). Ou seja,
todas se colocam como herdeiras do campo da Educação Física.
existência de um elemento norteador da produção do conhe­ mento caracterizador indispensável dessa proposta de pro­
cimento na área que permite vislumbrar a construção de blemática é a intenção pedagógica, ou seja, o olhar que
uma unidade (seja disciplinar, seja interdisciplinar), ou seja, a orientará a reflexão (na busca de explicações e compreen-
produção do conhecimento é disciplinar e caminha na dire­ sões), sobre o movimentar-se humano e suas objetivações
ção de sua crescente fragmentação e especialização. Colo­ culturais (cultura corporal de movimento), é o pedagógico.
cam-se aí pelo menos duas questões: a) quais são as razões
Betti (1996)4, em recente trabalho, analisa criticamen­
dessa tendência à fragmentação? b) Qual pode ser o ele­
te essa tese e os elementos que a sustentam e levanta uma
mento orientador a conferir uma unidade que permita falar
série de perguntas e questionamentos. Na seqüência nos
de uma área do conhecimento?
ocuparemos, então, em acompanhar o raciocínio do autor
Mais recentemente (Bracht, 1996, 1997), recuperan­
buscando refletir sobre os questionamentos levantados, na
do o processo histórico de construção do campo acadêmico
perspectiva de melhor fundamentar nossas posições.
(ou da área) da Educação Física (EF), viemos construindo a
tese de que existe a possibilidade de construir um campo
acadêmico a partir de um elemento integrador do esforço
teórico na área da “EF”. Para tanto temos de superar o Debatendo com M. Betti
entendimento empirista-ingênuo de que o esporte, a ativi­
dade física, o movimento ou a motricidade humana podem Betti (1996) intitulou seu trabalho de forma sugestiva:
ser entendidos como um objeto científico (de uma ou de Por uma Teoria da Prática. O título já indica uma opção e
mais ciências). Assim, um pressuposto inicial é o de que tal uma direção: a sua preocupação com a prática, em ofere­
elemento integrador, ou o nosso objeto, é uma problemática cer uma teoria da prática; é ao longo do texto que ele carac­
teórica compartilhada. teriza, então, seu entendimento do que é prática no âmbito
Analisando a história da EF, entendo ser possível da EF.
caracterizá-la como uma prática pedagógica (com sua
O autor se propôs no texto a estabelecer um debate
especificidade) e que, como tal, requereu e requer um corpo
com autores que, nos últimos anos, no seu julgamento, “con­
de conhecimentos que a sustente. Esse corpo de conheci­
mentos (que muitos, entre eles, Betti [1996], entendem deve tribuíram significativamente para a constituição de uma teo­
ser adjetivado de científico), se o entendermos vinculado a ria da EF de matizes brasileiras”. Os autores tomados para
essa prática, precisa ser construído a partir da problemática tal interlocução foram: Tani (1988, 1989), Lovisolo (1994),
que identifico como o movimentar-se humano e suas Kolyniak Filho (1994, 1995a, 1995b) e Bracht (1993). Tra­
objetivações culturais na perspectiva de sua participação/ ta-se em nosso entender de um dos mais brilhantes esforços
contribuição para a educação do homem3. Portanto, ele- já empreendidos para analisar sistematicamente o pensa­
mento epistemológico da EF brasileira.
3 Desde logo, para prevenir possíveis mal-entendidos, esclareço que essa é uma
caracterização meramente descritiva. Educação do homem, objetivações culturais 4 Estamos nos valendo aqui do texto na versão a nós enviada pessoalmente pelo autor,
e outros conceitos nela presentes precisam receber tratamento teórico para adqui­ pelo que agradecemos de público. O texto foi publicado, não sabemos se com
rirem concretude. modificações, na revista Motus Corporis (v. 3, n. 2, dez. 1996).
Uma tônica presente ao longo do texto é o combate Betti faz menção ao nosso entendimento de que, para
aos diversos dualismos/dicotomias (EF versus Esporte; es­ a busca do objeto da EF, devemos ter claro que ela é antes
de tudo uma prática pedagógica e que reconhecer a EF
porte versus jogo; EF como área do conhecimento uersus EF
primeiro como prática pedagógica é fundamental para reco­
como prática pedagógica, etc.) que o autor entende existi­
nhecer o tipo de conhecimento, de saber necessário para
rem na nossa área. Aliás, para o autor é possível identificar
orientá-la, e para o reconhecimento do tipo de relação pos­
uma “nova macro dicotomia” na divisão dos discursos atuais
sível/desejável entre a EF e o “saber científico”, ou as disci­
sobre a teoria da EF: uma, que vê a EF como área do conhe­
plinas científicas. Refere-se, também, ao nosso entendimen­
cimento científico; outra, que a vê como prática pedagógi­
to de que o movimento humano enquanto fenômeno não é
ca. Situa os diferentes autores nessas duas “matrizes”,
já um objeto científico e que sua objectualização pelas dife­
alocando-nos na segunda, ou seja, na matriz pedagógica5.
rentes disciplinas redunda, na verdade, em diferentes obje­
Inicialmente Betti observa que os defensores da matriz tos. Apresenta nossa idéia de que a EF tem de assumir o
pedagógica, caráter de uma ciência da e para a prática. Betti diz entusias­
mar-se, até esse ponto, com nossas conclusões. Mas, enten­
“desesperados com o d e sapare cim e nto da EF, buscam
resguardá-la no interior da Escola, restringindo o seu alcance
de que, ao aprofundarmos nosso entendimento sobre tal ciên­
conceituai, quando deveriam buscar ampliá-lo. Perdem igual­ cia, incorremos em uma nova dicotomia. Refere-se Betti a
mente a EF quando a encontram. Antagonizam com o espor­ nossa observação de que “precisaríamos aclarar se a EF ope­
te, hostilizam as academias, criticam as bases epistemológicas
raria a partir dos princípios epistemológicos das ciências na­
das ciências da natureza e associam a si próprios com as ciên­
cias humanas [e instalam aí uma nova dicotomia...]”6. turais ou das ciências sociais e humanas”. Coloca ainda que,
em nosso entendimento, a “ciência clássica” introduz, inevi­
É claro que o autor está trabalhando, necessariamente, tavelmente, reducionismos no estudo do movimento huma­
com generalizações. Cada um dos “atingidos” pode sentir-se no, e que sugerimos então que o teorizar em EF precisa
não-contemplado ou “injustiçado”. Particularmente, para o ultrapassar o próprio teorizar científico, contemplando o
nosso caso, entendemos que a caracterização acima não é biopsicossocial, o ético e o estético, numa perspectiva de
adequada, como procuraremos argumentar na seqüência. globalidade, portanto uma nova construção do nosso objeto.
Antes, porém, é importante colocar melhor a recepção, por Afirma Betti, ainda, que nós não acreditamos na interdisci­
parte de Betti, do nosso pensamento. plinaridade, já que entendemos predominar a tendência à
fragmentação e não existir uma problemática teórica que
possa integrar as disciplinas que se ocupam cientificamente
5 Observe-se aqui que não será possível, neste momento, debater também com o
do movimento humano.
conjunto de autores revisados/criticados por Betti (1996). Limitar-nos-emos a um
diálogo com as interpretações de Betti de nossas posições, embora tangencie postu­
Nesse ponto Betti (1996) diz ter, em relação às nossas
ras de outros autores.
posições, muitas objeções: 1) se a ciência “clássica” ou “tradi­
6 Uma observação rápida: os termos dualismo e dicotomia são utilizados
alternadamente, sem que nos dois casos aconteça o seu tratamento conceituai. cional” a que nos referimos são as ciências naturais ou o po­
Como observarei adiante esses termos estão longe de serem auto-explicativos ou sitivismo e se a alternativa são as ciências humanas/sociais;
não-problemáticos.
nos imputa, nesse caso, uma assimilação entre positivismo e ciências sociais e humanas. O positivismo é apenas um exem­
empirismo e certa confusão entre positivismo e quantificação; plo. Assim sendo, é claro que a alternativa para fundamen­
2) argumenta que, se o ético e o estético são remetidos para tar a EF não é simplesmente as ciências sociais e humanas.
a filosofia, isso não é pouco, pois Apel e Habermas são É, no entanto, no interior dessas que temos um movimento
filósofos; faltou, no seu entender, estabelecer relações mais contestador dos princípios da ciência tradicional ou hegemô­
explícitas entre a filosofia e as demandas da pesquisa em nica, que traz à luz as limitações (conseqüências) dessa para
EF; 3) por que temos de escolher primeiro a prática pedagó­ a explicação/compreensão das ações humanas. Se existem
gica e depois o conhecimento científico diferentes entendimentos do que é a racionalidade científi­
ca, se temos no seu interior um debate em torno do monismo
“Se Bracht reconhece que a ‘chave’ está na relação entre as
ou dualismo metodológico, quando falamos em dar funda­
duas instâncias, o que interessa então é a inter-relação. Ter
que optar por um primeiro, é como ter qu e 'o p tar entre o
mentos científicos para a EF, o que se exige, no mínimo, é
indivíduo e a sociedade, o sujeito e o objeto, a teoria e a que nos posicionemos a esse respeito7. Não é possível falar
prática, m inim izando a possibilidade da m ediação”. (Betti, de ciência como se esta fosse um mar de unanimidades. E
1996).
preciso tomar posição e com fundamento racional, diga-se
Por fim, o autor concorda ser preciso haver um princí­ de passagem, porque o que campeia são posições assumi­
pio integrador, que nós entendemos ser a prática pedagógi­ das com base em vinculações meramente emocionais, políti-
ca; nesse sentido Betti entende ser necessário que esta últi­ co-partidárias, ou então que se situam no plano da doxa ou
ma abarque todas as manifestações da motricidade social­ do senso comum.
mente institucionalizadas. A questão dois, vinculada a essa, diz respeito ao pres­
Algumas das questões que Betti nos coloca são passí­ suposto básico daquela ciência tradicional da qual faláva­
veis de respostas razoavelmente imediatas e simples; outras,, mos. Trata-se da distinção entre o saber fático e o ético-
no entanto, e estas são as realmente substanciais, são extre­ normativo. A ciência sempre se propôs a se pronunciar so­
mamente complexas e dificilmente respondíveis, devido às bre o que é a realidade e não sobre o que ela deveria ser.
nossas limitações pessoais e à própria indefinição e polêmi­ Ou seja, a racionalidade científica não está em condições de
ca existente no plano do pensamento científico-filosófico mais se pronunciar acerca do que deveríamos ou não ser; ela está
avançado. Ma;, vamos às questões! em condições de auxiliar as decisões éticas com conheci-

As duas primeiras questões situam-se no plano geral 7 É interessante a crítica de incorrer no dualismo (ciências naturais versus ciências
sociais e humanas) que Betti nos endereça, porque ele mesmo trabalha com a
da teoria do conhecimento e/ou teoria da ciência. distinção entre essas ciências para criticar Kolyniak Filho: “Para mim [M. Betti], a
limitação do positivismo não é tanto a fragmentação em áreas e subáreas cada vez
Quando nos referimos à ciência “clássica” ou “tradicio­
mais especializadas (que atingiu tanto as Ciências da Natureza quanto as Ciências
nal”, estamos nos referindo não às ciências naturais enquan­ Humanas), mas na indistinção entre as metodologias das Ciências Naturais e Ciên­
to tais, mas às ciências que fazem seus os princípios daque­ cias Humanas. Exige-se para estas últimas os mesmos critérios de cientificidade
consagrados nas primeiras, não considerando a possibilidade de que a objetividade
las. É importante frisar que é esse o modelo ou a concepção das Ciências Humanas seja de outra ordem e esteja em construção, em adequação
de ciência que torna-se hegemônico, inclusive no interior das crescente aos seus objetos (Ladrière, 1982)” (Betti, 1996).
Não se trata de considerar supérfluo o conhecimento
mento seguro do que somos ou do que a realidade é, ou produzido a partir do interesse técnico (pelas ciências
melhor, de como a realidade funciona (quais as leis que a
empírico-analíticas), nem absolutizar o conhecimento produ­
regem). De sentenças sobre o que a realidade é não é possí­ zido a partir do interesse prático pelas ciências histórico-
vel deduzir lógica e necessariamente (ou cientificamente, se
hermenêuticas. Trata-se, isto sim, de reconhecer seus limi­
quiserem) o que ela deve ser. Como a EF, enquanto prática
tes e possibilidades e reinterpretá-los, submetê-los a outro
pedagógica, necessariamente envolve a dimensão do ético- critério, a uma racionalidade comunicativa. “Entrelaçam-se
normativo, para que a ciência (ou a racionalidade científica)
na unidade da razão comunicativa o interesse prático das
possa lhe fornecer a fundamentação necessária, é preciso,
ciências histórico-hermenêuticas e o interesse emancipatório
ou complementar o conhecimento científico com a filosofia das ciências crítico-reflexivas” (Marques, 1993, p. 89).
(que me parece a opção de Betti porque fala por diversas
vezes (p. 33) em conhecimentos “científicos e filosóficos” e Buscando superar o dualismo entre a racionalidade téc­
em “ciências/filosofia”8, ou, trabalhar com um novo concei­ nica e a racionalidade normativa, a teoria da ação comuni­
to de racionalidade (que talvez não precise ser adjetivada de cativa busca uma racionalidade prática de ação comum à
científica se nos livrarmos do fetiche da ciência moderna), procura dos melhores objetivos através do diálogo.
que consiga estabelecer a ponte entre o fático e normativo Betti (1996) fez uma tentativa de pensar uma possível
sem abdicar da pretensão à racionalidade para suas assertivas. teoria da prática para a EF, a partir da teoria da prática (da
Esse é o projeto conhecido de J. Habermas, o da razão ação) de P. Bourdieu. E uma tentativa interessante, mas
comunicativa. Mas, base para tal empreendimento é a su­ que, se não incorro em erro, exclui ou não contempla exata­
peração do paradigma científico centrado na relação sujeito- mente o dualismo acima discutido (conhecimento fático uersus
objeto, a favor do paradigma da linguagem (a partir da vira­ conhecimento normativo), aspecto fundamental para uma
da linguística operada pela filosofia analítica e pela 'teoria da prática, entendida como ação ética, normativa,
hermenêutica), que se constitui em base do conceito de ra­ caracteristicamente humana. Assim, parece-me interessan­
zão comunicativa. Nessa, a linguagem não é mais mera for­ te, também, pensar uma teoria da EF a partir da proposta
ma de representação e sim uma forma de ação. de Habermas (num certo sentido E. Kunz e colaboradores na
“Desloca-se o foco da investigação da racionalidade cognitivo-
UFSC estão engajados nesse projeto). A nós parece, e esse
insirumental para a racionalidade comunicativa. Não mais se é um julgamento preliminar e parcial, que a teoria da ação
embasa o conhecimento na relação sujeito-objeto, mas na comunicativa é mais produtiva para o caso de uma prática
relação intersubjetiva que assumem atores sociais capazes de
pedagógica. Se pensarmos junto com Habermas (tomarmos
fala-ação ao se entenderem entre si sobre algo no m undo”.
(Marques, 1993, p. 86).
a sua posição), diríamos, provavelmente, que Bourdieu, com
sua tentativa de superar o impasse objetivismo uersus
8 Devolvo aqui a crítica de incorrer numa dicotomia. Betti, quase ao final de seu texto, subjetivismo, presente na sociologia, em favor de uma teoria
afirma: “o princípio integrador possível neste processo advém de um processo de da prática, permanece no paradigma da filosofia da consciên­
valoração; portanto, só a filosofia pode propiciar esta integração". Porque só a
filosofia? A filosofia não estaria contemplada no plano da racionalidade científica? cia e recai, ora no objetivismo, ora no subjetivismo (por isso
Que tipo de verdade seria produzida por uma e por outra?
ele é criticado por alguns autores como estruturalista e recla­ cidade Humana (CMH) (Sérgio, 1994). Tani (1996), como
ma-se dele algo propositivo). Mas esse debate não pode ser bem-observa Betti (1996), tem a virtude de se preocupar
levado a termo aqui. com a Educação Física, entendendo-a como ciência aplica­
da, enquanto Sérgio (1994) considera a EF (Educação Motora)
A terceira questão foi colocada por Betti da seguinte
como ramo pedagógico da CMH. Já apresentamos nossos
forma: por que temos de primeiro escolher a prática peda­
argumentos que, no nosso entendimento, demonstram a im­
gógica e depois o conhecimento científico? Recoloquemos a
possibilidade de tal ciência (no singular). De certa forma,
questão: postulamos que a EF deve ser entendida primeiro
após duas décadas de experiência, uma boa parte dos estu­
como prática pedagógica, ou seja, definidor de sua identida­
diosos alemães da área também concluiu que a ciência
de, como prática social, é a sua característica de ser uma
desportiva continua e continuará sendo Ciências do Esporte
prática de intervenção imediata, no caso, uma prática peda­
(no plural)9. No entanto, é claro que as Ciências do Movi­
gógica. Portanto, nossa questão não é colocá-la aqui ou ali:
mento Humano ou as Ciências da Motricidade Humana po­
ou ciência, ou prática pedagógica. Esses não são termos
dem se organizar “debaixo de um mesmo teto”, propiciando
antagônicos, embora diferentes. Alguns autores, como Tani,
um ambiente no qual cada um faz suas pesquisas em meio à
em alguns momentos, e M. Sérgio, a quem as minhas afir­
indiferença simpática dos demais. Parece-me inclusive ha­
mações estavam endereçadas, parecem só ver uma possibi­
ver demanda, nos mais diversos setores sociais, para tal co­
lidade da EF alcançar legitimidade: afirmando-se como ciên­
nhecimento (disciplinar, pluridisciplinar). Se então elas de­
cia. Por que para nós a questão não se apresenta como
vem ocupar nas universidades um espaço específico, organi­
alternativa? Porque toda prática social, principalmente aquela
zarem-se num instituto, centro, etc., é uma decisão política.
com características de prática pedagógica, exige um supor­
A decisão pode ser inclusive, a de transformar os hoje cen­
te teórico que não pode prescindir do saber científico para
tros/departamentos/escolas de Educação Física e Desportos
fundamentar as decisões com as quais está constantemente
em centros/departamentos/institutos de Cinesiologia. No
confrontada. Constituir um campo acadêmico é, portanto,
entanto, qualquer que seja a decisão, esses não irão substi­
necessário complemento/acompanhamento dessa prática.
tuir a prática social EF. Isto é, não devemos confundir a
Quais são as características e os contornos desse campo,
reorganização dos saberes nas instâncias de sua produção e
com quais outros interage e como, com qual concepção de
de formação profissional com determinada prática social.
racionalidade (científica) vai ou deve operar? Bem, essa é a
Particularmente, e esta é uma posição política, entendemos
questão! Mas, tentar afirmar a identidade da EF somente ou
e colocamos nossos esforços na perspectiva da EF entendida
primeiramente como ciência é, em nosso entendimento, uma
como prática pedagógica.
inversão, mesmo porque a EF (sua tradição), nessa perspec­
tiva, se perde.
Talvez este seja o momento de fazer algumas conside­
rações acerca da proposta de uma Ciência do Movimento
Humano ou Cinesiologia (Tani, 1996) ou Ciência da Motri- 9 Ver a respeito Prohl (1991).
Considerações finais

Betti (1996) propõe corrigir nossa posição ampliando


o conceito por nós utilizado de “prática pedagógica” para
“prática social das atividades corporais de movimento, con­
cebida como campo de dinamismo social, onde se dá a con­
frontação e a disputa de modelos de prática e no qual atuam
diversas forças sociais (inclusive a comunidade acadêmico-pro- EPISTEMOLOGIA
fissional da EF). Um a prática social assim concebida é quase
sinônim o do conceito de ‘cultura corporal de m ovim ento’.” E POLÍTICA NA EDUCAÇÃO
(Betti, 1996, p .31).

O problema que vejo aqui é que, assim definida, a EF


não é quase sinônimo de cultura corporal de movimento; ela
é sinônimo propriamente dito dessa expressão! Uma teoria
“El discurso metafísico de Occidente está llegando a su fin y
(geral) da EF é então uma teoria geral da cultura corporal de la filosofia, en su atardecer, nos há hecho, através de los
movimento. Assim formulada, fica muito difícil identificar grandes nombres dei siglo, un ultimo servido: deconstruir su
p ro p rio terreno y crear las co nd icion es de su p ro p ia
uma problemática teórica que delimite os esforços teóricos
imposibilidad. Pensemos, por ejemplo, en los indecidibles de
específicos deste campo. Entendemos que nossa formulação Derrida. Una vez que la indecidibilidad há alcanzado al propio
permite identificar tal problemática quando centra/organiza fundamento, una vez que la organización de un cierto campo
es gobernada por una decisión hegemónica - hegem ónica
tal teorizar na perspectiva do pedagógico. Assim, repetindo,
porque ella no es determinada objetivamente, porque decisiones
a teoria da EF tem como problemática a participação/con­ diferentes son también posibles - el reino de la filosofia llega
tribuição do movimentar-se humano e suas objetivações cul­ a su fin y comienza el reino de la política.” (Laclau, 1996)
turais na/para a educação do homem. A teoria daí decor­
Os desenvolvimentos científicos das últimas décadas
rente poder orientar/fundamentar os sujeitos da ação na­
nos levaram a uma maior consciência dos limites da racio­
quelas instâncias sociais em que a intenção pedagógica con­
nalidade científica. Acirrou-se o debate em torno dos funda­
fere o sentido (fosse o leitmotiu) dessas ações. Toda vez que
mentos da ciência, sobre as possibilidades/impossibilidades
um profissional (da EF, do esporte...) pretendesse, em qual­
de encontrar/construir fundamentos seguros para a ativida­
quer instância social, tematizar qualquer elemento da cultura
de de conhecer cientificamente a realidade. Esse debate
corporal de movimento, a partir da intenção pedagógica, ele
parece ter resultado num grande não à possibilidade de um
encontraria fundamentos nessa teoria. Vale dizer, que a ins­
fundamento último a partir do qual o edifício científico pu­
tituição educacional possui especificidades que tornam ne­
desse ser construído. Afirma-se cada vez mais o caráter pro-
cessárias reflexões para adequar-lhe a teoria.
1 Texto enviado para o GTT Epistemologia do XI CONBRACE (Florianópolis/SC,
1999).
cessual da verdade. Acentuou-se também, muito em função linguagem mostram como somos seres imersos na lingua­
da ameaça ecológica, a consciência de que a produção cien­ gem, como as apreensões que fazemos do real são depen­
tífica (traduzida em tecnologia) não é inocente, que a produ­ dentes e préfiguradas pelos conceitos dos quais nos valemos,
ção científica não pode ser reduzida a uma operação lógica, isto é, a linguagem não é um instrumento/meio neutro na
ela é sempre intrinsecamente política, não sendo possível ação do conhecimento. A superação paulatina do euro-
isolar hermeticamente em pólos distintos o papel do cidadão centrismo permite considerar outras culturas não como “in­
e o do cientista. As ciências naturais, outrora tão zelosas (e feriores” mas como diferentes e dignas. A complexificação
arrogantes) quanto à propalada objetividade do conhecimen­ do mundo pela interpenetração ou crescente intercâmbio de
to que produzem, precisaram aos poucos admitir, a partir de várias ordens (econômico-financeiro, político e cultural) pa­
seus próprios desenvolvimentos, que o objeto não permane­ rece-nos colocar de frente a uma “nova intransparência” (J.
ce indiferente ao observador ou ao sujeito do conhecimento. Habermas).
Nas ciências sociais e humanas ouvem-se, em volume cres­
cente, vozes que admitem a necessidade de rever o antago­ Todos esses desdobramentos, internos e externos ao
nismo natureza-cultura que permeou e permeia essas ciên­ fazer científico propriamente dito, afetam nossa vida e nos­
cias. A pretensão da racionalidade científica de eleger-se sa produção acadêmica talvez mais do que num primeiro
como a própria racionalidade é acusada de ser coadjuvante momento possamos perceber, ou mesmo estejamos dispos­
de reducionismos e totalitarismos, ao mesmo tempo em que tos a admitir. Estamos confrontados com problemas que pa­
se busca e se propala a importância de outras racionalidades, recem desafiar nossos modelos de pensamento ou o modelo
numa perspectiva psicologizante, outras inteligências, como moderno do conhecimento (cf. Marques, 1993). Entre as
a emocional. Intervir a partir do conhecimento científico passa inúmeras questões que nos desafiam a partir do quadro es­
a ser problemático porque o otimismo, a visão positiva da boçado acima, selecionei algumas que entendo afetam a
racionalidade científica, como forma privilegiada de conhe­ vida do CBCE (Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte)
cer a realidade está sob forte suspeita: abalou-se a “crença” como comunidade que reúne pessoas interessadas no avan­
no poder da razão científica, o que tem levado, por um lado, ço do conhecimento e na intervenção social qualificada para
à sua negação simplista, justificando um mergulho no a qual esse conhecimento pode contribuir.
esoterismo e, por outro, a tentativas de redefinição/recons­ As questões a que me refiro estão ligadas a um conjun­
trução do modelo de racionalidade, tomando-a como to de conceitos que albergam polêmi;as e visões, ao menos
fenômeno também histórico e portanto contingente. Da crí­ aparentemente, conflitantes: pluralismo, diversidade, dife­
tica à oposição cultura-natureza emerge a revalorização rença, particularismo, fragmentação, antifundacionalismo,
da nossa (primeira) natureza, ou do corpóreo no homem, irracionalismo, acaso/caos, de um lado, e unidade, totalida­
não mais entendido como mero mecanismo de uma de, universalidade, ordem e racionalismo de outro2. A polê­
estrutura superior, a mental, mas como uma estrutura com­ mica em torno destes temas marca as posições e as ações
plexa que ao mesmo tempo contém aquela (ou na qual aquela
2 A polarização que fiz é meramente didática. Ela em verdade é precária, como
radica), mas a transcende. Desenvolvimentos da filosofia da
discutirei no texto.

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antagonismo social, o que leva a uma necessária dicotomia
em torno da relação epistemologia e política ou entre conhe­
que é determinada pela opção política a favor dos interesses
cimento e intervenção. Buscarei demonstrar como estas ques­
dominantes (capital) ou a favor dos interesses dominados
tões não só afetam nossas noções de conhecimento, ciência
(trabalho). A opção pelo interesse (político) histórico da maio­
e verdade, como as de democracia e política. Destacam-se
ria (classe trabalhadora/proletariado) conferiria a condição
neste sentido as discussões em torno do pluralismo e do
de um acesso privilegiado, em termos de conhecimento (ver­
relativismo, temáticas caras ao antifundacionalismo e que
dadeiro), à realidade. A outra posição (opção) seria ideológi­
afetam mais diretamente nossas noções de democracia.
ca, no sentido da falsa consciência. Essa posição desemboca
em contradições e está sustentada em bases hoje dificilmen­
te defensáveis e muitas vezes é alvo de banalização. A mais
Delineando as posições presentes comum é
na Educação Física brasileira e no CBCE3 “o abandono apressado da lógica, como se democracia a subs­
tituísse. Em vez do argumento cuidadoso, logicamente funda­
do, prefere-se o discurso exacerbado, agressivo, demolidor,
Na Educação Física brasileira e particularmente no
sem dispor de nada mais sólido para colocar no lugár. No
CBCE, depois de um debate entre os que advogavam uma extremo, pretende-se submeter lógica à democraciâ, fazendo
ciência neutra e aqueles que defendiam uma ciência engajada o erro oposto do positivismo, que submete democracia à lógi­
(década de 80, principalmente), o debate que se impõe hoje ca. Falta apenas exigir que se vote, para decidir se lógica
ainda vale”. (Demo, 1998, p. 238)
parece ser de outra ordem. Não mais o debate entre, de um
lado, o isolamento e, de outro, o engajamento da ciência, Numa versão vulgar, essa posição advoga a possibilida­
mas sobre possibilidades, características, limitações, enfim, de da identificação de leis históricas (à semelhança das leis
sobre o que pode ou deve significar ciência engajada. Como da natureza) que indicam o proletariado como a classe res­
lembra Demo (1998), modernamente avolumou-se o inte­
ponsável pelo projeto de emancipação humana; a reconcilia­
resse em caracterizar a relação entre ciência e política como ção do homem com ele mesmo. Não há maiores problemas,
intrínseca, em que pese a fácil banalização que isso pode
em princípio, em identificar um grupo, uma classe social
acarretar.
como responsável por um tal projeto. O problema se coloca
Dentro desse novo quadro algumas posições se deli­ quando se o faz com a pretensão de que essa é uma neces­
neiam. Podemos observar, no campo, uma visão da relação sidade histórica inelutável e portanto, “cientificamente
epistemologia e política que entende que no plano da produ­ comprovável”. Entendo ser essa necessidade argumentável,
ção do conhecimento reflete-se a contradição, ou melhor, o mas não pelo seu caráter inevitável e sim por razões políti­
cas e éticas.
3 Neste texto opto por não identificar autores com as posições aqui delineadas por
dois motivos. O primeiro deles é que, ao caracterizar posições, esta é feita A idéia da prática como critério de verdade, muitas
esquematicamente, ressaltando pontos e empobrecendo possíveis nuanças internas
à própria posição. O segundo é que, dada a pouca discussão acumulada na área,
vezes citada para indicar o entendimento de ciência adota­
em EF tendemos a transformar essas caracterizações/aproximações imediatamen­ do, leva a um círculo vicioso. A vida concreta dos homens, é
te em rótulos valorativos.

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' 132C v v w < - ^ w v
claro, é nossa referência última. No entanto, essa prática pós-modernidade nesses diferentes campos, vou ater-me a
adquire significado humano quando por ele refletida. Portan­ identificar alguns pontos que dizem diretamente respeito aos
to, é a prática interpretada que é o critério de verdade. Para objetivos da presente discussão.
tal interpretação concorrem (pré)conceitos que demandam Um deles é o antifundacionalismo que traz consigo a
opções. Ou seja, estamos no plano de um círculo herme­ discussão do relativismo e do pluralismo. Na Educação e na
nêutico. Educação Física essa discussão acontece mais com base na
Não obstante é preciso advertir: obra de M. Foucault, tendo como pano de fundo Nietzsche,
a partir dos quais a ciência é expressão da vontade de po­
“A negação que haja um fundamento a partir do qual os con­
der, sendo que não há a possibilidade de qualquer discurso
teúdos sociais obteriam um sentido preciso, pode ser facil­
mente transformada na afirmação de que a sociedade carece situar-se fora de seu domínio.
inteiramente de sentido; questionar a universalidade dos agen­
O antifundacionalismo e o desconstrucionismo enten­
tes da transformação histórica conduz, com freqüência, à pro­
posição de que toda intervenção histórica é igualmente limita­ dem que a pretensão da razão científica moderna é desme­
da e sem esperança; e mostrar a opacidade dos processos de surada e expressa a aspiração à totalidade que leva intrinse­
representação é com frequência considerado como equivalen­ camente a totalitarismos que massacram o particular e a
te a negar que a representação seja em absoluto possível.”
(Laclau, 1996, p. 153)
diferença, que pecam contra o pluralismo necessário para
que exista respeito a posições minoritárias e não-hege-
A posição acima exposta adota a perspectiva da uni­ mônicas. Vários são os movimentos intelectuais que dão sus­
dade metodológica no sentido de que determinada via per­ tentação à posição antifundacionalista, entre eles situamos
mite um acesso privilegiado (verdadeiro) à realidade, negan­ os desenvolvimentos da lingüística e filosofia da linguagem
do assim, o relativismo e o pluralismo metodológico. (virada lingüística) e as discussões no plano da filosofia da
Outra posição vem-se delineando mais recentemente ciência nas suas tentativas, frustradas, de encontrar um fun­
no plano filosófico, científico e político-social e vai adquirin­ damento último (não-metafísico) para a própria razão cien­
do proeminência nos últimos anos, inclusive na Educação tífica.
Física. Trata-se de posições identificadas pelo jargão “pós- Colocada essa posição em termos genéricos, vou to­
moderno”; posições que parecem poder ser identificadas pela mar como referência a posição de um autor antifundacio­
idéia de superação do projeto e das crenças características nalista importante, que é R. Rorty, com base na recepção
da modernidade, muitas delas já apresentadas no início do feita por E. Laclau (1996). Isso porque Rorty é um dos raros
texto. antifundacionalistas que buscam pensar as conseqüências
Como mostrou Welsch (1988), o termo “pós-moderno” dessa posição no plano da política. Isso adquire relevância
tem significações muito distintas nos diferentes campos do porque, conforme Laclau (1996), a adoção da posição que
conhecimento e setores sociais: na arte, na filosofia, na socio­ advoga a indecidibilidade está afetando o sentido da ação
logia, na política, etc. Sem a possibilidade de perseguir o coletiva, está levando a um isolamento generalizado do
processo de construção simbólica que envolve o tema da político.

134
Mas, se, segundo Rorty, uma sociedade liberal é aquela que
Rorty se autodefine como liberal irônico (ironista libe­
se contenta em chamar verdadeiro ao resultado desses en­
ral). Para Rorty, segundo Laclau (1996), liberais são aqueles
contros, qualquer que seja, como compatibilizá-la com uma
que pensam que a crueldade é o pior que se pode fazer. E
situação em que uma sociedade aceita um sistema de tabus
irônico é o tipo de pessoa que é capaz de assumir a contin­
e a imposição de uma ordem social? Segundo Laclau (1996,
gência de suas crenças e desejos mais centrais - alguém tão
p. 191), o poeta e o revolucionário utópico, que são os
historicista e nominalista a ponto de haver abandonado a
atores centrais na narrativa de Rorty, desempenham o papel
idéia de que essas crenças e desejos centrais remetam a algo
de protestar em nome da própria sociedade contra aqueles
além do tempo e da oportunidade. Os liberais irônicos são
aspectos da sociedade que são infiéis à sua própria imagem.
gente que inclui, entre os desejos impossíveis de fundamen­
tar, sua própria esperança de que o sofrimento diminuirá, de Laclau (1996) mesmo se incumbe de colocar duas ob-
que a humilhação dos seres humanos por outros seres huma­ jeções à utopia liberal de Rorty: a primeira é que o abando­
nos poderá cessar. Como podemos perceber, uma posição no de uma fundamentação metafísica das sociedades libe­
francamente antifundacionalista. rais as privará de um cimento social indispensável para a
continuidade das instituições livres e a segunda é que não é
Afirmar que a ordem social ou uma comunidade são
possível, desde um ponto de vista psicológico, ser um liberal
igualmente contingentes carece de fundamento último, na
irônico sem se ter, ao mesmo tempo, algumas crenças
interpretação de Laclau. Rorty se manobraria numa dificul­
metafísicas acerca da natureza dos seres humanos (p. 193).
dade, porque o vocabulário no qual a democracia liberal ha­
via inicialmente se apresentado é o do racionalismo iluminista. Além dessas objeções, gostaria de colocar que a posi­
Ele precisa, então, fazer um esforço para reformular o ideal ção do liberal irônico parece conduzir para uma aporia se­
democrático de um modo não-racionalista e não-universalista. melhante a identificada por Habermas (1988a, O discurso
filosófico da modernidade) na teoria do poder de M. Foucault;
Um dos pontos a ser enfrentado é o do relativismo,
a de que o sofrimento imposto pelo poder não pode ser
que é questionado com uma pergunta de Michael Sandel,
percebido como tal (sofrimento) porque não há nada exterior
citado por Laclau (1996): se as convicções próprias são ape­
ao próprio poder que possa servir de referência (tudo é dis­
nas relativamente válidas, por que defendê-las resolutamen­
curso). Como julgar o caráter revolucionário e utópico de
te? Rorty tenta responder, buscando demonstrar que o pro­
uma ação, se todas são contingentes, se não há fundamento
blema do relativismo é um falso problema. Descarta as no­
não-questionável, não-contingente, ou melhor, se não se deve
ções de validade absoluta ou universal e diz que a única
buscar um fundamento universal para as diferentes posições?
alternativa é restringir a oposição entre formas racionais e
Como lembrou Luchi (1999) em recente palestra, afirmar a
irracionais de persuasão aos confins de um jogo de lingua­
diferença pura e simplesmente é canonizar o fraco, é cano­
gem dentro do qual é possível distinguir entre razões de uma
nizar o forte e, acrescentaríamos, o tolerante e o intolerante,
crença e causas de uma crença que não são racionais.
o democrático e o autoritário, ou, com diz Brayner (1999), o
A posição de Rorty leva a questionar a própria noção problema é que existem certos “diferentes” que, uma vez no
de irracionalidade ou irracionalismo. A conseqüência é que a poder, gostariam de suprimir a própria diferença que os per­
questão da validade é essencialmente aberta e conversacional.
mitiu se manifestar. A tolerância deve tolerar o intolerante? Demo (1998), de quem passo a me valer para apre­
Parece também que Rorty não consegue evitar a contradi­ sentar a posição habermasiana, discutindo o caráter intrínse­
ção performativa como colocada por Apel (1988): argumen­ co do questionamento crítico e autocrítico, observa que esse
tar resolutamente a favor de uma posição relativista é (impli­ fenômeno é também intrinsecamente político, identificando
citamente) reivindicar validade para sua posição em detri­ três marcas políticas nesse processo:
mento de outras - eu não posso argumentar sem pretender “A prim eira marca política está na necessidade de diálogo,
validade para minha posição. pois um a crítica solitária não acarreta resposta, destruindo
desde log o a co m p le m e n tarie d ad e dialo g ai ad v ind a da
De qualquer forma, a posição acima discutida tem-se contracrítica. A ciência sem diálogo é um aborto. Seria ape­
apresentado como uma denúncia do caráter conservador e nas um narcisismo lógico. A segunda marca política está na
de .suas vinculações com o poder de princípios e idéias como pretensão de validade, revelando que implica ambiência hu­
m ana questionadora. Strito sensu uma posição só pode ser
as de universalidade, unidade e totalidade, contrapondo a
aceita por consenso, para não ser coação ou artimanha. A
essas as de diversidade, diferença, particularidade e contin­ terceira marca política encontra-se na comunicação intersub-
gência; uma postura que nega qualquer possibilidade de jetiva, imprimindo ao conhecimento a fraqueza e a grandeza
hierarquizar o conhecimento em mais ou menos verdadeiro dos fenômenos históricos humanos. O consenso, de si, não
garante necessariamente nada. Basta relembrar a condenação
(portanto, rejeita a idéia de ideologia), propugnando um
consensual de Galileu. Entretanto, para algo valer, o consen­
pluralismo radical, com base no relativismo, e que de forma so aceitável é aquele discutido abertamente, nunca o imposto
conseqüente declara como inimiga a idéia de unidade/totali­ ou cabalado. A abertura irrestrita do questionamento continua
dade, erigindo como princípio a diferença. sendo a arma lógica e política mais decisiva para se obter,
rever, superar consensos”. (Demo, 1998, p. 235)
Uma terceira posição presente na educação física bra­
sileira (e no CBCE) é aquela estribada na teoria da razão Os defensores dessa posição não abdicam da idéia de
comunicativa de J. Habermas. Algumas idéias centrais aqui uma unidade possível ou de um consenso possível, que está,
são: (a) faz sentido e é necessário diferenciar racionalismo porém, submetido ao princípio do permanente questiona­
de irracionalismo; (b) a verdade (científica) não deve ser en­ mento e autoquestionamento. A idéia aqui é de que os acor­
tendida como correspondência entre conceito e fenômeno, dos em torno das regras que regem o campo devem ser
mas sim como a validade de uma tese proveniente de um resultado de um processo comunicativo que busca os melho­
consenso obtido num diálogo discursivo isento de coerção res argumentos, mas que os entende como necessariamente
(verdade é uma pretensão de validade); (c) a discutibilidade provisórios (comunidade ilimitada de comunicação).
radical das asserções sobre o real como princípio básico; (d)
não há como prescindir de um fundamento universal (na
ciência/na razão e na política); e (e) a conjugação da quali­ Considerações finais
dade formal e política do conhecimento, trazendo para a
cena da cientificidade, além do compromisso lógico sistemá­ Como podemos perceber, superada a questão da neu­
tico, a democracia dos consensos possíveis e bem-discutidos tralidade do conhecimento científico, advogada pelas postu­
(Demo, 1998). ras positivistas, a relação do conhecimento com a política

^Í38t_
(com a questão da democracia) passa a ser intrínseca. No idéia fundamentadora, que confira unidade e oriente a co­
entanto, admitir isso não é o fim da jornada, é antes colocar- munidade; a base é contingente e o mais importante é con­
se de frente a uma série ainda maior de dificuldades, se não viver com a diferença e a indecidibilidade sobre a verdade; e
quisermos banalizar o problema. Inúmeras são as armadilhas (c) uma posição que vai-se orientar pela idéia colocada no
que precisam ser superadas, algumas das quais procuramos horizonte de que deve valer o melhor argumento, que só
debater aqui. pode ser identificado, só terá validade, se construído por
uma comunidade ilimitada de comunicação.
No nosso entender, para uma comunidade como o
CBCE, essa discussão é plena de conseqüências. Colo- Mas nossas reflexões aqui têm como alvo central as
cam-se questões como: em que bases essa comunidade se três últimas questões, as que envolvem diretamente a rela­
sustenta, qual é o cimento dessa organização? Quais são as ção epistemologia e política. Minha posição pessoal a res­
bases de sua intervenção e quais as crenças compartilha­ peito se aproxima dos caminhos apontados por Habermas,
das4? Por que a pluralidade e as diferenças nela presentes embora concorde com uma série de críticas a ele endereçadas
não determinam sua desintegração? Qual é a base de sua e perceba seus impasses.
unidade (unidade da diversidade, é claro!)? E mais: como A questão central está nas conseqüências do relativismo
deve essa comunidade tratar do diferente, a partir de quais da verdade para a construção da democracia, da necessida­
princípios tratar a diversidade? Qual vinculação entre conhe­ de do universal (ou não) para fundamentar a democracia.
cimento e política defender e como chegar a essa decisão? Junto com Laclau (1996) entendo que o abandono total de
Como manter coerência entre os princípios (as regras) que qualquer tipo de universalismo abala os fundamentos de uma
orientam a produção do conhecimento e os que estruturam sociedade democrática. A proposta habermasiana (e de Apel)
as relações sociais na sua comunidade? Como evitar a con­ é a pragmática universal que está radicada na linguagem -
tradição entre a forma (os princípios que orientam) de cons­ na visão de uma comunicação livre de coerção. Mas, para
trução do conhecimento (a verdade científica) e a interven­ Laclau (1996), a própria idéia de universalidade é contin­
ção social (a verdade política)? gente/histórica. E preciso abraçá-la como base para a de­
Podemos perceber que as diferentes posições esboçadas mocracia, mas sem abdicar da idéia de que o próprio univer­
aqui dariam, quanto a alguns aspectos, respostas diferentes salismo é contingente. Na perspectiva habermasiana, a pró­
a essas perguntas. Não vou-me alongar nesse aspecto, ape­ pria comunidade, a partir desse princípio, define por con­
nas delineá-las resumidamente (com riscos de simplificação): senso as normar às quais se submeteria para decidir sobre os
a) uma posição é a de que essa comunidade deve-se orientar discursos válidos (verdadeiros) e sobre como intervir. No en­
na idéia de que há uma verdade cujo acesso está franqueado tanto, as normas definidas por consenso, na perspectiva ado­
aos que fazem a opção política a favor de determinada clas­ tada, são provisórias e podem por exemplo, não respeitar o
se social; (b) outra posição entende poder prescindir de uma diferente. Estaria esta posição, a habermasiana, subestimando
o elemento de coerção, de força (o poder) nas relações co­
4 Uma resposta a essa questão com base na teoria de P. Bourdieu pode ser observada municativas? Uma resposta seria a de que as normas mu­
no estudo de Paiva (1994).
dam, mas não muda o respeito à democracia. Mas se ela é
também contingente, também histórica, porque devemos
respeitá-la? Não há critério externo ao processo de sua cons­
trução. Para Habermas o que a fundamenta é a pragmática
universal, a contradição performativa. Estamos num círculo
ou tratando com a auto-referencialidade. E o que aparece
em Laclau, quando diz:
“Toda teoria acerca do poder em uma sociedade democrática
CONSIDERAÇÕES FINAIS
tem que ser uma teoria acerca das formas de poder que são
compatíveis com a democracia, não uma teoria da eliminação
do poder”. (1996, p. 200)
Concordamos com Betti (1996), que as posições so­
A concepção de democracia que emana dessas refle­ bre a identidade epistemológica da Educação Física, na dis­
xões é a que tem por base a auto-referência. Para Maturana cussão brasileira, podem ser resumidas e classificadas em
(1998), a tarefa da democracia é criar um domínio de convi­ dois grandes grupos: a) aqueles que entendem que a própria
vência no qual a pretensão de acesso privilegiado a uma Educação Física é uma ciência ou que no seu âmbito se
verdade absoluta desvanece. Ou, como afirma Laclau (1996): construiu/constituiu uma nova ciência, denominada às vezes
“A condição de um a sociedade democrática é seu caráter de Ciência da Motricidade Humana e outras de Ciência do
constitutivamente incompleto - o que implica, desde logo, a Movimento Humano, ou ainda Cinesiologia e também Ciên­
impossibilidade de um fundam ento racional últim o. C om o cia do Esporte; e b) aqueles que a entendem como uma
podemos ver, esta des-fundação escapa à perversa dicotomia
modernidade - nihilismo: ela nos enfrenta, não com a alter­
prática pedagógica, como uma prática social de intervenção
nativa presença-ausência de um fundamento, e sim, com a imediata e que enquanto prática humana necessita ser teori­
busca sem fim de algo que deve dar um valor positivo à sua camente elaborada. Como aquele autor já indica, situamo-
própria impossibilidade”, (p. 177)
nos no segundo grupo. Entendemos ter demonstrado que
sob o prisma epistemológico não existe a possibilidade de
Mas, esse não é um fundamento com pretensão uni­
fundamentar a existência de uma nova ciência nesse cam­
versal?
po, ou, ainda, que não existe um novo objeto científico. No
Bem, com qual concepção da relação entre conheci­ entanto, existe também um forte movimento na área, que,
mento e democracia queremos (devemos) operar? E preciso como estratégia de alcançar legitimidade no campo acadê­
construir uma unidade (ética) como comunidade? Ou essa é mico, começa a denominá-la de ciência e a organizar espa­
uma questão irrelevante e é ainda uma aspiração metafísica? ços de produção e veiculação do conhecimento a partir des­
Com a palavra a comunidade (ilimitada) de comunicação. sa idéia. Como a Educação Física pode ficar órfã nesse pro­
cesso e também por razões epistemológicas expostas, de­
fendemos a posição política de envidar esforços para cons­
“é um sistema ordenado e coerente de proposições ou enun­
truir teoria da Educação Física, tomando-a como prática pe­ ciados baseados em um pequeno número de princípios, cuja
dagógica, ou seja, o debate/embate é inextricavelmente finalidade é descrever, explicar e prever do modo mais com­
pleto possível um conjunto de fenômenos. A teoria científica
epistemológico e político.
permite que uma multiplicidade empírica de fatos aparente­
Quando falamos em teoria da Educação Física não in­ mente muito diferentes sejam compreendidos como semelhan­
tes e submetidos às mesmas leis; e vice-versa, permite com­
sistimos na sua adjetivação como uma teoria científica. Isso
preender por que fatos aparentemente semelhantes são dife­
não significa que tenhamos abandonado a pretensão de rentes e submetidos a leis diferentes”.
racionalidade para essa teoria; muito mais, significa alertar
Podemos observar nessa definição de teoria científica
para a necessidade de elucidar o conceito de racionalidade
o seu caráter “descritivo” e não prescritivo. Não ignoro o
científica que é utilizado no discurso e na prática, bem como,
fato de que as descrições podem assumir caráter prescritivo
para as dificuldades de tal empreendimento. O debate
e normativo, como também não ignoro o quanto as descri­
epistemológico atual parece indicar muito mais, por um lado,
ções são condicionadas histórica e ideologicamente. No en­
no sentido da superação da racionalidade científica clássica
tanto, apesar disso, nos parece que, de uma descrição de
ou predominante (originada no plano da física e adotada como a realidade é não deriva, necessária e logicamente,
pelas ciências naturais e também pelo positivismo como nenhuma norma de ação, embora essas possam ou devam
modelo para as ciências sociais e humanas) e, por outro, no ser definidas a partir de uma análise atenta da realidade.
sentido de certo relativismo que desloca a racionalidade cien­ Construir uma “ponte” entre essas duas dimensões faz parte
tífica do pedestal da racionalidade enquanto tal e a coloca do projeto habermasiano. Esse aspecto é importante por­
no mesmo nível de outras “racionalidades” ou discursos acer­ que, enquanto teoria de uma prática de intervenção, a teo­
ca da realidade. As dificuldades e os movimentos aludidos ria da Educação Física é necessariamente prescritiva ou
parecem indicar prudência no que diz respeito à reivindica­ normativa.
ção de adjetivar uma teoria da Educação Física de científica, Tomado nessa perspectiva o teorizar em Educação Fí­
embora indique também prudência quanto à propensão de sica está de frente a vários desafios. Entre eles destacamos a
abandonar precocemente a pretensão da fundamentação necessidade de articular organicamente os conhecimentos
racional da prática. Nem consumar o casamento nem o produzidos acerca do movimentar-se humano pelas diferen­
divórcio. Indicamos nos diferentes capítulos, mas apenas in­ tes disciplinas científicas; articular o conhecimento da reali­
dicamos, a tentativa de J. Habermas de superar alguns des­ dade com uma visão prospectiva da realidade, portanto, com
ses impasses com sua teoria da razão comunicativa, como uma visão de homem, mundo e sociedade - articular descri­
alternativa para orientar uma possível teoria da prática, mes­ ção com prescrição; articular o saber conceituai com o saber
mo porque, uma das questões que tal teoria necessita en­ prático.
frentar é a relação entre o fático e o normativo, questão que Mas, é bom desde logo refletir sobre as possibilidades
é central no pensamento habermasiano. e as limitações de uma teoria da e para a prática. Não
Para Chauí (1995, p. 251), uma teoria científica vamos retomar a discussão dos limites da racionalidade cien­

144'!
tífica para tal intento. Muito mais, para finalizar, gostaría­ no plano pedagógico, por mais que forneça indicadores para
mos de abordar os limites da teoria, num sentido lato, en­ a prática, não poderá nunca apresentar um conjunto de pres­
quanto organizadora e orientadora da prática pedagógica crições de como agir do mesmo modo como um prospecto
em Educação Física. indica os passos da montagem de uma mesa ou de uma
máquina. Uma teoria pedagógica não deve ser uma tecnologia
As teorias científicas, no âmbito das ciências da natu­
(Como dito anteriormente, isso aconteceu e acontece ainda
reza (e muitas vezes também nas ciências sociais e huma­
hoje). A relação pedagógica é (deve ser!) uma relação entre
nas), à medida que retratam o funcionamento da realidade,
sujeitos; deve ser uma relação criativa e criadora, não pode
das leis que regem o seu movimento, permitem prever o seu
ser reduzida a uma téchne-, ela deve ser sempre também
comportamento e, conseqüentemente, fornecem elementos
poíesis. A teoria não substitui a prática e vice-versa; cada
que orientam uma intervenção eficiente - o desenvolvimen­
qual tem sua lógica, lógicas essas que precisam fecundar-se
to de uma tecnologia. A ciência é, aí, um instrumento de
mutuamente, para uma teoria da prática e para uma práti­
poder; amplia nossa capacidade de intervir na realidade.
São teorias desse tipo as teorias da aprendizagem, da fisio­ ca teorizada.
logia do esforço, etc. Aliás, uma certa vertente educacional
pretendeu orientar-se por esses princípios (pedagogia tecni-
cista). Entender uma teoria da educação nessa perspectiva é
um reducionismo com conseqüências políticas bem-conheci-
das de todos nós. Assim, é preciso considerar que uma teo­
ria de uma prática pedagógica não pode se resumir à discus­
são dos meios eficientes para sua ação, mas, sobretudo,
precisa refletir sobre os fins, sobre o sentido dessa ação - os
meios lhe são subordinados.
Por outro lado, é comum perceber no âmbito da Edu­
cação Física o entendimento de que a teoria deve ter como
tarefa primordial oferecer um conjunto de prescrições, ou
seja, oferecer uma tecnologia (ações eficientes) - aquilo que
convencionou-se chamar de “receitas”. Entendo ser essa uma
expectativa equivocada por várias razões, entre essas as de
que as receitas (dos outros) desobrigam os seus utilizadores
da tarefa de pensar, de criar. Não obstante, toda teoria que
não se apresenta na forma de uma tecnologia imediatamen­
te consumível, tende a ser rotulada de “filosófica” (em senti­
do pejorativo, distante da realidade). Ora, qualquer teoria,
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alter Bracht nasceu em Toledo
(PR) em 1957. Realizou seu
curso de grad uação em
Educação Física na Universidade
Federal do Paraná. N a mesma
u n i v e r s i d a d e r e a l i z o u curso
de especialização em treinamento
desportivo. Obteve o grau de mestre em
Educação Física na Universidade
Federal de Santa M a ria (RS)
e doutorou-se na Universidade
de Oldenburg (Alemanha). Foi docente
da Universidade Estadual de Maringá e
da Universidade Federal de Santa
Maria e atualmente é professor do
Centro de Educação Física e Desportos
da Universidade Federal do Espírito
Santo onde íntegra, também,
o Laboratório de Estudos em Educação
Física (LESEF).

É autor dos livros Educação Física


e aprendizagem social (Magister, 1992)
e Sociologia crítica do esporte; uma
introdução (CEFD/UFES, 1997) e co-
autor de Metodologia do ensino
da educação física (Cortez, 1992). Foi
presidente do Colégio Brasileiro
de Ciências do Esporte por duas gestões
(1991/93 e 1993/95).
Educação Física deve tornar-se uma ciêncía!(!)
A esta, propõem-se os nomes de: Cinesiologia,
Cíência(s) do Movimento Hum ano, Ciência
da Motricidade H um ana e Ciência(s) do Esporte.
Este "casamento" foi indicado, por algum tempo, para que
a Educação Física lograsse legitimidade enquanto área
do conhecimento, e, ao mesmo tem po, superasse sua crise
de identidade. Embora tivesse chegado a soar a marcha
nupcial, para o bem ou para o mal, o "casamento" não
concretizou-se. N ão que faltasse torcida. N o entanto, parece
que mais recentemente, também para a área da Educação
Física a ciência deixou de ser um "partido" inquestionável.
O objeto de discussão deste livro são os detalhes
e as conseqüências que este namoro trouxe e vem trazendo
i
para a Educação Física.

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