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Mais azul o céu impossível. O Sol como facão cego forçando a lâmina naqueles olhos.

Rugas e
mais rugas, olhos estreitos. Marcamos a reunião para a parte da tarde. Pela manhã era
coletivo e a diretoria da associação queria dar exemplo. – Ninguém quer mais trabalhar no
coletivo, o lote só capoeira e o povo com a cara para cima. Ranzinza seu Antônio falava com o
pacaio grudado no beiço, mais papel que fumo. Reunião de planejamento. Acompanhamos
esse Assentamento há muito tempo. Assembleias mensais, última quarta feira. Na sala grande
bainha vazia porque no alterar dos ânimos não pode tirar dia do trabalhador. Palavra –
palavra. As mulheres na janela, no fundo da sala. - Essa diretoria não faz nada. Onde está o
nosso dinheiro que pagamos a Associação? Reclama veemente um dos poucos que não paga a
mensalidade. - Vamos fazer uma reunião, planejar tudo direitinho, no papel e vamos trazer
aqui para aprovarem. O secretário me olhava e tentava colocar certeza nas palavras. Abaixei a
cabeça! O que dizer? Tempos difíceis naquele assentamento. Cacau queimado dava quase
nada. Durante todo esse tempo que acompanhamos o Assentamento várias ideias e soluções
para os problemas apareciam. A reunião teria mais um papel sistematizador. Colocar tudo no
papel. Data. Responsável. Valor. Colocar no papel. A escrita a vencer a fala. Já não bastavam os
costumes. Teríamos que colocar no papel. Assim como eles também acreditava que assim
sendo tudo estaria perfeito. Terceira semana do mês reunião marcada chegaria com o meu
computador para preencher as lacunas e depois imprimir o papel. Chego ao Assentamento.
Percebo que metade da diretoria está no bar e a outra metade dispersa perto da sede. O
presidente está no bar, copo na mão imediatamente me apresenta Mário, o irmão. Antes
mesmo de apertar minha mão ele me diz: - Sou a favor do Porto. Sorri e sentei. Perguntei
sobre a reunião e Antônio, presidente, me disse que estava acontecendo, mas eu não estava
vendo. Rimos. Ri o riso dos tolos. Antônio ria com domínio do mundo. A reunião como eu
queria ninguém queria fazer. Antônio me disse que esse negócio de planejar não dava certo.
Eles iriam falar com um candidato a vereador para resolver os problemas do assentamento
antes que chegassem as eleições. Diz-me ele: - Depois das eleições ninguém faz mais nada.
Nem eles nem nós. Pisava e repisava. Realmente as eleições existem para cada um de nós.
Reflexão durou pouco. O irmão de Antônio aproveitou a plateia e continuou: Você é contra o
Porto por quê? Retruquei: Porque o senhor é a favor? Há respostas que são como arapuca.
Visgueiro. – Olhe ao seu redor? Olhei. - O que vê? – Vejo um assentamento muito bonito, um
povo lutador que trabalha dia a dia para garantir seu sustento digno. – Você ver flor onde não
tem! Olha para a cara do Zé, olha lá como o burro do Zé anda. Naquele caçuá leva a alma do
bisavô. Vê a poeira que levanta quando o burro passa? Aquela poeira já pisou os pés dos
velhos todos daqui. Ela está cansada. Ela quer ir embora. Olhe bem para nós. Não olhe para
você pensando que nos vê. A gente quer mudança. Aproveitei e já perguntei: - que mudança?
Não sei. Nós queremos. Eu sabia de cor os argumentos contra o Porto. Expliquei sobre os
impactos sociais, psicológicos, ambientais. Usei os argumentos da economia e por fim
demonstrei por A + B que um porto, que receberia toneladas de minério de ferro, acabaria
com qualquer possibilidade de produzir produtos orgânicos e que prejudicaria a plantação do
cacau que é tão importante para eles. Ele olhou para os que estavam a redor e disse: - Nós
queremos mudança. Não havia certeza de nada nos olhos dos outros. Assustei-me com a
velocidade que me cansei. Dizer mais o que? Perguntei se eles escolheriam a mudança mesmo
que fosse para piorar a vida deles. – Sim. Sem nenhuma dúvida escolheria a mudança.
Althusser, numa prosa sobre o Teatro Materialista, ao analisar determinada peça, reflete que
aquela cena, em algum lugar a encontro, sugere um tipo de conteúdo. No diálogo com o
companheiro do Assentamento fui pego por uma agonia, uma gastura no meu peito. Aquilo
era um teatro? Althusser com os olhos sem graça me dizia: “Enfim, porque tudo isso senão
para sugerir o conteúdo efetivo desse tempo miserável: um tempo em que nada acontece, um
tempo sem esperança nem futuro, em que o próprio passado está imobilizado na repetição (O
velho garibaldino), em que o futuro mal se procura por meio dos balbucios políticos dos
pedreiros que estão construindo a fábrica, um tempo em que os gestos não tem sequência
nem efeito, em que tudo se resume, portanto, a algumas trocas no plano da vida, da “vida
cotidiana”, em discussões ou disputas abortadas, ou que a consciência de sua presunção faz
voltar ao nada – em suma, um tempo parado no qual nada acontece ainda que se pareça com
a História, um tempo vazio e suportado como vazio: o próprio tempo da condição deles.”
Mário me olhava senhor do seu destino disposto a perder tudo em nome da mudança. Eu,
guardado no meu tempo, me perguntava como transformar todo aquele desespero em
esperança. Quem estava desesperado? – Quer uma cerveja? Falava sem me olhar. Olhava lá,
no contorno da serra. Respondi que naquele momento não poderia. Respondi já com olhos
observando a bainha da calça que já não cobria o cano da minha bota. Bateu na mesa e
levantou com aqueles olhos de quem não morre. – Já fui um lutador. Eu teimoso encarei a
outra bainha. – Você vem na próxima assembleia? – Sim Antônio.
TERRITORIALIZAR A POLÍTICA E POLITIZAR O TERRITÓRIO

A madrugada estancada não amanhece. Não há alívio. O desespero habitual


modela esses tecidos de barro. A pele, aquela mesma pele que é um
continente do tamanho da história, brilha teimosa nas lutas subterrâneas. - Algo
está mudando. Ele me disse. – Algo está mudando a muito tempo, respondi
contido.

- Estão nos cortando em retalhos. - Antônio há muito tempo estamos


retalhados em nossos cantos.

Preciso que me escute um pouco apenas. Prometo garantir meu voto para ti.
Olhe para mim. Preciso que me veja como um todo. Minhas mãos, os calos;
meus olhos, o brilho; minha fronte, a altivez; meus pés, o caminho. Veja! Veja
em mim o percurso do meu trabalho à minha casa. Peço que entenda cada
passo como um todo alinhavado. Não sou tão ignorante assim Antônio.

Homem do céu. Estamos em frangalhos, trapos, retalhos de sonhos e de lutas.


Não poderia seguir contigo, não assim. Sei que falar sonho e luta parece algo
comum. Sei que veio aqui com sonhos e lutas. Me pergunto, como as mesmas
palavras podem representar as mesmas coisas e ao mesmo tempo ser algo
diferente?

Antônio! É preciso cerzir esses retalhos. Cerzir é uma palavra bonita, não é?
Cerzir é uma palavra boa, significa costurar de maneira imperceptível, e
também costurar os pedaços dos tecidos articulado em um núcleo comum.
Antônio, qual é o nosso núcleo comum?

Já disse, meu voto é teu. Mas isso é suficiente? Será no voto que
costuraremos nossos retalhos?

No meu trabalho humilhação, no transporte humilhação, aqui no bairro


humilhação. Nós lutamos todos os dias contra isso. Essas lutas não aparecem
no relatório. São lutas subterrâneas. Temos que cerzir cada luta dessa num
núcleo comum, entende?

- Entendo. Por isso o projeto de lei para o governo cobrir uma porcentagem do
valor da passagem.
Antônio essa luta normal já não é suficiente. Essas lutas veem se acumulando
em nome de um mesmo núcleo comum. Esse tipo de costura já não nos serve
mais. Cerzir os retalhos de uma classe exige fazê-la olhar para o espelho e no
jogar dos Búzios olhar para trás. Qual o nosso núcleo comum Antônio? Temos
que colocar cada luta dessa articulada com um núcleo comum entende? Será
esse núcleo comum que preencherá aquelas palavras “sonhos e lutas”. O que
eu quero dizer com isso? Todos esses fazeres que tu me diz, solidariedade,
vitória, eleição, etc mudam de qualidade quando se costura sobre outro núcleo.

O que são as lutas subterrâneas? São aquelas que acumulam força sem
chamar a atenção do inimigo, são aquelas que preparam a classe para uma
longa jornada de lutas e principalmente são aquelas que acostumam a classe a
lutar pelo poder. Que poder? O único que a interessa. O poder do Estado. Sei
que vocês acham que nós não sabemos o que é o Estado, mas no dia a dia a
gente sente ele no nosso cangote. Quais são as lutas subterrâneas? A crise
econômica desencadeia uma desestruturação das relações sociais nos
territórios: bairros, fábricas, assentamentos são tomados por uma barbaridade
diferenciada na qual o protesto, os reclames já não encontram ouvintes
mediadores.

Você acha Antônio que com essa conversa e esse objetivo que o traz aqui é
possível cerzir essas lutas subterrâneas para tomarmos o poder do Estado?
Antônio precisamos de agulhas e linhas de novo tipo. Essas agulhas e linhas
que você apresenta representam uma velha estratégia que não nos serve mais.

Você fala de política como se ela estivesse do outro lado da rua. Antônio me
escute. Antônio me escute. É necessário territorializar a política politizando o
território. Isso não é um jogo de palavras. Significa que as lutas subterrâneas
devem ser cerzidas sobre esse núcleo comum. É nessa fronteira que se inicia o
longo trabalho do militante. É nessa fronteira que as atividades diárias se
relacionam com o todo. A creche comunitária que era curral eleitoral agora é
estrutura de organização e formação de mulheres. Os mutirões de laje, nos
quais vocês garantiam a cerveja, se tornam ingrediente organizativo. As festas
e quermesse ... A missa, os terreiros e os cultos fortalecem um novo tipo de
ideologia.
- Meu amigo tenho que ir está anoitecendo.

Vá em paz Antônio. Enquanto tu não compreender o papel da noite na política


não há porque vir. Minha vó morreu cega de tanto cerzir a luz de vela.

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