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5 Artigo especializado publicado na impresa

FERNANDES, Mayã. A magia das imagens técnicas na criação de novas narrativas. Revista Ano I: En
saio, 2020. ISSN 2675-5599. Disponível em: https://medium.com/ano-i-ensaio/a-magia-das-imagens-t
%C3%A9cnicas-na-cria%C3%A7%C3%A3o-de-novas-narrativas-25a6a636841c

A magia das imagens técnicas na criação de


novas narrativas
ano I: ensaio Following
Sep 14 · 10 min read

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Este ensaio surge a partir de reflexões filosóficas resultantes do curso de Filosofia da
Fotografia I, lecionado em maio de 2020. Em uma das aulas realizamos a leitura de duas
imagens. A primeira era utilizada como panfleto convocatório de um determinado
grupo político e a segunda uma pintura que busca questionar a sedução e o poder de
magia das imagens técnicas. A análise de ambas imagens foi praticada com base nas
obras Ensaio sobre fotografia (1998) e Universo das imagens técnicas (2008) de Vilém
Flusser.

A primeira imagem é um cartaz distribuído em 1932 por um grupo que intitulavam-se


M.M.D.C (acrônimo que representa os mártires do Movimento constitucionalista de
1932).

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M.M.D.C. Você tem um dever a cumprir, consulte a sua consciência! (1932).

A narrativa por trás do cartaz remonta às práticas adotadas pela organização civil
paramilitar criada em São Paulo em 1932. A imagem em tom panfletário surge como
reação às medidas autoritárias tomadas pelo presidente Getúlio Vargas em 1932, ao
anular a constituição de 1891 que limitava seus poderes de decisão sobre os
governadores dos estados. Sem a vigência dessa constituição, Vargas passou a nomear os
cargos dos governadores, inserindo seus aliados políticos para obter controle político,
social e econômico sobre os estados. Essa medida desagradou a oligarquia paulista, que
incitou grupos de civis e militares para reagir de modo armado contra o governo. Assim,
o grupo M.M.D.C., passou a realizar convocatórias para que a população se unisse e
lutasse ativamente no confronto. A chamada culminou na Revolução Constitucionalista,
que eclodiu no mesmo ano.

Com o auxílio da Liga das Senhoras Católicas, a organização [M.M.D.C] criou serviços
de alistamento, de instrução, de abastecimento, de concentração e de alojamento de
voluntários, bem como de assistência às suas famílias. Desenvolveu também serviços
técnicos de organização e controle. Além de atuar nesses diferentes setores, o M.M.D.C.
promoveu as chamadas “caravanas de propaganda cívica”, que incluíam a pregação
diária nas ruas e a divulgação de cartazes e de filmes¹.

Essa imagem foi reproduzida e distribuída em São Paulo. “Você tem um dever a cumprir,
consulte a sua consciência!”. o apelo da mensagem é coercitivo e embasa-se em um molde
propagandístico perpetuado na história, sendo evidente a apropriação das artes para
alcançar os cidadãos paulistanos. Essas “pregações” são feitas em paralelo com a própria
propaganda política praticada por países como Estados Unidos, ao solicitar que a
população aprovasse e participasse ativamente das investidas imperialistas.

No cartaz, observo a utilização da imagem de uma mescla do homem civil-militar, que


coloca-se em defesa de uma causa revelada pela bandeira ao fundo. O olhar fixo mostra-
nos o discurso direto estabelecido entre esse homem e seu público, que encaixa-se com o
gesto de sua mão que indica ao espectador que ele é, sem dúvidas, o receptor da
mensagem.

Associamos a imagem e seus elementos com outros significados que permanecem no


imaginário comum. Não precisamos entender de semiótica ou ter um estudo
aprofundado de estética, para perceber o teor do cartaz. A captura das pessoas é
garantida. O cartaz funciona como uma isca. Temos então o efeito da propaganda.

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Em outros ensaios² comentei sobre a expressão máxima das imagens técnicas serem as
fotografias. Elas são, sem dúvidas, o ápice dos procedimentos técnicos para a criação de
imagens. Contudo, não podemos esquecer que uma imagem técnica pode ser toda
representação efetuada por meio de intervenções mecânicas, que buscam diminuir a
atuação das pessoas no processo de materialização. Assim, podemos citar os jornais e
revistas como o resultado do entrelaçamento da imagem com o texto, sendo meio de
fácil compartilhamento de informações.

Ainda sobre os estudos da imagem conduzidos por Flusser³, deixa-nos um exame


comparativo entre as imagens e as imagens técnicas. Para ele, as imagens são realizadas
a partir do processo de abstração do pensamento humano, que depende de uma
circunstância palpável para existir, que essas imagens apontam para cenas e sempre
carregam consigo, de modo transparente, a visão ideológica da artista. Já as imagens
técnicas são compostas por pontos que se concretizam para mostrar-nos uma imagem.
Esses pontos são calculados por meio de equações que buscam decifrar o mundo em que
vivemos. Acontece que no meio do decifrar, os códigos são manipulados por programas
(sociais, políticas e econômicas) que enquadram na imagem o que é de interesse para a
existência da própria imagem técnica. O grande trunfo desse tipo de imagem é que elas
emulam as imagens tradicionais, escondendo seu funcionamento mecânico e por muito
tempo esquecemos que elas de fato não representam o real, mas uma cena criada pelo
aparelho.

Assim, a proliferação das imagens técnicas diluiu a magia presente nas imagens
tradicionais, como a pintura, que serviam de culto, vinculando-se aos rituais. Sabe-se
que para Flusser a imagem possui uma magia responsável pelo elo entre as pessoas e o
mundo. Flusser comenta que no período pré-histórico as imagens serviam de mapas
para ler o mundo⁴. Porém, com o tempo, as pessoas passam a não mais utilizar a função
imagética como um guia para o conhecimento, mas idolatram as imagens como
possuindo uma finalidade em si mesma. Parece-me que a idolatria, conforme o filósofo
pontua, levou as imagens ao limite de sua função, desdobrando-se em novas utilidades.
Para Flusser, com o nascimento da escrita, temos o texto e a criação de conceitos
disputando espaço com as imagens, e em seu limite podemos ver a escrita imagética
como o entrelaçamento contínuo entre imagem e texto. Esse período é chamado de
histórico, por possuir características lineares, opondo-se à leitura circular das imagens.

Com o surgimento do texto, a imagem mantém-se viva, seja em sua aparência já


mencionada, ou como figura de linguagem. A relação entre imagem e texto é feita por
meio de conjunções e descontinuidades. Contudo, a fissura que as máquinas causaram
em nosso tempo possibilitou ver esse novo mundo na velocidade da captura da objetiva.
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Segundo Flusser, a era pós-histórica vem para transbordar os limites da historicidade.
Estamos no tempo do instantâneo, do imediato. Em constante modificação e
reproduções das imagens e de novas tecnologias, seriam os últimos 100 anos um
período vivenciado sem a chamada magia?

Seria banal dizermos que as fake news que observamos hoje em nosso cotidiano
nasceram a partir de um projeto político da contemporaneidade e do advento da
internet. Declaradamente falaciosas, certas imagens adotadas pela propaganda possuem
em si a capacidade de cativar o espectador. O lastro histórico da função das imagens não
só continua em nosso tempo, como é uma concorrente do poder mágico das imagens
produzidas pelos aparelhos. Esse poder dos aparelhos não só mimetiza a magia da
tradição, como insere nessas imagens códigos camuflados que são enganosos.

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Por mais que existam diferenças técnicas entre imagens e as imagens técnicas, é difícil
desvincular de ambas o poder de magia. Retornando à imagem “Você tem um dever a
cumprir, consulte a sua consciência!”, compreendo que sua estética está relacionada a
uma utilização da arte para fins políticos e econômicos. O cartaz em específico,
representa a imagem do “Tio Sam”.

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James Flagg, Eu Quero Você para o Exército dos EUA (1917)

A utilização da propaganda pelos E.U.A não é uma prática nova. A imagem do “Tio Sam”
(1870) é um exemplo de como as imagens são utilizadas para manipular uma
determinada população. A personificação estadunidense do “Tio Sam”, que décadas
depois ganhou os dizeres “”I Want You for U.S. Army” (“Eu Quero Você para o Exército
dos EUA”) (1917), tornou-se o símbolo do recrutamento dos soldados americanos para a
primeira guerra mundial e garantiu o apoio incondicional da população que passou a
simpatizar com a necessidade imperialista de expansão de territórios, sendo essa
dedicação superior à própria noção da vida. Em outras palavras, as pessoas
voluntariamente colocam-se em situações de risco e ignoram a destruição praticada na
guerra. Tudo em nome do patriotismo.

No caso apresentado aos meus alunos no início do curso, a convocatória do M.M.D.C


segue a mesma nomenclatura utilizada na Primeira Guerra Mundial com os dizeres de
“Tio Sam”. O molde desse tipo de propaganda política é encontrado nos movimentos
fascistas da primeira parte do século XX, como o Nazismo e a propaganda produzida
pela União Soviética.

No caso do cartaz brasileiro, a apelação a um fator psicologizante dos dizeres “Consulte


a sua consciência!” confunde a população e, logo, impedi-la de realizar uma
interpretação e conceituação sobre o que é proposto.

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Flusser explica que vivemos em um período pós-industrial, em que não sabemos mais se
as câmeras são nossos equipamentos que auxiliam no trabalho ou no lazer, ou se somos
funcionários dessas câmeras, que trabalham para seus programadores — funcionários
que constroem novas programações de acordo com instruções superiores, realizando
testes no aparelho para que ele possa atualizar-se. Contudo, a contradição que se impõe
é que não sabemos mais se desejamos, agimos e logo, vivemos, de acordo com as
indicações e programações realizadas pela máquinas.

Certo dia um amigo me questionou sobre o porquê as pessoas em um casamento não


conseguem mais viver a magia do ritual, mas com suas câmeras, registram, filmando,
fotografando ou transmitindo ao vivo, como se o próprio evento fosse criado para o
ritual do aparelho. As pessoas foram substituídas, não são mais o centro da imagem.
Agora, o próprio ato fotográfico é o evento. Meu amigo desconfiou da cena e incrédulo,
me contou sua experiência. Ele constatou o sepultamento da imagem tradicional e
vivenciou o casamento entre os humanos e os aparelhos — sob a luz da magia da
sedução dos programas — no altar religioso que virou mais um acessório no ritual.

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A outra imagem que mostrei para os meus alunos é uma pintura , realizada a partir do
cartaz político mostrado neste ensaio.

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Anace Lima. Acuse-os do que você faz (2020). Acrílica sobre tela.

A imagem destacada é uma pintura da artista Anace Lima⁵. A imagem “Acuse-os do que
você faz”, é uma apropriação do cartaz de convocação do M.M.D.C. e busca distorcer a
sua convocatória. Aqui, as pessoas não são mais responsabilizadas pela situação atual e
cooptadas a realizar a luta armada. A saída proposta pela arte é de que a população
indique os verdadeiros culpados pelos seus atos.

Se observarmos ambas as imagens, a imagem da convocatória do M.M.D.C. e a imagem


da artista, fica perceptível a diferença da magia presente. Por mais que a obra da artista
também tenha uma frase coercitiva, ela propõe um jogo de evidenciar uma prática das
propagandas totalitárias. A artista, assim, indica a necessidade de olhar para suas
próprias ações. Deste modo, o poder de sedução da propaganda é reduzida e sua
opacidade é evidenciada. Sua pintura transforma a mensagem propagandística em uma
imagem transparente, sendo de fácil compreensão a intencionalidade da imagem ao
deixar em destaque o inacabado da escrita.

Dado nosso contexto atual, não temos dúvida de que o movimento político e ideológico
da pintura da artista nos leva a questionar a situação atual do nosso país. O fundo sem a
bandeira denuncia o patriotismo e a desresponsabilização dos grupos políticos sobre
seus filiados. Aqui, a prática acusatória não é mais um apelo para própria consciência,
mas a expurgação da culpa, a responsabilização de quem agencia indivíduos em busca
de seus imbróglios políticos.

A mensagem é literal e direta. A função da imagem é servir como um mapa para ler o
mundo. Quem olha para a imagem “Acuse-os do que você faz” não consegue alienar-se
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no loop das imagens técnicas. O rastro que a artista imprime sobre a imagem quebra a
sedução. A correção da figura que pode ser interpretada como um erro, ou o movimento
incompleto do quadro, permite-nos questionar a imagem. Contudo, o elo estabelecido
entre a representação e o momento político atual, força-nos a rever a conjuntura atual
do nosso país.

O fator mágico dessa pintura faz sentido para mim e acredito que para uma grande
parcela que não é condizente com as práticas do governo atual e que foi
responsabilizada pelos erros dos outros. Essa magia presente na imagem que é
inacabada propositalmente, projeta-se em nossa mente e necessita de reflexão. Aqui,
não existe o tempo do instantâneo, nem a ação impensada sob a prática coercitiva. A
reflexão surge a partir do olhar que levamos para a imagem em conjunto com nossos
conhecimentos adquiridos, que requerem a criação de novos conceitos.

Por fim, o poder de sedução das imagens técnicas pode, inclusive, fazer-nos recuar
diante da pintura, que pode possuir o olhar aguçado que consegue diferenciar uma
imagem da outra. Essas artistas rompem não só com a lógica dos programas, como
também rasgam as imagens técnicas, distorcem as funcionalidades dos aparelhos,
enquadram novos olhares e zombam dos processos de captura de subjetividade
realizadas pelos movimentos imperialistas. É na prática dessas artistas que conseguimos
ver e questionar o mundo atual para criar possibilidades de existência das imagens e da
própria narrativa.

Notas

¹ CALICCHIO, Vera. «Verbete MMDC». Rio de Janeiro: FGV-CPDOC. Consultado em 03


de setembro de 2020. Disponível em:
https://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/mmdc

² FERNANDES, Mayã. A legitimidade programada da Fotografia-documento. Revista


Ano I: Ensaio, 2020. ISSN 2675–5599 Disponível em: https://medium.com/ano-i-
ensaio/a-legitimidade-programada-da-fotografia-documento-124c36e672cf

³ FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São


Paulo: Annablume, 2008, p. 15.

⁴ FLUSSER, Vilém. Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da técnica. Lisboa:
Relógio d’agua editores, 1998, p. 30.

⁵ Para ver mais sobre o trabalho da artista, acesse o seu site pessoal disponível em:
www.anacelima.com.br /
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Mayã Fernandes é escritora, ensaísta, podcaster e filósofa de bar. Doutoranda em Teoria


e História da Arte pela UnB, mestra em Metafísica e graduada em Filosofia pela mesma
universidade. É professora de Filosofia da Arte e Filosofia da Fotografia, desenvolvendo
estudo sobre a imagem abstrata na Antiguidade e na Arte Moderna. Seu site é
www.linhasdefuga.com.br.

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