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Universidade Federal de Uberlândia

Literaturas Africanas de Língua Portuguesa

Nome: Emanuelle Amaral Almeida Marçal


Matrícula: 11911LET061
Curso e período: Letras Português 7º período

Ensaio 2 sobre Terra Sonâmbula – Mia Couto

“Talvez , quem sabe, cumprisse o que sempre


fora: sonhador de lembranças, inventor de
verdades. Um sonâmbulo passeando pelo
fogo. Um sonâmbulo como a terra em que
nascera.” – Mia Couto

Após mais de dez anos lutando contra o colonialismo Europeu na Guerra


Ultramar, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique conquistam sua independência sua
independência entre as décadas de 1960 a 1970, no entanto os grupos políticos locais
começam a disputa pelo poder, dando início a inúmeras Guerras Civis violetas por todo
o continente. Em Moçambique, cenário de Terra Sonâmbula, a guerra civil chega ao fim
a apenas trinta anos atrás, em 1992, com um saldo final de milhões de mortos pela
guerra e pela fome. É no ano seguinte, que o biólogo, professor e jornalista Mia Couto
publica a obra considerada um dos dez melhores livros africanos do século XX,
ganhadora do Prémio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores: Terra
Sonâmbula.

Terra Sonâmbula baseia-se na própria terra natal do escritor moçambicano,


durante as intermináveis guerras civis, o livro transcreve em palavras a situação de um
país onde a guerra tornou-se diária a mais de vinte anos e seu povo de raízes ancestrais
que assistem desmoronar tudo que acreditavam. Assim, não é possível comportar em
uma linguagem pura, a descrição do que vive as terras moçambicanas, é nessa
dificuldade que encontramos o genioso encanto de Mia Couto ao se utilizar de inúmeras
metáforas e de uma linguagem altamente poética para suprir toda a intensidade de
África.

O segundo escritor de língua portuguesa a ganhar o Prémio Neustadt, Couto,


consegue unir em Terra Sonâmbula duas temáticas distintas, que só um escritor diverso
como ele conseguiria: sonho e guerra. A verdade, é que não apenas na ficção, mas fora
das páginas dos livros, o continente africano que se encontra a mais de 200 anos em
guerras constantes parece ter sido esquecido pelo restante do mundo. Esqueceu-se
também que África é formada por pessoas sonhadoras, de costumes ancestrais e uma
cultura que chega a ser mágica. Mia Couto faz questão de lembrar o mundo sobre sua
terra, nessa obra icônica, sonâmbulos são os moçambicanos, que vivem em constante
estado de vigília, mesmo durante o sono, visto que, o desejo de sonhar a muito lhes foi
tomado pelos sofrimentos da guerra.

“Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos


só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A
paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se
pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido
toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul.
Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram
ao chão, em resignada aprendizagem da morte.” (COUTO,
2007, p.9).

O fio condutor da narrativa é a perambulação do menino Muidinga e o velho


Tuhair dois sobreviventes sem laço sanguíneo, que na tentativa de fugirem da
devastação da guerra civil caminham juntos para os confins da terra agarrando-se na
vida um do outro. Durante esse percurso, o que lhes dá forças para continuar são os
cadernos encontrados em uma mala ao lado de um corpo alvejado por balas próximo a
um machimbombo incendiado no meio da estrada que se tornará um abrigo durante
alguns dias. Os cadernos estão cheios de escritos: estórias protagonizadas por Kindzu,
um conterrâneo do menino e do velho, e todos os dias ao anoitecer Muidinga passa os
ler, as palavras saem quase como um encantamento para que consigam abstrair-se do
mundo ao seu redor e Tuhair possa encontrar um pouco de acalento para dormir.

“O miúdo lê em voz alta. Seus olhos se abrem mais que a voz que,
lenta e cuidadosa, vai decifrando as letras. Ler era coisa que ele
apenas agora se recordava saber. O velho Tuhair, ignorante das letras,
não lhe despertara a faculdade da leitura. A lua parece ter sido
chamada pela voz de Muidinga. A noite toda se vai enluarando.
Pratinhada, a estrada escuta a estória que desponta dos cadernos:
Quero pôr os tempos...”(COUTO, 2007, p. 13)

O velho e o menino não sabem definir se as estórias de Kindzu são de fato reais
ou apenas ficcionais, nem mesmo certeza de que o homem existiu é possível ter, a única
verdade é que as narrativas dos cadernos amenizam as dores de suas vidas, essas que já
não é possível saber se também são reais ou apenas um logo pesadelo. Essa triste
incerteza que perpassa durante todo o enredo do livro resoluta em uma única afirmação
para nós, leitores de Terra Sonâmbula: a África precisa ser contada.

A literatura miacoutiana exerce uma de suas maiores funções, retratar e


reescrever a História, elevando-a em seu potencial e importância máxima e através da
linguagem poética inaugurar um novo capítulo na história do mundo e dos viventes.
Novaes Coelho, constata como Mia Couto e tantos outros escritores contemporâneos,
conseguiram retratar suas experiências e sua visão sobre o mundo a sua volta em obras
genuínas que carregarão para sempre períodos que jamais devem ser esquecidos ou
inferiorizados.

“A alta ficção portuguesa destes últimos anos mostra que,


embora as feridas provocadas pelo grande trauma das Guerras
Coloniais e do fim do Império Português do Ultramar, não esteja
ainda cicatrizadas, já teve início a tarefa de transformar a
tragédia de um momento histórico em matéria mítica, que as
futuras gerações conhecerão como a origem do novo tempo que
elas então estarão vivendo.” (COELHO, 2004, p.122).
Diante disso, é possível afirmar que em Terra Sonâmbula a literatura é tida como
uma verdadeira arma de resistência, onde apenas o ato de decidir ler se torna uma
rebeldia contra a morte, o medo e sofrimento:

“Tuahir volta a insistir para que extinga o fogo. (...) Mas o


miúdo resiste, tem medo do escuro. A fogueirinha ajuda a
vencer o medo. Ler os escritos do morto é um pretexto para ele
não enfrentar a escuridão. A decisão de Tuahir se impõe, reinam
as trevas.” (COUTO, 2007, p.35)

A literatura não é só uma revolta daquele que lê, mas também daquele que escreve.
Enquanto Muidinga e Tuahir lutava com as palavras contra a devastação da Guerra
Civil, Kindzu buscava um meio de manter sua história e a história de seus ancestrais
viva , e ainda, para nós, os segundos leitores dessa história, Terra sonâmbula é uma
fonte de conhecimentos e saberes provindos do continente africano e reconhecer como
afirma Maria Morais:

“Dessa forma, nesse romance, é clara a relação entre Literatura e


História, principalmente com a história de Moçambique. Mia
Couto quer resgatar a história em um momento crucial, o
período após a guerra civil moçambicana, para retirar daí, como
estratégia contra o esquecimento, o sublime ou o horror.“
(MORAIS, p.2)

Fato é que, após anos de destruição em África, que levou corpo e alma de
milhares de seus habitantes, é preciso revisitar o passado para compreender o que se
tornou no presente, mantendo viva a cultura da sociedade africana tradicional.
Reelaborando a tradição oral africana a literatura acende como o mais importante meio
de consolidação e perpetuação da história desse povo, Mia Couto, Pepetela, Agualusa,
Paulina Chiziane, são atualmente grandes responsáveis por esse trabalho. Podemos
concluir, como a pesquisadora Josilene Campos coloca:

“A ficção literária se apresenta como a “consciência” do fato, o


seu significado ultrapassa as categorias estéticas e os signos
linguísticos, é matéria para pensar o homem, a guerra e a
sociedade. A literatura é uma forma de diálogo que possibilita o
rememorar, o guardar o sentido de uma época, de um povo, é a
responsável pela catarse da guerra civil, pelo exorcismo dos
fantasmas de um passado doloroso.”

Referências:

CAMPOS, Josilene Silva. Terra Sonâmbula e a narrativa da guerra civil em Moçambique,


disponível em:
http://www.pr.anpuh.org/resources/anais/54/1502842448_ARQUIVO_TERCEIRO.pdf, acesso
em 2023.

COELHO, Nelly Novaes. A guerra colonial no romanesco. São Paulo: Departamento de


Letras Clássicas e Vernáculas, 2004.

COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

MORAIS, Maria Perla Araújo. A INVENÇÃO DA VERDADE: IDENTIDADE, HISTÓRIA E


LINGUAGEM EM TERRA SONÂMBULA, DE MIA COUTO, disponível em:
file:///C:/Users/IDEALCOPIADORA/Downloads/admin,+Gerente+da+revista,+3590-13149-1-
CE.pdf, acesso em 2023,

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