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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Flores, Giovanna G. Benedetto / Gallo, Solange Maria Leda. / Lagazzi, Suzy


/ Neckel, Nádia Régia Maffi. / Pfeiffer, Claudia Castellanos. / Zoppi-Fontana,
Mónica G. (orgs.)
Análise de Discurso em Rede: Cultura e Mídia - volume 3 / Giovanna G.
Benedetto Flores / Solange Maria Leda Gallo / Suzy Lagazzi / Nádia Régia
Maffi Neckel / Claudia Castellanos Pfeiffer / Mónica G. Zoppi-Fontana (orgs.)

Campinas, SP : Pontes Editores, 2017.

Bibliografia.
ISBN 978-85-7113-877-3

1. Análise do discurso 2. Linguística I. Título

Índices para catálogo sistemático:

1. Análise do discurso - 410


2. Linguística - 410
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Coordenação Editorial: Pontes Editores


Editoração e capa: Eckel Wayne
Foto da Capa: Giovanna G. Benedetto Flores
Revisão: Cibele Ferreira

Conselho Editorial:

Angela B. Kleiman
(Unicamp – Campinas)
Clarissa Menezes Jordão
(UFPR – Curitiba)
Edleise Mendes
(UFBA – Salvador)
Eliana Merlin Deganutti de Barros
(UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Eni Puccinelli Orlandi
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(UNB – Brasília)
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2017- Impresso no Brasil


sumário

APRESENTAÇÃO..................................................................................................9

Discurso, Interpretação e Materialidade

TRAJETOS DO SUJEITO NA COMPOSIÇÃO FÍLMICA........................23


Suzy Lagazzi

OS PERCURSOS DA ARTE CONTEMPORÂNEA PERFORMATIVA


ENQUANTO MATERIALIDADE A SER INTERPRETADA..................41
Gisela Reis Biancalana

O SUJEITO-OUTRO NA ARTE CONTEMPORÂNEA.............................55


Renata Marcelle Lara

Discurso, Mídia e Memória

O MOMENTO POLÍTICO BRASILEIRO E SUA DISCURSIVIZAÇÃO


EM DIFERENTES ESPAÇOS MIDIÁTICOS...............................................73
Freda Indursky

FOTOGRAFIA E MEMÓRIA: DA TEIMOSIA


DO REFERENTE AO OLHO DO CICLOPE.................................................89
Antonio Carlos Santos

ELIANE BRUM E OS QUE DEFENDEM A VOLTA


DA DITADURA......................................................................................................101
Christa Berger
NEUTRALIDADE E SILENCIAMENTO NO DISCURSO
JORNALÍSTICO......................................................................................................117
Giovanna G. Benedetto Flores

UMA REFLEXÃO SOBRE INTERVENÇÕES DOS


ESCRITORES E O EFEITO VERDADE.......................................................131
Vanise Medeiros

Discurso, Arquivo e Tecnologia

ENTRE A DISPERSÃO E O CONTROLE: LER OS


ARQUIVOS DA INTERNET HOJE..................................................................145
Evandra Grigoletto

FORMA-DISCURSO DE ESCRITORALIDADE: PROCESSOS


DE NORMATIZAÇÃO E LEGITIMAÇÃO...................................................171
Solange Maria Leda Gallo
Juliana da Silveira

Discurso, Corpo e Equívoco

SEM CORPO, SEM LÍNGUA, NUM ENTRELUGAR:


SOBRE OS SUJEITOS TRANSEXUAIS NA MÍDIA..................................197
Alexandre Sebastião Ferrari Soares

A VOZ: UM CORPO QUE NÃO ENGANA....................................................211


Maurício Eugênio Maliska

Corpos atravessados: opacidades


histórico-midiáticas................................................................................219
Ana Josefina Ferrari
Nádia Régia Maffi Neckel

Discurso, Cultura e Política

OBJETOS CULTURAIS, STARTUPS, AUTORIA: Autoria-fetiche


versus autoria-experimentação..................................................235
Mónica Graciela Zoppi Fontana
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Cultura, política e formação técnica durante o primer


peronismo (Argentina, 1952-1953)......................................................251
Mara Glozman

Cultura, ideologia, luta: esboços de


análise discursiva em embalagens..............................................269
Phellipe Marcel

OS SENTIDOS SOBRE O (TRABALHO DO) PALHAÇO


DE HOSPITAL NO DISCURSO JORNALÍSTICO.......................................285
Fernanda Luzia Lunkes

A METÁFORA DA JARARACA E SUAS RESSONÂNCIAS:


ENTRE PISAR O RABO OU A CABEÇA.......................................................297
Andréia da Silva Daltoé

Discurso, Escola e Leituras

UMA BASE NACIONAL CURRICULAR COMUM PARA


A LEITURA NAS ESCOLAS BRASILEIRAS: A POLÍTICA
E O POLÍTICO........................................................................................................315
Mariza Vieira da Silva

O ESPAÇO DE INTERPRETAÇÃO NA PROVA DO ENEM:


DA PERGUNTA AO ENCONTRO COM A INCOMPLETUDE
DOS SENTIDOS.....................................................................................................333
Gesualda Rasia

A ESCRITA ACADÊMICA DO ALUNO NA UNIVERSIDADE:


NA TENSÃO DOS DISCURSOS CIENTÍFICO, ACADÊMICO
E PEDAGÓGICO....................................................................................................347
Sandro Braga
Janaina Senem

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

APRESENTAÇÃO

O livro que ora tenho a honra e o prazer de apresentar é a


materialização da 3a Edição do Seminário Discurso, Cultura e
Mídia – o SEDISC – do Programa de Pós-Graduação em Ciências
da Linguagem da Unisul (Universidade do Sul de Santa Catarina).
Seminário este que já se tornou uma referência ímpar para os
estudos discursivos, funcionando por meio da reunião de grupos
de pesquisa em Análise do Discurso (AD), com o objetivo de pro-
porcionar um espaço de integração em redes de pesquisa a partir
de perspectivas comuns, congregando grupos por todo o território
nacional e da América Latina. Um verdadeiro acontecimento.
O livro se organiza em torno dos seis eixos temáticos lançados
pelo SEDISC e que estruturaram as mesas-redondas e simpósios
de discussões.
Sob o eixo Discurso, Interpretação e Materialidade, o livro se
abre com Trajetos do sujeito na composição fílmica, de Suzy Lagazzi,
da Universidade Estadual de Campinas. Neste texto, a autora
parte de sua posição teórica de que a composição fílmica impõe
uma interpretação plural, em que palavras, enunciados, imagens,
musicalidade, sons se imbricam na contradição constitutiva do jogo
entre diferentes materialidades significantes, processo no qual,
para Lagazzi, há pontos de ancoragem que enlaçam o sujeito no
cruzamento entre o olhar, a fala, a escuta, o gesto. Debruçando-
se em Moonlight, como objeto discursivo, a autora nos mostra os
enlaces que traçam sentidos e trajetos em meio a encontros e de-
sencontros de um sujeito que se busca. Nesse mesmo eixo, o leitor
se encontra com Gisela Reis Biancalana, da Universidade Federal
de Santa Maria, e seu Os Percursos da arte contemporânea performativa
enquanto materialidade a ser interpretada. A autora aborda o lugar

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

das artes, mais especialmente o das artes da cena, o do teatro e o


da dança, observando as performatividades artísticas. Seu olhar é
ao mesmo tempo histórico e antropológico e procura compreender
a arte contemporânea enquanto materialidade a ser fruída, a partir
de sua posição, como pesquisadora, amalgamada entre os saberes
e fazeres acadêmicos, a prática artística e as reflexões teóricas
que a subsidiam ou a analisam. Fechando esse eixo temático, O
sujeito-outro na arte contemporânea, de Renata Marcelle Lara, da
Universidade Estadual de Maringá, interroga sobre o sujeito na
arte contemporânea. A autora procura apreender este sujeito,
discursivamente, a partir de um percurso que leve em considera-
ção as derivas entre artista-obra-público e artista-obra-outro, ao
por em contato a arte e a psicanálise, colocando no foco de sua
compreensão a tríade que envolve artista, obra e público, e que a
autora defende como constitutiva do funcionamento (do) artístico.
No segundo eixo temático, Discurso, Mídia e Memória, somos
conduzidos, inicialmente, por Freda Indursky, da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, por meio de seu texto O momento
político brasileiro e sua discursivização em diferentes espaços midiáticos.
Indursky propõe, com seu texto, a construção de um dispositivo
teórico-analítico para examinar o modo como se dá a discursivi-
zação do momento político atual na mídia brasileira. A autora nos
mostra que nas mídias tradicionais, ocorre um jogo entre seleti-
vidade e repetibilidade que produz a saturação de determinados
sentidos em detrimento de outros, que são silenciados, produzindo,
assim, um efeito de realidade, o qual sustenta o efeito de verdade,
dentro de uma política do esquecimento, proposta pela autora. Nas
mídias eletrônicas, segundo Indursky, é restabelecido, também pela
repetibilidade, aquilo que foi omitido pelas mídias tradicionais.
Essa relação entre as mídias tradicionais e eletrônicas se dá, como
propõe a autora, por meio de uma disputa de interpretações entre
forças bastante desiguais, dadas as diferenças de suas condições de
produção e de circulação. O leitor então seguirá, nesse eixo temá-
tico, ao encontro de Fotografia e memória: da teimosia do referente ao
olho do ciclope, de Antonio Carlos Santos, da Universidade do Sul
de Santa Catarina. Santos nos propõe discutir a relação da foto-

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

grafia com aquilo que poderia ser chamado de seu referente, assim
como com a memória e com o outro. O autor propõe, também, o
aparelho fotográfico e a perspectiva, a partir da qual uma foto é
feita, como determinantes de um modo de ver. O autor nos mostra
que, mesmo que por efeito, mais do que uma memória absoluta, a
fotografia também seleciona, amplia ou ignora, opera e modifica,
constituindo-se no olho do ciclope, a partir do olho/sujeito que dá
sentido ao mundo. Prosseguindo nesse eixo, o leitor é conduzido
a voltar-se mais uma vez ao discurso jornalístico, encontrando-se
com Christa Berger, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos,
e seu Eliane Brum e os que defendem a volta da ditadura. A autora
estabelece um batimento contínuo entre o acontecimento de uma
entrevista com a jornalista brasileira, Eliane Brum, o de um livro,
do jornalista argentino Roberto Hersscher, e o acontecimento de
uma matéria escrita pela jornalista em 2014 – “Aos que defendem
a volta da ditadura”. No encontro entre esta entrevista de Elia-
ne Brum, sobre o jornalista e sua prática, e do livro de Roberto
Herrscher, sobre a jornalismo narrativo, Berger constrói seu
modo de abordar a matéria em análise. Ainda no terreno do jor-
nalismo, lemos Neutralidade e silenciamento no discurso jornalístico,
de Giovanna Benedetto Flores, da Universidade do Sul de Santa
Catarina. A autora procura compreender modos de produção dos
efeitos de neutralidade e silenciamento na mídia tradicional, ana-
lisando três materialidades diferentes: a série Os dias eram assim,
uma reportagem do JN sobre a greve geral do dia 28 de abril de
2017 e duas postagens no facebook sobre a série da Rede Globo
e o golpe de 1964. Com Giovanna, o leitor compreende que é
pela memória discursiva e pela repetibilidade que a mídia produz
efeitos que são interpretados, pelos telespectadores, como neutros
e imparciais. Ao mesmo tempo, somos levados a compreender
que é pelo silêncio constitutivo que as condições de produção do
funcionamento do discurso jornalístico são apagadas, de modo a
interditar outros sentidos possíveis, permitindo a produção do
efeito de verdade nesse discurso, que nada mais é, conforme nos
diz Flores, do que uma direção de sentidos, entre outras possíveis.
Fechando este eixo temático, Vanise Gomes Medeiros, da Uni-

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

versidade Federal Fluminense, nos apresenta Uma reflexão sobre


intervenções dos escritores – e o efeito verdade em que reflete sobre o
espaço da nota de rodapé. Considerando que há duas dimensões
para estas notas – uma que se volta sobre a palavra e outra que se
volta sobre coisas a saber –, a autora privilegia, neste trabalho, a
partir de notas produzidas no século XIX, as notas incidindo sobre
o dizer, sobre o que se narra, e, assim, como Medeiros formula,
sobre a escrita como intervenção sobre o fazer literário. Isto não
significa, esclarece a autora, que a primeira dimensão, nota sobre a
palavra, não constitua também uma intervenção. Apenas a ordem
de intervenção seria distinta, sendo, neste caso, da ordem de ates-
tar, confirmar, negar, refazer, reiterar, entre outros movimentos,
produzindo um lugar de evidência, de sustentação, de garantia, de
atestação do dizer trabalhando, deste modo, o que seria indicado
como verdadeiro, já que amparado pela referenciação, conclui
Vanise Medeiros.
Adentramos, então, no terceiro eixo temático do livro – Dis-
curso, Arquivo e Tecnologia –, com o texto Entre a dispersão e o
controle: ler os arquivos da internet hoje, de Evandra Grigoletto, da
Universidade Federal de Pernambuco. A autora parte da discussão
iniciada por Pêcheux, em seu artigo Ler o arquivo hoje, observan-
do, para além da informática, os arquivos disponíveis para leitura
na internet, se perguntando sobre os modos de os dispositivos
tecnológicos determinarem os trajetos de armazenamento e de
leitura dos arquivos na rede; sobre os modos de registro/arma-
zenamento de um determinado acontecimento histórico nos ar-
quivos da internet; e sobre o papel do sujeito nessa relação entre
registro e leitura desses arquivos. Para tanto, a autora toma, para
análise, um acontecimento histórico da cena política brasileira:
o processo de impeachment de Dilma Rousseff, compreendendo
que a internet, ao mesmo tempo em que aponta para a dispersão,
também controla/regula os trajetos de sentidos do sujeito-leitor,
configurando-se em um espaço constitutivamente contraditório,
onde o efeito ideológico funciona na sua forma mais perversa, diz
Grigoletto: aquela que produz o efeito de liberdade, de livre escolha
do sujeito. A autora nos mostra, concluindo, que há mais controle

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

do que dispersão na internet, indicando-nos a impossibilidade de


tudo poder dizer e arquivar. Nessa mesma direção, Solange Gallo,
docente da Universidade do Sul de Santa Catarina, e Juliana da Sil-
veira, que realiza pós-doutoramento nesta Universidade, trazem,
com Forma-discurso de escritoralidade: processos de normatização e
legitimação, a normatização que os espaços enunciativos informa-
tizados encerram e que acontece em todos os níveis, inclusive e
principalmente, no nível semântico. Ou seja, para as autoras, toda
e qualquer produção de sentido, com base material digital, está
determinada por parâmetros formais normatizadores, próprios do
digital, e que resultam em determinações do sentido e do sujeito,
como quando estamos, por exemplo, apontam as autoras, diante
das opções limitadas de uma postagem do Facebook entre curtir,
comentar ou compartilhar. Nesse sentido, conforme elas escrevem,
a interpretação, nessas instâncias normatizadas, é determinada
pelo próprio software e, nesse nível, o sujeito reage ao texto res-
pondendo “sim” ou “não”, sem que haja interlocução, o que vem
sendo chamado, por Solange Gallo, de escritoralidade: forma de
discurso digital que normatiza o sentido e o sujeito por meio de
sua condição material específica, determinando, assim, o escopo
dentro do qual os sujeitos estarão em interlocução. As autoras
ainda buscam compreender, nesta dimensão da escritoralidade, o
efeito de legitimidade nestes discursos, determinado, em parte, por
um processo de quantificação (quanto mais circula, mais legítimo)
que se materializa, por exemplo, nos compartilhamentos. Tendo
essa discussão como foco, Gallo e Silveira procuram discutir a
relação entre normatização, por um lado, e legitimação por outro,
em discursos que se formulam em espaços enunciativos informa-
tizados, tentando discernir em que nível se processam essas duas
condições de (im)possibilidade do digital.
Passamos, agora, ao eixo Discurso, Corpo e Equívoco, inicado
por Sem corpo, sem língua, num entrelugar: sobre os sujeitos transexuais
na mídia, de Alexandre Sebastião Ferrari Soares, da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná, em que analisa discursos de/sobre
sujeitos transexuais, observando a relação entre a língua, o cor-
po e a posição-sujeito nestas discursividades. Para o autor, como

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

esses corpos não correspondem aos sentidos estabilizados pelos


significantes “homem” e “mulher”, somos levados a questionar a
constituição de um sujeito que situa seu corpo em um entrelugar:
entre as posições binárias legitimadas em nossa sociedade. Ferrari
Soares nos mostra que no corpo do sujeito trans se inscreve uma
resistência à relação causal que se construiu também no discurso
da ciência sobre haver uma dependência entre o sexo biológico e a
identidade desses sujeitos. É dessa dualidade que emerge o equívoco,
demarcando pontos de fuga que representam, para o autor, modos
de resistência que são próprios da ordem da língua. Conforme com-
preendemos com o autor, o sujeito trans fura a língua como modo de
resistência aos sentidos que não podem significá-lo. Seguimos com
Maurício Eugênio Maliska, da Universidade do Sul de Santa Ca-
tarina, e seu texto A voz: um corpo que não engana, em que mobiliza
algumas noções acerca de discurso, corpo e equívoco, de modo a
mostrar que a linguagem, de forma geral, está inscrita na ordem do
equívoco. Acrescenta a isso, por meio da psicanálise, sua reflexão
sobre o que não seria equívoco, apontando, por hipótese, para a voz
como sendo algo que não está na dimensão do equívoco, na medida
em que ela está inscrita no corpo; a voz, para o autor, seria um real
do corpo inequívoco. De seu lugar de psicanalista, e conversando
com a Análise de Discurso, Maliska afirma a linguagem como a
dimensão do equívoco, uma vez que não é transparente e escapa
entre a representação e a coisa. O autor esclarece que, na psicaná-
lise, a hipótese do inconsciente produz uma divisão do sujeito que
fica seccionado entre sua intencionalidade consciente e seu efetivo
dizer inconsciente e que, portanto, há um hiato entre o que se diz
e o que se pensa ou se almeja dizer, a voz, para o autor, imprimiria
uma marca, seria um ato político que não está no discurso, mas
sim no corpo, produzindo efeitos no discurso. Por sua vez, e fe-
chando este eixo, Ana Josefina Ferrari e Nádia Régia Maffi Neckel,
da Universidade Federal do Paraná e da Universidade do Sul de
Santa Catarina, respectivamente, nos apresentam o texto Corpos
atravessados: opacidades histórico-midiáticas. As autoras refletem
como se constitui o corpo, enquanto materialidade discursiva, na
mídia e na história, pensando particularmente o corpo da mulher,

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

que não se contrapõe ao do homem, conforme esclarecem as au-


toras, mas que se constitui na sua própria discursividade, sendo
também, portanto, lacunar, equívoco e sujeito a falhas. Para além
dessa reflexão, as autoras propõem pensar, ainda mais especifica-
mente, o corpo da mulher negra, indicando-nos que este corpo é
configurado pelo funcionamento duplo de um corpo-mercadoria
e de um corpo-invisibilidade, em que, dada a visibilidade da/na
sociedade do espetáculo, é atravessado pelos sentidos de excentri-
cidade e precariedade, ao longo da história, sendo exposto como
corpo bizarro, comercializado, constituindo-se em um corpo de
luta e interdições: resistência/revolta/dominação.
Sob o eixo Discurso, Cultura e Política, Mónica Graciela
Zoppi Fontana, da Universidade Estadual de Campinas, abre as
discussões com seu texto Objetos culturais, startups, autoria – autoria-
fetiche versus autoria-experimentação. Nele, a autora analisa diversas
modalidades de autoria científico-acadêmica presentes no espaço
digital e na mídia, descrevendo os efeitos de seu funcionamento
sobre a representação da figura do intelectual, a partir de um
corpus que reúne textos produzidos sobre a estreia de um filme
autonomeado como docudrama; de um vocabulário enciclopédico
online autonomeado como livro-invenção e de um livro-intervenção
disponível online. Suas análises e discussões nos levam a refletir
sobre a questão da autoria e da produção intelectual que estão
inseridas em uma discussão maior sobre as avaliações das uni-
versidades e de seus docentes, o que incide nas discussões sobre o
financiamento público de pesquisa e ensino superior. A autora nos
lembra que, mesmo reconhecendo o uso deliberado e interessado da
discussão sobre o financiamento público que tem estado presente
na mídia, não podemos nos furtar a refletir sobre os efeitos desse
discurso e sobre a legitimação desse imaginário. O que nos leva
a pensar, segundo ela, no campo das ciências sociais e humanas,
nas determinações conjunturais que significam, na contempora-
neidade, a figura e a prática do intelectual. Seguindo neste eixo,
encontramo-nos com Mara Glozman, da Universidad de Buenos
Aires, e seu texto Cultura, política e formação técnica durante o pri-
mer peronismo (argentina, 1952-1953). Nele, a pesquisadora do

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas nos


mostra a emergência, em 1952-1953, de uma rede de formulações
na qual o significante cultura comparece em grande quantidade e
relacionado, articulando-se, com significantes que pertenceriam a
outros “campos” discursivos, em especial os relativos à formação
técnica dos operários. Ao tempo de nos apresentar sua análise, a
autora também se propõe a refletir teoricamente sobre o problema
da configuração de unidades de análise no trabalho de arquivo,
apontando para a questão heurística de que algumas dessas uni-
dades parecem funcionar enquanto evidentes, clamando por in-
terpretação, enquanto outras parecem resultar mais diretamente
de uma costura discursiva, dentro de um arquivo heterogêneo de
textos, que faz elementos díspares e dispersos resultarem em uma
unidade construída pelo pesquisador. Seguindo por entre reflexões
heurísticas, vamos ao encontro de Phellipe Marcel Esteves, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e seu texto Cultura,
ideologia, luta: esboços de análise discursiva em embalagens, em que
o autor reflete sobre o modo de a Análise de Discurso lidar com
o estatuto ou a ordem da Cultura em seu dispositivo teórico e
analítico. O autor lembra, por exemplo, que Althusser é duro em
sua reflexão sobre a teorização empreendida pela antropologia
estrutural de Lévi-Strauss que, por vezes, tocou na questão da
ideologia ao tratar de seu objeto de estudo – a cultura –, cons-
truindo a possibilidade de uma coincidência epistemológica entre
cultura e ideologia, o que coloca um problema para a AD. Partindo
de sua posição teórico-epistemológica de que cultura e ideologia
não se sobrepõem, o autor busca, neste texto, modos de mobilizar
a noção de cultura no aparato analítico da AD, contribuindo, con-
forme sua qualificação, para o caráter cáustico da AD. Isso é feito
por meio de análises de embalagens de produtos alimentícios. Há,
também, uma parte introdutória que se relaciona com a temática de
fundo do autor, que seria a indicação de que haveria um processo
de gramaticalização da AD que apagaria seu caráter e potencial
revolucionários. Esteves vê na possibilidade de tomar cultura e
ideologia como termos intercambiáveis um sintoma de um movi-
mento mais geral também explorado pelo autor no decorrer de

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

seu texto que implicaria nessa gramaticalização. Partimos, então,


para o texto Os sentidos sobre o (trabalho do) palhaço de hospital no
discurso jornalístico de Fernanda Luzia Lunkes, da Universidade
Federal do Sul da Bahia, em que a autora procura situar a imagem
produzida, no discurso jornalístico, sobre o palhaço de hospital.
Seu gesto de análise pressupõe colocar em suspenso, por exemplo,
evidências que comparecem em diferentes condições de produção
sobre a relação palhaçaria-espaços de saúde e que implicam na
naturalização de uma equivalência entre a presença do palhaço
e o riso, ou seja, o palhaço de hospital garantiria, naturalmente,
a comicidade. Evidência que se desdobra, segundo a autora, em
outras relações igualmente evidentes como a de que a presença do
palhaço contribuiria para a melhoria dos efeitos de ambiência do
espaço de saúde, do quadro de saúde dos pacientes e contribuiria
ainda para a humanização na saúde. Para Lunkes, é preciso levar em
consideração que o imaginário do corpo discursivo do palhaço atua
no batimento entre reconhecimento e estranhamento, em um jogo
polissêmico de sentidos, descontruindo esses efeitos de garantia
sobre a comicidade diante de seu comparecimento. Fechando esse
eixo, temos A metáfora da jararaca e suas ressonâncias: entre pisar o
rabo ou a cabeça, de Andréia da Silva Daltoé, da Universidade do
Sul de Santa Catarina. A autora trabalha com o enunciado formu-
lado pelo Ex-Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva,
no decorrer de seu pronunciamento após ter sido conduzido pela
Polícia Federal para depor sobre a Operação Lava Jato, em março
de 2016: “Se quiseram matar a jararaca, não bateram na cabeça,
bateram no rabo, e a jararaca tá viva como sempre esteve”. Para a
autora, esta metáfora repercute fortemente em diferentes esferas,
num movimento de retomada, ressignificação e contradição, o
que a levou a procurar observar seu funcionamento no discurso
jurídico, religioso e midiático, de modo a compreender um pouco
do cenário político atual. Para Daltoé, o trabalho de interpretação
sobre as metáforas enunciadas por Lula incide, recorrentemente,
na defesa de um purismo linguístico, mas, todavia, esse imaginário
de purismo desloca, significativamente, o que realmente importa:
o trabalho do político na língua, ou seja, as relações de poder tra-

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

vadas nesta arena, independentemente de qualquer normatização.


É, assim, que a autora considera esta metáfora, assim como outras
enunciadas por Lula, como enunciados que infringem, de algum
modo, regras da língua de madeira de estado, tal como formulam
Gadet e Pêcheux, em seu livro La Langue Introuvable, que, por
sua vez, trabalha na tentativa de apagamento de sentidos, de si-
lenciamento, de produção de não-sentido, quando algum sentido
ameaça, tal como formulado por Orlandi.
Caminhamo-nos ao sexto e último eixo – Discurso, Escola
e Leituras – que é aberto por Mariza Vieira da Silva e seu texto
Uma base nacional curricular comum para a leitura nas escolas brasi-
leiras: a política e o politico. A autora explora os processos discur-
sivos presentes em políticas públicas de educação, procurando
compreender, especificamente os modos de organização de uma
política de escolarização da leitura em língua portuguesa. Seu
gesto leva em consideração o confronto que se dá do simbólico
com o político, na textualização dessas políticas; confronto este
marcado, como afirma Vieira da Silva, pela divisão do sentido, do
sujeito e da sociedade. Em seu movimento analítico de mostrar
os mecanismos dos processos de significação que comandam a
textualização dessas discursividades, a autora nos indica que,
na relação entre os PCNs e a terceira edição da Base Nacional
Curricular Comum (BNCC) de 2017, por exemplo, a concepção
de língua como código e de leitura como decodificação, que já
havia sido negada nos PCNs, retorna de forma significativa na
BNCC de 2017, bem como outras questões teóricas que já eram
consideradas suficientemente criticadas pelos linguistas, como a
do “enriquecimento do vocabulário” que pressupõe a existência de
linguagem/língua pobre. Por outro lado, a autora percebe que a
ênfase nas habilidades se mantém em ambas políticas e direciona
a leitura para um saber operacional que legitima as performances,
organizando a produção de sentidos em série e possibilitando a
mensuração da aprendizagem pelos instrumentos de avaliação.
Por fim, a autora convida para uma agenda de pesquisa que se
ocupe dos movimentos nos discursos acadêmicos e nos discursos
dos documentos oficiais, os quais nos oferecem um campo vasto

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

de estudos e pesquisas a serem empreendidos. Continuando neste


eixo, vamos ao encontro de Gesualda Rasia, da Universidade Fede-
ral do Paraná, com O espaço de interpretação na prova do enem: da
pergunta ao encontro com a incompletude dos sentidos. Rasia se propõe
discutir a prática de leitura-interpretação no espaço escolar, na in-
junção específica da avaliação, especialmente em provas do ENEM,
tendo em vista os limites tensos entre os polos da objetividade e
da subjetividade. A autora destaca que as provas, objetivas, têm
apenas uma resposta considerada correta, o que diria respeito,
para ela, ao modo como se considera a relação entre linguagem
e realidade pelo viés da interpretação. Em contrapartida, coloca
a autora, é importante que se coloque nessa relação de avaliação
sob a perspectiva discursiva que concebe a leitura como prática
histórica na qual aspectos exteriores à materialidade linguística
são partícipes do sentido, o qual não é unívoco e nem estável. No
entanto, como nos indica Rasia, essa relação discursiva não é levada
em consideração e, por isso mesmo, os sujeitos estudantes são não
somente instados à avaliação, como também lhes é dado o modelo
a partir do qual devem enquadrar seus saberes. O que produz
como efeito, segundo a autora, que a relação com a construção do
conhecimento reste enformada, conformada pela Formação ide-
ológica dominante. Fechando este eixo, lemos A escrita acadêmica
do aluno na universidade: na tensão dos discursos científico, acadêmico
e pedagógico, de Sandro Braga e Janaina Senem da Universidade
Federal de Santa Catarina. Os autores empreendem uma refle-
xão acerca dos modos de o sujeito aluno-universitário ocupar a
posição de autor na escrita acadêmica que é significada, por sua
vez, hegemonicamente, como uma escrita sustentada por uma
objetividade científica. Braga e Senem mostram como o processo
de escrita na academia incide em uma busca de conter a presença
do sujeito que escreve em nome de uma pretensa transparência da
linguagem e dos sentidos (únicos) de representação do discurso
científico. Realçam, ainda, que a autoria na escrita acadêmica pro-
duzida por alunos no ensino superior caracteriza-se pela tensão
entre os sentidos postos pelos discursos científico, acadêmico e
pedagógico que se complementam de forma contraditória. Disso

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

resulta, para os autores, que o discurso acadêmico tomado como


objeto do discurso pedagógico não se configura como discurso da
ciência, necessariamente; portanto, o discurso acadêmico e o dis-
curso científico não deveriam ser compreendidos como sinônimos,
defendem os autores. Isso porque, para eles, o discurso acadêmico
não é o discurso científico, mas sim um discurso sobre a ciência
em que a própria ciência se constitui. Com essa compreensão,
os autores indicam que o discurso acadêmico – quando tomado
como objeto de ensino e aprendizagem – volta-se para o ensino
do discurso da ciência e, também, para o processo de produção
de conhecimento, ao mesmo tempo, podendo constituir-se ou não
como produção científica. Chegando ao fim dessa apresentação, me
resta exaltar a força científico-política dos textos aqui reunidos
que expressam o que vem sendo realizado em termos de pesquisas
em Análise de Discurso no Brasil e na América Latina, de modo
consistente e potente, por diversos pesquisadores, exercendo seu
papel ético enquanto analistas de discursos, e, portanto, não se
deixando entregar ao imaginário, suspendendo suas evidências,
proporcionando-nos espaços de luta teórica e política própria da
Análise de Discurso.
Bravo ao SEDISC!

Claudia Castellanos Pfeiffer


Agosto de 2017

20
Discurso, Interpretação
e Materialidade
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

TRAJETOS DO SUJEITO NA COMPOSIÇÃO FÍLMICA

Suzy Lagazzi
Universidade Estadual de Campinas (unicamp)

1. Moonlight

O olhar nos captura na intensidade do preto. Um olhar que se


entrega na mirada direta de um outro. Um olhar negro que
se diz Little, Chiron, Black.
Imagem 1:

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Um olhar que se recolhe na esquiva de ser focado, muitas vezes


se negando ao encontro de outros olhares, mas que nos encontra
na eloquência de sentidos represados.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Um olhar que se entrelaça a gestos e palavras, a músicas que


marcam o ritmo das cenas, a silêncios que imprimem extrema in-
tensidade aos momentos, a cores que nos demandam e envolvem.
Diferentes materialidades significantes compondo uma relação
com o olhar e nos desafiando em interpretações que buscam co-
nhecer um pouco mais de Little, Chiron e Black.
Moonlight nos enlaça e vai trançando sentidos e trajetos em
meio a encontros e desencontros de um sujeito que se busca. Em
Moonlight busco o desafio de algumas compreensões, na imbri-
cação das diferentes materialidades significantes que compõem
o filme.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

O encontro entre Little e Blue marca o primeiro momento


nesse trajeto de busca. Um encontro em que, de início, a interlocu-
ção se constrói com indagações que se defrontam com a ausência
de respostas, enunciados que se constrangem ao se confrontarem
com um rosto que teima em não reagir, com um olhar que mira e
hesita, que se fecha e se volta para dentro, com um corpo que recua
em cautela. Palavras e imagens vão se compondo numa cena em
que a sonoridade ressalta a dureza de um momento que tateia o
não conhecido. O ressoar das batidas na porta, do tapume sendo
arrancado do vão da janela, de cacos caindo no chão, ecoa forte
dentro do ambiente que se abre para a luz que o invade juntamente
com o corpo adulto de Blue. Força, virilidade, ameaça, acolhi-
mento? O contraste do branco da calça com o vermelho e o azul
que estampam a camisa de Blue quebra o abandono do ambiente,
condizente com o abandono do menino que ali se escondera. O
barulho da rua entra pela porta, que ao ser aberta por Blue, se
afirma como uma possibilidade de enfrentamento de um exterior
que amedronta mas não poderia ser pior que aquele refúgio hostil:
“Venha”, diz Blue a Little, “Não pode ser pior aqui fora”.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

A câmera se alterna em tomadas que nos aproximam de Little.


Posicionada na altura do seu olhar e, algumas vezes, atrás dele,
em nenhum momento temos a visão de Blue sendo explorada pela
câmera. Mesmo nas tomadas feitas de Little, a altura da câmera
não corresponde ao olhar de Blue. São ângulos que dão ao espec-
tador a dimensão da visão de Little para fora, para o mundo. É
Blue quem invade o mundo de Little entrando pela janela. É Blue
quem, porta afora, convida Little a sair, a ir para o mundo.
E o mundo que se abre para Little na companhia de Blue traz
descobertas e novos sentidos.

A câmera foca a surpresa de Blue diante da presença de Little.


Uma presença em espera, que aguarda. O som da porta do carro
sendo fechada, o som dos passos de Blue... Uma aproximação que
vai tateando possibilidades. O branco da parede encontra o branco
na camiseta de Blue e na bermuda de Little. O branco e o negro se
ressaltam em contraste. O azul fica pincelado sobre a mureta com
objetos indistintos e no tênis de Little. O vermelho da camiseta
coloca Little em destaque na cena. Nada é dito. Nessa composição
que demanda o olhar do espectador, também este fica à espera do
próximo gesto.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

O corte da câmera nos traz o som do mar e das ondas que-


brando na praia. As cores impactam. A bermuda de Blue, em
tons de azul e laranja, fisga nosso olhar, juntamente com o corpo
negro e torneado, semidespido. O azul compõe também as toalhas
de banho e outros detalhes de fundo nessa paisagem de praia. O
vermelho na camiseta de Little ainda se destaca em contraste
com a bermuda branca. Novo convite de Blue para Little: “Venha,
cara.” O pequeno se levanta e a câmera fecha o plano. A camiseta
vermelha fica em evidência e no detalhe de listas o espectador é
novamente pego no jogo das cores, entre os azuis, o branco e o
vermelho. O rosto de Little espreita, avalia. O espectador, mais
uma vez em espera, acompanha esse intervalo. O olhar de Little
está fixado em algo que não vemos. Novo corte e o mar invade a
tela, juntamente com o azul.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

A câmera, posicionada no nível da água, situa o espectador


quase dentro do mar, acompanhando Little nessa nova experiên-
cia. Mar e céu têm seus limites diluídos em nuances de azul claro
a acinzentado. O barulho da água quebrando vem acompanhado
de uma melodia que se sustenta numa percussão discreta e vai
crescendo em agudos produzidos num solo de cordas. Essa melo-
dia acompanha a relação de Little com a água e o mar. No gosto
salgado seu corpo vai sentindo novos prazeres, experimentando
possibilidades e testando limites. O agudo na melodia das cordas
cresce em tensão e marca o ritmo dessa relação.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Blue é o porto seguro, o braço que ampara, o modelo que


dá referência, a vibração da conquista. É Blue quem diz a Little:
“Neste momento você está no meio do mundo”. O enunciado vem
ao encontro do título da música em cena: The Middle of the World,
de Nicholas Britell. O corpo já flutua, os braços nadam e Little
explora esse mundo novo, esse “fora” no qual ele já consegue ser
acolhido. A melodia cessa e o barulho da água marca uma nova
sintonia para Little.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Lado a lado, Blue e Little são tomados em closes fechados


numa nova cena.

Folhas de coqueiro balançam desfocadas ao som das ondas


quebrando na praia, o que compõe um fundo difuso para a cena.
A proximidade da câmera foca os dois rostos negros e, além de
Blue e Little, nada parece caber nessa cena. A câmera se alterna
entre os dois rostos. O espectador fica colado a esta relação entre
eles. A narrativa de Blue toma corpo. Ele discorre sobre a força
dos negros no mundo, sobre a importância de se decidir a respei-
to da própria identidade: “Uma hora você tem que decidir quem
será. Não deixe que decidam por você.” Importa o que vai sendo
contado por Blue. Importa o que é escutado por Little. O encontro
entre Little e Blue deixa marcas na história de Little. Blue é uma
referência que se historiciza em Black.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

O rosto que se levanta da pia cheia de gelo ao som do funk


surpreende o espectador. Com exceção da música, vemos a mesma
cena em que Chiron, anos atrás, levanta seu rosto brutalmente
espancado por Kevin, a mando de Terrel. Mas nesta reedição da
cena, o rosto que se mostra não nos lembra o adolescente Chiron,
mas sim Blue. Blue se faz presente fisicamente em Black. Onde
está Chiron? Onde está Little? No processo de identificação que
constitui esse sujeito, há muito a perguntar.
Blue e Black? Black e Blue? Qual a melhor ordem?

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

A mesma coroa dourada enfeita o painel do carro. Também


os dentes se revestem de ouro. Os mesmos brincos dão destaque
ao rosto. Metonímias de que metáfora?
O corpo forte e torneado se impõe em Black. Nenhum rastro
do franzino e esquivo adolescente Chiron parece visível. No entan-
to, não é o que afirma Kevin ao ouvir de Black que ele é traficante:
“Isso não é você, Chiron.” Ao espectador, indagações. Qual é a
relação entre Black, Chiron e Little? Onde os limites se perdem e
onde se definem nesse processo de indentificação?
Little, Chiron, Black. Três nomes para um mesmo sujeito.
Três momentos da vida de um mesmo sujeito. Mas podemos, de
fato, afirmar que se trata de um mesmo sujeito? A resposta hesita
no equívoco entre o mesmo e o diferente. Little, o garotinho acu-
ado por sua mãe? Chiron, o adolescente acuado por suas dúvidas
e buscas? Black, o adulto acuado pela exigência de se fazer forte?
Muitas perguntas ressoam em Moonlight.
Entre a dura batida do funk, que nos apresenta um Black forte
e poderoso, e o gingado macio do soul, que nos mostra Black em

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

sua busca afetiva, Moonlight traz dois ambientes opostos e relações


dissonantes. Um sujeito dividido.
Na adolescência Chiron se nega como Little. Não queria
mais que o chamassem Little. Mas lhe faltou força para se im-
por em sua vontade. No entanto, chega o momento do rompi-
mento, o momento em que ao se olhar no espelho com o rosto
espancado, devastado, outros sentidos se insurgem na cadeia
significante, buscando suturar os cortes e aplacar as dores. É o
momento em que Black começa a fazer sentido para Chiron, o
momento em que a relação entre Little e Blue começa a tomar
corpo. “Lembre-se”, disse Blue a Little, “não há lugar no mundo
sem negros”, “fomos os primeiros nesse planeta”, “não deixe
que decidam quem você será”.
De Little a Black, os caminhos foram traçados por memórias
em contradição. Little, Chiron e Black se imbricam no trajeto de
busca apresentado por Moonlight, se imbricam nos olhares que
marcam esse trajeto de busca.
“Por que me ligou?”, pergunta Black a Kevin. E seu olhar
insiste, recusando a resposta esquiva. Finalmente a resposta
chega: “Ele tocou a música, cara.” E é a música quem responde
pela desrazão de Kevin ter ligado: “Olá, estranho, é tão bom te
ver de volta...”.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Os planos fechados da câmera se alternando nos rostos de


Black e Kevin em meio às pausas verbais estruturam a formulação
nesta cena, de modo que a imbricação entre a música, as palavras
e os olhares de Kevin e Black compõem uma resposta ao que não
pode cessar de ser perguntado. “Por que me ligou?”

2. Composição, imbricação, materialidade


significante

A composição fílmica em Moonlight me demandou num pro-


cesso de interpretação plural, em que os sentidos foram se pro-
duzindo na contradição constitutiva do jogo entre as diferentes
materialidades significantes. Sobre este ponto, retomo algumas
considerações que reclamam investimento.
Em meu texto “O recorte significante na memória”1, afirmei que
o batimento entre estrutura e acontecimento referido a um objeto
simbólico materialmente heterogêneo requer que a compreensão do
funcionamento discursivo seja buscada a partir das estruturas mate-
riais distintas em composição. Ressaltei, naquele momento, que o ter-
mo ‘composição’ se distinguia de complementaridade e que entendia
a composição como uma relação pela contradição entre as diferentes
estruturas materiais constitutivamente falhas e incompletas.
A compreensão da falha estrutural e da incompletude simbó-
lica são pontos essenciais da fundamentação materialista que tomo
por base em meus trabalhos e que tem na contradição um de seus
eixos de apoio. A contradição entendida como impossibilidade de
síntese na interpretação, como tenho reiterado insistentemente,
só tem espaço se as relações de estruturação permitem reestrutu-
rações e se as relações simbólicas permitem derivas de sentidos.
Dizer que a composição material se configura pela contradi-
ção é propor que a imbricação das diferentes materialidades que
compõem um material de análise se faz pelo movimento na incom-
pletude e na falha de cada materialidade, que cada materialidade
1 Apresentado no III SEAD – Seminário de Estudos em Análise do Discurso, UFRGS, Porto
Alegre, 2007. Publicado em O Discurso na Contemporaneidade. Materialidades e Fronteiras.
F. Indursky, M. C. L. Ferreira & S. Mittmann (orgs.) (2009).

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

significante se demanda na(s) outra(s) com que compõe modos de


formulação, uma demanda pela constante possibilidade de estar em
movimento, estar em relação a esta(s) outra(s) materialidade(s).
Volto a um ponto importante. Afirmamos, a partir de Pêcheux
(1975), que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a
materialidade específica do discurso é a língua. Quando tomamos
para análise materiais que se estruturam por imagens, músicas, sons,
gestos..., nos colocamos uma questão de cunho teórico-analítico,
já que nesse caso o discurso se materializa em outras relações que
não verbais, e já que se foi o tempo em que a Análise do Discurso
se restringia a materiais verbais. Portanto, qual a materialidade do
discurso se falamos de objetos simbólicos materialmente heterogê-
neos? Respondo a isso insistindo que a materialidade do discurso é
a linguagem em suas diferentes materialidades significantes, quais
sejam: a palavra, a imagem, o gesto, a musicalidade, o aroma, a cor, o
enunciado, a cena, o corpo, a melodia, a sonoridade, enfim, diferentes
relações estruturais simbolicamente elaboradas pela intervenção
do sujeito. Vejamos que a língua concebida como materialidade do
discurso não está dissociada do sujeito, que por ela se constitui. Da
mesma forma, o aroma, a cor, a imagem, o gesto... se constituem em
materialidade significante quando em relação com o sujeito, consti-
tuindo memória discursiva e, assim, se constituindo em linguagem.
Ressalto que a materialidade significante nos remete à estrutura e
à estruturação, a um suporte que permita a produção de sentidos
para sujeitos. Dessa forma, não se trata de sinonimizar materialidade
significante e material de análise2. Trata-se de considerar o modo
de estruturação dos materiais tomados para análise, o modo como
materializam discursos. Trata-se, enfim, da formulação discursiva.
Portanto, um filme tomado para análise não é uma materialidade
significante. Também não o é um anúncio, um documentário, um
livro, uma peça de teatro, uma música quando tomados para análise.
Devemos nos perguntar quais materialidades significantes com-
põem esses materiais passíveis de análise e nos permitem chegar a
regularidades significativas de um funcionamento discursivo que
se quer compreender.
2 Ver Orlandi (2016).

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Como vimos, o processo de interpretação, em Moonlight, se


dá no cruzamento entre olhares, falas, pausas, silêncios, gestos,
cores e músicas. Diferentes modos de formulação imbricados na
produção da interpretação.
Os recortes fílmicos aqui descritos me permitiram investir
significativamente nesse ponto da imbricação das diferentes ma-
terialidades significantes no percurso de identificação do sujeito.
Desde o início ressaltei a presença e a eloquência do olhar
na composição fílmica em Moonlight. Uma composição que vai
produzindo o jogo entre encontro e desencontro no processo de
identificação que constitui a busca do sujeito no filme. Este jogo fica
formulado pela alternância entre olhares diretos, que se encontram
com outros olhares, olhares que se esquivam e se desencontram
de outros olhares, e olhares que focam em aberto, mirando um
horizonte que escapa ao espectador, (des)encontrando-se em si
mesmo. Essa alternância de olhares, que produz um percurso
intervalar, se imbrica com os enunciados formulados em meio a
longas pausas verbais, com perguntas que ecoam sem respostas,
o que reitera o percurso intervalar.
O jogo de encontro e desencontro fica também formulado
no corpo. Vemos o corpo miúdo de Little em contraponto com
o corpo torneado e forte de Blue, o corpo franzino de Chiron,
em total desencontro com o corpo musculoso e também forte de
Black, que rememora o corpo de Blue. Corpos num percurso de
rupturas e reedições, em que o mesmo e o diferente tensionam a
memória, também numa tensão temporal, em intervalos entre o
presente e o passado.
A sonoridade e a musicalidade são elementos marcantes da
composição fílmica em Moonlight. No primeiro recorte aqui anali-
sado, em que Little e Blue se encontram pela primeira vez, o efeito
sonoro de impacto é importante no conjunto da cena. Os sons
das batidas na porta, do tapume sendo arrancado, de estilhaços
caindo, da respiração alterada, marcam a dureza desse encontro
sem qualquer mediação musical. No final da cena, quando Blue
abre a porta e convida Little a sair, o barulho de fundo, de carros

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

passando na rua, quebra o isolamento do esconderijo de Little e


o aproxima da vida cotidiana. Na cena do mar, em que Blue en-
sina Little a nadar, a música invade a cena, tanto quanto o mar
invade a tela, numa melodia em que o agudo crescente das notas
de um violino marca o desafio, também crescente, de Little, em
não submergir. Quando Little já domina seu corpo na água, sem
a necessidade da ajuda de Blue, a música termina em acordes su-
aves e o som do mar quebrando na praia toma lugar novamente.
Na conversa que segue, entre Blue e Little, quando Blue conta
um pouco de sua vida, o relato de Blue, objeto de toda a atenção
de Little, vem acompanhado pelo barulho do vento e das ondas
quebrando na praia. Uma cadência entre a voz de Blue, a voz do
mar e a voz do vento. Nenhuma mediação musical. No último re-
corte, o contraponto entre o funk que nos apresenta Black como
o traficante que detém o poder na rua e o soul suave e acolhedor
que acompanha Black em seu reencontro com Kevin compõem um
contraste musical tão significativo quanto o contraste entre o tra-
ficante durão e o amante que busca ser acolhido. Nesses diferentes
recortes analisados, tanto a sonoridade quanto a musicalidade têm
papel marcante nas composições que vão formulando as relações
afetivas de Little. Essas relações se constituem pela alternância
entre momentos de recuo e momentos de entrega. Afetos que vão
se construindo em intervalos, na imbricação entre as diferentes
materialidades significantes em cena.
Diferentes materialidades significantes se compondo na elo-
quência do olhar, do corpo, das músicas e dos sons, como acabamos
de explicitar, mas também na eloquência das cores, das perguntas
sem respostas, dos silêncios.

3. Câmera, percurso intervalar, resistência

Esses percursos intervalares de alternância entre encontros


e desencontros, rupturas e repetições, recuos e entregas, presen-
te e passado estruturam a composição fílmica em Moonlight na
formulação do processo de identificação do sujeito que se busca
conhecer em Little, Chiron e Black. Percursos em movimento que

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

reiteram a busca do sujeito nessa estruturação intervalar. Entre


um encontro e um desencontro, uma ruptura e uma repetição, um
recuo e uma entrega, o presente e o passado, há espaço, há respiro,
há indagações que permanecem. Entre Little, Chiron e Black há
contradições que não se resolvem. Moonlight não se fecha.
O espectador, cujo olhar fica à espera da próxima cena, vai
sendo guiado pelas tomadas e posições da câmera que o aproximam
de Little, de Chiron e de Black, pelos planos que se fecham em
closes, intensificando os olhares e ressaltando as emoções a serem
vividas em seus limites equívocos. Moonlight se abre e atualiza a
memória do social em resistências possíveis.

Referências

LAGAZZI, S. O recorte significante na memória. Apresentação no III


SEAD – Seminário de Estudos em Análise do Discurso, UFRGS, Porto
Alegre, 2007. In: O Discurso na Contemporaneidade. Materialidades e
Fronteiras. F. Indursky, M. C. L. Ferreira & S. Mittmann (orgs.). São
Carlos: Claraluz, 2009. p.67-78.
ORLANDI, E. Nota introdutória à tradução brasileira. In: Materialidades
Discursivas. B. Conein... [et al]. Campinas: Editora da Unicamp, 2016.
335p. Edição original: 1980.
PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1988.
317p. Edição original: 1975.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

OS PERCURSOS DA ARTE CONTEMPORÂNEA


PERFORMATIVA ENQUANTO MATERIALIDADE A SER
INTERPRETADA

Gisela Reis Biancalana


Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

A presente reflexão aflora de minhas habilidades maiores


constituídas no campo do psicofísico, especialmente do cor-
po em movimento-ação e de como ele trabalha a si mesmo para
o momento de estar em arte. As pesquisas que desenvolvo ao
longo dos últimos dezoito anos são voltadas para criação e não
para análise de obras, fato que me situa muito mais no campo do
não verbal, mesmo que esta polaridade verbal-não-verbal possa
ser-estar dissolvida em diversas circunstâncias ou até nem existir
em outras. Acredito que, entre os saberes e fazeres acadêmicos, a
prática artística e as reflexões teóricas que a subsidiam (ou anali-
sam) são intimamente amalgamadas de modo que apenas podem
se separar com fins meramente metodológicos e/ou descritivos.
Ao falar do meu lugar, o lugar das artes, especialmente as artes
da cena, o teatro e a dança posso, ainda, transitar pela antropo-
logia, pois, por enquanto, foi por estes campos que mergulhei na
busca por performatividades artísticas diversas. Neste universo
investigativo, eu vou desenvolver a reflexão proposta que visa
focar alguns percursos históricos das artes para chegar à arte
contemporânea performativa enquanto materialidade a ser fruída.
Inicialmente, procuro adentrar em um entendimento do cam-
po de saberes das artes que opera de modo diferente da tentativa
de objetividade, própria de boa parte das áreas do conhecimento.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

A história das ciências, particularmente este ambiente da pesquisa


acadêmica, começa a surgir nos fins da Idade Média ou Baixa Idade
Média europeia. Não estou falando, aqui, da história do pensa-
mento científico, filosófico e artístico, pois estes últimos remetem
à Antiguidade. Estou falando mais especificamente dos moldes
acadêmicos que se firmaram e continuam operando de maneira se-
melhante ao que se faz hoje, ou seja, estou falando da Modernidade.
Atualmente, a terminologia Idade Média é questionada e este nome
tem sido reavaliado por um ambiente impregnado pelas recentes
transformações paradigmáticas dos modos de ser, pensar, sentir
e agir humanos. Desde o pensamento teocêntrico atravessando a
moderna hiper valorização da razão ou do homem enquanto ser
pensante com autonomia em relação ao próprio entendimento de
si e de seu ser/estar no mundo, até as filosofias pós-modernas de
retomada das dimensões humanas sufocadas pelo racionalismo
exacerbado, um longo percurso foi transcorrido.
É neste contexto que as primeiras Universidades, mais ou
menos como se conhece hoje, começaram a surgir e se prolifera-
ram no início dos tempos modernos com o Renascimento, com o
Iluminismo, enfim quando a dimensão pensante do ser humano
passa a imperar soberana. Estou situando estes fatos por volta dos
séculos XVI, XVII, XVIII. Este discurso reflexivo independe do
entendimento de que existe um período ou fato disparador das
transformações ocorridas. Será que é preciso localizar qualquer
coisa como disparadora ou marco da modernidade? Eu particu-
larmente não acredito nisso e sim num complexo de fatores dinâ-
micos, sejam eles socioculturais, científicos, econômicos, políticos,
entre outros, que vão atuando em redes complexas mais ou menos
simultaneamente.
O que eu gostaria de destacar aqui é que esses tempos prima-
ram pela busca da verdade, e mais, um tipo de verdade absoluta
com a qual não nos contentamos mais nos dias de hoje. Na an-
tropologia, por exemplo, Gertz (1989), inaugura outro modo de
pensar quando reconhece o tipo de olhar até então impresso aos
objetos de pesquisa antropológicos. Ele percebe que se tratava de
uma visão etnocêntrica, que concebia o saber a partir de um ponto

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

de vista tido como universal, central, neutro ou algo semelhante


e, a partir do qual, se poderia estabelecer o funcionamento de
determinados povos e suas culturas. Desde então, admite-se que
o olhar é histórico, datado, além de embebido pelos contextos e
paradigmas aos quais está submetido. Tudo isso sem levar em
conta, aspectos relativos ao próprio pesquisador enquanto sujei-
to pensante singular e plural ao mesmo tempo. Seu modo de ser
particular inserido neste contexto, também afeta o modo de ver
o objeto, ou melhor, foco de estudo.
É desta tentativa de objetividade que eu estava falando. Mes-
mo concebendo que a subjetividade impulsionada pelos contextos
e paradigmas vai dar o tom impresso ao foco de estudo, ainda se
busca outro tipo de verdade, uma verdade mais relativizada, mais
flexível, mais conscientemente submetida. Hoje em dia já se ques-
tiona se este outro olhar pode ser chamado de verdade, verdades
ou poderia ser interpretação. Se reconhece o fato associado à sua
interpretação.
Nas artes, por sua vez, não há essa busca pela verdade nem
nunca houve, também por isso se diferencia ciências de artes. Por
outro lado, quando as artes adentraram em universos de pesqui-
sa científicos, muitas vezes apoiada por parâmetros científicos
para se justificar nestes ambientes, ela se sentia impelida a ser
ciência. É ou não é, porque? Poderia ser, sim, e também pode não
ser. Quando? Diversas pesquisas na área de artes são ciências,
porque são pesquisas SOBRE artes, ou seja, pesquisas de caráter
técnico, sobre pigmento, luz, sistematizações de exercícios para
um instrumento de música, para aulas de dança, para trabalho de
atores, entre outras. Há pesquisas SOBRE artes quando se faz
análise de obras calcadas em determinado campo conceitual como,
por exemplo, em diversas proposições investigativas da Análise
do Discurso. Sendo assim, as artes podem se inserir nas ciências.
A pergunta recai, então, quando se trata das pesquisas que não
são SOBRE artes e sim EM artes, ou seja, as pesquisas de criação. A
pesquisa que trata da reflexão do fazer artístico pelo próprio autor
seria “[...] aquela relacionada à criação das obras e compreende

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

todos os elementos do fazer, a técnica, a elaboração de formas, a


reflexão, ou seja, todos os componentes de um pensamento visual
estruturado.” (CATTANI, 2002, p.38). São investigações que têm
em seu âmago a subjetividade. Elas não apenas admitem que a
subjetividade esteja operante. Elas são o evocar da subjetividade,
da metáfora, da transfiguração do real em algo diferente dele. Para
esta discussão, a contribuição de Bachelar (1996) é significativa
quando ele fala sobre a tomada de consciência peculiar do artista
criador que apela para imaginação e que ele chama de devaneio
poético, ou seja, uma tomada de consciência livre de barreiras
objetivas. Por isto, neste tipo de investigação se discute inclusive
a adoção de abordagens metodológicas que não estejam apenas
situadas nos moldes engessados disponíveis e denominados Méto-
dos. Método, no sentido clássico da palavra, pressupõe aquilo que
viabilizaria o olhar científico. Ele disponibiliza instrumentos de
análise dos sentidos irradiados pelo foco de estudo e submetidos
aos modos de interpretação. No contexto da pesquisa SOBRE arte,
no que tange à interpretação, a discussão reside na especificidade
deste discurso artístico. Assim, seria pertinente considerar os con-
ceitos de arte nos quais se inserem as materialidades artísticas em
suas peculiares para interpretação. Além disso, é fundamental que
se perceba a (s) possibilidade (s) de análise deste universo a partir
de seus vocabulários neste contexto multifacetado do mundo con-
temporâneo. Portanto, moderno e pós-moderno são conceitos que
iluminam o modo como eu estou entendendo ARTE, de onde vem
esses conceitos como eles têm sido pensados hoje, especialmente,
a partir da segunda metade do século XX. Então, afinal, do que
eu estou falando quando pronuncio a palavra Arte?
Os registros de diversas formas artísticas estudadas ao longo
da história apontam para o desejo de fazer arte de alguns seres
humanos. Filósofos, historiadores, antropólogos e sociólogos se
preocupam em discorrer sobre qual o sentido, como se transfor-
maram no espaço-tempo, como se organizam e se manifestam estas
motivações. A utilização e a definição do termo Arte é antiga e
sofreu inúmeras transformações desde seu surgimento ou, pelo
menos, desde que se tem registro. Distante de querer revisar aqui

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

todos os desdobramentos que as concepções de Arte passaram,


vale a pena ressaltar apenas algumas fases que se refletiram e
influenciaram séculos de produção até desembocar naquilo que
se discute atualmente.
Alguns estudos filosóficos acreditam que a religião e o traba-
lho foram as duas primeiras formas de manifestação cultural do
ser humano na história (CHAUI, 1995). Portanto, seriam também
as responsáveis por instituir as primeiras formas de organização
social que se estabeleciam por rituais simbólicos. Desta forma, a
Arte surgiu inseparável de ambas. É importante notar que a origem
religiosa da Arte contribuiu significativamente para que a obra
tivesse a qualidade aurática que perdura em algumas perspectivas
até os dias atuais desdobrando-se, inclusive, nas discussões sobre
a crença no dom artístico. Desta forma, a obra de arte em sua
qualidade aurática, é algo que transfigura e distancia a realidade
próxima colocando-a como transcendental. O filósofo alemão
Walter BENJAMIN (2012) trabalhou o conceito de aura enquanto

a absoluta singularidade de um ser - natural ou artístico -,


sua condição de exemplar único que se oferece num aqui e
agora irrepetível, sua qualidade de eternidade e fugacidade
simultâneas, seu pertencimento necessário ao contexto
onde se encontra e sua participação numa tradição que
lhe dá sentido.

Chaui (1995) desenvolve um amplo percurso pelos conceitos


de arte ao longo da história e ajuda a compreender a multiplicidade
de entendimentos da palavra. Oriunda do latim ars que por sua
vez vem do grego techne, Arte significava, inicialmente, um campo
da atividade humana que fazia oposição ao acaso, ao natural, pois
necessitava de um conjunto de regras que a orientasse. Entre os
primeiros pensadores que se dedicaram a discorrer sobre a Arte
estão Platão e Aristóteles. De modo geral, Platão não separava a
Arte da ciência e da filosofia sendo todas entendidas como artes
específicas. Aristóteles, por sua vez, fez uma separação que julgou
necessária entre aquilo que não poderia ser diferente do que é,
como a ciência-filosofia, daquilo que seria possível de ser elabo-

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

rado e, portanto, poderia ser diferente do que é, como a Arte. No


campo do possível a Arte foi considerada como poesis. Os gregos
utilizavam a palavra póiesis com o significado inicial de criação,
ação, confecção, fabricação. Posteriormente, também era usada
como faculdade poética no sentido de ser uma atividade humana
que revela a beleza do espírito. Aqui, ela se liga ao universo do
trabalho distanciando-se das abordagens transcendentais.
Diversas subdivisões foram feitas por outros pensadores,
mas o que importa destacar é a separação entre artes liberais e
artes servis ou mecânicas, feita por Varrão no século II d.C.. Esta
subdivisão ecoou por muito tempo até o século XV. As primeiras,
liberais, eram dignas do homem livre. Entre elas estava a lógica,
a retórica, a aritmética, astronomia, a música. As segundas, servis,
compunham conjuntos de saberes técnicos que serviriam para
resolver dificuldades corporais. Elas eram voltadas para o traba-
lhador manual e reforçaram a estratificação social alicerçando o
desprezo pelo trabalhador manual. Entre elas estava a medicina,
a arquitetura, a agricultura, a pintura, a escultura. Assim, as artes
liberais eram vistas como superiores às servis porque a alma era
considerada livre e o corpo uma prisão.
Na era moderna, mais especificamente com a Renascença,
veio o advento do humanismo, sua valorização do corpo e, em
seguida, o capitalismo vai dignificar o trabalho enquanto fonte
de riqueza. Assim, algumas artes servis ou mecânicas, já haviam
conquistado a condição de artes liberais por serem consideradas
fruto do conhecimento humano e passaram a dividir-se em artes
úteis – medicina, agricultura e outras – e artes sem fim utilitário
ou funcional com fim voltado para produção do belo.
Por volta do século XVIII, com a busca pelo belo, a obra
de arte se tornou inseparável do público e de seu juízo de gosto,
amplamente estudado por Kant, constituindo a base da estética
tornando-se um ramo da investigação filosófica que tem por ob-
jeto as Artes. Com o objetivo focado na busca pelo belo surgiram
as belas artes e o entendimento do artista como indivíduo genial,
espontâneo, sensível e dotado de inspiração criativa recuperando

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

temporariamente a antiga qualidade aurática, porém, agora ela


dividia espaço com a razão refletindo as dualidades recorrentes
nos pressupostos da modernidade e, nas artes, a crise romântica.
Durante o século XIX e XX estabeleceram-se profundas
transformações que afetaram os modos vigentes e hegemônicos
do pensar humano e, as artes. Ao mesmo tempo, um segmento da
técnica desdobrou-se e passou a ser uma forma de conhecimento
específica e denominar-se tecnologia que, por sua vez, afeta so-
bremaneira o mundo contemporâneo. As artes deixaram de ser
produto de um gênio e de ter uma aura misteriosa passando a
ser o produto da expressão criadora através da transfiguração
do real em uma obra artística. Enquanto trabalho de expressão,
reaproximaram-se das técnicas e da ciência, definindo-se pelas
linguagens próprias e reafirmando a busca pela autonomia. As
artes vão se territorializando e se enclausurando em linguagens
próprias e independentes.
Assim, no século XX, a ideia de juízo de gosto foi descartada
enquanto critério de apreciação e avaliação, pois, a intenção de
produzir o belo vai sendo abandonada em busca da expressão, da
interpretação e crítica social, da criação de procedimentos, enfim,
de questões que reaproximam a arte da antiga ideia aristotélica
de poética, de arte como trabalho, como produção de um conheci-
mento específico a ser transmitido e, finalmente, distanciando-se
quase que completamente de sua qualidade aurática que insiste
em sobreviver no senso comum.
A estética volta suas investigações para as relações entre Arte
e natureza, arte e humano, assim como busca as finalidades-funções
da Arte apoiada em duas concepções principais, a expressiva e a
pedagógica que encontram eco nos atuais cursos de ensino supe-
rior de Artes no Brasil, nas opções oferecidas de bacharelado e
licenciatura. Os saberes artísticos ocupam cada vez mais seu espaço
em ambientes formais.
Uma discussão também presente neste contexto reflete as
relações entre Arte e sociedade e apontam para duas concepções
opostas e polêmicas: a Arte pura, despreocupada com o contexto

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

social, econômico, histórico, político e cultural em que se insere,


produzindo livremente; e a Arte engajada, que sugere posiciona-
mento e compromisso na luta pela transformação social. A primeira
parece esquecer que o artista é um ser social, cultural, histórico
sendo impossível desligar-se de suas raízes. A segunda, por sua
vez, orientada pela mensagem que deseja veicular, corre o risco
de submeter-se a ela e, assim, sacrificar a Arte.
O mundo contemporâneo adentra no século XXI sofrendo
profundas e rápidas transformações em meio às novas tecnologias
que rompem as antigas fronteiras sejam elas políticas, geográficas,
culturais. Desta forma, a Arte enquanto trabalho profissional -
produção de conhecimento que transfigura o real em busca de
uma comunicação sob forma de expressão - tem dialogado com a
ciência e a tecnologia produzindo uma cultura erudita, intelectu-
alizada tendendo a elitização e proporciona uma multiplicidade
de conhecimentos, de informações instauradoras do sentir, pensar
e agir humanos.
Sendo assim, a Arte tem assumido diferentes formas nas suas
diversas linguagens, não existe mais uma, duas ou três propostas
estéticas norteadoras, ou estilos enclausurados em regras definidas
e paralisadas, mas uma multiplicidade delas que orientam-se para
concepções diversas e plurais.
Em meio a este conturbado contexto, as Artes são pontua-
das por uma infinidade de manifestações dinâmicas, transitórias
trespassadas, compondo-se, especialmente, de várias formas de
hibridização, nas quais a inter e a trans disciplinariedade também
se revelam. As transformações que remetem-se inicialmente às
escolas e estilos; perpassam as questões sobre a concepção da Arte;
sobre as técnicas e seu papel na criação; as investigações sobre a
elaboração de processos criativos; às relações com o público que são
questões de recepção e esbarram no termo Interpretação; e sobre
a materialidade artística. Estes aspectos coexistem na atualidade,
são e estão em sintonia com o mundo contemporâneo.
Para falar destas mudanças paradigmáticas que ocorreram no
mundo é impossível não retomar os pressupostos da Modernidade,

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

trono do racionalismo, do cartesianismo, do positivismo, onde a


razão vinha imperando soberana. O sufocamento dos universos
emocional e imaginário humanos tem sido alvo de ataque constante
deste período, por parte de pensadores que não cansam de buscar
explicações para isso ou alternativas de recuperação gerando a
crise da Modernidade. Não cabe aqui diagnosticar as possíveis
causas da crise, mas sim detectar alguns campos de resistência que
mostrem, talvez, uma reversibilidade, ou melhor, uma retomada
destas dimensões humanas.
Para isso vários caminhos têm sido trilhados e alguns destes
campos de resistência delineiam a cena artística contemporânea.
Desta forma, o discurso do lamento não parece mais ser o caminho.
Rupturas estrondosas já foram detonadas. Na arte, as Vanguardas
do início do século XX fizeram este serviço com muita categoria.
Vive-se um tempo onde se clama pela experimentação, pela busca
e pela transformação. Por este motivo, a pesquisa propõe-se como
exercício uma vez que se coloca como experimento, um caminho
na direção da arte contemporânea. Então, eu vou adentrar, agora,
em alguns pontos que tentam esclarecer conceitos como os de
Modernidade e de Pós-moderno.
Muitos autores concordam que a Modernidade inicia no século
XVII com Descartes, porém seu corpo narrativo aparece mais
tarde por volta do século XVIII. Diferentes autores atribuem a
ela períodos e fatos distintos como marco, por exemplo, o carte-
sianismo ou a revolução industrial.
A crise da Modernidade, como toda crise, detona uma ava-
lanche de rupturas com o que foi instituído, com aquilo que se
cristalizou e não convence nem funciona mais como elemento
norteador. Este questionamento remete-se, principalmente, ao
império da razão, voltando-se para abordagens que buscam recu-
perar o abafamento dos universos do irracional, do emocional, do
instintivo, do intuitivo, do imaginário, do místico.
Este complexo filosófico-cultural da Modernidade que de-
semboca no que alguns autores têm chamado de Pós-modernidade
apoia-se numa dualidade propriamente moderna. Por um lado, a

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

emancipação do homem que gera a racionalização crescente e,


por outro, a oposição à racionalização que vive em função de uma
utopia, pois este processo é irreversível. No tocante a este campo
de resistência cultivado perante a irreversibilidade, existem ainda
diversas linhas de pensamento questionadoras da razão, algumas
mais voltadas para as relações de poder psíquicas e sociais, ou-
tras para a liberação de potenciais do inconsciente. Neste caldo
extremamente fértil e diversificado, marcado por pontos de vista
distintos, estão: Marx, Pensadores da Escola de Frankfurt, Foul-
cault, Nietzsche, Freud, Yung, entre outros. Mais recentemente
temos Deleuze, Guatarri, entre muitos.
São também vários os autores que atribuem uma pluralidade
ao projeto da Modernidade quando reconhecem discursos ligados
ao progresso e outros às trevas. Nietzsche (1992), por exemplo,
é uma figura fundamental. Para ele o processo civilizatório é
irreversível e a recorrente discussão sobre a cisão corpo/mente
poderia ser superada pela experiência estética. Esta última seria
capaz de reintroduzir, no ser humano, essa dimensão dionisíaca,
mítica, ritualística que romperia com o individualismo extremo
e com a racionalização. Desta forma, ele coloca um pensamento
diferente daquele proposto pela filosofia alemã focada no pensa-
mento crítico. Nietzsche volta-se para a arte, especialmente no
que tange à criatividade (NIETZSCHE, 1992).
Há, ainda, uma discussão sobre o significado do prefixo pós
que pode ser passível de diversas leituras. Poderia designar tanto
o fim de um projeto cultural, de um modo de ser no mundo, ou
poderia ser a sua radicalização. Poderia ser o começo do novo
marcado pela ruptura com o anterior. Poderia ser a manutenção
do instituído com alguma particularidade que o diferenciaria.
As discussões em torno da Pós-modernidade iniciaram nos
EUA em meados do século XX e chegaram, posteriormente, na
Europa. Suas linhas de pensamento norteadoras são diversas. Há
algumas provenientes da escola de Frankfurt, preocupadas com a
herança e destino do processo de racionalização e outras oriundas
das teorias dos neonietzschianos e pós-estruturalistas. O fato é que

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

elas consideram, ainda, o poder do capitalismo e da cibercultura


(RÖHL, 1997).
O debate que circunscreve os conceitos derivados de Moderno
e Pós-Moderno tem sido frequente nas diversas áreas do saber hu-
mano. Em parte, esta ruptura e os ataques aos valores saturados
da Modernidade é fruto do descontentamento com a fragmentação
das esferas humanas. De um modo geral, existe um consenso de
que houve uma alteração no projeto da Modernidade, portanto, o
prefixo pós não foi absorvido sem justificativa. Porém, a maneira
de entender esta alteração ainda busca definições. Alguns acre-
ditam que o momento atual consiste de uma nova época, outros
acreditam que o momento atual é uma das diferentes manifestações
do moderno.
A quebra dos últimos paradigmas que vieram orientando
as ciências e as filosofias, a derrocada dos sistemas socialistas,
o esgotamento do capitalismo, o sistema ecológico em pânico,
o estresse, a des e a re sacralização, a diluição de fronteiras e as
relações com a diversidade, entre outros, são demonstrações de
um grande sistema em crise aguda.
Neste contexto, qual seriam nossas dificuldades em nos
entendermos? Os acontecimentos se passam ao mesmo tempo
em que se colocam as reflexões e discussões sobre eles. O mundo
contemporâneo pode referir-se à cronologia, ao agora, o atual.
Neste sentido, pertenceria à Modernidade enquanto era ou período
na qual inserem-se diversas classificações históricas.
Este termo pós-moderno foi adotado por autores como Ja-
meson (1985), da escola neomarxista, refere-se a uma rotulação
do sistema que visa reciclagem e consumo; Habermas fala de uma
impossibilidade dos cânones da Modernidade; e Lyotard (1988)
chama atenção para o surgimento de um espaço de conquista do
múltiplo e incisão do fragmento.
Sendo assim, o pós-moderno poderia ser parte integrante do
projeto da Modernidade enquanto macroperíodo na medida que her-
da sua postura de questionamento, rebeldia e rupturas, mas também

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

se constituiria como um dos distintos períodos da Modernidade.


Distinto porque o pós-moderno faz uma releitura, não uma negação
do passado. Ele reconhece os problemas expostos pela Modernidade,
mas assume uma atitude diferente perante eles ao afirmar sua reto-
mada das dimensões humanas sufocadas pela razão. Nesta linha de
pensamento, o pós-moderno seria, talvez, menos utópico. Além disso,
somam-se as interferências significativas dos avanços tecnológicos.
Não se pretende definir os rumos da Modernidade, tarefa que
cabe aos filósofos contemporâneos e àqueles que vierem depois de
nós, mas sim comentar as alterações ocorridas e que remetem-se
ao contexto artístico. É neste contexto expandido, plural, mul-
tifacetado, repleto de simultaneidades que estou situando aquela
arte da qual falei anteriormente para pensar suas materialidades
e modos de interpretação.
Finalmente, a reflexão se debruçou sobre a materialidade dos
discursos na arte tendo em vista sua especificidade de existir en-
quanto forma inserida na diversidade sociocultural. Para se pensar
em materialidades na arte deve-se considerar, antes de tudo, os
contextos pós-modernos na arte como a amplificação, expansão,
fragmentação, pluralidade dos espaços de fronteiras rarefeitas,
porosas; simultaneidades temporais. A interpretação das obras
também precisa dar conta dos deslizamentos, deslocamento, rea-
locação, desestabilização de sentidos na polissemia.
A materialidade não é mais predefinida e excludente. São
materialidades permeáveis, trespassadas das quais estou falando.
Para interpretá-las é preciso levar em conta sua dinamicidade, os
escapes, o transitório.

Referências

BACHELARD, G. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.


BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto
Alegre: Ed. Zouk, 2012.
CATTANI, I. B. Arte Contemporânea: o lugar da pesquisa. In: BRITES,
Blanca; TESSLER, Elida (Orgs.). O meio como ponto zero: metodologia
de pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

CHAUI, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed Ática, 2000.


GERTZ, C. J. A Interpretação da Culturas. Rio de Janeiro: Ed. LTC, 1989.
JAMESON, F. Pós Modernidade e Sociedade de Consumo. In: Novos
Estudos CEBRAP, São Paulo n.° 12, p. 16-26, jun. 1985.
LYOTARD, J. F. O Pós Moderno. Rio de Janeiro: Ed. Olympio, 1988.
NNIETZSCHE, F. A Origem da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras,
1992.
RÖHL, R. O Teatro de Heiner Müller. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1997.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

O SUJEITO-OUTRO NA ARTE CONTEMPORÂNEA1

Renata Marcelle Lara*


Universidade Estadual de Maringá (UEM)

1. Adentrando a arte contemporânea na compreensão


do sujeito

E mbora meu foco não seja para a arte contemporânea em si, mas
para o sujeito na arte contemporânea, e de uma abordagem
discursiva, considero relevante esclarecer que arte contemporânea
não é sinônimo de arte produzida na atualidade – ao menos não
da forma como eu a concebo.
No livro Essa tal arte contemporânea, Noronha (2012, p. 25)
esclarece que “[...] o conceito de contemporâneo não se restringe
à maneira conteudista (certos temas, procedimentos e conceitos)
de dar tratamento à [sic] arte e à [sic] história da arte contem-
porânea” e é assim que “o contemporâneo surge como sendo a
investigação da problemática e da experiência do tempo”. Ainda
conforme o autor, o que há é uma relação de “inatualidade” com
a atualidade e de “distanciamento e de deslocamento” com o
presente, por parte do contemporâneo. Este trata-se de um con-
ceito, enquanto a “atualidade é um modo de localizar no tempo a
contemporaneidade” (NORONHA, 2012, p. 26). Mas, também,
não é apenas isso. O contemporâneo é, ainda, um modo de atu-
alizar e reconhecer a “presença do passado no presente”, como
“reconhecer o que foi recalcado no passado (Freud e Benjamin),

1 A pesquisa teórica aqui apresentada está vinculada a estudos que venho realizando como
líder do GPDISCMÍDIA-CNPq/UEM – Grupo de Pesquisa em Discursividades, Cultura,
Mídia e Arte, da Universidade Estadual de Maringá, vinculado ao CNPq.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

mas que continua a agir ocultamente no presente”, esclarecer


Noronha (2012, p. 26).
Ao trabalhar a relação arte contemporânea e Psicanálise,
em O avesso do imaginário, Rivera (2013) afirma que no centro
da questão da arte está o sujeito. Mas não o sujeito subjetivante
e psicologizante. Na arte contemporânea, o sujeito retorna não
como centro organizador de uma representação artística, mas
por meio de um descentramento, problematizando as fronteiras
com o outro, temporalizando-se e deslocando-se em uma nova
concepção do espaço.
Isso me levou a indagar, discursivamente, sobre quem é esse
sujeito na arte contemporânea, mais precisamente na performance –
manifestação artística também focalizada por Rivera (2013) ao pôr
em relação a arte e a Psicanálise –, entre os lugares (sócio-artísticos)
que ocupa e as projeções imaginárias no contexto (do) artístico,
envolvendo artista, obra e público, nesta tríade que defendo como
constitutiva do funcionamento (do) artístico, mas em seu desloca-
mento para a tríade, artístico-discursiva, artista-obra-outro.
Ao objetivar compreender o sujeito discursivo na arte con-
temporânea na/pela tríade artista-obra-público em seu desloca-
mento para artista-obra-outro, é que interrogo, discursivamente,
acerca do sujeito na arte contemporânea, que é determinante e
requerido na constituição e acontecimento da obra2. Ao promo-
2 Estou considerando por “acontecimento da obra” o ritual de linguagem que envolve o processo
discursivo de sua realização, abrangendo os sujeitos, a situação e o contexto mais amplo,
sócio-histórico e ideológico. Nas “Considerações finais ao sujeito-outro na arte contempo-
rânea”, quando me refiro ao “acontecimento artístico-discursivo”, abarco a esse conceito de
“acontecimento da obra” a noção de “acontecimento discursivo”, como pode ser observado
em tal finalização do meu texto. O conceito de “acontecimento artístico-discursivo” eu for-
mulei em outro texto meu, “Corpo performático como acontecimento artístico-discursivo”,
publicado no livro A análise do discurso e sua história: avanços e perspectivas, resultante da
sétima edição do Seminário de Estudos de Análise do Discurso (SEAD-Recife, 2015), quando
diferenciei “acontecimento artístico” de “acontecimento discursivo” para compreensão de
“acontecimento artístico-discursivo” na performance artística. Naquele momento, partindo
do corpo performático da arte, sintetizei os conceitos na seguinte explicação: “a) O corpo
performático se materializa em acontecimento artístico, porque, como prática artística, só
acontece naquele momento presente. É cronologicamente fugaz e simbolicamente eternizante.
In-apreensível [...]. Como obra artística, faz-se e desfaz-se no mesmo tempo-espaço de sua
constituição e prática em que o corpo do performer e o corpo da obra são um e mesmo corpo
artístico-discursivo. Corpo-sujeito-performer que, em/pelo seu gesto artístico, produz(-se)
como obra; b) O corpo performático se faz acontecimento discursivo ao desestabilizar,
nos territórios da Arte (como área de conhecimento), sentidos possíveis para a arte (como

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

ver tal interrogação, invoco o descentramento desse sujeito num


movimento em que se desestabilizam “certezas” acerca do artista
como autor uno e dono de sua obra, de sua criação, da obra como
centro aglutinador dos sentidos concebidos/atribuídos pelo artista,
e do público como receptor, “caça-imagens” (movimento para-
frástico/polissêmico que realizo de “caça-palavras”), depositário/
desvendador de sentidos, fazendo advir o outro como partícipe/
participador, interator3, co-autor, espectador emancipado4, teste-
munha ou outro termo conceitual que o signifique como parte
constitutiva do processo artístico. E é deslocando o artista-obra-
público para artista-obra-outro, que visualizado o sujeito na arte
contemporânea.
No desestabilizado constitutivo da arte contemporânea, sus-
tento o imbricamento artista-obra-outro. Arte contemporânea
que, como defende Cauquelin (2005, p. 11), “não dispõe de um
tempo de constituição, de uma formulação estabilizada e, portan-
to, de reconhecimento”, sendo que “sua simultaneidade – o que
ocorre agora – exige uma junção, uma elaboração: o aqui-agora
da certeza sensível não pode ser captado diretamente”. Arte que
manifestação/obra artística), para o sujeito-artista e suas relações com o tempo-espaço além
do cronológico e geográfico, assim como as fronteiras entre diferentes práticas artísticas e
outras práticas com as quais dialoga e confronta-se, e os limites fronteiriços de áreas múltiplas
do saber; c) O corpo performático é acontecimento artístico-discursivo porque é um corpo
investido de sentidos des-estabilizadores da (A)arte, que discursiviza acerca de si e do outro
no i-realizado alhures da arte e da Arte” (LARA, 2016, p. 205-206, grifos da autora).
3 O termo “interator” é recorrente no estudo empreendido por Rosangella Leote (2015),
ArteCiênciaArte, em que a pesquisadora põe em relação arte, mídia, ciência e tecnologia,
valendo-se de contribuições da neurociência, dos sistemas complexos e de estudos do
corpo no desenvolvimento e fruição de obras com tecnologias emergentes. De um lugar de
entremeio teórico-metodológico, afirma que prefere “não nomear como artista o autor da
obra, pelos inúmeros enfoques e complicações que o termo acarreta na arte contemporânea”.
Esclarece, contudo, que está “falando da mesma pessoa ou de pessoas que executam a obra
artística, de qualquer natureza, o que”, para ela, “inclui a música, as artes performáticas e
as hipermidiáticas”. Para ela, “a produção de uma obra artística só se dá pela existência de
processos perceptivos antes, durante e após a sua execução. Esses processos são ajustados
em camadas imbricadas, de forma não linear se sem controle total daquele que executa a
ação” (LEOTE, 2015, p. 75).
4 Em O espectador emancipado, Jacques Rancière (2012, p. 17) explica que a emancipação
“começa quando se questiona a oposição entre olhar e agir, quando se compreende que as
evidências que assim estruturam as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem à estrutura
da dominação e da sujeição. Começa quando se compreende que olhar é também uma ação
que confirma ou transforma essa distribuição das posições”. Um pouco mais à frente, sintetiza
afirmando que a palavra emancipação significa “o embaralhamento da fronteira entre os que
agem e os que olham, entre indivíduos e membros de um corpo coletivo” (RANCIÈRE,
2012, p. 23).

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

também promove, conforme Rivera (2013, p. 120), agenciamentos


de “intervenções críticas na cultura” como um convite “a expe-
riências de subversão – e de reflexão sobre o sujeito e o mundo,
entrecruzando-se com a psicanálise e a filosofia, entre outros
campos do saber”.
Minha compreensão sobre o sujeito na arte contemporâ-
nea, que se dá nos entremeios da Arte, Psicanálise e Análise de
Discurso, mais especificamente por interesses discursivos de
compreensão do artístico e, propriamente, do sujeito discursivo
na arte contemporânea, pode ser representada por uma figura
topológica como o nó borromeano5 – como faz Ferreira (2007)
ao tematizar, em publicação de uma das edições do Seminário de
Estudos em Análise do Discurso (SEAD), “A trama enfática do
sujeito” –, ou pela torção na Banda ou Fita de Moebius – como
também propõe Ferreira (2013), em outra publicação resultante
do V SEAD, quando discorre sobre “Discurso, arte, sujeito e a
tessitura da linguagem”.
Nas proposições de Ferreira (2007; 2013), Arte, Psicanálise e
Análise de Discurso, como regiões do conhecimento, põem-se em
relações borromeanas e/ou moebianas, e, assim, vê-se entremear
sujeito de/à linguagem, ideologia e inconsciente. Por esses entre-
meios é que considero os lugares sociais do qual o dizer artístico
se dá e as projeções imaginárias na intrincação constitutiva entre
artista-obra-outro.

2. O descentramento do sujeito: entre o Outro


lacaniano e o Outro discursivo

Pondo também em relação Arte, Psicanálise e Análise de


Discurso, tendo como ponto de encontro o sujeito discursivo,
sujeito de/à linguagem, é que parto da noção de sujeito, na arte

5 “Esta figura, introduzida na psicanálise, por Lacan, é formada por três anéis, simbolizando
uma tríplice aliança. Retirando-se um desses anéis os outros dois ficariam soltos e perderiam
a interligação constitutiva. O que os sustenta, então, precisamente, é esse laço de interde-
pendência que os estrutura solidariamente. Aqui o nó borromeano simbolizaria o lugar do
sujeito no entremeio das três noções de linguagem – ideologia – psicanálise” (FERREIRA,
2007, p. 103).

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

contemporânea, como descentrado. Sujeito descentrado, que, na


proposta de Lacan, é “efeito do significante que remete para um
outro significante”, conforme Ferreira (2007, p. 102), e que na
Análise de Discurso pecheutiana é visto como resultado da in-
terpelação ideológica do indivíduo, conforme tese althusseriana,
via inconsciente. Sujeito este que na arte contemporânea, ao não
ser mais “um centro organizador da representação” – assim antes
visto em outros períodos artísticos –, como já esclareceu Rivera
(2013, p. 21), é aquele que problematiza as fronteiras entre o eu e
o outro, pondo-se “fora de si”; um eu que “apela ao outro”, sendo
que o eu e o corpo não coincidem, em meio a uma nova concepção
de espaço (RIVERA, 2013, p. 23-24).
Volto a Ferreira (2013) quando ela aponta a torção, produzida
e representada na/pela Banda/Fita de Moebius – referida ante-
riormente –, como o que torna indistintas as fronteiras entre Arte,
Psicanálise e Análise de Discurso, em torno de questões relativas
ao sujeito e à linguagem. É a torção de 180 graus de uma das
extremidades da Fita (ou Banda de Moebius, como aparece em
Lacan) que produz a indistinção entre o dentro e o fora, o direito
e o avesso, fazendo com que uma superfície bidimensional tenha
um único e mesmo lado. Ou, como esclarece Kaufmann (1996),
trata-se de uma ausência de superfície, pois o que há na Banda de
Moebius é uma única borda.

É a torção da linguagem que produz o equívoco, é a torção


do sujeito que faz irromper o inconsciente e é a torção da
memória que faz com que ao ser acionada outros sentidos
sejam esquecidos e sejam esquecidos para que outros
sentidos sejam lembrados. Essa condição de poder passar
do possível ao impossível, do visível ao invisível, que faz a
superfície bilateral se transformar em unilateral e manter
ainda as duas dimensões simultaneamente constitutivas,
nos leva à representação da fita de Moebius (FERREIRA,
2013, p. 130).

O que a Banda de Moebius traz, na perspectiva lacaniana, é a


ideia de um sujeito dividido. Sujeito este que Lacan identifica com o

59
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

corte da Banda. A segunda volta “suporta a diferença do idêntico”,


porque ela modifica a superfície, tornando-se bilateral, não sendo
o sujeito representado nem pela primeira volta/significante, nem
pela segunda, mas pela “volta a mais” ou “a-mais”, única maneira
de identificar o sujeito (KAUFMANN, 1996, p. 505). Por isso,

a banda de Moebius é esse corte pelo qual, querendo se


capturar, ela desaparece e deixa o intervalo do corte. Se
o corte é precisamente o real, o impossível de ser simbo-
lizado do sujeito, então é legítimo dizer que a banda de
Moebius não figura ou metaforiza o sujeito, e sim que é
o sujeito, ou antes, o corte, constituindo de fato o que ela
efetua em ato (KAUFMANN, 1996, p. 505).

Como visto em Ferreira (2013), é a torção que produz a indis-


tinção entre o dentro e o fora. Daí o sujeito não ser mais que tal
torção, esclarece também Rivera (2013). O seu íntimo está fora,
fazendo advir o êxtimo lacaniano, neologismo que significa “o que é
radicalmente singular e no entanto vem de fora” (RIVERA, 2013,
p. 23). E a performance exemplifica bem a ideia de um “ ‘dar-se a ver’
ao Outro”, conforme observado em Rivera (2013, p. 24), isto é, o
Grande Outro lacaniano. Em um esquema lacaniano apresentado
por Kaufmman – que depois será modificado, em determinados
tópicos conceituais, pelo próprio Lacan, conforme explicitado no
Dicionário Enciclopédico de Psicanálise: o legado de Freud e Lacan
–, vemos que o sujeito se põe em relação ao inconsciente, este
ao lado do Outro. Posteriormente, compreenderá que, “de fato, o
grande Outro é a própria referência do simbólico” e “o que vai se
desenrolar no Outro será articulado como um discurso”, esclarece
Kaufmman (1996, p. 386-387) 6. O que vemos é que o “eu” 7 só
6 No Dicionário de Psicanálise, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon (1998), o vocábulo
“outro” aparece como: “Termo utilizado por Jacques Lacan* para designar um lugar
simbólico — o significante*, a lei, a linguagem, o inconsciente, ou, ainda, Deus — que
determina o sujeito*, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intra-subjetiva em sua
relação com o desejo*. Pode ser simplesmente escrito com maiúscula, opondo-se então
a um outro com letra minúscula, definido como outro imaginário ou lugar da alteridade
especular. Mas pode também receber a grafia grande Outro ou grande A, opondo-se
então quer ao pequeno outro, quer ao pequeno a, definido como objeto (pequeno) a*”
(ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 558, grifos dos autores).
7 Cf. “O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na expe-
riência psicanalítica” (LACAN, 1998) para compreensão do “eu” na relação com o “outro”.

60
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

existe na relação com o “outro” (sujeitos outros/seu duplo) que


o constitui. O “eu”, de fato, é a ilusão da unidade de um sujeito
dividido. Sujeito que em Análise de Discurso consideramos como
aquele cindido, que não domina cem por cento os sentidos, sendo
resultado de uma interpelação ideológica sofrida pelo indivíduo.
Ao discutir o sujeito na AD e na Psicanálise, Maluf-Souza (2012)
esclarece que, na AD, “[...] o sujeito constitui-se no momento em
que se inscreve em uma dada formação ideológica”, ao passo que,
na Psicanálise, “o sujeito é também determinado por um fora, por
um Outro, a alteridade, mas esse Outro o constitui, enquanto su-
jeito no social, de modo definitivo e indelével, pois é pela relação
com o outro – a relação do bebê com a mãe – que o grande Outro
se institui” (MALUF-SOUZA, 2012, p. 111). Partindo do título
deste texto de Maluf-Souza, “Que sujeito? Interfaces entre o su-
jeito do inconsciente e o sujeito da ideologia”, pode-se relacionar o
sujeito da Psicanálise com o sujeito do inconsciente e o sujeito da
AD com o sujeito da ideologia. Contudo, considerando que é via
inconsciente que a ideologia interpela/transforma indivíduos em
sujeitos – em outros termos, que se dá a interpelação ideológica – é
que relaciono o Outro discursivo ao par inconsciente-ideologia/
interdiscurso.
É, portanto, pela noção de sujeito de linguagem e à lin-
guagem, descentrado, que é constituído pelo Outro lacaniano
(na aproximação entre simbólico e inconsciente; alteridade) e
o Outro discursivo (par inconsciente-ideologia/interdiscurso)8,
que trabalho (n)o encontro entre Arte (mais especificamente,
voltada à arte contemporânea), Psicanálise e Análise de Dis-
curso, tal como Ferreira (2007; 2013), para discutir quem é o
sujeito na arte contemporânea no próprio deslocamento da tríade
artística artista-obra-público para a tríade artístico-discursiva
artista-obra-outro (“outro”, aqui, como partícipe/participador,
interator, espectador emancipado, testenhuma, co-autor, parte
constitutiva do processo artístico).
8 No artigo “Subjetividade e imaginário linguístico”, publicado na revista Linguagem em (Dis)
curso, Bethania Mariani (2003, p. 62) esclarece, em nota de rodapé (nota 7), a ambiguidade
proposital com que faz uso, naquele texto, da palavra “Outro”, tanto no sentido de “ o grande
‘Autre’ lacaniano”, o simbólico, quanto o Outro discursivo pecheutiano, o interdiscurso.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

3. A tríade “artista-obra-outro”

A concepção de sujeito descentrado na arte contemporânea


levou-me a questionar, pela Análise de Discurso, não só quem é o
artista, mas quem é o público, já tido historicamente, em outros
momentos – fora dos domínios da arte contemporânea –, como
mero receptor/contemplador da arte, e que agora reivindica, ou
a ele se reivindica, seu espaço na obra, na tríade artística artista-
obra-público deslocada para (o que eu estou chamando de) a tríade
artístico-discursiva artista-obra-outro. Há um apelo ao outro
como partícipe/participador/interator do processo artístico e da
obra se fazendo. Esse apelo ao outro não se dá fora das relações
constitutivas com o Outro, seja o grande Outro lacaniano, seja o
Outro discursivo.
O outro ao qual me refiro nesta tríade artista-obra-outro,
que não é mero espectador, pode ser observado, por exemplo,
na proposta do Parangolé de Hélio Oiticica, como mostrado por
Rivera (2013), que reivindica o participante (ou participador, nos
termos de Oiticica) e não mais a figura do antigo espectador, como
mero contemplador. Vê-se que os Parangolés não se reduzem a
estandartes, capas e túnicas de tecido, porque funcionam como
“transobjetos” – termo de Oiticica, segundo a autora –, objetos
como contínuos do corpo, convidativos à dança e à “vertigem de
nosso mal-estar na cultura”, que promovem “um acontecimento
que põe em ato” a “imbricação constitutiva do sujeito na cultura”,
esclarece Rivera (2013, p. 123). A pesquisadora relaciona os tran-
sobjetos à estrutura da Fita de Moebius, considerando a relação
constitutiva entre o dentro e o fora, produzidos pela torção da
superfície. Fita também presente no trabalho artístico de Lygia
Clark, em Caminhando, de 1963, segundo Rivera (2013, p. 33), cujo
corte da fita constitui-se “o próprio trabalho artístico”, e que se
difere do corte lacaniano, porque propõe um contínuo infinito “até
que a largura da fita não permita mais que a tesoura prossiga”.
Mas não é apenas em relação ao público como participador
que a ideia de “outro” funciona. A tríade artista-obra-outro, em
que este outro não é o receptor passivo, sustenta o conceito de

62
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

“sujeito-outro na arte contemporânea”. A noção de sujeito-outro,


aqui, vem para mexer no sentido de artista como autor centraliza-
dor da obra e mesmo da obra como produto pré-pronto, objeto à
parte do sujeito, abrindo para a alteridade constitutiva. Daí que eu
formulo o conceito de “sujeito-outro na arte contemporânea” como
sendo o sujeito discursivo da arte contemporânea, que desestabiliza
lugares artístico-sociais pré-marcados de artista, obra e público.
Ou seja, tal conceito é ampliado para além do participador nos
Parangolés de Oiticica, abarcando o artista em posição discursiva
desestabilizadora do lugar social previamente demarcado para ele,
para a obra e para o público. Ele não é o centro organizador da
obra, assim como o público não é o mero receptor da obra, bem
como a obra não é um produto pronto, acabado, e distinto do
artista e do público. Artista, público (aqui que eu chamo de outro
como participador constitutivo) e obra estão intrincados em/no
processo artístico, em que artista, obra e outro e constituem ao
mesmo tempo9.
9 Gostaria de esclarecer que no texto “O discurso artístico-performático do/no “sujeito-outro”
nos Parangolés” (DOMINGUES; LARA, 2017), presente no livro Mídia, produção textual e
tecnologia: da leitura, das imagens e do digital, organizado por Telma Domingues da Silva e
por mim (2017 [no prelo]), a noção conceitual de “sujeito-outro”, que formulamos, na época,
em relação aos Parangolés de Oiticica, referia-se ao sujeito convidado a participar da prática
artística como parte constitutiva da obra. Nesse sentido, explicamos quem era este “sujeito-
outro” nos Parangolés: “Uma obra que tem um sujeito, a princípio, ‘não artista’ – considerando
os lugares sociais demarcados e reconhecidos/legitimados socialmente – como constitutivo
do fazer artístico. Sujeito ao mesmo tempo empírico e da ordem do simbólico, tornado par-
ticipador, que (se) faz obra. Aquele que passa de mera contemplação e observação da arte
para o campo da produção, experimentação e criação, que interfere na obra, participando
da sua configuração e significação, assim como também é resultado da forma como foi por
ela interpelado. Esse ‘sujeito-outro’, que não é o artista, mas se faz artista ao materializar a
proposta do artista, não é a obra, mas (se) faz obra artística fazendo-se/fazendo-a acontecer,
é também um ‘sujeito-outro’ popular, que discursiviza de um lugar social marcado, a favela.
Um sujeito marginal que traz em suas performances uma expressão propriamente popular, o
Samba, e ao se fazer obra, visibiliza-se, enquanto produtor/materializador de cultura, como
sujeito cultural. Dessa maneira se constituem os Parangolés, proposições elaboradas pelo
artista carioca Hélio Oiticica e que tem na especificidade da participação deste ‘sujeito-outro’
a condição fundamental de sua efetivação como obra artística” (DOMINGUES; LARA,
2017, p. 1 [no prelo]). No artigo “O imbricamento sujeito-artista-obra nos Parangolés de
Hélio Oiticica”, publicado nos Anais do IV SIAD – Simpósio Internacional sobre Análise do
Discurso, Domingues (2016) também esclarece sobre a noção conceitual de “sujeito-outro”
nos Parangolés de Oiticica: “ ‘Sujeito-outro’ este que não é o artista em si, mas um sujeito
participador que em sua relação de constituição da obra, no caso os Parangolés, também
se faz artista, fazendo (-se) obra. Isto é, esse ‘sujeito-outro’ que se põe em relação com a
proposta do artista, materializando-a no movimento performático, não é obra propriamente
dita, mas se faz também obra, no momento de sua realização, nessa relação de constituição
artística sem a qual a obra não aconteceria” (DOMINGUES, 2016, p. 8). Neste texto de
agora, em que me refiro ao “sujeito-outro na arte contemporânea”, mais especificamente na

63
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Dizendo de dentro dos territórios da Arte, Orthof (2002)


propõe um desfocar desse “lugar da autoria” na arte, o que ele
chama de “fora de foco”, e que permite questionar o artista como
sujeito centralizador da obra e de sua constituição, chamando e
abrindo espaço para a participação do outro, e de colaboradores
e especialistas de diversas áreas, principalmente quando se pensa
nos desafios gerados ao próprio trabalhado artístico com as novas
tecnologias. Isso abre a possibilidade de se pensar, por exemplo,
nas instalações artísticas, nas quais arte e tecnologia se compõem,
e que tendem a requerer cada vez mais a participação de outros
sujeitos, hipermidiáticos, para sua concretização, e mesmo, a meu
ver, do sujeito participador do próprio acontecimento da instalação,
que não simplesmente observa, contempla e aprecia, mas constrói
a obra a cada gesto de interpretação, como prática simbólica.
Também Fervenza (2002, p. 70), com suas reflexões sobre “O
olho mágico”, põe em questão não propriamente o que olhar, mas o
como olhar, produzindo uma reversibilidade do olhar, em que o olhar
e ser olhado se confundem, trocam de lugar e ocupam o mesmo
e outro lugar; o que também permite pensar na participação do
sujeito que visita a mostra como participador, autor e/ou co-autor
da obra – desta obra que só acontece, a meu ver, na relação com
o outro –, e mesmo do artista, que observa na medida mesma em
que é observado e vice-versa.
Do lugar de analista que transita entre Arte e Psicanálise,
Campos (2013, p. 162) observa que “o artista é o dono do olho
variável, do olho móvel que faz retorno ao interdiscurso, capaz de
se lançar sobre a arte ou em sua periferia e recolher algo sobre si
mesmo [...], mas não sem relação com a visão e a re(a)presenta-
ção”, assim, também, como a obra de arte não é representação da
realidade ou do sujeito, e sim “é da ordem da apresentação e da
temporalidade”. Quanto ao espectador, este, conforme Froemming
(2013, p. 149), “lança seu olhar sobre a obra e, ao testemunhar
performance artística, para além do trabalho de Oiticica, estou partindo do “sujeito-outro”
também para além do participador convidado a participar constitutivamente da obra, fazendo(-
se) obra, mas do sujeito que se constitui na tríade artística artista-obra-outro, desestabilizando
discursivamente os lugares pré-marcados para artista, obra, público, no seu funcionamento
discursivo intrincado.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

sobre os efeitos nele produzidos, está enlaçado na corrente da


produção da obra”, funciona como um “testemunho que garante
uma continuidade, que convoca outros espectadores a lançar a obra
para o futuro, renovando-a sempre com outro olhar”.

4. O corpo artístico-discursivo

Neckel (2014, p. 205) chama a atenção para o fato de que “a


experiência estética não contorna a ideologia”, porque não há como
contorná-la. Não há como estar fora da Ideologia (como catego-
ria que transforma indivíduos em sujeitos), tendo em vista que o
sujeito é fruto da interpelação ideológica, como defende Pêcheux
(1997) com base na tese althusseriana. “Em contraparte, também
o sujeito, sempre interpelado, responde estesicamente, de uma
posição possível entre outras” (NECKEL, 2014, p. 205).
Para a Análise de Discurso (AD) materialista, o discurso artís-
tico é constitutivamente heterogêneo, sendo os sentidos resultantes
de “diferentes posições-sujeito”, explica Neckel (2014, p. 191). Por
isso ser possível, conforme a autora, falar em propriedades especí-
ficas do Discurso Artístico (DA), e pelo polissêmico. Consideran-
do a linguagem a instância material de realização dos sentidos, e
buscando contornar possíveis “problemas de forma das diferentes
linguagens artísticas” (NECKEL, 2014, p. 191), envolvendo pintura,
fotografia, vídeos, entre outras, ela elege o corpo na arte e da arte
como “materialidade discursiva” ou, nos termos de Orlandi (2012,
p. 84), “materialidade do sujeito”, pensando no par inconsciente-
ideologia, na não transparência do sujeito e da linguagem; “corpo
em sua materialidade significativa” (ORLANDI, 2012, p. 85).

Desta forma, ao abordar o corpo do sujeito enquanto


materialidade significante, e nesse gesto de leitura, um
corpo-arte, um corpo vídeo performático, ou, um corpo
fotográfico, um corpo-imagem, tratamos de uma materia-
lidade duplamente afetada pelas condições do discurso, do
discurso na contemporaneidade e do discurso artístico.
Funcionamentos que se imbricam e se corporificam em
linguagem artística (NECKEL, 2014, p. 199).

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

O corpo artístico não se aprisiona ao discurso sobre, porque


não é “portador de um discurso”, mas atravessado/constituído de
discursividades, em que se confrontam real, imaginário e simbólico,
conforme Neckel (2014). O que temos é que o corpo orgânico não é
a morada do sujeito, em menção aqui a uma citação feita por Rivera
(2013, p. 131), de Freud10, quando este afirma que o “eu não é mais
senhor em sua própria casa”, por força do inconsciente. Ou mesmo
na afirmação de Lacan11, também citada por Rivera (2013, p. 38),
de que “o homem encontra sua casa”, bem “num ponto situado no
Outro para além da imagem de que somos feitos”.
Frente a tais observações e às minhas de que a performance
artística desestabiliza noções conceituais no próprio território da
Arte, como área de conhecimento, e da arte, como prática artísti-
ca – como as noções de artista, obra e público –, formulei a noção
conceitual de corpo performático como acontecimento artístico-
discursivo como “um corpo que (se) faz obra e é obra de si e sobre
si, do outro e sobre o outro, no social e acerca dele, no momento
mesmo de sua realização” (LARA, 2016, p. 195). Trata-se de um

corpo como metáfora, in-aprensível, que se constitui na


relação tempo-espaço dissolvidos/entre-laçados/imbrica-
dos em des-encontros com áreas do saber (e do) social em
que o corpo (se) diz e é dito discursivamente. [...] corpo
que não apenas é suporte para a arte ou arte como obra
artística, que não simplesmente sustenta um discurso
artístico, mas que problematiza dizeres possíveis para
a (A)arte12, envolvendo e mexendo com noções que lhe
são caras: sujeitos, lugares, tempo-espaço que põem em
questão o estatuto da (A)arte (LARA, 2016, p. 195-196).

Corpo como obra em processo, público como sujeito-constitu-


tivo dessa obra em processo e artista como obra constituída pelo
outro. Noções outras que desestabilizam a (A)arte, indagando-a(s)
continuamente em movimento.
10 Rivera cita trecho de Conferências introdutórias sobre Psicanálise, de Freud.
11 Rivera cita trecho de O Seminário, livro X: a angústia, de Lacan.
12 “Arte”, com “A” maiúsculo, refere-se à área de conhecimento. Já a “arte”, com “a” minúsculo,
refere-se à prática/manifestação artística.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Considerações finais ao sujeito-outro na arte


contemporânea

O sujeito que retorna na arte contemporânea não mais como


centro, e sim, descentrado, requer a participação do outro (sujeitos
outros/seu duplo) e do Outro (Ideologia-Inconsciente/Interdis-
curso), de forma constitutiva, para que a obra aconteça. Nela, por
ela e em meio a ela, o artista e o outro (partícipe/participador,
interator, espectador emancipado, testemunho, co-autor ou seja
tantas outras denominações possíveis para ele em dado funciona-
mento artístico, como performance, instalação, entre outras capazes
de desestabilizar o sentido de mero receptor passivo) se significam
na medida mesma em que significam a arte e o mundo na e pela
arte, sendo seu corpo a materialidade significante que reivindica
sentidos sempre em aberto, polissêmicos.
Por fim, reafirmando o meu lugar teórico-analítico de ana-
lista de discurso no qual ponho em relações de entremeio Arte,
Psicanálise e Análise de Discurso, cito Mariani (2012), quando
esta esclarece que colocar o sujeito no divã é uma competência
do psicanalista, não do analista de discurso. Como os sentidos
não estão presos às palavras, mas funcionam sempre em relação
a, conforme lembra a autora, interrogar pelo processo em que
sujeito e sentidos se constituem ao mesmo tempo é o que inte-
ressa ao analista discursivo. Daí o meu interesse pelo sujeito na
arte contemporânea se dar em relações de sentido possíveis na
e a partir da tríade artista-obra-outro, como processo artístico-
discursivo, capaz de desembocar no artístico como acontecimento
artístico-discursivo13.

13 Lembrando que a noção de acontecimento discursivo, em Análise de Discurso, na perspec-


tiva de Michel Pêcheux, é o que “permite falar da anterioridade que constitui o discurso
não como transcendental histórico, uma grade de leitura ou uma memória antecipadora que
sobredetermina o dizer”, mas como aquilo que possibilita o entrecruzar da atualidade, “o dito
aqui e agora”, com a memória, “o já-dito antes e em outro lugar” (interdiscurso), podendo
advir uma descontinuidade capaz de “desfazer o trajeto aparentemente estabilizado da rede
discursiva”, como esclarece Teixeira (2005, p. 200). Daí que ao me referir ao acontecimento
artístico-discursivo, estou considerando o processo e funcionamento artístico já no entre-
cruzamento entre o dito, como atualização do dizer, na e pela formulação, e o não-dito, que
tem a ver com a memória discursiva, o interdiscurso.

67
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

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69
Discurso, Mídia e Memória
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

O MOMENTO POLÍTICO BRASILEIRO E SUA


DISCURSIVIZAÇÃO EM DIFERENTES ESPAÇOS
MIDIÁTICOS

Freda Indursky
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

1. À guisa de introdução

Os aparelhos do poder de nossas sociedades


gerem a memória coletiva.
Michel Pêcheux

H á já algum tempo, venho refletindo sobre o modo como a


mídia brasileira constrói suas narrativas. Em trabalhos ante-
riores, em função de meu objeto de pesquisa - O discurso do/sobre
o MST - observei o modo como o discurso da mídia sobre este
movimento social toma posição, identificando-se com a posição-
sujeito dos grandes proprietários de terra e criminalizando, via
de regra, as ações dos integrantes do MST em sua luta pela terra.
Numa das etapas daquela pesquisa (INDURSKY, 2003), observei
o funcionamento da argumentação da imprensa: esta expõe seu
argumento, repetindo-o à exaustão, em um processo discursivo
que está disperso no espaço e no tempo, ao longo de sucessivas
edições de um jornal.
Mais recentemente, voltei a tomar a mídia como objeto de
pesquisa para observar o funcionamento do jornalismo televisivo,
mais especificamente, o telejornalismo da Rede Globo (INDUR-
SKY, 2015). Neste trabalho, interessava-me observar como essa
emissora trabalha, pelo viés de um regime de repetibilidade (IN-

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Cultura e Mídia - vol 3

DURSKY, 2011a), para que seu posicionamento assuma um efeito


de verdade apresentando-se como “a” verdade.
No presente trabalho, vou construir um dispositivo que me
permita observar e comparar/contrastar o modo como as nar-
rativas políticas são produzidas nos telejornais, na mídia escrita
tradicional e na mídia eletrônica. Para construir este dispositivo,
tomo como objeto de análise, um acontecimento político que as
narrativas dos telejornais da Rede Globo, das matérias da Folha
de São Paulo e do jornalismo eletrônico transformaram em um
acontecimento jornalístico. Entendo como acontecimento jornalís-
tico, juntamente com Dela Silva,

um fato selecionado dentre diversos que ocorrem em um


dado período, considerado de interesse público, e que,
por isso, passa a ocupar as edições diárias dos noticiários
impressos ou eletrônicos. Trata-se de um acontecimento
enquanto um fato que se inscreve na história do dia-a-
dia, que o jornal e os jornalistas se propõem a escrever
(DELA-SILVA, 2011, p. 291).

O acontecimento político sobre o qual vou me deter é a


discussão política e jurídica travada em torno de determinadas
movimentações financeiras da Presidente Dilma Rousseff, que
ficaram conhecidas como pedaladas e que conduziram, inicialmente,
à tomada de decisão em torno da admissibilidade de julgá-la e,
posteriormente, ao julgamento propriamente dito que culminou
em sua deposição. Este acontecimento político sustentou o aconte-
cimento jornalístico, gerando uma intensa produção de narrativas
jornalísticas que ocuparam as edições diárias da mídia brasileira
por mais de um ano. Dessas narrativas, vou recortar uma dupla
designação - impeachment / golpe - para, através dela, verificar o
modo como se dá a discursivização do momento político brasileiro
que se estendeu de 2015 a 2016 e que ainda ressoa, hoje. Vejamos,
inicialmente, os telejornais.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

2. Os telejornais da Rede Globo

Os cinco telejornais diários que vão ao ar na Rede Globo


instauram um regime de repetibilidade que se dá em diferentes
níveis: o mesmo posicionamento frente a determinados fatos, os
mesmos argumentos, frequentemente a mesma narrativa, as mes-
mas imagens ilustrativas, os mesmos entrevistados, os mesmos
entrevistadores, a mesma entrevista, os mesmos personagens
políticos. O que muda são os apresentadores que ocupam as dife-
rentes bancadas e, em função do horário em que a emissão vai ao
ar, o público alvo. Essa forma de repetição constrói um processo
narrativo que se desenrola ao longo do dia, nas edições dos cinco
telejornais da emissora, processo que é reproduzido e retomado
ipsis litteris, várias vezes, ao longo de vários dias da semana e, até
mesmo, dependendo da conjuntura política, do acontecimento em
pauta e de quem está protagonizando o processo narrativo, por
semanas e meses a fio. No caso que aqui estamos tomando como
objeto de observação, estendeu-se por um ano.
Assim procedendo, a emissora vai construindo um processo
narrativo que produz uma saturação dos sentidos (INDURSKY,
2013) da qual resultam vários efeitos. O primeiro deles, um efeito
de realidade cuja consequência é a cristalização da interpretação da
emissora que se apresenta como “a” verdade, produzindo um efeito
de verdade. E, no mesmo movimento, outras tomadas de posição,
em função de outros modos de se relacionar com a ideologia, são
excluídas de seu processo narrativo, produzindo gestos de silen-
ciamento de outros possíveis sentidos e interpretações. Trata-se
do que Orlandi (1992, p.75) designou de política do silêncio que
consiste no fato de que “ao dizer algo apagamos necessariamente
outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação dis-
cursiva dada”. E, mais adiante, a autora acrescenta que “a política
do silêncio produz um recorte entre o que se diz e o que não se
diz” (idib.) Trata-se aqui do não-dito omitido na narrativa políti-
ca da Rede Globo em função da tomada de posição ideológica da
emissora. A política do silêncio subjaz a uma outra política que
designei de política do esquecimento (INDURSKY, 2015). Assim,

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Cultura e Mídia - vol 3

neste jogo entre o que deve ser memorizado e o deve ser esquecido,
a mais poderosa rede de televisão brasileira gerencia a memória
coletiva dos brasileiros, revelando-se um produtivo aparelho de
poder, retomando, aqui, a palavra de Pêcheux (1994, p.57) em
epígrafe neste trabalho.
Neste ponto, proponho observar a discussão que se estabele-
ceu em torno das contas de Dilma Rousseff, referentes ao último
ano de seu primeiro mandato. À medida que a discussão avançava,
duas designações passaram a se materializar na discursividade
em circulação. A primeira, construída à luz do instrumento legal,
apontava para a legalidade do ritual do impeachment e, por con-
seguinte, para a legitimidade de sua aplicação no caso em pauta.
A segunda, discursivizava a inadequação da lei do impeachment
para o caso específico das operações financeiras realizadas pela
presidente, por elas não implicarem em desvios financeiros e, por
conseguinte, tratava-se da construção de um golpe travestido de
legalidade. Essa dupla designação é indicativa de dois processos de
significação inscritos em Formações Discursivas (FD) antagônicas
que se delimitam reciprocamente.
Após a destituição da Presidente Dilma, a dupla designação
continuou a circular. Mas, na Rede Globo, do início ao fim dessa
longa jornada, apenas a noção de impeachment foi mobilizada em
suas narrativas jornalísticas, representando por este viés o modo
como se dá sua subjetivação política. Assim procedendo, o regime
de repetibilidade, ao saturar o sentido de impeachment, permitiu
instaurar um efeito de evidência que subjaz ao efeito de verdade/
realidade: Dilma “pedalou” e atropelou a lei, devendo ser julgada
e punida com a perda de seu mandato. Essa narrativa repetida in-
cessantemente produziu um efeito de memória. E foi assumida por
boa parte da opinião pública como verdade inconteste. O efeito de
realidade estava estabelecido.
Não há como não lembrar de Debord, neste ponto da reflexão.
“A aparência fetichista de pura objetividade nas relações espeta-
culares esconde o seu caráter de relação entre homens e entre
classes”, nos lembra o autor. E, um pouco adiante, acrescenta “se

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Análise de Discurso em Rede:
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o espetáculo tomado sob o aspecto restrito dos ‘meios de comuni-


cação de massa’ [...] dá a impressão de invadir a sociedade como
simples instrumentação, tal instrumentação não tem nada de neu-
tra: ela convém ao automovimento da sociedade” (DEBORD, 1997,
p. 20-21). No caso que aqui examinamos, certamente, não houve
neutralidade alguma, embora o formato das emissões pretenda e
pleiteie a mais pura objetividade na apresentação dos fatos.
Entretanto, tal objetividade se desfaz no ar, pois nenhum ou-
tro efeito de sentido atravessou-se na construção desse processo
narrativo da emissora em questão. De modo que, pelo viés de tais
narrativas, cristalizou-se o efeito de sentido de impeachment o qual
ganhou legitimidade, como se fosse a única interpretação possível
e o efeito de sentido de golpe foi omitido/silenciado1, como se não
circulasse na discursividade e, juntamente com ele, foram calados/
invisibilizados2 os sujeitos que, através dessa nomeação dos fatos,
se posicionavam. “O discurso espetacular faz calar, [...] tudo o que
não lhe convém”, diz Debord (1997, p. 188). E as narrativas da Rede
Globo inscrevem-se, pois, na política do silêncio e do esquecimento.
Passemos, a seguir, às narrativas da mídia diária impressa, a
mídia tradicional.

3. A mídia impressa tradicional

A tecnologia da informação tem sido fortemente apropriada


por algumas empresas jornalísticas brasileiras que, em nome da
liberdade de expressão entendida por elas como liberdade de impren-
sa, como observei em outro trabalho (INDURSKY, 2011b), têm
usado os meios de comunicação para publicar seletivamente o que
é de seu interesse político e econômico, como proprietários dessas
1 Estou usando o par omitir/silenciar porque penso que há aí uma dupla possível inscrição
para a enunciação do sujeito. Enquanto silenciar remete para o esquecimento n.1, de que nos
fala Pêcheux em Semântica e Discurso, sendo, portanto, o sujeito que por ele é afetado, não
consciente deste funcionamento, omitir remete para o esquecimento número 2 que inscreve
o sujeito em um espaço enunciativo da ordem do pré-consciente. Nele, o sujeito tem uma
certa margem de manobra em seu processo de discursivização.
2 Calar é retirar o direito à voz. Já invisibilizar é tornar o sujeito transparente, como se ele
não existisse. E é este o efeito de sentido que decorre do fato de ignorar este outro sujeito e
seu posicionamento ideológico.

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Cultura e Mídia - vol 3

empresas que são, e de outros segmentos da classe dominante


(empresários, políticos, etc.) com os quais estabelecem aliança.
Refiro-me aos grandes jornais como Folha de São Paulo e Estadão
(SP) e O Globo (RJ).
Para iniciar esta observação, uma pergunta me guiou: como
os jornalões constroem suas narrativas políticas? Haveria neles
espaço para uma diversidade de tomada de posição? Os sentidos
podem deslizar neste tipo de imprensa? Em princípio, nada impedi-
ria que assim fosse. Mas, será que isto é, de fato, possível? Vejamos,
na prática, como isto ocorre. Para tanto, volto ao meu dispositivo
de observação do qual tomo a Folha de São Paulo (FSP) para dar
continuidade a esta reflexão.
Se tomarmos o conjunto de articulistas que assinam as ma-
térias de cada edição, veremos que a maior parte se inscreve em
um lugar à direita do espectro ideológico, enquanto uma minoria
se inscreve em um lugar mais à esquerda. Esta constatação pode-
ria servir para responder à questão inicial, feita mais acima. Ela
sustenta a formação imaginária da editoria deste jornal que se
apresenta como aberto a diversidade de opiniões, formação esta
que subjaz à auto-publicidade que a Folha apresenta aos seus
possíveis leitores. Mas esta constatação não se sustenta frente a
uma observação mais acurada, como veremos a seguir.
Um processo de construção discursiva das narrativas não se produz
em uma única matéria ou edição. Certamente a construção destas
narrativas tem início nos editais e nas matérias de opinião de cada
edição, mas o efeito de realidade decorre do processo discursivo que
se estende ao longo de inúmeras edições. Por conseguinte, este
processo está disperso entre várias e diferentes edições do jornal.
Dependendo do momento histórico, este processo de dispersão
pode se estender por vários meses, como ocorreu, por exemplo,
com o período que precedeu ao impeachment/golpe de Dilma Rous-
seff. Neste caso, o referido processo iniciou pelos artigos de opinião
e se estendeu pela seleção dos tópicos que foram abordados por
mais de um ano. E não apenas através de temas que se repetem,
mas também pela reiterada tomada de posição assumida nessas

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

matérias, as quais representam o posicionamento ideológico da


FSP, em que pese umas poucas matérias que abrem espaço a um
posicionamento diverso. Ou seja: a repetibilidade do posicionamen-
to assumido pela FSP e fragmentada nas mais diversas matérias
está na base do processo de construção discursiva das narrativas
políticas deste jornal. E dessa repetibilidade, ao saturar os sentidos,
resultou a construção de um efeito de realidade. A cultura política
da imprensa brasileira, desde sempre, funcionou sob a ideologia
da classe dominante que naturaliza os sentidos e produz efeitos
de verdade que, por sua vez, projetam imaginariamente efeitos de
realidade.
Mas há mais um ponto a considerar. Ao lado dessas narrativas
que foram se tecendo de forma dispersa (por inúmeras edições do
jornal) e fragmentada entre várias matérias de diferentes articu-
listas, há um outro processo que se desenhou colado ao primeiro.
Junto ao que foi narrado, houve uma segunda seletividade no tocante
ao que precisava ser apagado do efeito de realidade que estava sendo
construído discursivamente, do que não poderia produzir efeito de
verdade no imaginário dos leitores da FSP, mesmo que aparecesse
eventualmente nas páginas desse jornal. Percebe-se assim que há
duas formas diferentes formas de seletividade. A primeira, é uma
seletividade positiva, que dá a direção dos sentidos possíveis de
serem discursivizados. Já a segunda é uma seletividade negativa,
que aponta ao que convém ser omitido ou minimizado. O desejado
e imaginário efeito de realidade trabalha com o que pode e deve ser
dito. E este dito autorizado é, de fato, determinado de fora para
dentro, pelo que não pode ou não convém ser publicado no espaço
editorial em questão.
Como se vê, a repetibilidade tanto nos telejornais quanto na
imprensa tradicional visa à produção de um efeito de verdade. Este
é o ponto em que o funcionamento de ambas as mídias se aproxi-
ma. Mas a semelhança termina aí, pois, enquanto nos telejornais,
verifica-se uma repetibilidade do mesmo e do igual sem limites,
na imprensa escrita tradicional, a repetibildade é mais sutil, se dá
por paráfrases, pois uma mesma matéria não pode ser repetida
indefinidamente ao longo de uma semana, ou de meses, no mesmo

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Cultura e Mídia - vol 3

jornal. Na imprensa escrita, a repetibilidade é da ordem do efeito de


sentido, isto é, as matérias podem ser diferentes na forma, podem
tratar de diferentes temas, podem ser assinadas por diferentes
articulistas, mas conduzem os sentidos numa mesma direção, a do
posicionamento ideológico que sustenta seu discurso.
Pelo que precede, telejornais e imprensa tradicional escrita visam
à cristalização de uma interpretação face a determinados aconte-
cimentos. Essa cristalização relaciona-se à produção de um efeito
de verdade/realidade que objetiva produzir uma espécie de efeito
de memória destinado a ressoar junto ao corpo social, efeito este
necessário para produzir um efeito de consenso que se assenta no
processo que associa seletividade a silenciamento de sentidos-
outros, divergentes, que poderiam gerar dissenso. E assim, vai
sendo gerenciada a memória coletiva do corpo social.
Foi o que vimos acontecer, desde a proclamação da vitória
de Dilma Rousseff para seu segundo mandato presidencial, até a
sua destituição do cargo. Em ambos os casos, a repetibilidade das
narrativas que sustentavam a ilegalidade das “pedaladas” trabalhou
no sentido de construir um efeito de verdade/realidade que sustentou
a fabricação do efeito de consenso produzido junto ao corpo social, o
que deu respaldo às manifestações de rua que pediam a cassação
do mandato de Dilma, aos juristas que produziram os diferentes
pedidos de impeachment, às diferentes instituições que acolheram
e deram seguimento ao ritual do impeachment.
Juntas, as mídias televisivas e escritas ajudaram a produzir
as condições de produção necessárias3 para que Dilma Rousseff
fosse julgada e deposta.
A seguir, vejamos como são construídas as narrativas políticas
no jornalismo em meio eletrônico.

3 É preciso frisar que a admissibilidade do impeachment da Presidente Dilma Rousseff não


foi obra exclusiva da mídia tradicional. Outros grupos sociais, também pertencentes à classe
dominante, estiveram fortemente envolvidos neste processo, dentre eles, vale destacar o
jurídico, o políticos, os industriais, os empresários e as novas igrejas. Cada um destes seg-
mentos participou de diferentes formas. Mas é notório o papel desempenhado pelas mídias
tradicionais na construção das condições de admissibilidade para este processo e para a
construção do efeito de realidade e de consenso..

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

4. As mídias eletrônicas

A informática trouxe consigo, entre tantas inovações tecno-


lógicas, a internet e, com ela, surge um conjunto de meios digitais
de comunicação - portais, sites, blogs, vlogs. É neste novo espaço
que emerge a mídia eletrônica, possibilitando o surgimento de um
jornalismo alternativo que faz circular uma produção eletrônica
diferente, que aporta ao jornalismo político um outro estatuto,
pois diferentes tomadas de posição se fazem possíveis, a partir da
filiação ideológica a outras redes de memória.
Com isto não pretendo dizer que os efeitos de sentido cris-
talizados de que tratei nas duas seções anteriores foram banidos
do discurso político eletrônico. Ao contrário. Os grandes jornais
aí também se fazem presentes. Porém, ao lado destes sentidos
cristalizados, abre-se a possibilidade para o surgimento de uma
imprensa alternativa que acolhe outros modos de se relacionar
com a ideologia dominante. Diria que essa apropriação das mídias
eletrônicas pelo jornalismo alternativo vem resgatar o efeito
de sentido de liberdade de expressão, há muito banido das mídias
tradicionais, conforme observei no início da seção 3, deste texto.
Por conseguinte, as mídias eletrônicas em circulação na inter-
net, ao contrário das mídias tradicionais, constituem um espaço
bastante heterogêneo, como heterogêneas são as materialidades
que nela circulam.
As vozes silenciadas e represadas no interdiscurso, nas
duas modalidades anteriormente examinadas, encontram no
jornalismo alternativo condições de produção favoráveis para
fazer circular suas tomadas de posição e, deste modo, os sen-
tidos silenciados pelas mídias tradicionais, por serem incom-
patíveis com os saberes de sua formação discursiva, retornam
e encontram seu espaço de inscrição nas mídias eletrônicas. É
pelo viés dessa nova mídia que a hegemonia das mídias tradi-
cionais é abalada e seu efeito de monofonia (ORLANDI, 1989,
p.44) é quebrado, abrindo espaço para a contradição. Ao rom-
per o regime de repetibilidade e sua consequente cristalização

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

dos sentidos, atenua-se, também, a construção dos efeitos de


verdade e de realidade.
Trazendo Rancière (1995) para pensar as diferentes formas
de discursivização do político que estamos observando, aqui, diria
que os sujeitos que não se identificam com a ideologia dominante
não estão qualificados para fazer parte da cena enunciativa que a
mídia tradicional constrói, estando, pois, condenados ao silêncio,
pois seu discurso cai no vácuo, não podendo ser ouvido e, portan-
to, não produz eco nem sentido. Por outro lado, o surgimento da
internet facultou a instauração de uma cena discursiva no espaço
eletrônico na qual estes sujeitos do dissenso podem inscrever-se e
subjetivar-se, exercendo resistência a partir desse lugar discursivo.
Dessa segunda cena, podem participar aqueles que não tinham
lugar na cena enunciativa instituída pelas mídias tradicionais,
razão pela qual essa cena se apresentava revestida de um efeito
de consenso.
Mas não podemos ser ingênuos e pensar que, com a comuni-
cação em rede, tudo mudou, que a liberdade plena foi alcançada.
Este espaço também está sujeito ao controle dos sentidos, e às
tentativas de desqualificação de determinadas tomadas de posição.
Mas a grande diferença que o espaço eletrônico oferece é que não
está blindado.
Em suma: enquanto as duas outras mídias se inscrevem em
uma FD hegemônica, alinhada aos interesses do grande capital,
na mídia eletrônica, diferentes tomadas de posição encontram
espaço para inscrever-se. Nela, há uma grande heterogeneidade
nas tomadas de posição, não só por parte daqueles que produzem
essas materialidades, mas também por parte daqueles que as leem,
comentam e compartilham.
No espaço virtual, ao contrário da mídia tradicional, o leitor
tem um maior protagonismo, não ficando restrito a uma única
mídia eletrônica. Nele, o leitor pode movimentar-se entre mídias,
deslocando-se pelos nós da rede. Esse é o novo estatuto que o
jornalismo eletrônico conquistou: um novo modo de escrita e de
leitura. Ou seja: não se trata de um jornal determinado por uma

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

linha editorial, nos moldes a que estamos habituados com a mídia


impressa. Na mídia eletrônica, o leitor não é “prisioneiro” de uma
única linha editorial. A rede faculta-lhe mover-se entre diferentes
matérias, entre diferentes mídias e entre diferentes tomadas de
posição, de modo que este leitor expõe-se a uma pluralidade de
posicionamentos, ficando, assim, exposto à contradição. E, deste
modo, vai construindo seu percurso de leituras, podendo compa-
rar diferentes posicionamentos, posicionar-se frente às narrativas
lidas, com elas identificar-se, contra-identificar-se, questioná-las,
e, até mesmo, delas discordar. Ou seja, o espaço eletrônico permite
um acesso que ultrapassa os limites de uma única mídia digital
ou uma única linha editorial. Este espaço lhe confere acesso a um
discurso político eletrônico, não fechado em si mesmo. E isto está
diretamente relacionado à possibilidade de exercer resistência.
Faz-se resistência, nos diz Pêcheux, ao

não entender ou entender errado; não ‘escutar’ as ordens;


não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo, falar
quando se exige silêncio; falar sua língua como uma língua
estrangeira que se domina mal; mudar, desviar o sentidos
das palavras e das frases; tomar os enunciados ao pé da
letra; deslocar as regras na sintaxe e desestruturar o lé-
xico jogando com as palavras... (PÊCHEUX, 1990, p. 17).

Como podemos ver, Pêcheux fez uma ampla lista dos


possíveis modos de exercer a resistência, modos que são engen-
drados na língua, sob a dominação ideológica. Gostaria, neste
trabalho, de propor uma ampliação do âmbito da resistência.
Entendo que, no domínio das leituras do político, o sujeito, sob
a dominação ideológica, também pode resistir a determinadas
formas de interpretação apresentadas como expressão da ver-
dade. Ou seja: não apenas resistir aos sentidos das palavras e
das frases, mas resistir às interpretações do político que lhe
são dadas a priori, pré-fabricadas pela imprensa tradicional que,
em lugar de relatar os fatos e as diferentes tomadas de posição
sobre o referido fato político que está sendo narrado, entrega-
os já interpretados pelo seu filtro ideológico que elimina toda

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

possibilidade de contradição. Acredito que se trata de um gesto


de resistência necessário.
Aqui, trago novamente a dupla designação impeachment /
golpe. A designação impeachment, nas mídias eletrônicas, foi con-
testada fortemente. Nela, juristas, cientistas políticos, filósofos,
sociólogos, historiadores, psicanalistas analisaram a designação
impeachment por todos os ângulos e produziram um entendimento
diverso. As ditas “pedaladas” não foram interpretadas como um ato
que justificasse um impeachment. Tais análises apontam que elas
serviram como pretexto para construir um caminho travestido
de legalidade para destituir a presidente Dilma Rousseff através
de um golpe. Discussões dessa natureza instauradas na mídia al-
ternativa sustentaram a designação golpe que só ganhou guarida
no discurso político eletrônico. E, assim procedendo, as mídias
tradicionais, defensoras do impeachment, certamente o fizeram sob
o funcionamento cínico da ideologia: sabiam muito bem o que esta-
vam fazendo, mas, mesmo assim, o fizeram (ŽIŽEK, 1996, p.312).
Assim, travou-se um forte embate ideológico entre duas inter-
pretações antagônicas a propósito dos caminhos que conduziram à
destituição da presidente Dilma: enquanto a Globo e os jornalões
lutaram para cristalizar o efeito de sentido de impeachment como
“o” sentido, como a expressão da verdade/realidade, a imprensa
alternativa travou seu embate no espaço eletrônico, único espa-
ço a que tinham acesso para tomar posição, para resistir àquele
efeito de evidência e de consenso e, desta forma, fazer circular
uma outra interpretação possível. Desenvolveu-se deste modo a
resistência pelo viés do discurso político eletrônico que tratou de
desmistificar o efeito de verdade/realidade construído pela mídia
tradicional e ratificado pela Câmara e pelo Senado, pois, como nos
lembra Pêcheux,

no terreno da linguagem, a luta de classes ideológica é


uma luta pelo sentido das palavras, expressões e enuncia-
dos, uma luta vital para cada uma das duas classes sociais
opostas que têm se confrontado ao longo da história
(PÊCHEUX, 2011, p.273).

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

O funcionamento das narrativas no discurso eletrônico co-


locou em ação articulistas que resistem, buscando restabelecer,
também via repetibilidade, o que a mídia tradicional distorceu/
omitiu. Este foi um embate de sentidos entre memória e esquecimen-
to, entre esquecimento e gestos de resgate da memória (INDURSKY,
2011a; 2015) que se travou através de uma disputa de interpreta-
ções antagônicas entre forças muito diferentes, já que as condições
de circulação de tais interpretações são extremamente desiguais.

5. À guisa de conclusão

Os processos de significação antagônicos, ao serem tecidos de


forma dispersa e fragmentada entre diversos espaços midiáticos,
apontam para diferentes “gestos de leitura” (PÊCHEUX, 1994,
p.56) do político e indicam que entre as mídias tradicionais, de um
lado, e as mídias alternativas eletrônicas, de outro, são produzidos
“espaços polêmicos de maneiras de ler” (id., p.57) o político. Ou
seja: por um lado, as mídias tradicionais, para produzir um efeito
de verdade, jogam com uma seletividade entre o que pode e o que
não deve ser publicado. Por outro, as mídias eletrônicas alterna-
tivas abrem espaço para diferentes tomadas de posição.
Em decorrência da divisão entre os espaços para o trabalho de
interpretação do momento político brasileiro atual, produz-se, nas
mídias tradicionais, um simulacro de consenso, que busca desfazer
o efetivo dissenso existente. No entanto, a partir do momento em
que essas diferentes interpretações entram em circulação, mesmo
que de modo desigual, esse pretenso efeito de consenso fica expos-
to, revelando a existência de diferentes maneiras de interpretar a
realidade, de diversas formas de subjetivação frente aos aconteci-
mentos políticos. E essa diversidade de tomadas de posição vem
“dividir a unidade do que é dado e a evidência do visível e, como
consequência, do possível. [...] A inteligência colectiva da eman-
cipação não é a inteligência de um processo global de submissão”
(RANCIÈRE, 2007, p. 102).
O observatório que foi construído para a realização deste
trabalho deixa clara esta divisão desigual. A contradição foi jo-

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

gada para a fronteira das FD em confronto e seus saberes só se


relacionam através de enunciados divididos entre os efeitos de
sentido que cada FD produz.
Mas o interessante a notar é que se os sentidos não podem ser
produzidos num determinado espaço jornalístico, eles vão derivar
e aparecer em outro lugar. E a resistência, como ato político, nasce
exatamente desta divisão entre os espaços de interpretação. E o
observatório aqui montado permitiu visualizar que estes sentidos-
outros vão inscrever-se na mídia eletrônica.
E é ainda Pêcheux que esclarece esta questão quando afirma
que “as ideologias dominadas (...) nascem no próprio lugar da do-
minação ideológica, na forma dessas múltiplas falhas e resistências”
(PÊCHEUX, 1981, p. 6). O que, no caso aqui em tela, não deixa de
ser irônico, pois a internet, que surgiu no coração do capitalismo
e para servir a seus interesses, acabou produzindo uma brecha,
ou uma falha, como diz Pêcheux, e tem servido como espaço de
crítica e de resistência à imprensa tradicional que serve fielmente
ao sistema capitalista no Brasil.

Referências

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____. A fala dos quartéis e as outras vozes. 2. ed. Campinas: Pontes, 2013.
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86
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

____. Argumentação na mídia: do fio do discurso ao processo discursivo


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ORLANDI, E. P. (Org.). Análise de Discurso: Michel Pêcheux. Campinas:
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Da história no discurso. Campinas: Ed. da Unicamp, 1994. Edição
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____. Delimitações, inversões, deslocamentos. Cadernos de Estudos
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Análise do Discurso político. São Carlos (SP): Edufscar, 2009. Edição
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ZIZEK, S. Como Marx inventou o sintoma? In: ZIZEK, S. (Org.). Um mapa
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87
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

FOTOGRAFIA E MEMÓRIA: DA TEIMOSIA


DO REFERENTE AO OLHO DO CICLOPE

Antonio Carlos Santos


Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul)

“um dia se fixou num canto do quarto


totalmente vazio, com um tubo de calefação
e mais nada: teve a tentação de continuar a
fotografar aquele ponto e só aquele ponto
até o fim de seus dias”
A aventura de um fotógrafo, Italo Calvino

“Mi memoria, señor, es como


vaciadero de basuras”
Funes, el memorioso, Borges

E m um texto escrito em 1981 por ocasião do quinquagésimo


aniversário da “Pequena História da Fotografia”, de Benjamin,
Hubert Damisch lembra que se os primeiros vestígios da pintura
são contemporâneos ao aparecimento do Homo Sapiens, a fotogra-
fia nasce no momento em que Hegel anunciava o fim da história.
Didi-Huberman alarga esse comentário ao descrever a certeza
de Charcot em relação à sua prática clínica com as histéricas e
a metáfora que põe a funcionar como fundamento dessa certeza:
“Mas, na verdade, neste ponto sou, absolutamente, apenas o fotó-
grafo: inscrevo o que vejo”, estratégia semelhante à dos realistas
e naturalistas que lhe eram contemporâneos. Em seguida, traz
novamente a figura do professor de Iena e de Berlim obcecado
pela possibilidade de um saber absoluto: “era o conluio de uma
prática com seu valor metafórico (seu valor de época, ou seja, do

89
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

primeiro meio século da história da fotografia). Era, na verdade,


como que a declaração princeps de que o ideal de um olhar clínico
absoluto e de uma memória absoluta das formas estava em vias de
se tornar real” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p.56). Afinal, afirma
ainda o autor da “Invenção da Histeria”, Hegel morre em 1831,
quando Louis Jacques Mandé Daguerre já colaborava há dois
anos com Joseph Nicéphore Niépce, associação que iria resultar,
após a morte de Niépce em 1833, na descoberta do daguerreótipo
anunciada ao “mundo” pelo físico e matemático François Arago
na Academia de Ciências e de Belas-Artes da França em 1839. A
referência a Hegel não é fortuita e a relação do idealismo alemão
com a fotografia tampouco uma erudição excessiva e mirabolante
da teoria francesa, como veremos mais adiante. Importa em um
primeiro momento fazer uma ligação entre a possibilidade de
uma memória absoluta e esse aparelho que funciona como uma
janela aberta ao mundo produzindo, segundo Roland Barthes, um
análogo perfeito do real (BARTHES, 1990, p.11) e que desde seu
descobrimento, na verdade, desde a fixação da imagem no século
XIX, atua como parceiro fundamental da ciência, da polícia, do
jornalismo, da história natural, da etnologia, como mais uma
prótese da memória, registrando tudo que se coloca diante de
sua objetiva. Dessa mesma memória que atormentava Funes, el
memorioso, o personagem de Borges que nada esquecia e que por
isso não podia pensar, e Antonino Paraggi, o personagem de Italo
Calvino em “A aventura de um fotógrafo” que, “com a máquina
pendurada no pescoço, afundado numa poltrona, disparava com-
pulsivamente com o olhar no vazio”.
A ideia de que a fotografia é uma “janela aberta” que duplica
o mundo, ou uma impressão, uma pegada, um traço do real sobre
uma superfície quimicamente tratada (teoria do índice), povoou
grande parte dos textos que discutiam as imagens técnicas pro-
duzidas pelo aparelho fotográfico. Está em Barthes, tanto em seu
momento de semiólogo nos anos 50 e 60 quando tenta esboçar,
com os conceitos da linguística saussuriana, um estudo sobre “A
mensagem fotográfica”, quanto depois em A câmara clara, quando
já descrê da ciência dos signos e busca uma aproximação feno-

90
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

menológica, de um ponto de vista totalmente subjetivo, guiado


por uma foto nunca mostrada da mãe que havia morrido pouco
antes. O que interessa a Barthes é o referente: “Pois eu só via o
referente, o objeto desejado, o corpo prezado (...).” E esse apego ao
referente o faz então cunhar essa expressão que seria o noema da
fotografia: “Eu ainda não sabia que, dessa teimosia do Referente
em estar sempre presente, iria surgir a essência que eu buscava”. E
o noema da fotografia para Barthes é o “isso-foi” ou “a Referência,
que é a ordem fundadora da Fotografia” (BARTHES, 1984, p.115).
A teimosia do referente é também um dos pontos destacados no
ensaio que Walter Benjamin publica em três partes na revista Die
literarische Welt em 1931: mais do que a arte de David Octavius
Hill, o que impressiona o autor da “Pequena História” na foto que
mostra a vendedora de peixes de New Haven é “algo que não pode
ser silenciado, que reclama com insistência o nome daquela que
viveu ali, que também na foto é real, e que não quer extinguir-se
na ‘arte’” (Benjamin, 1994, p.93). É essa relação ética com o outro
que Giorgio Agamben também destaca em “O dia do juízo”:

Trata-se de uma exigência: o sujeito fotografado exige


algo de nós. Prezo especialmente o conceito de exigência,
que não deve ser confundido com uma necessidade factual.
Mesmo que a pessoa fotografada fosse hoje completamen-
te esquecida, mesmo que seu nome fosse apagado para
sempre da memória dos homens, mesmo assim, apesar
disso – ou melhor, precisamente por isso – aquela pessoa,
aquele rosto exigem o seu nome, exigem que não sejam
esquecidos (AGAMBEN, 2007, p.29).

A exigência ética com o outro é também a preocupação cen-


tral de Susan Sontag em Diante da dor dos outros, mas em vez de
dirigir essa inquietação para a relação analógica entre o “real” e
a fotografia, Sontag desestabiliza o “realismo” da imagem técni-
ca discorrendo sobre as poses e sobre os cenários arranjados de
modo a conseguir um maior “efeito de real”, ou seja, quanto mais
artificial, mais “real”. Os exemplos são muitos: cinco meses depois
de os ingleses massacrarem 2 mil indianos revoltosos na cidade
de Lucknow em 1857, o fotógrafo Felice Beato faz as imagens do

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

palácio de Sikander Bagh devastado, não sem antes ter arrumado os


corpos e espalhado ossos pelo chão. Também as fotos dos soldados
mortos após a batalha de Gettysburg que Timothy O’Sullivan fez
durante a guerra da Secessão nos Estados Unidos foram encenadas,
posadas, assim como a feita por Ievguéni Khaldei da bandeira da
URSS hasteada no alto do Reichstag, em Berlim, em 1945 quan-
do as tropas soviéticas tomam finalmente a capital da Alemanha
nazista. E mesmo a famosa foto de Robert Capa, “Falling soldier”,
que mostra um soldado caindo no momento em que é atingido por
uma bala durante a Guerra Civil espanhola, em 1936, também teria
sido encenada. Mais do que denunciar uma má-fé, esses exemplos
demonstram o momento de uma certa prática e as relações sempre
ambíguas entre o operador, a câmera fotográfica e o “real”. A foto
que fecha o ensaio de Sontag, “Conversa de soldados mortos (visão
após uma emboscada contra uma patrulha do Exército Vermelho
perto de Moqor, no Afeganistão, no inverno de 1986), criada
por Jeff Wall em 1992, confirma essa desconfiança em relação à
teimosia do referente: antítese de um documento, como explica
Sontag, a imagem do artista canadense é um “fato fictício”, aquilo
que Didi-Huberman chamou de “o paradoxo da evidência”, ou
seja, a fotografia é uma prática da facticidade, palavra que designa
aquilo que é ao mesmo tempo um fato e um artifício, ou ainda,
nas palavras de Didi-Huberman, o paradoxo da irrefutabilidade
mentirosa. Assim descreve Sontag a imagem, uma transparência
em Cibachrome com 2,3 metros de altura e mais de quatro metros
de largura montada sobre uma caixa de luz:

A cabeça de uma figura de joelhos, que fala animadamente,


espuma com seus miolos vermelhos à mostra. A atmos-
fera é de simpatia, afeto, espírito fraternal. Alguns jazem
relaxados, apoiados sobre um cotovelo, ou estão sentados,
conversando, com os crânios abertos e as mãos destruídas
bem visíveis. Um homem se curva sobre o outro, que jaz
deitado de lado, como que adormecido, e talvez o estimule
a sentar-se. Três homens brincam uns com os outros ali
perto: um, com um enorme ferimento na barriga, está
escarranchado sobre outro, que jaz de bruços e ri para um
terceiro que, de joelhos, com ar brincalhão, sacode para

92
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

ele um pedaço de carne. Um soldado, de capacete e sem


perna, virou-se para um companheiro a certa distância,
com um sorriso vivaz no rosto. Abaixo dele, estão outros
dois, ao que parece nada dispostos a uma ressurreição, que
jazem deitados de costas, com as cabeças ensanguentadas
pendentes na encosta pedregosa (SONTAG, 2003, p.103).

Das fotos posadas às fotos encenadas de Jeff Wall, Sontag


amplia o campo de reflexão, embaralha os efeitos do documento
e da arte, saindo da relação entre a imagem técnica e o “real” e
deslocando sua atenção para a recepção, fazendo uma genealogia da
fotografia de guerra desde os conflitos na Criméia e na India, até a
guerra do Golfo e a das ex-repúblicas que formavam a Iugoslávia.
No caso do texto clássico de André Bazin, “Ontologia da imagem
fotográfica”, não é a questão ética que move a reflexão do crítico de
cinema, mas sim uma questão histórica, o fato de a fotografia ter
“liberado” a pintura da mímesis. Povoado de palavras do campo da
religião, como redenção, pecado, crise espiritual, o texto de Bazin
está interessado em construir uma história da arte que começa
com a utilização da perspectiva no Renascimento e termina com a
fotografia liberando a pintura de “sua obsessão pela semelhança”.
Para ele, a originalidade da fotografia reside em sua “objetividade
essencial”, no fato de, pela primeira vez, nada existir entre o objeto
e sua representação, a não ser, claro, “um outro objeto”. Essa seria
sua ontologia, seu ser, uma janela aberta ao mundo. Esse outro
objeto, sintomaticamente deixado de lado pelo editor dos Cahiers
du Cinéma, é o centro da Filosofia da Caixa Preta, de Vilém Flusser,
um tcheco, nascido em Praga, judeu, de língua alemã, que veio para
o Brasil em 1939. O texto, publicado primeiro em alemão (1983) e
traduzido por ele mesmo ao português, centra seu foco no aparelho.
Intelectual autodidata que fez sua formação nos anos da guerra
e do imediato pós-guerra, Flusser pensa o aparelho fotográfico,
“brinquedo que traduz pensamento conceitual em fotografias”,
como um exemplo de todos os aparelhos, tendo como questão
principal a liberdade e o conflito do homem com as máquinas, ou
seja, a questão da técnica.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Segundo ele, antes da escrita a imagem funcionava como uma


maneira de compreender o mundo, era o tempo circular do mito,
da magia; em seguida, vem a escrita, que nasce quando imagem
deixa de ser compreendida como um mapa do mundo para se
tornar ela mesma o centro das atenções; tempo de idolatria que
iria gerar pessoas empenhadas em relembrar a função originária
das imagens, rasgando-as “a fim de abrir a visão para o mundo
concreto escondido pelas imagens. O método do rasgamento con-
sistia em desfiar as superfícies das imagens em linhas e alinhar os
elementos imagéticos”. Se com as imagens tínhamos planos que
reduziam para duas as quatro dimensões do espaço-tempo, com a
escrita temos apenas a dimensão conceitual que permite codificar
textos e decifrá-los. Nascia, assim, a escrita linear, a consciência
histórica, dirigida contra as imagens. A crise do texto, textolatria,
marca a virada para um novo mundo, mundo da pós-história, da
imagem técnica, do tempo circular e da magia ontologicamente
diferentes dos tempos da pré-história. Flusser define a imagem
técnica como aquela produzida por aparelhos que, por sua vez, são
produtos da técnica, texto científico aplicado: “Historicamente, as
imagens tradicionais precedem os textos, por milhares de anos, e
as imagens técnicas sucedem aos textos altamente evoluídos. [...]
Ontologicamente, as imagens tradicionais imaginam o mundo,
as imagens técnicas imaginam textos que concebem imagens
que imaginam o mundo”. O significado dessas imagens técnicas,
portanto, não é mais o mundo e sim texto científico, a caixa preta
presente no título do livro.
Outro que desloca a discussão relativizando a questão do
referente é Arlindo Machado. Em A ilusão especular, que tem como
epígrafe um fragmento de A ideologia alemã, de Marx e Engels,
que compara a ideologia com a camera obscura, Arlindo Machado
circunscreve o seu alvo como sendo “um conjunto de arquétipos e
convenções historicamente formados” e avisa desde a introdução
que as câmeras “são aparelhos que constroem as suas próprias
configurações simbólicas (...), elas fabricam ‘simulacros’, figuras
autônomas que significam as coisas mais do que as reproduzem”
(MACHADO, 2015, p.14). Centra então seus argumentos no es-

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

quecimento da caixa preta, ou seja, no fato de o observador não


perceber o mecanismo óptico que “informa a imagem”, fascinado
que está pelas emanações de luz que se imprimem na superfície
quimicamente tratada, ou, em suas palavras, que “se fixariam au-
tomaticamente na película, por força de algum poder mágico do
aparelho”. Passa em seguida a questionar a ideia da janela aberta
ou do espelho do mundo, afirmando, com Brecht, que a simples
réplica do mundo, sua duplicação como imagem, não nos dá qual-
quer informação importante sobre a realidade. A invenção da
fotografia, lembra, perfaz três momentos diferentes da história: a
camera obscura tal como utilizada no Renascimento e seu código de
representação, a perspectiva linear sistematizada por Leo Batista
Alberti, em 1443; as lentes côncavas e convexas que compõem a
objetiva, inventadas pelo humanista veneziano Daniele Barbaro,
no século XVI para corrigir as “imperfeições” da imagem proje-
tada na camera obscura; e a fixação da imagem possibilitada pelos
avanços da química no século XIX.
Mas o alvo principal de Arlindo Machado é a perspectiva
linear, um sistema de representação do espaço que buscava obter
uma ilusão de profundidade a partir das leis “objetivas” do espaço
formuladas pela geometria euclidiana. A ideia, estudada por Al-
berti, era pensar o quadro como uma secção plana daquilo que ele
chamava de “pirâmide visual” e a perspectiva era a projeção nesse
plano de todo o campo visual. O vértice da pirâmide, um ponto
fixo, é o olho, um olho único, imóvel e abstrato. Esse sistema era
considerado na época fiel ao espaço real visto pelo homem, um
sistema de representação “científico” e, portanto, “objetivo”, mas,
diz Arlindo Machado, ele era na verdade “um espaço fictício, fruto
da positividade científica e das reformas político-sociais em anda-
mento nas imediações do século XV” (idem p.75). Pierre Francastel
já havia estudado nos anos 50 essa maneira de representar o espaço
e dizia que “a perspectiva linear (...) não é um sistema racional
melhor adaptado que outro à estrutura do espírito humano; não
corresponde a um progresso absoluto da humanidade (...), é apenas
um dos aspectos de um modo de expressão convencional, fundado
sobre um certo estado das técnicas e da ordem social do mundo

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

em dado momento” (FRANCASTEL 1960, p.9). O que nos chama


a atenção de saída para a artificialidade da perspectiva artificialis é
o fato de todo o campo visual se desdobrar a partir de um único
olho, quando nossa percepção se constrói a partir da divergência
de dois campos visuais próximos, mas distintos. “Isto quer dizer”,
afirma Arlindo Machado, “que a visão da perspectiva renascentista
é a visão do ciclope muito mais do que a do homem”. A pergunta
então é por que um sistema tão arbitrário se impôs durante séculos
como uma técnica de duplicação da realidade? E a resposta, diz
Arlindo Machado, está no sistema de conhecimento sobre o qual se
assenta essa maneira de representar o espaço. Em primeiro lugar, a
passagem de um mundo divino para um mundo humano, ou seja, de
um espaço descontínuo e fragmentário para um espaço sistemático
e racional. Essa maneira de representar o espaço aparece justamen-
te quando a burguesia emerge como classe e começa a tomar as
rédeas da história, o que pode ser visto no quadro da Santa Ceia,
de Tintoretto, do final do século XVI, no qual em primeiro plano
vemos os mercadores burgueses, enquanto Cristo e seus apóstolos
ocupam uma posição secundária: “Em termos conceituais: a verda-
de sagrada perde a sua validez absoluta e é deslocada em benefício
da verdade constitutiva do sujeito” (MACHADO, 2015, p 83). Ele
também ressalta o caráter paradoxal dessa maneira de representar
o espaço, pois se, por um lado, substitui as construções espaciais
subjetivas da Idade Média por um sistema matemático rigoroso
que possibilita um efeito de real, por outro, impõe um ponto de
vista subjetivo, uma expansão da esfera do Eu, como afirma Erwin
Panofsky (2008, p49) que publicou um texto sobre a perspectiva
nos anos 20 quando estudava na Biblioteca Warburg, em Ham-
burgo. Na verdade, continua Machado, por trás de sua pretensão
de imitar a natureza, a perspectiva institui “a visão plena de um
espaço homogêneo e infinito elaborado por um olho/sujeito, tal
como na filosofia idealista, a plenitude e a homogeneidade do Ser
é dada por um sujeito transcendental” (MACHADO, 2015, 85). A
perspectiva, assim, substitui o geocentrismo cristão por um novo
centro, por um sujeito transcendental que dá sentido ao mundo.
A invenção da fotografia seria, então, uma maneira de salvar a

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

perspectiva no momento em que ela começa a ser colocada em


questão pela pintura: “A imagem produzida pela câmera não faz
senão confirmar e redobrar o código da visão renascentista que
coloca um olho abstrato no centro do sistema de representação
(...). Essa hegemonia da visão está ligada (...) ao logocentrismo
ocidental que põe o olho/sujeito no lugar de Deus” (idem p.86).
Mais do que uma memória absoluta, a fotografia também se-
leciona, amplia ou ignora, opera e modifica a partir do olho/sujeito
que dá sentido ao mundo, o olho do ciclope. Em um texto curioso
e delicioso de 1925, “Notiz über den ‘Wunderblock’”, Freud, que
cita a câmera fotográfica junto com os óculos e a corneta acústica
como aparelhos auxiliares de nossos sentidos, busca compreender
como funciona nossa memória comparando-a com o Bloco Mágico,
um brinquedo que aparece nessa época. O ensaio começa com a
primeira possibilidade de prótese da memória, a escrita a tinta
em uma folha de papel que garantiria uma certa durabilidade aos
traços aí inscritos. Ou em um quadro, onde poderíamos sempre
apagar e escrever de novo. Em ambos, no entanto, há desvanta-
gens quanto a manutenção ou não desses traços e por isso Freud
chega ao Bloco Mágico, um brinquedo que nos permite apagar a
escrita e conservar algo daqueles traços que podem ser posterior-
mente lidos “sob uma iluminação adequada”, e esse é um detalhe
que vale reter na mente. A ideia de uma memória absoluta, como
um pesadelo hegeliano ou borgeano, aparece em contraposição
à necessidade de se “fechar os olhos”, como define Byung-Chul
Han, em Favor fechar os olhos (Bitte Augen schliessen). Este ensaio
curiosamente se abre com Hegel e sua Ciência da Lógica: todo o
racional é uma conclusão (Schluss) e uma conclusão acontece quan-
do o princípio e o final de um processo estabelecem uma conexão
com sentido, uma unidade com sentido. O exemplo que ele dá é
a narrativa, mas também os rituais e as cerimônias que, segundo
ele, não podem ser submetidos à aceleração, pois tem seu ritmo
próprio, seu tempo. A partir daí, Byung-Chul Han contrapõe a
esse tempo da conclusão, tempo do silêncio, o tempo não apenas
acelerado da contemporaneidade, mas também inconclusivo, esse
tempo do rendimento, das imagens digitais que não nos deixam

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

fechar os olhos. Assim é também a memória que, segundo ele,


tem uma estrutura narrativa e se opõe à informação que carece de
história, de conclusão, sendo meramente aditiva. “A memória se
converte hoje em um monte de lixo, de dados, perde sua condição
narrativa e passa a ser um fichário que está cheio até a boca de
todas as imagens possíveis, massas malconservadas e totalmente
desorganizadas, e de símbolos gastos. (...) O fichário não pode nem
recordar, nem esquecer” (HAN, 2016, p.10). Funes, o homem que
nada esquece, e Antonino Paraggi, que de crítico da fotografia
termina sua aventura como um louco que aperta sem cessar o
disparador de uma câmera, parecem se dar as mãos para compor
uma alegoria dos tempos contemporâneos.

Referências:

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Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007.
BARTHES, Roland. A câmara clara. Nota sobre a fotografia. Trad: Julio
Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
_____________. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
BAZIN, André. “Ontologia da imagem fotográfica” In: O cinema. Ensaios.
Ed. Brasilisense, 1991.
BENJAMIN, Walter. “Pequena história da fotografia”. In: Magia e Técnica,
Arte e Política Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução
Sérgio Paulo Rouanet, prefácio Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
DAMISH, Hubert. El desnivel: la fotografía puesta a prueba. Trad. Victor
Goldstein. Buenos Aires: Lamarca, 2007.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A invenção da histeria. Charcot e a Iconografia
fotográfica da Sapetrière. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2015.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ensaios para uma futura filosofia
da fotografia. Tradução do autor. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2002.
FRANCASTEL, Pierre. Pintura y sociedad. Nacimiento y destrucción de un
espacio plástico. Del Renacimiento al cubismo. Trad. Damian Bayon.
Buenos Aires, Emece, 1960.
FREUD, Sigmund. Uma nota sobre o bloco mágico. Edição Standard
Brasileira das obras completas, vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

98
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

HAN, BYUNG-CHUL. Por favor, cierra los ojos. A la búsqueda de otro tiempo
diferente. Trad. Raúl Gabás. Barcelona: Herder, 2016.
MACHADO, Arlindo. A ilusão especular. São Paulo: Brasiliense, 1984.
SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.
_____. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

ELIANE BRUM E OS QUE DEFENDEM


A VOLTA DA DITADURA

Christa Berger
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)

“Então eu procuro, eu vou para a ficção encontrar essa voz, essa


palavra que não alcanço pela reportagem, e, no final do processo
da ficção, descubro que a palavra é sempre insuficiente, que a
literatura é insuficiente para dar conta da vida. E é isso. E ela
vai ser sempre insuficiente. Há coisas que não viram palavras,
há coisas que vão ser sempre indizíveis, o real, ele nunca vai ser
alcançado totalmente. E é bom que a gente fique com esse buraco,
porque senão a gente pararia de contar histórias, pararia de
fabular sobre a própria vida. E não há humano sem fabulação”.
Eliane Brum

O jornalismo é uma narrativa que dá sentido aos acontecimen-


tos da atualidade e o que é reconhecido como atual contém
o tempo presente. Jornalistas e seus jornais elegem atualidades e
escrevem matérias jornalísticas afinadas com uma visão de mun-
do. É intrincada a teia que enlaça a atualidade com o presente, o
presente com o passado que não passa e o futuro ainda por vir.
No jornalismo, às vezes, encontram-se articulados esses tempos
da história.
Os leitores, assim como os que estudam jornais e aconteci-
mentos jornalísticos também têm preferências. Como leitora e
como analista do jornalismo por ora praticado, entre o jornalismo
hegemônico e o jornalismo de resistência, entre os jornalistas da
repetição e os jornalistas da transgressão fico com os últimos. As-

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

sim, justifico a escolha da reportagem “Aos que defendem a volta da


ditadura”1, da jornalista Eliane Brum. Ela sabe das potencialidades
da narrativa jornalística e escolhe como atualidade acontecimentos
que convidam seu leitor a pensar sobre o seu/nosso país.
Em uma entrevista publicada no livro O jornalista e a prática
(MAROCCO, 2012), a autora da reportagem expõe o que pensa
sobre o jornalismo e em qual lugar situa o seu trabalho. Diz:

[...] para mim o repórter é o historiador do cotidiano,


é o contador da história contemporânea. O que a gente
faz é documento, mesmo que seja um documento sobre a
nossa incompetência. É com essa responsabilidade que a
gente faz nosso trabalho, seja uma nota ou uma matéria
de 20 páginas. O que escrevemos fica. E sempre pensei
assim: o que eu faço está influenciando gente agora e,
daqui a 50, 100 anos, quando alguém, um pesquisador
quiser entender como é essa época, ele vai nos arquivos,
hoje digitais, e vai encontrar a minha matéria. Se fiz mal
o meu trabalho, se fui preguiçosa, se fui incompetente,
vou dar uma ideia errada para quem estiver tentando
entender a minha época. Então essa é a nossa respon-
sabilidade: produzir documento de qualidade, que dê
toda a complexidade da história que contamos, o maior
número possível de verdades e nuances (BRUM, p. 85).

O jornalista argentino Roberto Herrscher2, a partir da análise


do trabalho de alguns grandes jornalistas sintetizou algumas ca-
racterísticas que ele identifica como uma boa narrativa jornalística.
Com fragmentos de seu livro e por meio da entrevista com Elaine
Brum proponho um diálogo entre Herrscher e ela e, em cinco
pontos, apresento a chave de leitura para a análise que proponho
da reportagem “Aos que defendem a volta da ditadura”.

1 Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/08/opinion/1418042130_286849.


html>.
2 Herrscher apresenta seus mestres para tratar da narrativa jornalística. Eles são Kapuscinski,
Oriana Fallaci, Talese, Mitchell, Wallraff, Hersey, Capote, Garcia Marquéz entre outros.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

1. O ponto de vista e o narrador

Para Herrscher, apresentar perspectiva própria é a principal


diferença entre uma notícia e uma narrativa jornalística. O jorna-
lista está autorizado a mostrar seu ponto de vista e constrói sua
própria voz por meio de uma narrativa, que é única.

Este viaje lo hice yo, no lo pudo haber hecho ningún otro.


Si lo hiciera otro periodista tal vez sería peor, tal vez sería
mucho mejor, pero sería totalmente distinto. El relato de
esta naturaleza es siempre una invitación al lector a em-
barcarse en un viaje con, por y desde el escritor. Tenemos
que ver nosotros primero con ojos especiales. Si logramos
que el lector vea con nuestros ojos, dirá tal vez al final
eso tan gratificante de escuchar ‘al leerte, sentía que yo
también estuve ahí’ (p. 37).

Eliane Brum complementa:

Como repórter, a gente tem dois instrumentos, que são


os mais importantes: o olhar e a escrita. Eu me considero
uma escutadeira da realidade” (p. 76). “O desafio de cada
repórter é descobrir qual é a sua voz, qual é o seu jeito de
contar a história, qual é o seu jeito de fazer as coisas. Tenho
o meu e vou passar o resto de minha vida procurando a
minha voz. Quando a encontro, ela logo me escapa, porque
estou sempre descobrindo uma coisa nova. E cada um vai
ter que fazer isso para ter uma voz que seja sua e que seja
escutada” (p. 83).

2. A história é dos outros

Se o jornalismo narrativo, assim como postula Herrscher,


deixa claro o ponto de vista e a voz do jornalista, é das histórias
dos outros que ele deve se ocupar.

Pero el periodismo narrativo es capaz de hacer algo más


que transmitir la voz y el punto de vista del narrador.
Puede llevarnos las vocês, las logicas, las sensibilidades y
los puntos de vista de los otros... El outro no tiene que ser

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

necessariamente el enemigo ancestral de outra religión o


de outra etnia. Pueden ser los jóvenes o los viejos, la gente
de outra generación a la que no entendemos... Quien és,
donde está el ‘outro incomprensible’? Puede ser el mundo
de las mujeres para los hombres y vice-versa, el abismo
de las clases sociales, los que tienen otra preferencia o
necesidad sexual. Escuchar a alguien distinto a nosotros
contar su historia, desde su punto de vista, construyendo
la narración desde la que vem el mundo y nos vemos a
nosotros, es uma experiência que siempre nos descoloca,
a veces nos confunde, pero a lo largo nos enriquece”
(HERSSCHER, p. 37).

Eliane conta sobre o seu modo de ir ao encontro do outro:

Eu faço matérias e vou morando em alguns lugares e tal


e sempre peço para as pessoas: ‘Mostra o teu mundo’.
Porque o que a pessoa me mostra – e o que ela não me
mostra – são coisas muito importantes para começar a
entender como ela entende aquele mundo. Porque não sei
nada daquele mundo. Só sei o que li aqui e ali. Se eu for
para aquele mundo achando que sei sobre aquele mundo,
só vou aumentar a minha ignorância. Então eu tenho que
descobrir como aquela pessoa enxerga o seu mundo. Por-
que ela me mostra isso e não me mostra aquilo? Porque
ela deixa de me mostrar tal coisa? Essas são questões
importantes que só descubro dessa maneira” (p. 79). “A
gente sempre tem que lembrar que jornalista não é juiz.
É se deixar possuir pela história do outro. Ser preenchida
pela história do outro” (p. 77).

3. De fontes e declarações a pessoas e diálogos

Os jornalistas necessitam de pessoas, de gente para construir


sua matéria.

Los periodistas solemos tener fuentes, pero no los vemos


como lo que son, gente como nosotros. Los vemos como
expertos, testigos, poderosos o victimas de estos podero-
sos. Las fuentes largan parrafadas sin contexto; muchas

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

veces nos tiran sus conclusiones sin contarnos de donde


las sacaron, lanzan argumentos sin narrar la historia que
hay detrás, y aparecen y desaparecen de nuestros textos
sin que podamos ni verlas, ni olerlas, ni entenderlas. No
cuentan, ni recuerdan, ni reflexionan. Dan declaraciones...
Pasar de las fuentes a los personages y de declaraciones
a las escenas donde la gente se cuenta cosas es entrar en
el mundo del periodismo narrativo (p. 39).

É de método que a jornalista fala aqui:

Então, em geral, quando posso, chego para as pessoas e


digo: ‘Me conta’. – e o que ela me conta primeiro, e como
ela me conta, é informação importante, que não saberia
se tivesse feito a primeira pergunta. Porque a primeira
pergunta já direciona. Não estou nem falando daqueles re-
pórteres que saem com uma tese e obrigam o entrevistado
a falar uma frase para encaixar. Isso aí não é jornalismo,
nem levo em consideração, mas estou falando de uma
pergunta honesta mesmo. Mesmo a pergunta honesta
ela já direciona. Tenho feito algumas experiências nesse
sentido e tenho percebido como muda a apuração (p. 76).
“Outra coisa importante a dizer sobre esta escuta é que
não arranco nada de ninguém. Essas coisas de jornalista
que se orgulha de ter arrancado alguma coisa bombástica
de alguém, alguma coisa que essa pessoa não queria ter
dito, não me interessa” (p. 80).

4. O detalhe relevante

Os detalhes reveladores são, às vezes, uma pequena cena,


uma frase, uma imagem que bem captada pode abrir caminho ao
entendimento do acontecimento. Como periodistas, diz Herrscher:

[…] cuando encontramos una escena asi y la podemos


transmitir para que el lector sienta que la ve con sus
propios ojos, estamos entrando en una dimensión a la que
muchas veces sólo acede la ficción, la poesía, la música o
el cine. Pero estamos llegando ahí para contar la realidad,
permitirle al lector conocer algo de lo que pasa en el
mundo, en el país o en la ciudad (p. 41).

105
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Outra vez, a jornalista complementa a descrição do jornalista,


refletindo sobre seu método:

Então, o bom jornalismo é aquele que escuta o dito e o não


dito, escuta os silêncios, aquele que sabe que os gestos e
os cheiros podem ser informações tão importantes quanto
a palavra (p. 89).

5. Histórias que pedem e merecem ser contadas

Tudo o que diz respeito à vida merece ser contado. Mas nem
tudo se transforma em uma boa história.

Cuando se juntan la historia com su contador, cuando se


pone el enorme trabajo que lleva investigar y escribir a
fondo – horas y horas, dias y dias, meses y más meses –,
puede salir um texto que se escape del destino terríble
del periodismo, que es el olvido. Los grandes textos de
periodismo narrativo tienen, creo, uma enorme ambición
escondida. No buscan sólo informar, entreter o enseñar
algo. Buscam el mayor objetivo a que puede aspirar um
escrito: a que el lector cambie, crezca, conozca no sólo
uma parcela del mundo que desconocía, sino que ter-
mine conociendo uma parcela de sí mismo que no habia
frecuentado (p. 43).

Eliane reconhece quando a história é dela:

A história se impõe. É o meu compromisso. Quando uma


história me encontra, tenho que contar essa história (p.
86). Há um pacto entre a pessoa que conta a história e
o repórter que escuta a história. As pessoas me contam
porque desejam me contar (p. 80).

A narrativa jornalística, nesta perspectiva, quer mais que


informar e entreter. Quer que o leitor apreenda o tempo em que
vive, e que conhecendo a história desse um/outro, mude, amplie
ou transforme sua visão de mundo. É disto que se trata quando
um texto jornalístico corresponde a essas cinco características,

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

quando o acontecimento da atualidade se revela com palavras


que o iluminam.
Entre os gêneros jornalísticos, é na reportagem que melhor
se manifestam as potencialidades da narrativa. Ela desconcerta
com suas descobertas, esclarece o que estava na sombra, emociona
pelo modo de narrar. Beatriz Marocco, ao apresentar um pequeno
texto em que Foucault3 elabora uma proposta de “reportagem de
ideias” mostra os deslocamentos que esta propõe em relação ao
jornalismo convencional, porque “vincula o reconhecimento do
presente a uma perspectiva de crítica à ordem social hegemônica
e, mais concretamente, às práticas jornalísticas que a ela corres-
pondem” (MAROCCO, p. 35).
Também, nesta visão, a questão da fonte é enfatizada.

Há um sem número de classificações de fontes jornalís-


ticas e três atributos fundamentais para que a mesma se
constitua no seu sentido propriamente jornalístico: auto-
ridade, produtividade, credibilidade que estão diretamente
vinculadas aos processos jornalísticos, ao seu tempo de
produção e ao enquadramento da estrutura social que
esses possibilitam, e que reconhece e naturaliza, em certas
pessoas, posições de autoridade formal. De uma perspecti-
va foucaultiana, a fonte não é nada disso. Não corresponde
à autoridade, não tem o ônus da prova, nem da verdade e
nem terá uma forma jornalística prescrita nos livros de
estilo. A fonte se constitui como sujeito de seu próprio
discurso, nenhuma autoridade falará em seu nome, a fonte
não ocupa um lugar em que se lhe oprime a um modelo e
que é predeterminado, participando de uma relação que
se pretende libertadora da função de assujeitamento e
que potencializará, a partir de uma capacidade reflexiva,
uma intervenção na realidade dos sujeitos que assumem
tal condição” (MAROCCO, p. 41).

É este modo de pensar e de fazer jornalismo que encontramos


realizado na reportagem que estamos analisando.
3 Foucault escreveu As reportagens de ideias em 1978 para explicar sua proposta de produzir
um conjunto de reportagens reunindo intelectuais e jornalistas que “trabalharão no ponto de
cruzamento entre as ideias e os acontecimentos”.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

6. Memória já não mais silenciada

Nesse jeito de pensar a reportagem, o acontecimento jorna-


lístico é conduzido pela reflexão; conceitos e noções orientam o
trabalho de olhar, escutar e narrar. A reportagem da Eliane Brum,
no meu olhar de analista, tem como pano de fundo a “ideia” de
memória.
Nos jornais dos países da América Latina que viveram di-
taduras militares nos anos 1970, é comum encontrar entre as
notícias dos acontecimentos marcantes da atualidade informações
que indicam a persistência de um passado “que não quer passar”:
esclarecimento da identidade de filhos de militantes desaparecidos,
julgamento de torturadores, reconhecimento oficial para reparação
econômica das vítimas, instalação de Comissões da Verdade. Essas
notícias aparecem nos jornais após alguns anos de silêncio e de
tentativas de construção de experiências democráticas nas quais os
governantes apostaram na não prestação de contas com o passado.
Mas a memória é obstinada, e os sujeitos que guardaram no
corpo as dores do passado sabem que o que aconteceu é um tema
público e que seu esclarecimento é imprescindível para a consti-
tuição de sociedades democráticas. Depois de instalados os meca-
nismos formais da democracia, aparece, entre as exigências para
seu desenvolvimento e aprofundamento, a necessidade de colocar
em algum lugar a violência de Estado que pode ainda persistir, ou
os obstáculos para a vigência de um Estado de direito. A pergunta
sobre continuidades ou rupturas entre o que ocorreu nos regimes
ditatoriais e as democracias ainda frágeis precisa ser respondida e
se encontra nas bordas também das narrativas jornalísticas.
Não existe uma memória ou uma interpretação consensual
compartilhada por toda a sociedade, ao contrário, a memória é
disputada, há conflitos, pois, pessoas e fatos estão em julgamen-
to e dizem respeito a relações de poder. São cenários políticos
do presente que ativam a memória e, assim, também dão novos
sentidos ao passado. Questões que pareciam esquecidas ou pouco
relevantes reaparecem em função de novas demandas sociais ou

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

pontos de vista culturais, e impulsionam a busca por sinais, resí-


duos, testemunhos que tinham sido relegados.
O espaço da memória é, então, um espaço de luta política:
contra o esquecimento, para não voltar a acontecer, mas, também,
para fazer trabalhar o pensamento. Não basta recordar é preciso
saber pensar sobre o que passou. O tempo próprio da memória é o
presente, o tempo apropriado para trazer o passado para relembrar
e produzir a crítica é o presente.
Paul Ricoeur aponta um paradoxo nessa questão. O passa-
do já passou, é algo que não pode ser modificado. O futuro, pelo
contrário, é aberto, incerto, indeterminado. O que pode mudar é
o sentido deste passado, sujeito a reinterpretações ancoradas na
intencionalidade e nas expectativas em relação ao futuro. Este
sentido do passado é um sentido ativo, dado por agentes sociais
que se colocam em cenários de confronto e luta frente a outras in-
terpretações, outros sentidos, ou contra silêncios e esquecimentos.
A irrupção do passado no presente só é acessada pela narrativa,
que dá um continuum de significação e interpretação entre os dois
tempos. Livros de história, de ficção, documentários e filmes com-
põem o arquivo de memórias que circulam na sociedade. De outro
modo, a narrativa jornalística investiga, descobre, avança na eluci-
dação dos fatos passados, a partir do testemunho dos que viveram
a experiência e a expõe para partilhar por meio do jornalista que
converte a experiência do outro em algo comunicável. A narrativa
inscreve a experiência em uma temporalidade que não é a mesma
de seu acontecer, mas a de sua recordação, e resulta do encontro
da subjetividade daquele que testemunha com a subjetividade do
que escuta para narrar.

7. A reportagem de Eliane Brum

“Eles eram 400 nas ruas de São Paulo, no primeiro sábado


de dezembro, pedindo intervenção militar. Quatrocentos
não é pouco. Um é muito”.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

A reportagem publicada em 8 de dezembro de 2014, junto


com a constatação de um número, expõe a perplexidade que é
sua e que ecoa a indagação de muitas pessoas que se perguntam
como ela: como é possível que brasileiros reivindiquem a volta da
ditadura? A resposta que ela ensaia, é: “eles não podem saber o que
estão dizendo. Quem sabe, não diz, não seria capaz, não diria”. E
é pensando nesses que desconhecem o que foi a ditadura que ela
traz a experiência de um grupo que sabe como a ditadura agiu
porque conheceu suas prisões, ainda que apenas coadjuvantes da
luta contra ela. A jornalista “amplia a voz das crianças torturadas,
de várias maneiras, pela ditadura”. Ela conta na reportagem cinco
histórias das 44 que constam do livro publicado pela Comissão
da Verdade de São Paulo de adultos torturados na infância e
que testemunharam na Comissão. São relatos comoventes. De
Ernesto Dias do Nascimento que, com dois anos e três meses,
foi considerado terrorista, “elemento menor subversivo”, banido
do país por decreto presidencial. “Levaram-me diversas vezes às
sessões de tortura para ver meu pai preso no pau de arara. Para o
fazerem falar, simulavam me torturar, com uma corda, na sala ao
lado, separados apenas por um biombo”. De João Carlos Schmidt
Grabois, que foi preso ainda na barriga da mãe. A mãe estava
grávida e quando os carcereiros pegavam as chaves para abrir a
porta da cela e levá-la para as sessões de tortura, o bebê começava
a soluçar dentro da barriga. “Joca nasceu na prisão e, anos depois,
já crescido, quando ouvia o barulho de chaves, voltava a soluçar.
A marca da ditadura nele é um soluço”. Quando a mãe implorou
para a levarem ao hospital porque a criança podia morrer, depois
de muito pedir, o médico respondeu: “É melhor, um comunista a
menos”. De Carlos Alexandre de Azevedo, o Cacá, que não con-
seguiu transformar a lembrança em memória. Ele tinha um ano
e oito meses quando sua casa foi invadida por policiais do DOPS.
Como começou a chorar, os policiais deram-lhe um soco na boca
que sangrou. Preso, recebeu choques elétricos que nunca conse-
guiu descrever. Ele se matou aos 40 anos, seu pai disse: ele viveu
apavorado e esse pavor tomou conta dele. De Ângela Telma de
Oliveira Lucena que também viveu o conflito entre lembrar e es-

110
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

quecer. Ela tinha três anos e meio quando executaram o pai diante
dela. “Eu vivia um conflito entre apagar, riscar aquilo da minha
vida, mas, ao mesmo tempo, sabia que, se fizesse isso, estaria ris-
cando a história da minha família”. E complementa: “Eu gostaria
muito de poder apagar esse momento do assassinato do meu pai
da minha vida. Mas eu não posso, eu não consigo. Porque a única
memória que tenho do meu pai é exatamente o momento da sua
morte”. De Paulo Fonteles Filho, cujo parto da mãe4, grávida de
cinco meses, foi uma tortura iniciada por policiais e completada
por médicos. Era espancada com socos e pontapés aos gritos, de:
“Filho dessa raça não deve nascer”.
Depois de dar voz a esses “outros”, a jornalista assume seu
lugar de narradora sensível. “Essa é a memória das crianças da
ditadura. É a lembrança do parto de suas mães. Nós, que não fomos
torturados, não temos como alcançar como é viver com essa marca
– ou tentar fazer marca do que ainda é horror – num momento
histórico em que depois de tudo – alguns brasileiros perderam a
vergonha de pedir a volta da ditadura”.
Depois de trazer os casos que teve acesso pela Comissão da
Verdade de São Paulo, Eliane Brum narra a história de Grenaldo
Erdmundo da Silva Mesut, a quem ela acompanhou de perto, e
cuja história exemplifica as potencialidades que uma reportagem
pode ter quando reúne certos atributos da apuração, do empenho da
repórter e dos acasos que confirmam que as histórias procuram seu
narrador. Ao contrário da maioria, Grenaldo não tinha lembrança
da repressão, sabia pouco da ditadura que lhe submeteu a pior das
torturas: a ele foi negado o direito de saber que era filho de um
homem assassinado pela ditadura, a ele foi negado o trabalho da
passagem da lembrança para a memória.
Eliane conta como seus caminhos se cruzaram. Trabalhando
em uma reportagem, encontrou o nome de um médico legista
acusado de forjar laudos para a ditadura. Ilustrou a matéria com
dois casos em que ele teria atuado para apagar a responsabilidade
4 Hecilda, a mãe de Paulo Fonteles Filho, escreveu o livro Luta, substantivo feminino: mulhe-
res torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura. O livro foi publicado pela
Secretaria Especial dos Direitos Humanos.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

do regime militar. E publicou junto com a reportagem a foto dos


dois. Um deles era o marinheiro Grenaldo de Jesus Silva que se-
questrou um avião da Varig, foi morto no aeroporto de Congonhas
e mereceu no dia seguinte a versão do regime na capa dos jornais:
“Encurralado, terrorista suicidou-se”.
A pequena foto mobilizou lembranças. Um ex-sargento,
José Barazal Alvarez, especialista da aeronáutica, veio procurar a
repórter para contar que tinha ficado encarregado de recolher os
pertences do morto e tinha encontrado uma carta ensanguentada
em que contava ao filho as razões do sequestro e prometia bus-
car a família assim que chegasse ao Uruguai. Esse segredo tinha
ficado com o ex-sargento por 30 anos. Mais um exemplo do que
foi conviver com a ditadura. Ele não contou para ninguém, nem
mesmo para sua esposa, o que viu. O jovem não havia se suicidado,
mas tinha sido morto com dois tiros. A história estava buscando a
jornalista, pois ela saiu à procura do filho. Não encontrou nenhum
registro nos documentos que guardam os testemunhos das vítimas
da ditadura. Meses depois, outro telefonema. Agora da mulher do
filho, cuja irmã tinha encontrado a reportagem folheando a revista
velha no consultório médico. Grenaldo queria falar com Eliane.
Ele tinha crescido ouvindo seu pai ser chamado de ladrão, a
mãe não sabia da militância do pai e nunca tinha entendido o que
havia acontecido. Na sua vida de pobreza e maus tratos, não saber
do pai não causava estranheza. Agora, aos 35 anos, professor de
educação física e pai de família via, pela primeira vez, uma imagem
do pai. Eliane foi ao encontro dele levando livros sobre a ditadu-
ra. E tendo a responsabilidade de contar a um filho quem era seu
pai. Ela conta do seu temor. Por ela, ele não será tratado como
uma fonte, cuja história será espetacularizada depois. É ela quem
marca um encontro entre o filho e o ex-sargento. O que recolheu
o corpo do seu pai e leu sua carta. Também José encerrava com
o encontro, três décadas do pesadelo que o silêncio forçado traz.
Eliane seguiu com Grenaldo na busca por sua história. Conse-
guiram localizar a última pessoa a estar com seu pai no avião com
vida e provar que ele fora assassinado. Testemunhas lembravam do

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

estranho caso do homem suicidado com um tiro na nuca. Grenaldo,


o pai, foi reconhecido como um dos executados pela ditadura, e o
filho pôde receber uma indenização do Estado, reencontrar a avó
paterna e a letra do pai no verso de uma foto que enviou do filho,
dizendo: “São três anos que completo, sou um meninão. Um dia
vou crescer, visitar o Maranhão”. Três décadas passaram até ele
cumprir a promessa do pai.
E assim termina a narrativa da história de Grenaldo. O vazio
da ausência do pai está sendo preenchido com a construção da
memória. Agora ele tem um pai e sabe do país em que vive. E se
prepara para contar para sua filha a história do avô.
Quando Eliane Brum iniciou a primeira reportagem não sabia
o que a esperava. Foi uma apuração atenta que associou o nome do
médico legista, já ouvido outras vezes, como cúmplice da ditadura
que deu início a uma segunda reportagem. A que esclareceu mais
uma ponta da triste história da ditadura militar no Brasil. E que
esclarecendo narrativamente, tivesse impacto na vida de Grenaldo
assim como na de José. A memória é obstinada e, neste caso, levou
30 anos para dar um novo sentido à vida do filho que encontra o
pai através de uma foto 3x4. A reportagem analisada aqui segue
narrativizando o “passado que não quer passar” e confirma a
memória como luta política, como lugar de disputa de sentidos e
que é o presente que aciona e pede o esclarecimento do passado.
Na narrativa jornalística, conforme Herrscher, o jornalista dá
a ver sua autoria; reconhece o outro a quem dá voz e convida ao
diálogo; não deixa passar detalhes, pois estes podem ser de muita
importância na construção da reportagem; e sabe reconhecer
quando a história merece ser contada.
“Aos que defendem a volta da ditadura” é uma reportagem
autoral. Eliane Brum tem voz, assume o lugar que lhe instiga a
escrever esta reportagem, assume que vai dar voz a esses adultos
com suas lembranças de crianças torturadas. E escolhe a quem vai
dar voz em sua reportagem. São testemunhos que ela selecionou
retirados de um livro, aos quais acrescenta uma história que retoma
de uma antiga reportagem produzida por ela. É uma história em

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

que os detalhes foram muito importantes – há o nome de um mé-


dico que aciona uma pista para ser apurada, há uma carta perdida,
há um acaso no encontro de uma revista velha em um consultório.
As fontes não são fontes passivas ou interessadas em dar
versões sobre o acontecido. Elas estão tratando de suas vidas e
são ouvidas por uma escutadeira que lhes dá a posição de sujeitos
de suas histórias, não está à procura de uma boa declaração. Por
fim, a história das crianças torturadas encontrou sua narradora.
A história de Grenaldo Erdmundo da Silva Mesut foi mais que o
encontro da história com sua narradora para registro no jornal.
“Este eu conheci de perto. Testemunhei. Meu caminho se cruzou
com o de Grenaldo de uma forma que só acontece na vida real.
Se fosse ficção seria considerada tão fantasiosa que soaria de má
qualidade”.
Mas aqui a narradora não só contou para o outro a história de
sofrimento desse menino que virou homem, como pela apuração
jornalística construiu com ele a sua história. A narrativa aqui foi
emancipadora, cumpriu a função de curar as feridas produzidas
pelo silêncio sobre sua própria história. Diz a jornalista: “Eu
era a ponte imperfeita e aquém diante dele. Quando voltei desse
encontro, lembro de ter deitado na cama de roupa e ficado ali de
olhos estalados até o dia amanhecer, porque era tão grande aquilo,
grande demais”.
Eliane Brum desenvolveu uma estrutura de reportagem que
iniciou com a pergunta sobre quem são esses que reclamam a volta
do regime militar, escolheu histórias de crianças para ilustrar como
a ditadura agia, e, ao final, assume inteiramente seu ponto de vista:
“Não sei quem são os brasileiros que gritam nas ruas pedin-
do a volta da ditadura. Desconheço as pessoas que clamam por
intervenção militar como se isso não fosse uma vergonha, uma
indignidade, e sim a prerrogativa de ‘cidadãos do bem’. Acho que
nunca tive tanto medo desse deformado discurso ‘do bem’ quanto
hoje, essa época em que todo o pudor foi perdido e a ignorância
da História é ostentada como um troféu.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Dizem que eram ‘apenas’ 400 no primeiro sábado de dezem-


bro, em São Paulo. Alegam que 400 pedindo intervenção militar
é pouco. Eu digo que um é muito. Respeito o direito que têm de
se expressar, porque ao fazê-lo reforçam a expressão máxima da
democracia, na grandeza de acolher a voz até mesmo de quem
exige o seu fim. Mas me reservo o direito de, por um momento,
escolher a ingenuidade. Prefiro acreditar que vocês não sabem
do que falam nem o que pedem. Não podem saber. Se soubessem,
não ousariam”.
“Aos que defendem a volta da ditadura” tem afinidades com
a proposta de reportagem de ideias. É transgressora, porque vai
contra o pensamento dominante que quer o esquecimento da
ditadura militar no Brasil, potencializa o pensamento crítico e é
exemplar no tratamento do Outro. De fato, inexistem fontes nessa
reportagem. Há sujeitos que testemunham experiências vividas.
E o sujeito imaginado que mobilizou a reportagem ou a quem a
informação é dirigida – sejam 400 ou um – depois desta reportagem
não serão mais absolvidos por carência de informação.
Por fim, a reportagem mostra que são acontecimentos do
presente que acionam o passado, que só na democracia é possível
disputar a memória do país e que o jornalismo não pode abrir mão
de sua responsabilidade pública.

Referências

BRUM, E. Eu sou uma escutadeira. In: MAROCCO, B. O jornalista e a


prática. Entrevistas. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2012.
FOUCAULT, M. As “reportagens de ideias”. In: BERGER, C; MAROCCO, B.
Ilha do Presídio: uma reportagem de ideias. Porto Alegre: Libretos, 2008.
HERRSCHER, R. Periodismo Narrativo. Santiago do Chile: RIL Editores,
Universidad Finis Terrae, 2009.
MAROCCO, B. Reportagem de transgressão, um giro no tratamento da
fonte jornalística. In: BERGER, C; MAROCCO, B. Ilha do Presídio: uma
reportagem de ideias. Porto Alegre: Libretos, 2008.
RICOEUR, P. La memoria, la historia, el olvido. Madrid: Trotta, 2003.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

NEUTRALIDADE E SILENCIAMENTO
NO DISCURSO JORNALÍSTICO

Giovanna G. Benedetto Flores


Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul)

1. Introdução

N otícia ou informação? O que tem sido disponibilizado pela


grande mídia? Em trabalhos recentes tenho refletido sobre
o discurso jornalístico e a diferença entre noticiar e informar na
mídia brasileira, entendendo que a diferença se dá justamente no
modo de produção da notícia jornalística, como veremos mais
adiante neste artigo.
Para este trabalho tenho como objetivo compreender como
o discurso jornalístico produz efeitos de neutralidade e silencia-
mento, analisando discursivamente as condições de produção das
notícias e como as interpretações produzem estes efeitos. Para
tanto, tomo como corpus de investigação três materialidades
distintas. A primeira, a série da Rede Globo que iniciou em me-
ados de abril de 2017, “Os dias eram assim”; a segunda, um trecho
da reportagem que foi exibida no JN do dia 28 de abril, sobre a
greve geral que paralisou as grandes cidades do país e a terceira,
dois recortes da rede social facebook, que circularam dias antes da
estreia da série televisiva.

2. A série e os golpes

A série “Os dias era assim” retrata de maneira romantizada


o golpe militar de 1964 até meados dos anos de 1980. O cenário

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inicial é o Rio de Janeiro de 1970. Na trama temos um empresário


arrogante, um delegado corrupto, um médico recém-formado que
pertence a uma família classe média, com irmão adolescente, que
participa dos movimentos pela democracia contra o golpe mili-
tar. Entendo que a série é romantizada porque ela tem como fio
condutor o namoro do jovem médico com a filha do empresário,
que não aprova o relacionamento porque deseja que a filha case
com outro rapaz.
A série tem em seus primeiros momentos imagens de ar-
quivo da Central Globo de Jornalismo do golpe de 64. Imagens
de um confronto entre polícia militar, exército e manifestantes
de esquerda. Fotos dos jornais sobre o comunismo, imagens das
passeatas e do governo militar e exército, como podemos ver nas
três imagens da Figura 1, abaixo:

Figura 1: Imagens da abertura da série “Os dias eram assim”.

Fonte: Rede Globo

O primeiro capítulo da série inicia com o empresário falando


com o futuro genro sobre o jogo da final da Copa de 70 e na imagem
está a faixa “Brasil, ame-o ou deixe-o”, um dos slogan mais usado
pelos militares durante a ditadura. Ainda neste capítulo, temos
a cena entre dois rapazes que pixam a fachada da construtora do
empresário e um deles arremessa uma bomba caseira. Em seguida,

118
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

uma sequência de imagens da fuga dos jovens correndo a pé pelas


ruas da cidade. Sendo que um é baleado e capturado pela polícia.

Figura 2: Cenas do primeiro capítulo da série

Fonte: Rede Globo

No segundo episódio o médico é preso para esclarecer onde


ele e o irmão estavam na hora do atentado.

Figura 3: Depoimento do médico ao delegado

Fonte: Rede Globo

Vejamos as sequências discursivas deste diálogo entre o de-


legado, empresário e o médico:

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

SD1:
Empresário: olha só que coincidência, o doutorzinho insolente e ainda
por cima e além de tudo um agitador

Médico: não tenho nada com isso. Na mesma hora estava fazendo o
parto da cunhada dele (empresário)

Delegado: é verdade isso, doutor? (pergunta para o empresário)

Empresário: nada impede do moleque ter saído logo depois de mim


para danificar meu patrimônio

Médico: que provas tem contra mim?

Delegado: a família toda comprometida. O pai era professor de história.


Amigo de muitos subversivos do levante de 35...

Tanto nas figuras 1, 2 e 3 como nos diálogos que formam a


sequência discursiva 1, entendo que as imagens e as falas produ-
zem sentidos de uma memória sobre o golpe militar que reforça
o discurso de baderna, de jovens rebeldes e arruaceiros, sem es-
quecer das marcas da reforma do ensino, proposta recentemente
pelo governo Temer, de retirar disciplinas como história, filosofia,
artes e educação física, que ganham reforço na fala do delegado: o
pai era professor de história!
O interessante é que esta série começou agora em abril, mo-
mento político importante que estamos passamos. Mas não é a
primeira vez que a Globo produz série com o tema do golpe militar.
Entre julho e agosto de 1992, véspera do impeachment de Collor, a
emissora exibiu a série Anos Rebeldes, que também tratavam os
militantes de esquerda como arruaceiros e baderneiros.
Compreendo a partir dessas sequências, que há uma memória
funcionando para “não esquecer”. Discursivamente, entendemos
que a memória está ligada ao interdiscurso que disponibiliza
dizeres que foram ditos anteriormente, em outros lugares, pro-
duzindo deslocamentos nas redes de filiações sócio-históricas e
ideológicas. Ao trazer esta série, a Globo produz uma memória
que “cola” no momento atual, produzindo sentidos no discurso já

120
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

existente que as manifestações são sempre badernas e feitas por


moleques, inconsequentes, “esquerdopatas violentos”. Portanto, é
pela repetibilidade que os sentidos sobre as manifestações, sobre
as greves e movimentos sociais vão se construído na memória.
Segundo Indursky (2011, p.71), “repetir, para a AD, não significa
necessariamente repetir palavra por palavra algum dizer [...].
Mas a repetição também pode levar a um deslizamento, a uma
ressignificação, a uma quebra do regime de regularização de
sentidos”, ou seja, é pela repetição que a mídia constrói sentidos,
reconfigurando acontecimentos que permanecem na memória do
leitor, produzindo efeito de verdade.

No que tange à mídia, sua prática é muito clara. Ela pro-


duz um processo discursivo que é da ordem da repetibilidade.
No seu interior só há espaço para os saberes referentes à
Formação Discursiva Dominante, os quais são repetidos
à exaustão, até produzirem um efeito de verdade. Outras
tomadas de posição são excluídas, produzindo-se gestos
de silenciamento em torno de outros possíveis sentidos
(INDURSKY, 2015, p.14)1.

Ao produzir esta ordem da repetibilidade, que memória a mí-


dia produz no seu leitor/telespectador? Segundo Davallon (2007,
p.25) “para que haja memória, é preciso que o acontecimento ou
o saber registrado saia da indiferença, que ele deixe o domínio
da insignificância. É preciso que ele conserve uma força a fim de
poder posteriormente fazer impressão”. Ao produzir novamente
uma série sobre o golpe militar, num momento de conflitos e ma-
nifestações contra a política vigente, a Rede Globo reconstrói um
período que é considerado como o mais cruel que o país já viveu.
Ou seja, ao exibir uma série sobre os “anos de chumbo”, a emis-
sora faz com a sociedade relembre desse tempo e que considere
as atuais ações pelo retorno da democracia como baderneiras e
violentas, rejeitando qualquer manifestação contrária ao golpe
parlamentar de 20162. Ainda segundo Davallon (2007, p.27), “a
1 Grifos da autora
2 Considero golpe parlamentar de 2016 o processo de impeachment que retirou da presidência
Dilma Rousseff.

121
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

imagem representa a realidade, certamente; mas ela pode também


conservar a força das relações sociais (e fará então impressão sobre
o espectador)”.
Portanto, a memória que é produzida por esta série é de um
país em conflito, em desordem social e que há necessidade de usar
a força para combater opiniões contrárias ao regime ou ao golpe
parlamentar. Ou seja, é pelo trabalho da memória que a história
faz sentido, na retomada de um já-dito do discurso.
Segundo Ferreira, (2008):

A memória, enquanto possibilidade de dizeres que se


atualizam no momento da enunciação e como efeito de
um esquecimento correspondente a um conjunto virtual
de significações, funciona do dispositivo da Análise do
Discurso como um motor que aciona os incontornáveis
fios que chegam com toda a força da heterogeneidade, a
descontinuidade, da disjunção e também da ruptura. É
precisamente a memória e os processos discursivos que
são dela derivados os responsáveis por fazerem emergir
em uma memória coletiva aquilo que é próprio de um
determinado processo histórico. (FERRERIA, 2008, p. 15)

Entendo que a memória que se produz pela repetição pode ser


relacionada com a memória social que, segundo Mariani (1998, p.
35), garante “um efeito imaginário de continuidade entre as épocas,
ou, em outras palavras, a manutenção de uma narrativa coerente
para uma formação social em função da reprodução/projeção de
sentidos ‘hegemônicos’”. Isto é, ao produzir, neste momento polí-
tico brasileiro, uma série sobre a ditadura militar, os sentidos que
são colocados pela grande mídia são de repetição de uma época
de censuras, torturas, de conflitos, que podem ser reproduzidos
agora por manifestantes contrários ao golpe parlamentar de 2016.
Relacionando esta memória da produção artística da Rede Globo
com o discurso jornalístico, compreendemos que a emissora, ao
mesmo tempo que (re)lembra, quer produzir esquecimentos do
acontecimento histórico, pois para interpretar um acontecimento, é
necessário haver esquecimentos do que já foi dito, resultando assim

122
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

na naturalização de um sentido comum à sociedade, de maneira a


não haver contradições. Mariani entende ainda por memória social:

(...)um processo histórico resultante de uma disputa de


interpretações para os acontecimentos presentes ou já
ocorridos, sendo que, como resultado do processo, ocorre
a predominância de uma de tais interpretações e um (às
vezes aparente) esquecimento das demais. Naturaliza-se,
assim, um sentido “comum” à sociedade, ou em outras
palavras, mantém-se imaginariamente o fio de uma lógica
narrativa. Isto não quer dizer, porém, que o sentido pre-
dominante apague (anule) os demais ou que ele(s, todos)
não possa(m) vir a modificar. Muitas vezes os sentidos
‘esquecidos’ funcionam como resíduos dentro do próprio
sentido hegemônico (MARIANI, 1998, p. 34-35).

Podemos ver nessas sequências discursivas que há uma me-


mória social sendo mantida pela grande imprensa, que regulariza
sentidos sobre o golpe. Porque no funcionamento do discurso
jornalístico, é necessário manter uma memória sobre um aconte-
cimento como forma de impedir seu esquecimento.
Portanto, entendo que ao produzir a série, a Rede Globo
produz efeitos de sentidos (entre tantos) de não esquecer quem
eram “os baderneiros”, a esquerda de 64. Sentidos que colam nos
movimentos de 2013, 2016 e 2017. Sentidos de neutralidade do
discurso jornalístico. Guilherme Cardoso (2014), em sua disserta-
ção de mestrado intitulada “A Máscara do anonimato: uma perspectiva
discursiva”, analisa os possíveis efeitos de sentidos da máscara do
anonimato a partir das manifestações de 2013:

(...) o mascarado anônimo é associado à imagem de mani-


festantes que incitam/utilizam a violência (que mais tarde
passa a ser chamado mascarado e depois vândalo). (...) Es-
tes manifestantes ‘anônimos’, como a mídia os proclama,
produzem o efeito de estarem “vandalizando” o Estado
e a sociedade pelo viés discursivo da mídia (CARDOSO,
2014, p.113).

123
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Podemos pensar no deslizamento de sentidos que são pro-


duzidos pela mídia tradicional ao nomear os manifestantes de
baderneiros, vândalos, tanto em 1964 quando nas recentes mani-
festações, independente do uso de máscaras ou de rostos cobertos
por camisas, associando estes manifestantes a criminalidade e
marginalidade, apagando o caráter político e tornando as manifes-
tações ilegais. Ou seja, para a grande imprensa, os manifestantes
são indivíduos que devem ser presos, sem direitos, como mostra
a série Os dias eram assim. Estes sentidos de vandalismo estão
marcados tanto nas manifestações dos “anos de chumbo” como
nas manifestações mais recentes (2013, 2016 e 2017).
Compreendemos que é por meio da produção da série e da pro-
dução jornalística que a Rede Globo legitima o modo de produção
das notícias sem que o leitor se dê conta de seu funcionamento.
Devemos lembrar que a grande imprensa, historicamente, se ar-
ticula com o poder, tendo a mídia de referência a incumbência de
produzir heróis e bandidos. Segundo Althusser (1985) a imprensa
funciona como um aparelho ideológico e repressivo, porque corro-
bora com o Estado para impor suas ideias e legitimar suas ações,
sem que o leitor/espectador se dê conta deste funcionamento.

O papel do aparelho repressivo do Estado consiste essen-


cialmente, como aparelho repressivo, em garantir pela
força (física ou não) as condições políticas da reprodução
das relações de produção, que são em última instância
relações de exploração. Não apenas o aparelho de Es-
tado contribui para a sua própria reprodução (existem
no Estado capitalista as dinastias políticas, as dinastias
militares, etc.) mas também, e sobretudo o Aparelho de
Estado assegura pela repressão (da força simples mais
brutal às simples ordens e proibições administrativas,
`censura explicita ou implícita, etc.) as condições polí-
ticas do exercício dos Aparelho Ideológicos do Estado
(ALTHUSSER, 1985, p.74).

Também trago como parte do corpus um recorte da reporta-


gem que saiu no JN de 28 de abril, sobre a greve geral. A greve
foi convocada pelos sindicatos, associações e partidos insatisfeitos

124
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

com as reformas Trabalhista e da Previdência que o Congresso


Nacional está aprovando. Estas alterações fazem parte do pacote
de medidas do governo Temer.
A manifestação se deu nas principais capitais do país e algumas
grandes cidades do interior. A Rede Globo fez a cobertura3, mos-
trando fatos isolados, como podemos ver na sequência discursiva 2.
Na reportagem o JN mostra rapidamente como foi a manifestação
em várias cidades do país, ressaltando os conflitos entre policiais e
manifestantes, como podemos observar nas Figuras 4 e 5.

Figura 4: Reportagem do JN de 28 de abril de 2017

Figura 5: Passeata em Florianópolis, dia 28 de abril de 2017

Fonte: Facebook

3 Reportagem completa pode ser acessada em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/edico-


es/2017/04/28.html#!v/5834593. Acesso em: 29 de abril de 2017.

125
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

SD2: Também houve paralisação em várias cidades de Santa Catarina. A


polícia usou spray de pimenta em Florianópolis, para controlar tumulto
durante uma manifestação.

O que temos silenciado nesta reportagem é que o tumulto foi


isolado, sendo que 20 mil pessoas participaram de uma passeata,
no final da tarde, pela Beira-mar Norte em Florianópolis, de forma
pacífica. As imagens da Globo só mostraram “baderneiros”. Ou seja,
os sentidos de movimento violento, de esquerda, ficam naturalizados.
Retomando Indursky (2015) sobre o regime da repetibilidade,
ao reiterar a opinião a grande mídia se expressa por meio de um
processo discursivo construído pela repetição de argumentos,
omitindo outros argumentos possíveis.

(...) o resultado desses procedimentos argumentativos é


o de trazer uma posição como se fosse a única posição,
produzindo desse modo, um efeito de verdade (...) que
funciona como um efeito de memória não apenas para
o jornalismo televisivo da Rede Globo, como também
para seus telespectadores, pois faz ressoar notícias ante-
riormente veiculadas nos mesmos telejornais, buscando,
desse modo, instaurar o esquecimento de outras versões,
de outras posições (INDURSKY, 2015 p. 16-17).

É no/pelo discurso jornalístico que as instituições vão pro-


duzindo sentidos que interessam a determinados grupos/segui-
mentos da sociedade, apagando para o leitor o funcionamento da
produção de notícia e de informação.
Como disse anteriormente, tenho refletido sobre a diferença
entre notícia e informação no discurso jornalístico, entendendo
que esta diferença está na formulação do dizer de uma determi-
nada discursividade. Isto porque ao transportar o acontecimento
de uma discursividade para outra, apagando a historicidade e as
condições de produção do acontecimento, aquele dizer passa a ser
interpretado pela historicidade e pela memória do discurso jor-
nalístico, que produz uma nova interpretação. Conforme Ferreira
(2008, p. 16), podemos considerar a historicidade como “a inscri-

126
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

ção da história na língua e o movimento dos sentidos no texto,


que atuam no sujeito como âncora e como bússola, sustentando e
orientando seu trabalho de interpretação”. Portanto, as condições
de produção nessa nova discursividade justificam a interpretação
que o jornalismo vai dar, produzindo o sentido de neutralidade.
Compreendo que o efeito de neutralidade no discurso jor-
nalístico está relacionado à política do silêncio, isto é, o silêncio
constitutivo que, segundo Orlandi:

(...) se define pelo fato de que ao dizer algo apagamos


necessariamente outros sentidos possíveis, mas indese-
jáveis, em uma situação discursiva dada. [...] A política
do silêncio produz um recorte entre o que se diz e o que
não se diz. [..]o silêncio constitutivo pertence à própria
ordem de produção de sentido e preside qualquer produ-
ção de linguagem. Representa a política do silêncio como
um efeito de discurso que instala o antiimplícito: se diz
“x” para não (deixar) dizer “y”, este sendo o sentido a se
descartar do dito. É o não-dito necessariamente excluído
(ORLANDI, 2002, p.75-76).

Ou seja, o silêncio constitutivo apaga as condições de produção


do funcionamento do discurso jornalístico, apagando os sentidos
possíveis de uma outra formação discursiva, produzindo desse modo
o efeito de neutralidade da imprensa. Dito de outra forma, entendo
que a grande imprensa ao recortar a notícia, não considera a histo-
ricidade do acontecimento e ao silenciar outros possíveis sentidos
produz este efeito de neutralidade, como se tudo que interessa saber
está ali reportado e, ao mesmo tempo, produz o efeito de verdade
nesse discurso, que nada mais é que uma direção de sentidos.

(...)noticiar, no discurso jornalístico, é tornar os aconteci-


mentos visíveis de modo a impedir a circulação de sentidos
indesejáveis, ou seja, determinar um sentido, cujo modo
de produção pode ser variável conforme cada jornal, mas
que será sempre submetido às injunções das relações de
poder vigentes e predominantes (MARIANI, 1998, p. 82)4.

4 Grifo da autora

127
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Essas marcas da neutralidade reverberam em outras mídias


e nas redes sociais. Podemos ver o funcionamento nos posts do
facebook que circularam na semana que iniciou a série “Os dias
eram assim”:

Figura 6: Post do Facebook, de abril de 2017

Nos dois posts temos as seguintes sequências discursivas:

128
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

SD3: Os Dias Eram Assim, trata da época da ditadura militar; traz os


militares como bandidos, tiranos e ditadores; mais uma vez a Rede
Globo tenta moldar o caráter das massas menos instruídas. (...) diga
não à Globo e à sua nova série: Os Dias Eram Assim (...) Os militares
são disciplinados. São homens e mulheres de bem; são honrados e tem
valores elevados como as famílias.

SD4: Bom dia! Enquete: Você conhece alguém, ou alguém que conhece
alguém que foi perseguido/preso/torturado pela ditadura militar? Não?
Ah tá... (só conferindo) eu tbém não! O que vc sabe é o mesmo que
eu: uma dúzia de terroristinhas mal intencionados que colocaram a
soberania e a segurança do país em risco e tiveram que ser combati-
dos. (...) Agora é fácil contar estórias ao Zé Povinho pra transformar
em mártires estes personagens que todos sabem, estão hj fazendo
HISTÓRIA nos anais da atual cena política e transformando o Brasil
no país mais corrupto que se tem notícia. Meus familiares e amigos
que viveram naquela época do regime militar falam de um tempo de
ordem, liberdade e prosperidade. E olha que é muita gente. De certo
viviam em outro país??? Não creio... pronto, falei!

Relacionando as três materialidades aqui analisadas, a série


Os dias eram assim, a reportagem e os posts do facebook, enten-
demos que é nessa junção que a grande mídia produz o efeito de
neutralidade. Portanto, ao produzir a série ela cria um efeito de
sentido que “apenas” retrata um período da história do Brasil, mas
que, ao mesmo tempo, produz diversas interpretações, depen-
dendo da formação discursiva que o telespectador está inscrito.
Ou seja, “o sujeito sempre fala de um determinado lugar social, o
qual é afetado por diferentes relações de poder” Grigoletto (2007,
p.128), que o sujeito vai se identificar ou não com os dizeres de
uma formação discursiva e, desse modo, interpretar a série ou
a reportagem. Entendo que a série “os dias eram assim” só cor-
robora com a produção de sentidos de neutralidade no discurso
jornalístico, porque permite, tanto pelo post do facebook como
pela reportagem do JN, interpretações que marcam os efeitos
de neutralidade e silenciamento no discurso jornalístico e no
processo de naturalização do discurso da grande imprensa, que a
emissora tanto busca impor aos telespectadores, ora como forma
de notícia, ora como informação.

129
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Parece que a TV aberta não está mais preocupada em passar


“neutralidade” e toma partido da produção (séries e novelas) acima
de qualquer outra prerrogativa.

Referências

ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos


ideológicos de Estado. Trad. Walter José Evangelista e Maria L.V. de
Castro. 2. Edição, Rio de Janeiro: RJ, Edições Graal, 1985
CARDOSO, G.A.M. A máscara do anonimato: uma perspectiva discursiva.
148p. Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem) Programa
de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem, Unisul, 2014.
DAVALLON, J. A imagem, uma arte de memória. In: ACHARD, P. (et
al) (Orgs). Papel da memória. Trad. José Horta Nunes. 2. Edição.
Campinas, SP: Pontes Editores, 2008. p. 23-32.
FERREIRA, M.C.L. A ciranda dos sentidos. In: Romão, L.M.S; GASPAR,
N.R. (Orgs). Discurso Midiático: sentidos de memória e arquivo. São
Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2008. p. 13-22
GRIGOLETTO, E. Do lugar social ao lugar discursivo: o imbricamento
de diferentes posições-sujeito. In: INDURSKY, F; FERREIRA, M.C.L.
Análise do Discurso no Brasil. Mapeando conceitos, confrontando
limites. São Carlos, SP: Claraluz, 2007 p.123-134.
INDURSKY, F. A memória na cena do discurso. In: INDURSKY, F (et al)
(Orgs). Memória e história na/da análise do discurso. Campinas, SP:
Mercado de Letras, 2011. p. 67-89
INDURSKY, F. Políticas do esquecimento x políticas de resgate da
memória. In: FLORES, G.G.B (et al). Análise de discurso em rede: Cultura
e Mídia. Vol. 1. Campinas, SP: Editora Pontes, 2015. p. 11-27
MARIANI, B. O PCB e a imprensa. Os comunistas no imaginário dos jornais
(1922-1989). Rio de Janeiro, RS: Editora Revan; Campinas, SP: Editora
Unicamp. 1998
ORLANDI, E. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. 5. Edição,
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002

130
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

UMA REFLEXÃO SOBRE INTERVENÇÕES DOS


ESCRITORES E O EFEITO VERDADE

Vanise Medeiros
Universidade Federal Fluminense (UFF/CNPq)

...sem o esquecimento,
a história não poderia continuar a ser escrita.
(Grafton, 1998. p. 187)

1. Primeiras reflexões

E ste artigo nasceu da participação no evento SEDISC, no


qual apresentamos uma parte das pesquisas desenvolvidas
no Laboratório Arquivos do Sujeito (LAS/UFF), a saber, aquelas
que têm como suporte teórico a História das Ideias Linguísticas
(AUROUX, 1989) no encontro com a Análise de Discurso no
Brasil (ORLANDI, 2001)1. Dentre elas, focalizamos uma outra
subparte de pesquisa: aquelas relativas aos trabalhos que tocam a
relação entre escritor e língua, seja na forma de intervenções e/
ou de reflexões sobre a língua. Agora, queremos promover uma
reflexão específica: sobre o espaço do rodapé na medida em que
aí se coloca em cena a escrita do escritor em, ao menos, duas di-
mensões: uma, que situaremos como volta sobre a palavra; outra,
que indicaremos como volta sobre o dizer.
A primeira dimensão traz à cena campos como da lexicogra-
fia, da semântica e da morfologia, na medida em que se retorna
sobre a palavra apontando seu(s) sentido(s) e, por vezes, sua for-
mação, sua etimologia. Sobre a segunda dimensão, diremos que o
foco não reside tão somente sobre uma palavra ou expressão, mas
1 O título do trabalho apresentado no evento foi: “O político na língua: o intelectual e a língua”.

131
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

sobre algo que se diz. Tal divisão também pode ser pensada como
aquela que vai separando dicionários de enciclopédias.
Conforme Nunes (2007, p. 175), a partir do século XVII,
vai se instaurando uma separação entre dicionários de língua e
dicionários enciclopédicos. Os primeiros vão se configurando
como aqueles que portam um conhecimento sobre a língua; já os
segundos, como aqueles que discorrem sobre as coisas do mun-
do (ESTEVES, 2014, p. 49-50). São, conforme Debove (1984),
duas as ordens de verbetes distintos: das palavras e das coisas.
Retornando às duas dimensões anteriormente propostas, acres-
centaremos que a segunda dimensão, que aproximamos do fazer
enciclopedístico, também coloca em cena o campo da historio-
grafia: por exemplo, indicam-se fontes, referências sobre aquilo
que se narra. Assim como ocorre no campo historiográfico, os
rodapés pelo escritor dizem respeito à escrita, isto é, se voltam
sobre o que vai sendo narrado, descrito. Isto nos permite pensar
que esta prática no terreno literário não é sem relação com o
fazer historiográfico.
Já são alguns os trabalhos em que venho me centrando na
primeira dimensão propondo as notas sobre a palavra, sejam ao
de pé de página ou ao final do livro, como compondo glossários da
língua (MEDEIROS, 2012, 2016, por exemplo). Com este artigo,
quero começar a pensar a segunda dimensão, qual seja, das notas
incidindo sobre o dizer, sobre o que se narra, e, assim, sobre a
escrita como intervenção sobre o fazer literário. Isto não signifi-
ca que a primeira dimensão, nota sobre a palavra, não constitua
também uma intervenção. Ao contrário, ela o é. Apenas a ordem
de intervenção é distinta; nesta segunda, ela se dá sobre as coisas
a saber, a atestar, confirmar, negar, refazer, reiterar, entre outros
movimentos. Uma guinada sutil que me joga no campo da histo-
riografia para pensar a escrita.

2. Exemplos para conversa

Vou começar trazendo cinco exemplos de notas para circuns-


crever um campo de trabalho e iniciar uma reflexão que mostra

132
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

os liames entre escrita literária e escrita historiográfica. São eles


constituídos por notas de Alencar ao livro O Guarani.

Igara – significa em guarani canoa, atiati é o nome que


davam à gaivota. (1957, p. 402)

Guarani – O título que damos a êste romance significa


o indígena brasileiro. Na ocasião da descoberta, o Brasil
era povoado por nações pertencentes a uma grande raça,
que conquistara o país havia muito temo, e expulsara os
dominadores. Os cronistas ordinàriamente designavam
esta raça pelo nome Tupi, mas essa denominação não era
usada senão por algumas nações. Entendemos que a me-
lhor designação que se lhe podia dar era a da linguagem
que falavam e naturalmente lembrava o nome primitivo
da grande nação. (1957, p. 401)2

Convento do Carmo – “Logo que os carmelitas se esta-


beleceram em Santos pela doação de José Adôrno, em
1589, se passou ao Rio de Janeiro o Padre Fr. Pedro, para
fundar aqui o convento do Carmo. Suposto não conste
com certeza o ano da fundação é indisputável todavia
que fôra entre 1589 e 1590, pois que já estava aquêle feito
em 1595. Corria por tradição geralmente ter sido o seu
comêço em 1590.” (B. da Silva Lisboa, tom. VII, capítulo
2º. § 6º. (p. 403)

Árvores de Ouro – A sapucaia perde a folha no tempo da


florescência, e cobre-se de tanta flor amarela que não se
vê nem tronco, nem galhos; o mesmo sucede à imbaíba,
ao pau-d´arco e ourtas árvores. (Gabriel Soares, Roteiro
do Brasil, e B. da Silva Lisboa, Anais)

Curarê – Le boboré, dont le révélend père Gumilha a donné


la description dans son Orenoco Ilustrado, parait être exac-
tement le même dont l´abbé Gilly parle dans son Histoire de
l´Amerique et qu´on designe aujourd´hui par le nom de curarê.
Suivant M. Humboldt, c´est um strichnos, et il ne faut pas le
confondre avec le tucunas, composé toxique dont parle M. de
la Condamine dans la relation de son Voyage aux Amazones
- Dr. Sigaud, Du Climat et des Maladies du Brésil.
2 Foi mantida a ortografia da edição de 1957.

133
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Sobre a violência do curarê, diz ainda o Dr. Sigaud o seguinte:

Em 1830, le président C. J. Nymer apporta du Pará à Rio


de Janeiro une petite portion de curarê qu´on fit prendre à
petites doses à divers animaux, qui tous ont succombé em peu
d´heures dans des convultions violentes. Le docteur Lacerda, qui
a longtemps pratiqué au Pará et au Maranhão, a fait, dit-on,
d´importantes recherches sur les poison violent, causant d´abord
um état tétanique, ensuite une torpeur générale qui précàde la
mort. (p. 406)

Em que pese as diferenças entre tais notas, as cinco nos jo-


gam no que indicaremos como efeito verdade: seja sobre a palavra
(igara), indicada por seu significado no movimento de tradução
para outra língua (do guarani para o português), seja sobre o nome
que metonimiza indígena brasileiro no livro (Guarani), seja sobre
a data de construção de um convento (Convento do Carmo), seja
sobre a vegetação (Árvores de Ouro), seja ainda sobre algo a saber
como um certo tipo de veneno (Curarê).
Se igara diz respeito à primeira dimensão, volta sobre a pala-
vra no gesto dicionarístico, com as demais o gesto é outro, isto é,
aquele que assinalamos como enciclopédico. Não se trata somente
de defini-las, traduzi-las ou de produzir sinonímias, por exemplo,
mas do que indicamos como coisas a saber. Nelas podemos ler cita-
ções atestatórias do dizer sobre ano de fundação de um convento,
sobre um certo tipo de veneno, sobre a flora no Brasil, como tam-
bém lemos uma argumentação que se constrói com recusas sobre
interpretações anteriores, que indica erros, equívocos de fontes
diversas, caso de Guarani, em que se discute a denominação tupi
para indicar nação indígena. Em suma, nelas encontramos fontes
a serem referenciadas (caso de Convento do Carmo, Curarê e Árvore
de Ouro) ou expostas em seus tropeços (caso de Guarani), sejam
fontes em língua portuguesa ou francesa. Fontes e efeito verdade:
é sobre tal relação que queremos nos ater por ora, uma vez fazem
parte da rotina historiográfica e, como vimos, se fazem presentes
também em notas de textos literários, sobretudo do século XIX
(caso, por exemplo, de Alencar e de Visconde de Taunay).

134
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Uma ressalva antes de prosseguir: em Alencar, nas notas


sobre a língua também são encontradas referências várias que se
refuta ou não; isto acontece sobremaneira com as notas de Diva,
por exemplo. A divisão que promovemos e o destaque às notas de
caráter enciclopédico têm como meta pensar essas intervenções em
rodapé sobre a escrita literária indicando um funcionamento que
se aproxima da escrita historiográfica, isto é, um funcionamento
que incide sobre a veracidade, daí efeito verdade.

3. Fontes e efeito verdade: da construção


da evidência

As fontes fazem parte do discurso histórico contemporâneo;


no literário, elas não são regra, mas se tornam comuns em certos
períodos, como é o caso do século XIX3. Já propus algumas refle-
xões sobre as notas no discurso literário em outros artigos e, mais
recentemente, sobre a relação entre as notas no discurso histórico
e literário (MEDEIROS, no prelo)4; agora penso em prosseguir a
reflexão me centrando na questão da referenciação nas notas (isto
é, no que se constrói como prova, como fontes secundárias) e no
efeito verdade que elas configuram.
Ginzburg (2007) refletindo sobre a escrita da história, nos fala:

Afirmar que uma narração histórica se assemelha a


uma narração inventada é algo óbvio. Parece-me mais
interessante indagar por que percebemos como reais os
fatos contados num livro de história. Em geral se trata
de um resultado produzido por elementos extratextuais
e textuais (2007, p. 18).

Noções como verdade, fatos, realidade estão no cerne de tal


reflexão e comparecem transversalmente nesta citação ao serem
indicados elementos extratextuais. Antes de continuar nossa re-
flexão, é necessário dizer que, no que tange aos fatos, Ginzburg
3 Em relação às notas no discurso literário, estamos considerando aquelas produzidas pelos
escritores brasileiros sobre seus textos.
4 “Na urdidura das notas de rodapé, arquivos da língua” , in Museus, arquivos e produção do
conhecimento em (dis)curso, Venturini, Maria Cleci (Org.), Campinas: Pontes, no prelo.

135
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

opõe-se a Barthes, com quem também dialoga em seu livro. Se para


Barthes “o fato nunca tem mais do que uma existência linguística”
(GINZBUG, p. 241), a posição de Ginzburg é diferente,

Penso que os fatos têm uma existência extralinguística,


e que a noção de verdade é parte de uma história muito
longa, que coincide talvez com a história da espécie. Mas
os processos usados para controlar e comunicar a verdade
mudaram ao longo do tempo (2007, p. 341).

Em outras palavras, há, para Ginzburg, em oposição ainda


aos céticos, uma existência extralinguística5, mas esta é mediada
por procedimentos, “convenções literárias com que historiadores
antigos e modernos tentaram comunicar o ‘efeito de verdade’ que
consideravam parte essencial da tarefa que se atribuíram.” (2007,
p. 18, aspas do autor)6. Desses elementos textuais fazem parte, por
exemplo, as citações e as notas que “podem ser considerados como
procedimentos destinados a comunicar o efeito de verdade – os
equivalentes da enargeia.” (idem, p. 37). Sobre a enargeia, é preciso
assinalar que significava “clareza, vividez” (idem, p. 39) e que ca-
racterizava a prática dos oradores da antiga Grécia. A tradução
de enargeia para língua latina se dá com Cícero, que forja o termo
evidência “para traduzir o étimo grego: enargeia.” (HARTOG, 2013,
p. 12). Chegamos à evidência.
Em que consiste uma evidência? O que é uma evidência?
Uma evidência é uma verdade? Qual a relação entre evidência e
verdade? Por que tais indagações se falamos do lugar da Análise
de Discurso, um campo que põe em xeque a questão da evidên-
cia? Uma resposta seria lembrar que as referências constroem
no texto um lugar de evidência, de sustentação, de garantia, de
atestação do dizer trabalhando, deste modo, o que seria indicado
como verdadeiro, já que amparado pela referenciação. E isto tem
história que historiadores sobre a escrita da história denunciam.

5 Da qual Ginzburg não se ocupa, ao menos no capitulo “Descrição e citação” em O fio e os


rastros, 2007.
6 A expressão “efeito de verdade” foi, conforme Ginzburg (2007) indica em nota, tomado de
Barthes, mas em perspectiva oposta a ele.

136
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Para pensar o efeito verdade que a evidência trabalha, é em


Ginzburg (2007) e Hartog (2013), a despeito de suas oposições,
que nos apoiamos. Em Hartog encontramos alguns sentidos de
evidência ao longo da história. Dois dos primeiros que este histo-
riador nos aponta para evidência ancoram-se na visão. Vejamos.
Já enargeia, de enarges, em Homero, orientava para a “visibi-
lidade do invisível” (idem, p.12) pondo em relevo a visão, o que é
saliente também para Aristóteles:

Para Aristóteles, é a visão que, “por excelência, é o sentido


de evidência”, Associada, com efeito, à visão, a evidência
dos filósofos é “critério de si, index, sui, ligada ao verdadei-
ro e necessariamente verdadeira. A enargeia está aí para
garantir que o objeto é tal como ele aparece” (HARTOG,
2013, p. 12, aspas e itálico do autor).

Com efeito, um primeiro sentido de evidência atrela-se à visão


e terá desdobramentos ao longo da escrita da história. Seguindo a
leitura de Hartog, ele nos diz que é tal sentido que Cícero traduz
como evidência. Um sentido que difere daquele dos oradores, em
que também enargeia indicava visão; no entanto, com estes não se
tratava de uma visão já dada, mas de uma visão a se fazer surgir,
de criar a ilusão da presença:

É totalmente diferente o que se passa com a evidência dos


oradores: ela nunca é dada, mas impõe-se fazê-la surgir,
produzi-la pelo logos. Não estamos na visão, no primeiro
sentido, mas no como se da visão, já que o verdadeiro traba-
lho do orador consiste em transformar, como é sublinhado
por Plutarco, o ouvinte em espectador. A força da enargeia
permite justamente colocar sob os olhos (pro ommaton
tithenai; ante oculos ponere): ela mostra, ao criar um efeito
ou uma ilusão de presença. Pela potência da imagem, o
ouvinte é afetado à semelhança do que teria ocorrido se
ele estivesse realmente presente” (HARTOG, 2013, p. 12).

Diferentemente do sentido de evidência indicado anterior-


mente para os filósofos, com os oradores o deslocamento se dá para

137
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

o fazer ver como se estivesse presente. O problema, ele lembra, é


que o historiador antigo não podia “ter acesso à visão do filósofo,
mas também não poderia satisfazer-se com a visão (secundária)
do orador” (idem, p. 12), isto é, com o como se do orador. Estava,
para ele, posto o problema da distinção (e da relação) entre história
e ficção. Não vamos adentrar nesta seara nem percorrer o longo
caminho da escrita da história; queremos passar para o terceiro
sentido que ele nos mostra para evidência: decorrente do termo
inglês evidence, aí ela comparece como “sinal, marca, prova, teste-
munho” (idem, p. 13), de ordem jurídica, judicial e médica.

De natureza principalmente jurídica e judicial, mas tam-


bém da área da medicina, esse registro tem sido utilizado
pela história. Uma leitura dos primeiros capítulos de
Tucídides é suficiente para fazer tal demonstração: não
prescindindo, de modo algum de indícios e provas, ele
define a história como pesquisa e investigação, busca da
verdade (HARTOG, 2013, p. 13).

Urge lembrar que aquilo que se aponta como indícios e pro-


vas aí não são ainda o que a partir do século XVII começa-se a
entender como fontes primárias e secundárias, fraturando assim,
conforme Ginzburg, como se entendia a narrativa da história. Ou
melhor, ainda conforme Ginzburg:

A diferença entre o nosso conceito de história e o dos


antigos se resumiria da seguinte forma: para os gregos
e romanos a verdade histórica se fundava na evidentia (o
equivalente latino da enargeia proposta por Quintiliano7);
para nós, nos documentos (em inglês, evidence) (GINZ-
BURG, 2007, p. 24).

A evidência passa então a ser construída nos documentos, nas


provas, nos arquivos. É aí que se tece o efeito verdade que sustenta
o discurso historiográfico (embora não somente8). Dito de outra
7 Como podemos ler em Ginzburg, Quintiliano propõe a evidentia in narrationne: “na narração
a evidência é, na verdade, uma grande virtude, quando algo de verdadeiro não só deve ser
dito, mas de alguma maneira também mostrado.” (GINZBURG, 2007, p. 20)
8 Não vamos entrar em outras formas como a do testemunho, por exemplo.

138
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

maneira, documentos, provas vão se constituindo como parte da


escrita da história, uma parte que comparece nas notas. E, assim, as
notas vão se configurando como os alicerces da construção histo-
riográfica, dando solidez a ela. Trata-se, pois, de uma escrita que se
marca por uma dupla narrativa: de um texto e de seus comentários,
referências, citações tecidos também no rodapé. Enfim, as citações
vão se tornando indispensáveis no discurso histórico, bem como
servem para mostrar as provas do que se narra. Não se abre mais
mão da referenciação. Estamos diante dos “processos usados para
controlar e comunicar a verdade” de que fala Ginzburg. Processos
que institui a nota como lugar de atestação do dizer.

4. Por uma pausa na reflexão

Em “Na urdidura das notas de rodapé, arquivos da língua”


(MEDEIROS, no prelo), trouxemos de Grafton a história que
tece das notas de rodapé. Aí, são recuperados alguns momentos
do nascimento do rodapé (séculos XII, XVII, XVIII e XIX) para
se compreender como tal espaço se torna prática corrente dos his-
toriadores, rotina no século XIX. Com ele, podemos acompanhar
como as notas do discurso historiográfico vão se articulando como
da ordem da necessidade, da precisão (justeza e adequação). No
discurso historiográfico, elas se tornam imprescindíveis, passam
a constituir regra para a escrita historiográfica. Se são, podemos
dizer, imperiosas no discurso historiográfico; inusitadas, diremos,
no discurso literário.
Mas não é assim no século XIX e não é assim com Alencar.
Elas se fazem presentes em muitos dos seus romances; são abun-
dantes e longas por vezes. São notas que acumulam informações
e fontes várias: Alencar recupera cronistas, historiadores, escri-
tores, naturalistas, filósofos, filólogos, entre outros. São notas
eruditas9pela profusão de autores capturados, de saberes apre(e)
ndidos. Uma erudição que se faz observar também nas línguas
que comparecem nas notas10: nelas lê-se citações em francês, em
9 E aqui pensamos o gesto erudito como da completude e do excesso.
10 E há que se notar que as línguas outras, seja tupi, seja francês, aparecem em itálico, indicando
sua alteridade.

139
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

latim, em tupi (e sobre tal língua se discorre e se promove análi-


se). Uma erudição que denuncia um leitor capaz de acompanhar
tais línguas, mas, sobretudo, uma erudição que trabalha o efeito
de sustentação do dizer. Nesse espaço, em Alencar, encontramos
documentos, provas que trabalham o efeito verdade, como vimos
nos exemplos já dados. Ainda uma última amostragem: agora
de exemplos de nomes próprios de personagens do livro. Em O
Guarani, comparecem notas cuja entrada é um nome próprio11:

D. Antonio de Mariz – Êste personagem é histórico, assim


como os fatos que se referem ao seu passado, antes da
época em que começa o romance.
Nos Anais do Rio de Janeiro, tomo 1º. Pág. 328, leia-se uma
breve notícia sobre sua vida.

D. Diogo de Mariz – Êste personagem também é histórico.


Em 1607 era provedor da alfândega do Rio de Janeiro,
cargo que tinha servido seu pai alguns anos antes, Silva
Lisboa - Anais.

Garcia Ferreira – Garcia Ferreira foi promovido no ofício


de tabelião do Rio de Janeiro por Salvador Correia de Sá,
em 15 de fevereiro de 2588 (B. da Silva Lisboa)

Nelas, indica-se que os personagens são históricos, isto é,


como tendo existência não ficcional, lê-se sobre suas vidas e onde
aferir as informações (as fontes onde se pode atestar o dizer). Um
parêntese: isto não ocorre com personagens centrais do romance
quando seus nomes compõem verbetes. Observem-se:

Peri – Palavra da língua guarani que significa junco sil-


vestre.
Ceci – É um verbo da língua guarani que significa ma-
goar, doer.

11 Em Ubirajara e em Iracema também se encontram notas com nome próprio. Contudo, o


funcionamento é diferente daquele de que estamos tratando em O Guarani.

140
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Neste caso, cujos únicos nomes são Peri e Ceci12, a nota se


volta sobre a palavra e sobre o que tais nomes significam num
movimento tradutório que, ao mesmo tempo que remete para
a língua guarani (palavra ou verbo em língua guarani), a apaga
em duas instâncias: no gesto da escrita na ortografia em língua
portuguesa (Peri, Ceci) que vela a língua do outro; no gesto que
dela faz restar o que se trabalha como significância (junco silvestre,
magoar, doer)13.
Com efeito, nas notas em Alencar se compõe a evidência
documental com que se constroem imagens da língua, da terra,
do brasileiro, do indígena, dos costumes, com que se forma uma
literatura nacional, como se sabe, e indo adiante, com que se ar-
quiteta o que seria nacional.

REFERÊNCIAS

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ed. Aguilar, 1957.
BALDINI, Lauro. “Listas de palavras, dicionários e enciclopédias. O que
nos ensinam os enciclopedistas sobre a natureza dos instrumentos
lingüísticos”, In: Línguas e instrumentos lingüísticos, n.20, São Paulo:
Pontes; Campinas: UNICAMP 2008.
ESTEVES, Phellipe Marcel. da S. O que se pode e se deve comer: uma leitura
discursiva sobre sujeito e alimentação nas enciclopédias brasileiras (1963-
1973). Tese de doutorado, UFF, 2014.
COLOMBAT, B., FOURNIER, J-M, PUECH, C. Histoire des idées sur le
langage et les langues. Paris: Klincksieck, 2010.
GINSBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício, SP:
Companhia das Letras, 2007.
GRAFTON, A. As origens trágicas da erudição: pequeno tratado sobre a nota
de rodapé, Campinas: Papyrus, 1998.
HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. BH:
Autentica, 2013.
MEDEIROS, Vanise. “Um glossário contemporâneo: a língua merece que
se lute por ela”. Medeiros, Vanise. Revista Rua, no. 18, novembro
de 2012.

12 Uma observação: Ceci é filha de D. Antonio de Mariz, mas não tem abonação ao seu nome
tal como ocorre com o pai.
13 Diferentemente de Ubirajara, a língua tupi não aparece em O Guarani, a não ser velada, no
gesto tradutório, pela portuguesa.

141
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

_____. “Cartografias das línguas: glossários para livros de literatura”.


Revista Alfa, no. 1, v. 60, 2016.
_____. “Língua e sujeito na captura da palavra”. In: Nunes, Silvia Regina;
Silva, Agnaldo Rodrigues da; Karim, Jocineide Macedo; Motta,
Ana Luiza Artiaga R. (Orgs.) Sujeito e memória: lugares constitutivos.
Campinas, SP: Pontes, Coleção Enalich, 2017.
_____. Percursos de uma pesquisa: o escritor e seus dizeres sobre a língua.
(no prelo: livro do CELSUL)
_____. “Na urdidura das notas de rodapé, arquivos da língua”. In Museus,
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FAPESP; São José do Rio Preto: FAPERP, 2006.
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REY-DEBOVE, Josette. “Léxico e dicionário”, Revista Alfa, no. 28, pp.
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142
Discurso, Arquivo e Tecnologia
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

ENTRE A DISPERSÃO E O CONTROLE: LER OS


ARQUIVOS DA INTERNET HOJE

Evandra Grigoletto
Universidade Federal de Pernambuco (UFPe)

1. Entrando nos meandros da rede...

R efletir sobre a relação discurso, arquivo e tecnologia nos re-


mete, quase que inevitavelmente, a pensar no funcionamento
dos arquivos da internet, a chamada Web 2.0 (O’REILLY, 2005),
ou a 2ª geração de serviços online, que fortaleceu, segundo Primo
(2007, p. 3) as bordas da rede. E leitura de arquivo, das bordas da
rede nos leva ao artigo de Pêcheux Ler o arquivo hoje, publicado
originalmente em 1982, no qual o autor nos fala do gesto de ler o
que está nas clivagens subterrâneas, ou seja, o que está nas bordas. Daí
minha proposta de discutir, neste texto, a leitura dos arquivos da
internet hoje, a partir de um gesto de interpretação e atualização
da reflexão feita por Pêcheux em 1982. Ler o arquivo hoje, em
2017, tomando-o no sentido amplo, dado pelo próprio Pêcheux
([1982] 2010, p. 51), de “campo de documentos pertinentes e
disponíveis sobre uma questão” significa, necessariamente, incluir
a internet nessa leitura.
Se Pêcheux, em 1982, questionava-se sobre “as relações entre
o aspecto histórico e psicológico (“linguageiro” no sentido amplo)
ligado à leitura de arquivo, o aspecto matemático e informático
ligado ao tratamento dos documentos textuais e o avanço das
pesquisas em linguística formal” (PÊCHEUX [1982], 2010, p.
49), apontando para a discussão tanto da leitura como do arma-
zenamento do arquivo, hoje, para além da informática, é preciso

145
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

pensar em como a internet, ao mesmo tempo em que funciona


com um grande Arquivo, depositária de milhões de informações
que circulam mundo afora, também controla/vigia os trajetos de
sentidos da leitura desse arquivo.
Para pensar a internet como um grande Arquivo, parto da
discussão feita por Romão (2011, p. 144), que a caracteriza “como
instância inacessável e inacessível derivada da soma de todos
os arquivos eletrônicos dis-postos na rede digital”. Em outras
palavras, embora esse arquivo tenha uma capacidade imensa de
armazenamento, ao contrário da anunciada democratização de
acesso livre e universal, a internet não está acessível a todos os
cidadãos. Ela inclui, mas também exclui.
Como nos aponta Primo (2001, p. 1), a geração da Web 2.0
tem produzido “repercussões sociais importantes, que potenciali-
zam processos de trabalho coletivo, de troca afetiva, de produção e
circulação de informações, de construção social de conhecimento
apoiada pela informática.” Mas, adverte o próprio autor, “ao mes-
mo tempo que a abertura para o trabalho coletivo pode motivar a
intervenção de múltiplas vozes - antes prejudicadas pela imposição
de um modelo massivo unidirecional -, vandalismos, confusões e
erros de informação ou de uso das ferramentas (como apagamento
incidental de dados) ganham também espaço.” (PRIMO, 2007, p.
4). É o tecnológico determinando os modos de dizer dos sujeitos
na rede. Assim, o que é dito ou não na rede, arquivado ou não, se
se trata de autoria coletiva ou individual é regulado não só pela
tecnologia, mas também pelas relações de poder presentes na
nossa formação social. Nas palavras do autor, “quando se discu-
te o trabalho aberto e coletivo online, não se pode pensar que a
regulação seja eliminada ou desnecessária, nem que as relações
de poder dêem lugar a relações sociais absolutamente planas e
estáveis” (PRIMO, 2007, p. 4).
Estamos diante de um Arquivo em que tudo se arquiva e
não se arquiva ao mesmo tempo, que “joga com a fronteira entre
a ilusão do tudo reunir e o reconhecimento do furo de que não é
possível arrebanhar todos os campos de documentos sobre uma

146
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

dada questão” (ROMÃO, LEANDRO-FERREIRA, DELA-SILVA,


2011, p. 11). A ilusão do controle da máquina se (con)funde com
a ilusão de controle do sujeito, apontando para a impossibilidade
de tudo poder dizer e arquivar.
Em texto anterior (GRIGOLETTO, 2015, p. 34), ao refletir
sobre o funcionando da internet como esse grande Arquivo, des-
taco também o seu papel como instituição

que arquiva um número infinito de variados documentos


[...]. E, ao produzir esse trabalho “institucional” de ser
uma depositária de milhões de informações - das mais
diversas, heterogêneas e contraditórias possíveis - funcio-
na como reguladora, ao mesmo em que é regulada pelas
relações de poder que atravessam a nossa sociedade. O
que é (ou não) arquivado, o que entra (ou não) na rede,
o que figura como principal resultado de uma pesquisa
realizada pelos internautas sobre determinado assunto
é efeito dessas relações de poder que produzem, por sua
vez, um efeito de estabilidade e naturalidade para o que
é extremamente heterogêneo e contraditório. Ao lado da
ilusória liberdade de tudo poder dizer, temos o controle
do que pode ou não ser dito/arquivado.

Acrescentando mais um elemento a essa caracterização,


trata-se de uma instituição que funciona como um dispositivo1 de
poder que tem como elemento estruturante a tecnologia, a qual
controla os sujeitos e os sentidos, produzindo-se como um regime
de verdade. A tecnologia, nesse caso, funciona como uma poderosa
ferramenta de vigilância sobre os sujeitos que, ao navegarem na
rede, deixam seus rastros, os quais servem para alimentar bancos
de dados de grandes empresas que os utilizam para gerar novos
negócios e produzir lucros.
Como nos diz Romão (2011, p. 145), “o gerenciamento de
arquivos eletrônicos e do Arquivo” dá-se justamente nessas for-
mas de controle das instituições e aparelhos de poder, instalando
1 Dispositivo aqui entendido, a partir de Foucault (1979), como o conjunto de elementos,
discursos, leis e normativas que regem a produção de sentidos, a partir da criação de um
regime de verdade.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

“modos de tornar naturais, discursivizar e desambiguizar senti-


dos, procedimentos e leituras de/sobre o que está dentro e fora
dos arquivos digitais, fazendo parecer óbvio que a tecnologia
funciona em si e por si mesma, sem uma instância política
que a controle (grifos meus)”.
Diante de tais constatações, cabe-nos, enquanto analistas de
discurso, justamente, questionar essas evidências, analisar como
funcionam essas formas de controle, desconfiar das obviedades e
das homogeneidades, primando pelo heterogêneo, pela escuta a
vozes e sentidos que destoem do hegemônico, daquilo que está à
margem, nas bordas, nas clivagens subterrâneas da rede.
Na tentativa de dar conta desse que acredito ser o papel do
analista do discurso, proponho alguns questionamentos para se-
guir meu percurso de reflexão: Como a internet, enquanto dispo-
sitivo de poder, determina os trajetos de armazenamento e leitura
dos arquivos na rede? O que de um determinado acontecimento
histórico é registrado/armazenado nos arquivos da internet? E
como? Qual o papel do sujeito nessa relação entre registro e lei-
tura desses arquivos?
E, para refletir sobre essas questões, tomo como exemplo o
modo como o processo de impeachment da ex-Presidente Dilma
Rousseff foi discursivizado na rede, o que será discutido no pró-
ximo item.

2. Perseguindo os trajetos de leitura (im)postos (pela)


na rede...

Evidentemente, pela impossibilidade de tudo acessar, não


darei conta de todos os discursos que circularam, estão arquivados
e/ou foram apagados da rede sobre essa questão. Em outras pala-
vras, não darei conta de cobrir o arquivo sobre esse acontecimento
histórico2, ocorrido no Brasil, em 2016. É preciso, portanto, que
2 Estou tomando aqui o acontecimento histórico, conforme Dorneles (1999, p. 158), que, ao
falar sobre a apropriação que a história faz dos acontecimentos, comenta que, “Por essa
impossibilidade de ser dito no seu todo, o acontecimento histórico, o evento, em si mesmo,
é real. A história não narra o real, mas a realidade é constituída pela/na trama da discursi-
vidade. A simbolização do fato vai constitui-lo como algo de aparente estabilidade lógica,

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

eu produza um recorte desse arquivo. Mas esse recorte não é neu-


tro e já representa um primeiro gesto de interpretação na leitura
desse arquivo. E, para melhor entendermos o que está implicado
na leitura de um arquivo, voltemos a Pêcheux.
Pêcheux, em seu texto já referido sobre leitura do arquivo, nos
apresenta duas culturas - a literária e a científica - de leitura de
arquivos, as quais tem como consequência “conflitos explícitos” que
apontam para “maneiras diferentes, ou mesmo contraditórias, de
ler o arquivo” (PÊCHEUX [1982], 2010, p. 51 – grifos do autor).
De um lado, uma vertente que consiste em mergulhar “a “leitura
literal” (enquanto apreensão-do-documento) numa “leitura” inter-
pretativa – que já é uma escritura”3; de outro, uma vertente que
consiste no “trabalho anônimo (...) através do qual os aparelhos de
poder de nossas sociedades geram a memória coletiva” (Op. Cit).
Essa primeira vertente de leitura do arquivo, segundo o autor,
seria uma tentativa de reconstruir a história dos “gestos de leitura
subjacente, na construção do arquivo, no acesso aos documentos
e a maneira de apreendê-los, nas práticas silenciosas da leitura
“espontânea” reconstituíveis a partir de seus efeitos na escritura”
(PÊCHEUX [1982], 2010, p. 51). Pêcheux nos aponta aqui, de
forma brilhante, para, além do gesto de ler o arquivo, o gesto de
ler o que está nas clivagens subterrâneas (expressão utilizada pelo
próprio Pêcheux) e determina o que de um acontecimento histó-
rico deverá/poderá ser documentado como arquivo, ou arquivado
como documento oficial para que entre para a memória coletiva
de um povo, por exemplo. Como e o que desse acontecimento se
registra? Quem é autorizado a produzir esse registro? Esse se-
gundo questionamento nos remete à segunda vertente de leitura
da qual nos fala Pêcheux, e sem a qual a primeira não existiria.
Ou seja, é preciso, primeiro, que se registre, que se produza o ar-
desestabilizável pela mudança da posição sujeito interpretante.” Ou seja, trata-se de fatos
empíricos, que se produzem em datas específicas e que são simbolizados discursivamente
para, a partir daí, ganhar a estabilidade de um acontecimento histórico.
3 Segundo Pêcheux, esse trabalho de leitura do arquivo instalaria um espaço polêmico das
maneiras de ler, numa tentativa de reconstruir a história dos gestos de leitura subjacente o
que produziria “uma descrição do “trabalho do arquivo enquanto relação do arquivo com ele
mesmo, em uma série de conjunturas, trabalho da memória histórica em perpétuo confronto
consigo mesma”.” (PÊCHEUX [1982], 2010, p. 51).

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

quivamento dos documentos (memória coletiva) para que, depois,


enquanto analistas, possamos acessar esse arquivo. Assim, anterior
à leitura do arquivo, está a organização dos discursos em arquivo.
Conforme nos diz Mittmann (2008, p. 117), “para que o processo
de arquivamento funcione e o próprio arquivo seja reconhecido
como tal, é necessário que o conflito inerente à sua construção (pois
inerente à ideologia, à história) seja esquecido, da mesma forma
que o funcionamento da ideologia precisa ser esquecido para que
funcione.” E buscar, ou tentar reconstruir o que está nas clivagens
subterrâneas dos gestos de leitura e, por sua vez, de escritura desses
arquivos, conforme nos sugere Pêcheux, é justamente trabalhar no
jogo entre o lembrar e o esquecer, entre a evidência e a opacidade.
Importa destacar dessa discussão que Pêcheux já apresentava,
em sua reflexão, uma preocupação com os diferentes modos de
ler o arquivo, na sua relação com a memória e a ideologia. Ler o
arquivo de um modo ou de outro, recortar dele determinados frag-
mentos de discursos e não outros, expô-lo ou não ao tratamento
informático são algumas das questões que atravessam a discussão
sobre a noção de arquivo e o tratamento dado a ele na construção
teórico-metodológica de um trabalho em Análise do Discurso.
Voltando, então, ao acontecimento histórico que tomo como
exemplo para pensarmos na relação entre discurso, arquivo e tec-
nologia, o recorte discursivo que elegi para análise se produziu a
partir de um modo de entrada nesse arquivo sobre o processo de
impeachment de Dilma Rousseff. Trata-se de um modo de entrada
no qual se entrecruzam dois filtros que resultarão num procedi-
mento teórico-analítico: um filtro temático e outro espacial. O que
estou chamando aqui de filtro espacial diz respeito ao espaço na
rede de que me aproprio para fazer a busca do corpus a respeito
do fato político que recortei, o google. Já, o recorte temático diz
respeito às palavras que elegi para fazer essa busca: golpe e impea-
chment. Atravessando esses dois recortes, há um recorte temporal,
pois procedi a essa mesma busca em dois momentos distintos:
julho de 2016 e abril de 2017.

150
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Vejamos o que os resultados da primeira busca, realizada em


20 de julho de 2016, nos apresentam em termos de fatos discursi-
vos e de construção de um arquivo. Sabemos que, se essa mesma
busca fosse realizada horas depois, os resultados já poderiam ser
diferentes, sobretudo em relação às notícias em destaque, que mu-
dam instantaneamente na rede. Também poderiam ser diferentes
a depender do sujeito que está fazendo a busca, pois a tecnologia,
conforme já destaquei, controla os assuntos de interesses do
internauta, vigia as buscas que ele realiza, os sites que visita, os
locais pelos quais circula etc. Em outras palavras, persegue os
seus rastros.
Para os objetivos do presente trabalho, que é observar como
se (re)constrói um arquivo sobre determinado acontecimento his-
tórico na rede, entendo que essas variáveis podem sim produzir
diferentes resultados, mas que, ainda assim, apontam, em termos
de efeitos de sentido, para uma mesma direção, uma vez que a
grande mídia, que atua como uma das instituições de poder que
controla o que pode e deve ser produzido como regime de verdade
sobre esse acontecimento, produz muita repetibilidade, instauran-
do muita paráfrase e pouca polissemia4, cristalizando, assim, um
sentido como dominante. Entendo assim que o político-ideológico
sobredetermina o tecnológico, nesse caso, sendo a instância eco-
nômica determinante desse controle.
Vamos aos resultados. Vou considerar a imagem de capturas
das telas com os resultados que aparecem a partir da busca rea-
lizada no google o corpus discursivo deste trabalho. E as chamarei
de Sequências Discursivas. Abaixo está a primeira SD que resulta
da busca da palavra golpe.

4 Estou tomando aqui as noções de paráfrase e polissemia, conforme propostas por Orlandi
(2001a). Para a autora, “todo o funcionamento da linguagem se assenta na tensão entre pro-
cessos parafrásticos e processos polissêmicos” (ORLANDI, 2001a, p. 36), sendo os processos
parafrásticos aqueles em que algo do dizer se mantém, retornando aos mesmos espaços
do dizer. “Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase
está do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o que temos é o deslocamento,
ruptura de processos de significação. Ela joga com o equívoco”. (Ibem, ibidem). E a autora
acrescenta que “é nesse jogo entre paráfrase e polissemia, entre o mesmo e o diferente, entre
o já-dito e o a se dizer que os sujeitos e os sentidos se movimentam, fazem seus percursos,
(se) significam”. (Ibem, ibidem)

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

SD1:

Figura 1: resultado da busca pela palavra golpe, realizada em 20 jul. 2016.

Em SD1, o que nos chama a atenção, num primeiro olhar,


é que, ao digitar a palavra “golpe”, automaticamente o google
já preenche as possibilidades de opções - golpe na Turquia,
golpe de 64 e golpe militar -, mostrando-nos que as pesquisas
feitas acerca da palavra golpe nesse buscador atrelam-se a uma
rede de sentidos na qual golpe de 2016 não se inscreve. Mais
do que isso, mostra que o acontecimento histórico de 2016 não
é nomeado de golpe, produzindo o efeito de sentido de que o
único golpe que estamos vivenciando nesse momento é o da
Turquia. Sentidos, portanto, acerca desse acontecimento são
apagados nesse processo de arquivamento de “documentos” pro-
duzido pelos aparelhos de poder de nossa sociedade, como nos
diz Pêcheux (uma das vertentes de leitura do arquivo). Entre
esses aparelhos de poder podemos citar, no processo de impea-
chment que vivenciamos, a mídia, que trabalha como uma forte
aliada para que uns sentidos se produzam como dominantes,
cristalizem-se em nossa sociedade, em detrimento de outros.
Interessante, nesse caso, que o golpe militar de 64 também não
era assim nomeado pela grande mídia à época. Prova disso é
a imagem, com um recorte do jornal “O globo”, de 04 de abril
de 1964 (4 dias após a deflagração do golpe militar desse ano),

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

que aparecerá na próxima SD, em que o jornal fala de movimento


revolucionário. Então, se a disputa de sentidos, à época, era entre
golpe e revolução, hoje é entre golpe e impeachment. A pergunta
que fica é, por que hoje, após mais de meio século do golpe mi-
litar, esse sentido é possível de se inscrever no arquivo sobre a
ditadura militar? Num acesso rápido aos links disponibilizados
para a pesquisa com o termo “golpe de 64”, observamos que
a maioria deles remetem a órgãos da imprensa alternativa da
época, sites escolares etc, apontando que esse sentido se cons-
truiu pelos movimentos de resistência à ditadura militar, que
foi derrotada pela democracia, depois de muita luta, muitos
mortos e torturados. Finalizo essa breve incursão no golpe de
64, dizendo que, certamente, ao longo desse período, instalou-
se, como nos diz Pêcheux, um espaço polêmico das maneiras de
ler o arquivo desse outro acontecimento histórico. A cada vez
que retornamos a esse arquivo, que se produz como um espaço
saturado e esburacado ao mesmo tempo, outros sentidos se
inscrevem na memória, produzindo um “trabalho da memória
histórica em perpétuo confronto consigo mesma” (PÊCHEUX
[1982], 2010, p. 51). E a internet, pelo seu caráter tecnológico,
tem um papel importante nesse trabalho de retorno ao arquivo.
A análise que realizamos até aqui é ratificada quando o
primeiro link que aparece na busca, como podemos verificar na
imagem da tela capturada do google, é para a definição da palavra
golpe no dicionário, descrevendo um sentido outro, de golpe
corporal, físico, que nada tem a ver com o político. O golpe polí-
tico não aparece sequer como uma das possibilidades de sentido
para a palavra. Apontando para esse mesmo funcionamento, a
primeira notícia relacionada, com maior destaque, é da Globo.
com, fazendo referência ao golpe na Turquia: “Governo turco
aumenta perseguição aos acusados de tentativa de golpe”. Já,
a segunda e terceira notícias, com destaques menores, fazem
sim referência à questão do golpe no Brasil, mas pela voz da
Presidente Dilma. A primeira dessas manchetes, da Folha de
São Paulo, deixa claro, no nível da formulação, que a grande
mídia está nomeando o processo de impeachment: “A estudantes,

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Dilma faz paralelo entre impeachment e golpe na Turquia”; já,


a segunda, do portal Ig, atribui à Dilma a formulação que dá
título à manchete: “Vivemos golpe de estado diferente do que
aconteceu na Turquia”, diz Dilma. Ou seja, quem está dizendo
isso é ela, não somos nós. Estamos apenas noticiando os fatos.
Na Turquia, é golpe, mas aqui é impeachment. Esse é o efeito que
a mídia, por um funcionamento ideológico, quer produzir como
evidente, isentando-se de sua participação no processo. Esse é
o efeito que se produz também pelo controle do tecnológico,
que determina os resultados dessa busca.
Somente quando digitamos a preposição de, é que o google
dá ao leitor a possibilidade de busca pela expressão golpe de
2016, conforme podemos visualizar na tela capturada em SD2,
e as duas mesmas notícias, que aparecem em segundo e terceiro
lugar na busca anterior, retornam. Aqui, o destaque primeiro é
para a notícia do portal do Ig, dando voz à Dilma sobre o golpe na
Turquia, acompanhada da foto da Presidente discursando, o que
reforça o efeito de sentido de que esse é um gesto de interpretação
produzido por ela, não retratando, necessariamente, a opinião do
portal. A segunda notícia em destaque, da Globo.com, trata outra
vez do golpe sofrido na Turquia: “Turquia pune professores que
teriam apoiado tentativa de golpe”. E, por fim, a terceira notícia
relacionada é a mesma que aparece em segundo lugar na lista da
tela anterior, da Folha de São Paulo, em que, claramente, obser-
vamos que o Jornal nomeia o processo que vivenciamos no Brasil
de impeachment.
Embora com pequenas diferenças, observamos que, nos dois
casos, o destaque é dado ao que está acontecendo na Turquia e
não aqui no Brasil.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

SD2:

Figura 2: resultado da busca pelas palavras golpe de, realizada em 20 jul. 2016.

Observamos, na imagem acima, logo após as notícias em des-


taque, cinco imagens que remetem ao golpe de 2016 e que, nesse
caso, vão instaurar espaços polissêmicos nessa rede de repetibi-
lidade sobre o mesmo em relação ao processo de impeachment da
Presidente Dilma Rousseff. Interessante notar, no entanto, que
essas imagens circularam em mídias alternativas na rede, e não
na grande mídia. Todas elas foram publicadas em blogs, ou de
blogueiros individuais, pessoas públicas, ou da mídia alternativa.
E aparecem, no resultado da pesquisa que realizamos, que não se
utilizou do filtro imagens, como imagens apenas, sem destaque
para os textos que as acompanham, o que significa dizer que
tais sentidos são apagados pela grande mídia, que é quem está,
supostamente, autorizada/legitimada como instância de poder a
produzir o registro “oficial” sobre esse acontecimento histórico
de 2016. Vejamos:
Não analisar detalhadamente cada uma dessas imagens. Mas
observamos que todas elas remetem ao sentido do processo de
impeachment como golpe, sendo que as duas últimas fazem uma
remissão direta ao golpe de 1964, quando os militares tomaram

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

o poder no nosso País e instalaram uma ditadura de 20 anos. Na


segunda imagem, com a frase do pensador marxista, Karl Marx,
em destaque - “a história se repete, a primeira vez como tragédia
e a segunda como farsa” -, embora não haja uma remissão direta
como nas outras duas, ao acionarmos a memória discursiva, sabe-
mos que o efeito de sentido que está sugerido é o de uma compa-
ração entre o golpe militar de 64 como tragédia e golpe de 2016
como uma farsa. Comparação essa não possível em SD1, em que
a nomeação de golpe só é possível ao acontecimento histórico de
1964. Já, a 1ª e a 3ª imagem estampam a imagem de Michel Temer,
chamando-o de golpista.
Ao atualizarmos o recorte temporal, fazendo a mesma busca
no dia 23 de abril de 2017, o resultado é ainda mais surpreendente.
Vejamos:

SD3:

Figura 3: resultado da busca pela palavra golpe, realizada em 23 abr. 2017.

Em SD3, o que observamos é que, ao digitar a palavra


golpe, o google, como na pesquisa anterior, já sugere as op-
ções de busca e, agora, há menos de um ano do golpe de 2016
consumado, nem sequer o golpe de 64 e/ou golpe militar são
sugeridos ao leitor. Há um apagamento total do político, sendo

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

os tipos de golpe sugeridos variados: de picos de pressão em


tubulação à maioridade.
Somente ao fazer a busca usando a preposição de, conforme
podemos visualizar em SD4, é que as opções “golpe de 64” e “golpe
de estado” são sugeridas como possibilidades de pesquisa, mas
“golpe de aríete” continua aparecendo como a primeira opção, o
que demonstra, possivelmente, que, entre as pesquisas realizadas
por essa palavra nesse buscador, as mais frequentes, nesse momen-
to, são por esse tipo de golpe, que nada tem a ver com o político.
Interessante, ainda, que, se o internauta optasse pela busca golpe
de estado, ele será direcionado para uma página da wikipédia, que
explica no que consiste um golpe de estado e não faz nenhuma
referência ao acontecimento político no Brasil de 2016.

SD4:

Figura 4: resultado da busca pelas palavras golpe de, realizada em 23 abr. 2017.

Tentei, então, ser mais específica, e buscar pela palavra “gol-


pe de 2016”. E, entre as possibilidades de pesquisa, o google me
sugeriu “golpe de 2016 wikipédia”, conforme podemos visualizar
em SD 5, abaixo:

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

SD5:

Figura 5: resultado da busca pelas palavras golpe de 2016, realizada em 23 abr.


2017.

Mas, surpreendentemente (ou não tão surpreendente assim), ao


escolher a opção “golpe de 2016 wikipédia”, há dois verbetes sugeridos
para a busca na enciclopédia: golpe branco e processo de impeachment
de Dilma Rousseff, conforme podemos visualizar em SD65:

Figura 6: redirecionamento, sugerido pelo google, para golpe de 2016 na wikipédia.

5 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Processo_de_impeachment_de_Dilma_Rous-


seff. Acesso em: 23 abr. 2017

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Insisti na busca, colocando “golpe de 2016 no Brasil”, quando,


enfim apareceram resultados para o que eu, de fato, estava buscan-
do: o acontecimento político de 2016 no Brasil. Eis os resultados
da busca:

SD7:

Figura 7: resultado da busca pelas palavras golpe de 2016 no Brasil,


realizada em 23 abr. 2017.

Ao visualizarmos os resultados presentes em SD7, algumas


coisas nos chamam a atenção de imediato: como no caso das ima-
gens que apareceram na busca anterior, todos os textos/notícias
relacionados foram publicadas em veículos da imprensa alterna-
tiva, blog’s, ou ainda, representam a opinião de pessoas isoladas,
como é o caso de Leonardo Boff; a grande maioria da população
brasileira não tem acesso e/ou não tem conhecimento da existên-
cia desses canais de informação; tais canais não figuram entre as
grandes empresas de comunicação, não tendo, portanto, a mesma
credibilidade que a grande mídia, nem sendo autorizados, pelos
aparelhos de poder, a produzir regimes de verdade sobre os fatos.
Assim, a mesma busca, realizada em dois momentos temporais
distintos, ainda sem considerarmos os resultados da busca pela

159
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

palavra impeachment, já nos permite antecipar algumas conclusões.


A saber:

1. o sentido dominante, atribuído ao fato histórico, ocorrido na cena


política brasileira em 2016, não é golpe, e sim impeachment. Golpe não
se inscreve como uma possibilidade de sentido para entrar na memória
coletiva dos brasileiros nos arquivos disponíveis sobre o processo de
impeachment de Dilma Rousseff, armazenado/disponível na internet;
ou seja, golpe não entra no registro oficial, histórico desse aconte-
cimento, mesmo na rede, onde poderíamos pensar que esse sentido
encontrou eco;

2. o sentido de golpe figura apenas nas bordas da rede e, quando a


palavra golpe aparece no centro, produz-se um apagamento do político,
o qual se constrói pelo trabalho anônimo dos aparelhos de poder de nossas
sociedades que geram a memória coletiva, como já nos advertia Pêcheux;

3. em todos esses casos, parece-me que o tecnológico, embora ele exer-


ça sim controle sobre os sujeitos, está a serviço do político-ideológico
e, sobretudo, do econômico.

Na busca realizada em julho de 2016, a partir da palavra


impeachment, conforme podemos visualizar na tela capturada em
SD8, observamos que o primeiro preenchimento que o Google
faz é a afirmação de que impeachment não é golpe, negando/
apagando essa possibilidade de sentido para o acontecimento
político que estávamos vivendo, na época, no Brasil. O segundo
preenchimento sugerido traz como possibilidade de sentido a no-
meação do processo como golpe, instaurando assim deslocamento
na rede parafrástica que remete ao mesmo. Por fim, a quarta e
última possibilidade remete ao impeachment do ex-Presidente
Fernando Collor de Melo, fazendo emergir, no fio do discurso, a
memória sobre esse outro acontecimento político no nosso País,
ocorrido em 1992. Em seguida, aparece a definição da palavra no
dicionário, repetindo o mesmo funcionamento sobre a busca da
palavra golpe. Aqui, no entanto, a definição remete diretamente
ao processo político, “instaurado com base em denúncia de crime
de responsabilidade contra alta autoridade do poder executivo,

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

cuja sentença é da alçada do poder legislativo”. Interessante no-


tar que, em consulta ao mini Aurélio, em versão impressa (2006),
esse verbete não existe; consta somente o verbete impedimento
em português, cujo sentido remete ao “ato ou efeito de impedir” e
também ao impedimento de um jogador no futebol. Esse mesmo
sentido é reiterado quando buscamos pela palavra impedimento
no google. Apaga-se, portanto, nesse caso, o sentido do político,
enquanto que o sentido de impeachment, substantivo da língua
inglesa, como processo político estabiliza-se no dicionário da
língua portuguesa.

SD8:

Figura 8: resultado da busca pela palavra impeachment, realizada em 20 jul. 2016.

Em seguida, nas notícias em destaque, observamos uma rup-


tura em relação ao sentido das notícias da busca anterior, produ-
zindo a polissemia. Ao contrário do que naturalmente esperávamos
encontrar em relação à palavra impeachment, que seriam notícias
relacionadas diretamente ao processo de impeachment da Presidente
Dilma Roussef, a busca traz como primeiro destaque esse artigo,
publicado pela Carta Maior, no qual o jornalista defende a abertura
de um processo de impeachment contra Gilmar Mendes, um dos
ministros do STF, comparando-o ao processo fraudulento instau-

161
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

rado contra Dilma Rousseff. Assim escreve o jornalista Jeferson


Miola: “O Senado da República, que segundo o artigo 52 da Cons-
tituição Federal, é a instância que possui a competência privativa
para processar e julgar juízes do STF, melhor faria à democracia
abortando a farsa do impeachment da Presidente Dilma para se
dedicar ao impeachment imediato do Gilmar Mendes. Ao contrário do
processo fraudulento contra a Presidente Dilma, o impeachment de Gil-
mar tem sólidos fundamentos jurídicos e legais.” Observamos que,
na manchete em destaque, o processo de impeachment é chamado
de fraudulento e de farsa, ao contrário do que veicula a grande
mídia, conforme mostramos anteriormente. Aqui, a instauração da
polissemia se dá em função do lugar do qual se fala, Carta Maior,
um canal que se intitula “o portal de esquerda”. Ou seja, trata-se
de um veículo de comunicação que não está a serviço do capital, da
elite brasileira, das multinacionais. Por isso, noticia o outro lado
da história, inscrevendo no fio do discurso sentidos apagados pela
grande mídia. Eis o ideológico determinando o que pode/deve
ser dito/arquivado sobre o processo de impeachment que estamos
vivenciando no Brasil.
A segunda notícia, com destaque menor, é do Portal Brasil
247, e faz referência a uma afirmação do Senador Randolfe Ro-
drigues, da Rede – AP, de que o “impeachment está perto de ser
derrotado”. A terceira notícia que conseguimos visualizar em SD8
é a mesma já apresentada nas sequências anteriores.
Interessante notar que essa ruptura na rede de sentidos cons-
truída para o processo de impeachment, produzida em SD8, não se
estabiliza, nem se cristaliza como um sentido dominante que se
inscreveria na memória coletiva desse acontecimento histórico.
Parece-me que o sentido de golpe aí apenas figurou como uma
possibilidade de sentido para a busca realizada naquele momento
específico, em que circulou na internet o referido artigo publicado
na Carta Maior e também a opinião do senador Radolfe Rodrigues
que, conhecidamente, era contra o impeachment. Tanto a data,
quanto o lugar de fala e o local de busca, que são elementos que
pertencem às condições de produção restritas, isto é, dizem respei-
to ao contexto imediato do dizer, determinam esse resultado, mas

162
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

não são suficientes para inscrever o sentido de golpe na narrativa


“oficial” sobre o processo.
Prova disso é o resultado da mesma busca, realizada oito me-
ses depois, em abril de 2017, quando o processo já foi concluído,
presente em SD 9:

Figura 9: resultado da busca pela palavra impeachment, realizada em 23 abr. 2017.

Observamos, em SD 9, que, embora os resultados de preen-


chimento automático sejam diferentes da pesquisa realizada em
julho de 2016, também é ao significado da palavra impeachment no
dicionário que a busca remete como primeira opção de pesquisa,
seguida de uma notícia no G1 e da definição na wikipédia (onde,
ao contrário da definição do verbete golpe de Estado, há, ainda
que de forma breve, uma referência à cassação de Dilma Rousseff,
ocorrida em 31 de agosto de 2016).
Ao especificar mais a busca, em SD 10, utilizando a expressão
“impeachment dilma”, além da definição da Wikipédia, aparecem
3 notícias principais relacionadas ao tema, quais sejam: 1) impea-
chment de Dilma Rousseff mostrou que o Brasil tem instituições
sérias; 2) General revela o que pediram políticos de esquerda antes
do impeachment de Dilma; 3) Senadores disputam narrativa do
impeachment de Dilma em artigos no Poder360.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Mesmo sem acessarmos o conteúdo dessas notícias, obser-


vamos, pelos títulos, que a primeira remete a um efeito de sentido
que valoriza o processo de impeachment e o julga como algo legal
e democrático; a segunda deixa em suspenso o conteúdo dos pedi-
dos desses políticos, o que não nos permite, somente pelo título,
identificar qual a direção de sentido produzida pela notícia; e a
terceira coloca, lado a lado, opiniões distintas sobre o processo
de impeachment.

SD10:

Figura 10: resultado da busca pelas palavras impeachment Dilma,


realizada em 23 abr. 2017.

Mas, independentemente da narrativa dos senadores, a nar-


rativa do golpe já estava construída pela mídia hegemônica, con-
forme podemos visualizar em SD 11, que mostra a continuidade
dos resultados da busca por “impeachment dilma”. Vejamos:

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

SD11:

Figura 11: resultado da busca pelas palavras impeachment Dilma,


realizada em 23 abr. 2017.

Trata-se de uma narrativa em que não há espaço para a


palavra “golpe”, que se produziu/vem se produzindo como um
acontecimento histórico na cena política brasileira, marcada pela
democracia, onde não há lugar para questionamentos e o sentido
de impeachment se cristalizou como o “verdadeiro”.

3. Mergulhando nas bordas: uma tentativa de


conclusão...

Todo esse percurso de busca, a partir das palavras golpe e im-


peachment, em dois momentos temporais distintos – julho de 2016
e abril de 2017 – nos aponta para alguns modos de funcionamento
desse arquivo na rede, mas sobretudo para aquilo que não está ali
arquivado, que não figura nos resultados dessa busca, que está nas
bordas, na margem, mas que aí se inscreve produzindo sentidos.
Produzo aqui alguns apontamentos que, mais do que conclusivos,
são convites para continuarmos essa reflexão.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

1. Tanto os filtros utilizados para pesquisa – temático, espacial,


temporal, mas também os disponibilizados pelo google (todas,
notícias, imagens, vídeos, etc) - como as condições de produção
imediatas determinam o resultado das buscas feitas; no caso da
presente pesquisa, o filtro do google utilizado foi “todas”, o que
suporia uma maior diversidade nos resultados em termos de ma-
terialidades encontradas, no entanto vimos que o que predominou
foi o resultado de materialidades escritas, textos/notícias;

2. Na relação do sujeito com o arquivo, observamos que o tecno-


lógico atravessa essa busca, controlando, por exemplo, o preenchi-
mento automático de opções que o leitor deve trilhar, etc. Assim,
como nos diz Romão (2011), o google faz parecer que a tecnologia
funciona por si mesmo, sem uma instância política que a controle.
Pura ilusão; o que observamos é que o político-ideológico sobre-
determina o tecnológico, sendo aquele determinado, em última
instância, pelo econômico. Como já nos apontavam Pêcheux e
Fuchs (1975), a região da ideologia que interessa à AD é a que é
“caracterizada por uma materialidade específica articulada sobre
a materialidade econômica” (PÊCHEUX; FUCHS [1975], 1997,
p. 165). O tecnológico, então, funciona como uma dessas materia-
lidades, um desses dispositivos que coloca em funcionamento o
ideológico, produzindo evidências, conduzindo a uma narrativa
hegemônica sobre o golpe, orquestrada pela grande mídia como
instância de poder que dita o que pode/deve ser dito sobre esse
acontecimento;

3. A internet, assim, reproduz o sentido hegemônico construído


pela grande mídia, ainda que ofereça outras possibilidades de
leitura, sobretudo quando o internauta “teima” em não seguir os
caminhos sugeridos pelo buscador. Há, como nos diz Mittmann
(2015, p. 352), “um jogo de forças que atua, por um lado, mas bordas
do arquivo selecionando o que pode ou deve entrar e excluindo
o que não pode ou não deve e, por outro lado, numa articulação
interna que funciona sob a forma de desnivelamentos, sobreposi-
ções e também de reacomodações daquilo que entra.” Mas, mesmo

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

na abertura, nos desnivelamentos, nas reacomodações, o controle


existe, fazendo funcionar o ideológico na sua forma mais perversa,
aquela que produz o efeito de liberdade, de livre escolha do sujeito.
Há, portanto, mais controle do que dispersão;

4. O Arquivo deve ser pensando numa relação intrínseca com a


memória. No caso em análise, não só a memória coletiva, mas a
memória discursiva em sua relação com a memória metálica e
institucional, tomadas não de forma distintas, mas como o que
funciona de forma inextricável no armazenamento e na leitura
dos dados do arquivo. Considerando que a Internet constitui-se
num grande Arquivo e, nesse sentido, funciona nos moldes de uma
instituição, ela trabalha para acumular, para construir um grande
banco de dados com o auxílio da máquina. No entanto, entendo
que, mesmo essa memória da máquina, que Orlandi (2001b) chama
de metálica, não é mera repetição que não historiciza, porque esses
dados que aí estão armazenados já foram interpretados por sujeitos
que os postaram na rede, constituindo-se num “já buscado”, como
mostram Gallo e Neckel (2012). Ela acumula, mas também apaga.
Portanto, “o que entra ou não, o que é ou não arquivado na rede
não está destituído de historicidade, nem livre do controle ideoló-
gico dos aparelhos sociais. O próprio arquivar/“postar” na rede já
carrega em si um gesto de interpretação do sujeito, uma leitura dos
arquivos ou dos discursos que circulam fora da rede. No entanto,
ao ser postado na rede, os sentidos deslizam, se multiplicam e o
arquivo se dispersa, se (re)configura” (GRIGOLETTO, 20015,
p. 36), produzindo contradições, disputas de sentido. A memória
metálica não se produz então de forma indiscernível da memória
discursiva, possibilitando, muitas vezes, a leitura do que está nas
clivagens subterrâneas do arquivo, como pudemos observar nas aná-
lises que realizamos a partir de um gesto de leitura, de um modo
de entrada no Arquivo sobre o acontecimento histórico de 2016.

167
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Referências

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agrária brasileira. In. INDURSKY, F.; LEANDRO FERREIRA, M. C. Os
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Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1999, p. 149-172.
FOUCAULT, M. [1979]. Microfísica do poder. 15ª ed., Rio de Janeiro:
Edições Graal, 200.
GALLO, S. M. L.; NECKEL, N.R.M. As clivagens subterrâneas/
contemporâneas da rede e o efeito narciso. In: GALLO, S. M. L.;
NECKEL, N.R.M; FLORES, G. B. (Orgs.) Discurso, ciência e cultura:
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GRIGOLETTO, E. Embates entre memória e arquivo: modos de dizer e
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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

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e ... Rio de Janeiro: 7Letras, 2011, p. 141 - 149.
ROMÃO, L. M. S.; LEANDRO-FERREIRA, M.C.; DELA-SILVA, S. Arquivo. In.:
MARIANI, B.; MEDEIROS, V.; DELA-SILVA, S. (Orgs.) Discurso, arquivo
e ... Rio de Janeiro: 7Letras, 2011, p. 11 - 21.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

FORMA-DISCURSO DE ESCRITORALIDADE:
PROCESSOS DE NORMATIZAÇÃO E LEGITIMAÇÃO

Solange Maria Leda Gallo


Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul)

Juliana da Silveira
(Universidade do Sul d Santa Catarina (Unisul/PNPD)

1. INTRODUÇÃO

U ma das características dos espaços enunciativos informatiza-


dos que mais nos inquieta é a normatização que eles encerram
e que acontece em todos os níveis, inclusive e principalmente no
nível semântico. Ou seja, toda e qualquer produção de sentido com
base material digital, está determinada por parâmetros formais
normatizadores, próprios do digital, e que resultam em determi-
nações do sentido e do sujeito, por.ex., quando estamos diante das
opções limitadas de uma postagem do Facebook: curtir, comentar
ou compartilhar (são essas três, as possibilidades de “interação”
que se apresentam, e nem uma outra). Portanto, a interpretação
possível de instâncias normatizadas, é determinada pelo próprio
software e nesse nível, podemos considerar que o sujeito “interage”
com o texto respondendo “sim” ou “não”, mas não há interlocução.
A interlocução se dá na medida em que o sujeito se relaciona com
outro sujeito, por ex., dentro de um comentário.
Um bom exemplo disso é a nova forma de o que se conven-
cionou chamar de ‘reações’ nos posts do Facebook. Abaixo
do espaço reservado à postagem existem 3 opções a serem
“escolhidas”: curtir, comentar, compartilhar. Zuckerberg

171
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

explica que inserir um botão “não curtir” apenas transfor-


maria a rede social em “um fórum onde as pessoas ficam
votando contra ou a favor dos posts dos outros”. Em vez
disso, propôs outros 5 ícones que devem corresponder a
reações não binárias, segundo ele. Sabemos muito bem,
e não é necessária grande análise para se declarar que a
adição dessas ‘reações’ é justamente a própria definição do
que vem a ser o binário. A frase que se escreve da seguinte
forma: “OU bravo OU triste OU surpreso OU feliz OU
amei OU gostei” é justamente a lógica do código, com um
nome humano de ‘reação’. Não é só uma clivagem, mas
é a lógica e a operação do código sugerido como forma
de relação social, produtiva e de consumo (GALLO; PE-
QUENO, 2016).

Temos proposto chamar as discursividades que se produzem


nessas condições, de discursos de escritoralidade (GALLO, 2011).
Essa forma de discurso normatiza o sentido e o sujeito, por meio
de sua condição material específica, determinando, assim, o escopo
dentro do qual os sujeitos estarão em interlocução.
Por outro lado, a normatização não garante a produção de um
efeito de fecho, de sentido unívoco e de uma consequente legiti-
mação, como vemos nos discursos de escrita1. Na escritoralidade
a legitimação se dá de forma diferente.
Temos investido, em nossas análises, na compreensão desse
efeito de legitimidade nos discursos de escritoralidade, e temos
demonstrado que esse efeito, nessa forma-discurso, é determinado,
em parte, por um processo de quantificação (quanto mais circula,
mais legítimo) que se materializa, por ex., nos compartilhamentos.
Por essa razão, nem todos os discursos se inscrevem nessa forma
de discursividade sem produzir, aí, contradições, como por ex. o
discurso científico (GALLO, 2016), conforme já demonstramos
em trabalhos anteriores.

1 “Chamamos Discurso da Escrita (D.E.), todo texto que tem um “fecho”, efeito de fim, uni-
dade, legitimidade. Textos públicos, publicados, com efeito de autoria, um efeito produzido
pelo próprio Discurso da Escrita e que recai sobre o sujeito desse discurso. [...] O Discurso
da Oralidade (D.O.), contempla os textos originados na oralidade e que se caracterizam, hoje,
não por serem oralizados, mas por constituírem-se em instâncias de linguagem não fechadas,
sempre provisórias, sem legitimidade, sem efeito de autoria” (GALLO, 2011, p.414-415).

172
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Analisar essas contradições constitui-se, também, em um


modo de compreender melhor a forma discursiva de escritoralidade
na sua relação com o efeito-rumor (SILVEIRA, 2015).
Tendo essa discussão como foco, procuraremos discutir, aqui,
a relação entre normatização, por um lado, e legitimação por outro
lado, em discursos que se formulam em espaços enunciativos in-
formatizados, tentando discernir em que nível se processam essas
duas condições de (im)possibilidade do digital.

2. FORMA DISCURSO DE ESCRITORALIDADE E LEGITIMAÇÃO

Ao refletir sobre a internet como espaços enunciativos in-


formatizados no qual circulam discursos, percebemos que aí o
processo de legitimação não estava relacionado ao reconhecimen-
to, nem ao efeito de unidade: o efeito-autor. Ao contrário, estava
fortemente determinado pela repetibilidade, visibilidade e quanti-
dade. (GALLO, 2016). O Discurso de Escritoralidade - como nova
macro categoria discursiva - surge nesse contexto, para tratar,
então, dessas discursividades que nem são ilegítimas (D.O), nem
são legitimadas por reconhecimento (D.E.), mas que se legitimam
por esse novo critério, ou seja, visibilidade.
Portanto, até esse momento, o critério que permitiu formular
a noção de escritoralidade, tomando-a como uma forma discursiva
nova, da mesma dimensão da oralidade e da escrita, foi o critério de
legitimidade. Esse critério está na base da proposição dessa noção.
Esse é, portanto, o critério diferencial entre as formas discursivas
de escrita, oralidade e escritoralidade.
No entanto, ao formular as noções de discurso de escrita e
de discurso da oralidade, o critério de legitimidade havia sido o
nosso ponto de chegada, no entanto, nosso ponto de saída havia
sido o critério de normatização.
Nesse sentido, se explica a própria designação: discurso de
escrita e de oralidade. Em ambos os casos, partimos do processo de
normatização das formas (grafadas - no caso do DE, e oralizadas
- no caso do DO), ou seja, dois diferentes modos de formulação, e

173
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

pudemos mostrar que essa normatização, associada a um processo


de legitimação (ou não legitimação), resultaram em duas formas
discursivas de base para a inscrição dos diferentes discursos (de
Escrita e de Oralidade).
Mais recentemente, discutimos uma análise do discurso cien-
tífico, na qual pudemos mostrar que esse discurso se relaciona com
a forma discursiva da escritoralidade contraditoriamente2. Em
outras palavras, diremos que a forma de normatização do discurso
científico e sua consequente legitimação é fortemente determinada
pela forma discursiva da escrita. O efeito-autor, responsável pela
unidade e pelo reconhecimento do discurso científico, são decor-
rentes da discursividade de escrita.  Isso não impede o discurso
científico de circular na internet.
Porém, a pergunta que fazíamos era a seguinte: será que o
discurso científico que circula na internet está inscrito na forma
da escritoralidade, ou permanece na forma da escrita? Nossas
análises mostraram que ao circular na internet, os textos desse
discurso (sejam os textos dos portais científicos, sejam registros
audiovisuais de eventos científicos, sejam obras em PDF, etc.) não
se submetem no nível da sua constituição e da sua formulação, às
normatizações dos dispositivos digitais, apesar de aí circularem.
Eles se constituem e se formulam sob as normatizações da forma
dos discursos de escrita, e apenas circulam sob as determinações
da forma da escritoralidade. Com isso, sua legitimação permane-
ce sendo decorrente de um reconhecimento dos pares, embora o
número de visualizações (que é um critério das formas de escri-
toralidade) possa também vir a ser um critério de legitimação do
científico (ex. o fator de impacto = FI).
Diremos, então, que se no âmbito da circulação, a condição
de possibilidade das formas de escritoralidade são compatíveis a
um discurso de escrita, como é o caso do discurso científico. Por
outro lado, no âmbito da formulação, há impossibilidades de se
submeter um tipo de discurso a outro. Ou seja, a formulação é
2 Forma-discurso de escritoralidade e DISCURSOS na REDE: analisando o discurso científico.
III SEPLEV - Seminário de Estudos em Práticas de Linguagem e Espaço Virtual. Pelotas,
UCPEL, 2016.

174
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

afetada por normatizações, e as normatizações dos discursos de


escritoralidade são dadas pela programação e não são, como nas
formas de escrita, constituídas historicamente. Essa historicidade,
própria da normatização das formas de discurso de escrita, cons-
titui a condição de reconhecimento desses discursos, sem o que
esse discurso perde seu efeito-autor.
Por outro lado, podemos afirmar que todos os discursos que
circulam nos espaços enunciativos informatizados da internet
são igualmente abarcados por esse processo de normatização que
incide sobre a circulação, e todos no âmbito da circulação, podem
ser considerados discursos de escritoralidade.  
No entanto, ao recaírmos nosso olhar de analistas para a
questão da constituição e formulação dos discursos que circulam
na internet, observamos que nem todos podem ser aí inscritos,
sem produzir uma incontornável contradição.
Discursos de escrita, como é o caso do discurso científico,
relacionam-se com as normatizações do digital e da internet, no
âmbito da constituição e formulação, pela via da contradição, e foi
isso que vimos na análise do discurso científico, que uma vez for-
mulado segundo a normatização dos dispositivos digitais, perdeu
sua condição de científico, não sendo mais reconhecido como tal.
Considerando procedentes as considerações anteriores, po-
demos afirmar agora que os discursos de escrita (discurso cien-
tífico, discurso jurídico, etc.) não são afetados pela normatização
do discurso digital, senão no âmbito de sua circulação, quando
esse é o caso. Sendo assim, nesses primeiros estudos que fizemos
sobre o processo de legitimação, relacionado à forma-discurso
de escritoralidade, acabamos por observá-lo, principalmente na
instância de circulação dos discursos, e é nessa instância que o
processo de legitimação acontece por quantificação (quanto mais
circula, mais legítimo). Exemplo: os posts do Facebook, os tuites
do Twitter, os vídeos do Youtube, etc.

175
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

3. FORMA DISCURSO DE ESCRITORALIDADE E NORMATIZAÇÃO

Nesta retomada, estamos nos perguntando sobre o processo


de normatização da forma-discurso de escritoralidade. De que na-
tureza seria? Como se relacionaria com o processo de legitimação?
Que consequências traria para a produção de sujeitos e sentidos?
Pensar a normatização, então, é pensar a forma discurso de
escritorialidade por outra via, além da legitimação, e em outro
âmbito, além do da circulação. Entendemos que os processos de
normatização, no caso da forma discursiva de escritoralidade,
acontecem sobretudo na instância de formulação. Ou seja, toda
e qualquer produção discursiva inscrita na forma de escritorali-
dade, está determinada por parâmetros formais normatizadores,
próprios dos espaços enunciativos informatizados e que resultam
em determinações do sentido e do sujeito.
Dizer que a normatização, na forma discurso da escritorali-
dade, tem relação com determinações tecnológicas, significa dizer
que são determinações vindas dos softwares, dos dispositivos, dos
algoritmos, etc.
Diremos que a normatização dos discursos de escritoralidade
é consequência de suas clivagens subterrâneas, não só de natureza
discursiva, mas também de natureza técnica, conforme propõe
Pequeno (2015, p. 34).

[...] através de uma revisão bibliográfica e de um gesto de


leitura teórico da noção de arquivo, e através da formu-
lação da noção de clivagens subterrâneas (a que Pêcheux
alude, mas em Ler o Arquivo Hoje, não formula enquanto
noção) nos parece seguro afirmar que os produtos técnicos
digitais como as redes de relacionamento (que já vimos,
são produtos políticos, responsáveis pelas transformações
das relações sociais) também são, portanto, e necessaria-
mente produtos de caráter discursivo.

A forma discursiva de escritoralidade tem, portanto, duplo


processo de normatização: o que advém dos discursos de escrita

176
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

ou de oralidade, e os que advém dos espaços enunciativos informa-


tizados onde ela se constitui, e que sobrepõem-se aos primeiros.
O encontro entre critérios técnicos de normatização e legiti-
mação e critérios discursivos de normatização e legitimação, é que
resultam em discursos na forma de escritoralidade. Esse encontro
pode acontecer por consenso ou por contradição.
A forma-discurso de escritoralidade caracteriza-se, então, por
comportar um discurso de escrita ou de oralidade, imbricado em
um espaço enunciativo, forjado nas tecnologias digitais (por ex:
Twitter, Facebook, Youtube, etc.).
Nesse sentido, o que pensar dos discursos que se formulam
na forma da escritoralidade (como, por exemplo, o discurso jurí-
dico no Youtube e Twitter), e que vêm sendo compreendidos como
“discursos digitais”?

4. O DISCURSO JURÍDICO NA FORMA DA ESCRITORALIDADE: FUN-


CIONAMENTO POR CONTRADIÇÃO

4.1  NO ESPAÇO ENUNCIATIVO DO YOUTUBE

Consideremos, aqui, o julgamento no TSE sobre a cassação


da chapa Dilma-Temer, que teve transmissão ao vivo pelo canal
da Justiça Eleitoral no Youtube, nos concentrando especificamente
no voto final do ministro Gilmar Mendes, proferido no dia 09
de junho de 2017, último dia do julgamento, cujo resultado foi a
absolvição da cassação3.
Como é possível observar pela íntegra do voto proferido pelo
ministro, o que temos aí é um discurso que se produz no Discurso
de Escrita, pois possui uma forma própria de formulação, com
efeito de autoria, garantindo as instituições e as instâncias de po-
der do jurídico, ao qual ele está vinculado (GALLO, 2016, p.311).

3 O voto do Ministro Gilmar Mendes foi transmitido ao vivo pelo canal da justiça eleitoral do
Youtube. Vídeo da Sessão Plenária do dia 09 de junho de 2017 (tarde). Disponível em:<https://
www.youtube.com/watch?v=dcuhHNiZW9k>. Acesso em 24 jul. 2017.

177
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

No entanto, a transmissão ao vivo do julgamento, em um


canal como o do Youtube, exige do discurso jurídico a inscrição
em uma normatização técnica: a criação de um perfil; estabeleci-
mento de categorias; relação com uma memória metálica que liga
o vídeo do julgamento há uma série de outros vídeos indicados
pelo algoritmo do Youtube como “vídeos relacionados”; a quanti-
ficação de visualizações do vídeo; os botões “curtir” e “descurtir”,
apresentando o número de cliques em cada uma deles e, ainda, o
espaço de publicação nos comentários, no qual os telespectadores
do julgamento poderão registrar publicamente a sua “opinião”
sobre o voto do ministro e sobre o julgamento em geral.
Há, portanto, nesse material, uma contradição que se estabe-
lece entre o efeito de sentido de um discurso de escrita (jurídico),
em relação à normatização e a legitimação do espaço enunciativo
informatizado, pois enquanto Discurso de Escrita, o discurso jurí-
dico se legitima por reconhecimento, mas, nesse espaço informati-
zado, ele passa a ser legitimado também pelo número de acessos.
Diremos, então, que na instância da constituição e formulação,
a normatização de natureza técnica, própria do digital, não é assi-
milável pelos discursos de escrita, sem produzir aí uma contradição
incontornável. Por outro lado, na instância da circulação, essa
normatização pode ser assimilável por um discurso de oralidade
ou de escrita, como é o caso aqui observado, do discurso jurídico,
o que explica a própria postagem desse tipo de vídeo em uma rede
social como o Youtube.

4.2 NO ESPAÇO ENUNCIATIVO DO TWITTER

Assim como no Youtube, o Twitter possui determinações


técnicas que são pré-definidas por seu algoritmo, ou seja, há cri-
térios técnicos que determinam esse espaço, tais como: o limite
das postagens em 140 caracteres e as funções de retuitar, curtir ou
responder postagens de terceiros. Há, ainda, a possibilidade de uso
de hashtags no corpo dos tuites e, ainda, a organização em forma
de lista das hashtags em um espaço chamado “assuntos dos mo-
mentos”, popularmente conhecido como Trending Topics (TTs).

178
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Tais critérios determinam: 1) o modo de formulação dos tui-


tes: uma vez que seu espaço limitado a 140 caracteres é pensado
para que se produza aí o efeito de uma conversa pautada em men-
sagens curtas entre seus interlocutores; 2) o modo de circulação:
pela relação entre tuites, # e Trending Topics.
Ao organizar os tuites a partir das # e de acordo com o
funcionamento do discurso jornalístico e a produção de notícias
(“Assuntos do Momento”), esse espaço produz o efeito de evidência
de que é isso que “todo mundo está dizendo...” ao mesmo tempo
em que visibiliza que se trata de sentidos em curso, fugazes, sem
efeito de fecho (ou, como no caso dos discursos políticos, sentidos
em confronto).
Os assuntos do momento organizados por critérios como os
da quantidade, tempo real, entre outros, têm por objetivo “organi-
zar” e “reunir” aquilo que é da ordem do arquivo do Twitter, crian-
do um espaço enunciativo que tem uma determinação específica
sobre o modo como os tuites podem aí circular ou não circular,
produzindo, portanto, um efeito-leitor determinado. Ao mesmo
tempo em que “conecta” perfis diversos, produzindo um efeito de
“conversa global”, o Twitter “normatiza” os dizeres a partir de
cálculos e variáveis que servem antes aos propósitos da empresa
Twitter, que às necessidades de uma coletividade. É, nesse sentido,
uma instância reguladora/legitimadora dos discursos, uma vez
que determina o que pode aí circular muito, circular pouco ou não
circular de jeito nenhum.
Entendemos, portanto, que a normatização técnica pode
entrar em contradição com a normatização discursiva sempre
que o discurso em questão tenha na sua formulação, um dos seus
critérios de legitimidade. Essa formulação específica, própria dos
discursos de escrita, tem relação com o efeito-autor. Por essa ra-
zão, um discurso de escrita, quando passa a ser normatizado por
critérios de um espaço enunciativo informatizado, não consegue
manter sua legitimidade, por não ser reconhecido nessa outra
forma (formulação).

179
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

A sobredeterminação técnica, acaba por descaracterizar os


discursos de escrita, como é o caso do discurso jurídico, que se
caracteriza com a forma-discurso dos discursos relacionados a
instâncias de poder, que tem unidade e efeito de fecho: efeito-autor,
nessas instâncias (STJ, por ex.).
Assim como o discurso científico, que analisamos em traba-
lhos anteriores, o discurso jurídico tem legitimidade pelo reconhe-
cimento. As formas de normatização do Twitter, compreendidas
no seu cruzamento com as formas de normatização do discurso
jurídico, constituem esse mesmo discurso na forma discursiva de
escritoralidade, e não na forma da escrita ou da oralidade. Isso traz
consequências ao discurso jurídico, principalmente relacionadas
a sua legitimidade.
Observemos, por exemplo, em que condições foi possível a
criação de um perfil oficial do ministro Gilmar Mendes e quais as
(im)possibilidades de formulação do discurso jurídico no espaço
enunciativo informatizado do Twitter.
Em um primeiro momento, é interessante observar que a
forma de participação no Twitter exige a criação de um avatar4,
para o qual é preciso informar dados pessoais, tais como foto,
descrição, nome, data de nascimento, e-mail, telefone etc. Alguns
desses dados ficam abertos e outros servem apenas para confe-
rência da plataforma. Em caso de contas com interesse público,
o perfil será verificado pelo Twitter e receberá um selo azul com
uma autenticação (é uma forma de identificar entre os vários
perfis, muitos deles falsos, que a conta pertence à pessoa pública
ali indicada). Como podemos ver na figura 1, o perfil de Gilmar
Mendes está com o selo de autenticação e, por isso, é lido como o
perfil de uma pessoa pública. O símbolo azul ao lado de seu nome
é a marca dessa autenticação.

4 Por avatar entendemos aqui a proposição de Pequeno (2016, p.27), em que o “avatar é
costurado e constituído tecnicamente como sujeito da/na rede.[...] Quando falamos sujeito
da rede não aproximamos a condição do avatar à condição do sujeito, mas inversamente,
descrevemos o efeito que esse avatar produz: de que nas redes é o sujeito que circula, quando
o que antes temos de fato é um conjunto de práticas técnicas, cujo resultado é o produto
técnico, e mercadoria, que viemos a chamar de avatar.”

180
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Figura 1: Imagem do perfil oficial @gilmarmendes.

Fonte: “Twitter”. Disponível em:< https://twitter.com/gilmarmendes>.


Acesso em 24 jul. 2017.

Um fato importante sobre o selo de autenticação é que essa


conferência existe apenas para perfis públicos que tenham os tui-
tes definidos como abertos, ou seja, as contas com este selo não
podem ser privadas nem ser limitadas a seguidores previamente
aceitos. Isso significa que a conta é aberta para todos os seguido-
res que terão acesso a todos os tuites publicados por essa conta.
Nesse caso, um perfil como o de @gilmarmendes, definido pelo
Twitter como um perfil público e de utilidade pública, obedece a
uma normatização que define como ele poderá ou não se relacionar
com os demais perfis.
Podemos dizer, assim, que o mecanismo de autenticação do
Twitter, ao definir um perfil como público no intuito de “resolver”
o problema dos perfis falsos está ao mesmo tempo apagando e na-
turalizando a relação entre os sujeitos e o espaço técnico e, nesse

181
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

caso, colocando uma questão outra para os efeitos possíveis dessa


relação entre perfis públicos e privados, existindo em um mesmo
espaço de interlocução. No entanto, antes de aparecer como nor-
matizador dessa interlocução, aparece como um espaço que permite
a livre e “real interação” entre o perfil público de um ministro e os
demais perfis privados de sujeitos em posição de cidadãos.

O avatar, pois, é produzido sob a (transparência da) lógica


de “representar” os sujeitos que dele se valem, mas ao
mesmo tempo, determina - em certa medida - o escopo
das possibilidades desses sujeitos no contexto do digital
e desenha, por assim dizer, a fronteira entre o sentido e o
non-sense no contexto dessas relações sociais (PEQUENO,
2016, p.31).

Esse gesto incidirá, ainda, sobre as possibilidades de for-


mulação dos tuites que o perfil @gilmarmendes poderá ou não
realizar nesse processo de interlocução pré-determinado. “É pelo
avatar, pois, que é engendrado o efeito de que não há nada entre
o sujeito do discurso e a memória metálica dos bancos de dados”
(PEQUENO, 2016, p.30).
A partir da leitura dos tuites publicados pelo perfil @gilmar-
mendes, observamos algumas regularidades próprias desse tipo de
perfil. Uma delas foi que a maior parte das publicações são retuites
e, nesse caso, não há um comprometimento direto do perfil ao que
é formulado no tuite original. Nesse caso, temos retuites de ma-
térias de jornais, de ações do judiciário ou do TSE na mídia, etc.
É possível também observar que as publicações que não são
retuites têm o foco em comentários sobre eventos relacionados
ao cargo do ministro, como lançamentos de projetos ou mesmo
divulgação de sua agenda pública, como o que segue:

182
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Figura 2: Tuite do perfil @gilmarmendes

Fonte: “Twitter”. Disponível em:< https://twitter.com/gilmarmendes/sta-


tus/870680217320267777>. Acesso em: 24 jul. 2017.

Vale notar aqui que muitos estudos já indicaram que perfis


públicos, sobretudo de políticos, se limitam a usar o espaço para
divulgação de sua agenda de trabalho e reforçarem suas ações
enquanto ações sociais, com poucas ou quase nenhuma publicação
pessoal. O que reforça a percepção de que os perfis públicos são,
em geral, alimentados por assessores de comunicação. De qualquer
forma a coincidência do perfil com o indivíduo ao qual ele se associa
é indiferente em termos discursivos, uma vez que, como vimos, o
selo de autenticação basta para que os tuites publicados produzam
o efeito de que é o mesmo indivíduo quem enuncia, produzindo de
qualquer forma efeitos para o lugar social que ele ocupa.
Interessante observar que embora grande parte dos tuites do
perfil @gilmarmendes possuam tais características, esse tipo de
tuite é pouco valorizado pelos seguidores do perfil, sobretudo se
tomarmos como válido o critério da legitimidade por quantidade,
pois apresentam uma quantidade baixa de reações, ou seja, entre
curtidas, respostas e retuites, quase nenhuma delas ultrapassa a
casa das centenas (conforme figura 2).
Por outro lado, apesar de serem mais raros, os tuites que se
distanciam da forma discurso de escrita própria do discurso ju-
rídico e se aproximam de um tom mais humorístico, apresentam
um número de reações consideravelmente maior, atingindo a casa
dos milhares. Vejamos:

183
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Figura 3: Tuite do perfil @gilmarmendes.

Fonte: “Twitter”. Disponível em:< https://twitter.com/gilmarmendes/sta-


tus/869342578075938816>. Acesso em: 24 jul. 2017.

Na figura 3, temos um retuite que foi a segunda postagem


do perfil @gilmarmendes após a sua entrada no Twitter. O tuite
original foi escrito pelo perfil @lapena, do ator Hélio de la Peña,
um dos integrantes do antigo programa humorístico Casseta &
Planeta, que tinha em seu quadro de atrações as “Organizações Ta-
bajara”, empresa fictícia que, a partir de um jargão americanizado
de venda de mercadoria em canais de televisão, vendia produtos
falsos ou de má qualidade.  
Ao retuitar um tuite do perfil @EstadãoPolítica5, que apon-
tava para uma matéria do jornal sobre um discurso de Gilmar
Mendes em São Paulo, no qual ele teria comparado o Brasil atual
com as Organizações Tabajara, o perfil de @lapena, joga com
a relação ficção-realidade, ironizando a comparação feita pelo
ministro entre o Brasil e uma organização fictícia. Por sua vez,
quando o perfil @gilmarmendes retuita o tuite de @lapena, ele
o faz no mesmo tom humorístico, pedindo desculpas às Organi-
zações Tabajara, causando, por um lado o riso e, por outro lado,
um estranhamento pela quebra de regularidade entre esses e os
demais tuites de @gilmarmendes. Como vemos, esse tuite tem
uma repercussão maior que o da figura 2, apresentando cerca 4,2
mil compartilhamentos.
Em outro tuite publicado pelo perfil é possível observar no-
vamente como se dá o jogo entre o sujeito do discurso jurídico, na
5 Tuite disponível em:< https://twitter.com/EstadaoPolitica/status/869198112438575104>.
Acesso em: 24 jul. 2017.

184
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

posição de ministro do STF e do TSE, na sua relação com outros


modos de formulação.

Figura 4: Tuite do perfil @gilmarmendes.

Fonte: “Twitter”. Disponível em:<https://twitter.com/gilmarmendes/sta-


tus/869714379889139712>. Acesso em:24 jul. 2017.

Diferentemente dos demais tuites apresentados pelo perfil @


gilmarmendes, temos aqui o fato de que esses dois tuites não se
formulam integralmente no discurso jurídico, eles jogam com a
discursividade própria dos perfis ordinários (SILVEIRA, 2015) do
Twitter, pautada pela relação com o humor e com a não oficialidade.
Segundo os dados fornecidos pelo Twitter, a primeira posta-
gem do perfil @gilmarmendes ocorreu no dia 29 de maio e, até
o dia 05 de julho de 2017, último dia em que visitamos o perfil,
foram publicados apenas 69 tuites, Desses, apenas os dois tuites
acima destacados se formulam em tom humorístico.
Nesse contexto, chama a nossa atenção o fato de que dois
outros tuites que não apresentavam tais características humorís-
ticas, mas se referiam ao trabalho e atuação do ministro no TSE,
no caso a votação pela cassação da chapa Dilma-Temer, tivessem
tido, ao contrário dos demais com o mesmo padrão, uma quantidade
grande de reações. Esses dois tuites foram publicados no dia 10
de junho, em horários diferentes.
O primeiro deles referia-se ao retorno do ministro às publi-
cações no site, após a semana de julgamento da cassação da chapa
Dilma-Temer no TSE, durante a qual ele não havia tuitado nada.

185
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Figura 5: Tuite do perfil @gilmarmendes.

Fonte: “Twitter”. Disponível em<https://twitter.com/gilmarmendes/sta-


tus/873653813844037633>. Acesso em: 24 jul. 2017.

Chama a atenção o fato de que uma única postagem tenha


1,6 mil respostas diretas, sobretudo se considerarmos que não
há no corpo do tuite nenhuma palavra-chave ou #, tampouco o
tuite possui caráter humorístico, o que indica que são respostas de
seus seguidores diretos. Nesse caso, as reações dos seguidores do
perfil ocorrem tanto em função do momento político vivenciado
no país, quanto pelo modo informal com o qual o perfil manifesta
a sua volta à rede social.
Essa postagem estabelece uma relação singular para o discur-
so jurídico, pois, ao se constituir na forma da escritoralidade ela
participa da normatização própria ao espaço enunciativo do Twit-
ter, que se define como um espaço de simulação de uma conversa
possível entre um perfil público e perfis variados. Pelos recursos
técnicos de retuitar, curtir ou responder, esse espaço enunciativo
vai construindo e normatizando

um diálogo entre sujeitos, que vai se materializando em


curso, como na oralidade, embora prescinda da presença
física dos interlocutores, aproximando-se, por isso, da
escrita (...) uma materialidade discursiva complexa e so-
bredeterminada (GRIGOLETTO; GALLO, 2015).

Essa sobredeterminação entre um discurso de escrita e um


discurso de oralidade se materializa na formulação do segundo
tuite do dia 10 de junho, que seria, em nosso entendimento, uma
espécie de resposta generalizada do perfil à enorme quantidade de
respostas que obteve a propósito da publicação do tuite da figura 5. 

186
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Figura 6: Tuite perfil @gilmarmendes

Fonte: “Twitter”. Disponível em:<https://twitter.com/gilmarmendes/sta-


tus/873654005397950465>. Acesso em: 24 jul. 2017.

É notável que embora o espaço pressuponha um esquema


de respostas, o perfil @gilmarmendes apenas publica ou retuita,
jamais “responde”. Não há um movimento de diálogo entre o seu
perfil e os demais perfis que responderam a sua postagem.
Protagonista de um momento singular na vida política da
sociedade brasileira o lugar a partir do qual enuncia o ministro
impossibilita que ele ocupe, nesse espaço de enunciação coletivo,
o lugar de um sujeito-usuário comum. Essa impossibilidade é,
por sua vez, tanto de ordem técnica, pois um único perfil não
conseguiria responder aos 1,6 mil tuites respostas, quanto de or-
dem discursiva, pois o que o perfil pode dizer obedece a critérios
de normatização discursiva, relativos ao discurso jurídico. Sendo
assim, cabe a ele ser “apenas observador”.
Vemos, portanto, que não é qualquer tipo de formulação que
funciona consensualmente com o tipo de normatização técnica do
Twitter. O discurso jurídico está, portanto, funcionando contra-
ditoriamente nesse espaço, pois existe uma sobredeterminação do
sujeito do discurso jurídico na relação com a normatização técnica,
marcando-se assim a impossibilidade de seu avatar estabelecer
uma interlocução com uma coletividade.
A normatização do espaço enunciativo do Twitter, visando
abarcar uma “conversa global” entre os mais variados perfis, de-
sorganiza a relação imaginária do que seria um diálogo entre um
juiz e um cidadão comum, desestabiliza, assim, a legitimidade do
discurso jurídico ao mesmo tempo em que dá visibilidade a seus
limites e (im)possibilidades.

187
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

5. O DISCURSO ORDINÁRIO NA FORMA DA ESCRITORALIDADE:


FUNCIONAMENTO POR CONSENSO E EFEITO-RUMOR

Por outro lado, os tuites respostas ao perfil de Gilmar Mendes


se aproximam, como dissemos, da forma discurso da oralidade
e, por advir de uma forma discurso sem legitimidade, nos leva a
questionar quais os efeitos produz nesse espaço enunciativo in-
formatizado. Vejamos, por exemplo, alguns dos tuites respostas,
dos 1,6 mil, referentes à postagem da figura 5.

Figura 7: Tuites-respostas ao tuite do perfil @gilmarmendes

Fonte: “ Twitter”. Disponível em:<https://twitter.com/gilmarmendes/sta-


tus/873653813844037633>. Acesso em: 24 jul. 2017.

Observamos aqui que a posição assumida pelos sujeitos que


respondem ao tuite do perfil do ministro é uma posição que se
assemelha

[...] àquelas assumidas por sujeitos do discurso da Oralidade,


em interlocuções instantâneas, provisórias, com múltiplos
interlocutores, sem fecho, sem efeito de autoria; [mas], por
outro lado, na rede, esses interlocutores não estão fisicamente
presentes e, além disso, relacionam-se com textualidades
constituídas com uma certa unidade e legitimidade, o que
é uma característica do discurso da Escrita e constitui uma
possibilidade nova para o sujeito, no que se refere à autoria
presente nessa prática (GALLO, 2012, s/p, online).

188
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Ao se inscrever na forma da escritoralidade, o discurso or-


dinário passa da “oralidade, do boca a boca, para um espaço de
escrita que se estrutura de forma singular [produzindo, portanto]
um novo efeito-autor que entra em confronto com as formações
dominantes” (SILVEIRA, 2015, p.134). Esse efeito de autoria da
escritoralidade diferencia-se, portanto, do efeito-autor ligado ao
discurso da escrita e se aproxima do que chamamos de efeito-rumor
ligado à escritoralidade. No caso que estamos aqui analisando em
torno dos tuites respostas à postagem do perfil do ministro, o
efeito-rumor diz respeito tanto à legitimação por quantidade – que
no caso dos tuites respostas 1,5 e 1,6 mil em cada tuite e, também,
a característica dos tuites resposta muito próximas de um discurso
de oralidade. Nesse contexto, visibiliza-se as  (im)possibilidades
do sujeito do discurso jurídico de entrar para essa conversa, tanto
técnica quanto discursivamente. O que é possível observar pelos
tuites-respostas à segunda postagem do dia (figura 6), na qual o
perfil do ministro declara ser apenas um “observador”.

Figura 8: Tuites-resposta ao tuite de @gilmarmendes

Fonte: “ Twitter”. Disponível em:<https://twitter.com/gilmarmendes/sta-


tus/873654005397950465>. Acesso em: 24 jul. 2017.

189
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Por ser da ordem do discurso ordinário, o efeito-rumor está


constitutivamente relacionado a uma coletividade, em geral anônima
(SILVEIRA, 2016). Vemos, aqui, que na escritoralidade têm produ-
zido um efeito de unidade e univocidade pela via da quantificação, ou
seja, a normatização de espaços enunciativos como os do Twitter, ao
rastrear, enumerar, selecionar, dividir e quantificar os tuites, acaba
construindo um regime de visibilidade para aquilo que era da ordem
do ordinário. No caso dos tuites-respostas, a quantificação está no
número que o Twitter fornece: 1,6 mil respostas. Considerando a
regularidade e a repetibilidade dessas respostas, das quais os tuites
acima apresentados seriam exemplares, é possível afirmar que o
discurso ordinário6 na forma da escritoralidade funciona, portanto,
por consenso, porque sua força está justamente na sua relação com
os muitos (quantidade) e com a força da circulação.
Vemos, aqui, que a normatização dos espaços enunciativos
informatizados apaga a contradição própria do rumor, homoge-
neizando-o e produzindo deste, um efeito.
O funcionamento discursivo descrito até aqui, permite, ainda,
destacarmos, mais uma vez, que o discurso jurídico, mesmo quando se
formula na forma da escritoralidade, produz contradição, remetendo
à instância de poder na qual o discurso jurídico se legitima. É por isso

6 Uma melhor caracterização do que chamamos discurso ordinário, sobretudo no Twitter,


encontra-se em SILVEIRA, 2015.

190
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

que, por exemplo, o sentido de observador, ao se dar nessa relação que


remete à posição sujeito do discurso jurídico e a de um sujeito-usuário
do Twitter é passível de produzir sentidos que remetem à forma
autoritária do discurso jurídico. Como é possível constatarmos pela
leitura de outros tuites respostas ao tuite da figura 6:

Figura 9: Tuites-resposta ao tuite de @gilmarmendes.

Fonte: “Twitter”. Disponível em:<https://twitter.com/gilmarmendes/sta-


tus/873654005397950465>. Acesso em: 24 jul. 2017.

A maneira como se processa a circulação dos textos e dos


discursos, hoje, está substancialmente afetada pela condição de
possibilidade dada pelos espaços enunciativos informatizados,
seus dispositivos digitais e seus algoritmos, que desenham pro-
cedimentos de seleção, visibilidade e apagamento, entrecruzando
aquilo que é da ordem da memória discursiva com aquilo que é da
ordem da memória metálica.
Dito de outro modo, tanto o modo como a circulação dos tex-
tos se dá, quanto à legitimação desses textos são, em boa medida,
determinadas pela normatização própria dos dispositivos digitais.
Nesse sentido, as análises aqui realizadas incidiram sobre uma
problemática já apontada por Pêcheux, quando o autor explora
a noção de circulação dos discursos, tocando em um ponto que

191
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

é crucial para as reflexões aqui apresentadas, chamando a nossa


atenção para a força do enunciado “Ça circule!” [isso circula!] – a
partir da qual o autor pensa a prática do analista do discurso frente
aos modos de circulação de materialidades discursivas diversas.

“Isso circula” como adquirimos o hábito de dizer, fazendo


dessa circulação a imagem positiva de nossa moderni-
dade discursiva liberada ou, ao contrário, a falsa moeda
de línguas de vento; os turbilhões esfumaçados do “não
importa o quê” destinados a chamar a atenção, desviando-a
“dos problemas reais”. [Nos perguntamos também hoje
se] Não é tempo de destituir essa imagem duplamente
complacente da circulação, constatando o fato de que as
circulações discursivas nunca são aleatórias, porque o “não
importa quê” não é nunca “não importa quê”?  Aquilo que,
em um momento dado, irrompe no espaço da repetição
discursiva, aquilo que o transforma ou movimenta-o, não
resulta de não importa qual fenda, torsão, modificação
(PÊCHEUX, [1980] 2016, p. 28).

A ideia de que “Ça circule” nos remete fortemente ao sobrepe-


so que tal expressão ganha no contexto de produção digital, uma
vez que os textos e discursos que circulam muito, que circulam
pouco ou que não circulam de modo algum, estão intimamente
relacionados com o fato de que para circular é preciso se enquadrar
em uma normatização própria dos discursos de escritoralidade.
Assim, consideramos a necessidade de pensar a expressão “isso
circula” também como algo que parece indicar uma instância es-
pecífica de legitimação dos discursos no digital.

Considerações finais

Buscamos neste trabalho discutir a forma discurso da escri-


toralidade a partir do processo de normatização e legitimação de
espaços enunciativos informatizados, buscando avançar em uma
análise dos mecanismos e procedimentos que sobredeterminam um
modo de circulação específico. As análises permitiram aprofundar-
mos discussões realizadas em trabalhos anteriores, corroborando

192
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

para a compreensão das relações engendradas pela relação, em


espaços informatizados, entre Discurso de Escrita, Discursos de
Oralidade, que se constituem na forma discurso da Escritoralidade,
ora por consenso, ora por contradição.
As reflexões empreendidas até aqui nos permitiram compre-
ender que cada um desses espaços enunciativos (Twitter, Facebook,
Youtube, etc.) tem normatizações próprias, embora todos tenham
a mesma forma de legitimação (por quantidade). Por essa razão,
não falamos em discurso digital, mas em discursos (científico,
jornalístico, político-eleitoral, etc.) na forma da escritoralidade, o
que significa dizer que aí os diversos discursos estão afetados por
processos específicos de legitimação e de normatização próprios
do espaço enunciativo informatizado.
Nosso trabalho continuará se desenvolvendo em três direções:
no sentido de descrição/interpretação de diferentes discursos
inscritos na forma discursiva de escritoralidade; no sentido de
descrição/interpretação dos processos de normatização e legitima-
ção dos diferentes espaços enunciativos da internet; no sentido de
aproximação com outros trabalhos que incidem sobre essa mesma
materialidade e mobilizam outras noções do dispositivo teórico da
AD, como, por exemplo, a noção de arquivo, entre outras; e, final-
mente no sentido de investigar o efeito-rumor nas suas relações
com a forma discursiva de escritoralidade.

REFERÊNCIAS

GALLO, Solange. Da escrita à escritoralidade: um percurso em direção


ao autor online. In: RODRIGUES, Eduardo Alves; SANTOS, Gabriel
Leopoldino dos; CASTELLO BRANCO, Luiza Katia Andrade. (Org.).
Análise de Discurso no Brasil: pensando o impensado sempre. Uma
homenagem a Eni Orlandi. Campinas, SP: Editora RG, 2011.
GALLO, Solange.  Discurso e Novas Tecnologias de informação.  2012.
Disponível em: <http://solangegallo.blogspot.com.br/2012/08/o-
texto-abaixo-foi-enviado-para-ser.html>. Acesso em: 24 jul. 2017.
GALLO, Solange; PEQUENO, Vitor. Do Discurso de Escritoralidade à forma-
discurso Digital. In: XXXI ENAPOLL, 31., 2016, Campinas. Anais...
. Campinas: Anpoll, 2016. p. 1 - 1.

193
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

GALLO, Solange Leda. Processo de legitimação no discurso de


escritoralidade. In: GRIGOLETTO, Evandra; STOCKMANS, Fabiele de
Nardi. (Orgs.). A Análise do discurso e sua história: Avanços e perspectivas.
Campinas, SP: Pontes Editores, 2016.
GRIGOLETTO, Evandra; GALLO, Solange. Sujeito e memória em
textualidades digitais. In: INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina
L.; MITTMANN, Solange (Org.). Análise do Discurso: do fundamento aos
desdobramentos, 30 anos de Michel Pêcheux. Campinas, Sp: Mercado
de Letras, 2015. p. 307-317.
PEQUENO, Vitor. A demanda pelo avatar e a forma-discurso do digital:
construções iniciais e notas para um futuro trabalho. In: FLORES,
Giovanna G. Benedetto; NECKEL, Nádia Régia Maffi; GALLO, Solange
M. Leda. (Orgs.). Análise de Discurso em Rede: cultura e mídia - vol. 2.
Campinas, SP: Pontes Editores, 2016.
SILVEIRA, Juliana da. Rumor(es) e Humor(es) na circulação de hashtags
do discurso político ordinário no Twitter (no prelo). 2015. 200 f. Tese
(Doutorado) - Curso de Pós-graduação em Letras, Universidade
Estadual de Maringá, Maringá, 2015.
SILVEIRA, Juliana. O efeito de rumor na discursivização do corpo
político-midiático: a produção de imagens rumorais. In: Revista
Eletrônica de Estudos do Discurso e do Corpo. Vol. 10, Nº 2 - Jul/Dez 2016.
PÊCHEUX, Michel. Abertura do Colóquio. In: CONEIN, Bernard et al
(Org.).  Materialidades Discursivas.  Campinas: Editora da Unicamp,
[1980] 2016. p. 23-29. Tradução Débora Massmann.

194
Discurso, Corpo e Equívoco
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

SEM CORPO, SEM LÍNGUA, NUM ENTRELUGAR:


SOBRE OS SUJEITOS TRANSEXUAIS NA MÍDIA

Alexandre Sebastião Ferrari Soares


Universidade Estadual do Oeste do Paraná/Cascavel - (Unioeste)

“Eu não nasci no corpo errado, nasci no tempo errado”.


Letícia,
Liberdade de Gênero – Especial GNT.

L OURO (2016, p. 12) no artigo Pedagogias da sexualidade, parte


do livro O corpo educado, escreve, entre outras coisas, sobre
a porosidade entre o natural e o construído, entre o público e o
privado em se tratando do corpo, da sexualidade e da identidade
de gênero. Ela nos diz que, em geral, admitimos (embora com
algumas restrições) que um operário venha a se transformar num
patrão ou que uma camponesa se torne uma empresária. Ela afirma
que é aceitável a transitoriedade de classe.
No entanto, ela se reporta a uma notícia de jornal, de 1988,
sobre um fato ocorrido numa cidade do interior da Alemanha.
O prefeito, algum tempo depois de eleito, assume publicamente
uma nova identidade de gênero. Ele se apresenta agora como
mulher e informa a sua comunidade que tem intenção de com-
pletar a sua transformação através de processos cirúrgicos (p.
13).
Não é preciso falar muito sobre esse episódio uma vez que
sabemos todos: a transgressão dessa fronteira quase intranspo-
nível e proibida (ainda que essa mudança tenha relação apenas
com a vida privada do tal prefeito), é questionada de modo geral.

197
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Mesmo que esta transformação, neste caso, não interfira em nada


na vida pública da comunidade.
Por outro lado, se este mesmo prefeito mudasse seu plano de
governo, passando a implementar aquilo que não tivesse prome-
tido, e, dessa forma, a vida pública da comunidade fosse afetada
por essa mudança, uma vez que haveria aí uma fraude, a questão
muito provavelmente seria banalizada. (LOURO, 2016, p. 13). Esse
exemplo é muito ilustrativo para a gente pensar no lugar que os
sujeitos-trans ocupam nos meios de comunicação: quase sempre
são tratados como uma fraude, uma vez que nomes/pronomes
e corpos flutuam descaradamente ao se reportarem a eles: sem
língua, porque nesta eles não encontram um lugar que possam
se significar sem deslizar do masculino para o feminino e vice-
versa (como polos excludentes, a língua não tolera incertezas),
sem corpo, de forma que sempre há sobre nesses sujeitos faltas a
serem preenchidas e excessos a serem domados para que possam
ser ou isto ou aquilo, sem nome como uma evidência de que não
há pelo Estado legitimidade sobre esses sujeitos.
Com o avanço das liberdades individuais e das ciências, as
fronteiras de gênero, antes completamente fechadas, não se mos-
tram tão limitadas. Falar sobre gênero deixou de ser, em termos
gerais, menos problemático. Novas identidades ocupam/exigem
espaços e questionam o repertório de referências naturalizados
(e herdados).
Canais abertos e fechados, revistas, novelas de televisão, jor-
nais, propagandas publicitárias, programas com altos índices de
audiência têm retratado o tema com menos pudor, socializando,
assim, casos que antes eram tratados de forma silenciosa (re)for-
çando sua interpretação sempre a partir de anormalidades, erros,
doenças, pecados que sustentavam os sentidos sobre as sexuali-
dades não-hegemônicas.
Segundo O Manual de Comunicação LGBT da Associação
Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transgêne-
ros (doravante, ABLGT) de 2009, a transexualidade “acontece

198
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

quando a identidade de gênero1 é diferente do sexo designado no


nascimento, ou seja, o sexo biológico não corresponde a sua forma
de estar no mundo.”
Todos nós, de alguma forma, poderíamos nos incluir nessa
categoria da transexualidade uma vez que o sexo biológico quase
nunca corresponde a nossa forma de estar no mundo: sobretudo
se tomarmos como evidência a relação cultural entre o sexo ana-
tômico e as nossas práticas sociais.
Quem nunca se identificou com aquilo que costumeiramente
dizem-se ser do sexo oposto? As identidades não são, portanto,
fixas ou homogêneas, são, ao contrário disso, porosas. E estamos de
uma forma muito cotidiana nos reinventando. A identificação com
o sexo biológico nunca é absoluta e total. Rosa para as meninas e
azul para os meninos é apenas o começo dessa divisão que torna
a vida menos colorida.
Continua o manual: Homens e mulheres transgêneros
podem manifestar o desejo de se submeterem a intervenções
médico-cirúrgicas para a adequação dos seus atributos físicos de
nascença (inclusive genitais) a sua identidade de gênero consti-
tuída. “Podem” não é categórico e o manual o utiliza muito mais
para fins didáticos do que para fins de uma classificação fechada.
Categórico apenas é como os meios de comunicação fazem circular
esses sujeitos, seus corpos, seus desejos.
Há duas formas de significar a transexualidade, segundo
BENTO (2008): uma a partir da sexualidade e outra a partir do
gênero. Esta trata o sujeito-transgênero como um desdobramento
de uma ordem de gênero a partir de uma percepção dos gêneros
no corpo, e aquela, a partir da patologização, ou seja, interpreta
a transexualidade como se houvesse uma causalidade-definitiva

1 É uma experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não cor-
responder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode
envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos,
cirúrgicos e outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e
maneirismos. Identidade de gênero é a percepção que uma pessoa tem de si como sendo
do gênero masculino, feminino ou de alguma combinação dos dois, independente de sexo
biológico. Trata-se da convicção íntima de uma pessoa de ser do gênero masculino (homem)
ou do gênero feminino (mulher). (Manual de Comunicação LGBT, 2009, p.16).

199
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

entre o gênero e o corpo. E outra vez poderíamos nos encontrar


nesse “conflito” ao qual a autora faz menção, uma vez que “em
conflito com a norma” tem muito mais a ver com o que está fora de
nós do que com aquilo que sentimos, desejamos e vivemos. Não se
pode atribuir aos indivíduos papéis sociais fixos (OAKLEY, 1972).
Para a Organização Mundial de Saúde (OMS) a transexua-
lidade é um transtorno mental, e, em virtude disso, passível de
tratamento (assim como era a homossexualidade até 1980 nos
EUA e no Brasil até 1985). Há, em meio a essa patologização da
transexualidade, pelo menos duas posições dos movimentos de
defesa dos direitos dos LGBT.
Se por um lado, há um grupo que se posiciona de forma fa-
vorável à patologização com o argumento de que dessa forma o
tratamento é subsidiado pelo Estado. Por outro, temos um movi-
mento que reivindica a retirada da transexualidade dos documen-
tos que normatizam a patologia dessa identidade. Essa corrente
ganhou força com o Movimento Global de Combate à Patologização
de Identidades Trans. Segundo Bento, (2011, p. 89).
As reivindicações desse movimento giram em torno de cinco
pontos: 1) Retirada do Transtorno de Identidade de Gênero do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – (4ª
edição) e do Cadastro Internacional de Enfermidades; 2) Retirada
da menção de sexo dos documentos oficiais; 3) Abolição dos tra-
tamentos de normalização binária para pessoas intersex; 4) Livre
acesso aos tratamentos hormonais e às cirurgias (sem a tutela
psiquiátrica); e 5) Luta contra a transfobia, propiciando a educação
e a inserção social e laboral das pessoas transexuais. Todas essas
reivindicações reforçam a ideia de que o sujeito não pode/deve ser
falando antes dele falar: o sujeito e o sentido não têm, portanto,
esse lugar segundo o qual o sexo (biológico) o antecede de forma
determinante.
Ainda que a OMS já tenha sinalizado com a possibilidade da
retirada da transexualidade da categoria de doença, ela permanece
até hoje.

200
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Aprendemos todos que as categorias sexuais, como uma


fórmula matemática, eram representadas pelos cromossomos que
determinam o sexo do bebê: XX significa que se trata de menina e
XY de que se trata de menino. Ponto. No entanto, os componentes
daquilo que consideramos como feminino ou como masculino nem
sempre se apresentam nitidamente com todas as suas caracterís-
ticas com a presença de XX ou XY. Ou seja, nem sempre pênis,
testículo, testosterona, identidade e comportamentos masculinos
estão presentes quando os cromossomos XY se apresentam. O
mesmo acontece na presença dos cromossomos XX. Isso quer
dizer que, em termos gerais, é possível que alguém seja predomi-
nantemente masculino, em se tratando de anatomia, mesmo com
os cromossomos XX.
Essa fórmula matemática nem sempre tem por efeito a exa-
tidão, portanto, definir as características anatômicas a partir da
presença/ausência de cromossomos (XX ou XY) não é a última
palavra para determinar o sexo biológico e muito menos a iden-
tidade de gênero e comportamento feminino ou masculino.
Socialmente não se pode ser homem e mulher ao mesmo tem-
po. A natureza, no entanto, raramente adota divisões tão rígidas.
O biológico, como a maioria dos traços biológicos complexos é
como um continuum, com extremos bem definidos e, no meio, uma
ampla gama de situações intermediárias (KRAUS, 2000).
O desejo sexual ou comportamento sexual ou identidade de
gênero não são dependentes de estruturas anatômicas, cromos-
sômicas ou hormonais. Daí a arbitrariedade dos papéis de gênero
precedendo o sexo e o sujeito. (OAKLEY, 1972).
A proposta aqui neste artigo, é analisar a relação entre o que
a língua permite sobre a transexualidade no Portal (G1) Globo.
com e o que o corpo transexual comporta, a partir da análise de
discurso de orientação francesa (doravante, AD).
Para esta apresentação, como corpus discursivo, selecionei as
três publicações mais recentes, neste portal. Duas de 2016 (dos
meses de novembro e dezembro) e uma de janeiro de 2017 (publi-

201
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

cada no dia 10). Matérias nas quais sujeitos transgêneros falam


sobre si, sobre seus corpos e identidades, sobre as suas formas de
estar no mundo.
Duas perguntas me guiaram na produção desse artigo: 1. De
que forma ao se situar fora daquela binaridade (homem vs. mulher),
o corpo transexual é construído, nas matérias analisadas, a partir
de uma relação possível entre o que a língua comporta e o que
seu corpo permite? 2. Como os movimentos de constituição do
discurso de (e sobre) sujeitos-transexuais podem ser analisados
a partir das relações entre as posições-sujeito, uma vez que tais
corpos se inscrevem em um discurso de resistência ao binarismo
produzido pelo discurso social? (CASSANA, 2016).
Em AD dizemos que sentido e sujeito se constituem ao mesmo
tempo. E com isso queremos dizer que ao significar, ao produzir
sentidos, o sujeito também se significa. Dizemos mais, dizemos
que o sujeito ao produzir sentidos diz mais sobre si do que sobre
aquilo que ele diz.
Qual a relação entre a Análise do Discurso de orientação
francesa (AD), o discurso jornalístico e a o que se diz sobre os
sujeitos transgêneros? É uma relação de evidenciar, por um lado,
o funcionamento do discurso jornalístico a partir do que ele diz
sobre si: amparado nos mitos de neutralidade, objetividade, impar-
cialidade e verdade (MARIANI, 1999), os meios de comunicação
fazem circular alguns sentidos (como se fossem todos os sentidos
possíveis) de forma como se estivessem analisando o mundo fora
do ideológico. E por outro, (a partir da mesma base) a circulação
de uma memória: que imobiliza os sentidos (porque é institucional)
mas também que produz deslocamentos uma vez que a memória é
constituída pelo esquecimento, e assim torna possível o diferente,
a ruptura, o outro (ORLANDI, 1999).
O discurso jornalístico constrói-se (e se vende), dessa forma,
com base em um pretenso domínio da referencialidade, pois baseia-
se em uma concepção de linguagem que considera a língua como
instrumento de comunicação de informações (MARIANI, 2005).

202
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

SD1. A Justiça determinou que a boate Banana República de Campinas


(SP) pague uma indenização por danos morais a uma transexual que
foi obrigada a comprar ingresso masculino  para entrar no estabe-
lecimento. A sentença do juiz Fabricio Reali Zia, da 2ª Vara Cível, foi
publicada na semana passada, um ano após Branca Bacci Brunelli ter
entrado com a ação. No entanto, a decisão ainda cabe recurso. “O que
me motivou a processar a boate não foi o dinheiro, foi porque eu não
quero que isso aconteça com mais nenhuma pessoa trans [...] isso
mostrou o quanto nós ainda somos desreipeitadas e o quanto a nossa
identidade de gênero feminino é desreipeitada porque muita gente
ainda nós vê como homens. Eu fui vista como um homem folgado,
que tava querendo só me dar bem e ainda tive a audácia de querer
processar”, disse a jovem. (Globo.com, G1, Boate terá que indenizar
transexual obrigada a pagar ingresso masculino, em 02. De dezembro
de 2016, grifos meus).

O entrelugar a que me refiro ao longo deste artigo diz res-


peito às barreiras cotidianas que impedem os sujeitos-trans de
serem reconhecidos pela sua identidade de gênero, ou seja, pela
forma como se identificam. Na SD1, o fato de ter sido obrigada
pela boate Banana República (de Campinas) a comprar ingresso
masculino reforça a ideia de que é o sexo biológico a única forma
de identificação desse sujeito, uma vez que a sua identidade de
gênero feminina não é suficiente para impedir que essas situações
aconteçam. O corpo neste caso não se descola do biológico: esse
sentido já está dado.
A ocorrência do ato falho “desreipeitada” (três ocorrências)
pode significar o quanto esses sujeitos precisam de forma re-
corrente “abrir caminhos com o peito, bater de frente, de modo
destemido” (HOUAISS, 2001) para que sua identidade de gênero
seja reconhecida.
A relação que se faz entre o sujeito-trans e um homem-folgado
(neste caso, pagar como uma mulher pagaria (em geral, mulheres
pagam valores menores nas entradas de casas noturnas hetero-
normativas), ou se passar por uma mulher como se não fosse)
ecoam os sentidos de que estes sujeitos estão protagonizando uma
fraude e nos induzindo a um engano (LOURO, 2016, p. 13). Pela
centralidade que a sexualidade adquiriu nas modernas sociedades

203
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

ocidentais, parece ser difícil entendê-la como tendo as propriedades


de fluidez e inconstância (LOURO, 2016).
A identidade de gênero e a identidade sexual, parece ser,
frequentemente, a referência mais “segura” sobre o sujeito. Po-
demos reconhecer, teoricamente, que nossos desejos e interesses
individuais e nossos múltiplos pertencimentos sociais possam
no “empurrar” em várias direções. Mas, tememos a incerteza, a
ameaça de dissolução que implica ter uma identidade fixa, afir-
mando que o que somos agora é o que, na verdade, sempre fomos
(LOURO, 2016).
E nossos corpos constituem-se na referência que ancora, por
fim, a identidade. O corpo, aparentemente, é inequívoco, evidente
por si. Em consequência, (LOURO, 2016), esperamos que o corpo
dite a identidade, sem ambiguidade nem inconstância.

SD2. “Eu me sinto na obrigação de fazer alguma coisa pelas minhas


iguais. Quero reverter essa situação [...] Eu acredito que a minha vitória
seja um passo para que nós sejamos respeitadas. A minha família me
reconhece como mulher, a universidade, que é católica, me reconhece
como mulher, aceitaram minha mudança de nome. E estou com um
processo legal para mudar nome e gênero e daí vem uma boate cobrar
ingresso masculino para desreipeitar tudo isso”, conclui. (Globo.com, G1,
Boate terá que indenizar transexual obrigada a pagar ingresso masculino,
em 02. De dezembro de 2016, grifos meus).

Na SD2, o sujeito-trans enumera as instituições que a reco-


nhecem como mulher: família, escola/universidade (não qualquer
uma, mas uma católica) e Lei, o Estado, em referência ao processo
legal para a mudança de nome/e/gênero. Mas o ato falho outra
vez surge reforçando aquele lugar da necessidade de abrir cami-
nhos, de encarar outra vez de maneira destemida porque se sabe
das interdições cotidianas.
É sempre a partir do lugar do equívoco entre o masculino e
o feminino, entre o sexo biológico e a identidade de gênero, entre
o nome de registro e o nome social que estes sujeitos circulam no
meio de comunicação pesquisado.

204
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

É muito produtivo o ato falho DESREIPETADA. A identida-


de de gênero pouco importa diante das evidências que se inscrevem
no corpo desses sujeitos. Nem mesmo a cirurgia de redesignação
sexual é capaz de reinscrever nos seus corpos outros sentidos
além dos que os já o identificavam: mulher/homens trans. Sempre
acompanhado do adjetivo (trans) que faz deslizar outra vez para
o biológico. Nunca homem ou mulher. Porque é preciso mais do
que o anatômico. O sexo precede o sujeito. O lugar desse sujeito
já foi dado, ele já se inscreveu, há, portanto, uma predeterminação
ideológica (ALTHUSSER, 1985, p.99), todos os rituais de cresci-
mentos, da educação familiar, das etapas pregenitais e genitais da
sexualidade reforçando um já-dito sobre ele.
O adjetivo trans será uma maneira de significá-los estabe-
lecendo um antes ou um depois, inscrição de uma memória que
nunca esquece, mesmo após o reconhecimento da família, da
escola e do Estado. Laerte, em entrevista recente ao jornal Folha
de São Paulo fez a seguinte pergunta “é preciso ter peito para ser
transgênero”. E eu me pergunto o que é preciso ter/ser para ser
mulher ou homem?
Butler (1999) afirma que há modos de “construir” a nossa
identidade que irão perturbar mais ainda quem está diretamente
interessado em preservar as oposições existentes, tais como ma-
cho/fêmea, masculino/feminino, gay/hétero. Ainda segundo a
autora, se aceitarmos que o gênero é construído e que não está,
sob nenhuma forma, “natural” ou inevitavelmente preso ao sexo,
então a distinção entre sexo e gênero parecerá cada vez mais ins-
tável. Assim, o gênero é radicalmente independente do sexo. Ele
é, nas palavras da autora, “um artifício à deriva” (BUTLER, 2015).

SD3. Após o ocorrido na casa noturna, na época, o estudante também


teve problema para registrar boletim de ocorrência na Delegacia da
Mulher de Campinas. O caso precisou ser encaminhado para outro
distrito policial por conta do “sexo masculino” oficial. O “gênero fe-
minino” da jovem só foi inserido no boletim porque ela insistiu para
as funcionárias, conforme a foto do registro. (Globo.com, G1, Boate terá
que indenizar transexual obrigada a pagar ingresso masculino, em 02. De
dezembro de 2016, grifos meus).

205
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Na SD3, as barreiras cotidianas as quais me refiro se mostram


aqui sob a forma daquele que está a serviço do Estado: o policial. Como
poderíamos supor que uma mulher-trans em processo de mudança de
nome/gênero conseguiria registrar um boletim de ocorrência numa
Delegacia da Mulher? Mulher aqui cola outra vez ao biológico (um
sentido dado/uma interpretação possível). Como supor que aqueles
que prestam serviço para o Estado possam reconhecer como mulher
um sujeito que tem o sexo masculino registrado em seus documentos?
Não pode haver feminino num corpo masculino? Não existe nada fora
das amarras sexuais/biológicas.
O caso precisou ser encaminhado para outro distrito, ainda que
a matéria não nos informe, muito provavelmente sem o adjunto da
Mulher. E mesmo nesse outro lugar foi preciso repeitar, presente no
verbo insistir, para que o gênero feminino fosse inserido no boletim,
mas essa inserção não é realizada sem o uso das aspas: (1) realçando
a contradição masculino/feminino; (2) marcando a negociação do
sujeito com o Outro, circunscrevendo a alteridade na forma de
uma não-coincidência entre a palavra e a coisa – as aspas indicam que
a palavra empregada não é a mais adequada para designar o que
o enunciador pretende, pois pode não corresponder exatamente
à realidade. (3) sinalizando uma distância, um questionamento, uma
crítica por parte do enunciador, que põe em questão o sentido atribuído
a essa expressão pelo discurso outro, marcando, assim, um ponto de
não-coincidência das palavras com elas mesmas, que reforça a polêmi-
ca entre os dois posicionamentos. Esse procedimento evidencia uma
não-coincidência interlocutiva e delimita as formas de significar os
sujeitos (LIMA, 2009).
“O” estudante, assim com o artigo definido masculino, refere-se
à Branca Bacci Brunelli. Não é apenas um erro de revisão, mas uma
forma de identificação desse sujeito que ao ocupar um lugar indeter-
minado porque nem homem e nem mulher (a língua não aceita incer-
tezas) migra de um lado a outro evidenciando o entrelugar possível
para este sujeito. Se Branca Bacci Brunelli é o estudante, o que ela
é? Sujeitos sem corpos porque nem masculino e nem feminina. Sem
lugar uma vez que eles não podem aqui ou se podem não podem da
forma como são. E sem língua porque também não se encaixam na

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

binaridade: só se pode ser homem ou mulher. O gênero é limitado


pelas estruturas de poder no interior das quais está situado: o gênero
precedo o sujeito (BUTLER, 2015).

SD4. Funcionária de uma organização militar, Lilian Alessandra Consi-


glieri, de 58 anos, encarou o medo de sofrer preconceito e assumiu
a sexualidade diante dos colegas de trabalho. Há um ano, Claudio
Alexandre ‘trocou’ de nome, ganhou um novo crachá e se tornou a
primeira transexual do Departamento de Ciência e Tecnologia Aero-
espacial (DCTA) de São José dos Campos (SP). Ela passou a ter o direito
a usar o chamado ‘nome social’ no trabalho, diferente do que estampa
no registro de nascimento. (Globo.com, G1, Transexual funcionária de
centro militar adota nome social no crachá, em 27 de novembro de
2016, grifos meus).

Na SD4, encarar o medo ou peitar de modo destemido são


práticas recorrentes desses sujeitos nos meios de comunicação
quando se trata de sua vida e de sua identidade de gênero. É
bastante recorrente, ainda que não seja objeto desta pesquisa,
uma vez que o critério que usei para a seleção das matérias,
seria o sujeito trans falando sobre si e sobre as suas práticas, re-
portagens sobre violências diversas em relação a estes sujeitos.
Quase sempre elas sofrem violências com requintes de crueldade:
não há economia de violência quando se trata de assassinado de
transgêneros. A violência tem gênero, tem cor, tem classe social:
a cada 25 horas uma pessoa LGBT morreu vítima de violência
em 2016 segundo GGB.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Quadro 1: Vítimas LGBT no Brasil

Fonte: site RBA de 26 de janeiro de 2017 – A cada 25 horas um LGBT morreu vitima de
violência no Brasil em 2016.

A situação envolvendo pessoas trans no Brasil é extremamen-


te grave. Segundo dados da Associação Nacional de Transexuais
e Travestis do Brasil (Antra), a expectativa de vida de uma pessoa
transexual ou travesti no País é de cerca de 35 anos - bem abaixo
da média nacional. 40% de todos os assassinatos de pessoas trans
registrados no mundo ocorrem em solo brasileiro.
Na SD4, o medo de sofrer preconceito era reforçado pela
presença da Instituição Militar e tudo o que ela representa, no
imaginário e em suas práticas homofóbicas, sexistas e machistas. O
preconceito nem sempre é velado e, em se tratando de sexualidade,
as instituições militares têm históricos conhecidos de intolerân-
cia. Como exemplo, no dia 19 de abril de 2017, o G1 publica uma
reportagem sobre uma estudante transexual, Marianna Lively, 19
anos, que comemorou a decisão da Justiça Federal de São Paulo, que
condenou a União a lhe pagar uma indenização por danos morais.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Por conta da divulgação das imagens, do seu endereço e telefones


quando da sua apresentação obrigatória de alistamento militar
(obrigatória para o sexo masculino), e em consequência disso das
“inúmeras ligações que recebeu, sendo parte delas ofensivas. ”
No corpo do sujeito trans se inscreve uma resistência à rela-
ção causal que se construiu também no discurso da ciência sobre
haver uma dependência entre o sexo biológico e a identidade desses
sujeitos. Daí (FERREIRA, 2015) a entrada súbita do equívoco de-
marcando pontos de fuga que representam modos de resistência que
são próprios da ordem da língua: esse sujeito fura a língua porque
os sentidos que se inscreviam no discurso não podem significá-lo.
Esse o corpo é um acontecimento? Ele desestabiliza a língua
e o corpo, ele permite e impõe que novos enunciados circulem
sobre a natureza biológica, sobre a anatomia e a relação desta
com a identidade de gênero. O corpo fala mesmo que o sujeito
trans ainda não se fala. O corpo diz antes porque já significa este
sujeito: significa pela anormalidade, desvio, fraude, mas também
significa pela resistência e insistência de um discurso ou de um
silêncio que o significa.

REFERÊNCIAS

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constitutiva: elementos para uma abordagem do outro no discurso.
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BENTO, Berenice de Melo. O que é transexualidade? São Paulo, Brasiliense,
2008.
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http://ponto -t-transexualidade.blogspot.com.br/2012/07/
despatologizacao-das-identidades-trans.html, 2011. Acesso em:
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Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2015.
CASSANA, Monica Ferreira. Corpos impossíveis: A ordem do corpo e a
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209
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

DIAS, Sandra. A função do nome próprio e da letra na obra de Van


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ESPINEIRA, Karine. La sexualité des sujets transgenres et transsexuels
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politique, CNRS-Editions, 2014, p. 105-109.
FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Resistir, resistir, resistir...Primado
prático discursivo! In: Discurso, resistência e...SOARES, Alexandre S.
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KRAUS, Cynthia. La bicatégorisation par sexe à l’ ‘épreuve de la science’:
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Maria Cristina Leandro (Orgs.). Os múltiplos territórios da Análise do
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_________Discursos de colunas de consultório e subjetividade. Comum.
Inf., v. 7, n. 1, p. 47-62, jan./jun. 2004.
OAKLEY, Ann (1972). Sex, Gender and Society. London, Maurice Temple
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ORLANDI, Eni. Análise de Discurso - Princípios e Procedimentos. Campinas,
Pontes, 1999.

210
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

A VOZ: UM CORPO QUE NÃO ENGANA

Maurício Eugênio Maliska


Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul)

A linguagem é a dimensão do equívoco, pois a linguagem não


é transparente, é aquilo que escapa entre a representação e a
coisa. Neste sentido, a linguagem é plástica e está mergulhada na
dimensão daquilo que pode, ou não, ser. A Psicanálise e a Análise
de discurso (A.D.) sempre souberam disso e construíram seus
edifícios teóricos a partir dessa opacidade da linguagem.
Na Análise de Discurso toda a problemática do sentido, ou
melhor, de seus efeitos e defeitos, se dá através de uma premissa
que a linguagem não é um código a ser decifrado pelo receptor
que a receberia cifrada pelo emissor. Não se trata de entendê-la
como comunicação, mensagem, código, enfim, nada disso. Essa é a
primeira lição em A.D., algo já clássico. Desse modo, o discurso e a
linguagem estão abertos a polissemia, a uma produção de sentido
outra, inesperada, por vezes, inusitada.
Na psicanálise, a hipótese do inconsciente produz uma divisão
do sujeito, que fica seccionado entre sua intencionalidade cons-
ciente e seu efetivo dizer inconsciente. Uma divisão que marca
a não unidade, em que há um hiato entre o que se diz e o que se
pensa ou se almeja dizer. Neste sentido, pode-se afirmar que um
ato falho, por exemplo, é um ato que mostra um equívoco, pois há
uma vacilação, uma oscilação, produzindo uma pluralidade de sen-
tidos, ou no míninmo, uma duplicidade, saindo do um totalizador
da esfera imaginária. Contudo, também podemos dizer que o ato
falho não é falho na medida em que revela um saber inconsciente

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

e produz um sentido revelador desse saber. É falho no sentido


dessa vacilação conflitiva do eu e da consciência, mas é assertivo
no que diz respeito ao inconsciente.
No ato falho há um significante que gera interpretação,
por ser um derivado ou uma formação do inconsciente, há uma
cadeia significante que produz metáfora, em que os significados
se condensam num significante; e uma metonímia, em que um
significante desliza sobre outro. Por ser falho, este ato mostra a
divisão do sujeito enquanto cindido pela lei da linguagem. Ser
falho é estar no campo da linguagem que constitui o sujeito. Por
estar no campo da linguagem, o ato falho está submetido às falá-
cias, aos desencontros, as falhas da linguagem que mostram sua
incompletude e a opacidade que o produz.
Dessa forma, se a linguagem e o discurso estão na ordem do
equívoco, naquilo que Lacan (2005 [1962]) nomeia como sendo da
ordem do que engana, o que estaria na ordem do que não engana?
Lacan (2005 [1962], p. 75), no Seminário 10: A angústia, situa que
aquilo que engana é da ordem do significante. Ele traz um exem-
plo relativo aos animais que apagam seus rastros e criam rastros
falsos, para despistar o predador. Criar um rastro falso pode ser
um comportamento animal, de algumas espécies ao menos, mas o
animal não cria com isso um significante, pois o significante tem
a propriedade de ser falsamente falso. No nosso entendimento, o
significante não é a coisa, não há uma literalidade, ele representa
uma representação, ele representa, por exemplo, a representação/
conceito/ideia de casa, sem que isso seja verdade, ou seja, o signi-
ficante não só pode ser falso, mas ser falsamente falso.
Nesse mesmo Seminário, Lacan (2005 [1962], p. 88, itálico do
autor) também vai falar sobre aquilo que não engana, que aparece
como certeza radical, a saber, a Angústia. Nas suas palavras: “[...]
a verdadeira substância da angústia é o aquilo que não engana, o
que está fora de dúvida”. Pode-se dizer, inclusive, que a certeza na
psicose é delirante, já na neurose, é angustiante. Nesse sentido, a
angústia aparece como o inequívoco, aquilo que não engana, que
está fora da dúvida, logo, fora do significante e da linguagem, mas

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

inserida no corpo. A angústia é um afeto que nos afeta, é um afeto


consciente para o sujeito. Temos plena consciência que estamos
angustiados, mas na maioria das vezes, no entanto, não sabemos o
porquê, mas somos afetados pela angústia e sabemos disso. E uma
das razões dessa certeza, Lacan (2005 [1962]) argumenta estar
justamente no fato de que a angústia ocorre no corpo. Ou seja, é
por ela estar no real do corpo que aparece essa certeza, aquilo que
não engana. Então, o elemento inequívoco é, mais exatamente, o
corpo que serve de lugar onde a angústia se aloja. Diante disso, o
corpo aparece como esse lugar da certeza, daquilo que não engana.
Evidentemente, na topologia lacaniana, podemos depreender
diversas inscrições para o corpo. Desde o corpo imaginário, aquele
presente no Estádio do Espelho (Lacan, 1998 [1949]), em que o eu
se identifica com uma imagem projetada no espelho, e aí temos
um corpo imaginário, aquele do esquema corporal, da imagem do
corpo e, consequentemente, do eu. Há também o corpo simbólico,
aquele das inscrições significantes, das marcas que o simboli-
zam e fazem com que esse corpo fale submetido a um discurso
que o constitui. Temos, então, o corpo no registro simbólico da
experiência psíquica esquematizada no nó borromeo. E, por fim,
também há o real do corpo, ali onde o significante escapa. O real
do corpo como o lugar em que a linguagem não o acessa, onde
o significante não se inscreve, onde há um real que não cessa de
não se inscrever (LACAN, 1985 [1972]). Pois bem, é desse real
do corpo que estamos tratando na angústia, esse corpo que afeta
o sujeito, mas que não é afetado nem pela imago imaginária do
espelho, nem pelo significante do Outro que não se inscreve. Um
real do corpo cuja angústia o habita e produz seus efeitos.
Meu objetivo, nesse texto, não é tratar da angústia. Na ver-
dade, fiz uma digressão na angústia apenas para mostrar que ela
é aquilo que não engana, que não está na dimensão do equívoco.
Essa digressão nos conduziu ao corpo como esse lugar do real que
não engana. Do real do corpo podemos chegar à voz, na medida
em que a voz também é esse elemento corp(oral) que é da ordem
de um real, pois ela é corpo e um real do corpo. Refiro-me a voz e
não à fala, a voz como esse elemento que deve ser silenciado para

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

que a fala possa advir. Em outras palavras, estamos tratando da


voz enquanto um real que desassossega, um real que perturba a
fala. Isso produz uma inversão em nosso imaginário, porque em
geral concebemos a voz como um elemento material para a fala,
aquilo que dá suporte fonético para ela. Mas é necessário inverter
isso e pensar que a voz é o que pode também atrapalhar a fala.
Vejam, por exemplo, a gagueira, a disfonia, a afonia, são elementos
vocais que não estão funcionando como suporte material (sonoro)
para a fala. Nesses momentos, desponta mais a voz do que a fala.
Poderíamos pensar num momento de rebelião da voz em relação
à fala, em que o ouvinte ouve mais a voz do que a própria fala.
Costumeiramente, ouvimos a fala e apagamos a voz, mas nesses
momentos de engasgos, disfonias, afonias, gagueiras, podemos
escutar mais a voz do que a fala; ou mais exatamente, um real
dissonante da voz perturba a fala.
Tal como argumentávamos anteriormente, se a ordem signi-
ficante é a do engano, em que a metaforicidade produz substitui-
ções, condensações, que fazem com que a linguagem se caracterize
numa dimensão do equívoco, a voz se apresenta como literalidade,
não do que se diz, mas dela própria. Se tomarmos a literalidade
como aquilo relativo à letra, esse é o lugar em que a metáfora não
chega. Aqui, nesse momento, o literal não está no sentido, mas na
própria letra, ou seja, a letter [letra] é um elemento a-significante,
em que ela própria não produz sentido algum. Assim, a voz é uma
letra vocal, que poderia também ser vogal; uma letra corp(oral),
que está nesse real do corpo. Por isso mesmo, pode-se dizer que
para alguém falar é necessário passar do vocal para o vocábulo
(GILLIE, 2015), ou seja, passar da voz para a palavra, fazer com
que a voz se torne fala. Neste texto, estamos interessados nesse
momento vocal, em que o literal está na letra, no vocal que ainda
não é vocábulo. Essa letter também pode se aproximar de litter como
detrito, dejeto a ser descartado, tal como mostrou Lacan (2003, p.
15) em Lituraterra. A voz é um resto a ser descartado; ela se perde
no exato momento em que é emitida. A voz é um dejeto corporal,
é o gás carbônico inutilizado pelo corpo. Então, a voz é um dejeto
do corpo, essa letra que, por vezes, atrapalha o sujeito quando

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

este pretende falar e, por vezes, pode servir-lhe como suporte


material para a fala, mas para esse último acontecer ela tem que
ser dejetada, para dar lugar à fala. Por isso Lacan (2003) articula
o literal ao litoral, pois há uma letra que faz limite, fronteira, tal
como o litoral que faz borda entre a terra e o mar. Dessa forma,
a Lituraterra mostra como na letter do literal há também o litoral
como borda, borda da escrita que podemos transplantá-la para o
campo oral, em que a voz é a borda da fala.
Para melhor situar o que pretendo dizer, da voz como esse
litoral/literal que desemboca num real inequívoco, trago dois
fragmentos vocais, conhecidos de todos nós pela sua publicidade.
Trata-se de dois momentos em que o atual presidente da repú-
blica se vê traído pela sua voz, e a forma como ela parece ser um
elemento inequívoco, num discurso que porta a equivocidade.
O primeiro episódio ocorreu no pronunciamento de posse
do cargo de Presidente, em que Michel Temer fica engasgado
e com a voz embargada. Toma um pouco de água como uma
tentativa de melhorar o seu estado vocal, mas, sem sucesso, pede
uma pastilha para poder continuar falando. O segundo episódio
ocorreu durante a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos
Rio 2016, no estádio do Maracanã. Nesse momento Temer fala,
sem ser anunciado, uma breve frase de abertura, que é seguida de
vaias pelo publico presente. No mesmo estádio, Temer volta a ser
vaiado na abertura da Paraolímpiada, aproximadamente um mês
após esse acontecimento.
O que nos chama à atenção, nos dois episódios, é que a voz é
um elemento inequívoco, pois em ambos ela não se deixa enganar.
A voz mostra o engodo, escancara aquilo que o discurso tenta
encobrir. A voz que falha no pronunciamento de posse aponta
para algo que falha naquela posição, algo de ilegítimo que toma
um lugar que não pode se sustentar. Não se trata de fazer uma
interpretose psicologista, pois não é uma análise sobre a pessoa de
Michel Temer, mas a sua posição de sujeito no discurso e como a
voz vem a denunciar, vem a mostrar um real que escapa, um real
que é.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

O segundo episódio pode ser ainda mais interessante, pois já


é significativo o presidente da república, ainda que na ocasião era
interino, falar sem ser anunciado. É curioso pensar como alguém
pode declarar aberto oficialmente os jogos olímpicos sem ser anun-
ciado: sem ser dito quem está falando e de que lugar ele pode fazer
tal declaração. Imagino que o próprio Austin (1990) iria também
questionar as condições de realização desse performativo, se ele
realmente pode ser feliz diante dessas condições de produção. O
ponto é que Temer faz como aquele animal citado por Lacan, tenta
apagar os rastros da sua presença naquele momento, e mesmo
assim é reconhecido como sendo ele próprio. Ou seja, tal como
o animal, ele não consegue formar um falso rastro, ao contrário
disso, a voz aparece como o elemento que mostra que ele não pode
ser falso, e denuncia a tentativa de fazê-lo falsamente falso.
A mesma voz que tenta ser performática produzindo a aber-
tura dos jogos olímpicos recebe como reação, também pela via
vocal, urros e vaias. Aquele que se mostra pela voz é reconhecido
nela e, também através da voz, é vaiado. As vaias, gritos, assovios
são uma espécie de escárnio vocal, pois o outro é insultado não
por aquilo que ele profere, mas por aquilo que ele é. Claire Gillie
(2015) mostrou como que o insulto fica corporificado na voz, se
desprendendo de sua relação com a fala. Dessa forma, as vaias se
direcionam para o sujeito e não para aquilo que ele está falando.
É interessante também considerar que ninguém consegue se
defender das vaias, pois não há argumento capaz de formar uma
contra-argumentação. Por exemplo: Em 1979, o então presiden-
te Figueiredo foi alvo de protestos durante uma visita à cidade
de Florianópolis. No episódio, conhecido como Novembrada, os
manifestantes protestavam em frente ao Palácio Cruz e Souza,
no centro da cidade, onde se encontrava o presidente. Ouviam-se
insultos direcionados ao presidente, tais como: “Filho da Puta!”
(MIGUEL, 1995, p. 33/34). Frente ao qual, Figueiredo reagia
emputecido: “Eu gostaria de perguntar porque é que a minha mãe
está em pauta. Eles [os manifestantes] ofenderam a minha mãe.
Porque isso? Por que esta baixeza? Se são esses os argumentos
que eles têm, ah, podem ir para a Rússia para apresentar estes

216
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

argumentos. Aqui no meu país, não” (Miguel, 1995, p. 38). Para


além da limitação do presidente em não conseguir entender a
metaforicidade da expressão filho da puta, destaca-se o ato de sua
defesa; ou seja, ele consegue argumentar que sua mãe, colocada
em pauta, não é puta, e que ela não tem nada a ver com isso. Já
diante dos urros, assovios e gritos não se têm o que argumentar. O
mesmo real do corpo que denuncia o sujeito daquela voz e mostra
o quanto ela não se deixa enganar, no episódio da abertura das
olimpíadas, também recebe do público essas mesmas vaias, sem
espaço para defesa.
Michel Poizat (2001), em seu livro Vox populi, vox Dei: voix
et pouvoir, mostra a relação da voz com o poder e com a política.
Partindo desse ditado latim extremamente polissêmico: Vox populi,
Vox Dei, Poizat investiga as formas de poder e suas representações
nas vozes e mostra como que a voz sempre foi representativa de
determinado poder. Lembra, por exemplo, a voz imponente e
austera dos grandes ditadores como Hitler, Stalin e Mussolini e o
quanto isso produz um efeito no povo. Em nosso recorte, podemos
escutar a voz enfraquecida e engasgada de um governo golpista,
que fala desde um lugar que não lhe foi anunciado e não lhe foi
conferido pelo povo. Neste sentido, as vaias são a voz do povo e,
também, a voz de Deus, se tomamos Deus como um possível lugar
de justiça e autoridade, acima da precária condição humana.
Nos fragmentos em análise, pode-se dizer que a voz denuncia
a falsidade, e essa denúncia ocorre em função de que a voz é essa
tatuagem vocal, para utilizar a expressão de Michel de Certeau
(1980), em que tal como uma tatuagem, ela é a marca no corpo
que não sofre os efeitos de sua caducidade. A tatuagem se inscreve
como essa inscrição que estará sempre lá, não sofrendo os efeitos
deteriorantes do corpo, marcando aquilo que não engana, aquilo
que não se presta ao equívoco.
Desta forma, a voz imprime uma marca, é um ato político que
não está no discurso, está no corpo produzindo efeitos no discurso.
O que podemos encontrar nos fragmentos em análise é o quanto
a voz aparece nesse corpo, nesse real inequívoco e o quanto isso

217
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

toca a dimensão social, histórica, política e discursiva. O corpo,


nesses fragmentos, não é o discursivo, mas aquilo que produz
efeitos sobre ele. O corp(oral) da voz é um marcador que não está
na dimensão do equívoco.

Referências

AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes


Médicas, 1990.
CERTEAU, M. de. Utopies Vocales: glossolalies. Revue Traverses: la voix,
l’écoute. Paris, n. 20, p. 26-37, nov.1980.
GILLIE, C. Voz “flagelada”, voz “transfigurada”: a perpétua
“clandestinidade vocal”. In: MALISKA, M. E. A voz na psicanálise: suas
incidências na constituição do sujeito, na clínica e na cultura. Curitiba:
Juruá, 2015.
LACAN, J. O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2005. Edição Original: 1962.
________. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1985. Edição Original: 1972.
________. O Estádio do Espelho como formador da função do eu tal
como nos é revelada na experiência psicanalítica. In: Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. Edição Original: 1949.
_______. Lituraterra. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003.
MIGUEL, L. F. Revolta em Florianópolis: a novembrada de 1979. Florianópolis:
Insular, 1995.
POIZAT, M. Vox populi, Vox Dei: voix et pouvoir. Paris: Editions Métailié,
2001.

218
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Corpos atravessados: opacidades


histórico-midiáticas

Ana Josefina Ferrari


Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Nádia Régia Maffi Neckel


Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul)

“...não se deixa jamais um erro dormir impunemente em paz


pois esse será um meio seguro para que ele perdure; é preciso
discernir o que falha não por pretender com isso se amparar
definitivamente no verdadeiro (!), mas para avançar tanto
quanto se possa em direção à justiça.”
Michel Pêcheux (1997, p.299)

A proposta desse trabalho é pensar o corpo-imagem constitu-


ído na/pela imbricação material (LAGAZZI, 2011) em sua
relação histórica artística e midiática. Dizer que o corpo-imagem
se constitui na e pela imbricação material, implica pensarmos no
conceito de materialidade discursiva e retomar as questões apon-
tadas por Michel Pêcheux em 1979 a respeito de como trabalhar
o dispositivo da análise do discurso em sua tripla asserção (o real
da língua, o real da história e o real do inconsciente).
Dentre as questões levantadas pelo autor, nos parece perti-
nente iniciar pela relação com a história: “Em história, os acon-
tecimentos (elementos de fala e de práticas) aparecem em outra
dimensão que aquela da modificação dos enunciados: por que existe
tanta dificuldade em pensar a ligação entre resistência/revolta e
discursividade?” 1(PÊCHEUX, [1979], 2016, p.18). Longe da
1 Resistência: Ato ou efeito de resistir. Força que se opõe a outra, que não cede a outra. (...)
Aquilo que se opõe ao deslocamento de um corpo que se move. Revolta: Revolta é não
aceitar uma determinada situação e por isso se esforçar para mudá-la. Fonte Dicionário
Formal Online da LP.

219
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

pretensão de responder Pêcheux - até que porque compactuamos


com sua posição política em fugir/resistir “ao sistema de falsas
respostas que contornam a materialidade daquilo que está” em
´jogo´ na linguagem”, o que pretendemos aqui é pensar como se
constitui essa materialidade discursiva: corpo, mais especificamen-
te o corpo da mulher negra na mídia e na história.
A fim de pensarmos esses regimes de in-visibilidades de cor-
pos na mídia e na história no movimento resistência/revolta é que
recorremos também ao outro Michel. Michel Foucault. Foucault
em seu artigo Sujeito e Poder afirma que a resistência é uma luta
contra o “governo da individualização”. Ela é uma oposição aos
efeitos relacionados ao saber que ignora quem somos e que também
determina quem somos. O que nos propomos, neste trabalho, é
tatear nas diferenças que podemos estabelecer entre imagem-corpo
e corpo-imagem, os atravessamentos e processos constitutivos que
se dão na e pela resistência. Por tanto, falar do corpo da mulher
negra atravessado pelas opacidades históricas, artísticas (música,
fotografia e no vídeo clip) e midiáticas (blogs, revistas e jornais
digitais) é pensar no processo resistência/revolta/dominação.
Tomamos, para tanto, o corpo enquanto materialidade inscrito
na mídia e na arte buscando justamente aproximar, nessa arena a
noção de resistência em AD, tanto do viés althusseriano (estado
de luta permanente com os AIE), ou seja, no processo próprio de
interpelação do indivíduo em sujeito; quanto do viés psicanalítico
freudolacaniano (conservação do mesmo, resistir a alteridade).
No que diz respeito a inscrição do corpo na arte, tomamos
o dizer artístico enquanto processo capaz de tocar o campo do
in-dizível e do in-suportável quando tomado pela relação com o
inconsciente (aquilo que toca o real). Assim como, o dizer artístico
em circulação que, em sua relação com a ideologia, se coloca no
campo da luta, o artístico enquanto político como espaço próprio
para dizer da dominação e da resistência, mas que também se
produz na evidência, porém com uma singularidade, usando as
ferramentas do dominador fortalece a própria resistência o dizer
artístico tecido na/pela contradição.

220
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Certos “dizeres” e “sentidos” como apenas possíveis no espa-


ço da arte e pela arte, que, em se tratando do Discurso Artístico
chamei de projeções sensíveis. São as projeções sensíveis que
determinam a posição do sujeito do laço social. Se analistas de
discurso e artistas, produzem gestos de interpretação2, o primei-
ro pelo dispositivo teórico analítico e o segundo pelo dispositivo
sensível, nem o primeiro o faz sem os sentidos e sentires, nem o
segundo o faz sem a interpelação da ideologia.
Se, no processo de constituição do sujeito há sempre a im-
plicação: inconsciente/ideologia é preciso pensar nesses “dois
pontos incontornáveis”: o primado da luta de classes e o primado
do inconsciente, que segundo Michel Pêcheux

não há dominação sem resistência: primeiro prático da luta


de classes, que significa que é preciso “ousar se revoltar”.

ninguém pode pensar do lugar de quem quer que seja:


primado prático do inconsciente, que significa que é pre-
ciso suportar o que venha a ser pensado, isto é, é preciso
“ousar pensar por si mesmo” (1997, p. 304).

Ou, como nos ensina Orlandi3 é impossível ao sujeito não


resistir. É desse lugar da contradição/falha/resistência, dos pri-
mados incontornáveis, que compreendemos a intrincada produção
desse corpo-imagem.
Em outros trabalhos chegamos à conclusão que o corpo-
imagem é um corpo já sujeito de mídia e, por isso mesmo, um
corpo mercadoria, um corpo exposto, com valor de troca. Um
corpo de resistência e contradição tanto na instância artística,
quanto na instância midiática. Também concluímos que o corpo
é atravessado pela história, pela memória e pela ideologia temos
então um corpo materialidade no qual se textualizam as lutas de
classes e de gênero, assim como os modos de resistência, um corpo
que resulta do corpo-revolta, corpo-memória.
2 NECKEL 2004
3 Por uma teoria discursiva da resistência do sujeito (2012). Em Michel Pêcheux “Só a causa
naquilo que falha” ([1978], 2009, p. 277)

221
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Quando particularizamos esse olhar para o corpo de mulheres


e mais especificamente para o corpo de mulheres negras é possível
apontar para uma dupla e violenta asserção: a) o corpo-mercadoria.
Um corpo que dada a visibilidade da/na sociedade do espetáculo
é atravessado pelos sentidos de excentricidade e precariedade ao
longo da história, desde Saartjes Baartman (mais conhecida como
Vênus Negra ou Vênus Hotentote) em 1808, exposto como corpo
bizarro, passando pela luta/interdições dos corpos das mulheres
trans negras americanas, até as polêmicas declarações das/e sobre
as Misses Negras que desfilaram pela escola Vai-Vai no carnaval
de 2017. b) um corpo in-visibilidade, um corpo apagamento, um
corpo que se interdita como possibilidade de corpo-imagem?
No caso do corpo da mulher quilombola, porém, observamos
um corpo longe do universo midiático, um corpo atravessado pela
história e não tanto pela mídia. Um processo histórico e misógino
que coisifica o corpo da mulher negra de modo particular. Um
corpo-memória, corpo história que atravessou o tempo. Um corpo
ao que lhe foi negando o lugar de sujeito político e que hoje, qui-
lombola4, luta por ele. Tomamos como base para nosso trabalho
a afirmação de que a categoria de mulher pode ser pensada como
um espaço de dizer, de se dizer mulher. Um espaço discursivo que
não se contrapõe ao homem e sim que se constitui na sua própria
discursividade. Mas este espaço discursivo de se dizer mulher é
um espaço também lacunar, equívoco e sujeito a falhas. A noção
de gênero tem sido discutida e trabalhada em vários âmbitos nas
últimas décadas especialmente nas áreas da antropologia, da his-
tória, da filosofia, da sociologia, da psicanálise e do discurso. Em
muitos destes trabalhos procura-se o deslocamento da noção de
mulher relacionada a questões de cunho biológico. O ser mulher
relaciona-se a um campo de discursos. Pedro (2005) afirma que
no campo da história a categoria de mulher toma diversos rumos:
4 Lembramos aqui que “quilombola” é uma categoria jurídica que surge em 1988 a partir
da Promulgação da Constituição Federal que propõe: assegurar a propriedade definitiva às
comunidades negras rurais dotadas de uma trajetória histórica própria e relações territoriais
específicas, bem como ancestralidade negra relacionada com o período escravocrata. Nesse
sentido, há outras terminologias para o termo quilombo, como Terras de Preto, Terras de
Santo, Mocambo, Terra de Pobre, entre outros. (Disponível em: http://www.incra.gov.br/
sites/default/files/incra-perguntasrespostas-a4.pdf)

222
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Nesta forma de escrita da história, baseada principalmente


em fontes narrativas oficiais, não pode haver lugar para
a categoria de “gênero”, mas apenas na categoria de
“mulher”, pensada sob o aspecto de categoria universal.
Nesta perspectiva, algumas historiadoras e historiadores,
investindo na onda do movimento feminista, tentaram
“resgatar”, para a história, a narrativa da vida das “gran-
des mulheres”. É exemplo desta forma de abordagem um
dicionário, recentemente publicado, que se intitula: “Di-
cionário de Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade,
biográfico e ilustrado”. (PEDRO, 2005, p. 84)

Propomos neste trabalho fazer um estudo comparativo


destes modos de dizer e se dizer no corpo-imagem, passando
pelas imagens que circulam na internet desde Saartjie “Sarah”
Baartman (1789- 1815)5, conhecida como Vênus Negra ou Vênus
de Hotentote. Escravizada e exposta em circos pela Europa do
século XIX. Passamos também por imagem de blogs quilombolas6
onde a imagem da mulher, já inscrita numa formação discursiva
quilombola, luta pelos seus direitos a partir de uma história de
silênciamentos e apagamentos. Nesse percurso visitamos também
sites de notícias sobre o carnaval de 2017 no qual misses negras7
foram destaques de escolas de samba. Para, então chegarmos ao
clipe videoclipe do Emicida, disponível no youtube8 “Mandume”,
no qual nos debruçamos mais sobre as imagens.

5 http://pt.wikipedia.org/wiki/Saartjie_Baartman
6 http://quilombosconaq.blogspot.com.br/ ; http://culturadigital.br/arquaquilombola/galeria/;
7 https://carnaval.uol.com.br/2017/noticias/redacao/2017/02/01/misses-negras-vao-desfilar-
no-abre-alas-da-vai-vai-para-exaltar-beleza.htm e https://carnaval.uol.com.br/2017/noticias/
redacao/2017/02/01/misses-negras-vao-desfilar-no-abre-alas-da-vai-vai-para-exaltar-beleza.
htm
8 Publicado em 5 de dez de 2016. Clipe oficial de “Mandume” do Emicida com participação
de Drik Barbosa, Amiri, Rico Dalasam, Muzzike e Raphão Alaafin, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=mC_vrzqYfQc&index=9&list=PLV_1b6EEBjxx_SK-
NHJXsWDtXYTLUd_a2X Mandume Ya Ndemufayo (1894-1917), último líder cuanhama
(povo pertencente ao grupo etnolonguístico dos ovambo (ou ambó) ) entre o sul da Angola
e o norte da Namíbia que foi assassinado em fevereiro de 1917 quando resistia ao poder
colonial português e alemão que atacavam seu território pelo norte os primeiros e pelo sul
os segundos. Informações retiradas dos blogs: http://ponte.cartacapital.com.br/emicida-
a-historia-do-rei-angolano-mandume-poderia-levantar-a-cabeca-de-muita-gente/;http://
www.noticiario-periferico.com/2015/08/conheca-um-pouco-sobre-o-rei-africano.html#.
WPP1mUXyvIU;http://setedosesliterarias.blogspot.com.br/2017/02/mandume.html.

223
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Por um lado, observamos o corpo-imagem midiática (como


as misses) produz/marca a imagem corpo ao longo da história
opacizando e dispositivando os sujeitos. É o corpo-imagem que
fica como registro na “História-oficial”, um corpo textualizado
sob uma ordem hegemônica. Por outro lado, observamos o corpo-
imagem marginal que fica como registro em espaços de circulação
marginais e textualizado sob uma ordem contra-hegemônica.
A forma-sujeito-histórica que interpela indivíduos em su-
jeito funciona pela forma capital, se o modo de constituição do
sujeito passa pela relação inconsciente/ideologia, um processo
constitutivamente falho, cindido, disperso tecido na contradição
e funcionando pelo equívoco, é justamente na complexidade dessa
relação que a imagem corpórea estabelece o lugar desse sujeito
no laço social.
Segundo Orlandi “A ideologia funciona pelo equívoco e se
estrutura sob o modo da contradição. Não seria diferente para
os efeitos que constituem a subjetividade”. (1999 - Escritos NU-
DECRI). E, por extensão, o corpo-imagem aí se constitui como
materialidade fruto do equívoco e da contradição.
É preciso considerar que o corpo-imagem na mídia é diferente
do corpo-imagem na arte ou à margem. Todos são constituídos na e
pela imbricação material. O corpo-imagem midiático funciona pelo
acúmulo de views e na medida que torna-se cada vez mais visível
o corpo estésico paga seu pedágio a ponto de quase desaparecer.
Nas palavras de Agamben a respeito da fotografia a imagem co-
mete um rapto do corpo. Já o corpo-imagem arte expõe o corpo
raptado em sua ferida estésica trazendo à visibilidade aquilo que
estava na indistinção.
O campo da análise de discurso, ao contrário, se determina
pelos espaços discursivos não estabilizados logicamente, derivando
dos domínios filosófico, sócio-histórico, político ou estético, e logo
também o dos múltiplos registros do cotidiano não estabilizado (cf.
a problemática dos “universos de crença”, a dos “mundos possíveis”
etc) 11. (M PÊCHEUX1999 - Escritos NUDECRI).

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

No campo do logicamente estabilizado o corpo ancestralidade


da mulher negra é opacizado, o corpo-imagem que ecoa no corpo-
escravo cuja história antes do tráfico de corpos simplesmente
“não existe na história oficial”. A história hegemônica toma esse
corpo como objeto, como mercadoria, apagam-se as organizações
sociais e políticas do continente africano e também na história
latino-americana. A África, passa a significar na história ociden-
tal por meio de um efeito de homogeneiadade: corpo africano =
corpo escravo.
O corpo ancestralidade acontece nos rituais. Rituais estes
que, ao longo da história ocidental, necessariamente tiveram de
ser “negociados”9 com o branco sob pena de apagamento. Essas
marcas se fazem presentes no poema de Emicida

“Mas mano, sem identidade somos objeto da História


Que endeusa “herói” e forja, esconde os retos na História
Apropriação a eras, desses tá na repleto na História
Mas nem por isso que eu defeco na escória”

Nos corpos quilombolas, que surgem nos blogs de comuni-


dades quilombolas, temos um corpo-protesto, um corpo demanda,
um corpo-trabalho, um corpo atravessado pela história do Brasil
escravizado, corpo memória que reclama seu lugar na história,
mas também um corpo-silêncio. Um corpo das in-visibilidades,
tanto históricas quanto midiáticas. Como fica nesse lugar social
o corpo-imagem? Como o corpo aparece nestes blogs, como se
mostra na mídia, hoje? Como ele se apresenta para falar de si, da
sua história, das suas interdições?
São inúmeras as textualidades das mídias que trazem as
marcas do funcionamento de um corpo imagem recortamos para
essa apresentação um videoclipe do Emicida, disponível no you-
tube “Mandume”, o clipe tem aproximadamente 9 minutos e nesse
pequeno espaço de tempo relógio, percorre o tempo histórico e o
tempo social da/nas mídias.

9 Pensamos aqui no Camdomblé, na Capoeira, no Culto a São Benedito do Tambor de Crioula


do Maranhão, são apenas exemplos desse corpo ancestralidade que resiste.

225
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

O tempo histórico que o poema retoma em sua escritura mar-


cando o lugar da luta do negro no campo político e mostrando em
imagens e sons o lugar político da mulher negra. O tempo social
das/nas mídias marcado pelos figurinos, pelas cenas que reportam
à publicidade em maioria branca estampada em revistas e jornais10.
Nas palavras de Pêcheux “o tempo da produção e o do produto
não são sucessivos (...) a causa que determina o sujeito exatamente
onde o efeito de interpelação o captura;” (1997, p. 300). Trazemos
agora uma sequência de imagens do clip Mandume, onde observa-
mos essas marcas do corpo-imagem sendo capturado, pagando seu
pedágio midiático, sofrendo os apagamentos do tempo-produto.
A primeira sequência do vídeo traz em primeiro plano a imagem
de Drik Barbosa, seguindo de um casal observando as estampas
de uma banca de revista e em seguida colando sobre as imagens
das capas, imagens de celebridades negras. Como letra da música
temos:
“Tempo das mulher fruta, eu vim menina veneno
Sistema é faia, gasta, arrasta Cláudia que não Raia Basta de Globeleza,
firmeza? Mó faia! Rima pesada basta, eu falo memo, igual Tim Maia
Devasta esses otário, tipo calendário Maia
Feminismo das preta bate forte,(...)”

A menção à “Cláudia que não é Raia” Drik recupera a história


de Claudia Silva Ferreira de 38 anos que, em 2014 foi arrastada
por 350 metros por uma viatura da PM na Zona Norte do Rio
de Janeiro. Os responsáveis não foram julgados. A letra marca
fortemente a relação entre anonimato e celebridades, trazendo o
sobrenome Raia seguido da menção a Globeleza. A música procura
retratar a resistência negra no Brasil, e para tal traz diferentes
vozes que falam de diferentes espaços de resistência negra. As
mulheres, a mídia, os trans, a favela, a religião afro, todos falados
pelo rap, que se constitui como um modo de expressão do povo.
O movimento Rap surge como um espaço marginal de dizer
do povo negro, nele podem colocar sua voz. Eles estão à margem
10 Trata-se especificamente das cenas entre 1min e 56 segundos até 3 min r 36 segundos. Na
análise retomaremos essas cenas, assim como nos créditos finais a voz de Drik Barbosa em
8 min 08 segundos até o final.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

das grandes produtoras, aliás, todo é produção independente. A


distribuição e comercialização dos vídeos e músicas se faz direta-
mente nos shows ou pode entrar na internet, que é usada como
espaço de distribuição do trabalho deles. Com relação à inclusão
de mulheres no movimento, ela é relativamente recente. Drick
forma parte dessa nova geração de mulheres negras que se insere
no movimento rap.
A sequência de imagens retoma também a imagem da canto-
ra Elza Soares considerada uma das precursoras do movimento
Hip Hop brasileiro, e cujo corpo-imagem mídia reproduz, re-diz
Elza apenas como “mulher” de um famoso jogador de futebol, e
apaga sua posição política de sua voz rasgada a vida e história
de tantas mulheres vítimas de violência, apaga o corpo-imagem
arte que sempre surpreende juntando estilos musicais e arranjos
inusitados como o som do cavaquinho e o som de metais do rock’n
roll, apaga a resistência que ele expressa/carrega, a expressão da
contra-hegemonia . Assim como, mostra também Leci Brandão a
primeira mulher a participar da ala de compositores de uma escola
de samba: a Mangueira, cuja carreira inicia em plena ditadura
militar em 1970.
A condição de ser corpo-sujeito enquanto “mercadoria”, deter-
minado pela forma histórica do capitalismo, o sujeito produção é
substituído pelo sujeito-produto11. Nessa esteira, propomos trazer
ao encontro de nosso gesto de leitura a respeito do corpo-imagem
a reflexão de Michel Pêcheux (2006) a respeito das práticas téc-
nicas e do sujeito e seu modo de constituição da/na gestão social.

Um grande número de técnicas materiais (todas as que


visam produzir transformações físicas ou biofísicas) por
oposição às técnicas de adivinhação e de interpretação
de que falaremos mais adiante, tem a ver com o real:
trata-se de encontrar, com ou sem a ajuda das ciências da
natureza, os meios de obter resultado que tire partido da
forma e mais eficaz possível (isto é, levando em conta a
11 Remetemos aqui ao texto de Orlandi “Historicidade, indivíduo e sociedade: o sujeito na
contemporaneidade” (2009) que em sua leitura de Melman (2005) remete ao fato do homo
faber cede lugar ao homem fabricado, e neste caso, ele se interroga sobre homens novos,
homens sem gravidade, quase mutantes. (2009, p.14)

227
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

esgotabilidade da natureza) dos processos naturais, para


instrumentalizá-los, dirigi-los em direção aos efeitos
procurados. A esta série vem se juntar a multiplicidade
das “técnicas” de gestão social dos indivíduos: marcá-los,
identificá-los, classificá-los, compará-los, colocá-los em
ordem, em colunas, em tabelas, reuni-los e separá-los
segundo critérios definidos, a fim de colocá-los no traba-
lho, a fim de instruí-los, de fazê-los sonhar ou delirar, de
protegê-los e de vigiá-los, de levá-los à guerra e de lhes
fazer filhos [...] (PÊCHEUX, 2006, p. 30).

Essa tensão entre as técnicas materiais e as técnicas de gestão


social, conforme nos aponta Michel Pêcheux, é que vão discursi-
vizando sujeitos e seus corpos no laço histórico-social. E, como
ideologia e inconsciente estão materialmente imbricados, o pro-
cesso de individua(liza)ção na contemporaneidade é incontornável
e necessário. Incontornável porque as transformações biofísicas
são determinadas pelas técnicas materiais que, como vimos, hoje
chegam ao requinte de visualizar a vida antes mesmo dela ser re-
conhecida juridicamente. E necessário porque, de acordo com as
técnicas de gestão social, leia-se também econômicas, os sujeitos
são colocados em ordem e/ou classificados, e/ou capazes de sonhar
e/ou passíveis de vigia… A VOZ DO DONO observamos que
no período da escravidão, nos anúncios de fuga de escravizados
se evidencia um processo de individualização nos anúncios de
fuga publicados nos jornais. O escravizado tem um nome próprio
que o individualiza. Essa individualização se dá através de uma
localização (o lugar que ocupa numa série dado, dentre outros,
pelo número de matrícula) que o distribui e faz circular por um
sistema de relações (FOUCAULT 1976). Poulantzas (1985) diz
que o quadro material que induz a individualização consiste na
organização do espaço-tempo. Ele afirma que a individualização é

um espaço esquadrinhado, segmentarizado e celular onde


cada parcela (indivíduo) tem seu lugar, onde cada localiza-
ção corresponde a uma parcela ( indivíduo) mas que deve
apresentar-se como homogêneo e uniforme (op.cit72).

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

O escravizado tem um lugar específico, a fazenda de X, os


lugares permitidos para circular, além disso, tem nome próprio
para individualizá-lo no espaço e tem tempos nos quais deve se
movimentar. Quando ele foge, rompe com esse quadro e provoca
um desarranjo. A individualização torna-se insuficiente para sua
localização e surge a necessidade de descrevê-lo, de singularizá-lo.
O movimento negro denuncia esta distribuição de corpos que
data do período da escravidão, e coloca em evidência um meca-
nismo de Estado que de acordo com Racionais Mc (https://www.
youtube.com/watch?v=hqPUAHTs77o), ganha mecanismos mais
refinados após a abolição. De acordo com estes Mcs, o negro foi
marginalizado não somente socialmente, mas também geografica-
mente, deixando para eles habitar as periferias das cidades (bairros
pobres, favelas, quilombos urbanos) ou do campo (quilombos).
Nesses lugares de circulação reservados para eles, surgem modos
de expressão cultural, modos de evidenciar na (sua) sociedade à
margem. Nesses espaços marginais surgem tanto o rap quanto os
blogs do movimento quilombola.
Segundo Orlandi (2012, p. 228), “o Estado, em uma sociedade
de mercado, predominantemente, falha em sua função de articu-
lador simbólico e político. E funciona pela falha”. É justamente
onde o estado “falha”, que o mercado se instala. Mas também,
onde o estado falha se instala o rap, o quilombo, aqueles que são
marginalizados da sociedade capitalista, aqueles que foram desti-
nados, desde que foram trazidos ao continente americano, a servir.
Nesse lugar onde o estado falha no exercício dos direitos, surgem
os espaços de resistência que se expressam, hoje, na rede, espaço
múltiplo e múltiple de expressão usados para a visibilização de po-
pulações negras marginalizadas. O negro individualizado a partir
da dominação de classes dominantes brancas, estabelece relações
de identificação com os movimentos de protesto, por exemplo, dos
EUA. O mercado passa a negociar espaços e “sanar” necessidades
pela lei de mais-valia, alargando assim o conceito marxista para
além das formas de produção da força de trabalho, para a vora-
cidade do consumo. Assim, quando o valor de troca se dá pelo
consumo, pelo excesso, o estado já não consegue normalizar. O

229
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

que normatiza e dá as regras, nesse cenário, é o mercado. E, essa


“norma” aplica-se também aos corpos. Porém, não são todos os
segmentos que se incluem no mercado.
É na formulação que a linguagem ganha vida, que a memória
se atualiza, que o sujeito se mostra (e se esconde). Momento de
sua definição: corpo e emoções da/na linguagem. Sulcos no solo
do dizer. Trilhas. Materialização da voz em sentidos, do gesto da
mão em escrita, em traço, em signo. Do olhar, do trejeito, da to-
mada do corpo pela significação. E o inverso: os sentidos tomando
corpo. Na formulação – pelo equívoco, falha na língua inscrita na
história – corpo e sentido se atravessam (ORLANDI, 2001, p.9
Nossa hipótese, no caso aqui em análise, é a de que o sujeito
contemporâneo se individua(liza) na falha do Estado, produzindo-
se enquanto mercadoria, por meio de um corpo-imagem-corpo
(hegemônico), em alguns casos, mas em outros está à margem
do mercado (contra-hegemônico). Dito de outro modo, o corpo
imagem mídia/ corpo-imagem história-oficial é capaz de apagar
o corpo-imagem arte e por sua extensão, o corpo estético, o corpo
carne. Impossível falar do lugar do outro. Impossível, pensar do
lugar de quem quer que seja. Ou, nas palavras do Emicida:

Banha meu símbolo, gora meu manto que eu vou subir como rei
Cês vive da minha cicatriz, eu tô pra ver sangrar o que eu sangrei
Com a mente a milhão, livre como Kunta Kinte, eu vou ser o que eu quiser
Tá pra nascer playboy pra entender o que foi ter as corrente no pé

230
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

REFERÊNCIAS

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Temas e Matices 2 (2001): p 74-78.
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nos anúncios de jornal dos escravos fugidos. Campinas: Pontes, 2006.
FOUCAULT, Michel, História da Sexualidade I: A vontade de saber. Trad.
Maria Thereza da Costa Albuquerque, J.A.Guilhon Albuquerque. Rio
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______. “A vida dos homens infames” In: O que é um autor? Passagens,
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Trad. Vera Porto Carrero, por H. Dreyfus. Rio de Janeiro: Ed. Forense
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1954. Jacques Lacan; texto estabelecido por Jacques Alain-Miller;
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Pensando o impensado sempre, uma homenagem a Eni Orlandi. Campinas.
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compreensão do Artístico no Audiovisual Instituto de Estudos da
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In: INDURSKY, F.; FERREIRA M.C.L.; MITTMANN S. (Org.). Análise
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231
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

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HAK, Tony Por uma análise automática do discurso: uma introdução à
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______. Papel da memória. In: ACHARD, P. (Org.). Papel da memória.
Campinas: Pontes, 1999.

232
Discurso, Cultura e Política
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

OBJETOS CULTURAIS, STARTUPS, AUTORIA


Autoria-fetiche versus
autoria-experimentação

Mónica Graciela Zoppi Fontana


Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

D esde seus inícios, a Análise do Discurso filiada aos trabalhos


fundadores de Michel Pêcheux se define como uma teoria
que visa se inscrever, com a força de uma intervenção, no embate
político-filosófico de sua época. Seguindo o caminho aberto pe-
los escritos de Louis Althusser e sua caracterização da filosofia
como luta política na teoria, a Análise do Discurso (doravante
AD) também se reconhece nesse mesmo percurso, se assumindo
explicitamente como uma aposta materialista contra as teorias
de cunho idealista predominantes no campo de estudos da lin-
guagem. Nesse sentido, a AD propõe uma mudança de terreno
epistemológico para a Linguística, disciplina compreendida como
um saber sobre a língua teoricamente fundamentado e organizado
sobre bases empíricas.
A AD nasceu, assim, com o perfil de uma teoria em luta: no
campo epistemológico das ciências humanas e sociais trazendo o
materialismo histórico para o centro da reflexão sobre a lingua-
gem; no campo político e social estruturado pela contradição de
classes, ao analisar o funcionamento da linguagem nos embates
ideológicos; e, no campo teórico, ao se constituir como um esforço
para redefinir e deslocar conceitos basilares dos estudos linguís-
ticos como: discurso, língua, significado, enunciação, falante, uso,
variação, contexto.

235
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Assim, a AD se reconhece como uma disciplina interpretativa


e postula a responsabilidade ética de uma prática de produção de
conhecimento que produz efeito no campo científico e impacta
as relações com as demais práticas simbólicas de uma formação
social, desestabilizando suas evidências.
Na atual conjuntura brasileira e mobilizada pela sua reper-
cussão no âmbito desse encontro acadêmico1, em que colegas
de reconhecida trajetória na área vêm denunciar o descaso com
o financiamento do ensino superior e a pesquisa científica, nos
conclamando a reagir coletivamente aos ataques à universidade
e a suas modalidades de produção de conhecimento, considero
oportuno trazer uma reflexão sobre as inflexões sofridas pela
autoria científico-acadêmica na era digital, como efeito da larga
midiatização dos saberes e, principalmente, dos sujeitos que os
colocam em circulação a partir de uma prática de reflexão/comu-
nicação centrada num dizer que se quer/mostra como individual.
Meu interesse pelas condições atuais de exercício da autoria
científico-acadêmica já é antigo e deu lugar a reflexões sobre as
temporalidades da produção contemporânea de conhecimento e
sobre o funcionamento da função-autor2. Em trabalhos anteriores
eu já apontava para a crescente mercantilização e esvaziamento
das práticas de autoria científica por efeito de sua sobredetermi-
nação pelas práticas do mercado editorial das revistas científicas,
do mercado da prestação de serviços educacionais, do mercado
de ferramentas educativas (softwares, plataformas), entre outras
formas contemporâneas de colocar o conhecimento e seus objetos
e sujeitos como produtos no movimento de circulação do capital.
Assim, o processo educativo e a pesquisa científica são significados
como um serviço equivalente a outros que integram o chamado
“terceiro setor”. Essa redefinição de seu lugar e função na formação
social produz forte impacto nos modos de organização do proces-
so de produção de conhecimento, afetando sua disciplinarização,
1 III SEDISC - SEMINÁRIO DISCURSO, CULTURA E MÍDIA, realizado na UNISUL, de
2 a 4 de maio de 2017.
2 Cf. minha análise sobre o movimento Slow Science (ZOPPI FONTANA, 2012) e minha
reflexão sobre a reificação do nome de autor incentivada pelo funcionamento do discurso
da produtividade científica (ZOPPI FONTANA, 2013).

236
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

sua institucionalização e sua gestão, por meio de instrumentos de


vigilância – controle das práticas de saber3.
Como já demonstrei em um trabalho anterior (ZOPPI
FONTANA, 2013), as práticas de autoria, hoje configuradas pelo
produtivismo acadêmico, levam a uma indistinção entre a função-
autor e o nome de autor, reduzindo a escrita (formulação acadêmico-
científica) a uma série estratificada de produtos mensuráveis que
agregam valor de troca a um nome de autor.
É importante lembrar que uma prática científica se configura
a partir de suas condições materiais de existência, a saber:

1. As condições ideológicas que atravessam o terreno epistemo-


lógico traçando as linhas de dominância teórica em determinadas
condições de produção4;

2. As condições de desenvolvimento técnico-tecnológico e seus


efeitos de determinação dos modos de produção de conhecimento;

3. As condições estruturais de organização dos espaços institu-


cionais e disciplinares, conforme linhas de força que configuram
posições de poder econômico e prestígio social.

Esse conjunto de determinações afeta as práticas de autoria


científico-acadêmica no processo de produção do conhecimento e
também interfere na relação entre saberes em/de uma sociedade.
Problemas como o encastelamento das instituições universi-
tárias, a rarefacção dos objetos produzidos no processo de conhe-
cimento e a separação dos espaços de ensino/pesquisa dos espaços
de circulação dos saberes na sociedade já foram apontados tanto
por especialistas quanto pela mídia, particularmente na disputa
3 Reflita-se, nesse sentido, sobre os efeitos de padronização e classificação produzidos pelas
atuais modalidades de avaliação do fazer científico-acadêmico, tanto no âmbito nacional
quanto internacional. As plataformas e programas digitais para esse fim potencializam o
alcance e aprofundam os efeitos desses processos.
4 Assim, por exemplo, há saberes que se originam como resposta a uma demanda do modo
de produção que estrutura as relações sociais de uma formação social em uma conjuntura
dada.

237
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

política com objetivos claros de produzir uma imagem distorcida


e negativa do meio acadêmico. Porém, mesmo reconhecendo o uso
deliberado e interessado dessa discussão para recortar ainda mais
o financiamento público da pesquisa e ensino superior, não pode-
mos nos furtar a refletir sobre os efeitos desse discurso e sobre a
legitimação desse imaginário. O que nos leva a pensar, no campo
das ciências sociais e humanas, nas determinações conjunturais
que significam hoje a figura e a prática do intelectual5.

1. Autoria-fetiche e empreendedorismo educacional

Que autoria é essa, pensada na sua relação constitutiva com


o desenvolvimento tecnológico e as exigências atuais do capita-
lismo tardio, que transforma sujeitos em mercadorias, objetos
de consumo de sua própria prática, alimentando um sistema de
mais-valia sem fim?
Por um lado, nos deparamos com a autoria pautada pelas
práticas da Fast Science, ou seja, aquela que responde às injunções
do mercado acadêmico e produz os efeitos que lhe correspondem:
um nome de autor reificado, a mcdonaldização da produção cien-
tífica6, a escrita de salame slicing7. Essas práticas encontram, nas
atuais condições de desenvolvimento tecnológico, diversas mídias,
principalmente digitais, que potencializam esse funcionamento,
produzindo como efeito o que vou chamar de autoria-fetiche.
Ícone dessa autoria-fetiche, temos a figura do intelectual midia-
tizado, estrela crescente no universo das redes sociais e da TV a
cabo. Autoria-fetiche levada a seu maior grau de desenvolvimento
pela espectacularização da figura do intelectual e pela fragmenta-
ção do saber em produtos midiatizáveis: “pílulas” de conhecimento
aptas para o consumo rápido e a circulação massiva, capazes de
5 Cf. Pêcheux, (2011[1976]: 231-249) para uma análise aguda e ainda atual das questões que
aqui levantamos.
6 “Consumers are spoilt with quick deliveries and optimum availability. Though built histori-
cally on quite different aims, prerequisites and conditions of knowledge production (sic!)
in Academia seem to have fully embraced the McDonald´s service and delivery practices.
Fast food and fast science - quick and dirty!” (Petri Salo and Hannu L. T. Heikkinen, 2011
apud ZOPPI FONTANA, 2012).
7 Cf. Zoppi-Fontana, (2013).

238
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

produzir a fidelização do público (formato de vinhetas seriadas) e


de ampliar os nichos de mercado (produzir demanda por saberes
que se oferecem como curiosidades ou atualidades). Programas
no formato de vinhetas seriadas de curta duração como o “Careca
de saber”, protagonizado por Leandro Karnal e veiculado pela
Rede Bandeirantes, servem de exemplo desse funcionamento.
Aliás, a personagem midiática interpretada por este historiador
ilustra bem a figura do intelectual/celebridade que é entrevistado
em programas de entretenimento televisivo conduzidos por apre-
sentadores globais como Ana Maria Braga e Jô Soares. Uma figura
pautada no formato youtuber, destinada principalmente ao público
jovem que faz das redes sociais seu principal meio de informação.
Por outro lado, observamos uma oferta crescente de platafor-
mas online que permitem a “qualquer um” ensinar o que sabe e a
“qualquer um” aprender o que quer. Trata-se de um autoprocla-
mado novo modelo de negócios e de uma suposta “democratização”
do saber, cuja rápida difusão e desenvolvimento é efeito de sua
constituição e circulação nas novas mídias digitais. Observe-se
a matéria a seguir, publicada na seção Ideias de negócios no blog
Empreendedores Web:

Figura 1:

Fonte: Disponível em: http://www.empreendedoresweb.com.br/como-ganhar-


dinheiro-com-cursos-online/
Acesso em: 4-5-2017

239
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

O blog está destinado ao “empreendedor brasileiro”, que é


compreendido também como um “empreendedor moderno”, e se
define da seguinte maneira:

O Empreendedores Web é um site voltado para a discus-


são dos diversos aspectos do mundo do empreendedoris-
mo, tanto na Internet quanto no mundo físico.
Aqui você encontra diversas matérias, tutoriais, opiniões
de dicas sobre o empreendedorismo online, coletadas na
Internet e enviadas por nossos colaboradores. O objetivo
do Empreendedores Web é difundir o conhecimento na
área do empreendedorismo de forma a servir como apoio a
todos os empreendedores que desejem iniciar um negócio.
(“Sobre” http://www.empreendedoresweb.com.br/sobre-
o-empreendedores-web/ Acesso 4-5-2017).

Na matéria que analisamos, Como ganhar dinheiro com cursos


online, aparece explicitado o processo de mercantilização do co-
nhecimento que já mencionamos.

Confira nesta matéria algumas ideias de como ganhar dinheiro


com cursos online, um mercado que vem crescendo muito no
Brasil e onde você tem pelo menos três opções sérias e viáveis
para ganhar dinheiro. [...]
O ensino a distância, ou EAD como também é conhecido,
vem crescendo a passos largos no Brasil, como forma mais
barata de capacitação profissional e alternativa para quem
não vive nos grandes centros.
Por isso ganhar dinheiro com cursos online surge como
uma ótima opção. Uma não, neste artigo, vamos mostrar
três opções para você ganhar dinheiro neste mercado.
(http://www.empreendedoresweb.com.br/como-ganhar-
dinheiro-com-cursos-online/ Acesso 4-5-2017, destaques
originais do texto)

Uma série parafrástica pode ser montada a partir dessa sequ-


ência discursiva: cursos online – mercado crescente – ganhar dinheiro
– ótima opção. Essa série parafrástica é representativa não só da
matéria, mas também dos discursos que significam o conheci-
mento como “novo modelo de negócios”. Observe-se abaixo outra

240
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

sequência que se inscreve no mesmo processo discursivo, recor-


tada de um conhecido portal de cursos online, o CURSEDUCA,
que funciona como “marketplace” ao oferecer cursos de diversa
natureza produzidos por terceiros, e reúne dicas e informações
relacionadas a esse “mercado”.

Figura 2:

Fonte: Disponível em: https://curseduca.com/blog/ Acesso em: 4-5-2017

Nesta plataforma que comercializa cursos online podemos


recortar alguns outros elementos para integrar a série parafrás-
tica que delimitamos acima. Trata-se agora do deslizamento dos
sentidos de mercado para os sentidos de democracia.

Não é novidade que o modelo educacional está mudando


(temos como prova a ascensão dos cursos online). Isso
acontece no mundo todo. Todos os dias vemos cursos
EAD sendo criados em universidades e alunos estudando
sem que precisem, de fato, frequentar uma faculdade. No
entanto, outra mudança vem ocorrendo: a massificação do
acesso aos vídeos online vem democratizando a questão
educacional, quebrando paradigmas no que diz respeito
a quem ensina e quem aprende.

241
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Já não é preciso ter um diploma para poder ensinar, nem


estar matriculado em uma universidade ou qualquer
instituição física que seja para aprender. Estamos na
era de emancipação dos cursos online. Uma era na qual
qualquer pessoa que tenha algo a ensinar, pode ensinar.
E qualquer pessoa que queira aprender, pode aprender.
(“Cursos online: ganhe dinheiro ensinando o que você
sabe”. Educação. https://curseduca.com/blog/ensinar-
online/ Acesso 4-5-2017).

Assim, acrescentamos novas determinações à série parafrásti-


ca, que reescrevem o “modelo de negócios dos cursos online” como:
quebra de paradigmas – massificação do acesso aos vídeos online – de-
mocratização da questão educacional – emancipação dos cursos online.
A “emancipação dos cursos online” consistiria, portanto, em
sua migração da universidade para o mercado, o que é interpre-
tado como uma “democratização”: o mercado permitiria igualar
os saberes que circulam na sociedade, “qualquer um pode ensinar,
qualquer um pode aprender”. O mito liberal da liberdade do indi-
víduo (e da igualdade abstrata garantida pelo direito) e da força
transformadora da vontade individual (“querer é poder”) está na
base dessa “quebra de paradigmas” que faz tabula rasa de todos os
mecanismos institucionais de legitimação e controle do processo de
produção de conhecimento. A liberdade de mercado emanciparia,
assim, os indivíduos das correntes que lhes impediriam não só
ensinar e aprender, mas principalmente comprar e vender saberes
e obter lucro com essa operação.

Ensinar online desponta como uma forma eficiente de


gerar renda passiva, trabalhar por conta própria ou sim-
plesmente complementar a renda que você já tem. É claro
que a atividade requer algumas habilidades técnicas, mas
o principal é que o conteúdo ensinado seja útil e tenha
valor para outras pessoas. (“Cursos online: ganhe dinheiro
ensinando o que você sabe”. Educação. https://curseduca.
com/blog/ensinar-online/ Acesso 4-5-2017).

242
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Ensinar online - forma eficiente de gerar renda passiva – trabalhar


por conta própria são os novos elementos que recortamos nessa
sequência discursiva para integrá-los a nossa série parafrástica,
trazendo para o movimento de deslizamento de significantes os
sentidos do “empreendedorismo educacional”: ensinar online é
gerar renda trabalhando por conta própria. Se, como já analisamos,
nesse discurso de mercantilização do conhecimento se produz um
deslizamento parafrástico que afirma a “emancipação dos saberes
(cursos online)”, essa suposta “democratização” do processo de
produção e circulação do conhecimento acarretaria também uma
“democratização” da renda: qualquer um pode ensinar, portanto
qualquer um pode gerar renda, portanto qualquer um pode obter
lucro (“aumentar suas vendas com os cursos online”, como aparece
na legenda da ilustração que acompanha a matéria, cf. Figura 2
acima).
Assim, se por um lado temos a autoria-fetiche, potencializada
pela espectacularização midiática da figura do intelectual, por
outro lado temos o esvaziamento da própria função de autoria (e
de intelectual). Ao serem capturadas pela lógica do mercado, as
práticas atuais de autoria online passam a ser ressignificadas como
um empreendedorismo educacional. Trata-se das duas caras de um
mesmo processo de mercantilização do processo de produção e
circulação do conhecimento.
Vale a pena aqui lembrar o alerta que Michel Pêcheux fez
com incrível agudeza crítica já na década de setenta do século XX:

O poder está pronto a tudo, incluindo manipular a massa


dos universitários e dos pesquisadores através do espectro
da “crise”, da “austeridade” e do “crescimento zero”; ele
organiza a escassez para suscitar a inquietude e docilidade
das pessoas e desenvolver a concorrência entre as forma-
ções de modo que sobrevivam e desenvolvam-se mais aptas
a... servir o capitalismo na sua fase atual.
Assim, essa americanizaão das condições da pesquisa
em Ciências Humanas e Sociais leva paradoxalmente a
reativar no nível das universidades e das formações de
pesquisa so fantasma do “livre jogo da concorrência” e o

243
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

espírito da livre-iniciativa, no momento mesmo em que a


liberdade de investigação está em realidade diretamente
ameaçada, através do desmantelamento e da submissão do
setor público (PÊCHEUX, 2011[1976]: 236)8.

2. Autoria-experimentação

A partir das determinações conjunturais que mencionamos e da


análise de seus efeitos que acabamos de desenvolver, nos interroga-
mos sobre as formas de autoria científico-acadêmica que podem hoje
ser produzidas com potência de intervenção nas relações sociais e
capacidade de transformação das práticas de produção de conheci-
mento. Como potencializar uma autoria científico-acadêmica capaz
de transgredir as fronteiras que separam os espaços de produção e
circulação do pensamento de suas condições materiais de existência
(as demandas às quais responde sua organização) e de circulação (as
inflexões produzidas pela mercantilização do conhecimento)? Como
ressignificar politicamente a figura do intelectual fora do fetichismo
midiático e de sua anulação no empreendedorismo educacional?
Felizmente, nos últimos anos vimos aparecer práticas de resis-
tência surgidas no fogo da luta política e teórica contra os ataques
do poder econômico-financeiro, que por meio de seus aliados nos
aparelhos jurídico-administrativos do Estado age para estrangular os
escassos espaços de reflexão crítica ainda existentes na universidade.
Essas práticas configuram novos modos de articulação da reflexão
acadêmica, da luta política e das experiências estéticas, ressignificando
e renovando objetos culturais já estabilizados. Dado o espaço restrito
deste artigo, limitamos nosso comentário a três dessas iniciativas:

1. O VOCABULARIO POLÍTICO PARA PROCESSOS ESTÉTICOS (2014), “livro-


invenção”, conforme denominado pelos seus autores, organizado por
Cristina Ribas e publicado como site e como ebook no formato de um
vocabulário enciclopédico que reúne verbetes híbridos, nos quais se
conjugam enunciados verbais, fotos, gráficos, desenhos; e descrições,
definições, narrativas, poemas. (Disponível em http://vocabpol.cristi-
naribas.org/).

8 Remetemos a nosso trabalho, Baldini, L. e M. Zoppi-Fontana (2017), onde desenvolvemos uma


reflexão sobre a situação atual da universidade pública e seus efeitos sobre a produção científica.

244
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Figura 3:

Fonte: Disponível em: http://vocabpol.cristinaribas.org Acesso em: 4-5-2017

2. O filme OLYMPIA 2016, produção brasileira independente (2016)


financiada pelo procedimento de crowdfunding; filme definido como
docudrama pelo seu diretor, roteirista e ator protagonista, Rodrigo
MacNiven, que faz convergir realidade e ficção, atores e intelectuais,
narrativa ficcional e documentário. (Site oficial e trailer disponível em
https://www.olympiafilme2016.com/)

Figura 4:

Fonte: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-248856/trailer-19551072/
Acesso em: 4-5-2017

245
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

3. O livro HOJE EU ACORDEI PARA A LUTA, intelectuais pela universidade


pública, organizado por Phellipe Marcel, Iuri Pavan e Mauro Siqueira
em formato de ebook, com um design gráfico que alia fotografias a
textos, publicado em 2017 pela editora da UERJ, que o disponibiliza
em seu site para download gratuito. (Disponível em https://www.
eduerj.uerj.br/engine/?product=hoje-acordei-pra-luta-intelectuais-
pela-universidade-publica)

Figura 5:

Fonte: Disponível em: https://www.eduerj.uerj.br/engine/?product=hoje-


acordei-pra-luta-intelectuais-pela-universidade-publica. Acesso em: 4-5-2017

Algumas regularidades de funcionamento podem ser apon-


tadas para todas as três iniciativas:

1. Elas renovam / inovam a forma de objetos culturais já estabilizados


tanto em sua circulação e constituição quanto principalmente em seu
formato: o vocabulário ganha contornos enciclopédicos, num arranjo
quase caótico –livro-invenção- de formulações de diversa natureza
semiótica e funcionamento textual; o filme costura uma articulação
original entre realidade e ficção e entre academia e cinema, produzindo
um gênero híbrido denominado docudrama; o ebook incorpora um
design gráfico arrojado, sobrepondo imagem fotográfica e escrita, o
que o transforma em livro-arte.

246
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

2. Todas surgiram como resposta imediata a conjunturas de forte mo-


bilização popular e contestação política, a saber: as manifestações de
junho 2013 e contra a Copa do Mundo em 2014 no caso do Vocabulário
Político para Processos Estéticos; as manifestações contra a gentrificação
de espaços da cidade de Rio de Janeiro por ocasião das Olimpíadas
em 2016 em relação ao filme Olympia 2016; a crise da UERJ como
consequência dos cortes de salários e repasses por parte do governo
estadual em 2017 no caso do ebook Hoje acordei pra luta, intelectuais
pela universidade pública9.

3. Em todas as iniciativas a figura do intelectual aparece mencionada


explicitamente ou representada nas imagens, sendo significada de ma-
neira coletiva, no laço entre escritas e reflexões autorais em diálogo10.
No filme Olympia 2016, por exemplo, os intelectuais entrevistados no
documentário aparecem apresentados como “elenco”, esclarecendo sob
o nome que os identifica que eles representam no filme a personagem
“deles mesmo”:

Figura 6:

Fonte: Disponível em: https://www.olympiafilme2016.com/ . Acesso em:


4-5-2017

9 Cf. o artigo de Phellipe Marcel neste volume.


10 Neste sentido, poderíamos pensar aqui na figura do “intelectual coletivo”, designação proposta
por Pêcheux, (2011[1976]: 246).

247
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Estas práticas de autoria/intervenção acadêmica desarranjam


o modo de funcionamento de objetos culturais estabilizados e res-
pondem do lugar da academia e com os saberes nela produzidos
a uma conjuntura que demanda ação/reflexão urgente. Esse seu
caráter de instrumento teórico de luta política aparece explicitado
de diversas maneiras nos textos. Por exemplo, na quarta-capa do
livro Hoje eu acordei pra luta..., onde se lê:

Com o objetivo de contribuir para o debate sobre finan-


ciamento e investimento públicos no ensino superior, este
livro propõe uma contra-argumentação às concepções ide-
ológicas que sugerem a privatização, o autofinanciamento,
entre outras medidas, provocando um questionamento
sobre modos de governar que negligenciam o valor do
ensino público para privilegiar investimentos imediatistas.
(https://www.eduerj.uerj.br/engine/?product=hoje-
acordei-pra-luta-intelectuais-pela-universidade-publica
Acesso 4-5-2017)

Neste trabalho me interessa apontar nessas práticas de autoria


para sua dimensão de gestos simbólicos que interferem no real
histórico produzindo efeitos de deslocamento ideológico. Por isso
as denomino práticas de autoria-experimentação, justamente para
enfatizar os efeitos de rearranjo-transformação potencialmente
produzidos por esse exercício coletivo. Como já afirmei em outro
trabalho (ZOPPI FONTANA, 2013), para as ciências humanas
a escrita é parte constitutiva do processo de produção de conhe-
cimento teórico e analítico; ela é um campo de experimentação,
de uma experimentação histórica, no sentido forte definido por
Pêcheux: “conhecimento e transformação; conhecimento para
transformar, nas condições específicas do processo da “história”
(PÊCHEUX, 1988[1975]: 205).
Esse movimento de ressignificação da autoria acadêmica e
da figura do intelectual, em suas relações com a sociedade e a
política, aparece explicitado de diversas maneiras nos objetos
que analisamos, como, por exemplo, no Vocabulário Político para
Processos Estéticos:

248
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

O político do vocabulário é, então, o espaço de implosão


de duas formalizações: uma delas a da individualidade
(do falar sozinho, da autoria) e a outra a da política como
espaço que apenas poderíamos acessar com vocabulários
específicos ou com formas já conhecidas.

Para abrir esse espaço de implosão falar em excesso é


produtivo, falar em excesso e ouvir, claro. E colocar-se
disponível às ruas, aos encontros, às assembleias, aos
momentos que nos desorientam na arte, na política, no
trabalho, na vida íntima. É produtivo abrir um espaço de
escuta, de disponibilidade para outros assuntos, outras
abordagens, outros pontos de vista e outras perspectivas.
(“Editorial-Desdito”, http://vocabpol.cristinaribas.org/
bulariovoca/ Acesso 4-5-2017)

À guisa de conclusão

Conforme Pêcheux (1988[1975]) já o assinalava, o processo


de produção dos conhecimentos está indissociavelmente ligado a
uma luta a propósito de nomes e de expressões para aquilo que eles desig-
nam [...]e a propósito da formulação de questões de pesquisa. A língua,
enquanto base material de processos discursivos determinados pela
história, ocupa nessa luta, que é teórica e política, um papel central.

O Vocabulário por isso se torna vocabulinário, espaço de


promiscuidade da língua, da criação e da política. Espaço
de roçamento, de esfregamento dum modo de falar com
outro, e dos outros com os outros, e consigo mesmo.
(“Editorial-Desdito”, http://vocabpol.cristinaribas.org/
bulariovoca/ Acesso 4-5-2017)

Nos tempos sombrios que nos tocam viver dentro e fora da


academia hoje, face aos ataques à universidade pública, gratuita
e de qualidade, ao ensino crítico, plural e reflexivo nas escolas e
ao Estado laico e de direito, urge ensaiar formas renovadas de
autoria-experimentação em que as palavras se encontrem em estado
de vocabulinário e a língua, em seu esfregamento promíscuo com
a política, nos permita fazer laço com o outro.

249
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Referências

BALDINI, L. e M. ZOPPI FONTANA. Universidade pública: um espaço


democrático para o trabalho intelectual. In: MARCEL, P; I. PAVAN e
M. SIQUEIRA Hoje acordei pra luta, intelectuais pela universidade pública.
Rio de Janeiro: edUERJ, 2017. p.17-21.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio.
Tradução Eni Orlandi et al. Campinas: Editora da Unicamp, 1988.
317 p. Edição original: 1975.
____. Posição sindical e tomada de partido nas ciências humanas e
sociais. Tradução Lauro Baldini. In: Análise de discurso: Michel Pêcheux
– textos selecionados por Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Pontes, 2011.
p. 231-249. Edição original: 1976
ZOPPI FONTANA, M. Slow Science. A temporalidade da ciência em ritmo
de “impacto”. Leitura, Maceió, v. 50.2, jul-dez 2012, p. 223-257, 2013.
Disponível em: http://www.seer.ufal.br/index.php/revistaleitura/
article/view/1156/791 Acesso em: 4-5-2017.
____. Deadline. A função-autor e os efeitos do discurso de produtividade
na ciência. In: GUIMARÃES, E. (Org.) Cidade, linguagem e tecnologia.
20 anos de história. Campinas: Labeurb-NUDECRI, 2013, p. 109-136.
Disponível em: http://www.labeurb.unicamp.br/labeurb20anos/
labeurb20anosPDF.pdf . Acesso em: 4-5-2017

250
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Cultura, política e formação técnica


durante o primer peronismo
(Argentina, 1952-1953)

Mara Glozman
Universidad de Buenos Aires / Consejo Nacional de Investigaciones
Científicas y Técnicas

A primeira exigência consiste em dar o primado aos gestos de


descrição das materialidades discursivas”
(PÊCHEUX, 2008, p. 50)

1. Presentación y objetivos: (análisis del) discurso y


peronismo(s)

E n los estudios sobre peronismo –sobre todo en los trabajos


académicos– y en los estudios sobre historia de la Argen-
tina en general, el lapso que se extiende entre la emergencia
de la figura de Juan Domingo Perón (o desde su asunción pre-
sidencial) y el golpe de Estado de 1955 suele ser denominado
“primer peronismo”. En términos generales, vista desde el AD,
tal denominación construye un efecto de homogeneidad acerca
de un período –¿“objeto”?– ­que resulta heterogéneo, atravesado
por contradicciones de relevancia; esta denominación produce un
imaginario de unidad en torno de una trama seriada de alianzas
político-gubernamentales sucesivas que presenta mutaciones,
tensiones, conflictos y también regularidades. Pero, además, cuan-
do se observa determinadas cuestiones o aspectos significantes,
cuando se adopta una mirada materialista sobre los documentos
y textos del archivo, sobre las relaciones (inter)discursivas, la

251
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

evidencia de la unidad “primer peronismo” comienza a exponer


sus costuras.
¿Cómo atreverse, entonces, a pensar relaciones entre (análisis
del) discurso y (primer) peronismo? ¿Cómo aproximarse a una
reflexión analítica que permita también postular ciertas delimi-
taciones, ciertas regularidades, ciertos trazos que aporten algún
grado de generalización? Un primer gesto en esta dirección es
señalar los efectos de tal denominación en una actualidad que
no cesa de producir escansiones en torno de este significante: la
combinación “primer peronismo” acarrea el ejercicio de enumerar
etapas o “tipos de” peronismo(s) y, con ello, una recurrente necesi-
dad de establecer cuántos y cuáles fueron/son los movimientos/
gobiernos/períodos peronistas.
En segunda instancia, distinguir al menos tres formas para
esa relación: discursos del peronismo, discursos en/durante el
(primer) peronismo, discursos sobre el peronismo. En el primer
caso peronismo opera como “sujeto imaginado”-fuente de sentido,
como “origen enunciativo”; el segundo supone una demarcación
temporal ya dada por la historiografía y/o por “datos” sobre la
organización del gobierno del Estado (comienzos y fines, eleccio-
nes presidenciales y golpes de Estado). El tercer tipo de relación,
en cambio, conlleva otro funcionamiento. Si en los “discursos del
peronismo” se produce el peronismo como sujeto del decir, los
“discursos sobre” generan un efecto de objetivación: “Um efeito
imediato do falar sobre é tornar objeto aquilo sobre o que se fala (...)
Os discursos sobre são discursos que atuam na institucionalização
dos sentidos, portanto, no efeito de linearidade e homogeneidade
da memória” (MARIANI, 1998, p. 60).
Los discursos sobre inciden, pues, de manera constitutiva en la
lectura de los “archivos del peronismo”; se trata de un “objeto” tan
conocido, hablado, narrado, tan predicado, que resulta preciso in-
corporar en el trabajo con los materiales que lo convocan el proble-
ma de la evidencia. Toda aproximación a documentos del “primer
peronismo” requiere, entonces, lidiar con los efectos de los discursos
sobre que se fueron entreverando, de manera contradictoria –con

252
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

sentidos antagónicos, con reiteraciones-transformaciones, recur-


rencias–, desde mediados de la década de 1940 hasta el presente.
La mirada teórica del AD en su problematización de “lo evi-
dente” y el trabajo descriptivo con documentos y formulaciones
pueden ayudar a poner la lupa en algunos detalles que permiten
componer nuevas preguntas (y nuevas puestas en serie), indagando
aquello que ya se sabe, lo siempre-ya-dicho que lo ha ido convirtien-
do en “objeto estabilizado de saber”. Esto es relevante cuando
se abordan cuestiones que vinculan peronismo, política y cultura,
una zona en la cual las evidencias siembran –minan– ab initio el
terreno en el que se trabaja. En este punto, es paradigmática la
conocida frase “alpargatas sí, libros no”, que reproduce la evidencia
de una antítesis entre “bienes materiales” y “bienes culturales”, y
la evidencia de una opción: el gobierno peronista habría optado
por la distribución de bienes funcionales para la (re)producción
económica –instrumentos para la reproducción de las condiciones
de vida del trabajador, calzado típico de los trabajadores rurales
en este caso– en detrimento de la distribución/valoración de la
producción cultural. Esta frase, que vuelve bajo la forma de un
eco en múltiples debates, sobredetermina lecturas, en ocasiones
obtura posibilidades de observar elementos/relaciones aun no
descriptos y de hallar documentos aun no visibilizados.
Otro aspecto de las investigaciones sobre “primer peronismo”
es la organización por esfera, por institución o por área o tema,
por ejemplo, “teatro y artes escénicas”, “cultura e intelectuales”,
“sistema escolar”, “educación técnica”, “universidades”, “políticas
sanitarias”, “política exterior”, “política científica”, “industria”,
“sindicatos, derechos y legislación laborales, huelgas”, entre mu-
chas otras. Hay ciertamente algunas asociaciones más habilitadas
que otras, varían según las coyunturas en las que se producen
los análisis: en los últimos años, de manera creciente, sindicatos
y cultura o política, Estado, trabajadores y cultura han surgido
como articulaciones novedosas (por ejemplo, LEONARDI, 2017),
también política científica e industria, entre otras. Pero hay aso-
ciaciones “transversales” que siguen produciendo extrañamiento.

253
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

En este trabajo nos detenemos en algunos documentos que


permiten identificar regularidades entre enunciados relativos a
la formación técnica profesional de los obreros y discursos sobre
la cultura. Se trata de cuestiones que en un principio tenderían
inscribirse en “campos” o “esferas” autónomas. Con el fin de mos-
trar la pertinencia de esta articulación, la exposición que sigue
se organiza en dos pasos: descripción de las normas legales que
institucionalizan la Universidad Obrera Nacional (1948 y 1952)
(Unidad A); descripción de un conjunto heterogéneo de documen-
tos producidos en 1952-1953 en los cuales el significante cultura
aparece de manera recurrente (Unidad B). A partir de ello nos
proponemos reflexionar sobre los criterios de delimitación de
unidades discursivas y la construcción/montaje de series en el
trabajo de archivo.

2. Descripción y caracterización: unidades, formulacio-


nes, puesta en serie

2.1 La formación técnica de los trabajadores y la Uni-


versidad Obrera Nacional

La primera de las unidades en la que nos detenemos (Unidad


A) está conformada por (fragmentos de) documentos en los que
aparece como cuestión la “formación técnica de los trabajadores”,
incluyendo específicamente el inciso de la Constitución Nacional
de 1949 que instituye el “derecho de los trabajadores a la capacita-
ción” y los textos legales relativos a la creación y reglamentación
de la Universidad Obrera Nacional (UON):

Ley 13.229, Creación de la Universidad Obrera Nacional (1948)

1. Artículo 1° - Implántase para los obreros y obreras provenientes del


ciclo básico de aprendizaje y capacitación (ley 12.921, títulos LXXVI y
LXXVIII) el Segundo Ciclo de Aprendizaje (cursos de perfeccionamiento
técnico), con los siguientes finalidades:

a. Proporcionar a la industria técnicos competentes y


especializados y facilitar a los obreros el acceso a supe-

254
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

riores condiciones de vida y de trabajo y la capacitación


necesaria para el desempeño de actividades de mayor
responsabilidad en el orden técnico;

b. Dotar al obrero de los conocimientos fundamentales


indispensables para abordar ulteriormente el estudio de
disciplinas científico-técnicas superiores que integrarán
el plan de enseñanza de la Universidad Obrera Nacional.

2. Artículo 9° - Créase la Universidad Obrera Nacional como institución


superior de enseñanza técnica dependiente de la Comisión Nacional
de Aprendizaje y Orientación Profesional.

3. Artículo 10° - Serán sus principales finalidades:

a. La formación integral de profesionales de origen obre-


ro destinados a satisfacer las necesidades de la industria
nacional;

b. Proveer la enseñanza técnica de un cuerpo docente inte-


grado por elementos formados en la experiencia del taller
íntimamente compenetrados de los problemas que afectan
al trabajo industrial y dotados de una especial idoneidad;

c. Actuar como órgano asesor en la redacción de los planes


y programas de estudios de los institutos inferiores, a fin de
que la enseñanza se desarrolle en todo el ciclo con sujeción a
una adecuada graduación y jerarquización de conocimientos;

d. Asesorar en la organización, dirección y fomento de


la industria, con especial consideración de los intereses
nacionales;

e. Promover y facilitar las investigaciones y experiencias


necesarias para el mejoramiento e incremento de la in-
dustria nacional;

f. Facilitar o propender mediante cualquiera otra funci-


ón propia de su naturaleza a la satisfacción plena de los
objetivos propuestos (cursos de extensión universitaria
o de cultura fundamental técnica, formación de equipos
de investigación, etcétera).

255
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Constitución nacional, Capítulo III “Derechos del trabajador, de la familia, de


la ancianidad y de la educación y la cultura” (artículo 37°, I “Del trabajador”,
ítem 3) (1949)

4. Derecho a la capacitación. - El mejoramiento de la condición humana


y la preeminencia de los valores del espíritu imponen la necesidad de
propiciar la elevación de la cultura y de la aptitud profesional, procu-
rando que todas las inteligencias puedan orientarse hacia todas las
direcciones del conocimiento, e incumbe a la sociedad estimular el
esfuerzo individual proporcionando los medios para que, en igualdad
de oportunidades, todo individuo pueda ejercitar el derecho a aprender
y perfeccionarse.
Decreto n° 8014/52, Reglamentación de la ley 13.229, Aprobación
del Reglamento de organización y funcionamiento de la Universidad Obrera
Nacional (1952)

5. Que el establecimiento de esa alta casa de estudios superiores,


única en el mundo por sus finalidades y proyecciones en el campo de
la cultura y del trabajo, corona la larga serie de conquistas obtenidas
por las fuerzas obreras organizadas dentro del movimiento peronista
e impregnadas del fuego sagrado que explica y determina la vida y la
obra de la Abanderada de los Trabajadores Eva Perón;

6. Que la obtención de una legislación progresista que asegura


condiciones de vida dignas para los trabajadores desde el punto de
vista material, no era la última etapa de las reivindicaciones obreras
inscripta en la doctrina peronista, puesto que se considera necesario
hacer accesible al pueblo los demás instrumentos de que se vale el
hombre para alcanzar la plenitud de sus derechos y consolidarlos en
el tiempo, es decir, la conquista de los instrumentos de la cultura y del
saber, que no sólo permiten usar de los derechos adquiridos en toda
su amplitud y posibilidades, sino al propio tiempo utilizar los recursos
de la inteligencia para defenderlos y para perfeccionarlos;

7. Que para la doctrina peronista no es suficiente asegurar a los tra-


bajadores el goce de los bienes materiales dentro de una economía
de justicia social. Ella persigue fines más ambiciosos como son los
de operar un profundo cambio en la estructura de la sociedad actual,
transformándola en una sociedad de trabajadores organizados que se
distinga por un alto índice de cultura social que haga factible una ade-
cuada comprensión de los individuos entre sí y entre estos y el Estado;

256
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

8. Que la Universidad Obrera Nacional, al tener por principios básicos


los de la política orientadora del movimiento justicialista, tiende a
coadyuvar a la recuperación y consolidación económica del país, por
medio de una industria nacional, dirigida por técnicos argentinos,
formados en una institución esencialmente argentina y realizada por
obreros argentinos.

9. Artículo 36. Son deberes de los profesores


(…)
Orientar a los alumnos hacia la elevación cultural, estimulando sus es-
fuerzos para lograr el acceso a las esferas superiores del conocimiento.

Como se observa en los documentos, la UON fue una insti-


tución que tenía por fin la formación de “Ingenieros de fábrica”,
consistía en un ciclo universitario que proporcionaba “formación
técnica y capacitación profesional” a los egresados de las escuelas
técnicas, de las escuelas-fábrica; escuelas-fábrica y UON dependían
del mismo organismo estatal, la Comisión Nacional de Aprendi-
zaje y Orientación Profesional. Los trabajos historiográficos en
torno de la UON muestran que tenía una composición, tanto en
su proyecto legislativo, en sus reglamentaciones, en sus criterios
de ingreso como en su matrícula efectiva, de estudiantes “pro-
venientes” de la clase obrera. Las investigaciones que historizan
la UNO dan por sentada la relación entre su ley de creación, de
1948, y el decreto reglamentario de 1952 con el cual se la pone
en funcionamiento. Es decir, presentan la UON como resultado
de una política del primer peronismo, también como un resultado
de la articulación entre gobierno del Estado y la Confederación
General del Trabajo (CGT) durante aquellos años. En esta línea,
según muestran, la central sindical no solo participaba en diver-
sos aspectos del funcionamiento de la UON, también había sido
el “origen” del proyecto de creación de una universidad obrera,
proyecto formulado a fines de los años ’30 en el seno de la central
sindical (CGT) y luego incorporado como política estatal durante
el primer gobierno peronista.

257
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Tal perspectiva, solidaria con la consideración de los do-


cumentos en términos de fuentes, otorga de antemano una cohe-
rencia y una misma dirección a los documentos que conforman
la Unidad A. Esto es, las tres piezas participan de un continuum
que funciona bajo la forma de lo ya-dado, porque se las considera
expresión de una misma política pública y por el primado de los
criterios institucionales, en especial por la continuidad evidente
entre una ley y “su” decreto reglamentario. En cuanto al inciso
citado de la Constitución de 1949, también participa de esta
secuencia de manera evidente, no tanto porque se reiteran signi-
ficantes sino porque es citado-retomado de manera explícita en
la norma legal de 1952. Es decir, se tiende a dar por sentado que
la filiación expresa de los textos con/en otros textos da cuenta
de sus relaciones, esto es, las referencias explícitas de un texto a
otro (o su mención como “antecedente” en el caso de los textos
legales) funcionan como evidencia de la existencia de una relaci-
ón. Visto desde el AD, este tipo de mecanismo estaría conducido
por la ausencia de una reflexión teórica en torno de la distinción
entre –en términos de Authier-Revuz (1984) – heterogeneidades
mostradas y heterogeneidad constitutiva o, para retomar la teoría
pecheutiana de los dos olvidos (PÊCHEUX, 1988, 2016), por la
ausencia de una distinción entre el orden del interdiscurso y el
registro de lo imaginario vinculado a los procesos enunciativos.
Ahora bien, una mirada detenida en la materialidad de las
formas lingüísticas muestra divergencias, irrupciones, heteroge-
neidades constitutivas en los modos de significar la formación de
los trabajadores: de aprendizaje, cursos de perfeccionamiento técnico,
capacitación, cultura fundamentalmente técnica (1948) a derechos,
conquista de los instrumentos de la cultura y el saber, trabajadores or-
ganizados con alto índice de cultura, el campo de la cultura y el trabajo,
entre otras formulaciones que aparecen en el documento de 1952.
Es decir, cultura aparece en 1952 como un elemento recurrente
y novedoso si se observa la Unidad A en su conjunto, y aparece
articulado con significantes diferentes de aquellos que traman el
texto legal de 1948.

258
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Desde el punto de vista de los procesos (inter)discursivos,


por lo tanto, podríamos enunciar como hipótesis la posibilidad de
inscribir las formulaciones de 1948 y las de 1952 en unidades o
formaciones diferentes, tal vez, incluso, contradictorias en algún
aspecto: capacitación/aprendizaje, por un lado, y cultura/saber/orga-
nización, por el otro, podrían leerse como elementos de formaciones
en tensión. En la línea de la propuesta de Guilhaumou, Maldidier
y Robin (2016), cultura Y podría ser la estructura sobre la cual
pivotee un análisis distintivo entre formulaciones producidas en
estas dos coyunturas.

2.2 1952-1953: el elemento cultura y sus relaciones

La Unidad B expone, de manera descriptiva, la relevancia


que adquirió el significante cultura, como elemento discursivo, en
documentos estatales de 1952-1953. Esta segunda unidad está
compuesta de forma tal de mostrar algunos trazos de la amplia y
multiforme circulación que tuvo este elemento en aquella coyun-
tura, su inscripción en textualidades heterogéneas, relativas a
distintas esferas, su incorporación en diferentes documentos
producidos en el seno del gobierno del Estado.
En particular, para este trabajo realizamos una selección de
documentos vinculados a la producción y difusión del Segundo
Plan Quinquenal, el principal instrumento de planificación de las
políticas públicas nacionales previstas para el período 1953-1957,
que enunciaba en cada capítulo los objetivos de gobierno para
las distintas áreas de intervención (salud, educación, ciencia y
técnica, industria, entre muchas otras); incorporamos, asimismo,
formulaciones extraídas de otras publicaciones gubernamentales.
El recorte y la puesta en serie para esta exposición destacan tam-
bién los fragmentos vinculados con la lengua y/o el lenguaje en
los cuales se observan elementos significantes con matiz de clase
(calle, talleres, obreros, trabajadores), tradicionalmente ausentes o
subordinados en los discursos metalingüísticos normativos:

259
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Segundo Plan Quinquenal, capítulo “Cultura” (1952)

1. En materia cultural el objetivo fundamental de la Nación será confor-


mar una cultura nacional, de contenido popular, humanista y cristiano,
inspirada en las expresiones universales de las culturas clásicas y
modernas y de la cultura tradicional argentina, en cuanto concuerden
con los principios de la Doctrina Nacional.

2. Se promoverá en el Pueblo, en cumplimiento del objetivo fundamen-


tal, la formación de la conciencia de una nueva cultura nacional, mediante
su compenetración íntima con los factores históricos, geográficos,
sociales, morales y políticos de la Nación.

3. La acción cultural será dirigida preferentemente hacia los más amplios


sectores sociales y promoverá especialmente:

a. el acceso libre y progresivo del Pueblo trabajador a


todas las expresiones y fuentes de la cultura científica,
literaria y artística;

b. la creación de organismos culturales en todos los sin-


dicatos del país;

c. la actividad individual de carácter cultural que realizan


los trabajadores.

4. El Estado auspiciará la divulgación popular de nociones y conoci-


mientos científicos como parte integrante del conjunto indivisible de
la cultura.

5. El Estado auspiciará la elevación de la cultura artística del Pueblo


desarrollando aquellas expresiones que influyan en la conformación
de su espíritu mediante:

a. la más amplia difusión, entre todos los habitantes de


la Nación, de las expresiones artísticas de inspiración y
contenidos sociales;

b. el estímulo de la aptitud creadora del Pueblo en todas


las manifestaciones artísticas.

260
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

6. El Estado auspiciará y promoverá la difusión cultural en el país con


el propósito de:

a. poner al alcance del Pueblo todas las manifestaciones


culturales, en forma y oportunidades apropiadas a las
distintas regiones y auditorios;

b. despertar en el Pueblo las vocaciones científicas, lite-


rarias o artísticas.

7. La cultura artística será desarrollada mediante:


a. exhibiciones de carácter popular de obras del acervo
artístico nacional y universal, ajustando sus programas
a la capacidad receptiva de los auditorios;

b. la actualización y agilización de la actividad de los muse-


os de arte, poniendo sus colecciones al alcance del Pueblo;

c. reglamentación adecuada de los distintos medios de


difusión en cuanto constituyan manifestaciones de cultura
artística: cinematógrafo, teatro, radio, prensa, televisión,
etc. a fin de que tales medios, que contribuyen a la forma-
ción de la conciencia artística nacional, permitan elevar
la cultura social.

Manual Práctico del 2° Plan Quinquenal (1953)

1. Nuestro pueblo es un pueblo capaz, dotado de grandes virtudes.


Basta darle el estímulo necesario para que esas virtudes afloren y
se concreten. Para ello, es preciso acercarlo a las fuentes del saber,
estimulando todas las manifestaciones de la cultura, en los órdenes
científico, literario, artístico, tradicional, histórico y cívico, así como en
el aspecto de la cultura física, que hace a la fortaleza de los pueblos.

2. El abandono en que yacía nuestro pueblo en materia de cultura


será subsanado mediante los objetivos generales del Plan que fijan
los lineamientos, la acción a desarrollar por el Estado, en materia de
cultura social. Uno de los principales -si no el más importante- es el que
determina el libre y progresivo acceso del pueblo trabajador a todas las
manifestaciones literarias y a todas las fuentes de cultura científica y
artística que pueda proporcionar el país. Propósito de tan vasto alcance
se logrará mediante una acción intensa, en la cual colaborarán los pro-

261
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

pios beneficiarios. Uno de los medios indicados en el Plan consiste en


la creación de organismos culturales en todos los sindicatos nacionales,
de modo que sean los propios trabajadores quienes se proporcionen
a sí mismos y a sus familias las fuentes del conocimiento. Bibliotecas,
recitales, conferencias, conciertos, teatros vocacionales, creados y
dirigidos por los trabajadores con el apoyo del Estado, pondrán su
benéfica acción cultural al alcance del mayor número posible de perso-
nas. Organizado el Pueblo en sindicatos y entidades profesionales, su
acción sumada abarcará a todos los sectores de la población y a todos
los ámbitos del país. En la escala nacional serán, a la vez, coordinados
todos los organismos oficiales de acción cultural, y estimuladas todas
las iniciativas individuales, a fin de lograr una actividad armónica y
convergente en beneficio de la cultura social del Pueblo.

3. Se quiere, pues, orientar organizadamente la cultura literaria, tra-


dicional, artística e histórica, para que esa unidad, ya en gran parte
lograda en las conquistas materiales y políticas, obtenga la cohesión
particular que nace de la unidad espiritual del Pueblo.

Presentación del Segundo Plan Quinquenal ante la Asamblea Legis-


lativa (1952)
1. La lengua es fundamental para la integración de la cultura nacional.
¿Qué se entiende por esto? No es que pretendamos crear o tener un
idioma argentino pero sí no depender de nadie en materia idiomática.
Existen en nuestro país y en nuestro Pueblo palabras nuevas, nuestras,
que no figuran en los diccionarios que nosotros consideramos como
oficiales de nuestra lengua. La palabra “Justicialismo”, por ejemplo,
definida y expuesta por primera vez por el general Perón el 1º de
mayo de 1947 en este mismo recinto, que importa toda una definición
de una nueva cultura en el mundo, no ha sido todavía incorporada al
diccionario de la Real Academia Española.

El Segundo Plan Quinquenal en la enseñanza media (1953)

1. Las palabras tienen vida propia y actúan como seres humanos. Ello
de por sí nos dice que si no hay posibilidad de identidad absoluta
entre dos hombres, tampoco podemos exigirla de las palabras entre sí.
El breve comentario que antecede, nos ha puesto de relieve tres hechos
importantes:

262
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

a. que nuestro idioma no ha dejado de ser, ni tampoco lo


pretende, el castellano;

b. que, sin embargo, ha adquirido mayoría de edad como


para ser considerado con capacidad cultural, lingüística
y formativa suficiente y permitir su independencia de las
normas académicas extranjeras;

c. que la riqueza de vocablos que el habla de nuestra patria


revela es tal como para justificar la preparación de un
diccionario nacional en el que se incluyan todas esas voces.

2. No creemos que pueda ser negada esa diferenciación que hace a


lo anímico y lo vivo del idioma, en cuanto éste deja de ser letra útil a
discusiones académicas. En el idioma de la calle, del hombre de traba-
jo, el estudiante, el peón, el obrero, el empleado, el tallerista, está la
fuerza de los vocablos, que al salir de los augustos salones literarios,
parece se vistieran con un ropaje menos estricto o adusto y exhibiesen
desnudeces que, por íntimas, les dan una significación distinta y muy
propia de cada Pueblo.

El lenguaje popular de Perón, de Carlos Abregú Virreira (1952)

1. Por una vía cierta Perón fija el itinerario del idioma nacional.
Y nunca más palpable la evolución extraordinaria de la lengua, la
remoción de las palabras, el nacimiento de unas y la muerte de otras,
no por mandato académico, sino por voluntad popular. La Academia,
como se sabe, “sólo limpia y da esplendor” al habla del pueblo. Entre
las nuevas palabras argentinas, nacidas bajo el signo de la revolución,
citaremos las siguientes: Justicialismo, cegetistas, descamisados y contras.
Se las usa todos los días en los diarios, las revistas, los discursos, el
vocabulario callejero, en todas partes. Y no hay que alarmarse por
esto. Al contrario, hay que celebrar jubilosamente el advenimiento
de una soltura verbal que tiende a desvincularnos de la tiranía del
lenguaje. Una de las causas por las cuales el país tiene más ensayis-
tas que novelistas radica, justamente, en la dualidad que durante
mucho tiempo nos obligó a hablar de un modo y a escribir de otro.
La revolución peronista en la cultura está en el vocabulario de Perón.

263
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Estos fragmentos son algunos de los tantos que pueden


recogerse de un archivo que hemos ido construyendo en etapas
sucesivas (véase GLOZMAN, 2015), archivo “incompleto”, en
estado de permanente reconfiguración. En esta Unidad B, por
lo tanto, cabría agregar varias otras formulaciones, por ejemplo,
extraídas de los programas y manuales de una materia instituida
en 1953 para las escuelas secundarias, denominada Cultura ciuda-
dana y organizada en tres niveles sucesivos: “Cultura ciudadana.
La sociedad argentina”, “Cultura ciudadana. Formación cívica y
organización política. La política justicialista”, “Cultura ciudadana.
La economía argentina”.
Retomando el dispositivo teórico-metodológico que es-
tabiliza Courtine (1981), es en este dominio de actualidad que
puede describirse con mayor eficacia el funcionamiento del
significante cultura en el decreto de 1952 que reglamenta la
UON, es decir, en su lazo con discursos que articulan cultura,
lengua y trabajadores/vocabulario callejero/obrero/peón; con dis-
cursos que articulan cultura, trabajadores y sindicatos, o cultura
y sociedad/política/economía. Puntualmente, para comprender
las formulaciones (5) a (9) de la Unidad A es preciso conside-
rarlas como parte de esta red, que podría delimitarse sobre
la base de la conjunción cultura Y, observable en documentos
producidos en una coyuntura determinada. Cultura no aparece,
pues, como elemento aislado en el decreto reglamentario que
institucionaliza la Universidad Obrera; por el contrario, forma
parte de una amplia trama de formulaciones, emergentes en
una misma actualidad, que pivotean sobre este significante y
las conjunciones que allí condensan.
Esta observación conduce a interrogar, desde esta perspec-
tiva, materiales de archivo vinculados con otras esferas: buscar
cultura en discursos relativos a la ciencia, al desarrollo nuclear, a
la industria, por ejemplo. Esto es, ampliar el campo de visibilidad
procurando materiales en los cuales “naturalmente” no iríamos a
encontrar discursos sobre “la cultura”, guiados por una hipótesis
de lectura: en el momento 1952-1953 el principal problema o cues-
tión que emerge en los documentos producidos desde el gobierno

264
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

del Estado es el de “producir una cultura”, “divulgar cultura y


conocimiento”, “formar política y culturalmente” a la ciudadanía.
Qué sentidos adquiere allí cultura es la pregunta que deberá
guiar el próximo paso analítico: qué funcionamiento adquiere su
presencia ubicua, qué opaca cuando aparece de manera recurrente
y transversal en una coyuntura específica, en la que se estaban re-
articulando alianzas, subordinaciones y formas del antagonismo,
tanto en la arena del aparato estatal nacional y de las relaciones
del gobierno del Estado con el movimiento obrero organizado
(emergencia incipiente de huelgas, emergencia del discurso de la
productividad) como en las relaciones productivas y en los acuer-
dos a nivel internacional. Esto implicaría pasar de la constatación
de la existencia material de trazos y relaciones entre significan-
tes –etapa actual– a la pregunta por el cómo y, si fuera posible, el
porqué, esto es, pensar relaciones entre materialidades discursivas
y otros órdenes de las prácticas.

3. Observaciones finales: unidades, series, montaje

Tal como lo planteamos, el presente trabajo consiste en una


exposición que busca, por un lado, mostrar la emergencia en
1952-1953 de una red de formulaciones en la cual el elemento
cultura resulta significativo y se articula con significantes que, en
un principio, responderían a otros “campos” o “esferas” –es el caso
de formación técnica/trabajadores–, mostrar también su presencia
transversal, su funcionamiento ubicuo; por el otro, reflexionar
sobre los modos de operar con materiales discursivos y sobre el
problema de la delimitación de unidades.
En este sentido, la experiencia del proceso de investigación
en torno del “primer peronismo” –en especial con la articulación
cultura, política y formación técnica/trabajadores– indica que es
preciso incorporar, como parte del problema, los discursos sobre
no solo para “saber” qué se ha dicho acerca de aquel período
o acerca de determinada cuestión (esto es, como un estado del
arte) sino, centralmente, porque son los que proporcionan, bajo
la forma de lo evidente, unidades ya-fabricadas, cuyas partes se

265
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

suponen en continuidad por criterios ajenos a las prácticas de


descripción de las materialidades discursivas. Es decir, para
poder lidiar con los documentos en su carácter de materialidad
histórica y lingüística, precisamos trabajar con/sobre los modos
en que ya han sido institucionalizados en otro archivo, en el
archivo que nos llega bajo la forma del legado. Ello produce una
distinción entre dos tipos de unidades, que presentan, a nuestro
entender, estatus diferente y distinta posición en el proceso de
investigación: unidades evidentes –se aproximan a aquello que
Guilhaumou, Maldidier y Robin designan como “series textua-
les ya impresas, analizadas y compiladas por los historiadores”
(2016: 115)– y unidades construidas, esto es, unidades cuya forma
se propone mostrar relaciones o regularidades en el nivel de
las materialidades significantes, en el sentido en que el AD
caracteriza el corpus (ORLANDI, 1999; ZOPPI-FONTANA,
2005; AGUILAR et al., 2014; GUILHAUMOU, MALDIDIER
y ROBYN, 2016).
Esta observación podría pensarse como regla general antes
que como excepción vinculada al peronismo: el AD, cuando en-
cara una pesquisa de archivo sobre un determinado “período” o
“cuestión” en perspectiva histórica no puede sino lidiar con ambos
tipos de unidades. Puesto que no hay materiales despojados de
unidades imaginarias, que se presentan bajo la forma de lo ya-
dado, precisamos incorporarlas como problema y observarlas a
contrapelo, con una mirada de extrañamiento e inquietud ante la
evidencia de semejante reunión, con el fin de comprender también
cómo es que han llegado a reunirse/institucionalizarse bajo esa
forma, pues ello puede incidir, sin que se perciba como tal, en la
formulación de hipótesis. Del análisis concreto que trae esta ex-
posición, caracterizaríamos entonces la Unidad A como unidad
evidente y la Unidad B como unidad construida o serie. La noción
de serie es aquí de orden operativo, al menos en este estadío no
presenta un estatus teórico sino que opera como dispositivo me-
todológico. La serie que aquí presentamos (Unidad B, incluyendo
las formulaciones 5 a 9 de la Unidad A), su forma, su composición,
es por ello analítica.

266
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Una de las diferencias sustativas que encontramos entre


ambos tipos de unidad puede ser caracterizada por la posición
respecto del procedimiento de montaje, esto es, por la visibiliza-
ción o la invisibilización del procedimiento que reúne las piezas,
las secuencializa y da forma a la unidad en cuestión. Podemos
recurrir para ello a la distinción general entre dos tipos o estilos
de montaje en la teoría y práctica cinematográfica, que, según
sistematiza Sánchez-Biosca (2010), podrían sintetizarse en el cine
clásico de Hollywood, por un lado, y las propuestas de la vanguar-
dia soviética de los años posteriores a la Revolución Rusa, por el
otro. El primero es el raccord o montaje suave, es aquel que borra
las marcas del procedimiento de montaje, silencia la presencia
y la función-montajista para producir un efecto de continuidad
natural entre las partes de la secuencia. El segundo, montaje cons-
tructivista, expone el procedimiento, hace visible la intervención
del montaje en la fabricación de la secuencia, genera contrastes,
pone en serie piezas y fragmentos provenientes, visiblemente, de
distintas “procedencias”:

Yo soy el cine ojo. Soy un constructor. Te ubiqué, a ti a


quien hoy creé, en un cuarto muy extraordinario que hasta
entonces no existía y que también creé. En este cuarto
hay doce paredes que saqué de distintas partes del mundo.
Yuxtaponiendo las secuencias de las paredes y los detalles,
logré disponerlos en un orden que te gusta y edificar en
una forma conveniente, sobre los intervalos, una cine-frase
que justamente es este cuarto (VERTOV, 1974, p. 28).

Las teorías del montaje eisenstenianas y, más radicalmente,


los escritos de Dziga Vertov y su “cine-ojo” pueden ser aportes en
esta dirección de elaborar puestas en serie analíticas a partir de
documentos y materiales que ya habitan el mundo de los archivos
institucionalizados.

267
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Referencias

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corpus? Entramados y Perspectivas, Revista de la Carrera de Sociología.
Buenos Aires, n. 4. p. 35-64, 2014.
Authier-Revuz, J. Hétérogénéité(s) énonciative(s). Langages. Paris, n.
73, p. 98-111, 1984.
Courtine, J.-J. Quelques problèmes théoriques et méthodologiques
en analyse du discours, à propos du discours communiste adressé
aux chrétiens. Langages. Paris, n. 62, p. 9-128, 1981.
Glozman, M. Lengua y peronismo. Políticas y saberes lingüísticos en la
Argentina (1943-1956). Archivo documental. Buenos Aires: Biblioteca
Nacional, 2015. 412 p.
Guilhaumou, J. Maldidier, D. y R. Robin. Discurso e arquivo.
Experimentações em Análise do discurso. Traducción de Carolina P.
Fedatto y Paula Chiaretti. Campinas: Editora da Unicamp, 2016. 262
p. Edición original: 1994.
Leonardi, Y. (Org.). Dossier “Cultura y peronismo”. Revista Afuera.
Estudios de crítica cultural. Buenos Aires, n. 17/18, 2017 [en línea].
Mariani, B. O PCB e a imprensa. Os comunistas no imaginário dos jornais
1922-1989. Río de Janeiro: Editora Revan / Campinas: Editora da
Unicamp, 1998. 258 p.
Orlandi, E. P. Análise do discurso: princípios & procedimentos. Campinas:
Pontes, 1999. 100 p.
Pêcheux, M. Semântica e discurso. Por uma crítica a afirmação do obvio.
Traducción de Eni Puccinelli Orlandi, Lourenço Chacon Jurado Filho,
Manoel Luiz Gonçalvez Corrêa y Silvana Mabel Serrani. Campinas:
Editora da Unicamp, 2008. 317 p. Edición original: 1975.
----- O discurso, estrutura o acontecimento. Traducción de Eni Puccinelli Orlandi.
Campinas: Editora Pontes, 2008. 68 p. Edición original: 1988.
----- Las verdades evidentes. Lingüística, semántica, filosofía. Traducción de
Mara Glozman, Pedro Karcmarczyk, Guadalupe Marando y Margarita
Martínez. Buenos Aires: Ediciones del CCC, 2016. 246 p. Edición
original: 1975.
Sánchez-Biosca, V. El montaje cinematográfico. Teoría y análisis. Madrid:
Paidós Ibérica, 2010. 287 p.
Vertov, D. Consejo de los tres. In: Artículos, proyectos y diarios de trabajo.
Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1974. p. 25-31.
Zoppi-Fontana, M. G. Arquivo jurídico e exterioridade. A construção
do corpus discursivo e sua descrição / interpretação. In: Guimaraes,
E. y M. R. Brum de Paula (Orgs). Sentido e Memória. Campinas: Editora
Pontes, 2005. p. 93-115.

268
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Cultura, ideologia, luta: esboços de análise


discursiva em embalagens

Phellipe Marcel
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

1. Gramatização e (re)lexicalização da Análise do Dis-


curso

O ano de 2017 tem seguido em condições de produção frutíferas


para as análises discursivas. Entre um golpe parlamentar,
casos de corrupção corriqueiros do Capital, ataques a direitos
dos trabalhadores em exercício (com a reforma trabalhista) e
inativos (com a reforma previdenciária), uma crescente violência
urbana cometida por uma população sem recursos, por um lado,
e por policiais, de outro. Uma repressão absoluta e crescente de
movimentos sociais, de atos reivindicatórios, de manifestações
nas ruas. A Análise do Discurso se faz cada vez mais necessária
diante dessa conjuntura, justamente em sua capacidade e papel
de desnaturalizar o discurso dominante, de mostrar como se dá
a produção de evidências. No entanto, talvez esse potencial não
esteja sendo plenamente materializado. Uma hipótese é a de que a
gramaticalização da Análise do Discurso tem seguido seu caminho.
Inicio minha discussão sobre a gramaticalização da AD pela
minha identificação como professor da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, militante de movimentos e membro do Coletivo
de Trabalho Discurso e Transformação (Contradit). Outro de
nossos colegas de coletivo, Luís Bulhões Figueira (FIGUEIRA,
2013) desenvolveu uma reflexão em 2013 questionando se have-

269
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

ria uma via para a análise de discurso fora da gramaticalização e


da desmarxização, onde se vale da mesma bibliografia-base com
a qual trabalharemos por ora. O comentário de que a Análise do
Discurso tem se gramaticalizado parte de Courtine (1991):

(...) vê-se a dimensão histórica e crítica se apagar em be-


nefício da dimensão empírica ou da construção de proce-
dimentos formais; e, paralelamente, o aspecto linguístico
da análise recobrir praticamente todas as considerações
históricas. A AD se gramaticalizou (COURTINE, 1991,
p. 160)1.

Nesse sentido, já se detecta, na década de 1990, que a AD


na França se distancia daquela praticada por Pêcheux e por seu
grupo, sobretudo no caráter de perda de sua historicização. Uma
AD que, para retomar Orlandi, no entremeio, vai vendo desapare-
cidas algumas de suas contradições constitutivas para se basear no
“aspecto linguístico”, obliterando a desnaturalização da produção
de evidência. Marginalizando a historicidade. A esse processo
Courtine deu o nome de gramaticalização, termo emprestado dos
estudos lexicais e que tem como contraponto a lexicalização.
Gostaríamos de empreender uma breve reflexão aqui sobre esse
vértice diametral. Numa revisão bibliográfica do conceito de gra-
matizalização, Barreto afirma que

Lehmann (1995 [1982], p. 6) aponta Jakobson como o


primeiro a formular uma oposição entre os processos
de lexicalização e gramaticalização, caracterizando a
lexicalização como um processo opcional e a gramatica-
lização como um processo obrigatório. Desde então, os
dois processos vêm sendo explicados como totalmente
independentes ou como atuando em conjunto. O autor
restringe a lexicalização ao processo segundo o qual uma
forma linguística se torna lexical, isto é, passa a pertencer
ao inventário de uma língua, tornando-se holística (BAR-
RETO, 2012, p. 407).
1 (...) on voit la dimension historique et critique s’effacer au profit de la dimension empirique ou
de la construction de procédures formelles; et parallèlement, l’aspect linguistique de l’analyse
recouvrir à peu près totalement les considérations historiques. L’AD s’est grammaticalisée.
(COURTINE, 1991, p. 160)

270
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Assim, nessa metáfora, se a AD é gramaticalizada, ela per-


deria traços lexicais, indo em direção a uma disciplina com traços
mais gramaticais, mais funcionais, e também se tornando mais
abstrata com vistas a atuar no funcionamento morfossintático.
Nota-se que, quando Courtine escolhe essa palavra para se referir
ao funcionamento da AD na França na década de 1990, é possível
que o discurso sobre a história da disciplina se entrecruze com o
discurso linguístico de modo a um adotar o léxico do outro. A dita
gramaticalização, portanto, pode ser significada como um processo
em que se parte de um campo com maior potencial para outro
com menor potencial, para outro não tão significativo. Contudo,
segundo Barreto (op. cit.), gramaticalização e lexicalização não
são processos completamente independentes, podendo haver, por
exemplo, gramaticalização seguida de (re)lexicalização. Vamos
trabalhar com a hipótese de que hoje (em tempos em que as ins-
tituições de defesa do trabalho são atacadas, em que os próprios
trabalhadores são ameaçados, em que a perda de direitos conquis-
tados bate à porta) a AD não só tem sido gramaticalizada, algo
que vem sido dito há anos também no Brasil — apesar de menos
do que na França —, como também pode estar sendo lexicalizada
para outra posição, autorizando dizeres que não levam em conta
o que a AD tem feito há décadas: justamente a historicização de
práticas de opressão, de domínio, de exploração de sujeitos mate-
rializada pelo discurso.
O que estamos tentando dizer, com juízo de valor, é que,
como nos estudos lexicais, uma gramaticalização não é só uma
gramaticalização. Ela subentende, e exige, outros funcionamentos
linguísticos que venham a reboque, que deem conta do tráfego de
sentidos, do deslocamento de uma função para outra. No caso da
Análise do Discurso, o processo de ser ligeiramente gramatica-
lizada nos últimos anos vem acompanhado necessariamente de
algo mais.2
2 Para não sermos mal-entendidos: um dos modos de a AD se gramaticalizar é, por exemplo,
passar a produzir investigações no sentido de mais bem cumprir os propósitos dos Aparelhos
Ideológicos do Estado. Em outras palavras, estudar como materiais didáticos podem levar
a um ensino mais eficiente; como a tolerância diante do preconceito linguístico pode fazer
com que o estudante melhor aprenda a língua-padrão escrita; como a destruição do discurso
dominante em partidos neoliberais pode fortalecer um reformismo moderado — também

271
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Que se lute por uma AD que se entrecruze disciplinar e insti-


tucionalmente com outros grandes campos que não o de Linguís-
tica, letras e artes. Como os da comunicação social, da educação,
da filosofia, da história, das ciências sociais, da psicanálise, da
antropologia etc. É um modo de (re)disciplinarização da teoria do
discurso com que trabalhamos. Mas quando a AD se torna não
apenas ferramenta, perdendo seu caráter e potencial revolucio-
nários na prática epistemológica e encampada por lutas sociais,
como também se relexicaliza como disciplina que dá margem a
discursos neoliberais, ela se torna arma para o inimigo.
Para chegarmos, então, aos limites de nossas contradições e
para adensarmos o que estamos chamando de gramaticalização. O
dia 28 de abril de 2017 marcou, nacionalmente, a primeira greve
geral do ano, a primeira em décadas, decidida e encampada por
diversas centrais sindicais e por partidos políticos de diferentes
matizes da esquerda. Muitas das manifestações foram combatidas
com violência pelas polícias militares Brasil afora, e não foram
poucos os colegas analistas do discurso que participaram do dia
de lutas, materializando nas ruas as práticas de combate ao dis-
curso dominante, de desnaturalização de enunciados circulantes
na mídia hegemônica, como

a. As reformas de que o Brasil precisa para voltar a crescer3

Ou de enunciados da base governista

b. “Claro que o nosso desejo, e também é necessidade para o país,


é que se faça o mais breve possível. Mas isso depende de uma
negociação com o Congresso Nacional”

c. “hoje a sociedade aplaude as reformas”4


alinhado a determinada agenda neoliberal. Três exemplos em que a AD muito forte e cor-
retamente se insere na crítica, mas não na crítica à crítica. Um reformismo (necessário), na
melhor das hipóteses.
3 Paráfrase de diversas sentenças em circulação principalmente na GloboNews por meses.
4 Respectivamente, Antonio Imbassahy, então ministro-chefe da Secretaria do Governo e filiado ao
PSDB; e Rodrigo Maia, em 2017 filiado ao partido DEM e então presidente da Câmara de Deputados.
Fonte: Último Segundo - iG: http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2017-05-12/pmdb.html.

272
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Estar nas ruas é também desnaturalizar esses discursos. É


contraidentificar-se ou mesmo desidentificar-se com eles. Pois
bem, enquanto trabalhadores do Brasil inteiro se manifestavam e
alguns analistas do discurso faziam uso de sua arma teórica nas
ruas arriscando sua saúde, suas vidas, seu sangue, seus corpos —
como discursos —, havia quem se dissesse analista do discurso e
que afirmasse, nas redes sociais, que os adeptos da greve geral eram

d. “vagabundos”

alegando que as atividades grevistas eram

e. “falta do que fazer”

Esses dois recortes foram extraídos da rede social Facebook,


de um analista do discurso que se posicionava contrariamente à
greve geral. Não identificaremos seu nome porque o interesse aqui
não é trabalhar com a categoria de sujeito empírico, mas investigar
nossos limites, contradições e impossibilidades estando na posição
de analistas do discurso. Além de tudo, “Que importa quem fala?”,
para parafrasear aqueles que nos antecedem. Para fechar a nota,
e retomando uma fala da professora Christa Berger (da Comuni-
cação Social da Unisinos), também presente no III Sedisc: “um
já é demais”. Um analista do discurso que chame quem participa
de greve geral de vagabundo já é demais, já é um excesso, e é algo
que carece de ser investigado.
Os cinco recortes que trouxemos até aqui, neste artigo,
filiam-se todos a uma mesma Formação Discursiva, que significa
trabalhadores que lutam por seus direitos como insanos, como
descomprometidos com o “crescimento” do Brasil. E que também
significam a luta política não eleitoral como algo a ser evitado.
É ponto pacífico em nossa disciplina que sujeito e sentido
se constituam dialeticamente e que as palavras signifiquem de
distintos modos a depender da formação discursiva donde são
materializadas. Contudo, não desejando ser uma polícia da análise

273
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

do discurso, perguntamo-nos se há um limite daquilo que podemos


e devemos dizer e significar como analistas do discurso, numa
ética epistemológica que, bem como dificulta que um biólogo que
estude a evolução da espécie seja criacionista, impeça também
que um analista do discurso reproduza o discurso do opressor de
modo a nem mesmo permitir o diálogo. E de modo a empregar
as mesmas palavras que levam à violência contra oprimidos. Que
fazem sangrar e que permitem perda de direitos. Não parece ser
nosso propósito permitir, sem luta, que grevista seja chamado de
vagabundo. Que analista do discurso use a teoria para argumentar
favoravelmente à sua filiação a algum partido político da direita
do espectro conservador.
Tampouco consideramos válido, nessas condições de produ-
ção (des)favoráveis, que o analista do discurso substitua ideologia
por cultura. Assim, aqui queremos refletir sobre como qualquer
discussão teórica e analítica da AD não perca de vista que ela é uma
disciplina que leva em conta, em suas contradições, as descobertas
do materialismo histórico, da psicanálise e da linguística. E que
a luta também faz parte de sua constituição. Então tratemos de
como a noção de cultura pode se articular à AD nessa segunda
parte do texto, movimentando seu aparato analítico.

2. Sem perder ternura nem cultura

Nas ciências sociais, cultura e ideologia passam por uma bata-


lha, uma disputa por espaço em que uma noção poderia recobrir
a outra. Para se ter ideia dessa possibilidade interpretativa, em
1983, um historiador ex-althusseriano inglês afirma que:

As “culturas” são uma forma de totalidade não menos


dúbia do que a noção de “modo de produção” de Althus-
ser. A “cultura”, concebida nesse sentido, unifica um
complexo de discursos, práticas e instituições como se
eles expressassem um habitus ou espírito comum (HIRST,
1983; tradução nossa).

274
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Há traços dessa noção de cultura que se encontram com a de


ideologia e formação ideológica na AD. Essa citação é sintoma de
uma batalha epistemológica em torno do que significam e como
funcionam cultura e ideologia, uma batalha que prossegue hoje na
Análise do Discurso. Em artigo ainda inédito, afirmamos que

Temos, sim, encontrado duas possibilidades [para o traba-


lho com cultura em AD, pensando também em ideologia]:
(a) a cultura, como prática, está encerrada — mas não
hermeticamente — na ideologia; (b) a cultura e a ideolo-
gia atuam dialeticamente na constituição de sentidos do
discurso e também na constituição do sujeito, mas man-
tendo uma relativa autonomia que permite, por exemplo,
que uma mesma ideologia se instale dominantemente em
distintas culturas (ESTEVES, s/d).

Mediante reflexões anteriores, portanto, entendemos que


não há (nem deve haver) recobrimento entre cultura e ideologia.
Fazê-lo seria desmaterializar, desmarxizar e contribuir para a
gramaticalização da AD, extraindo dela talvez seu componente
mais cáustico: a relação discurso-ideologia.
Tomando essas duas possibilidades de funcionamento como
guia — e não pretendemos escolher aqui por qual via seguiremos
—, pretendemos aqui mostrar como o funcionamento da cultura
poderia ser mostrado nos processos discursivos. Retornemos a
Lévi-Strauss para pensarmos no estatuto cultura-natureza — uma
importante dicotomia nos estudos antropológicos, e mesmo fora
da antropologia —, refletindo sobre os valores de cru, cozido, fresco
e podre na alimentação dos povos indígenas, em entrecruzamento
com seus mitos contitutivos, como os sobre a origem do fogo:

Verifica-se assim que os mitos jê de origem do fogo, assim


como os mitos tupi-guarani sobre o mesmo tema, operam
por meio de uma dupla oposição: entre cru e cozido de
um lado, entre fresco e podre do outro. O eixo que une
o cru e o cozido é característico da cultura, o que une o
fresco e o podre, da natureza, já que o cozimento realiza a
transformação cultural do cru, assim como a putrefação é

275
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

sua transformação natural. (…) para o pensamento tupi-


guarani, a oposição pertinente é entre o cozimento (cujo
segredo estava nas mãos dos urubus) e a putrefação (que
atualmente define sua dieta alimentar); ao passo que, para
os Jê, a oposição é entre o cozimento dos alimentos e sua
ingestão no estado cru, como faz desde então o jaguar.
(…) a fronteira entre natureza e cultura fica de qualquer
modo deslocada, dependendo do grupo a ser considerado:
Jê ou Tupi (LÉVI-STRAUSS, 2010 [1964], p. 172-173).

Interessam-nos aqui duas questões, que iremos pontuar:

1. a(s) alimentação(ões) de uma formação social significam bastante


sobre sua cosmologia, sobre as ideias basilares que constituem suas
culturas e que se materializam em rituais, em narrativas míticas e em
outras práticas;

2. natureza e cultura são valores não absolutos, que estão em relação


com essas cosmologias: daí que, para os tupi-guarani, a oposição funda-
mental é entre cozido e podre; para os jê, entre cozido e cru. Ou seja: o
que é cultura já é propriamente um valor cultural e, se é efeito de uma
produção de evidência, é também resultado de inscrição ideológica.

Para o antropólogo brasileiro Viveiros de Castro (1996), a


questão da alimentação indígena também se coloca como deter-
minante para a compreensão do funcionamento das formações
sociais indígenas. O autor, entretanto, não foca no que significam
e cultura e natureza, mas na questão da subjetividade. Trata-se, aí,
de culturas que atravessam os sujeitos conferindo-lhes a imagem
não só de distinção em relação a outros sujeitos, mas também de
semelhança com outros sujeitos, humanos ou não humanos. Veja-
mos a releitura que o pesquisador faz da fórmula saussuriana tão
conhecida pelos relativistas:

Enquanto nossa cosmologia construcionista pode ser


resumida na fórmula saussureana: o ponto de vista cria o
objeto — o sujeito sendo a condição originária fixa de onde
emana o ponto de vista —, o perspectivismo ameríndio
procede segundo o princípio de que o ponto de vista cria o
sujeito; será sujeito quem se encontrar ativado ou “agen-

276
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

ciado” pelo ponto de vista. É por isso que termos como


wari’ (Vilaça 1992), dene (McDonnell 1984) ou massa
(Århem 1993) significam “gente”, mas podem ser ditos
por — e portanto ditos de — classes muito diferentes de
seres; ditos pelos humanos, denotam os seres humanos,
mas ditos pelos queixadas, guaribas ou castores, eles se
auto-referem aos queixadas, guaribas ou castores. (...) Os
animais impõem as mesmas categorias e valores que os
humanos sobre o real: seus mundos, como o nosso, giram
em torno da caça e da pesca, da cozinha e das bebidas fer-
mentadas, das primas cruzadas e da guerra, dos ritos de
iniciação, dos xamãs, chefes, espíritos… Se a Lua, as cobras
e as onças vêem os humanos como tapires ou pecaris, é
porque, como nós, elas comem tapires e pecaris, comida
própria de gente. Só poderia ser assim, pois, sendo gente
em seu próprio departamento, os não-humanos vêem as
coisas como “a gente” vê. Mas as coisas que eles vêem são
outras: o que para nós é sangue, para o jaguar é cauim; o
que para as almas dos mortos é um cadáver podre, para
nós é mandioca pubando; o que vemos como um barreiro
lamacento, para as antas é uma grande casa cerimonial…
(CASTRO, 1996).

Analisando a alimentação de determinados povos ameríndios,


Viveiros de Castro chega a algumas conclusões sobre aquilo que
chama de perspectivismo ameríndio. Está em jogo aí como se dá a
relação entre sujeitos, entre objetos, entre outras corporalidades.
Assim, nos parece vantajoso, por exemplo, pensar nas assimetrias
e dominâncias que constituem as formações sociais, e nos modos
como os sujeitos não só (se) significam, mas também determinam
o que é significar, o que são os processos próprios da constituição
dos sujeitos e objetos, e quais são eles. Linguisticamente. Assim,
há a própria oposição cultura x natureza a ser notada nos sistemas
alimentares, mas também outros processos de semantização, como
o que significa o tempo, o que significa o espaço, o que significa o
gênero, o que significa a lógica, o que significa um sujeito.5

5 Não coincidentemente, mas engraçadamente, elegemos categorias (sensíveis) que nos pa-
recem basilares à cultura em que fomos fundados. Um exercício interessante talvez fosse
nos perguntarmos quais são as categorias basilares em outras formações sociais, em outras
culturas que constituem as formações sociais.

277
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Valeria a pena o investimento, por exemplo, em análises que


buscassem associar os mitos de constituição de uma cultura ao seu
sistema não apenas de tempos verbais, mas também de predicação,
de complementação, de especificação etc. Uma sintaxe verbal —
e não verbal também — que envolve a memória, a ideologia, o
inconsciente, o histórico. Além disso, também seria interessante
nos questionarmos sobre o que determinada cultura vai conside-
rando como contradição, como paradoxo, como redundância, como
hipérbole na língua em que é materializada. Estamos chegando
aqui, portanto, a determinados mecanismos linguísticos ocorrentes
em diversos estratos de análise que podem fornecer dados sobre
o funcionamento de uma cultura.
Nesse sentido, podemos retomar tanto Dias, que considera
“um ganho teórico e metodológico a formulação de parâmetros
de compreensão da sintaxe, orientados pela concepção de que a
enunciação se constitui na relação entre uma atualidade e uma
memória” (DIAS, 2009, p. 28), mas nos orientando por um dis-
positivo que considere o funcionamento da sintaxe, das flexões
morfossintáticas, das regras internas de lógica de cada língua
como determinados também por esses mitos — materialidade da
cultura — que dão conta de significar aos sujeitos categorias basi-
lares para sua constituição e, por conseguinte, para a constituição
dos objetos que eles significarão.
Ao mesmo tempo, recuamos no tempo para observarmos a
hipótese Sapir-Whorf, principalmente nas palavras de Whorf:
“Toda língua possui termos que acabaram por atingir um âmbito
cósmico de referência, que cristalizam em si mesmos os postula-
dos básicos de uma filosofia tácita, em que jaz o pensamento de
um povo, de uma cultura, de uma civilização e até mesmo de uma
era” (WHORF, 2011 [1950], p. 6). Repensando essa citação e a
reterritorializando discursivamente: nas línguas, materializam-se,
de vários modos, as culturas, num embate dela com ideologia e
inconsciente. Marcando, na língua, essa “filosofia tácita”: para nós,
os mitos fundadores que dizem respeito às categorizações, regras,
ordenamentos, simetrias e assimetrias basilares das culturas.

278
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Figura 1: Parte interna da tampa da caixa de bombons da Garoto com propaganda


do “chocolate” Baton Creme Morango (abril de 2017, presente de família, provável
presença de mão de obra escrava)

Vejamos bem brevemente dois materiais que nos permitirão


pensar sobre essas questões: duas embalagens de alimentos. Se
tanto Lévi-Strauss quanto Castro tomam a alimentação indígena
como índice do funcionamento das culturas, aqui tomamos também
algo que significa a comida nas formações sociais capitalistas: suas
embalagens enfeitiçadas. Suas embalagens-fetiche.
Temos aqui duas imagens de dois produtos alimentícios distintos:
(1) o da caixa de bombons da Garoto, que faz a propaganda do “cho-
colate” Baton creme morango, e (2) a do Café Leão tipo exportação.

Figura 2: Embalagem do Café (?) Leão tipo exportação (fotografado num mercado de
bairro, gênero alimentício de alto consumo do solo)

279
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Estamos observando “apenas” embalagens, mas, nos embates


sintáticos observados nelas, questinamo-nos sobre como tanto
os sabores quanto as sensações de nacionalidade são colocadas à
prova. Poderíamos abordar por mais páginas o estatuto econômico
das embalagens, bem como sobre seus efeitos ideológicos, mas
deixaremos isso para outros pesquisadores. O que nos convoca
nelas são as imagens de sabor, de sensibilidade e de nacionalidade.
São não coincidentes com imagens impressas na memória.

f. Explicando com os recortes linguísticos:Recheio com fruta. Dá até


pra sentir.

g. Exportado do Brasil para os brasileiros.

No primeiro recorte, da embalagem que faz propaganda do


Baton, estaria colocada uma possibilidade não materializada de
uma redundância lógica: se o produto se chama Baton Creme
Morango, seria evidente que haveria fruta. Se houvesse fruta, seria
evidente que “daria para sentir”.
No segundo recorte, da embalagem do Café Leão, estaria
colocada uma possibilidade não materializada de contradição
lógica: se o produto é exportado do Brasil, não poderia ser para
os brasileiros.
Como já adiantamos, os respectivos efeitos de redundância
lógica e de contradição lógica não se materializam, embora este-
jam no rol de possibilidades. Parece-nos que há uma determinação
cultural, em embate com o ideológico, que impede os impedem.
No caso do Baton, define-se aquilo que o sujeito sente, aquilo
que é alimento, aquilo que é fruta, aquilo que é genuíno em sua
alimentação, tudo determinado por diretrizes culturais que dizem
da relação do sujeito com os objetos que ele consome. Que dita
o que são os objetos, em sua legitimidade e em sua tentativa de
simulação da legitimidade: veja-se que há um pressuposto nisso
tudo. Se não se provoca estranhamento ao se dizer “Dá até pra

280
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

sentir” a fruta na embalagem de um produto que se qualifica como


de morango, é porque é completamente aceitável que a comida
não é “de verdade”.
Ou seja: é possível dizer, com essas determinações culturais
circulantes em nossa formação social que, na indústria alimentícia,
X não é X. E, quando X for X, é necessário dizer da legitimidade
do produto. Esse mesmo funcionamento se repete, por exemplo,
em embalagens de sucos concentrados ou em pó, que apresentam
como slogan enunciados do tipo “Com fruta de verdade”, ou em
embalagens com enunciados do tipo “Com pedaços de verdade”.6
No caso da embalagem do Café Leão, a possibilidade de
efeito de contradição lógica é bloqueada. Se o café é exportado
do Brasil, será que se trata de um produto para os brasileiros?
Nessa embalagem, sim. E decorrem disso algumas questões: há
brasileiro mais brasileiro que brasileiro? Por que não apenas
dizer “café tipo exportação”? Porque há um pressuposto aí, que
diz respeito à relação do sujeito brasileiro com sua nacionalidade,
de que o que segue para fora não serve para quem está dentro.
E, se o sujeito está entre aqueles que podem compartilhar de um
produto alimentício (melhor) voltado para o público externo, ele
é mais brasileiro. E menos brasileiro.

3. Uma possível contribuição

Iniciamos este artigo mostrando como a investigação da noção


de cultura em AD poderia se inscrever numa conjuntura desma-
terializante, gramaticalizante da Análise do Discurso. Esperamos
ter demonstrado que não é o caso.
Com tudo que expusemos mais atrás, depreende-se que mes-
mo os valores de lógica estão desenhados em culturas com distintas
filiações culturais e, portanto, com diferente produção ideológica de
evidências. Estamos tomando, assim, a cultura como constitutiva,
6 Esse enunciado também possuiria uma ambiguidade lógica muito produtiva, que é impedida
pelas determinações culturais: pedaços [de y] de verdade ou pedaços [Ø] de verdade. Para
efeito de humor: parece-nos mais convincente a segunda interpretação: há, nesses produtos
alimentícios, apenas pedaços de verdade, nunca um alimento de verdade mesmo, de verdade
verdadeira.

281
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

e em busca de funcionamentos discursivos que possam mostrar e


marcar essa constituição. Os critérios da lógica não são universais
nas línguas, e que não dependem somente de fatores gramaticais.
A ideologia, a cultura, o inconsciente determinam o que é uma
contradição, o que é uma redundância, o que é uma ambiguidade. As
embalagens alimentícias recortadas para esse trabalho são uma
possibilidade de investigar isso.
No campo da análise do discurso e com a contribuição das
reflexões da antropologia para pensar nas questões de e em cultura
na AD, não se trata de nos perguntarmos como o brasileiro vai
sendo significado, ou como o morango vai sendo significado, mas
como propriamente o “ser”, o “sentir”, o “fazer” e outros processos
vão ganhando seus contornos. Nesse sentido, pensarmos numa
noção de cultura em AD implica em adotarmos como categoria
analítica designações, mas principalmente categorias que não são
tomadas como lexicais, que são infralexicais. Trata-se de regras
que não formam unidades (como as regras de lógica, que determi-
nam a formação de sentenças), bem como de unidades não lexicais,
como morfemas e palavras gramaticais (para, por exemplo, nos
questionarmos sobre as determinações culturais para a constitui-
ção de gêneros, de sexos, de tempos, de lugares etc.).
Curiosamente, embora esperemos — e lutemos para — não
gramaticalizar a AD com o adensamento de uma noção de cultura
na disciplina, talvez seja necessário, para alcançarmos as fronteiras
teórico-analíticas de tal conceito, justamente retornarmos à gra-
mática, àquilo que há de mais fascista (nos termos de Barthes) na
língua, e que com pouco trabalhamos em nossas análises, mas que
nos parece, por enquanto, materializar as determinações culturais
nas formações sociais. Se com este artigo tivermos cumprido isso
mostrando as determinações culturais em algumas regras lógicas,
já nos damos por satisfeitos.

282
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Referências

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Campos, v. 6, 2005.
BARRETO, Therezinha. Lexicalização e gramaticalização: processos
independentes ou complementares? In: LOBO, T., CARNEIRO, Z.,
SOLEDADE, J., ALMEIDA, A., RIBEIRO, S. (Orgs.). Rosae: linguística
histórica, história das línguas e outras histórias [online]. Salvador:
EDUFBA, 2012.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. “Os pronomes cosmológicos e o
perspectivismo ameríndio”. In: Mana, v. 2, n. 2. Rio de Janeiro:
1996. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0104-93131996000200005#sup15
COURTINE, J-J. Le discours introuvable: Marxisme et linguistique (1965-
1985). Histoire Épistémologie Langage. Tome 13, fascicule 2, 1991.
pp. 153-171.
DIAS, Luiz Francisco. “Enunciação e regularidade sintática”. In: Cad.Est.
Ling., Campinas, 51(1): 7-30, Jan./Jun. 2009.
ESTEVES, Phellipe Marcel da Silva Esteves. “Cultura recobre ideologia?
Notas para uma reflexão discursiva”. Inédito. S/d.
FIGUEIRA, Luís Fernando Bulhões. Há uma via para a análise de discurso
fora da gramaticalização e da desmarxização?. In: Anais do VI Seminário
de Estudos em Análise do Discurso 1983 - 2013 – Michel Pêcheux: 30
anos de uma presença. Porto Alegre: 2013. Disponível em: http://
anaisdosead.com.br/6SEAD/SIMPOSIOS/HaUmaViaParaAAnalise.pdf
HIRST, Paul. Ideology, Culture and Personality. In: Canadian Journal of
Political and Social Theory/Revue canadienne de theorie politique et sociale,
Vol. 7, Nos. 1-2. Inverno/primavera de 1983.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. 2. ed. Trad.: Beatriz Perrone-
Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2010 [1964].
WHORF, Benjamin Lee. “O universo segundo o modelo dos índios
hopis”. Trad.: Phellipe Marcel. In: Linguasagem, 18. ed. São Carlos:
UFSCAR, 2011 [1950]. Disponível em: http://www.letras.ufscar.br/
linguasagem/edicao18/artigos/006.pdf

283
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

OS SENTIDOS SOBRE O (TRABALHO DO) PALHAÇO


DE HOSPITAL NO DISCURSO JORNALÍSTICO

Fernanda Luzia Lunkes


Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB)

1. Considerações iniciais

O presente trabalho contempla aspectos da pesquisa de inicia-


ção científica intitulada “O imaginário sobre o palhaço e(m)
sua circulação em espaços de saúde”, que está sendo desenvolvida
com Jorge Miguel Lage Cerqueira, estudante do Bacharelado
Interdisciplinar de Saúde, com apoio do PIBIPCI/UFSB. Este
projeto tem como objetivo mais amplo situar a imagem produzida
pelo discurso jornalístico sobre o palhaço de hospital. Compreen-
demos que, ao apontar para alguns funcionamentos do discurso
jornalístico, podemos situar seus agendamentos e os gestos de
interpretação em jogo sobre o palhaço de hospital e sua circulação
pelo espaço de saúde.
De modo mais específico, nos dedicamos em apontar para
alguns processos de reconhecimento e estranhamento (NECKEL,
2010) produzidos pelo discurso artístico em espaços de saúde, bem
como para os efeitos de sentido produzidos pelo corpo discursivo
(FERREIRA, 2011) do palhaço na relação com os efeitos de am-
biência de espaços de saúde.

285
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

2.Breve histórico de um projeto e(m) uma posição teórica

O investimento nesta pesquisa foi motivado a partir da entra-


da no projeto contemplado pelo Edital de Seleção do Programa de
Educação pelo Trabalho para a Saúde/PET-Saúde-GraduaSUS,
de iniciativa do Ministério da Saúde. Trata-se de um projeto in-
terdisciplinar, fruto de uma parceria entre a Universidade Federal
do Sul da Bahia (UFSB) e as Secretarias Municipais de Saúde de
Itabuna e Ilhéus. Há uma grande afinidade com os princípios dos
Bacharelados Interdisciplinares em Saúde da UFSB: articulação
universidade/sistema de saúde; ênfase nos conceitos de saúde,
promoção da saúde, princípios e diretrizes do SUS. O projeto
mais amplo abarca grupos cujos subprojetos, com distintos te-
mas, objetivos e públicos-alvo, se congregam nesta ampla frente
de atividades.
As ações de trabalho, com o principal objetivo de colocar o
discurso artístico em circulação, se filiam ao subprojeto “Comu-
nicação, Educação, Humanização e Promoção da Saúde”, e estão
sendo desenvolvidas na cidade de Itabuna, em Unidades Básicas
de Saúde e em instituições de ensino próximas àquelas unidades.
A título de exemplo, citamos o trabalho com o Bumba-meu-boi
que está acontecendo em uma escola estadual. A palhaçaria é ou-
tra prática artística desenvolvida e que recebeu, inclusive, alguns
investimentos por parte do grupo, como a realização de workshops
e oficinas destinadas a professores e estudantes interessados em
desenvolver técnicas relativas à palhaçaria.
Analisar os efeitos da circulação da arte a partir de uma
perspectiva discursiva implica em uma tomada de posição que,
conforme Mariani (2011), produz uma desconstrução de sentidos
naturalizados. Este horizonte teórico constrói uma trajetória que
coloca em relevo os sentidos hegemônicos colocados em jogo no
processo discursivo e aponta para a historicidade na produção de
tais evidências.
Esta posição compreende que simbólico e político atuam em
confronto, compreendendo-se o político como as injunções e as

286
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

divisões de sentidos, o modo como são simbolizadas as relações de


poder, fazendo comparecer, também, o equívoco. Esta é uma posição
forte e consequente. A partir da leitura empreendida por Mariani
(2011) do texto de Pêcheux, compreendemos que se trata de uma
“escuta social” de um trabalho institucionalizado, cujo gesto de
leitura resiste à imagem de uma ação beneficente ou assistencial,
do sujeito como fonte de criação, da transparência dos sentidos da
linguagem. Com tal perspectiva coloca-se em suspenso, por exemplo,
evidências que comparecem em diferentes condições de produção
sobre a relação palhaçaria-espaços de saúde e que produzem, por
exemplo, a evidência de que a presença do palhaço garantiria a
comicidade. Avançando em um possível movimento nos sentidos,
coloca-se como evidente que a presença do palhaço contribuiria para
a melhoria dos efeitos de ambiência do espaço de saúde, do quadro
de saúde dos pacientes e contribuiria ainda para a humanização na
saúde. Tal produção de evidências pode implicar em movimentos
outros, tais como regulamentações jurídicas. Este é o caso, por
exemplo, da Argentina, que a partir de 2015 tornou obrigatória a
presença de palhaços em hospitais públicos com serviço de pediatria1.
Não iremos nos aprofundar, neste momento, no conceito de
humanização na saúde, que merece um estudo próprio, mas vale
destacar que o trabalho com palhaçaria vem sendo significado
fortemente em aliança com conceito de humanização. Este termo
comparece no título “Política Nacional de Humanização”, criada em
2003 pelo Ministério da Saúde. De acordo com Benevides e Passos
(2009, online), a humanização se caracteriza enquanto “processo
de subjetivação que se efetiva com a alteração dos modelos de
atenção e de gestão em saúde”. No entanto, estes mesmos auto-
res, em outro estudo, advertem para a imagem do “bom humano”
(BENEVIDES; PASSOS, 2005) que ganha relevo nestas práticas,
o que significaria, na relação com o trabalho de palhaçaria, por
exemplo, produzir sentidos de caridade. Pode-se apontar para o
atravessamento de uma formação discursiva religiosa no discurso
sobre saúde pública.

1 Matéria disponível em <http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,lei-argentina-


obriga-trabalho-de-palhacos-em-hospitais,1748314>. Acesso em 20 de jun. 2017

287
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Em relação ao palhaço, vale ressaltar que o corpo discursivo


(FERREIRA, 2011) pode produzir também um outro efeito, o de
horror. O imaginário, que transforma relações sociais, constitui
práticas (ORLANDI, 1994, p. 57) e atua, conforme Mariani (1998,
p. 33), como “[...] uma espécie de ‘reservatório’ de sentidos para o
sujeito”, funciona, em relação ao palhaço, em um tenso jogo entre
alegria e terror, posto que vários objetos culturais, como livros e
filmes, apresentam o palhaço como evidência de terror. Para ficar
em dois exemplos, o livro It, de Stephen King, e o filme Poltergeist
fazem comparecer o palhaço como personagens alinhados a sen-
tidos de medo e terror.
Colocamos em questão algumas das tensões em jogo no dis-
curso sobre o palhaço para destacar que não se trata de assumir
uma posição favorável ou desfavorável em relação à circulação de
palhaços em hospitais e em espaços de saúde, mas sim de apontar
para os modos de formulação acerca desta circulação no discurso
jornalístico, para as evidências que são colocadas a circular, posto
que a mídia atua enquanto “lugar privilegiado de constituição e
divulgação de efeitos de sentido” (DELA-SILVA, 2012, p. 180).
Produzir este gesto de leitura do discurso jornalístico dá con-
dições para que o leitor esteja advertido de alguns critérios nos
movimentos de sentidos produzidos pela mídia. As considerações
feitas articulam-se ao estudo de Gallo, que afirma:

Conhecer esse funcionamento permite ao sujeito leitor


das mídias uma leitura crítica, por meio da qual se pode
tomar posição. Não uma posição favorável, ou contrária,
em relação ao conteúdo veiculado, mas uma posição
mais consciente daquilo que está determinando os seus
sentidos, aquilo que permite que determinado texto faça
sentido, daquilo que explica por que o sentido é esse, que
se apresenta, e não outro (GALLO, 2011, p. 01-02).

Para situar esse funcionamento, elegemos como um dos pon-


tos fundamentais de análise as formações imaginárias construídas
sobre o palhaço de hospital no discurso jornalístico. De acordo
com Pêcheux (1997), todo processo discursivo é constituído pelas

288
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

formações imaginárias, que são as projeções em jogo dos lugares


de A e B, empreendimento teórico que, em consequência, produz a
opacificação do “esquema informacional” formulado por Jakobson.
De acordo com Pêcheux, há imagens de A e B que funcionam como
questões implícitas e que possibilitam o processo discursivo, já que
nestas imagens estão projetados lugares sociais: o lugar daquele
que formula o dizer, o lugar daquele para quem se diz e também o
lugar daquilo sobre o qual se formula o dizer, o referente. Pêcheux
destaca que as projeções em jogo permitem uma tomada de posição
do processo discursivo ao mesmo tempo em que descarta uma
concepção que as tornaria “apreensões perceptivas” (PÊCHEUX,
1997, p. 85) dos sujeitos.
Mobilizaremos a imagem que o discurso jornalístico constrói
sobre a circulação do palhaço em espaços de saúde, correspondendo
à imagem que o sujeito do lugar A (a instituição/jornal) faz sobre o
referente R, ou seja, aquilo sobre o qual incide o dizer dos jornais,
o palhaço. Neste caso, a questão implícita é a seguinte: “De que
lhe falo assim?”. A expressão que resume o funcionamento deste
processo, de acordo com Pêcheux, é “IA(R)”.
Mariani (1998, p.62) afirma que “no discurso jornalístico
mascara-se um apagamento da interpretação em nome de fatos que
falam por si”. Desta maneira, no que se diz e no modo como se diz
funcionam também as evidências de informatividade e objetividade
e ficam silenciadas as tomadas de posição e as relações de poder.

3. Construção e análise do corpus

Para a análise, foi realizada uma busca na web com a expressão


“palhaço de hospital matéria jornalística”. É preciso considerar
que os termos eleitos filiam-se a redes de memória e a disputas
ideológicas. De acordo com Pêcheux (2010, p.56), a memória é
“[...] um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamen-
tos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de
desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos.”.

289
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Não se pode desconsiderar que a busca se fez na internet, que


produz outro efeito de opacidade. O processo se submete à leitura
do arquivo informatizado, ainda que o sujeito esteja investido de
uma ilusão de que seu percurso de leitura é feito com liberdade
(GRIGOLETTO, 2010).
Ainda em relação aos procedimentos da pesquisa, o corpus em-
pírico se compõe de três matérias que comparecem nos primeiros
resultados da pesquisa: do G1, com uma matéria de 2016, do Jornal
O Dia, com matéria de 2014, e da agência J. Press de Reportagens,
com matéria de 2012. Para este trabalho, os recortes empreendidos
voltam-se aos títulos das matérias. De acordo com Maia (2003,
p. 54), o título de reportagens, comumente uma materialidade de
pequena extensão, funciona fortemente enquanto atrativo para o
leitor, daí ser o ponto nodal no qual se constituem “estratégias
enunciativas para a produção de sentidos” (ibid.). Traremos os
títulos recortados:

(1) Turma ‘Doutores Palhaço’ leva alegria para clínicas e hospitais de MS


(G1, 10/08/2016)
Link: http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2016/08/turma-
doutores-palhaco-leva-alegria-para-clinicas-e-hospitais-de-ms.html

(2) Palhaços doutores levam alegria a pacientes em Hospital de Itaboraí


(O Dia, 26/09/2014)
Link:http://odia.ig.com.br/odiaestado/2014-09-26/palhacos-doutores-
levam-alegria-a-pacientes-em-hospital-de-itaborai.html

(3) Trabalho voluntário: a felicidade levada a sério


(Agência J. Press de Reportagens, 06 de novembro de 2012)
Link: http://jpress.jornalismojunior.com.br/2012/11/felicidade-levada-
serio/

Os títulos das matérias mobilizam uma direção hegemônica


de sentidos relacionada ao palhaço, inscrevendo-o em efeitos de
comicidade, de produção do riso, com formulações que trazem os
mesmos termos, como o verbo “levar” e o substantivo “alegria”.
De acordo com Pêcheux, o riso inscreve o político. Definido pelo
autor como “[...] gestos (atos no nível simbólico)” (PÊCHEUX,

290
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

1997, p. 78), o riso, assim como o aplauso, o assobio, o tumulto,


tem força em sua significação à medida que pode produzir em um
dado processo discursivo efeitos de apoio, por exemplo.
Tal evidência está fortemente relacionado ao corpo discursi-
vo do palhaço, que em seus rituais de composição se coloca como
materialidade privilegiada para um estranhamento, uma ruptura
dos efeitos de ambiência que marcam os espaços de saúde. A
expressão rituais de composição abrange aqui os processos de
constituição do palhaço, dentre os quais destacamos as designações
(o nome do palhaço), os tipos de palhaço (o de hospital, o bufão,
entre outros), o conjunto de objetos que produzem as evidências
acerca do palhaço (o nariz, as cores e o modo como são dispostas
no corpo, o chapéu etc.).
O funcionamento dos títulos acerca da alegria produzida
pelo palhaço se faz possível pela evocação de um pré-construído
acerca dos espaços de saúde, que possibilita o efeito hegemônico
do estranhamento do palhaço em relação a este espaço e, neste
jogo, silencia um possível reconhecimento com os sentidos de
terror. Courtine (2009) explica que o pré-construído funciona
pela remissão “às evidências pelas quais o sujeito se vê atribuir os
objetos de seu discurso: ‘o que cada um sabe’ e simultaneamente
‘o que cada um pode ser’ em uma dada situação”. Deste modo, na
relação de cumplicidade que o discurso jornalístico estabelece
com o leitor funciona como sendo da ordem da obviedade que o
palhaço traga alegria, “afinal, todos sabemos que um hospital ou
um espaço de saúde é triste, deprimente, mostra diferentes formas
de dor e sofrimento”.
O espaço de saúde é baseado no trabalho de Orlandi (2009,
p.16), sobretudo às noções de “enquadramento” e “ambiência”. A
autora afirma que o espaço enquadra o acontecimento, produzin-
do sentidos. A relação significativa que o sujeito estabelece com
o espaço se situa nas condições de produção que, por sua vez,
determinam os diferentes modos pelos quais o sujeito experencia
o espaço.

291
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Com esta perspectiva, evoca-se lateralmente a suposta


alegria a ser garantida pelo comparecimento do palhaço na re-
lação com o sofrimento e a tristeza do espaço de saúde e com a
objetividade técnica do discurso médico, que concentra seu olhar
em um corpo biológico (ILLICH, 1975). Se para alguns fins e
tratamentos específicos possui sua validade, essa “objetivação da
dor” deixa de interrogar, como afirma Illich (ibidem), o sofrimento
do paciente, produzindo, em consequência, um gerenciamento
que atua na “medicalização do sofrimento” (ILLICH, 1975, p.135)
e no silenciamento (ORLANDI, 2002) de práticas discursivas
com as quais se produzam sentidos outros em relação ao espaço
hospitalar.
Em seus processos de formulação, o discurso do palhaço
pode produzir um efeito positivado e potencializador do riso em
espaços hospitalares ao se colocar em jogo um movimento de rir
com e não rir de, conforme aponta Soares (2007, p.89), cuja tese
analisa o riso e a presença do palhaço em espaços hospitalares.
Neste engendramento, os modos de constituição e funcionamento
do corpo discursivo do palhaço são fundamentais para os proces-
sos de reconhecimento e estranhamento, colocando o riso, assim,
como possibilidade.
Este efeito pronto de comicidade produzido sobre o palhaço
opera de modo a silenciar algumas tensões que já foram abordadas
anteriormente neste texto, como, por exemplo, no que se refere
aos efeitos de medo e terror que podem ser produzidos a partir
do (corpo discursivo do) palhaço. Nesta produção de efeitos de
sentido, retomamos uma busca realizada em 2016 com imagens
no Google a partir do termo ‘palhaço’, cujos resultados apontaram
para uma forte regularidade de imagens nas quais os rituais de
composição do corpo discursivo do palhaço inscreviam-no em
uma discursividade de terror. Assim, para retomar Neckel (2010),
o imaginário do corpo discursivo do palhaço atua no batimento
entre reconhecimento e estranhamento, em um jogo polissêmico
de sentidos, descontruindo esses efeitos de garantia sobre a co-
micidade diante de seu comparecimento.

292
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Ao estabelecer relações de sentidos com as designações e


adjetivações dos grupos de palhaços de hospital, por meio do uso
do termo ‘doutores’, tem-se um efeito no qual, embora possa se
reivindicar uma espécie de legitimidade tal como atribuída aos mé-
dicos e profissionais de saúde, inscreve-se de maneira polissêmica
posto que o corpo discursivo do palhaço e suas práticas discursivas
são deslocadas da prática médica, corroborado também pelo uso
do nariz e de outros elementos que compõem o corpo discursivo
do palhaço.
A terceira matéria traz em sua formulação outros efeitos de
sentido ao mobilizar uma relação entre trabalho, seriedade e pa-
lhaçaria. Produz-se o efeito de que o corpo discursivo do palhaço,
ao circular no espaço hospitalar, inscreve este sujeito que ocupa
a posição palhaço em um outro lugar hierarquicamente superior
na relação com a alegria a ser produzida com e para os outros
sujeitos que circulam pelo espaço de saúde.
O termo ‘trabalho’ atua como uma pista do que está em jogo
nesta relação: uma atividade feita em um espaço delimitado, com
efeitos de enquadramento e ambiência determinados. Há a valo-
rização na atuação deste palhaço em relação a outras possíveis
atuações, o que permite compreender que práticas artísticas não
escapam à ordem do político. Assim, se o trabalho do palhaço de
hospital ganha relevância em relação a outras práticas de palhaça-
ria, há também a possibilidade de outros contornos hierárquicos
à produção da felicidade, que nesta prática seria mais importante,
ao mesmo tempo em que silencia as condições e as contradições
histórico-materiais para os efeitos de ambiência produzidos nos
espaços de saúde. Além disso, há que se destacar o uso do termo
‘voluntário’ para se falar deste trabalho, ou seja, uma atividade sem
remuneração e que é significada na matéria como sendo “levada a
sério”. Este modo de interpretar o trabalho com palhaçaria traz
vestígios da discursividade religiosa e que inscreve um trabalho
e um sujeito relacionados à caridade.
Neste funcionamento discursivo, sob o efeito de evidência
de transparência da linguagem, do sujeito e da constituição dos

293
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

espaços, um trabalho com o discurso artístico e com o palhaço em


espaços de saúde inscreve-se em uma ação utilitária e, portanto,
mais séria, e por isso, pode e deve ser mais valorizada, produzindo
uma escala valorativa da arte a partir de sua função.

4. Considerações finais

Para encerrar este texto, gostaríamos de enfatizar que a


imagem produzida sobre o palhaço no discurso jornalístico colo-
ca como evidente a produção de efeitos de alegria e comicidade.
Os títulos das matérias, que pela sua extensão e funcionamento,
são importantes ao modo de construir uma notícia, trazem este
funcionamento em sua formulação. Coloca-se em relevo aqui uma
equação linguística (MARIANI, 1998) que pode ser formulada da
seguinte maneira: palhaço+hospital=alegria.
Também é interessante observar como o trabalho, voluntário
vale dizer, com palhaços em espaços de saúde nos coloca a ver
inscrita uma discursividade religiosa, que produz, assim, efeitos
de sentido de caridade, do “bom humano”, e que deixa de dizer,
neste processo de formulação, acerca da formação e dedicação
necessárias a este trabalho. Tal imagem pode deslizar e produzir
relações de sentidos com o conceito de humanização, que pode ser
associado a caridade.
Pode-se assim compreender que as práticas artísticas não
escapam à ordem do político e que estão em jogo algumas tensões
sobre o palhaço de hospital no discurso jornalístico: uma prática li-
gada à caridade, mas que exige estudo/treinamento; sua circulação
atua como garantia de alegria ao espaço de saúde; há a imagem de
um trabalho superior a outras práticas de palhaçaria, o que possi-
bilita, também, contornos hierárquicos à produção da felicidade,
ao mesmo tempo em que silencia as condições e as contradições
dos efeitos de ambiência produzidos nos espaços de saúde.

294
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

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Análise de Discurso em Rede:
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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

A METÁFORA DA JARARACA E SUAS


RESSONÂNCIAS: ENTRE PISAR O RABO
OU A CABEÇA

Andréia da Silva Daltoé


Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul)

1. Questões introdutórias

N a tese (DALTOÉ, 2011), trabalhamos as metáforas de Lula


(ML) e o modo como, durante seus dois mandatos, produ-
ziram forte mexida nos sentidos da língua política no Brasil. As
críticas a respeito tratavam o uso de metáforas pelo presidente
como algo estrategicamente produzido para enganar, um erro, um
absurdo, enfim, desviavam a questão do sentido para um purismo
linguístico em relação ao modo correto de um presidente se ex-
pressar. Com nossa análise à época, vimos que este efeito de sentido
encobria algumas dificuldades como: aceitar alguém sem estudo
governando o Brasil e com tamanha habilidade discursiva; com-
preender as relações estabelecidas entre coisas não semelhantes
(em se falando de uma língua política hermética): economia/roda
gigante; contenção de despesas/torneira amarrada com pedaço
de pano; crise/diarreia, etc.; perceber um novo interlocutor que
antes não era pressuposto nos assuntos da vida política do País.
A mídia e/ou opositores políticos, empenharam-se e empe-
nham-se até hoje em tentar traduzir o que estas metáforas querem
dizer, como se fosse necessário desvendá-las para descobrir o seu
“real” sentido; ou mesmo para desfazê-las, restabelecendo a norma-
lidade da língua, porque isso não seria o modo adequado de falar a

297
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

um presidente da república. Isso toca no que Paveau (2015, p. 36)


discute como uma moral da linguagem: “as observações normativas
e puristas sobre a língua, que constituem um importante discurso
social nas culturas com letramento, muitas vezes estão impreg-
nadas de moral”. Para a autora (2015, p. 37), a avaliação moral da
língua vai ocupar um importante papel na higiene verbal, o que
leva à ilusão de se poder usar as palavras em seu sentido próprio.
Interessante então pensar como as críticas às ML se funda-
mentam no argumento do modo adequado de falar, sem rodeios, de
forma literal, levando os debates travados sobre as ML para uma
questão de purismo linguístico. Trata-se do que Pêcheux (2011,
p. 144) toma como uma leitura enquanto tratamento da informa-
ção, que, mesmo sendo em torno de sequências orais, coloca-se
como capaz de construir o sentido adequado, por referência a um
universo discursivo logicamente estável. Para o autor, o sujeito
compreende uma sequência se, a partir de sua literalidade, conse-
gue efetuar inferências que remetam a um “não-dito logicamente
reconstruível” (2011, p. 144).
Compreendemos que este tipo de leitura apresenta dois
pressupostos: todo sujeito enunciador é autônomo em relação
à língua, tem plenos poderes sobre sua fala e, em contrapartida,
seu interlocutor consegue, com base na literalidade das palavras,
inferir o sentido logicamente localizável.
No caso das repercussões que causam determinadas ML,
vimos como é recorrente um trabalho de interpretação que se
resume na defesa de um purismo linguístico. Todavia, para nós,
tal efeito desloca significativamente o que realmente importa: o
trabalho do político na língua, ou seja, as relações de poder tra-
vadas nesta arena, independentemente de qualquer normatização.
Consideramos que as ML vão, de algum modo, infringir as regras
da língua de madeira de estado (GADET e PÊCHEUX, 2004),
que, por sua vez, vai trabalhar na tentativa de, conforme Orlandi
(2002), “se apagar sentidos, de se silenciar e de se produzir o não-
sentido onde ele mostra algo que é ameaça” (2002, p. 14).

298
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Daí nossas questões: de que ameaça se trata? Por que deter-


minadas ML se transformam numa espécie de rastilho de pólvora
na cena política? Ou seja, o que faz com que determinadas metá-
foras, depois de ganharem a mídia, continuem ressoando envoltas
à forte polêmica?
É observando, então, o que Zoppi-Fontana (2011, p. 67) nos
traz como “a língua praticada no exercício do poder”, que objetiva-
mos, aqui, investigar as repercussões de uma ML em específico, a
metáfora da jararaca, que, desde proferida, provocou forte polêmica
no cenário político atual.
Nossa hipótese é de que, a partir dessas repercussões (tomadas
como sequências discursivas (Sd)) oriundas do discurso midiáti-
co, religioso e jurídico, e do modo como acontece o trabalho de
leitura por estes segmentos da sociedade, possamos compreender
um pouco mais do funcionamento da cena política brasileira. Pro-
curaremos, para isso, problematizar a noção de leitura enquanto
tratamento da informação literal, pois acreditamos, conforme
Pêcheux (2011, p. 146), que “o não-dito da sequência não é, assim,
reconstruído sobre a base de operações lógicas internas, ele re-
mete aqui a um já-dito, ao dito em outro lugar”, mas um “espaço
privilegiado de inscrição de traços linguageiros discursivos, que
formam uma memória sócio-histórica”.

2. A metáfora da jararaca

Em 04 de março de 2016, Lula foi conduzido coercitivamente


pela Polícia Federal, a partir de decisão do Juiz Sérgio Moro, para
depor sobre a Operação Lava Jato, que vem apurando denúncias
de corrupção na Petrobrás.
A repercussão do depoimento dividiu opinião na própria área
jurídica, entendendo muitos dos operadores do direito que, para
Lula sofrer uma condução coercitiva, ou seja, ser levado à força
para depor, só depois de cumpridos determinados trâmites que, no
caso, não aconteceram. Ele não havia sido intimado antes e/ou fal-
tado a alguma audiência. O ministro do Supremo Tribunal Federal

299
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

(STF), Marco Aurélio Mello, chegou a classificar a condução como


“ato de força”. O Ex-presidente da OAB-Rio, o deputado Wadih
Damous (PT-RJ) preferiu o termo “sequestro” (PASSOS, 2016)1.
Após ter sido ouvido pela Polícia Federal no Aeroporto de
Congonhas, Lula foi liberado e se dirigiu até a sede nacional do
PT, onde fez um pronunciamento, transmitido via internet pela
Rede TVT2, em que manifestou sua indignação com a condução
coercitiva. De sua fala, um enunciado vai repercutir em diferentes
esferas: a metáfora da jararaca, conforme observamos a seguir:

Sd 1: Se quiseram matar a jararaca, não bateram na cabeça, bateram


no rabo, e a jararaca tá viva como sempre esteve. (Lula, 04/03/2016).

Embora outras metáforas também tenham surgido na entre-


vista, a Sd 1 é a que vai produzir forte repercussão nos cenários
midiático, religioso e jurídico. É a metáfora da jararaca que vai
ganhar as redes sociais e as páginas da grande mídia e aquela que,
para nós, pode nos ajudar a discutir um pouco o momento tão
conturbado da política brasileira.
Lula lança mão da figura biológica do réptil, que, mesmo de-
pois de partido ao meio, consegue sobreviver por volta de 1 hora
e, inclusive, como instinto de defesa, morder uma presa ou alguém
que estivesse perto. A figura da jararaca, que sobrevive mesmo
despois de atingida, portanto, vai imediatamente ser produzida
como uma ameaça de Lula em voltar ao cenário político atual, o
que significaria sua candidatura em 2018. A jararaca tá viva (Sd
1) anuncia, portanto, um agora eu vou concorrer às próxima eleições.
Desse modo, a metáfora serve como uma resposta à condução co-
ercitiva, mas também como um aviso de que Lula estaria de volta.
Interessante observar que, em princípio, a polêmica em torno
da ML não vai cair, explicitamente pelo menos, na preocupação
com a literalidade das palavras, ou com o modo de falar, nem mes-
mo em relação à força que Lula teria ou não em ganhar as eleições
1 In: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-que-justifica-a-conducao-coercitiva-
de-Lula-/4/35629> Acesso em 04/03/2016.
2 In: https://www.youtube.com/watch?v=oMQCkqn6zaM> Acesso em 04/03/2016.

300
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

em 2018. Os sentidos reverberam e vão parar em outros lugares,


e é a direção deles que nos interessa investigar, considerando que
eles vão funcionar totalmente implicados com as condições de
produção do momento político pelo qual passa o país.
Passamos, então, às discursividades que vão fazer trabalhar
um acontecimento, segundo Pêcheux (2006, p. 28), “entrecru-
zando proposições de aparência logicamente estável, suscetíveis
de resposta únivoca (é sim ou não, é x ou y, etc) e formulações
irremediavelmente equívocas”:

2.1 As discursividades trabalhando o acontecimento:


o discurso midiático, religioso e jurídico

Em relação ao discurso midiático, no mesmo dia em que Lula


faz o referido pronunciamento, o colunista da Veja Reinaldo Aze-
vedo (2016)3 publica em seu blog4 o texto intitulado5:

Sd 2: Discurso de Lula segue organizado e perigoso. Atenção para a


metáfora da serpente6.

O atenção para a metáfora da serpente alerta sobre a necessidade


em desvendar o que estaria por trás de suas palavras de Lula. Não
é a primeira vez que as ML aparecem como algo a ser decifrado,
na tese também observamos esta leitura. Ater-se à metáfora da
serpente significaria, aí, atentar-se para o fato de que Lula volta
em 2018. Mas, e principalmente, vamos perceber que, na Sd 2, a
metáfora da jararaca já aparece como incorporada ao vocabulário
de Azevedo e passa a trabalhar menos como uma promessa da
candidatura de Lula e mais como, estando isso certo, cabe a todos
combate-lo o que segue organizado e perigoso.

3 Sabemos que fica bastante complicado dizer que Reinaldo Azevedo representa a mídia como
um todo, não é esta nossa intenção, mas vamos poder aqui selecionar apenas uma repercussão
de cada um dos segmentos sociais que fizeram trabalhar a ML.
4 In: http://www.redetv.uol.com.br/blog/reinaldo/> Acesso em 04/03/2016.
5 In: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/discurso-de-lula-segue-organizado-e-perigoso-
atencao-para-a-metafora-da-serpente/> Acesso em 05/03/2016.
6 In: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/discurso-de-lula-segue-organizado-e-perigoso-
atencao-para-a-metafora-da-serpente/> Acesso em 05/03/2016.

301
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Em relação ao discurso religioso, vamos poder observar mais


repercussão da metáfora da jararaca, precisamente no domingo
06 de março de 2016, quando o bispo auxiliar da Arquidiocese de
Aparecida, Dom Darci José Nicioli7, prega aos fiéis:

Sd 3: Peço meu irmão e minha irmã, a graça de pisar na cabeça da ser-


pente. De todas as víboras que insistem e persistem em nossas vidas.
Daqueles que se autodenominam jararacas. Pisar a cabeça da serpente.
Vencer o mal pelo bem por Cristo nosso senhor. Amém.

Preenchendo o daqueles (Sd 3) por Lula, vimos que a homilia


vai reafirmá-lo também como o mal a ser combatido pelo bem,
inscrevendo a jararaca, não como a promessa de volta de Lula ao
cenário político, mas como representante do satanás a ser banido
da terra. São sentidos que encontram abrigo no texto bíblico e,
portanto, remetem à inquestionabilidade da palavra de Deus:
Ao que Jesus lhes revelou: “Eu vi Satanás caindo do céu como
relâmpago. Atentai! Eu vos tenho dado autoridade para pisardes
serpente e escorpiões, assim como sobre todo o poder do inimigo, e
nada nem ninguém vos fará qualquer mal” (Lucas, 10:19). E, assim
como Azevedo conclama as pessoas a ficarem atentos à metáfora
da serpente (Sd 2), também o Arcebispo alerta seus fiéis à graça de
pisar a cabeça da serpente (Sd 3).
Fazendo trabalhar especificamente a fala do Arcebispo, Aze-
vedo também divulga um vídeo em seu blog, no qual imita Lula (o
jornalista faz isso com recorrência, em que ele fala com a língua
presa e, muitas vezes, esconde um dedo da mão em gestos carica-
tos) ao falar da jararaca, com uma TV atrás da bancada passando
a referida pregação de Dom Darci.
Azevedo ainda publica o outro texto em seu blog: Lula Jarara-
ca Guerra e Ódio – Baderneiros estão nas ruas para o confronto. Nós os
aniquilaremos com a paz!, de onde recortamos a seguinte sequência:

7 In: http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/bispo-de-aparecida-alfineta-lula-em-
missa-livrai-nos-das-jararacas-9n7svgpvhcm1af0lx019ycy77?ref=aba-ultimas> Acesso em
06/04/2016.

302
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Sd 4: Lula decidiu que vai controlar o Executivo, o Legislativo e o Judi-


ciário no berro. E, se preciso, vai fazer sangue correr em praça pública.
Como ele mesmo já havia dito por aí, “acabou o Lulinha paz e amor”.
Agora é “Jararaca Guerra e Ódio”. Os dois discursos irresponsáveis
que fez na sexta-feira, em que lançou sua candidatura à Presidência
e anunciou a sua marcha contra a Justiça, já têm desdobramentos.
Seus sectários estão nas ruas para o tudo ou nada. (Reinaldo Azevedo,
09/03/2016)

Jararaca, também aqui fazendo parte do vocabulário do


jornalista, passa a significar na “aparência logicamente estável”
(PÊCHEUX, 2006, p. 28) a grande tragédia, que vai fazer sangue
correr em praça pública. Como já observamos, novamente a metáfora
da jararaca importa menos enquanto promessa de candidatura em
2018 e mais como um mal a ser derrubado. Jararaca agora já é o
próprio sinônimo de guerra e ódio, o que vem entre aspas, sugerindo
que seria palavras do próprio Lula. Não se trata mais da dúvida se
seria ou não candidato, mas do modo como evitar que ele siga até
lá: a despeito da lei, numa marcha contra a Justiça (Sd 4).
Conforme Pêcheux (2006, p. 31), esses espaços discursivos,
tomados como logicamente estabilizados, refletem “propriedades
estruturais independentes de sua enunciação: essas propriedades
se inscrevem, transparentemente, em uma descrição adequada do
universo”. Trabalhando nesse conjunto de evidências, Azevedo
ajuda a consolidar a lógica disjuntiva em torno do que, em muito,
observamos no embate político atual: ou você é a favor de Lula e,
então, é comunista, petista, concorda com a corrupção do partido,
enfim, está do lado do mal; ou você é contra tudo isso e está do
lado do bem. É a luta que está travada, segundo Azevedo, nas ma-
nisfestações que estavam se organizando no Brasil, à época, contra
o impeachment da Presidenta Dilma, ou contra o golpe (expressão
que ele traz sempre entre aspas), lideradas por sectátios de Lula,
dispostos ao tudo ou nada (Sd 4).
Vemos, portanto, que o discurso midiático se apropria dos
saberes do discurso religioso e, assim, Azevedo e Dom Darci
filiam-se à mesma cadeia de sentido, à mesma memória discursiva
que retoma a serpente como representação do mal. A promessa/

303
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

ameaça de Lula ser candidato em 2018 se esvaece e vai deslizar


para: Lula e seus companheiros são o grande e único inimigo do
Brasil hoje.
Todavia, conforme Pêcheux (2006, p. 32), toda a cobertura
lógica, formada por um conjunto de proposições suscetíveis de se-
rem verdadeiras ou falsas, é atravessada por uma série de equívocos
e daí conseguimos observar, também segundo o autor (2006, p.
28), que os enunciados produzidos a respeito de um determinado
enunciado, no caso a metáfora da jararaca, não são independentes
dos enunciados produzidos a seu respeito, mesmo trocando seus
trajetos com outros tipos de objetos. Assim, mesmo os sentidos
migrando para a luta do bem contra o mal, da paz contra a guerra,
do ódio contra o amor, do crime contra a justiça, tais deslizamentos
não deixam de manter relação com o enunciado desencadeador
conforme nos traz Pêcheux (2006, p. 28): a ameça de Lula ganhar
a presidência novamente, e o fato de o poder8 não voltar para a
mão da elite que sempre governou o Brasil.
Isso mostra como os sentidos, mesmo trabalhados em torno
da univocidade, são atravessados pela equivocidade, efeito que já
estava sendo trabalhado há bastante tempo, principalmente depois
da reeleição de Dilma Rousseff em 2014, quando se começou a
negar o resultado legítimo das eleições, pois a direita9 fez aí uma
conta dos 20 anos que a esquerda ficaria no poder; depois, num
trabalho de destituí-la do cargo.
Por fim, passemos às reverberações da ML no âmbito jurídico:
uma grande parcela de operadores do Direito, imbuídos da missão
de salvar o país, também abraçaram a causa pró-impeachment e
ajudaram a oposição a fundamentar, nos termos da lei, as justi-
ficativas para o ato. A advogada Janaína Conceição Paschoal faz
parte do grupo e ficou conhecida por ser coautora (segundo ela
mesma, o PSDB pagou 45.000,00 pela peça processual), ao lado do
jurista Miguel Reale Júnior, do processo de denúncia que levou ao

8 Sabemos que esta elite continua no poder pelas alianças travadas, mas estamos aqui tratando
do poder que representa estar no comando, como presidente do País.
9 Sabemos que hoje é bastante complicado falar em direita/esquerda. Tomamos aqui os termos
na forma genérica que designam dois grandes lados na disputa pelo poder no Brasil.

304
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff pelo Congresso


Nacional. Vale destacar que ela é coautora, mas não é coadjuvante
dessa história. Miguel Reale não aparece, não se expõe, e deixa
lugar para a advogada se expor na grande mídia. E é dela que
trazemos uma das ressonâncias da ML no meio jurídico, cuja per-
formance, em poucos dias, ganhou a rede como campeã de memes.
Trata-se de uma fala de Janaína durante o ato de juristas a
favor do impeachment da Presidenta Dilma, organizado pelo mo-
vimento “Juristas pelo Impeachment”, no Largo de São Francisco,
na USP/SP, evento que acontece no mesmo dia em que Lula foi
levado para depor.
Numa fala bastante inflamada, Janaína não falava, gritava ao
microfone frases contra a dominação do PT, de Lula, de Dilma.
Chamaram a atenção seus gestos, rodando a bandeira acima da
cabeça em movimentos circulares, que iam para frente e para trás
no palco sucessivamente. Em meio ao que, em muito, se pareceu
com uma crise psicótica, a advogada organizou todo seu discurso
em torno da metáfora da jararaca. Vejamos alguns recortes10:

Sd 5: Nós queremos servir a uma cobra?

Sd 6: O Brasil não é a República da cobra.

Sd 7: Nós não vamos deixar esta cobra continuar dominando as nossas


mentes, as almas dos nossos jovens.

Sd 8: Meu pai Ricardo disse: Janaina, Deus não dá asas para cobra. E
aí eu disse para ele: Mas pai, às vezes a cobra cria asa, mas quando
isso acontece, Deus manda uma legião para cortar a asa dessa cobra.

Sd 9: Nós queremos libertar nosso país do cativeiro de almas e mentes.


Não vamos abaixar a cabeça para essa gente que se acostumou com
discurso único. Acabou a república da cobra!

Também desfiliando os sentidos da metáfora da jararaca como


candidatura de Lula, trocando seu trajeto com outros tipos de obje-

10 In: https://www.youtube.com/watch?v=Q67U-UKcias> Acesso em 10/05/2016.

305
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

tos (PÊCHEUX, 2006, 28), Paschoal traz para o discurso jurídico


uma leitura de vitória após a audição de Lula na Polícia Federal.
O verbo que utiliza não está no presente, nem no futuro, mas no
pretérito: Acabou a república da cobra! (Sd 9). Seu pronunciamento
vai fazer ressoar tanto o discurso midiático quanto o religioso
analisados anteriormente enquanto um discurso de salvamento:
Deus disse X (Sd 8); a justiça brasileira conseguiu atender a este
designío e libertou o país de um cativeiro de almas e mentes (Sd 9).
Novamente, a cobertura lógica da interpretação coloca em
jogo uma bipolarização simplista do ou isto ou aquilo: ou você faz
parte da república da cobra (Sd 6), ou você faz parte de uma outra,
a que esta remete em contrapartida; aquela que ficou conhecida a
partir dos trabalhos do juiz Sérgio Moro e seu grupo no Paraná,
em prol de um Brasil livre de corrupção: a república de Curitiba11.
A disjunção república da cobra/república de Curitiba vai tentar en-
cobrir a equivocidade, ignorando a origem etimológica do latim
res publica, a coisa pública, em sua representação popular. Ou seja,
ignoram-se os 54 milhões e meio de votos que Dilma recebeu, por
exemplo, e começa-se uma batalha para tirá-la do poder por meio
do que vem, cada vez mais, se provando como um golpe. Ou seja,
a Constituição aí é atingida em dois aspectos: república passa a
ser usada não no seu sentido constitucional ou etimológico, da
coisa pública, mas da coisa privada, como se pudesse pertencer
ou a Lula ou a Moro. É o Brasil dividido em dois, ou ao meio, tal
como o fez Willian Bonner no Jornal Nacional quando noticiou
a vitória de Dilma nas últimas eleições: o mapa do Brasil aparece
cortado transversalmente, dividido em vermelho, parte mais para
norte e nordeste, e azul, parte mais para sudeste e sul.
A coisa não poderia ser assim segmentada em termos de
homogeneidade, mas é o que estamos vendo nas discussões sobre
política no Brasil: ou se está do lado do PT e de tudo que prejudica
o Brasil; ou se está do lado da justiça, de um País que será livre
da corrupção.

11 Moro, juntamente com outros operadores do Direito, integram o Movimento República de


Curitiba: todos contra a corrupção.

306
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

2.2 Um acontecimento discursivo moral

Em Linguagem e Moral, Paveau (2015), ao interrogar a


linguística em relação à da moral no discurso, apresenta a noção
de virtude discursiva como o conjunto de ajustes aos valores ne-
gociados no interior de determinados grupos, em torno do que
trata como (2015, p. 26), “critérios que, em certa época, lugar e
sociedade, definem para os usuários do discurso a aceitabilidade
moral de um enunciado”. A partir deste conjunto de ajustes,
todo mundo saberia, em princípio, o que cabe a cada um dizer
em determinada situação. Todavia, conforme Paveau (2015), as
discussões em torno do sentido põem em jogo a questão moral,
dada a instabilidade das palavras em funcionamento em diferentes
contextos culturais e históricos, expondo “a língua ao risco de
desregulação, como mostram numerosos debates sobre o sentido
das palavras” (2015, p. 42). Para a autora, a língua e os discursos
não oferecem marcadores éticos, ou seja, não conseguem indicar
que tal enunciado é ético ou não, correto ou não, etc., o que leva-
ria, portanto, a considerar uma linguística que “não se contente
com marcas ‘puramente’ linguísticas” (2015, p. 54), estendendo
a dimensão ética “aos ambientes culturais, sociais, históricos etc.,
que definem os critérios de um discurso ‘bom’ e de um discurso
‘ruim’” (2015, p. 55).

A formulação de Paveau (2015) sobre virtude discursiva


refere-se, então, a um[...] disposição do agente-falante
para produzir enunciados ajustados aos valores subja-
centes às inter-relações dos agentes, a maneira de dizer
o estado das coisas e o modo de integrar-se na memória
discursiva na qual se tecem os discursos de uma sociedade,
em dado estado de sua história. (2015, p. 216).

Considerando que o discurso de Lula, em especial as ML, são


tomadas em desacordo com o modo de falar a língua política, po-
deríamos entendê-las, assim também a metáfora da jararaca, como
um desajuste ao ambiente cultural, social e histórico do cenário
político brasileiro, em muito, regido pela língua de madeira. Vemos,

307
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

portanto, que não há disposição deste agente, o sujeito enunciador


do discurso de Lula, em negociar o valor dos valores dispostos no
jogo político, Lula joga outro jogo. Poderia, então, ser considerado
um agente discursivo não virtuoso (PAVEAU, 2015, p. 219). Para
a autora (2015, p. 224), certos enunciados vão ter a capacidade
de produzir efeitos de uma indignação moral, o que foi possível
observar nas repercussões da metáfora da jararaca pelo segmen-
to midiático, religioso e jurídico, cujos metadiscursos buscaram
reestabelecer uma suposta ordem social. Todavia, como a própria
autora alerta (2015, p. 283): se o discurso virtuoso é reconhecido
como tal se estiver ajustado à verdade, de que verdade se trata?
Para Paveau, é aí que o analista do discurso precisa pôr em jogo
sua plasticidade epistemológica e identificar nos metadiscursos o
tipo de verdade subjacente.
Pensando a metáfora da jararaca a partir das polêmicas que
suscitaram, podemos dizer que Lula não provoca um desajuste em
relação à cadeia de sentidos a que ele próprio se filia, bem como
ao interlocutor a que se dirige, mas estaria em total desajuste em
relação ao modus operandi de uma determinada classe política. O
valor agressivo despertado como ameaça na metáfora da jararaca
só pode ser considerado levando-se em conta todo o conjunto dos
discursos em torno da figura deste político na história do Brasil
e o quanto isso sempre afrontou uma elite que detinha o poder.
Claro que, no durante, esta elite esteve sempre ali, sustentada
pelas alianças e acordos nunca compreendidos, mas isso não vale,
é a presidência que interessa.
No embate em torno da metáfora da jararaca, os metadis-
cursos a respeito, segundo Paveau (2015, p. 326), vão emergir
do que a autora trata como acontecimento metadiscursivo moral: o
conjunto de comentários e reações sobre um dado enunciado que
apontam para uma indignação coletiva. No caso da ML em ques-
tão, observamos que as Sds analisadas aqui se filiam a uma mesma
cadeia de sentido, que vão fazer trabalhar uma indignação coletiva,
simplificando a discussão política no País numa lógica disjuntiva
do ou isto ou aquilo, ou melhor: do bem contra o mal. Ao mesmo
tempo, poderíamos pensar que o trabalho de leitura realizado

308
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

pelo segmento midiático, religioso e jurídico também provoca


uma indignação coletiva a ponto de incitar novos metadiscursos,
e assim sucessivamente. Isso porque, conforme Pêcheux (2006,
p. 53), “todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se
outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu
sentido para derivar para um outro [...]”. Ou seja, todo enunciado
deve ser tomado como uma série “de pontos de deriva possíveis,
oferecendo lugar a interpretação”.
Em Paveau (2015, p. 326), podemos encontrar a questão a
partir do trabalho dos acontecimentos metadiscursivos, que podem
ressignificar o discurso, desarmá-lo, inverter o valor negativo de
uma estigmatização ou alijá-lo do peso que possa ter, lembrando
que isso não leva a uma indignação moral universal. Não. Trata-se
de uma indignação em um grupo ou em uma posição ideológica,
que, neste caso, está do lado do bem, na luta vigilante contra o mal.

Considerações finais

Considerando a noção de acontecimento metadiscusivo moral,


vimos que as representações do discurso midiático, religioso e jurí-
dico se filiaram a uma mesma cadeia de sentido, levando os efeitos
para a questão da guerra do bem contra o mal, tentando conter,
em contrapartida, tanto a indignação de Lula ao ser conduzido
ilegalmente para depor, quanto sua ameaça de ser, agora, candidato
nas próximas eleições. No lugar de deixar tais sentidos ganharem
espaço, é necessário colocar outros no lugar, ressignificá-los no
terreno da univocidade e aderi-los ao senso comum, que, no caso,
centrou-se em muito na interpretação do discurso religioso: a ideia
de que a cobra é o demônio, o inimigo a ser pisado na cabeça (Sd 3).
Vimos, portanto, que uma mesma materialidade significan-
te leva a duas direções bastante distintas: por um lado, a cobra
como aquilo que resiste, que vai continuar lutando mesmo depois
de atingida; por outro, aquilo que incorpora a representação do
inimigo, um só, que, uma vez banido, reestabelecem-se a ordem
e a paz no Brasil.

309
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Na etimologia12, cobra em hebraico deriva do verbo na·hhásh,


que significa sibilar, sussurrar, devido ao silvo que as serpentes pro-
duzem quando se sentem ameaçadas; significa também adivinhar,
encantar, enfeitiçar, observar, aprender pela experiência, e ainda, em
sua forma substantiva, augúrio, encantamento. Podemos dizer que
a própria etimologia do vocábulo nos ajuda a pensar a força que
exerce a ameaça ouvida na metáfora da jararaca. Até os inimigos
de Lula concordam sobre seu forte poder persuasivo, o que, ao
modo do enfeitiçamento das serpentes, aparece na Sd 7: Nós não
vamos deixar esta cobra continuar dominando as nossas mentes, as almas
dos nossos jovens.
Interessante pensar como a etimologia de cobra no hebraico
acaba ajudando a explicar o próprio funcionamento da metáfora,
quando o senso comum a toma como algo a ser desvendado, deci-
frado, porque teria o poder de esconder o verdadeiro sentido das
coisas. Muitos se debatem em torno do que as ML, em verdade,
querem dizer e, em não aceitando lê-las a partir das contingências
sociais, das contradições implicadas ali, trazem-nas para o literal
a seu modo.
As ML trazem este desconforto à cena, por isso tanto esforço
em tentar conter os sentidos, como foi o caso de outras metáforas
de parecida polêmica: a da marolinha, do grelo duro, da diarreia,
etc. É necessário conter esses sentidos, pois comprometem, confor-
me Gadet e Pêcheux (2004), uma construção artificial de unidade,
logicamente estabilizada por uma ordem política na língua (2004,
p. 31). Enfim, um perigo do “tudo o que – alteridade ou diferença
interna – arrisca questionar a construção artificial de sua unidade
e inverter a rede de suas obrigações” (2004, p. 31). Levar, portan-
to, a ML para o terreno do absurdo, impediria, segundo Pêcheux
(1988, p. 119), “ver a função constitutiva e não-derivada, inferida
ou construída da metáfora [...] e, correlativamente, leva a ignorar
a eficácia do material do imaginário”.

12 In: http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/Nachash> Acesso em 10/05/2016.

310
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Referências

DALTOÉ, Andréia da S. As metáforas de Lula: a deriva dos sentidos na língua


política (Tese). Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, 2011.
GADET, Françoise; PÊCHEUX, Michel. A língua inatingível: o discurso na
história da lingüística. Trad. Bethania Mariani; Maria Elizabeth Chaves
de Mello. Campinas: Pontes, 2004.
ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2002.
PAVEAU, Marie-Anne. Linguagem e moral: uma ética das virtudes discursivas.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015.
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, SP:
Pontes Editores, 2006.
_____. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas/
SP: Editora da UNICAMP, 1988.
_____. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre (Org.). Papel da memória.
Trad. José Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes, 1999.
_____.Leitura e memória: projeto de pesquisa. In: ORLANDI, Eni P.
Análise de Discurso: Michel Pêcheux. Campinas, SP: Pontes Editores,
2011.
ZOPPI-FONTANA, Mónica G. Língua política: modos de dizer na/da
política. In: ZANDWAIS, Ana; ROMÃO, Lucília M. S. Leituras do político.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011.

311
Discurso, Escola e Leituras
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

UMA BASE NACIONAL CURRICULAR COMUM PARA


A LEITURA NAS ESCOLAS BRASILEIRAS: A POLÍTICA
E O POLÍTICO

Mariza Vieira da Silva


Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

1. Introdução

E xplicitar processos discursivos presentes em políticas públi-


cas de educação, mais particularmente, de escolarização da
leitura em língua portuguesa, e discutir o confronto que aí se dá
do simbólico com o político, marcado pela divisão do sentido, do
sujeito, da sociedade, é o nosso objetivo neste artigo. Buscamos,
assim, expor os gestos de interpretação e de autoria constituídos
na materialidade das políticas de línguas e disciplinarizados como
matéria de ensino. A compreensão desses processos coloca em
questão noções diferentes e complexas, referentes aos domínios da
Linguística e da Educação principalmente, que são, contudo, trata-
das, quase sempre, como verdadeiras, como fazendo parte daquilo
que todos nós sabemos do que se trata; e mostra os mecanismos
dos processos de significação que comandam a textualização da
discursividade, levando em consideração os espaços de heteroge-
neidade nos quais funcionam as contradições.
Situamos nosso trabalho no cruzamento da história das ideias
linguísticas e da história da escolarização no Brasil, da perspectiva
teórica e metodológica da análise do discurso pechetiana, abrindo
espaço para a apreensão do modo como a língua, passível de jogo,
inscreve-se na história. Na constituição de nosso dispositivo analí-
tico, tomamos como arquivos de descrição e análise dois volumes

315
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

dos Parâmetros Curriculares Nacionais do terceiro e quarto ciclos


do Ensino Fundamental – PCNs - de 1998, o de Introdução e o
de Língua Portuguesa, e a segunda e a terceira versões da Base
Nacional Comum Curricular – BNCC vinda a público em 2016 e
2017, respectivamente.
Os recortes de análise incidiram sobre os Sumários e algumas
sequências linguísticas presentes no corpo dos textos dos arquivos,
visando apreender os processos discursivos ali presentes como
sistemas de “relações de substituição, paráfrases, sinonímias, etc.,
que funcionam entre elementos linguísticos – “significantes” – em
uma formação discursiva dada...” (PÊCHEUX, 1988, 161). Eles
criaram condições para construir trajetos de leitura e análise, bem
como trabalhar formações discursivas heterogêneas: aquilo que
pode e deve ser dito em uma conjuntura dada (PÊCHEUX, 1988),
como parte do processo discursivo da mundialização.
Os deslizamentos de sentidos, os efeitos metafóricos
(PÊCHEUX, 1990) que podemos observar na relação que se es-
tabelece entre o “mesmo” e o “diferente” nesses arquivos, ambos
produtos da historicidade, permitiram avançar na compreensão
do que Pêcheux chama de “lutas ideológicas de movimento. Es-
sas lutas devem ser pensadas, segundo ele, “não como lutas entre
classes constituídas como tais, mas, em vez disso, como uma série
de disputas e embates móveis (no terreno da sexualidade, da vida
privada, da educação etc.)” (PÊCHEUX, 2011, p. 96).
Nesse mesmo artigo, Pêcheux chama nossa atenção para uma
interpretação funcionalista de “reprodução” como “repetição eter-
na de um estado idêntico de coisas” (Idem, p. 96). Para ele, tratar
de “relações de reprodução” da perspectiva marxista, implica,
diferentemente, em considerá-las da perspectiva da resistência
de revoltas heterogêneas (p. 96). Quanto à relação entre ideologias
dominadas X ideologia dominante, tratada, muitas vezes, como
mera oposição, Pêcheux propõe tratá-las “como uma série de
efeitos ideológicos que emergem da dominação e que trabalham
contra ela por meio das lacunas e das falhas no seio dessa própria
dominação” (p. 97), uma vez que os objetos ideológicos implicados

316
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

no interior das “lutas de movimento” são mesmo tempo “idênticos


e antagônicos”, “unidades divididas”.

2. Política, língua, escola

A questão da língua é uma questão de Estado, afirma Gadet &


Pêcheux (2004, p. 37), “com uma política de invasão, de absorção
e de anulação das diferenças, que supõe antes de tudo que estas
últimas sejam reconhecidas”. As políticas públicas de escolariza-
ção nos permitem, pois, observar o modo como o Estado trabalha
as relações entre a unidade e a diversidade, o universal e o local,
determinando um conjunto de práticas em diferentes instituições,
mas antes e, sobretudo, na Escola.
Na Escola, no ensinar-aprender, dá-se a transmissão de um
modo de fazer que reúne tékné e empeiria, colocando em funciona-
mento acontecimentos de diferentes ordens. Esse fazer, sustentado
por políticas de escolarização e pelo conhecimento produzido, irá
trabalhar em uma conjuntura econômica e social dada, a divisão
social do trabalho na constituição da posição sujeito urbano esco-
larizado (PFEIFFER, 1997) como sujeito de direito e sujeito do
conhecimento. A Escola é, assim, espaço-tempo político e simbólico
de regulação de práticas linguísticas do Português como língua
nacional. Esta prática de uma língua tida imaginariamente como
comum, em condições historicamente determinadas, irá ganhar
configurações próprias de modo a trabalhar as contradições sociais
e linguísticas.

2.1 Parâmetros Curriculares Nacionais

Os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs - foram pu-


blicados na década de 1990, evidenciando o fortalecimento do
conhecimento produzido em Educação e em Linguística através
de estudos e pesquisas, dissertações e teses, artigos e livros, assim
como de financiamento de pesquisas e de eventos. A partir da dé-
cada de 1970, o Ministério da Educação passara a trabalhar em
articulação direta e estreita com a comunidade acadêmica para a

317
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

produção de políticas, projetos, programas, legislação, através de


comissões de trabalho e comitês de pesquisa, conferindo às pro-
postas do Estado a sustentação explícita da Ciência. Isso trouxe
possibilidades para que as teorias linguísticas fossem conhecidas
nacionalmente e os embates e as relações de força entre elas se
pusessem em movimento.

A nova crítica do ensino de Língua Portuguesa, no en-


tanto, só se estabeleceria mais consistentemente no início
dos anos 80, quando as pesquisas produzidas por uma
linguística independente da tradição normativa e filoló-
gica e os estudos desenvolvidos em variação linguística
e psicolinguística, entre outras, possibilitaram avanços
nas áreas de educação e, psicologia da aprendizagem,
principalmente no que se refere à aquisição da escrita
(BRASIL, 1998a, p. 17).

É neste período que ganha espaço um conjunto de teses


que passam a ser incorporadas e admitidas, pelo menos em
teoria, por instâncias públicas oficiais. A divulgação dessas
teses desencadeou um esforço de revisão das práticas de
ensino da língua [...] (Idem, ibidem, p. 18).

Nesses Parâmetros, temos a “cidadania” como efeito de sen-


tido, efeito ideológico. Na Apresentação do volume Introdutório,
a cidadania já é o elemento nuclear para uma ampla análise da
conjuntura mundial e brasileira nos termos de um discurso so-
ciologizante, em que se explicitam tensões a serem enfrentadas
pelo Estado.

Uma análise da conjuntura mundial e brasileira revela a


necessidade de construção de uma educação básica voltada
para a cidadania. Isso não se resolve apenas garantindo a
oferta de vagas, mas sim oferecendo-se um ensino de quali-
dade, ministrado por professores capazes de incorporar ao
seu trabalho os avanços das pesquisas nas diferentes áreas
de conhecimento e de estar atentos às dinâmicas sociais e
suas implicações no âmbito escolar (BRASIL, 1998, p. 9).

318
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

A cidadania permite, assim, a movimentação de sentidos


no processo de individua(liza)ção do sujeito no espaço político e
simbólico da urbanização - pobre, excluído – em que busca valer
seus direitos.
O aumento da interdependência entre nações e regiões
contribuiu para colocar o foco nos diferentes desequilí-
brios, entre ricos e pobres, como também entre “incluídos“
e “excluídos” socialmente, no interior de cada país... (Idem,
ibidem, p. 15 – grifo do autor).

Ao lado de um progresso material “milagroso”, a injusta


distribuição de renda aprofundou a estratificação social,
fazendo com que parte considerável da população não te-
nha condições de fazer valer seus direitos e seus interesses
fundamentais, tornando mais agudo o descompasso entre
o progresso econômico e desenvolvimento social (Idem,
ibidem, p. 20 – grifo do autor).

Havíamos entrado na segunda metade do século XX, com o


fim da ditadura Vargas (1946), por meio de uma ampla mobiliza-
ção social, política, cultural da sociedade brasileira em diferentes
campos: o cinema novo, o teatro popular, a música popular, o
Movimento de Educação de Base - MEB, as lutas pela escola pú-
blica, universal, laica e gratuita em um contexto de urbanização
crescente. Um processo que se vê interrompido por outra ditadura,
que durou vinte e um anos, sob os auspícios de um novo ciclo do
liberalismo econômico. É no contexto de redemocratização do país,
de seus dilemas e impasses que a questão social, a educacional e a
linguística são pensadas, problematizadas, analisadas e soluções
são propostas, e que a noção de cidadania significa.
Nessa movimentação de sentidos e de sujeito, observamos
o problema da desigualdade de classe social deslocar-se para a
desigualdade educacional, sendo a educação tomada como capaz
de superar a desigualdade primeira.

Diante dessa conjuntura, há uma expectativa na sociedade


brasileira para que a educação se posicione na linha de
frente da luta contra as exclusões, contribuindo para a

319
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

promoção e integração de todos os brasileiros, voltando-se


à construção da cidadania, não como meta a ser atingida
num futuro distante, mas como prática efetiva.
A sociedade brasileira demanda uma educação de qua-
lidade, que garanta as aprendizagens essenciais para a
formação de cidadãos autônomos, críticos e participativos,
capazes de atuar com competência, dignidade e responsa-
bilidade na sociedade em que vivem e na qual esperam ver
atendidas suas necessidades individuais, sociais, políticas
e econômicas (BRASIL, 1998, p. 21).

Nesse volume Introdutório, é feito um diagnóstico da edu-


cação brasileira, servindo-se de dados estatísticos, de avaliações
nacionais, e são explicitados desafios e mudanças necessárias, bem
como do papel da escola, da socialização dos alunos, da relação
escola X comunidade, das culturas locais e do patrimônio universal,
das relações escola X trabalho. Cabe à Escola:

[...] assumir-se como um espaço de vivência e de discussão


dos referenciais éticos, não como uma instância normati-
va e normatizadora, mas um local social privilegiado de
construção dos significados éticos necessários e constitu-
tivos de toda e qualquer ação de cidadania, promovendo
discussões sobre a dignidade do ser humano, igualdade
de direitos, recusa categórica de formas de discriminação,
importância da solidariedade e observância das leis (Idem,
ibidem, p. 16).

Em relação ao ensino do português como língua nacional,


dadas as condições de produção relativas aos sujeitos da prática
pedagógica em que se faz sentir cada vez mais uma forma especí-
fica de urbanização, a situação imediata e ao momento histórico,
cabia trabalhar a diversidade material em relação a uma unidade
imaginária que tinha sua univocidade posta em questão pelas
estatísticas do fracasso escolar dos brasileiros que entravam na
escola de forma mais massiva.

320
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

2.2 Base Nacional Comum Curricular /2016

Quase vinte anos depois, temos em 2016, momento em que


iniciamos este trabalho, uma segunda versão1 de uma Base Na-
cional Comum Curricular – BNCC proposta pelo Ministério da
Educação a ser discutida pela sociedade. Trata-se de um docu-
mento de caráter normativo e de referência para que as escolas e
os sistemas de ensino elaborem seus currículos, constituindo-se,
também, como um instrumento de gestão pedagógica das redes
de ensino, como parte de uma política de Estado.
Nessa outra gestão do Estado capitalista em relação à educa-
ção no século XXI, a invasão, absorção e anulação das diferenças
produzem-se sob a dominância da formação discursiva jurídica.
Temos o “direito” como efeito de sentidos, efeito ideológico. “A
educação, compreendida como direito humano, individual e coleti-
vo, habilita para o exercício de outros direitos, e capacita ao pleno
exercício da cidadania” (BRASIL, 2016, p. 26). Os “desequilíbrios
entre ricos e pobres”, “a injusta distribuição de renda”, “a degrada-
ção [que] está também nos ambientes intensamente urbanizados”,
explicitados nos Parâmetros Curriculares Nacionais, significam,
agora, em outra conjuntura histórica, tendo outras referências
através das quais a as desigualdades e o fracasso escolar vêm se
dando.
Após a década de 1990, as instituições brasileiras foram se
consolidando em um ambiente democrático, a esperança de vida
aumenta, a mortalidade infantil decresce, o acesso a serviços
públicos básicos cresce mesmo que de forma ainda precária, a
universalização do acesso à escola fundamental atinge a maior
parte da população, embora a repetência continue a evidenciar
o fracasso escolar em termos de desigualdade da oferta de uma
educação de qualidade para todos. Assim, os sujeitos excluídos
que ainda tinham de lutar pra valer seus direitos, objeto da ação
do Estado nos PCNs, agora já são “sujeitos com direitos à apren-
dizagem e ao desenvolvimento” em relação a “princípios éticos,
1. O MEC publicou a primeira versão da BNCC em setembro de 2015 e a segunda, foi apre-
sentada ao público em maio de 2016.

321
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

políticos e estéticos”, redefinindo a cidadania no campo das po-


líticas públicas de educação em que a inclusão, pela via jurídica,
“em conformidade com os princípios éticos, políticos e estéticos”
(BNCC, 2016, p. 35), tende a neutralizar as divisões, os conflitos,
possibilitando que a sociedade, o sujeito, a língua se apresentem
e se representem como visíveis.
Nesse sentido, o argumento de sustentação primeiro da
BNCC/2016 podemos encontrar nas vinte páginas iniciais em
que se discriminam os participantes da elaboração dessa Base,
com papel de destaque para os movimentos sociais na conquista
dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento, evidenciando
seu caráter de construção participativa: “O presente documento,
fruto de amplo processo de debate e negociação com diferentes
atores do campo educacional e com a sociedade brasileira em geral
[...]” (BRASIL, 2016, p. 24).
Destacaríamos como marca do funcionamento linguístico-
ideológico presente neste arquivo, uma fragmentação e dispersão
de direitos em diferentes dimensões, por seu acúmulo, sustentado
pela forma como se desenvolveram nas últimas décadas as lutas
ideológicas de movimento referentes às diferenças em termos
legais, aos movimentos sociais, à estruturação das instituições,
aos programas e projetos governamentais e não-governamentais,
como o sistema de cotas. A fragmentação (não, divisão) e a disper-
são, consideradas as hierarquizações e superposições aí presentes,
acabam por construir uma unidade imaginária, tomando como
equivalentes diferentes demandas da sociedade, trabalhando dessa
maneira a contradição entre o específico e o universal, o individual
e o social, e produzindo o efeito de consenso: um outro modo de
domesticar o político. Nesse funcionamento se estabilizam os direi-
tos e se homogeneízam os sentidos falando deles exaustivamente,
tornando-os transparentes, fornecendo a cada sujeito a realidade (a
sua, a dele, a nossa) como sistema de evidências e de significações
percebidas, aceitas, experimentadas (PÊCHEUX, 1988, p. 162).
Podemos apreender esse funcionamento em diferentes mo-
mentos da BNCC/2016. Nos 4 Eixos de Formação que articulam

322
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

o currículo ao longo de toda a etapa da Educação Fundamental:


“Letramento e capacidade de aprender’; ‘Solidariedade e sociabi-
lidade’; ‘Pensamento crítico e projeto de vida”; ‘Intervenção no
mundo natural e social”. Eixos estes seguidos de Temas Especiais,
em que cidadania desliza para um dentre outros temas: ‘Economia”,
“Educação financeira e sustentabilidade’; “Culturas indígenas e
africanas’; ‘Culturas digitais e computação”; ‘Direitos humanos e
cidadania’; ‘Educação ambiental’.
Temos, nesse momento histórico, outras relações individu-
ais e sociais, outras referências, outros campos de força com suas
tensões e resistências que precisamos compreender. Se a demanda
principal da educação pública, obrigatória e gratuita é formar o
trabalhador brasileiro, precisamos nos perguntar que trabalho
é este dadas as condições atuais de precarização, instabilidade
e volatilidade do mesmo nos espaços urbanos redesenhados, re-
significados de forma espantosa em termos de consumo, de modos
de vida, de fluxos de produção e dos capitais, o que nos obriga a
rever teoricamente certas categorias tratadas como opositivas:
oral/escrito, língua(gem) formal/informal, culta/popular.

2.3 Base Nacional Comum Curricular /2017

A terceira versão da BNCC, que circulou apenas um ano


depois, em abril de 2017, traz diferenças significativas em relação
à anterior no interior da ideologia dominante2. Temos um texto
mais enxuto3 que se constrói sob a dominância de uma formação
discursiva que podemos chamar de administrativo-burocrática,
quase como um manual a ser aplicado, que não necessita nem
mesmo do argumento inicial de autoridade, de produção conjunta
e participativa de diferentes setores da sociedade como a versão
anterior. Os nomes dos participantes e das instituições aparecem
no final, como “ficha técnica”. As referências legais aparecem, em
2 Embora essa versão tenha sido divulgada em data bem próxima da apresentação deste trabalho
em uma mesa redonda, o movimento no interior da ideologia dominante nos pareceu bastante
forte para iniciar uma descrição e análise, buscando compreender as disputas e embates
móveis que estavam ali funcionando no interior do processo discursivo da mundialização e
colocá-los em discussão.
3. Passou de 652 páginas para 396.

323
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

grande parte, como nota de rodapé: uma remissão a um imagina-


riamente já-dito cristalizado. Vejamos as duas conceituações do que
seja a BNCC na segunda e terceira versões respectivamente em
que se observam os deslocamentos a que me refiro, considerando
o curto espaço de tempo em que vieram a público.

De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais Ge-


rais para a Educação Básica (DCNEB) e a própria Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), entende-
se a Base Nacional Comum Curricular como,
os conhecimentos, saberes e valores produzidos culturalmente,
expressos nas políticas públicas e que são gerados nas instituições
produtoras do conhecimento científico e tecnológico; no mundo
do trabalho; no desenvolvimento das linguagens; nas ativida-
des desportivas e corporais; na produção artística; nas formas
diversas de exercício da cidadania; nos movimentos sociais
(Parecer CNE/CEB nº 07/2010, p. 31) (BNCC, 2016, p. 25).
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um do-
cumento de caráter normativo que define o conjunto
orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que
todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas
e modalidades da Educação Básica. Aplica-se à educação
escolar, tal como a define o § 1º do Artigo 1º da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº
9.394/1996)6, e indica conhecimentos e competências
que se espera que todos os estudantes desenvolvam ao
longo da escolaridade. Orientada pelos princípios éticos,
políticos e estéticos traçados pelas Diretrizes Curriculares
Nacionais da Educação Básica (DCN)7, a BNCC soma-se
aos propósitos que direcionam a educação brasileira para
a formação humana integral e para a construção de uma
sociedade justa, democrática e inclusiva (BNCC, 2017, p.
7 – grifo do autor).

Os direitos à educação, dever do Estado, deslizam para direitos


de aprendizagem como o que se aprende sob a responsabilidade
principalmente da Escola, dos professores. Seus fundamentos
pedagógicos se apresentam centrados nas noções de competência
e de educação integral, embora possamos considerar que a com-

324
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

petência4 é que se produz como efeito ideológico, comandando a


direção de sentidos.

[...] a noção de competência é utilizada no sentido da


mobilização e aplicação dos conhecimentos escolares,
entendidos de forma ampla (conceitos, procedimentos,
valores e atitudes). Assim, ser competente significa ser
capaz de, ao se defrontar com um problema, ativar e
utilizar o conhecimento construído (BNCC, 2017, p. 16).

Temos o retorno, então, das competências como diretriz


pragmática e utilitarista dessa proposta política de educação,
condensada em torno de dez competências gerais a serem alcan-
çadas na educação. Naturaliza de forma mais radical o sentido de
currículo como controle. Os deslocamentos e deslizamentos de
sentidos produzem um movimento em direção ao silenciamento
do político por um tecnicismo em que as evidências produzem um
efeito de verdade.

2. Política, língua, leitura

Nessa seção, observamos, mesmo que de forma sucinta, como


a cidadania, os direitos e a competência técnica como efeitos ideo-
lógicos se constroem no trabalho com a língua e a leitura através
das teorias linguísticas, dos objetivos e procedimentos propostos,
ou seja, na articulação que se faz entre Ciência, Estado e Sociedade
no campo da linguagem. Podemos dizer, considerando os arquivos
analisados, que as teorias linguísticas dominantes ao longo desses
anos foram a pragmática e o funcionalismo como atesta a própria
BNCC/2016. Em se tratando da leitura significa um trabalho
com o texto e os gêneros como “formas relativamente estáveis de
enunciados”, de forma descritiva e prescritiva.

A proposta de Língua Portuguesa que aqui se apresenta


dialoga com um conjunto de documentos e orientações
oficiais – como os Parâmetros e as Orientações Curri-
4 A noção de competência tem uma história que não é possível retomar nos limites desse
artigo.

325
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

culares Nacionais para o Ensino Fundamental e para o


Ensino Médio –, com contribuições da pesquisa acadêmica
e de currículos estaduais e municipais, para reafirmar
fundamentos caros ao ensino da Língua Portuguesa na
escola básica que, ao longo de quase três décadas, tem se
comprometido com o desenvolvimento de capacidades de
uso da língua (BNCC, 2016, p. 89 – grifo nosso).

O EIXO CONHECIMENTO SOBRE A LÍNGUA E


SOBRE A NORMA reúne objetivos de aprendizagem
sobre conhecimentos gramaticais, em uma perspectiva
funcional, regras e convenções de usos formais da língua
que darão suporte aos eixos da leitura, escrita e oralidade.
(Idem, ibidem, p. 95)

Essa dominância tem uma história e se faz na relação com as


outras teorias de forma mais ou menos explícita. Nos Parâmetros
Curriculares Nacionais da década de 1990, podemos observar a
presença e um movimento mais denso entre teorias mesmo que
delas já se faça uma leitura sob a perspectiva da pragmática5. As-
sim, a língua é tomada como

[...] um sistema de signos específicos, histórico e social,


que possibilita a homens e mulheres significar o mundo e
a sociedade. Aprendê-la é aprender não somente palavras
e saber combiná-las em expressões complexas, mas apren-
der pragmaticamente seus significados culturais e, com
eles, os modos pelos quais as pessoas entendem e inter-
pretam a realidade e a si mesmas (BRASIL, 1998a, p. 20).

Na seção denominada “Discurso e suas condições de produ-


ção, gênero e texto”, discurso é tratado também pragmaticamente
no interior do processo de interação.
Interagir pela linguagem significa realizar uma atividade
discursiva: dizer alguma coisa a alguém, de uma deter-
minada forma, num determinado contexto histórico e
em determinadas circunstâncias de interlocução. Isso

5 As filiações teóricas não são explícitas, uma vez que não há indicação da fonte no corpo do
texto, mas apenas referências bibliográficas no final do volume. Efeito de evidência.

326
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

significa que as escolhas feitas ao produzir um discurso


não são aleatórias – ainda que possam ser inconscientes
-, mas decorrentes das condições em que o discurso foi
realizado. Quer dizer, quando um sujeito interage ver-
balmente com outro, o discurso se organiza a partir das
finalidades e intenções do locutor, dos conhecimentos
que acredita que o interlocutor possua sobre o assunto,
do que supõe serem suas opiniões e convicções, simpa-
tias e antipatias, da relação de afinidade e do grau de
familiaridade que têm da posição social e hierárquica
que ocupam. Isso tudo determina as escolhas do gênero
no qual o discurso se realizará, dos procedimentos de
estruturação e da seleção de recursos linguísticos (Idem,
ibidem, p.21).

E o texto e o gênero ganham centralidade no interior da


ideologia da comunicação.

Todo texto se organiza dentro de determinado gênero


em função das intenções comunicativas, como parte das
condições de produção dos discursos, as quais geram usos
sociais que os determinam. Os gêneros são, portanto,
determinados historicamente, constituindo formas rela-
tivamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura
(Idem, ibidem, p. 21).

Coerente com sua filiação teórica, os PCNs propõem dois


Eixos para a organização dos conteúdos: 1. Uso de Língua Oral
e Escrita; 2. Reflexão sobre a Língua e a Linguagem. Conteúdos
estes que se organizarão em: Prática de Escuta e de Leitura de
Textos; Prática de Produção de Textos Orais e Escritos; Prática
de Análise Linguística.
Na BNCC/2016, temos a dominância de uma formação dis-
cursiva jurídica como vimos. O Direito objetiva uma relação com
a alteridade, que no caso do direito à língua (qual língua?), é mar-
cada pelo conflito e confronto entre uma língua sobre a qual ele
legisla e a diversidade de línguas existentes em um dado espaço de
enunciação. Essa proposta de política irá trabalhar, então, a relação
entre as línguas existentes no espaço de enunciação brasileiro, em

327
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

direção a uma política inclusiva, porque assentada em direitos,


capaz de superar toda e qualquer desigualdade.
A fragmentação e a dispersão, acompanhadas de hierarqui-
zação e superposições observadas na parte Introdutória do arqui-
vo, também se fazem presente no trabalho com as linguagens, a
língua, como modo de construir uma base comum de trabalho na
Escola, considerando os quatro Campos de Atuação propostos:
1.Cotidiano; 2. Literário; 3. Político-cidadão; 4. Investigativo, em
função dos quais devem ser selecionados os objetivos e gêneros.
Os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, por sua vez,
estão organizados em quatro Eixos: Leitura; Escrita; Oralidade;
Conhecimento sobre a língua e sobre a norma padrão.

Quadro 1:

CAMPO DA OBJETIVOS CAMPO OBJETIVOS


VIDA COTIDIANA POLÍTICO-
Campo de atuação CIDADÃO (EF06LP14)
relativo a participa- (EF06LP03) Campo de atuação Compreender
ção em situações de Processar infor- relativo a partici- como as notícias
leitura, próprias de mações de textos pação em situações se estr utur am
atividades vivencia- instrucionais para de leitura, especial- (titulo, subtítu-
das cotidianamente realizar ações por mente de textos das lo, lide, corpo da
por crianças, ado- eles orientadas. esferas jornalística, notícia).
lescentes, jovens e publicitária, políti-
adultos, no espaço (EF06LP04) ca, jurídica e reivin- (EF06LP15)
doméstico e familiar, Reconhecer, em dicatória, contem- Identificar recur-
escolar, cultural e textos instru- plando temas que sos Linguístico-
profissional. cionais, a hie- impactam a cidada- discursivos de
rarquizaçao de nia e o exercício de títulos e subtítu-
Alguns gêneros tex- informações que direitos. los e sua eficácia
tuais deste campo: comandam ações. na construção do
e-mails, cartas pes- Alguns gêneros sentido global do
soais, texto instru- (BNCC, 2016, p. textuais deste texto.
cional (manual, guia, 334) campo: notícias, (Idem, p. 340)
receita etc.), post. reportagens, car-
tas do leitor, cartas
ao leitor, artigos de
opinião, editoriais.

328
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Na terceira versão da BNCC/2017, que tem a competência


técnica como efeito ideológico, a parte referente ao componente
Língua Portuguesa também se constrói no interior da formação
discursiva administrativo-burocrática. Com isso, observamos for-
mas antigas e redutoras de compreender a língua, evidenciando
movimentos no campo epistemológico, social e político.

A língua tem duas dimensões: é oral e escrita. Assim, sua


aprendizagem considera o contínuo entre a oralidade e
a escrita: na alfabetização em que o oral é representado
por notações (letras e outros signos), nos usos sociais da
língua oral e nos usos sociais da leitura e da escrita – nas
práticas de letramento. A meta do trabalho com a Língua
Portuguesa, ao longo do Ensino Fundamental, é a de que
crianças, adolescentes, jovens e adultos aprendam a ler e
desenvolvam a escuta, construindo sentidos coerentes
para textos orais escritos, a escrever e a falar, produzin-
do textos adequados a situações de interação diversas;
a apropriar-se de conhecimentos e recursos linguísticos
– textuais, discursivos, expressivos e estéticos – que con-
tribuam para o uso adequado da língua oral e da língua
escrita na diversidade das situações comunicativas de que
participam (BNCC, 2017, p. 63).

Vejamos as noções de leitura nos três documentos:

329
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Quadro 2

PCNS BNCC/2017 BNCC/2017


A leitura é o processo O EIXO LEITURA com- O eixo LEITURA compre-
no qual o leitor realiza preende as práticas de ende a aprendizagem da
um trabalho ativo de linguagem que decorrem decodificação de palavras e
compreensão e inter- do encontro do leitor textos (o domínio do siste-
pretação do texto, a com o texto escrito e de ma alfabético de escrita), o
partir de seus objetivos, sua interpretação, sendo desenvolvimento de habi-
de seu conhecimento exemplos as leituras para lidades de compreensão e
sobre o assunto, sobre fruição estética de obras interpretação de textos ver-
o autor, de tudo o que literárias; para a pesquisa e bais e multimodais e, ainda,
sabe sabre a lingua- embasamento de trabalhos a identificação de gêneros
gem etc. Não se trata acadêmicos; para a realiza- textuais que esclarecem a
de extrair informação, ção de um procedimento; contextualização dos textos
decodificando letra por para o conhecimento e o na situação comunicativa, o
letra, palavra por pala- debate sobre temas sociais que é essencial para com-
vra. Trata-se de uma relevantes. As modalida- preendê-los. São também
atividade que implica des de leitura, em voz alta constituintes essenciais
estratégias de seleção, ou de forma silenciosa, desse eixo, por sua rele-
antecipação, inferência também irão ocorrer no vância para a compreensão
e verificação, sem as espaço escolar, conforme o e interpretação de textos, o
quais não é possível seu objetivo, considerando desenvolvimento da fluên-
proficiência. E o uso que a leitura é uma prática cia e o enriquecimento do
desses procedimentos social. (BNCC, 2016, pp. vocabulário (BNCC, 2017,
que possibilita contro- 330-332). p. 64).
lar o que vai sendo lido,
permitindo tomar deci-
sões diante de dificul-
dades de compreensão,
avançar na busca de
esclarecimentos, vali-
dar no texto suposições
feitas (BRASIL, 1998a,
p. 70).

A decodificação negada nos PCNs retorna de forma significa-


tiva na BNCC de 2017, bem como outras questões teóricas que já
considerávamos suficientemente criticadas pelos linguistas como
“enriquecimento do vocabulário”, pois pressupõe que exista algu-
ma linguagem/língua pobre. A ênfase nas habilidades direciona
a leitura para um saber operacional que legitima as performances,
organiza a produção de sentidos em série, possibilitando a men-
suração da aprendizagem pelos instrumentos de avaliação.

330
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Esses movimentos nos discursos acadêmicos e nos discursos


dos documentos oficiais oferecem um campo vasto de estudos e
pesquisas a serem empreendidos, que vão além deste trabalho.
Não basta dizer que são hegemônicos, que produzem consensos,
mas há de se apreender o modo como o fazem.

4. Para concluir

Neste trajeto de leitura e análise, pudemos explicitar e com-


preender alguns gestos de interpretação constituídos na materia-
lidade discursiva de políticas públicas de educação, observando
o funcionamento do político como direcionamento dos sentidos
no discurso em que se pode estabelecer uma distinção entre a
organização e gestão das línguas em direção a um universo logi-
camente estabilizado e o real da língua sempre sujeito a equívoco
(PÊCHEUX, 1990; 2004). A textualização da política de educação,
de línguas se dá pela articulação de diferentes discursividades, a
partir de determinadas formações discursivas, de forma a produzir
o consenso.
As inversões e retomadas, os deslocamentos e apagamentos,
os efeitos metafóricos, ideológicos, aí produzidos são índices da
presença do político, das relações de força, das relações de sentido,
na medida em que não há metalinguagem, que “todo enunciado
é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si
mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar
para um outro” (PÊCHEUX, 1990, p. 53). Podemos, então, nos
perguntar. Nesses processos discursivos, quais demandas, qual
exteriorioridade se estabiliza, fazendo com se exclua, apague
outros sentidos?

Referências

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino


fundamental: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília:
MEC/SEF, 1998.
BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino
fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998a.

331
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

BRASIL. Base nacional comum curricular. 2ª versão revista. Brasília, MEC,


2016. Disponível em http://www.consed.org.br/download/base-
nacional-comum-curricular-2a-versao-revista. Acesso em 29.06.2016.
BRASIL. Base nacional comum curricular: educação é a base. 3ª versão revista.
Brasília,MEC,2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.
gov.br/images/BNCC_publicacao.pdf. Acesso em: 07/04/2017.
PÊCHEUX, Michel. A língua inatingível. In: ORLANDI, Eni P. (Org.). Análise
de discurso: Michel Pêcheux. Campinas, SP: Editora Pontes, 2011, 93-
106. Edição original: 1975.
PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-69). In: Gadet,
F. & Hak, T. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à
obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethânia Mariani et al. Campinas, SP :
Editora da Unicamp, 1990, 61-162. Edição original: 1969.
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni P.
Orlandi. Campinas: Editora Pontes, 1990a. Edição original: 1983.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.
Trad. Eni P.Orlandi... et al. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1988 .
PFEIFFER, Cláudia Castellanos. Sentidos na cidade: clichê e sujeito
urbano. Rua, Campinas, n. 3, p. 37-58, 1998.

332
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

O ESPAÇO DE INTERPRETAÇÃO NA PROVA DO


ENEM: DA PERGUNTA AO ENCONTRO COM A
INCOMPLETUDE DOS SENTIDOS

Gesualda Rasia
Universidade Federal do Paraná (UFPR)

1. Problematizações iniciais acerca do espaço da


pergunta

O espaço da pergunta nos convoca, inelutavelmente, à inter-


pretação, ao mesmo tempo em que desnaturaliza a suposição
da univocidade do sentido. Se a multiplicidade parece mostrar-se
como fato inconteste, a questão que se impõe, desde a Grécia an-
tiga, de diferentes modos, e que foi pautada por Michel Pêcheux a
partir da dualidade Lógica /Retórica, diz respeito à contraditória
articulação entre a língua e sua exterioridade. Aparente dualida-
de que se manifesta na tensão sempre posta entre objetividade/
subjetividade e descrição/interpretação; movimentos simultâneos
e igualmente contraditórios, os quais dizem respeito aos espaços
de captura-inscrição-escape do sujeito.
Estamos pensando, aqui, no sujeito escolar, portanto, sujei-
to de saber, sujeito a-saber. A escola básica, lugar de formação
dos indivíduos – sujeitos inseridos no corpo histórico-social,
encontra nos instrumentos de avaliação o lugar de mensuração
dos conhecimentos adquiridos. Em razão disso, entendemos
que esses objetos constituem-se materialidade que significa
historicamente acerca dos modos como o sujeito tece sentidos
sobre a realidade, mediado pela dimensão simbólica da lingua-
gem e, sobretudo, considerando-se o fato de que essa dimensão

333
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

implica modos de ser e de estar na História e em relação ao


conhecimento.
Para pautar tais questões, este estudo considera o objeto
de investigação com o qual temos nos ocupado desde 2015: “O
entorno da pergunta na dimensão do ensino”1, no qual analisa-
mos processos discursivos na formulação de questões do ENEM,
especialmente na prova Linguagens e suas Tecnologias, com des-
dobramentos em Projeto implementado no PIBID-Português-
UFPR, por intermédio do projeto intitulado “Os instrumentos
de avaliação em Língua Portuguesa como instâncias de leitura-
interpretação”.2
A questão central que nos toca, a partir da concepção de
leitura mobilizada pela teoria que dá sustentação a este estudo, a
Análise do Discurso francesa, com filiação em Michel Pêcheux,
são as contradições que decorrem do formato da prova objetiva,
de múltipla escolha, típica do ENEM mas também de outras
formas de avaliação. Se a condição da interpretação é a abertura
do sentido, em que pesem os limites do sentido, fica em suspen-
so, neste caso, o que resta nos interstícios das alternativas de
múltipla escolha. Além disso, é relevante questionar-se, também,
acerca do que não é perguntado ao sujeito estudante, aquilo que
as perguntas e/ou alternativas não comportam, e que talvez ele
tenha construído como conhecimento significativo. Ou ainda,
no limite, que possibilidades de sentido-outro poderiam ser
contrapostas à alternativa dada como correta, na perspectiva
do entrelaçamento da linguagem com a historicidade que lhe é
constitutiva.
Quando se propõe uma pergunta, projeta-se um lugar
de resposta. Do mesmo modo, quando se está diante de uma
pergunta, sente-se o sujeito instado a responder. E isso pode
se materializar sob a forma de diálogos concretos, envolvendo
locutores e destinatários, como também sob a forma de virtu-
alizações tecidas no jogo próprio ao gesto de leitura. Quando
1 Projeto de Pesquisa que contou com apoio financeiro da CAPES, submetido ao Edital Estágio
Sênior no Exterior II/2015.
2 O referido projeto é subsidiado com fomento da CAPES.

334
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

falamos, quer seja em situações quotidianas ou em espaços


de representatividade, estamos, a todo momento, formulando
nossos enunciados como respostas a já-ditos que os antecedem,
bem como abrindo espaços na tessitura do dizer para que o
outro nos responda. Essa teia de relações foi explicitada por
Bakhtin, na obra Estética da Criação Verbal (2000) a partir do
princípio da responsividade, pelo qual este pensador postula a
presença indelével do outro na linguagem, ou como condição
mesma da linguagem:

O enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal


(...) O enunciado está repleto de ecos e lembranças de
outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de
uma esfera comum da comunicação verbal. O enunciado
deve ser considerado acima de tudo como uma resposta
a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera (a
palavra “resposta” é empregada aqui no sentido lato):
refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles,
supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta
com eles (p. 308 e 319).

Esta presença diz respeito à dimensão histórica da linguagem,


aspecto que faz convergir teorias de inscrição marxista. O lugar
no qual nos inscrevemos, os estudos do discurso com filiação em
Michel Pêcheux (AD), nos oferece algumas ferramentas para
pensarmos a relação do sujeito com o saber a partir da instância
da pergunta, especialmente a partir das noções de condições de
produção e de formação ideológica.
Nossa materialidade de investigação consiste em um instru-
mento de avaliação do estudante da Educação Básica, o qual, na
posição de respondente, é, naquele intervalo, sujeito de saber, que
precisa “prestar contas” acerca dos conhecimentos adquiridos ao
longo de sua escolarização, mediante um instrumento circunscrito
a partir de condições históricas específicas, sobre as quais passamos
a discorrer a partir de agora.

335
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

2. Os Jogos de Força e as Condições de Produção da Ins-


tância da Avaliação

Vale dizer que o ENEM é circunscrito por condições históri-


cas de produção que dizem respeito, em sua base, a uma divisão nas
formas de produção/distribuição do conhecimento. Este instru-
mento “foi criado em 1998 com o objetivo de avaliar o desempenho
do estudante ao fim da educação básica, buscando contribuir para a
melhoria da qualidade desse nível de escolaridade3”. E a partir de
2009 passou a ser utilizado também como mecanismo de seleção
para o ingresso no ensino superior.
Já conta, portanto, com dezenove anos de existência, dos
quais sete o têm caracterizado como mecanismo de seleção pró-
ingresso no Ensino Superior. Esta dimensão é ainda simultânea
ao Vestibular, o qual foi instituído em 1910, quando da criação dos
exames de admissão ao Ensino Superior, no contexto da Reforma
Carlos Maximiliano. Tal simultaneidade não se dá sem dissensos
e disputas, uma vez que tende a se configurar em um processo de
lenta e contínua substituição do Vestibular pelo ENEM. O que
acontece: o primeiro, de caráter fortemente elitista, historicamente
seleciona(va)4 para as sempre insuficientes vagas do ensino supe-
rior aqueles jovens pertencentes às camadas mais privilegiadas da
população e, portanto, a priori em tese já detentoras de melhores
vantagens. O advento do exame nacional, contemporâneo a políti-
cas de ampliação de vagas, promoveu mudanças significativas nas
políticas de acesso à universidade, porque passou a funcionar como
balizador nas formas de distribuição de vagas e, principalmente,
reconfigura a forma de avaliação.
A educação é instância que nunca esteve descolada dos pro-
cessos políticos e econômicos. No caso do Brasil, recortamos aqui
os antecedentes que remontam aos anos 30, quando a estrutura
3 http://portal.inep.gov.br/web/enem/sobre-o-enem.
4 A duplicidade do tempo verbal aponta, aqui, para o fato de que essa discrepância não tem
um ponto de equacionamento, ainda, na contemporaneidade, especialmente em cursos mais
tradicionais e disputados. No entanto, é preciso dizer que pontos de ruptura têm sido ins-
taurados, nos últimos anos, a partir da criação de políticas públicas de acesso, tais como as
cotas raciais, sociais, o próprio ENEM e o PROUNI. Contudo, a proposição e legitimação
de tais programas não se dá sem significativos embates no corpo social.

336
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

vigente de um ensino primário altamente elitizado contava com


defensores em prol da continuidade desta característica também
no secundário, em nome de uma suposta qualidade de formação. A
estratégia defendida, segundo Sposito (1984), era o assumir esta
responsabilidade pela iniciativa privada, com o argumento de que
se tratava de um “luxo aristocrático”. Tal ponto de vista “tinha
como substrato cultural o modelo do ‘liceu’ francês, destinado às
elites condutoras e centrado nas humanidades e na transmissão
da cultura greco-romana.” (ZIBAS, 2005, p. 2). Contudo, as ações
das forças populares foram, paulatinamente, enfraquecendo o
projeto das elites e reconfigurando a absorção social com o passar
do tempo. Contígua a essa reordenação, aconteceu a expansão do
nível médio, configurado, nos anos 60 e até meados dos 70, por
dois segmentos: o Científico e o Técnico. Também a crescente
chegada das camadas mais populares a esse nível demandou polí-
ticas as quais contaram com a gerência e interesse de organismos
internacionais, tal como o Banco Mundial. Zibas (op.cit.) aponta, a
partir de leitura de Ghiraldelli (1994), que é nesse contexto que se
delineou, em 1968, a defesa do então ministro do governo militar,
Roberto Campos, no sentido de que o ensino secundário perdesse
suas características voltadas à educação humanística e passasse a
assumir contornos de caráter mais prático e utilitário. Ora, esse
redirecionamento daria conta, simultaneamente, de dois objetivos:
a divisão do ensino em dois estratos, um direcionado às elites, que
continuariam seus estudos em nível superior, e outro, voltado ao
povo, que teria sua terminalidade ali mesmo, naquele nível. So-
mado a isso, a agilidade de formação de mão-de-obra voltadas às
necessidades da produção em um curto espaço de tempo.
Este foi o espírito que direcionou a elaboração da Lei 5692/71,
com um claro investimento teórico na profissionalização das cama-
das médias, carente, contudo, de suporte material e consequente
diminuição do potencial propedêutico. Este ponto de estrangula-
mento, aliado à contínua reconfiguração social, acaba surtir seus
efeitos de modo bastante acentuado no debate que se instalou nos
anos 90, período em que a pauta central, para educadores e Estado,
era os significados do ensino secundário, então designado de 2.

337
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Grau. É no contexto da adequação da escola para uma lógica de


mercado, na qual defendia-se o “produzir mais com menos”, que
nasceu a Lei de Diretrizes e Bases 9394/96, a qual ficou conhecida
como “LDB cidadã”. E a contradição do nome manifesta-se, den-
tre outros aspectos, pela segmentação entre a formação técnica, a
partir de então oferecida em módulos, e o ensino médio regular,
sob o argumento da demanda de aptidões diferenciadas.
A reforma trouxe em sua esteira mecanismos de avaliação
externa, dentre os quais se insere o ENEM, instrumento do qual
recortamos nosso objeto de investigação. Em um primeiro dado,
sobre o exame de 2002, já temos pistas acerca da problemática
central que envolve a Educação Básica de modo geral, no Brasil:

Ao focalizar o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM),


de 2002,
esses especialistas apresentam resultados contraditórios
dos dois testes que constituem a prova. As respostas dos
alunos ao teste de questões objetivas relativas a compe-
tências gerais estão dispersas, em 74% dos casos, na faixa
de 0 a 40 pontos (em uma escala de 100 pontos), ou seja,
entre “insuficiente a regular”. (...)Todavia, na prova de re-
dação, 72,3% dos sujeitos obtiveram resultados de “regular
a bom” (entre 40 e 70 pontos) (ZIBAS, 2005, p. 1077).

O que parece soar como uma contradição é explicitado por


Zibas (op.cit.) como consequência das características da prova de
redação, a qual deriva da proposição de quatro textos-base, nos
quais os alunos buscam suporte para a elaboração de suas respos-
tas, na maioria, paráfrases, para não dizer colagens, dos textos-
fonte. Esse expediente, somado à forma e pontuação, com escala
de 0 a 100, sem mensuração intermediária, concorre para que as
insuficiências de leitura restem não escrachadas nos resultados.
E aqui chegamos, após este breve percurso, à questão que
nos interessa de modo mais direto, qual seja, a relação entre os
constatados problemas de leitura e a ordem da formulação das
questões, querela esta que, segundo nosso ponto de vista, faz
intervir diretamente as fissuras do/no tecido histórico e social.

338
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Os estudantes, na condição de respondentes avaliados, são


identificados em sua singularidade jurídico-civil quando do
acesso aos portões das provas, quando fundem-se, para não dizer
perdem-se, na generalidade da soma contida em enunciados do
tipo “Os alunos de ensino médio, no geral, estão despreparados
em termos de leitura”; “interpretação de texto é a principal di-
ficuldade na prova de matemática”, dentre tantos outros. Para
além de uma mensuração quantitativa, o que funciona, nessas
discursividades, é o alçamento dos sujeitos, historicamente ins-
tanciados, à condição de coletividade. Condição esta que encontra
sua não-universalidade, de uma parte, naquilo que aloca esses
estudantes em sítios comuns ante as injunções dos diferentes
campos do conhecimento.
Sujeitos escolares que são, não podem se furtar à condição
da avaliação, no formato sob o qual ela se propõe, no caso, o obje-
tivo. A possibilidade da resposta única dada como correta, o que
acarreta o cerceamento da multiplicidade de sentidos, conforme
comentávamos anteriormente, é contingência das relações de força
inerentes ao sistema de avaliação tal como este se encontra posto.
A modalidade de questões do tipo múltipla escolha tem assen-
te no corpo social e não costuma ser questionada, salvo quando se
constatam problemas de formulação ou de resolução. O formato
em si, contudo, não é posto em causa. E é justamente esse aspecto
que é pautado/problematizado neste estudo. Os sujeitos estudantes
são não somente instados à avaliação, como também lhes é dado
o modelo a partir do qual devem enquadrar seus saberes. A pro-
dução do conhecimento resta, portanto, enformada, conformada
ao próprio da Formação ideológica dominante.
Essa condição delineia de modo peculiar o próprio da Forma-
ção Ideológica, a qual se constitui enquanto “conjunto complexo
de atitudes e de representações que não são nem ‘individuais’
nem ‘universais’, mas se relacionam mais ou menos diretamente
a posições de classe em conflito umas com as outras” (PÊCHEUX e
FUCHS, 1975, p. 166). Vale dizer que a instância ideológica põe
em relação de forças não apenas dissimetrias de ordem econômica,

339
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

como também disputas que se manifestam, entre outros, no campo


do conhecimento.
Por essa razão, atentar para o funcionamento da pergunta e
sua formulação na instância da avaliação diz respeito a uma reflexão
que não intenta a invalidação ou desqualificação da prova, da for-
mulação ou mesmo da especificidade de suas questões, antes, trata-
se de trabalhar com a leitura como trabalho da língua na e com a
história. Assim, se propõe a desconstrução das questões, começando
pela problematização do enunciado, no que diz respeito a aspectos
relacionados à compreensão derivada da formulação em si. A seguir
se propõe a discussão das alternativas, contrapondo aquilo que as
circunscreve como erradas em relação à considerada correta. Damos
especial atenção aos gestos de leitura tecidos pelos estudantes que
assinalaram opções consideradas erradas, porque entendemos que
aí residem ricas possibilidades de acesso à vazão dos sentidos, para
além dos problemas de compreensão ou lacunas de leitura.
O não fechamento encontra respaldo na perspectiva que
Pêcheux (1981) apresenta da leitura como “trituração”, aspecto
este que diz respeito às operações “de recortar, de extrair de des-
locar, de confrontar que se constitui o dispositivo mais particular
da leitura”. Diz respeito, ainda consoante o autor, “a dar lugar ao
inconcebível em um duplo gesto: conceber claramente o concebível
para mostrar o inconcebível”.
Trata-se, em nosso entendimento, de refazer/reconstituir
possibilidades outras de sentido, convocando, essencialmente, o
olhar sobre o objeto de conhecimento a partir de diferentes pris-
mas, perspectiva que a circunstância de avaliação nem sempre
possibilita. Assim, a prática da “trituração” tem sua materialização
em um segundo momento das atividades, quando os estudantes
são expostos a um conjunto de textos sobre um tema x recortado
da prova. Esse conjunto é levantado pelos acadêmicos, em oficinas
implementadas no Ensino Médio, a partir de um debate acerca da
abertura de diferentes perspectivas sobre o tema eleito. O levan-
tamento dos textos em suas respectivas pautas e inscrições nelas
já corresponde, em si, a gestos de leitura tecidos pelos acadêmicos.

340
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

3. Um recorte de análise

Desse modo trazemos, aqui, um recorte de questão como exem-


plar desses movimentos, qual seja, a questão de n. 110, da prova
Linguagens e suas Tecnologias, segunda aplicação do ano de 20165:

Questão 110

Figura 1:

Fonte: Disponível em: www.superplacas.com.br. Acesso em: 3 ago. 2012.

A presença desse aviso em um hotel, além de informar


sobre um fato e evitar possíveis atos indesejados no local,
tem como objetivo implícito:

A) isentar o hotel de responsabilidade por danos


causados aos hóspedes.

B) impedir a destruição das câmeras como meio de


apagar evidências.

C) assegurar que o hotel resguardará a privacidade dos


hóspedes.

D)inibir as pessoas de circular em uma área específica do hotel.

E) desestimular os hóspedes que requisitem as imagens gravadas.

5 Disponível em http://portal.inep.gov.br/provas-e-gabaritos, acesso em10/12/16.

341
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

É interessante atentar-se para a organização da materiali-


dade linguística na formulação, a qual possibilita que pensemos
acerca de algumas questões atinentes à ordem do discurso. Já em
Port-Royal (1992) encontra-se reflexão acerca da relação entre
o infinitivo e o pronome relativo que faz intervir a proposição
incidente no enunciado:

me parece que o infinitivo representa entre os outros


modos do verbo aquilo que o relativo é entre os outros
pronomes. Como dissemos que o relativo tem, a mais que
os outros pronomes, a propriedade de ligar a proposição na
qual entra a uma outra, creio igualmente que o infinitivo
tem, além da afirmação do verbo, esse poder de ligar a
proposição que está a uma outra (p. 105).

A forma infinitiva, no caso desse tipo de questões objetivas,


cumpre o papel de “atar” a proposição do enunciado-pergunta às
alternativas propostas, cada uma delas passando a compor forma
assertiva sujeita à valoração do verdadeiro ou falso. A disposição
em coluna, das opções dentre as quais uma será escolhida, convoca
o sujeito interlocutor a completar o enunciado proposto.
Em um exercício de desdobramento sintático, podemos contar
com duas possibilidades em relação à composição da alternativa
dada como correta, no caso, a da letra C:

a) A presença desse aviso em um hotel informa sobre um fato, evita


possíveis atos indesejados no local e, como objetivo implícito, assegura
que o hotel resguardará a privacidade dos hóspedes.

a’) É a presença desse aviso em um hotel que informa sobre um fato e


evita possíveis atos indesejados no local; e expressa, como objetivo
implícito, a garantia de que o hotel resguardará a privacidade dos
hóspedes.

Essa construção produz, de um lado, o apagamento da diretivi-


dade da estrutura da pergunta, ao estabelecer um efeito de simetria
entre a instância da pergunta e a da resposta, na medida em que há
um gesto de preenchimento, de parte do respondente, do enunciado-

342
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

pergunta, incompleto. É como se o sujeito respondente adentrasse


afirmativamente a ordem discursiva linearizada, e aí se reconhecesse.
O efeito de “é isso”, que aprendemos de Pêcheux (1988), e que cor-
responde aos modos de identificação do sujeito na base da evidência,
do “todo mundo sabe que”, “é claro que”. De outro lado, correlato a
este, as alternativas excluídas pela suposta incorreção concorrem
para corrobar o caráter de veracidade daquela dada como correta,
delineando uma fronteira estável e visível entre o verdadeiro e o falso
na ordem do mundo, a qual se materializaria pela ordem da língua.
Contudo, o princípio do equívoco como condição inerente à
linguagem expõe os enunciados, mesmo aqueles enquadrados em
contextos de veridição avaliativa, ao fato de que o sentido sempre
pode ser outro, porque não se coloca sob a injunção de universos
logicamente estabilizados, nos termos de Pêcheux (1997).
Embora a alternativa dada como correta tenha sido a da letra
C, por outro lado, também é possível prever leituras outras, apre-
endidas a partir das lacunas dos não-dito. Assim é que podemos
nos perguntar: que tipos de danos podem ser previstos a partir
da leitura da alternativa A? Quando uma pessoa está hospedada
em um hotel, todo e qualquer dano que lhe seja causado é de res-
ponsabilidade do estabelecimento? Pressupondo que alguns não
necessariamente o sejam, o aviso de que o ambiente está sendo
filmado torna a alternativa A correta em um certo sentido. Na
situação hipotética da ocorrência de um evento em que qualquer
pessoa, sendo ou considerando-se imputada de culpabilidade qui-
sesse destruir as câmeras como artifício de extinção de provas, a
alternativa B também poderia ser considerada correta. Ainda, o
fato de constar, no mesmo enunciado, que “as imagens são con-
fidenciais e protegidas na forma da lei”, desestimula os hóspedes
a requisitarem as imagens gravadas, ao menos à revelia de uma
necessidade específica que autorize a quebra do sigilo. Essas pon-
derações, ainda que breves, nos levam a problematizar a relação que
se estabelece entre a força ilocucional6 contida nos enunciados do

6 A noção de força ilocucional, tributária a John L. Austin (1958), no âmbito da teoria dos atos
de fala, concerne a ações produzidas em decorrência de atos produzidos por se falar com,
por exemplo, informar, ordenar, avisar, comprometer-se, ameaçar, dentre outros tantos.

343
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

aviso e os possíveis efeitos de sentido gerados por ele. Desfaz-se,


ainda que no âmbito de mundos possíveis, a exclusividade da força
de ação da linguagem prevista na alternativa C, a qual esfacela-se
em possibilidades múltiplas. Em outras palavras, o enunciado pode
produzir força de promessa na garantia da segurança, assim como
produzir efeito de força de desobrigação em relação ao outro, a
partir da proposição A; força de ameaça a partir da proposição B;
efeito de força de recuo a partir da alternativa D; força de proibição
na alternativa E. O que resta em causa são as múltiplas relações de
sentido que os sujeitos podem estabelecer com a realidade concreta
a partir da linguagem.
Ainda consoante os gramáticos de Port-Royal, a natureza do
verbo é constituir-se como “palavra cujo principal emprego é signi-
ficar a afirmação, isto é, indicar que o discurso, em que essa palavra
é empregada, é o discurso de um homem que não concebe somente
as coisas, mas que as julga e as afirma” (p.85). Tanto o texto que
deriva as questões, quanto as formulações que dele se fazem res-
pondem a um enquadramento que produz um recorte específico da
realidade, determinado por um princípio de julgamento. Trata-se
do funcionamento das adjetivas restritivas, aspecto esse privilegia-
do por Pêcheux (1988) para tratar dos processos de determinação.
Acerca disso, Catellan (2013) afirma que “No caso das restritivas, as
coisas parecem ocorrer como resultado da atividade de um analista
capaz de catalogar o mundo e estabelecer conjuntos de indivíduos
que se diferenciam dos demais, constituindo subconjuntos dentre
os segmentos mais gerais ” (p. 403). Uma postura idealista, ainda
segundo o mesmo autor, a visão de “um sujeito liberado de cons-
trições, que observa o mundo e, ‘cientificamente’, diz o que ele é,
aparentemente, à revelia de crenças, cultura, ideologia, doutrina,
disciplina, dentre outros aspectos” (p.404).
Importa sublinhar que o jogo de imagens que é posto em
funcionamento projeta, para os respondentes, não exatamente o
cenário de um hotel e suas condições reais de existência. Antes,
o enunciado é deslocado para as condições de enunciação de uma
prova, e é a partir daí que se projeta o esperado pelo interlocutor
possível, para o qual provavelmente não interessam as hipóteses

344
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

por nós levantadas e não contempladas para além da alternativa


considerada correta.
Contudo, é preciso considerar que é justamente esse desloca-
mento que produz injunções específicas acerca do modo como se
lê, sob os efeitos do discurso pedagógico escolar e em contexto de
avaliação. Se se tratasse de gestos de leitura afetados pelo real da
história, por práticas nas quais os sujeitos se encontram imersos
quotidianamente, as possibilidades se multiplicariam diante das
relações de força que seriam colocadas em confronto.

Algumas considerações finais

Diante do exposto, pode-se dizer que a alternativa proposta


como correta, pelo ENEM, instaura pontos de deriva, não apenas
porque convoca outras possibilidades, do ponto de vista dos saberes
mobilizados pelos estudantes, mas especialmente porque põe em
causa o modo como se dá a relação do sujeito de saber, a voz-sem-
nome que aí fala em nome do objeto de conhecimento em causa. Essa
voz sem nome, que seria a instituição, discursivamente assumida no
lugar da escola, pelos professores, pelos instrumentos avaliativos,
coloca-se dicotomicamente em relação à posição dos estudantes,
configurados no lugar de sujeitos “a saber”. É como se no primei-
ro eixo tudo estivesse posto, a priori, e no outro, o dos estudantes,
residisse apenas o campo do devir. É fato inegável que a instituição
escolar é o lugar autorizado de saber, e aos mestres cabe a função
de ensinar. Contudo, esses papéis não se encontram postos de modo
assim tão transparentes. No que tange à formulação da pergunta,
nosso objeto específico de investigação/discussão, entendemos que
a escola precisa explicitar aos estudantes sua inscrição na ordem
de um discurso objetivo, que produz efeitos de apagamentos na
formulação, conforme a análise demonstrou. O acessar esse modo
específico de funcionamento diz respeito à compreensão do próprio
modo de funcionamento do campo das ciências. Sob pena de, não se
fazendo compreender, restar instaurado um diálogo de surdos, no
qual a escola pergunta não para ser ouvida. E as coisas-a-saber, de
que nos falava Pêcheux (2006), restarão inúteis.

345
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Referências

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São. Paulo: Martins Fontes,


2000.
CATELL AN, João Carlos “Michel Pêcheux: entre o óbvio e o
nome complexo”. In: Alfa, São Paulo, 57 (2): 389-412, 2013
(p.389-412). Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/
viewFile/5074/4667. Acesso em 10/03/17.
GHIRALDELLI JR., P. História da educação. São Paulo: Cortez, 1994.
PÊCHEUX, Michel. Ouverture du colloque. Matérialités discursives.
Colloque dês 24, 25, 26 avril 1981 Université Paris: Presses
Universitaires de Lille, 1981.
______. Semântica e discurso: Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 1988. 
______. O discurso: estrutura ou acontecimento. 4ª edição. Campinas, SP:
Pontes Editores, 1997.
PÊCHEUX, Michel; FUCHS, Catherine. [1975] A propósito da análise
automática do discurso: atualização e perspectivas. In: GADET,
F.; HAK, T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso. 3. ed.
Campinas: Unicamp, 1997, pp. 163-252.
SPOSITO, M. O povo vai à escola. São Paulo: Loyola, 1984.
ZIBAS, Dagmar, M.L. « Refundar o Ensino Médio? Alguns antecedentes e
atuais desdobramentos das políticas dos anos de 1990. In: Educação
e Sociedade, Campinas, vol. 26, n. 92, p. 1067-1086, Especial - Out.
2005. P. 1067-1086. Acesso em 27/12/2015. Disponível em: http://
portal.inep.gov.br/web/enem/sobre-o-enem. Acesso em 15/03/17.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

A ESCRITA ACADÊMICA DO ALUNO NA


UNIVERSIDADE: NA TENSÃO DOS DISCURSOS
CIENTÍFICO, ACADÊMICO E PEDAGÓGICO1

Sandro Braga
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Janaina Senem
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Introdução

E screver na universidade pode não ser uma tarefa simples, uma


vez que o sujeito que escreve nesse lugar precisa se estabe-
lecer num jogo que consiste em estar, ao mesmo tempo, dentro e
fora dessa escrita. Como decorrência dessa contradição, muitos
alunos ao ingressarem na graduação, e até na pós-graduação, en-
contram dificuldades para se inscrever nesse processo de escrever
que requer um efeito de objetividade marcado pela presença do
objeto científico e pela ausência do eu. Desse modo, este trabalho
se justifica ao problematizar a questão da inscrição do sujeito na
escrita acadêmica, tendo em vista a assunção à autoria do aluno
no âmbito do ensino superior. Assim, almejamos compreender os
movimentos que incidem em maior ou menor gesto de autoria na
constituição do sujeito que se põe a dizer na produção do texto
acadêmico, gesto esse implicado pelo pré-construído e pelo modo
de funcionamento dos discursos científico, acadêmico e pedagógico.
Com esse propósito, partimos, sobretudo, dos pressupostos
teóricos da Análise de Discurso de inspiração francesa, mais
1 Este texto trata-se de uma síntese de um trabalho bem mais amplo ainda no prelo.

347
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

especificamente dos trabalhos de Pêcheux (1990 [1969]; 2014


[1988]), Foucault (1989 [1979], 2001, 2012 [1970]), Authier-
Revuz (1990), Orlandi (1996; 2013) e Galo (1995; 2008) para
compreendermos como o sujeito se inscreve, como autor, quando
escreve em uma escrita que visa a “objetividade científica”, ainda
que esta não passe de uma ilusão afetada pelos modos de funcio-
namento do discurso de ciência.
A escolha dessa problemática que contempla os modos de
o sujeito ocupar uma posição na escrita acadêmica, alçado pela
função-autor, parte de questões que se tem levantado na área acerca
de como se dão as práticas de escrita nos processos de ensino e
aprendizagem no ensino superior, bem como a importância da di-
vulgação acadêmica como forma de disseminação de conhecimento.
Percebemos, de saída, que um dos problemas inerente à escrita
acadêmica está associado a uma visão de língua como transparente,
neutra e objetiva, sobretudo aquela que parece configurar o dis-
curso científico, uma vez que esse discurso almeja a manutenção
de uma “pureza científica”. Ou seja, uma linguagem destituída do
sujeito que diz, e que se centra no próprio objeto que refere. Essa
visão de língua, a partir da Análise do Discurso, se institui como
uma ilusão, pois não se pode pensar em discurso sem sujeito e,
consequentemente, sem ideologia. Assim, dizer, mesmo na escrita
acadêmica, implica um modo de o sujeito mobilizar a língua, e essa
língua revela tanto a produção de sentido ao referente quanto
o próprio sujeito constituído sócio-historicamente que se põe a
dizer nesse ato.

1. Discurso, sujeito e autoria

O sujeito é determinado ou “assujeitado” à língua, à história,


ao inconsciente e à própria ideologia, mas também é livre dentro
dessas delimitações que lhe são impostas. Em outras palavras, a
relação do sujeito com o discurso, com a história e com a ideologia
se situa em uma relação de liberdade com responsabilidade e, de
certo modo, é condicionada pelas conjunturas e possibilidades de
ser sujeito.

348
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Para refletirmos acerca da inscrição (ou não) do sujeito na es-


crita acadêmica, pensamos em sua constituição como autor, enten-
dendo a autoria como constitutiva do texto e, consequentemente,
presente em toda prática discursiva que suscita a responsabilidade
daquele que diz por aquilo que diz. Assim, “[...] a noção de autor
é já uma função da noção de sujeito, responsável pela organização
do sentido e pela unidade do texto, produzindo o efeito de con-
tinuidade do sujeito.” (ORLANDI, 1996, p. 68-69). A assunção à
autoria se caracteriza, então, nesse processo em que um sujeito
inscrito em uma determinada posição procura organizar seu dizer,
de forma coerente e com efeito de fecho, de unidade, e assume a
responsabilidade por essa organização (ORLANDI, 2013).
Tendo isso em mente, a assunção à autoria é compreendida
como gesto de interpretação do sujeito que organiza seu dizer
com base no já-dito (interdiscurso2).
Imbricada à noção de autoria está a concepção de texto,
visto que “[...] a autoria não é uma qualidade, mas uma prática
na configuração de um texto.” (LAGAZZI-RODRIGUES, 2015,
p. 109). Nessa perspectiva, o texto não é entendido sob a lógica
da linguagem transparente, em que o sentido já está ali posto,
cabendo ao leitor descobri-lo. Para a Análise do Discurso, o texto
é materialidade histórica e deve ser compreendido em sua relação
com outros textos, com as condições de produção e com o inter-
discurso. Assim,
Desse modo, olhar a escrita acadêmica sob a perspectiva dis-
cursiva é buscar compreender suas particularidades, mas acima
de tudo se atentar para o texto enquanto unidade, materialidade
linguística e histórica que produz efeitos de sentido, como em
qualquer outra forma de produção textual. É através da percep-
ção das possibilidades de abrangência desses efeitos de sentido
que se pode perceber o funcionamento do discurso, as formações
discursivas, formações imaginárias e ideológicas que ali operam.
2 Orlandi (2013) define interdiscurso, com base em Pêcheux, como o já dito, ou, ainda, a
memória discursiva. Nesse sentido, ele é da ordem do repetível, da constituição do dizer.
Para Pêcheux (2014 [1988]), o interdiscurso é da ordem de um pré-construído dominante
das formações discursivas que por sua vez dissimula o sentido como sendo transparente na
linguagem.

349
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Além disso, é interessante não perder de vista a relação entre


texto e autoria na escrita acadêmica, pois se o trabalho da autoria
consiste em um gesto de interpretação sobre o texto e o texto
se situa em uma relação com a exterioridade, a exterioridade do
discurso acadêmico opera na constituição da autoria e dos textos
produzidos nessa esfera. É justamente sobre essa exterioridade
que trataremos no tópico a seguir.

2. Verdade, ciência, saber e poder

Tendo como pressuposto as proposições do campo da Aná-


lise do Discurso, não se pode pensar em qualquer situação que
envolva o uso de linguagem sem se remeter às condições de
produção das quais tal prática social é mobilizada, e na escrita
acadêmica isso não pode ser pensado de forma diferente. Isso
porque são as condições de produção que possibilitam a formação
de sentidos que se entrelaçam com a memória (interdiscurso) e
se situam em uma (ou mais) formação(ões) discursiva(s). Para
isso, procuramos refletir, inicialmente, sobre a forma de operar
da escrita acadêmica, tendo em vista a constituição e o funcio-
namento do discurso científico e do discurso acadêmico, para,
em seguida, conjecturar sobre o modo como se dá essa escrita
quando ela passa a ser objeto de práticas de ensino e aprendiza-
gem no ensino superior, e, assim, afetada, também, pelo discurso
pedagógico.
De partida, ressaltamos que, sob a perspectiva que assumimos,
a escrita é entendida como uma prática social sempre concreti-
zada a partir das relações entre o sujeito-autor que escreve e o
leitor (PEREIRA, 2013). Ainda sobre essa concepção de escrita,
Pereira (2013) afirma que a escrita é também algo que as pessoas
fazem para si mesmas3. Assim, é pelo próprio processo de escrita,
no qual se organiza o pensamento, que se pode mudar de dire-

3 No sentido abordado, não significa que não haja sempre um “para quem” da escrita, pelo
contrário, como prática social ela sempre está engajada nesse processo de relação com o
outro. Entretanto, esse uso que as pessoas fazem da escrita para “si mesmas”, que também
implica o outro, é no sentido da própria construção do pensamento que se dá nessa prática
social, conforme Pereira (2013).

350
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

ção, tomar outros rumos (ou ainda criar um rumo) e desenvolver


ideias, conceitos (PEREIRA, 2013). Nessa acepção, podemos nos
perguntar: Como se dá a escrita acadêmica, sobretudo aquela
solicitada e produzida por alunos no âmbito do ensino superior?
Como esses sujeitos se inscrevem nessa prática e quais os entraves
podem surgir para o aluno-autor tomar voz nessa prática social
tão fortemente marcada pelo institucional?
A escrita acadêmica, conforme aponta Pereira (2013), é um dos
grandes pontos que diferencia a ciência das outras formas de saber.
A ciência e seu compromisso com a validação, com a verdade e com
a posição que ocupa de legitimação optou em apagar o sujeito em
nome de uma neutralidade inatingível “como se o texto científico
pudesse se elevar para além do mundo e da história” (PEREIRA,
2013, p. 216). Dessa forma, o discurso da ciência vê a linguagem
como transparente e acaba por ignorar as condições históricas e
ideológicas que perpassam a constituição dos discursos e, conco-
mitantemente, a constituição do sujeito.
Nesse sentido, ao retirar a história, a ciência “apaga” também
o sujeito que diz, buscando estabelecer um efeito de neutralida-
de entre realidade e linguagem na qual esta só teria a função de
retratar aquela. Dessa forma, a ciência aponta para uma visão da
língua como representação do mundo material em que a escrita é
somente um meio para se alcançar o que de fato significa: o objeto
(PEREIRA, 2013).
Essa visão de língua como objetiva, não sujeita a falhas, desis-
toricizada, que exclui o sujeito que diz, é aquela com que muitos
alunos se deparam ao adentrar na universidade.
A partir do exposto, somos levados a pensar que as condi-
ções de produção que permeiam os discursos científicos parecem
colocar o sujeito em um entre-lugar no qual ao mesmo tempo em
que se instaura a necessidade de dizer algo novo, tendo em vista
a competitividade e a produtividade científica, esse dizer deve
apagar a voz daquele que diz em nome de uma manutenção da
verdade, de uma “pureza” científica (LYOTARD, 2009 [1979]).
Em outras palavras, é dizer algo novo e não se mostrar presente,

351
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

como se fosse possível alcançar uma neutralidade na linguagem.


O dito destituído do eu que diz.
A competitividade científica que leva à necessidade de dizer
algo novo é pensada também através da relação entre saber e po-
der, uma vez que o saber é um mecanismo de poder (FOUCAULT,
1989 [1979]). Assim, há uma luta “[...] em torno do estatuto
da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha.”
(FOUCAULT, 1989 [1979], p. 13).
Nesse sentido, o político faz parte da constituição do discurso
científico e, por esse motivo, fez-se necessário levarmos em conta
as condições de produção que permeiam os textos-materialida-
des de tal discurso. Em outros termos, é de suma importância
considerar-se que o discurso da ciência se institucionaliza por
intermédio de sua injunção ao discurso acadêmico. Dessa forma,
surgem questões que demandam reflexões ainda não formuladas:
Como se constitui e como funciona o discurso acadêmico que traz
no bojo um outro discurso, neste caso, o científico? Quais seriam
os pontos de aproximação e de distanciamento entre esses dois
discursos, muitas vezes, tomados como sinônimos? Essas questões
nos guiarão na seção que segue.

3. Entre o científico, o acadêmico e o pedagógico

Ainda com o ensejo de tentarmos caracterizar a escrita


acadêmica, é oportuno, primeiramente, delimitarmos que tipo de
escrita acadêmica tomamos como objeto. Sob esse prisma, é pre-
ciso identificar quem é o sujeito que está posto nessa condição de
produção de texto; bem como qual é o objetivo e o endereçamento
dessa escrita. Dito de outro modo, é preciso levar em conta se
aquele que escreve alça de um estatuto de pesquisador (titulado e
já colocado profissionalmente) ou se é um estudante (neste caso,
de graduação? De mestrado? De doutorado?), e com que finalidade
escreve: para publicação em periódicos científicos, livros teóricos
ou para atender à demanda de disciplinas com vistas à avaliação
do texto e, por conseguinte, do próprio estudante.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Apontadas essas implicações de “quem escreve?” e “para


que se escreve?”, assinalamos que nosso interesse com a escrita
acadêmica é com aquela fruto, produto, resultado do modo de es-
crever realizado pelo sujeito que se encontra na posição de aluno-
universitário e que tem por fim a escrita acadêmica compreendida
como ascensão ao discurso científico. No entanto, o modo de apro-
priação e de inscrição a esse discurso da ciência – materializado
a partir da entrada no discurso acadêmico – acontece agenciado
no âmbito do processo de ensino e aprendizagem dessa escrita,
ou seja, atravessado, também, pelo modo de funcionamento do
discurso pedagógico. Dessa forma, para depreendermos o modo
de operar a palavra na escrita (acadêmica), propomos pensá-lo
como uma prática que se realiza entre o acadêmico e o pedagógico
com vistas a inscrever no discurso científico o aluno que escreve
no ensino superior.
Para se compreender o discurso científico, é importante con-
siderar que, de acordo com Foucault (2008), a ciência se constitui
de um “campo de possibilidades estratégicas” que se caracteriza
como um princípio de formação e dispersão de enunciados que
podem ser ditos em um determinado momento histórico, ou
seja, que compõem certas formações discursivas. Dessa forma,
entende-se a ciência como um princípio que possui suas regras
de estruturação sintática e semântica, de acordo com o objeto de
que se fala, mas, além disso, como possibilidade de se inscrever na
história. Isto é, como um discurso que se constitui de um grupo
de enunciados que são possíveis de serem ditos em um momento
histórico (formações discursivas) e que não, necessariamente, tem
o mesmo funcionamento do que era compreendido como ciência
em um momento anterior.
Nesse sentido, entendemos que o discurso científico pode ser
pensado a partir dos procedimentos de controle e de delimitação
do discurso propostos por Foucault (2012 [1970]). Sabemos que
esses procedimentos constituem diversos discursos, mas acredi-
tamos que, em especial os princípios internos e externos, apon-
tados por Foucault, caracterizam, sobremaneira, o discurso da
ciência na medida em que relacionam poder e saber. Os princípios

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

externos - interdição, separação e rejeição, e vontade de verdade - re-


gulam o que pode e deve ser dito, determinam as classificações e
categorizações que se realizam pelo e no discurso, tendo em vista
o lugar discursivo que se pode ocupar. Por exemplo, do lugar de
professor universitário pode-se dizer certas coisas em relação à
escrita acadêmica que o aluno, tendo em vista o imaginário cons-
titutivo da universidade como espaço para o ensino e produção
dessa escrita, imagina que possam ser ditas (corretas) e que a partir
de seu lugar como aluno ele não pode dizer (porque ainda não
possui esse conhecimento). Ainda ressaltamos, desses princípios,
que a vontade de verdade está implicada no discurso científico, pois
a ciência funda-se implicada com a verdade, sob a ilusão de um
dizer verdadeiro, ou seja, um dizer que diz dizer a verdade e essa
verdade constrói o saber.
Já os princípios internos comentário, disciplinas e autoria são
entendidos por Foucault (2012 [1970]) como mecanismos consti-
tutivos dos discursos e que exercem o seu próprio controle e carac-
terizam o discurso científico. O comentário é compreendido como
sendo da ordem de um deslocamento entre um texto primeiro e
um texto segundo, está presente em diversas práticas discursivas
científicas; a autoria é vista como princípio de agrupamento do
discurso; e as categorizações das disciplinas emergem do campo a
partir do qual o que pode ser dito precisa estar no limite do ver-
dadeiro. Assim, esses procedimentos, no discurso científico, jogam
na relação entre poder e saber que sustenta o dizer da ciência como
um dizer institucional.
Em relação à instituição acadêmica e, em específico, às mui-
tas demandas de escrita acadêmica na universidade, é importante
acrescentar que esse campo de saber se constitui no entremeio,
ou melhor, na sobreposição do discurso científico e do discurso
acadêmico. No que tange ao modo de funcionamento do discurso
acadêmico na escrita do aluno no ensino superior, cabe dizer que
esse discurso pauta-se pelo dizer da ciência, mas, também, está
imbricado, sobremaneira, pelo discurso pedagógico, visto que a
escrita acadêmica com pretensões ao científico acontece – nesse
espaço – no ponto de confluência do processo de ensino e de

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

aprendizagem dessa escrita. A produção de uma monografia, por


exemplo, se insere no discurso acadêmico e, ao mesmo tempo, é
alçada pelo discurso científico, sendo que essa produção se dá,
necessariamente, afetada pelas marcas do processo de aprendi-
zagem, que podem ser entendidas como características do dis-
curso pedagógico sobre o discurso acadêmico. Diferentemente, a
produção de um artigo científico pode ou não estar afetada pelo
discurso pedagógico. Quando o artigo é tomado como objeto para
o estudante “aprender” a caracterização, a constituição e o modo
de produção desse gênero textual, este processo está inscrito no
discurso acadêmico orientado pelo discurso científico, mas não se
descola do discurso pedagógico. Já quando o artigo tem como foco
primeiro sua produção vista à publicação em periódico científico,
insere-se, também, no acadêmico como possibilidade deste dizer
sobre a ciência, mas não mais se vê acoplado ao discurso pedagó-
gico, não ao menos como aquele que funciona nos processos de
ensino e aprendizagem.
Assim, chegamos ao ponto que julgamos importante a esta
discussão, levando-nos a afirmar que o discurso acadêmico toma-
do como objeto do discurso pedagógico não se configura como
discurso da ciência, necessariamente; portanto discurso acadêmico
e discurso científico não devem ser compreendidos como sinôni-
mos. Disso apontamos que o discurso acadêmico não é o discurso
científico; é um discurso sobre a ciência em que a própria ciência
se constitui. A partir do exposto, entendemos que o discurso aca-
dêmico – quando tomado como objeto de ensino e aprendizagem
– volta-se para o ensino do discurso da ciência e, também, para o
processo de produção de conhecimento, ao mesmo tempo, podendo
constituir-se ou não como produção científica.
Cabe, ainda, apontarmos a proposição de Orlandi (2003) acer-
ca da caracterização do funcionamento do discurso pedagógico.
Para isso, a autora diferencia três tipos de discurso: o lúdico, o
polêmico e o autoritário. O discurso lúdico é entendido pela aber-
tura total do sentido, abrindo caminho para o “nonsense”, sem
qualquer controle do sentido; o discurso polêmico apresenta uma
abertura controlada do sentido, em que os interlocutores podem

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

atuar conjuntamente produzindo gestos de interpretação; já o dis-


curso autoritário produz um fechamento da significação e impõe
um sentido único, fazendo que a única explicação do sentido seja
‘é porque é’. Disso, Orlandi (2003, p. 15) entende que o discurso
pedagógico se caracterizaria a partir do funcionamento dessas três
tipologias discursivas. No entanto, considerando as condições de
produção do discurso pedagógico em ambiente escolar, a autora
assevera que este funciona sob o predomínio da tipologia de dis-
curso autoritário, uma vez que sob a égide de discurso pedagógico
marca-se a ação impositiva do enunciador (na posição de professor)
em relação ao enunciatário (na posição de aluno).
Por fim, reforçamos a ideia de que no tocante ao trabalho
realizado com a produção escrita no ensino superior, este se re-
aliza justamente na confluência entre os discursos pedagógico,
acadêmico e científico, uma vez que as práticas de escrita na uni-
versidade se configuram na medida em que o sujeito, na posição
de aluno-universitário, inscreve-se no discurso acadêmico, guiado
pelo discurso pedagógico, visando à produção e o efeito de discurso
da ciência.
A partir das reflexões que propomos sobre as condições de
produção da escrita acadêmica, partimos para a reflexão sobre os
modos de o sujeito na posição de aluno do ensino superior ocupar
a função-autor na confluência desses três discursos.

4. Da inscrição do sujeito

É frequente no ensino superior disciplinas que visam proces-


sos de ensino e aprendizagem da escrita acadêmica pautarem-se
em manuais em que essa escrita é tratada como uma técnica a ser
adquirida pelos estudantes. É recorrente, também, esses manuais
abordarem mais questões referentes aos elementos formais alçados
pelos mais diversos gêneros textuais que circulam na universidade
que propriamente pelo modo de como a escrita desses textos po-
dem ser produzidas. Não é nossa intenção neste trabalho fazermos
análise e/ou crítica desses materiais, até porque reconhecemos a
função desses como referência para o reconhecimento das estru-

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

turas e dos elementos dos gêneros acadêmicos, mas chamamos a


atenção para o tratamento dado à linguagem e à produção textual
por esses compêndios, no que tange ao ensino da escrita como
técnica. Técnica esta que se mostra até mesmo contraditória
quando se propõe a apregoar, por um lado, a exigência do rigor
científico no texto, de modo que subjetividades e emoções pessoais
não apareçam, fazendo uso de linguagem impessoal e objetiva (de
sentido único); e, por outro, solicita àquele que escreve evitar o
excesso de citações, diretas ou parafraseadas para que o leitor possa
acessar a visão daquele que escreve sobre determinado assunto.
Contradição que pode, também, ser percebida ao recomendar o uso
a alusões ao um referencial teórico determinado como respaldo de
autoridade à própria argumentação e, ao mesmo tempo, solicitar
a presença uma própria voz como forma de garantir a ascensão
autoral dentro texto.
Diferentemente de uma concepção que se pauta na ideia da
escrita como um modelo a ser desenvolvido, uma técnica a ser
apreendida, isto é, como uma capacidade que os alunos precisam
adquirir, compreendemos a escrita como prática social e ideológica
situada historicamente. Dito de outro modo, compreendemos que
as chamadas técnicas de escrita acadêmica são como são porque
também foram constituídas a partir da ideologia constitutiva de
certos discursos: nesse caso, prioritariamente do discurso cientí-
fico, que, por conseguinte, aspergiu suas características ao modo
de se materializar no/pelo discurso acadêmico. A partir daí, o
discurso pedagógico, apropriando do modo de funcionamento
de tais discursos, busca reverberar a ciência sobre o seu próprio
modo de operar, razão pela qual não é raro tais discursos serem
confundidos e/ou tomados como sinônimos.
Interessante notar que já na Idade Média as práticas discur-
sivas de escrita reverberavam uma visão da escrita como prática
desambiguizada, de representação de um sentido único e sem
rupturas, em oposição à oralidade vista como prática ambígua e
incompleta. Segundo Gallo (1995, p. 47, grifos da autora), nesse
mesmo período histórico “[...] a Escritura era a única escrita possí-
vel. Escritura e Escrita se identificavam.”. Por Escritura entende-se

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

a Palavra Sagrada ou de Deus que se constituía pelo latim. Ao se


relacionar com a religião, essa escrita implicava em uma Palavra
que deveria ser ouvida sem questionamento, pois se constituía
pela divindade, e que, consequentemente, se pautava nessa visão
da linguagem como transparente. Na sequência, com a influência
do estabelecimento das leis pelo Estado, as práticas de escrita se
ampliaram para além da religião, fazendo com que os contratos
jurídicos, antes feitos oralmente, passassem a ser escritos.
É nesse sentido que se vê, ainda, concepções de escrita como
prática passível de ser ensinada através de um modelo, que visa,
muitas vezes, suprimir as ambiguidades e “incoerências” do tex-
to como se o sentido fosse um único só e estivesse ali apenas na
materialidade linguística. “[...] não é o léxico, nem a sintaxe que
legitimam uma produção linguística. Na verdade, um e outro são
produtos de um processo histórico e político. A legitimidade da
Norma é um efeito ideológico, efeito este que concorre para a
produção de um sentido ‘único’.” (GALLO, 1995, p. 51).
É interessante notar que o discurso histórico-pedagógico-
científico do Brasil, especificamente, será desde o princípio mar-
cado por um modo de dizer; um dizer de fora para falar do de
dentro. Nas palavras de Gallo (1995, p. 52): “O Brasil será dito
pela Língua Portuguesa e esta lhe imputará o verdadeiro sentido”.
Essa questão é, ainda, apontada pela autora como um ponto pa-
radoxal na constituição do autor brasileiro, pois, “[...] ao mesmo
tempo que [o autor] está na base de uma produção ‘original’, só se
realiza dentro de um campo discursivo já cunhado e devidamente
legitimado” (GALLO, 1995, p. 54). Esse paradoxo que constitui
a autoria brasileira se aproxima do que Orlandi (2003) pontua na
constituição do intelectual brasileiro como sempre dependente
de autores estrangeiros; fator que pode por princípio limitar a
“originalidade” de um autor brasileiro.
Voltamo-nos ao texto escrito num viés discursivo. Ao produ-
zir um texto que se insere no discurso de escrita, o sujeito está,
de fato, compreendendo (ainda que não conscientemente) como
o texto é produzido, em especial, por reconhecer a ambiguidade

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

constitutiva do dizer. Isto é, perceber que o sentido não está já


posto no texto, e se inscrever na posição de autor como respon-
sável por aquilo que diz e, ainda, buscar um efeito de fecho e de
unidade. Esse efeito de fecho e unidade se caracteriza, de acordo
com Gallo (2008), como da ordem do texto enquanto efeito da
prática de textualização.
Assim, entendemos a textualização como a prática de consti-
tuição de um texto que envolve o processo de escrita e produção
de sentidos de acordo com as condições de produção. Nesse viés,
entendemos o texto como efeito da textualização, ou seja, “[...]
não há TEXTO enquanto um objeto que tenha uma existência
independente da prática de sua produção (ou de sua reprodução).
Na verdade, é a prática de TEXTUALIZAÇÃO que produz o
TEXTO.” (GALLO, 2008, p. 43, destaques da autora). Assim, cada
prática de escrita irá suscitar a mobilização de certos sentidos, e
não de outros, que fazem parte da prática de constituição do texto
enquanto efeito, o que entendemos como efeito-texto.
É importante pontuar que essa escrita é determinada por uma
visão de saber científico que se institui em complexas relações de
poder, e, além disso, ou em virtude disso, demanda que o sujeito
“se apague”4 enquanto fonte do seu dizer em nome de um efeito
de objetividade que reflete a busca constante pela verdade “pura”
e intocada pelo sujeito. Nesse sentido, escrever no ensino superior
pode não ser uma tarefa simples, fazendo com que muitos alunos
ao ingressarem na graduação, e até mesmo na pós-graduação,
encontrem dificuldades para se situar nesse lugar em que para que
o sujeito possa dizer algo é preciso que este mesmo sujeito não
apareça. Em decorrência disso, por vezes, instaura-se um entrave
entre professores que, por um lado, exigem uma postura científica
(afastamento da subjetividade) dos alunos e, por outro, alunos que
não sabem de que forma se inscrever ao escrever nas diferentes
práticas de escrita na universidade.

4 O uso das aspas busca marcar que o sujeito não pode estar ausente de seu próprio dizer, mas
que este é um efeito do modo como a escrita acadêmica é, muitas vezes, empreendida no
afã da objetividade científica.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Ratificamos nosso entendimento de que o discurso acadêmico


se constitui no entremeio do discurso científico, sendo que quan-
do a escrita acadêmica torna-se objeto dos processos de ensino e
aprendizagem passa, ainda, a constituir-se nas tramas do discurso
pedagógico, ou seja, todos esses discursos estão implicados nas
práticas de escrita no ensino superior. Assim, a escrita acadêmica,
conforme aponta Pereira (2013), se caracteriza por ser um dos
grandes pontos que diferencia a ciência das outras formas de saber.
A ciência, como já dito, e seu compromisso com a validação, com
a verdade, e com a posição que ocupa de legitimação, optou em
apagar o sujeito em nome de uma neutralidade inatingível “como
se o texto científico pudesse se elevar para além do mundo e da
história” (PEREIRA, 2013, p. 216). Dessa forma, o discurso da
ciência que constitui as práticas de escrita acadêmica, muitas ve-
zes, toma a linguagem como transparente e acaba por ignorar as
condições históricas e ideológicas que perpassam a constituição
dos discursos e, concomitantemente, a constituição do sujeito.
Nesse sentido, ao tirar a história, a ciência “apaga” também
o sujeito que diz, buscando estabelecer uma ponte neutra entre
realidade e linguagem na qual esta só teria a função de retratar
aquela. Dessa forma, a ciência aponta para uma visão da língua
como representação do mundo material em que a escrita é so-
mente um meio para se alcançar o que de fato significa: o objeto
(PEREIRA, 2013).
Essa visão de língua como objetiva, não sujeita a falhas,
deshistoricizada, que exclui o sujeito que diz, é a que muitos alunos
se deparam ao adentrar na universidade. E é essa visão também que
exige um afastamento bem demarcado na escrita (uso da terceira
pessoa; ou de não pessoa), que pode confundir o aluno que está
nesse entremeio do se posicionar e do se ausentar. Seguindo esse
viés, e pensando no modo de operar por oscilação da função autoria,
Braga (2015, p. 146) pontua que o sujeito-aluno na universidade
submete-se “[...] a um ‘autôrometro’ em que ele pode ascender
mais ou menos à função autoria”. Isto é, o aluno pode se inscrever
mais ou se inscrever menos dentro de seu texto, dependendo de
como se marca em sua posição-sujeito autor responsável por seu

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

dizer, isso quando seu texto se limita à explicitação do outro (com


muitas citações diretas e indiretas). Dito de outro modo, o uso de-
masiado de estratégias de referenciação do discurso do outro pode
implicar em um apagamento do sujeito que diz, já um texto que
não se restringe à heterogeneidade mostrada pode potencializar
a inscrição do sujeito em seu dizer. Nesse sentido, o aluno pode
se aproximar mais ou menos da função-autoria, tendo em vista
a forma como seu texto é produzido, mas sempre nesse jogo de
relação com o referente, com o outro, nessa constante interlocução.
Pode-se dizer, portanto, que a escrita acadêmica se constitui
como uma prática que busca um efeito de sentido único, através da
sua própria constituição histórica como prática de escrita. Além
disso, por constituir-se no discurso acadêmico, essa escrita quan-
do tomada como objeto/objetivo na universidade se constitui na
confluência entre o discurso científico e o pedagógico, ou seja, em
um elo entre ciência e ensino e aprendizagem. Nesse sentido, na
sua relação com o discurso científico, essa prática de escrita busca,
também, um efeito de objetividade, procurando, então, “afastar” o
sujeito de seu dizer. Assim, é possível dizer que essa escrita está
implicada nesses discursos e nas relações de poder que historica-
mente a constituem.

Considerações finais

No percurso traçado, buscamos marcar como se dá a inscrição


do sujeito, na posição aluno-universitário, à escrita acadêmica, com
vistas a se compreender nesse gesto o modo de funcionamento de
ascensão à autoria. Entendemos o autor como efeito do próprio
texto, ou seja, aquele que organiza o dizer gerando um efeito de
unidade (completude) e se responsabiliza pelo texto produzido.
Assim, o sujeito-aluno que se inscreve ao escrever na universida-
de se constitui por meio da função-autor justamente quando se
considera a autoria numa visão pulverizada, enquanto gesto de
interpretação, posição que organiza, evidencia, silencia informa-
ções e que dá forma ao texto.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Pensar nessa relação entre texto e autoria na escrita acadê-


mica é admitir que o trabalho da autoria consiste em um gesto de
interpretação sobre o texto daquele que escreve e sobre o próprio
sujeito que se constitui nesse ato, considerando sempre que tanto
texto quanto sujeito se situa em uma relação com a exterioridade.
Cabe lembrar que a exterioridade do discurso acadêmico e a do
discurso científico operam na constituição da autoria e dos textos
produzidos no ensino superior, e que a produção desses textos
está submetida, ainda, à égide do discurso pedagógico. Em outros
termos, não se pode esquecer como o sujeito, na posição de aluno-
universitário, é determinado pelos discursos científico, acadêmico
e pedagógico, e que estes discursos determinam, também, um
certo modo de funcionamento da escrita acadêmica, fazendo-a
emergir no lugar do próprio sujeito. Na prática, a escrita acadê-
mica atua num exercício que demanda do sujeito a instauração de
novos dizeres, mas, ao mesmo tempo, limita o espaço para o novo
enquanto presença subjetiva. Desse modo, a determinação desses
três discursos caracteriza a autoria daquele que escreve nesse lugar
discursivo (de sujeito-aluno) da universidade, além de determinar,
também, a produção de sentidos dos sues textos.
Nessa direção, entendemos que a autoria na escrita acadêmica
produzida no ensino superior caracteriza-se pela tensão entre os
sentidos postos pelos discursos – científico, acadêmico e peda-
gógico – que se complementam de forma contraditória, uma vez
que os sentidos dessa escrita estão relacionados à historicidade
do sujeito, à historicidade da ciência e à historicidade das práticas
pedagógicas. Pois, como se sabe, as formações discursivas que
constituem esses discursos possibilitam a produção de certos sen-
tidos (e não outros), já que o sentido se modifica ao se modificar
a formação discursiva. Ou seja, tanto a historicidade do sujeito
como a do discurso operam na inscrição do sujeito como autor, e
é justamente isso que tenciona a produção do efeito-autor no ato
de escrever na posição aluno-universitário.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Referências

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Brasileira de Educação, v. 18 n. 52. p. 213-144. jan-mar. 2013.
363
Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Suzy Lagazzi
Docente do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da
Linguagem (IEL) da Unicamp, na área de Análise do Discurso. Integro
o Centro de Pesquisa PoEHMaS (IEL/Unicamp), sou pesquisadora as-
sociada do Labeurb/Nudecri e lidero dois grupos de pesquisa no CNPq:
O discurso nas fronteiras do social: diferentes materialidades significantes na
história e Linguagem e cinema: o gesto em foco. Ressalto meu investimento
na compreensão de funcionamentos discursivos em diferentes materia-
lidades significantes, com grande ênfase para temáticas que dão relevo
à resistência do sujeito em sua contradição, à alteridade do político no
social, e à poesia do significante em derivas.

Gisela Reis Biancalana


Doutora em Artes pela UNICAMP. Entre os anos de 2014-2015 realizou
pós-doutoramento na De Montfort University, em Leicester, UK, quando
investigou processos colaborativos de criação. Atualmente, é docente
no Curso de Dança Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e
membro permanente do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais
(PPGART). É líder do grupo de pesquisas Performances:arte e cultura,
vinculado ao CNPQ, no qual investiga relações entre arte e universos
socioculturais na criação de Performances Arte.
giselabiancalana@gmail.com

Renata Marcelle Lara


Doutora em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Campinas (2008). Mestre em Educação pela
Universidade Metodista de Piracicaba (2002). Especialista em Língua
Portuguesa e Literatura pela Faculdade Estadual de Educação, Ciências
e Letras de Paranavaí (1998). Licenciada em Letras pela Universidade
Estadual de Maringá (2016). Bacharel em Comunicação Social/Jorna-
lismo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (1996). Professora
Adjunta D do Departamento de Fundamentos da Educação, Área de
Metodologia e Técnica de Pesquisa, da Universidade Estadual de Ma-
ringá, e Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UEM.
Tem experiência no campo teórico e metodológico de investigações em
Análise de Discurso e Comunicação. Linhas de pesquisa em que atua:

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Análise de Discurso; Análises de Processos e Temáticas Textuais e


Discursivas nas Mídias; Língua, Sujeito e História.

Freda Indursky
É licenciada em Letras pela UFRGS (1965). Possui Licence en Lettres - Fa-
culté des Lettres et Sciences Humaines de Besançon (1967); Maîtrise en Lettres
- Faculté des Lettres et Sciences Humaines de Besançon (1970). Doutora em
Ciências da Linguagem pela Universidade Estadual de Campinas (1992).
Professora Titular, aposentada, atua, como Professora Convidada, junto
ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, ministrando disciplinas e orientando mestrandos
e doutorandos cujos projetos se inscrevam na Linha de Pesquisa Aná-
lises Textuais e Discursivas, onde sua pesquisa também está inscrita.
Publica em periódicos científicos nacionais e internacionais. Autora e
organizadora de vários livros e capítulos de livros.

Antonio Carlos Santos


Possui graduação em Comunicação pelo Centro Unificado Profissional
(1978), mestrado em Literatura pela Universidade Federal de Santa
Catarina (1996) e doutorado em Literatura pela Universidade Federal
de Santa Catarina (2001). Atualmente é professor da Universidade do
Sul de Santa Catarina, atuando principalmente nos seguintes temas:
teoria literária, literatura, poesia, sociologia e modernidade. É também
tradutor. 

Christa Berger
jornalista, doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de
São Paulo (USP), pós-doutorado em jornalismo pela Universidad Auto-
noma de Barcelona (UAB). Foi professora da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) e Universidade do Vale do Rio do Sinos
(Unisinos). Participa do grupo de pesquisa Estudos em Jornalismo
(GPJor). Christab177 @gmail.com

Giovanna G. Benedetto Flores


Doutora em Linguística (Análise do Discurso) pelo Programa de Pós-
Graduação em Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem/

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Cultura e Mídia - vol 3

Unicamp, 2011, Mestre em Ciências da Linguagem pelo Programa de


Pós-Graduação em Ciências da Linguagem/Unisul, 2005 e Jornalista/
Unisinos, 1985. Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências
da Linguagem e do curso de Jornalismo da Universidade do Sul de Santa
Catarina/Unisul. Líder do Grupo de Pesquisa Discurso, Cultura e Mídia
(Unisul) e vinculada ao Grupo de Pesquisa Produção e Divulgação do
Conhecimento (Unisul) e ao Grupo de Estudo em Análise do Discurso,
(UEM). gbflores@gmail.com

Vanise Gomes de Medeiros


Graduação e mestrado em Letras pela PUC-Rio, doutorado em Letras
pela UFF, doutorado-sanduíche pela Université Sorbonne Nouvelle III,
França com bolsa CNPq, e pós-doutorado também na Université Sorbonne
Nouvelle III, com bolsa da CAPES. Foi professora da PUC-Rio de 1992
a 2003. Foi professora da graduação e da pós-graduação da UERJ, de
2003 a 2009. Desde 2009 é professora adjunta da UFF, com dedicação
exclusiva, dando aulas, na graduação e na pós-graduação, e orientando
alunos (em iniciação científica, especialização, mestrado e doutorado).
Bolsista Produtividade CNPq (nível 2) e Jovem Cientista do Estado
(JCNE-FAPERJ, 2009-2012; 2012-2015). Líder do grupo de pesquisa
Discursividade, língua e sociedade. Integra e coordena, com Bethania
Mariani e Silmara Dela Silva, o Laboratório Arquivos do Sujeito (LAS)
da UFF, com parcerias com os laboratórios Corpus (UFSM) e EL@ DIS
(USP-Ribeirão Preto). Tem experiência na área de Letras, com ênfase
em Linguística, atuando principalmente nas seguintes áreas: Análise de
Discurso e História das Ideias Linguísticas.

Evandra Grigoletto
Possui graduação em Letras Português Francês pela Universidade Es-
tadual do Centro-Oeste (1997). Realizou mestrado em Letras pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul (2000) e doutorado em Letras
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2005). Atualmente, é
professora Adjunto IV da Universidade Federal de Pernambuco, atuando
na graduação presencial e à distância e no Programa de Pós-Graduação
em Letras desta Universidade. É líder do NEPLEV (Núcleo de Pes-
quisas em Práticas de Linguagem e Espaço Virtual) e participa, como

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

pesquisadora, do GEPAD (Grupo de Estudos e Pesquisa em Análise do


Discurso). É coordenadora do GT de Análise do Discurso da ANPOLL,
no biênio 2016-2018. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase
em Análise do Discurso, atuando principalmente nos seguintes temas:
sujeito, mídia, novas tecnologias, religião, divulgação científica.

Solange Maria Leda Gallo


Possui graduação em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (1978), mestrado em Linguística pela Universidade Estadual
de Campinas (1989), doutorado em Ciências pela Universidade Estadual
de Campinas - IEL (1994) e doutorado também no Collège International de
Philosophie de Paris (1992). É professora titular da Universidade do Sul
de Santa Catarina - UNISUL atuando no Programa de Pós-graduação
em Ciências da Linguagem. Tem experiência na área de Linguística, com
ênfase em ANÁLISE DO DISCURSO, refletindo principalmente sobre
os seguintes temas: discurso, autoria, escrita, produção e divulgação de
conhecimento, produção on line. No biênio 2004-2006 foi coordenadora
do GT em análise do discurso da associação Nacional de Pesquisa e Pós-
graduação em Letras e Linguística (ANPOLL) e atualmente coordena
uma das linhas de pesquisa desse mesmo GT. Coordena também uma
das linhas de pesquisa do SEAD (Seminário de análise do discurso) da
UFRGS. Concluiu um pós-doutorado na UNICAMP em 2011.

Juliana da Silveira
Possui doutorado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá
(UEM-PR), na área de concentração em Estudos Linguísticos, linha
de pesquisa Estudos do texto e do Discurso, com período sanduíche
na Université Paris 13, dirigido pela linguista Marie-Anne Paveau, com
auxílio financeiro da CAPES. Mestre em Letras e graduada em Letras
Português-Francês pela mesma Universidade. Pós-doutorado em anda-
mento no Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem na
UNISUL - Universidade do Sul de Santa Catarina, com apoio financeiro
da CAPES. Faz parte do Contradit - Coletivo de Trabalho Discurso e
Transformação. Suas pesquisas atuais centram-se no desenvolvimento
do estudo dos discursos ordinários e do efeito-rumor em mídias sociais
digitais.

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Alexandre Sebastião Ferrari Soares


Possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(1989), mestrado em Letras pela Universidade Federal do Paraná (1999)
e doutorado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (2006).
Atualmente é associado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
e professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Tem
experiência na área de Linguística, com ênfase em Análise do Discurso,
atuando principalmente nos seguintes temas: discurso jornalístico, efeito
de sentido, discurso, análise do discurso e homossexualidade.

Maurício Eugênio Maliska


é psicanalista, membro de Maiêutica Florianópolis – Instituição Psica-
nalítica. Graduado em Psicologia (2000), mestre (2002) e doutor (2008)
em Linguística, doutor em Psicologia (2014), professor no Programa
de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul
de Santa Catarina (Unisul), membro e líder do Grupo de Pesquisa Psi-
canálise e Linguagem. E-mail: mmaliska@yahoo.com.br.

Ana Josefina Ferrari


Pós Doutora em Lingüística pela Universidade Estadual de Campinas
com a pesquisa;Memória de mulheres quilombolas: análise das falas de
mulheres quilombolas da comunidade de Batuva - Guaraqueçaba - Pa-
raná;. (2013-2014), com bolsa CNPq. Participa do Grupo de pesquisa
Mulheres em Discurso; cadastrado no CNPq. Doutora em Lingüística
na área de Análise do Discurso na Universidade Estadual de Campinas.
Publicou o livro A Voz do Dono, editora Pontes 2006, Hacia el Español,
editora Educarte 2006, Ensaios de Língua e Literatura Hispanoamerica-
na Ediunioeste 2003 e vários artigos. Docente da Universidade Federal
do Paraná – Setor Litoral

Nádia Régia Maffi Neckel


Possui graduação em Educação Artística Licenciatura Plena em Artes
Cênicas pela Universidade Federal de Santa Maria (1998); Especialização
em Educação Infantil e Séries Iniciais pela Universidade do Contestado;
Mestrado em Ciências da Linguagem pela Universidade do Sul de Santa
Catarina- Unisul - (2004). Doutorado em Linguística - IEL - Instituto de

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Estudos da Linguagem da UNICAMP. Docente do Programa de Pós-


Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL) na Unisul. Atualmente
participa de grupos de pesquisas institucionais e interinstitucionais no cam-
po do ensino da arte, estética e análise do discurso. Docente do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Linguagem e do curso de cinema da Unisul.

Mónica Graciela Zoppi Fontana


Professora Livre-Docente do Departamento de Linguística- UNICAMP.
Pesquisadora CNPq, nível 1D. Líder do grupo de pesquisa Mulheres em
Discurso. Coordenadora do Centro de Pesquisa em Política, Enunciação,
História, Materialidades, Sexualidade (PoEHMaS), IEL/UNICAMP.
monzoppi@iel.unicamp.br

Mara Glozman
Es doctora en Lingüística y magíster en Análisis del Discurso (Univer-
sidad de Buenos Aires). Realizó parte de su formación de posgrado en
la Universidad Estadual de Campinas (San Pablo, Brasil). Es investiga-
dora asistente del CONICET (con sede en el Instituto de Lingüística,
FFyL-UBA) y Jefa de Trabajos Prácticos (Departamento de Letras,
FFyL-UBA). Participa de diversos proyectos de investigación colecti-
vos vinculados con el estudio histórico de los instrumentos y políticas
lingüísticas, la producción de dispositivos de difusión del conocimiento
lingüístico y el análisis del discurso. Investiga sobre temas de historia de
la lingüística y políticas del lenguaje, teoría del discurso y metodología
de la investigación de archivo. Se ha especializado en el estudio de los
debates políticos y los discursos epistémicos sobre la lengua en Argen-
tina durante el siglo XX, con especial atención al período 1943-1956.

Phellipe Marcel
Professor do Departamento de Estudos da Linguagem da Uerj. Doutor
em Estudos da Linguagem (UFF), mestre em Letras (Uerj), graduado em
Comunicação Social (UFRJ). Membro do Coletivo de Trabalho Discurso
e Transformação e co-líder do Divagar-se: Grupo de Pesquisa Divulga-
ção, Alteridade e Gramatização nas Relações Sociais e Epistemológicas.
Pesquisa, da perspectiva da AD, os seguintes discursos-objetos: livros,
comida e alimentação, ciências. E-mail: phellipemarcel@gmail.com

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

Fernanda Luzia Lunkes


é graduada em Letras/Português pela Universidade Estadual do Oeste
do Paraná, mestra em Letras pela Universidade Estadual de Maringá e
doutora em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal Flumi-
nense. É professora adjunta na Universidade Federal do Sul da Bahia.
Integra os seguintes Grupos de Pesquisa/CNPq: “Humano, Desumano, Pós-
Humano: desdobramentos da invenção do comum nas sociedades, na saúde e
nas artes” (UFSB), “Núcleo de Estudos em Práticas de Linguagem e Espaço
Virtual” (UFPE), Grupo de Teoria do Discurso (UFF). Suas principais pes-
quisas pautam-se na Análise de Discurso francesa e se dedicam principalmente
aos seguintes temas: discurso jornalístico; medicalização, depressão; felicidade;
materialidade imagética; corpo discursivo; imaginário sobre o palhaço; medica-
lização; felicidade; contemporaneidade. E-mail: flunkes@gmail.com

Andréia da Silva Daltoé


Doutora em Estudos do Texto e do Discurso pelo Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), 2011. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências
da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL.
Vinculada aos Grupos de Pesquisa: GADIPE (UNISUL) e GEP (UNI-
PAMPA) andreia.daltoe@unisul.br

Mariza Vieira da Silva


é mestre em Linguística pela Universidade de Brasília, doutora em Lin-
guística pela Universidade Estadual de Campinas, com pós-doutorado
na École Normale Supérieur Lettres & Sciences Humaines de Lyon/
França em História das Ideias Linguísticas; aposentada da Universi-
dade Católica de Brasília e pesquisadora vinculada ao Laboratório de
Estudos Urbanos do Núcleo de Criatividade da Universidade Estadual
de Campinas. Seus objetos de estudo concentram-se em alfabetização,
escolarização do português, políticas públicas de línguas (marizavs@
uol.com.br).

Gesualda de Lourdes dos Santos Rasia


professora da Universidade Federal do Paraná, tem doutorado em
Teorias do Texto e do Discurso. Desenvolve pesquisas relacionadas

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Análise de Discurso em Rede:
Cultura e Mídia - vol 3

à leitura e à interpretação em perspectiva discursiva, com filiação no


Grupo de Pesquisas do Texto e do Discurso: entrelaçamentos teóricos
e analíticos, em parceria com a UNICENTRO.
E-mail: gesualdarasia@yahoo.com.br

Sandro Braga
Possui graduação em Comunicação Social Jornalismo (UFSC-1998) e
em Letras Português (UFSC-2011); mestrado em Linguística na área da
análise do discurso (UFSC-2001); doutorado em Linguística no campo
da filosofia da linguística (UFSC-2007). Atualmente é professor Adjunto
da Universidade Federal de Santa Catarina, no Departamento de Língua
e Literatura Vernáculas. Na graduação, atua na área de produção textual
dos gêneros da esfera acadêmica e profissional e da análise do discurso.
É credenciado ao Programa de Pós-graduação em Linguística no âmbito
da linha de pesquisa Linguagem: discurso, cultura escrita e tecnologia.

Janaína Senem
Possui graduação em Letras Inglês e Literaturas de Língua Inglesa
pela Universidade Estadual do Centro-Oeste. Fez parte do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação a Docência (PIBID) de agosto de
2012 a fevereiro de 2014. Atualmente é bolsista (Capes) do programa
de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa
Catarina. Participa de pesquisas voltadas à área de Linguística Aplicada,
Análise do Discurso e Escrita Acadêmica.

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