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A SÁTIRA AO AUTORITARISMO EM NÓS: UMA HERESIA SOVIÉTICA

Rodrigo Kmiecik (História, UEL)

Palavras-chave: Literatura. Distopia. Autoritarismo.

1. Introdução

Muitas vezes a ficção é um produto do contexto histórico em que ela é


produzida. Vejamos alguns exemplos: as aventuras científicas de Jules Verne refletem o
grande avanço tecnológico do século XIX; a psicodelia da literatura fantástica de
Michael Moorcock é um claro produto dos anos 70; os avanços astronômicos do século
XX são evidentes no horror de H.P. Lovecraft, onde este povoa galáxias e planetas
recém-descobertos com indescritíveis deuses cósmicos; etc. A lista poderia ser muito
longa, mas a ideia é clara e simples. No livro “Regimes da Historicidade”, François
Hartog (2013) nos traz o conceito do presentismo, que é a prevalência do presente sobre
qualquer noção de passado ou futuro. Segundo Fernando Nicolazzi (2010), ao comentar
os conceitos de Hartog, “o tempo funciona como uma espécie de eixo norteador através
do qual o olhar se desenvolve, olhar que, em uma única expressão, pode-se dizer que
atravessa o tempo”. Isto é: mesmo falando do passado, como faz a historiografia, ou
mesmo inventando um futuro, como faz muitas vezes a ficção – especialmente as
distopias – cometemos uma abordagem presentista, fortemente carregada dos nossos
atuais valores e angústias.

Eis, portanto, nas seguintes páginas uma análise de “Nós”, ficção distópica
escrita por Yevgeny Ivanovich Zamyatin. Produto de seu tempo e lugar, escrito em
1923 na União Soviética, o livro aborda temas que fervilhavam na U.R.S.S. de Vladimir
Lenin, edificada sobre as ruínas da Rússia czarista após a Revolução de Outubro de
1917. Como observa George Orwell (2017) em sua resenha de “Nós”, “embora não trate
da Rússia nem tenha relação direta com a política contemporânea, teve sua publicação
recusada por ser ‘ideologicamente indesejável’”. Zamyatin fala sobre liberdade, sexo,
identidade, mídia e propaganda, arte (e sua produção enaltecedora do Estado), entre
outros temas. Dentre a vasta gama, escolhi um tema bastante extenso e que engloba
involuntariamente um pouco de cada elemento presente em “Nós” e suas influências
históricas: o autoritarismo. Após esta introdução, apresento uma resenha da obra,
seguida pela análise crítica do autoritarismo e seus desdobramentos em “Nós”, pautada
numa bibliografia selecionada para tal propósito, terminando então com algumas
considerações finais a respeito do que foi exposto.

2. Resenha da obra

Sob as flâmulas vermelhas da União Soviética, o escritor Yevgeny Ivanovich


Zamyatin idealizou o que veio a ser uma das mais importantes obras na história da
ficção: “Nós”. Como já mencionado, as obras de ficção, ainda que tratem de futuros
longínquos e imaginados por seus criadores, intrinsecamente refletem seu contexto
histórico de invenção e todos seus múltiplos aspectos humanos.

Então, entendamos o contexto da obra aqui analisada: enquanto estudava em São


Petersburgo, de 1902 a 1908, Zamyatin tornou-se adepto dos ideais bolcheviques. Em
decorrência disto, na presente instabilidade russa, o autor contribuiu para diversos
jornais socialistas; em contraponto, passou por dificuldades e exílios, tendo de concluir
os estudos como engenheiro naval na Finlândia e trabalhar em estaleiros britânicos. Não
obstante, o inabalável escritor apoiou a Revolução de Outubro em 1917, quando
finalmente, liderado por Lenin, o Partido Comunista da União Soviética tomou o poder.

Logo após a revolução houve certa estabilidade na vida do autor. Dedicou-se a


jornais e palestras, bem como traduziu obras clássicas de H.G Wells e Jack London.
Entretanto, com o tempo, Zamyatin transformava-se em um soviético herético – termo
cunhado por ele mesmo no ensaio autobiobibliográfico “A Soviet heretic” –; passou,
então, a ser um forte crítico do regime comunista e suas censuras, voltando a costumeira
sátira de seus escritos contra a foice e o martelo. Mais do que isso: contra toda e
qualquer forma de autoritarismo e censura.

Em 1920, o autor concebe “Nós”. Entretanto, o romance é publicado somente


em 1924, em solo americano, pois fora censurada na U.R.S.S. Somente em 1927 a sátira
distópica foi impressa em solo russo, numa revista de emigrados. Naquela época, a
União Soviética era comandada por Josef Stalin, e sob as mãos deste a censura mostrou-
se ainda mais rigorosa. “Nós” foi novamente censurada. Então, Zamyatin, em sua
famosa carta a Stalin, finalmente pede permissão para deixar a U.R.S.S. Instala-se em
Paris, na França, onde viveu com a esposa até morrer em 1937, na pobreza, aos
cinquenta e três anos.

M. Keith Booker (1994) reitera o contexto de Zamyatin:

[...] o fervor utópico da revolução já estava começando a


apresentar tonalidades mais sombrias. O poder do novo governo
comunista era ainda extremamente tênue; uma guerra civil pós-
Revolução de grande escala se desenrolou até o fim de 1920 e a
sociedade permanecia em considerável tumulto durante os anos
1920. Lenin, o ditador do proletariado, ainda era frágil e
instável, mas Zamiatin já parecia perceber que a ditadura se
afastava da revolução e se dirigia ao conformismo. Mais tarde, à
luz dos encaminhamentos (notadamente com Stalin), Zamiatin
alerta em Nós sobre a potencial degeneração da revolução em
estagnação e tirania, mostrando uma clarividência notável.
Zamiatin escolheu apropriadamente bem a ciência como foco
central do seu alerta; a ciência em si mesma era o centro de
muitas das controvérsias que cercaram, durante os primeiros
anos, as tentativas de Lenin e dos Bolcheviques para transformar
a sociedade russa. (BOOKER, 1994, p. 26-27)
Jair Diniz Miguel (2005) sintetiza a ideia como: “um medo do futuro, em que as
mais belas ideias pudessem se tornar sombrias formas de dominação.” Compreendendo
o cenário de censuras em que Zamyatin escreveu sua obra, podemos entender quais
angústias ele tentou apontar e criticar arduamente. Falemos, então, da obra em si; seu
enredo, personagens e outros aspectos relevantes.

Em “Nós”, a sociedade é regida pelo Estado Único, um governo autoritário


moldado pela matemática. O mundo, depois da Guerra dos Duzentos Anos, está na mais
perfeita ordem. As pessoas são supostamente felizes, vivendo sob as ordens do
Benfeitor, aquele que comanda o Estado. É ele quem determina a hora de comer, de
dormir, de trabalhar e até de fazer sexo. Tudo é previamente estabelecido pela rigidez
matemática que consolida as rédeas curtas com que o Estado Único mantém a ordem.

O que temos em mãos durante nossa leitura são as anotações de D-503, um


engenheiro e matemático que trabalha na Integral, uma nave espacial que irá levar a
ideologia do Estado Único para outros povos em distantes planetas. Este diário de
anotações, de início, compila informações, opiniões e descrições sobre a Terra. As
anotações do personagem, narradas em primeira pessoa, ora transmitem momentos de
relato (do dia-a-dia das personagens, como funciona o trabalho, o lazer e a rotina), ora
momentos de reflexão (acerca da arte, da liberdade e da moral), todos moldados pela
visão de D-503 e sua profunda convicção no Estado Único e sua natureza inabalável.

A ordem e o progresso caminham de mãos atadas. As paredes são de vidro, para


que todos vejam o que os demais estão fazendo. Os Guardiões do Estado Único
patrulham e mantêm a ordem. Agir ou pensar contra o sistema é crime punido com
morte. A imaginação, o amor, os sonhos e a cumplicidades são doenças. Entretanto,
alguns números – como se identificam os seres humanos – ainda não se tornaram parte
completa do sistema; alguns deles ainda possuíam uma chama que, mesmo tímida,
ainda não fora apagada. Eles ousavam imaginar.

O indivíduo, obviamente, era proibido de imaginar, ainda mais se fosse imaginar


um mundo sem o Estado Único. D-503, nosso protagonista, é um dos que não pensam
em nada além do que o governo determina. Ele é racional, metódico e segue exatamente
o que é mandado. Ao menos até conhecer I-330. Ela é uma mulher que deseja mais do
que um sistema opressor, mais do que o Benfeitor pode prover – ela é, acima de tudo,
uma revolucionária. Ela quer liberdade e contamina D-503 com esse sentimento. Porém,
a mente de nosso protagonista entre em confusão. Ele deveria mesmo lutar contra as
bênçãos do Estado Único? Aí é que surge o dilema de D-503. A dúvida abala suas
certezas. A emoção rasga o frágil véu da razão. E D-503 torna-se um herético naquele
meio estatal, repreensivo e autoritário; ele se torna um “anjo caído”.

3. O autoritarismo em “Nós”

3.1. Noções de liberdade e felicidade

O autoritarismo se desdobra em diversas características, e as formas de


dominação são muitas. Em “Nós”, o domínio do Estado sob os indivíduos vem com a
total falta de liberdade destes – só pode haver felicidade sem liberdade, pois são coisas
completamente divergentes, segundo a visão do Estado Único.

[...] é como a antiga lenda sobre o Paraíso... É sobre nós, sobre o


agora. Sim! Pense bem. Aqueles dois no Paraíso estavam diante
de uma escolha: ou a felicidade sem liberdade, ou a liberdade
sem felicidade; não havia terceira opção. Eles, imbecis,
escolheram a liberdade, é compreensível, depois de séculos
sentindo falta dos grilhões. Os grilhões, compreende, são a
causa da dor do mundo. Séculos! E apenas nós redescobrimos
como voltar à felicidade... Não, continue, continue ouvindo! Nós
e o antigo Deus estamos lado a lado, na mesma mesa. Sim! Nós
ajudamos Deus a vencer definitivamente o diabo, foi ele que
incitou as pessoas a violar a proibição e provar a nefasta
liberdade, ele é uma cobra escarnecedora. E nós pisamos na
cabeça dele, zás! E pronto: o Paraíso retorna. E de novo nós
seremos puros e inocentes como Adão e Eva. Nenhuma
confusão sobre o bem e o mal: tudo é muito simples e
paradisíaco, infantilmente simples. O Benfeitor, a Máquina, o
Cubo, o Sino de Gás, os Guardiões, tudo isso é bom, tudo isso é
majestoso, perfeito, nobre, elevado, de uma pureza cristalina.
Porque isso protege a nossa falta de liberdade, isto é, a nossa
felicidade. (ZAMYATIN, 2017, p. 92-93)
Um comodismo absurdo assegura a prevalência do Estado Único. Segundo o
filósofo Immanuel Kant (2008), a liberdade é “fazer um uso público da razão em todas
as questões”; somente assim se chega ao esclarecimento. E quem impede tal alcance?
Quais são suas limitações? O uso privado da razão. “Denomino uso privado aquele que
o sábio pode fazer de sua razão em certo cargo público ou função a ele confiado”
(KANT, 2008). Sob a mão de ferro do Benfeitor, os números do Estado Único estão
todos presos pelas correntes das funções e cargos, jamais alcançando a liberdade.
Porém, a liberdade é vista como algo ruim para o Estado Único, como observamos. As
limitações são prezadas e enaltecidas. Este é o espírito autoritário da coisa.

3.2. Imperialismo ideológico e etnocentrismo

Outra característica do autoritarismo é o imperialismo e o etnocentrismo:


potências autoritaristas como a Alemanha nazista e a U.R.S.S. realizaram empreitadas
militares com o objetivo de anexar territórios e subjugá-los com sua ideologia (anexação
da Ucrânia à U.R.S.S. em 1922; da Polônia à Alemanha em 1939). Em “Nós”, a
possibilidade de viagens interplanetárias reforça este espírito expansionista ao máximo.
A Integral é uma nave de alta tecnologia que tem como finalidade espalhar a ideologia
do Estado Único para outros planetas. Notemos, de início, a visão imperialista e
etnocêntrica daqueles que fazem parte do Estado – sim, fazem parte, como um gigante
corpo biológico interdependente de seu próprio coletivismo matemático e perfeito.
Ilustremos tal visão com um trecho do livro:

Um grande momento histórico está próximo, quando a primeira


INTEGRAL alçará voo para o espaço. Há mil anos, vossos
heroicos antepassados submeteram todo o globo terrestre ao
poder do Estado Único. Uma façanha ainda mais gloriosa está
pela frente: integrar a infinita equação do universo com a
INTEGRAL [...] Espera-se submeter ao jugo benéfico da razão
os seres desconhecidos, habitantes de outros planetas, que
possivelmente ainda se encontram em estado selvagem de
liberdade. Se não compreenderem que levamos a eles a
felicidade matematicamente infalível, o nosso deer é obrigá-los
a serem felizes. (ZAMYATIN, 2017, p. 16)
Podemos facilmente entender a natureza da visão do Estado Único através da
definição de etnocentrismo dada por Everardo Rocha (1984) na abertura de seu livro “O
que é Etnocentrismo?”: “É uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado
como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos
valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência”.

3.3. Mídia e propaganda estatal

O trecho citado acima pertence ao jornal estatal fictício de “Nós”, a Gazeta do


Estado. A mídia e a propaganda têm um papel importantíssimo no domínio autoritário.
Para Rudinei Kopp (2011), “A relação imaginada entre o jornal e os leitores parte da
concepção de um receptor passivo, massificado, dócil e crédulo.” Como exemplo,
voltemos a 1939, quando o presidente Getúlio Vargas criou o DIP (Departamento de
Imprensa e Propaganda), em um dos decretos do Estado Novo. A partir da criação do
departamento, todos os serviços de propaganda e publicidade passaram a ser executados
com exclusividade pelo órgão, que também organizava e dirigia as homenagens a
Vargas, passando a se constituir no grande instrumento de promoção pessoal do chefe
do governo, de sua família e das autoridades em geral. De forma semelhante, na
Alemanha, em 1933, Hitler estabeleceu um ministério da propaganda dirigido por
Joseph Goebbels. Em Berlim, Goebbels tornou-se editor do jornal "Der Angriff" (O
Ataque), um dos principais veículos para a disseminação do ideal antissemita nazista.
Para Hitler, toda propaganda devia ser popular e estabelecer o seu nível espiritual de
acordo com a capacidade de compreensão do mais ignorante dentre aqueles a quem ela
pretende se dirigir.

A hegemonia da mídia estatal no romance de Zamyatin é confirmada pela


leitura de Rudinei Kopp (2011) em sua tese de doutorado em Comunicação Social:

Não parece haver outros jornais ou meios de comunicação no


Estado. Nenhuma menção é feita nesse sentido. A Gazeta é o
veículo oficial responsável pela informação. Na verdade, é um
canal de propaganda numa conformação radical e tem o
propósito explícito, como se percebe na passagem acima, de
inflamar a moral dos leitores e enaltecer a figura do Benfeitor.
(KOPP, 2011, p. 111-112)

3.4. Cultura e arte

O domínio social através da cultura é, também, um ponto crucial. Zamyatin nos


mostra uma sociedade onde a arte é estritamente uma utilidade. Entre as tantas
definições de arte, escolhi uma cunhada por um conterrâneo do autor.

A arte é uma atividade humana que consiste em alguém


transmitir de forma consciente aos outros, por certos sinais
exteriores, os sentimentos que experimenta, de modo a outras
pessoas serem contagiadas pelos mesmos sentimentos, vivendo-
os também. (TOLSTÓI, 2016, p. 82)
Para Tolstói está claro: a arte é subjetiva e inerente aos sentimentos humanos.
Aí entra a contradição: em “Nós”, os números não são indivíduos, logo, não possuem
subjetividade. O coletivo não sente. Por isso, a arte não passa de um instrumento nas
mãos do Estado Único. A arte é uma ferramenta. Para isso, no livro há o chamado
Instituto Estatal de Poetas e Escritores, do qual faz parte R-13, um poeta amigo do
nosso narrador. Em certo ponto, D-503 faz algumas reflexões acerca da poesia:

Esse era meu caminho, da parte ao todo; a parte era R-13, e o


majestoso todo era o nosso Instituto Estatal de Poetas e
Escritores. Pensei em como não saltou aos olhos dos antigos
todo o absurdo da sua literatura e poesia. A enorme e esplêndida
força da palavra artística foi desperdiçada totalmente em vão.
Simplesmente ridículo: qualquer um poderia escrever sobre o
que lhe viesse à cabeça. [...] domesticamos e dominamos os
elementos poéticos selvagens de outrora. Atualmente, a poesia
já não é o desregrado silvo do rouxinol: a poesia é um serviço
estatal, a poesia é utilidade. (ZAMYATIN, 2017, p. 99-100)
Observa-se no romance que quaisquer manifestações artísticas, mais
especificamente a poesia e a música, estão moldadas pelo coletivismo e funcionam
estritamente a favor do Estado Único. Retomando as palavras de Kopp:

Não há aspecto na vida relatada em Nós que não seja conduzido


à massificação de um modo de ser, pensar e agir. Qualquer coisa
que escape de uma noção de ação coletiva e se aproxime de
alguma manifestação que beire a originalidade ou a
individualidade é tratada como perniciosa. (KOPP, 2011, p. 115)

3.5. O Benfeitor como líder

Os reflexos do autoritarismo soviético são mais presentes em “Nós” do que


quaisquer outras formas de governo autoritário. Um dos aspectos do stalinismo na
Rússia foi o culto à personalidade dos líderes Lenin e posteriormente Stalin. José Paulo
Netto (1981) nos diz mais a respeito em seu livro “O que é Stalinismo?”.

O “culto” (naturalmente com a tácita admissão de Stalin) foi


levado aos maiores exageros. Milhares de soviéticos educaram-
se na crença de que vivam sob a zelosa proteção do Camarada
Secretário Geral, a quem só cabia obedecer. A palavra Stalin era
indiscutível e indubitável. (NETTO, 1981, p. 60-61)
Voltando o olhar para “Nós”, a aproximação que há no termo “Camarada
Secretário Geral” é tão sedutora quanto o autoexplicativo “Benfeitor” de Zamyatin.
Assemelha-se, também, do conhecido termo alemão Führer (líder, guia), que deriva do
verbo führen (conduzir). Por mais autoritários que sejam os líderes, seu populismo
assegura uma visão idealizada para aqueles que são comandados. Em “Nós”, o
Benfeitor é isto: um guia, um líder, um camarada. É aquele que faz o bem.

4. Considerações finais

“Nós” foi um marco na literatura mundial e influenciou uma gama gigantesca de


autores que idealizaram futuros distópicos a partir dos medos e angústias de seu tempo
presente. Segundo Kopp (2011), a visão do autor e sua “capacidade de reconhecer um
movimento que tendia a massificar toda a sociedade de forma técnica” são fundamentais
para o desenvolvimento da literatura distópica. Armand Mattelart, “o autor denuncia o
domínio de todas as grandes máquinas uniformizantes de organização de multidões: o
Estado-Leviatã, é claro, a Ciência única e o fetiche da razão técnica [...]”.

Na sátira de Zamyatin, o autoritarismo se desdobra em facetas extraordinárias e


inimagináveis para quem lê. Entretanto, a rigidez matemática na ideologia do Estado
Único é edificada sobre os mesmos moldes de qualquer autoritarismo que já existiu em
nossa História: noções limitadas de liberdade; ideal de felicidade possível apenas dentro
dos muros do Estado; cultura e arte formuladas para fins estatais; etc.

Cabe a nós a compreensão disto. Para Zamyatin (1919), “o mundo vive somente
por causa dos heréticos: Cristo o herético, Copérnico o herético, Tolstói o herético.
Nosso credo (ou crença) é a heresia: o amanhã é infalivelmente uma heresia do hoje que
se tornou um pilar de sal, e do ontem que foi esfarelado na poeira”. E graças ao herético
soviético, Huxley abordou temas de liberdade sexual em seu “Admirável Mundo
Novo”, Bradbury trabalhou a liberdade intelectual e o direito ao conhecimento nas
páginas de “Fahrenheit 451” – pois estes são, como “Nós”, uma rebelião do espírito
humano contra o mundo massificado e autoritarista –, entre outros diversos exemplos de
tão grande importância para a literatura mundial. Como comenta Jair Diniz Miguel
(2005), “Pena que só alguns, em sua época, puderam ver que o Estado Único podia ser
uma realidade, e que a máquina do Benfeitor pudesse um dia existir, nos mais diversos
modelos e matizes”.

Grande parte do autoritarismo comentado aqui surgiu depois da obra em


questão, entretanto, Zamyatin viveu tanto na Rússia czarista quanto na União Soviética
de Lenin. É evidente autor tinha suas razões para criticar o Estado; caso contrário, sua
obra jamais teria sido censurada no próprio país. “Nós” deve visto como uma rebelião
às ideologias utópicas e ao estadismo exacerbado. Foi certamente uma revolução na
Literatura. E não a última delas, pois as revoluções são infinitas.
Referências bibliográficas

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