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Joel Birman - Psicanálise, Ciência e Cultura
Joel Birman - Psicanálise, Ciência e Cultura
V. AS ESTRUTURAS CLÍNICAS
JOELBIRMAN
Psicanálise,
Ciência e Cultura
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos F.ditor(s de Li.\' TOS. RJ
ISBN 5-7110-292-9
CDD- 150.195
94-0718 CDU- 159.964.2
Sumário
Introdução . . . . . . . . . . . . . . 7
A direção da pesquisa psicanalítica 13
Os impasses da cientificidade no discurso freudiano
e seus destinos na psicanálise . . . . . . . 28
Leituras sobre a cientific idude da psicanálise . . . . 54
A filosofia e o discurso freudiano: Hyppolite, leitor de Freud . 66
Desejo e promessa- encontro impossível . . . . . 78
Psicanálise e política: uma introdução metodológica 97
Sujeito freudiano e poder: Tragicidade e paradoxo 111
O sujeito na diferença e o poder impossível . . . . 118
A ética da psicanálise e a moral n:1s instituições psicanalíticas 145
Sujeito, valor e divida simbólica . 161
A morte entre a ética e a violência 175
Notas . . . . . . . .. . . . . . . 185
Para Daniela
Introdução
Fronteiras, limites e confins da psicanálise
7
8 PS ICANÁI.I S I~. C! ÊNC IA E CUL TU I~ A
/1
/I/
Foi nessa d'Ír\.'\·ão teórica <Jue estes ensaios se construlram, na medida em que
já nos orient{tvamos por unu• outm com:er\·:io d ;1 pes•.JUÍsa interdisc:iplinar.
Assim, forJill as exigências intcmas da psi~·aniilise e as questões que foram
lO PSICA NÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA
28
OS IMPASSES DA CIENTIFICIDADE NO DISCURSO FREUDIANO 29
IJ. Fisicalismo?
V. Ciência e interpretação
Deslocando-nos agora da tradição norte-americana da psicanálise e dos
discursos sobre a cientiticidade, dominantes na tradição anglo-saxônica,
podemos destacar um debate inteiramente diverso sobre o estatuto científico
PSICANÁLISE. CH1NCIA E CULTURA
ta, para que ela pudesse se desenvolver como uma concepção dramática do
sujeito.41 •
Num outro registro, essa mesma oposição teórica de modelos foi
retomada por Dalbiez, quando estube.leceu a contraposição radical entre o
"método" e a "doutrina" no discurso freud iano. Com efeito, a psicanálise
revelaria a sua inovação teórica pela metodologia que forjou, onde a relação
com o outro através do diálogo estaria no primeiro plano, mas a sua "doutri·
na" seria falsa pelas hipóteses pulsionnis e a linguagem cientificista pela qual
se enunciou. Portanto, numa perspectiva teórica bastante próxima da leitura
de Polilzer, Dalbiez propunha a separação radical entre o "método" e a
"doutrina", de forma a se preservar o "método" de pesquisa da psicanálise,
mas de se descartar inteiramente da "doutrina" freudiana,42 como sendo um
entulho.
Os primeiros ensaios de locnn se inseriram na mesma tradição teórica,
na medida em que sublinhavam enfaticamente a inovação teórica do discurso
- freudiano pela estrutura da experiência psicanalítica e realizavam a crítica
sistemática da metapsicologia freudiana. Nessa crítica inicial formulada por
Lacan. fica patente que a metapsicologia revela a retórica fisicalista a ser
descartada no discurso freud iano, enquanto a descoberta freudiana se daria com
a construção da experiência psicanalítica centrada na fala e na transferência. 43
Entretanto. na leitura de l acan a experiência psicanalítica é apresen-
tada de maneira primorosa, pois se sublinham os efeitos transferenciaís da
experiência na decomposição das identificações constitutivas do psiquismo.
Da mesma forma, a interpretação psicanalítica é enunciada em seus efeitos
estruturantes sobre o sujeito, na e l ucida~ão dos enigmas e impasses de· sua
história. Nesse contexto, fica claro que a intenção de lacan é pretender
demonstrorque o processo psicanalítico é regulado por uma lógica irrefutãvel
e_rigorosa, constituindo-se uma verdadeira experiência científica. apesar de
não se enunciar pela retórica fisicalistu.
. AJõ~.im, a psicanálise seria um saber da interpretação que se constituiu
no campo da . expedência intersubjetiva. Estas seriam as marcas episte- •
mológicas de sua cientificidade. Para encaminhar sua demonstração teórica,
lacan se sustentou na filosotia fenomenológica (Husserl e Hegel), na psico-
logia da forma e na etologia, para realizar uma releitura de Freud,44 que se
apoiou principalmente na segunda tópk'a45 e na segunda teoria das pulsões.46
Contudo, o registro energético da metapsit.:ologia freudiana foi descartado
por Lacan, que enfatizou o registro interpretativo da psican6lise.
Em 1953, l acan tr.msformou as suas referências teóricas na releitura
do discurso freudiano, deslocando-se de uma teoria centrada na categoria de
imaginário para uma teoria centrada na categoria de simbólico. Para isso,
Lacan se aprimorou na utilização dos saberes lingüistico e antropológico,
44 PSICANÁliSE. CIÊNCIA E CULTURA
vante para aquele campo, mas porque a psicanálise foi uma problemática
crucial que perpassou toda a obra de Foucault.
Em contraposição à tradição epistemológica francesa pela qual se
formou ~ foi marcado, Foucault realizou uma crítica ao discurso da epis-
temologia, abandonando em suas pesquisas o estudo dos conceitos e dos
objetos teóricos das ciências. Seus estudos, portanto, não se inserem mais no
campo da história das ciências, no sentido cunhado pela tradição de Bache-
Iard e <?anguilhem. Sua proposta teórica seria realizar uma arqueologia do
~aber, 1sto é, como a história <.lo Ocidente construiu certos saberes que se
mscrevem em prálicas sociais de normalização.M Dessa maneira, revela-·se
uma crítica à categoria de verdade, tal como enunciada pela tradição da
epistemologia francesa, pois a verdade dos enunciados teóricos não é deci-
dida por critérios interiores ao campo, mas por valores que se fundam nas
práticas de normalização do social. A leitura de Foucault é marcada peJa
interpretação política dos saberes, apresentando uma crítica incisiva à pureza
conceitual do discurso da ciência. A politização da leitura de Foucault
acentua-se ao longo de seu percurso teórico, quando se deslocou paulatina-
mente da leicura primorosa das episteme:; dos saberes70 para o das estratégias
de normalização implicadas nesses saberes. Esse deslocamento implicou a
passagem da arqueologia do saber para a genealogia do poder.11
Foi nessa perspectiva que Foucault empree ndeu a leitura da história
da loucura no Ocidente, indicando que n superposição da concepção da
loucura com o conceito de doença mental foi um acontecimento histórico
recente e iniciado na aurora do século XIX. Essa leitura da loucura como
doença méntal implicou o não-reconhecimento de qualquer verdade na
loucura.72
Essa tradição não se instituiu imediatamente na história do Ocidente
mas foi longamente preparada desde a Idade Clássica. Assim, no Renasci~
mento a loucura era representada oomo enuncindora de verdade, mas desde
a .Id~e Clássica a loucura foi inscrita no registro da Desrazão e se preparou
h1stoncamente a concepção psiquiátrica do século XIX.13
Foucault localiza essa ruptura social e esta transformação na concep-
ção da loucura no século XVII em dois registros diferentes:
. 1. No registro político-socitll foi constituído o hospital geral, para onde
fo1 expulsa do espaço social a totalidade do universo marginal da Desrazão.
Os loucos se inscreveram no universo da marginalização e foram ativamente
excluidos do espaço social;
2. No registro fi/os6fico. com a constituição da filosofia cartesiana e
do cogito centrado no pensamenro, a Razão foi enunciada como se contra-
pondo à De:sra.zão, de fonnn que o discurso da Razão se identificou his-
toricamente com o discurso da ciência e se contrapôs ao discurso da loucura.
OS IMPASSES DA CIENTIFICIDADE NO DISCURSO FREUDIANO 53
I. A transformação de um paradigma
54
LEITURAS SODRE A CIENTIFICIDADE DA PSICANÁLISE 55
desse projeto teórico foi se impondo pouco a pouco em seu percurso intelec-
tual. Assim, apesar d a exigência de cientificidade para a construção
rigorosa da psicanálise, baseando-se para isso nas ciências naturais e em
sua demanda de quantificação, o d iscurso freudiano se desenvolveu de
fato e de direito como uma ciência da cultura, centrado na categoria de
interpretação.3
Este paradoxo acompanhou todo o desenvolvimento histórico do dis-
curso freud iano, sendo esta duplicidade de modelos epistemológkos um dos
responsáveis pelos desdobramentos históricos que marcaram a epistemolo-
gia da psicanálise em diferentes tradições culturais. Assim, se a tradição
anglo-americana sempre pretendeu que a psicanálise fosse uma ciência
empírica, submetida aos processos objetiváveis de verificação, a tradição
francesa procurou fundá-la como um saber da interpretação. Antes de esbo-
çarmos em linhas gerais essas diferentes tradições epistemológicas da psica-
nálise, vamos sublinhar as contrndições presentes no discurso freudiano
sobre essa questão. .
Fonnado como pesquisador no cnmpo da neuro-anatomia e como
médico neurologista, num contexto cultural marcado pela filosofia da natu·
reza e pelo positivismo científico, Fre ud pretendia que a psicanálise se
constituísse como uma ciência natur.tl, segtl;lrlo o modelo quantificável da
fisiologia. Posteriormente, a constituiçllo do Círculo de Viena, com sua
leitura crítica da metafísica e procurando fundar a especificidade do discurso
científico, teve uma incidência cn1cial no estabelecimento dos cãnones de
cientificidade do discurso freudiano.
Com efeito, se a psicanálise pretendia sé constituir como uma ciência
seria necessário que a sua constmçào teórica fosse realizadacomproposições
com sentido, isto é, proposições que pudessem ser verificadas como fatos da
experiência. Caso contrário, seriam as suas proposições sem sentido, inscr~
vendo-se então no campo da metaflsica.
Se o discurso freudiano procurava construir a metapsicologia com
a linguagem dominante das ciências da época - a fi siologia, a termodi-
nâmica e a psicofís ica - . em contr.lpanida o que se constituía era uma
modalidade de saber centrado na interpretação e na existê ncia da trans-
ferência. O discurso freudian o procurava superar este impasse epis-
temológico, enunciando a c:xigênciu de rememoração no processo
analítico como o critério fundamental de verificação de suas hipóteses
metapsicológicas e clínicns.4 .
Entretanto, as contradições teóricas se avolumavam no d1scurso freu-
diano. Nilo podendo construir propo:;ições empíricas irrefut.áveis, ide. õltifica-
va freqOentemente n ps icnnúlise à prúticu da "especulação",5 superpondo-se
então com a tilosotit ·Assim, como uma modalidade de saber da interpreta-
LEITURAS SOBRE A CIENTIFICIDADE DA PSICANÁLISE 51
V. Linguagem e psicanálise
uma ética do tlesejo e Foucault um:t ética na ••ontatle ele poder -,é nítido
o deslocamento do ·pan.tdiglil:t teórico que regula a leitura da psicanálise.
Com efeito, em ambos se destaca o deslocamento teórico do debate do campo
48 ciência para os campos da ética e da Política. Podemos dest:&e.nr também
que a le itura de Deleuze sobre a psicanálise indica o mesmo deslocamento
de paradigma teórico. 31 É nesse terreno que se joga agora os destinos teóricos
da psicanúlise, tícando como evocação do passado a consideração da cienti-
ficidade da psicanálise como lugar privilegiado para a sua fundamentação
teórica.
A filosofia e o discurso freudiano:
Hyppolite, leitor de Freud
Jean Hyppolite nasceu em Jonzac em 1907 e faleceu e1n 1968, contando com
a idade de sessenta e um anos. Realizou um longo percurso intelectual no
campo da filosofia francesa, desde professor para o curso secundário na
província até os postos mais avançados do magistério. Assim, ensinou na
Universidade de Strasbourg ( 1945-1948) e na Sorbonne ( 1949-1954). Em
seguida, foi diretor da École Nonnal Supérieure, onde ficou até 1963, quando
então assumiu a posição de professor do Collêge de France, onde pennaneceu
até sua morte.2
A obra que nos legou é admirável em diferentes dimensões. Ela se
caracteriza não apenas por sua multiplic:idade- com Hyppolite demonstran-
do um pleno domínio do idealismo alemão e da filosofia modema3 -.como
tanlbém pela originalidade de sua leitura de Hegel. Como especialista em
Hegel, traduziu para o francês Afenomenologia do espírito,4 e nos ofereceu
como tese um comentário magistral desta obm,5 que desde então constitui
uma das fontes fundamentais para a formação de intelectuais interessados na
filosofia de Hegel.
Nesta retomada de pensamento de Hegel, o que caracteriza a interpre-
tação de Hyppolite é o lugar fundamental atribuído ao discurso hegeliano na
filosofia moderna. Vule dizer, Hegel n;io é considerado apenas um filósofo
importante do século XIX dentre vários outros, que dada a sua relevância
exige dos comentadores da história da lílosofia a realização da exegese de
seu discurso. Pelo contrário, a filosofia hegeliana seria nesta leitura a matriz
da filosofia moderna.
Com efeito, pam Hyppolite o<.·ampo de incidência da filosofia de Hegel
é mais abrangente, pois as problem:íticas teóricas delineadas pelo pensamen-
to de Hegel encontram-se no fundamento da filosofia moderna. Assim, em
sua leitura, as grandes tendências do pensamento moderno encontraram as
66
A FILOSOFIA E O DISCURSO FREUDIANO 67
suas origens nas problemáticas constituídas pOr Hegel e, ·por isso mesmo,
estabeleceriam um diálogo pemlaneote com o discurso hegeliano, seja este
realizado de maneira direta ou indireta. ·
No que tange à tradição filosófica francesa, a intrOdução do discurso
hegeliano assumiria uma feição pm1icular e deveria ter um- efeito decisivo,
além da característica a que nos referimos acima. Com efeitO:, para Hyppolite,
os pressupostos da filosofia hegeliana permitiram introduzir a dímens4o
histórica na leitura dos problemas filosóficos, perspectiva de abordagem que
estaria ausente na história da filosofia na França de Descartes a Bergson.6
Autor fundamental na retomada histórica dos estudos hegelianos na
França, ao lado tle Jean Wahl7 e Alexandre Kojeve,8 Hyppolite foi também
a mediaçãofundamental para o e:itabelecimento de um diálogo fecundo entre
a filosofia e a psicanálise. Esta arti~ulação entre filosofia e psicanálise foi
possibilitada,por um lado, pelo discurso de Hegel e, pelo outro, pelo "retomo
a Freud" promovido pela investigação de Lacan desde os anos cinqüenta.
Evidentemente, este encontro teórico entre Hyppolite e Lacan não foi
fortuito, pois apesar de enunciarem discursos diferentes e se inserirem em
campOs diversos do saber, ambos se fundamentaram na filosofia de Hegel.
Por isso mesmo, este encontro se inscreve na história da filosofia francesa,
que desde os anos trinta retomou o pensamento de Hegel e construiu as bases
teóricas para uma nova interpretação do seu discurso.9
Neste contexto, se empreendeu a releitura da filosofia de Hegel por J.
Wahl, A. Kojêve e J. Hyppolite, na quul foi atribuído destaque especial aos
textos iniciais de Hegel e principalmente A fenomenologia do espírito. 10
Nesta obra, a dialética do senhor e do escravo 11 ocupou uma posição
fundamental para a elucidação do pensamento hegeliano e para a exegese da
totalidade de seu discurso filosófico. Assim, mediante o destaque atribuído
à dialética do senhor e do escravo, é sublinhada no discurso hegeliano a
dimenstio dramática que marcuria a constituição do sujeito e não, como na
leitura de outros comentadores do seu pensamento, a construção de um
sistema filosófico, que teria realizado com sua lógica o ápice de sua reflexão
teórica.
Nm.la 6 mais atraem~ qu~ a kitur;c d:ts ol>ws tk fh:ud. Tcm·se o sentimento
de uma dcsl.'oocrta J>Cill.:\ll;t, <.l~ umtr;cl>alho em profundidade que não cessa
jamais de colocar em qucst<1o scu.s próprios resultados p:tra abrir novas
pcrspccliv:1s .~~
tico, na qual se destaca a tragédi:t de Édipo, tal como este foi descrito por
Freud em A interpretaçlio dos sonhos. Estabelece-se então uma analogia
entre as problemáticas do sujeito na psicanálise e nn filosofia de Hegel:
... é num esplrito que não é tiio diferente d11quele da psicanálise freud iana
nestes textos, que nós ensaiaremos encarar, por uma interpretaçlo propria-
mente retrospectiva, a fenomenologia de Hegel. Reler assim a Fenomell()-
logia consistiria a encarar a tom Iidade dcst:l obra ~o diflci I c sinuosa como
a verdadeira tr:1gédia de! Édipo da totnliuadc do espirito humano, com talvez
es1a diferença que o desvclamcnto t"tnal - o que Hegel denomina "saber
absoluto"- permanece arnbiguo e enigmático:''
A categoria de intersubjetividade ocupa uma posição estrat~gica na
leitura de Hyppolíte, sem a qual não s~riu possível interpretar o percurso do
sujeito ~o ato psicannlít ico e na "fenomenoloiia do espírito". Assim, é
necessário não apenas a presen~·a mas também a antecipaç1io, lógica e
histórica, de um sujeito para que um outro sujeito possa efetivamente se
constituir. Com efeito, a passagem da consciência natural para a consciência
de si .somente seria possivel pela media~·ão de uma outra consciência que
polnnzn o processo dramático e pemlite à primeira consciência a experiência
de uma série de figuras descritas por Hegel em sua obra.
Da mesma forma, o ato psicanalítico é inscrito neste contexto dramá-
tico, no qual a figura do analista ocupa um lugar que é a condição de
pos.sibilidade que pennite o acesso da tigura do nnalisante à posição de
sujeito. Então, as figums dromáticas, mediante as quais o sujeito se representa
e se apresenta no longo do processo analítico são análogas às figuras descritas
por Hegel no percurso da consciência em A fenomenologia do espírito. Com
isso, a dimensão metafísica da psican(rlise se esbÔça com traços bem deli-
neados para Hyppolite.
Com efeito, Hyppolite sublinha no que existe de mais fundamental no
discurso freudiano, que é u des<:oberta do processo psicanalítico centrado na
transferência, uma "inquietação filosófica fundamental de Freud, que se
dissimula atrás de uma lécni<.:a terapêutica". 59 Por isso mesmo, é preciso
repensar o que significa a idéia de '\·ura" pela psitanftlise e indagar se se trota
de uma modalid:1de de ..lerapêutka", pois na perspectiva freudiana a proble-
mática da "cura" assume uma dimensão metafísica, implicando o acesso do
sujeito à vertlade de sua história e do seu desejo.60 Enfim, a questão da "cura"
pela psicanálise desembo,·a na problemátka da verdade, a questão filosófica
por excelência.
Desejo e promessa- encontro impossível
O discurso freudiano sobre a religião*
..No principio era a açlo"
S. Frcud, Totem e Tabu I
1. Leitura metodológica
A relação entre a psicanálise e a religião pode ser investigada de diferentes
pontos de vista, se considerarmos a perspectiva das diversas ciências huma-
nas que poderiam assumir esta problemática como objeto <fe pesquisa.
Embora essas diferentes modalidades de abordagem impliquem um recorte
discursivo es~cí.fico e formas particulares de teorização, elas não são
excludentes mas complementares, pois seus diferentes objetos recortam
diversos campos de positividades.
Porém, se o instnunemo interpretativo e o objeto da interpretação
forem a psicanálise e a religião, o contexto teórico da questão se transforma
radicalmente. C01n efeito, se considemrmos que existe uma polaridade
insofismável entre psicanálise e religião, a complementaridade entre elas se
apresenta como impossível, pois se nos centrannos na problemática que
funda cada uma destas formas de saber, a tematização construida a partir de
cada uma delas será radicalmente diterente.
Assim, considerando o pólo interpretativo da relação, o desdobramento
discursivo será necessariamente diverso. Nessa perspectiva, se nos centrar-
mos no pólo ..psicanálise", procurando circunscrever o lugar da religião no
discurso psicanalítico, a resultante de nossa indagação será certamente
bastante diferente do que se nos baseannos no pólo "religião", onde a
psicanálise Se apresenta como objeto de renexão, de crítica e mesmo de
perplexidade para o discurso religioso.
Considerando, então, esta bifurcação inicial numa perspectiva meto-
dológica, é possível realizar ainda uma outra inflexão teórica. Assim, pode·
mos submeter cada uma destas indagações a uma modulação histórico-social.
Vale dizer, podemos destacar a e!listência de diferéntes formulações psica-
nalíticas sobre a religião, desenvolvidas em tempos diversos, como sendo
determinadas historicamente em contextos sociais específicos. O que se
78
DESEJO E PROMESSA - ENCONmO IMPOSSÍVEL 79
diano- principalmente em seu percurso final iniciado nos anos vinte, que
se materializou na formulação da ex istêncía da pulsão de morte e de um além
do princípio do prazer3 t - evidenciá as impossibilidades colocadas para o
sujeito de sustentar as ilusões ilimitadas de seu narcisismo. Então, o sujeito
é confrontado com os limites de sua existência e com o horizonte pos-
sibilitado por sua história.
Foi nesse contexto também que Freud escreveu grande parte de suas
assim denominadas obras sobre a cultura. O que não é um acaso, certamente,
pois foi apenas nesta virada cn1ci:1l de seu pensamento que as impossibilida-
des existenciais do sujeito se colocavam com maior vivacidade para a sua
indagação teórica. Porém, além dessa rnzão, que é da ordem do fat o, coloca-
se também uma rnzão da ordem do direito, porque é nas formações imaginá-
rias da cultura que o sujeito encontra ns condições de possibilidade para
formentar as ilusões de seu narcisismo.
Forma de racionalidade que pretende delinear a singularidade do
sujeito desejante, a psicanálise constitui uma modalidade de ética bastante
original na modernidade, e (.'UjOS pressupOStOS diferenciais indicadOS até
agora apenas esboçam a sua oposição üs diferentes éticas que fundam as
promessas rel igiosn e terapêutica.
V. O sujeito e o Outro
sua onipotência e revela simultaneamente que o poder que lhe era atribuido
lhe transcende, na medida em que é a palavra que funda a relação entre os
diferentes sujeitos no registro simbólico.
Esta questão é encaminhada por Freud no final de Totem e tabu, quando
se precipita como conclusão deste ensaio magistral que "no princípio era o
ato".S4 As!>im, o discurso fre udiano assume como um postulado psicanaHtico
o apotegma fáustico enunciado por Goethe.55 Esta fomlUiação concisa do
Fausto se contrapõe literalmente ao primado atribuído ao verbo no Evangelho
de São João, de maneira que na prioridade ontológica conferida ao Verbo ou
ao ato se estabelece uma oposição entre diferentes concepções do sujeito e
do mundo.
Com efeito, a prioridade atribuída ao ato sobre o verbo significa para
Goethe, antes de mais nada, a ruptura com o primado conferido à palavra
divina na tradição do Cristianismo e o anúncio de um universo constituído
inteiramente pelo homem. Assim, como :mífice do mundo, o sujeito se abre
para a constituição de sua história, impulsionado pelo seu desejo e instru-
mentado pelas ciências constn1ídas pelo homem.
Na tessitura poética do Fausto, ordena-se uma transgressão fundamen-
tal do sujeito, que se materinliza no discurso dramático pelo pacto com o
diabo em troca da aquisição da ciência. Por isso mesmo, esta transgressão é
um ato instaurador de uma outra ordem do mundo, representando um pecado
crucial face aos valores da ·tradição do Cris.tianismo e do universo divino.
Porém, é por esta transgressão que o sujeito abre as portas para um outro
mundo e assume inteiramente a sua condição de sujeito, pois passa a construir
a sua própria história pela ciência por ele constituída, trocando então a
segurança divina pelo fruto proibido do saber. Enftm, ao perder a segurança
sust~ntada pelo verbo divino o sujeito deve arcar agora com o seu desamparo
fundamental, onde o desejo inuicando a sua falta ê o que lhe impulsiona na
busca do saber.
Portanto, ao assumir o upotegma fáustico enunciado por Goethe no
discurso psicanalítico, F.reud está fonnulando que para que o 1nfante possa
desc.obrir a ~struturo1 uo v~:rbo na sua l:Onstitui~ãv eminentemente simbólica
e-possa assumir os riscos do seu próprio desejo, é-preciso que ele rompa com
a "proteção divina" fomecida pelas ftguras parentais. Desta maneira, consi-
derando a oposição entre as categorias da pré-história e da história,56 o sujeito
pode se deslocar do registro da pré -história para o da história, podendo viver
entllo o dest.jno traÇado pelo seu desejo.
. ·. Porém, esta mudança di! posi~·ão do sujeito face ao registro simbólico
e às ftgllras parentais é confli tivll, pois impõe ao sujeito o reconhecimento
tio seu desamparo fundamentnl,e da castração, pam assumir então a direção
do·seu desejo.
DESEJO E PROMESSA - ·ENCO NTRO IMPOSSÍVEL 95
97
98 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA
a
inerentes. Enfim, constituição de análises teóricas sobre os micropoderes,
com as pesquisafde Foucault,2•3•4 se realizaram também nesta conjuntura.
Neste contexto, a relação da psicanálise e da política vai ser repensada,
perdendo então o estilo totalizante anterior em que esta questão era fonnulada
do modo caricato que esbocei inicialmente. Assim, pensar agora esta relação /
implica sublinhar devidamente as questões particulares ao campo psicanall·
tico e não considerar· a política usando como parâmetro as exigências do
discurso totalizante.
Comecemos por remontar esquematicamente algumas linhas teóricas
que circunscreveram esta problemática na perspectiva do discurso totali-
zante, pois, apesar deste se encontrar historicamente questionado, ele é ainda
bastante presente no nosso espaço social e seus antigos arg umentos se
apresentam revestidos com novas formas.
111
I 12 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA
11 8
O SUJEITO NA DI FERENÇA E O PODER IMPOSSÍVEL 119
nálise se institui como uma moral, capaz de oferecer um código fechado onde
as individualidades encontram um mapu com direções infalíveis para seus
percursos na incerteza da existência.
1/l. O imposJivel
Freud fonnulou literalme1üe que psicanulisar era um empreendimento da
ordem do impossível, ufinn:Jndo que educar e governar eram práticas sociais
inseridas também nas fronteiras do impossí ve I, 27 "nas quais pode-se de saida
estar certo de um sucesso insuficiente".28 Assiin; se para o discursá freudiano
psicanalisar, educar e governnr são experiências iascritas nos limites do
impossível, isso indica inicialmente uma unidade e uma identidade dessas
práticas, apesar de suas diferen~·as. A enumeração destaca, porém. também
a especificidade da psicanúlise na sua distinção com a pedagogia e a política,
evidenciando que psicanalisar niio é ensinar como ser homem nem como se
governa os homens. Esta fornm !ação indica que psicanalisar é uma experiên·
cia impossível mas que se insere entre dois pólos fundamentais que delineiam
o horizonte do impossível, considernndo o lugar fundamental ocupado pelo
ensino e pelo governo nas sociedades humanús.
Ao lado de outras pn\ticas sociais complementares, a edticação preten-
de algo mais do que ensinar, pois se propõe a construir o sujeito de acordo
O SUJEITO NA DIFERENÇA E O PODER IMPOSSÍVEL 123
IV.Incompletude,finitude e morte
O esboço do campo psicanalítico delineado nas fronteiras do impossível,
destacado inicialmente pelas categorias de finitude e de incompletude do
sujeito, remete a conceitos fundamentais do discurso freudiano: a angústia
de castração e a ordem simbólica. Esses conceitos são fundamentais para se
pensar na constituição do sujeito no discurso freudiano, como sendo radical-
mente sujeito do inconst·iente.
O conceito de inconsciente no disct:rso freudiano corresponde à reali-
zação de uma produ~·ão psíquit·a, sendo um dos destinos possíveis das
pulsões, onde Freud destaca diversas operações estruturais na gramática da
. pulsão: o retorno sobre a flróprin pessoa, a passagem do ativo ao passivo, o
recalque e a sublimação. .; O sujeito do inconsciente somente se constitui
com a operação do recalque, que é um destino particular das pulsões,
implicando um processo complexo e intrincado de inscrição da força (Drang)
pulsional no universo da representação (Vorstellung).36
O SUJEITO NA DIFERENÇA E O PODER IMPOSSÍVEL 125
V. Sujeito e cultura
... o ego, na sua relação com a ação, tem. por assim dizer. a posiç!o de um
monarca constitucional, s~m •• san)'àu do <tua! pode se tornar lei, mas que
avalia muito antes de opor seu veto :1 uma lei do parlamcnto.44
As relações do indivíduo com seus pais e com seus irmãos e irmãs, com
seu objeto de amor. com o seu professor e com o seu medico, portanto todas
as relações que constitulram até o presente o objeto privilegiado da inves-
tigação psicanalítica, podem ter a pretensão de ser consideradas como
fenômenos ·sociais e se opõem enliio a alguns outros processos que deno-
minamos nnrcísicos., nos quais a s;uisfação pulsionada subtrai à influência
de outras pessoas ou renuncia a isso. A oposição entre os atos pslquicos
sociais c rutrcísicos- lllculcr diria, t:llvez: nutísticos - se situa pois,
exatamente no interior mesmo do domfnio da psicologia individual e não
é de natureza para separar cssn de uma psicologia social ou psicologia das
massas.46
Jíder deve ser mantido Como Ulll lugar vazio, na médida em que é um lugar
impossível de ser.oc-upado integmlmente por qualquer figura humana. Esse
r
é o lugar do pai morto, da reminiscência da onipotência humana, que deve
ser limitada para que se constitua a ordem simbólica como o seu outro,
condição de possibilidade para o mediação entre os sujeitos pela linguagem.
Dito de outra maneira, o vazio nesse lugar soberano indica a existência de
um mundo sem Deus, mundo secularizado pela ciência e dominado pelo
poder dos homens. Nesse mundo desencanta!.lo.os.bomens devem inventar
suas formas de saber e reinventar permanentemente seus discursos, para
estabelecer o diálogo entre si e remÇJdelar a paisagem do universo. O lugar
vazio do Deus inexistente, porém, indica também a demanda interminável
de simbolização a que está destinado o sujeito, condição indispensável para
a transformação do universo das coisas, reinvenção permanente das formas
de relações inter-humanas e a constituição da experiência da nist6ria.
Esta formulação foi inaugurada em Totem e tabu, obra que se encontra
nos primórdios do percurso freudiano sobre o poder e sobre os limites da
simbolização humana. ·
Freud nos relata uma experiência primordial que estaria nas fronteiras
da natureza e da cultura, demarcando a constitui~ão do sujeito, da sociedade
e da história. A narrativa é marcada pela construção mítica, na qual se
evidencia a ausência ún comprovação hi~t6rica fornecida pela memória da
humanidade. Trata-se, por1anto, d~ um mito das origens. Qnde o que funda a
narrativa é a reminisc€ncia do sujeito e não a ordem da memória, reminis·
cência essa que se revela pela experiência da.repetição que se apresenta no
processo psicanalítico. ·
De acordo com e~su paráboln, teria existido algum dia uma figura
pntema que detinhn o poder absoluto sobre as riquezas e os bens de prazer~
usufruindo (.le maneira soberana da totalidade dus forttes de gozo. O pa1
136 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA
X. A força e a retórica
A p~lítica c?mo forma de_ n.tediação das relações entre os homens no esp.açQ
socJal, med1ante o exerCICIO da govemabilidude, é freqüentemente repre-
sentada pela palavra retórica, instrumento fundamental de. negociação, de
persuasão e de dissuasão nos confrontos de força existentes no campo social.
A palavra, porém, também se insere numa lógica de tinida pelas coordenadas
das relações de poder, não sendo pois constituída somente por significantes
puros na exterioridade das relações tle for~·u. Por isso mesmo, o lugar do
poder indica as fronteiras do impossível, pois não existiria na modernidade
um lugar da verdade qt~e fosse exterior aos investimentos e aos desinves-
timentos regulados pela relações de força. Ao mesmo tempo, porém, o poder
é u~ lugar fundamentul na delimitação da cartografia do espaço social, na
' medtda. em que é en~ .tomo das múltiplas distribuições do domínio do poder
que se mserem os diferentes agentes sociais em estado !alente de guerra. O
J><?der, .n:s suas m.ú~tiplas regiões sociais, é a condição de possibilidade para
a mscnçao dos SUJeitOs, num cenário em que a produção das diferenças possa
se realizar de maneira permanenre.
. ~ssim, podemos considerar que o disc.:urso freudiano sobre o lugar
tmposstvel do poder•. un~ Ju_gar que não pode ser ocupado por ninguém de
fonna absoluta e a útstnbutçào conseqüente da soberania, se insere numa
tradi~ão importnnte ~a moderniuade, na qual a guerra é o que marca as
relaçoes fund:unentuas entre os homens. Neste contexto, a política repre-
sentada pela retórica é uma tentativa permanente de administrar essas re-
lações, de regular e c.le estabelecer m·ediações nas relações entre os homens,
mas a palavra é sempre um instrumento precário apesar de fundamental, para
sustent~r a ges~ão das relações de força entre os homens e possibilitar a
produçao das dtferenças entre os sujeitos.
No discurso freudiano a dimensão de força que permeia a relação entre
os.h~m~ns, marcando a distânciu e a proximidade entre os corpos, sendo "a
ex1genct~ do. lrabalh? qae é imposta ao psiquismo por sua vinculação ao
co~oral '. fot ~enonunada de pulsão. A pulsão é a condição de possibilicbde
da sunb.ollz.aç<~O huma1w; e a retórica, como modalidade de simbolizaçào, é
a te~ta_tl.va mststente de regulução da forçu pulsional. Enfim, a pulsão é a
posstblltdade de produçã? da diferença, apesar de ser ao mesmo tempo a
fonte pennanente do confronto mortal entre os sujeitos e os corpos.
A ética da psicanálise e a moral
nas instituições psicanalíticas•
I. Recortes da ética
P<tra formular qualquer questão sobre a ética nas instituições psicanalíticas
é preciso enunciar. antes de mais nada, a direção metodológica que preten-
demos imprimir na sua abordagem. Vale dizer, é necessário destacar o recorte
que vamos realizar deste tema, para empreender a sua construção como uma
problemática. Para delinear as coordenadas colocam-se pelo menos dois
movimentos teóricos: um referente à ética propriamente dita e outro concer-
nente à instituição psicanalítica.
Inicialmente, é preciso enfatizar que a ética a ser esboçada aqui é a que
se funda no discurso e na experiência psicanalíticas. Não pretendemos
discutir a questão da ética na sua universalidade filosófica e antropológica,
na exterioridade da psicanálise. Não estamos afirmando com isso entretanto,
que a ética da psicanálise, apesar de sua especificidade, não estabelece
relações dialógicas com outros discursos sobre a ética. Pelo contrário,
estamos enunciando que qualquer diálogo somente é possível se delinearmos
os lugares e os registros ontle se inscrevem os interlocutores.
Assim, a psicanálise se constitui como um campo ético que pode
dialogar com outras éticas existemes, na medida em que a ética não é uma
exigência exterior à psican:llise. que esta pode acrescentar como um mero
adendo por exigências sociais e des!acar em seguida como um resíduo. Por
isso mesmo, sem desenhar os contornos onde se insere a questão da ética na
experiência analítica n5o é possíve l enunciar quais são os imperativos da
ética da psicanálise. Conseqüentemente, sem isso, não é possível enunciar
também qualquer comentário sobre u ética na instituição psicanalítica.
Antecipando de maneira sintética o desenvolvimento teórico que em-
preenderemos adiante, podemos enunciar que a ética da psicanálise se funda
no reconhecimento do sujeito como desejo. Com isso se formula que na
psicanálise o sujeito é desejante, que o sujeito é representado no registro do
145
146 PSlCANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA
I. /nterdisciplinaridade na economia
161
)62 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA
N . Metapsicologia e psicologia
A metapsicologia é o nome cunhado por Freud para designar a especificidade
da leitura teórica, realizada pela psicanálise, dos processos e atos psíquicos.2
Esse tenno Se identifica com a concepção de teoria em psicanálise, em que
as dimensões positiva e mítica se articulam de mane;.ra orgânica. Assim, a
metapsicologia evidencia, por um lado, a cientificidade do discurso psicana-
lítico e , por outro, o que na leílura psicanalítica é irredutível a uma concepção
positiva de ciência. Nessa segunda dimensão, a psicanálise como saber da
interpretação foi representada pelo discurso freudiano como uma fonna de
"m itologia" e mesmo como uma modalidade de "bruxaria",3 justamente
porque não seria passível de ser verifícaua empiricamente pelos procedimen-
tos da experimentação científica.
No discurso freudiano se enuncia que a metapsicologia é uma leitura
do psiquismo baseada nos pontos de vista tópico (lugares psíquicos), din4-
mico (jogo de forças entre as representações mentais que funda a teoria do
conflito no psiquismo) e econômico (intensidade dos investimentos das
representações psíquicas).4 Essa formulação toma evidente qu~ o "ap~relh~
psíquico" não se restringe ao campo das representações mentaiS, mas mclu1
também na sua estrurum as dimensões de conflito e intensidade.5
A leitura freudian~ do psiquismo considera, portanto, que este trans·
cende não apenas o campo da representação mental, mas que também é
marcado por uma divisão estrutural constitutiva da subjetividade. A subjeti-
vidade é concebida como sendo estruturalmente clivada (Spaltung), de
maneira que o sujeito na psicanálise é figurado como sendo marcado por uma
desannonia fundamental, que não é um acidente patológico no seu percurso
histórico, mas a sua fonna originária de constituição.
A palavra metapsicologia indica que a psicanálise pretende se~Au~a
modalidade de saber do psiquismo que transcende o campo da conscJencla
e do eu- da certeza e da verdade - , no qual a filosofia clássica, desde
Descartes, inseriu o sujeito.6 Com Freud, o psiqu ismo passou a revelar o que
existia de fundamental para o sujeito justamente nos momentos de ruptura
da continuidade da consciência, quando a subjetividade era balançada nas
suas certezas e a dúvida demolia subitamente as verdades construídas pa-
cientemente pelo eu. Portanto, é nos fenômenos residuais da consci!ncia e
166 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTIJRA
este num fetiche, isto é, num objeto de adoração para a obtenção do gozo
auto-suficiente, o bem supremo pura a subjetividade. Estabelece-se então o
gozo fetichista.
Na subjetividade, o dinheiro circula num campo imantado entre dois
pólos, definindo economias líbidinais absolutamente diferentes, já que, em
uma, a sua regulação se realizu pelo valor de uso, e na outra, pelo valor de
troca. Examinemos o contraponto entre essas fonna.s de economia libidinal,
nas quais o valor e o prazer têm destinos bastante diversos.
Na economia libidinal regulada pelo valor de uso, a subjetividade
supõe que o dinheiro em si é a fonte do poder, como se a sua posse pudesse
lhe oferecer os meios de acesso à total idade d:ls riquezas e dos prazeres, como
se o sujeito pudesse "compmr" o gozo e o seu reconhecimento como
subjetividade. O dinheiro se transfomm no bem supremo, de fonna que se
destaca o caráter perverso do gozo fe tichista. Nesse tipo de economia, a
subjetjvidade não espera o reconhecimento pelo que é e pelo que poderia ser,
mas pelo que tem, supondo que a apropria\ão da riqueza em si pudesse de
fato impor ao Outro o seu poder. A subj~tividac.le funciona como se pudesse
prescindir do Outro e fosse absolutamente auto-suficiente. O sujeito supõe
que é o detentor do seu ideal, regulando-se apenas pelo ego ideal e não se
submetendo a qualquer ideal que o tmnscenda. 21 Foi nesse registro libidinal
que o discurso freudiano caracterizou o prazer da analidade e o erotismo
presente no caráter anal. 22
Em contrapartida, na economia psíquica regulada pelo valor de troca,
o sujeito supõe que o reconhecimento pelo Outro é fundamental para saldar
a sua dívida simbólica. Por isso mesmo, demanda ao Outro o seu reco-
nhecimento, já que este se legitima pei<J que o sujeito é e nuo pelo que tem.
Nesse processo, o sujeito se submete a um ideal transcendente ao eu, não
sendo pois o detentor do seu próprio ideal, mas regulando-se pelo ideal do
ego.23 Enfim, o pmzcr sine qua non que se impõe ao sujeito é o reco·
nhecimento do seu lugar como sujeito.
Evidentemente o sujeito oscila entre os registros do ego ideal e do ideal
do ego, mas a dominância psíquica se de~loca para o ideal do ego quando o
reconhecimento pelo Ou1ro se estabelece no sujeito. Em caso contrário, a
dominância do ego ideal se implanta na subjetividade, de fonna que o
dinheiro como fetiche circula no psiquismo e o gozo fetichista domjna a
relação do sujeito com os outros e as t·oisas. Com isso, os ou tros se transfor·
mamem coisas, coisas que servem para o sujeito gozar.
Nesse contr:tponto, o funcionamenlo psiquico é revelado quando existe
na subjetividade o reconhecimento da dívida simbólica - onde o sujei-
to reconhece a sua falta e a sua demanda ao · Outro - e quando esse
reconhecimento não se realiza: nesse caso, a subjetividade acredita ser
172 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA
/ . Percurso na violência
115
176 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA
Introduçüo
185
186 PSICANÁLISE, CIENCIA E CULTURA
36. Sobre isso, vide: Koyré, A. Mystiques, spirituels. alchil~ist~s du .xvre, sie~le
a/femand. Paris, Gallinwrd, I 971; Koyré, A. Du monde à I umvers mfim. Paras,
Gallimard, 1973. .
37. Freud, S. " Pulsions et destíns dcs pu lsions", io Métapsycht?logie, p. 11-12. O gnfo
é nosso.
38. Idem, p. 12·20.
39. Freud S. "Psychical (or mcmnl) trcatmcnt" ( 1891), in S. E., voi.II.
40. Freud: S. 011 Aphasia (1891 ). New York, lnternatlonn1 Universities Press,
1953.
41. Freud, S. "The claíms uf psycho·ana1yse to scicntific interest" (1913), in S. E.•
vol. XIII.
19. Sobre isso, vide: Frcud, S. "Lcs psychonévroses de défense" (I 894), in Névrose,
psychose et perversion. Paris. PUF, 1973; "Nouvelles remarques sur Ics psycho-
névroscs de défcnse" (1896), idem.
20. Sobre isso, vide: Descartes, R. "Discours de la méthode pour cond uire sa raison
et chercher la vérité dans lcs scienccs" (1633), in Oeuvre et letrres de Delcartes.
Paris, Gallimard, 1949; ~scancs, R. "Méditations. Objections et réponses"
(1641), idem.
21. Sobre isso, vide: "Pulsions et dcstins des pu!sions" (1915), in Métapsychologie.
22. Freud, S. Trois essais sur la théorie de la sexualité, 2~ ensaio.
23. Sobre isso, vide: Frcud, S. "Pulsions et dcstins dcspulsions", inMétapsychologie;
"La rcfoulemcm" ( 19 I 5), i<lcm; ''L'inconscicnt" ( 1915), idem.
24. Freud, S. Trois essais sur la théorie de lu sexualité, ::?.~ensaio.
25. Frcud, S, idem.
26. Frcud, S. "Pour introduirc lc nan:isisme" (19 I 4), l~cnp., in La vie sexuelle. Paris,
PUF, 1973.
27. Freud, S. On Aphasiu (1~91 ). Nova Yurk, lntcrnational Univer~itics Press, I953.
28. Frcud, S. "Esquissc d 'une psycholugie scicntifiquc", I! parte, in Naissance de la
psychanulyse.
29. Sobre isso, vide: Rajchman, J. "Psyt·hanalysc I) 1'américaíne", in Critique, n. 333.
Puris, Minuit, 1975.
30. Sobre isso, vide: Birman, J. Enfermidade e loucura. Sobre a medicina das
inter-relações. Rio de Janeiro. Campus, 1980: Birmnn, J. Freud e a experiência
psicanalítica. Rio de Janeiro, Taurus-Ti!lll>rc, 1989.
31. Idem.
32. Popper, K. Conjecwres and Rt![utations. Londres, Routledge and Kegnn Paul
1963. '
33. Sobre isso, vide: H:~rtmmm, H. Essays on Ego Psych.ology. Nova York:, Inter-
national Universitics Prcss, 1976: Hanmann, H., Kris, E., Lowcnstein, R.M.
Papers on Psychoanaly1ic Psydw!ogy. Nova York, lntcrnntional Universities
Press, 1964.
34. Dilthey, J. lmroducción alas ciendas de/ espirilu. Mntlri Revista de Occidente
1966. . •
35. Kant, E. Critique de la raison pure (1781). P:1ris, PUF, 1971.
36. Sobre isso, vide: Wcbcr, M. Essais sur lu théorie de la science. Paris, Plon, 1965.
37. Politzcr, G. Critique desfondc•lllcnts de la psydwlogie (1928). Paris, PUF, 1968.
38. Freud, S. "The rcsistnnccs to psycho·analysis" (1925), in S. E., vol. XIX. Londres,
Hoganh Press, 1978.
39. Roudincsco, E. Histuire d,: la psyâumalyse en France, vo!. 2. Paris, Scuil, 1986.
40. Politzer, G. Cri fique des [onde lll!Jl/S de lu psychologie. Introdução.
41. Idem, caps. I c I I.
42.Jdem, cnps. 111, IV c v.
43. Dal_biez, R. Lu mt!thode psychunaly1ique erla doctrine freudienne, vo!s. I e 11.
Parrs, Dcsdée de llrouwcr, 1936.
44. Sob~c isso, vide: U1<.:an, 1. "A u·dl! 1~ d u princ ipe de rcalité" ( 1936), in Écrits. Paris,
Sctul, I 966; ''Lc stadc du miroir conunc fornwtcur de la function du Je" (1949)
idem; "L'agressivité cn psychanalysc" (1948), idem.. '
NOTAS 189
45. Sobre isso, vide: Lacan, J. De la psychose paranoíaque dans ses rapports avec
lapersonnalité, suivi de premiers écrirs sur laparanoi"a ( 1931, 1932, 1933). Paris,
Scuil, 1975.
46. Freud, S. "Au-delà du príncipe du p!aisir" (1920), in Essais de psychanalyse.
Paris, Gallimard, 1981.
47. Freud, S. "Lc moi et lc \'11" (1923), idem.
48. Saussure. F. Curso de língüúticu geral (1916). São Paulo, Cultrix, 1974.
49. Lév i-Strauss, C. Les structures elémemaires de la parenté (1949). Paris, Mouton,
1969.
50. I .acan, J. "Fonction et champ de la paroIc et du llmgr1geen psychanalyse" (1953).
in Écrits.
51. Lacan, J. Les quatre concepts fundamemaux de la psychanalyse. L e Séminaire,
livre XI (1964), caps. X-XV. Paris, Scuil, 1973.
52. Birman, 1. "A li!osotia c o lliscurso freudiano." Hyppolite, leitor de Freud, in
Hyppolite, J. Emuios de psicanálise e filosofia. Rio de Janeiro, Taurus-Timbre,
1989.
53. Sanre. J. P. L' Être et /e néant. Paris, Gallimard, 1943.
54. Merlcau-Ponty, M. Phénomenologie de la perception. Paris, Gallimard, 1945.
55. Merleau·Ponty, M. La structure du comportement, cap. 111. parte 111, 3. Paris,
PUF, 1942.
56. Sobre isso, vide: Merlcnu-Ponty, M. "N:IIure et Jogos: Je corps humain" (1959-
1960), in Résumés de cours (Coll~ge de Frnnce, 1932-1960). Paris, Gallimard,
1968; Mcrlcau-Ponty, M. Le vr'sible e1 /'invísible. Pélris, Gallimard, 1964.
57. Ricoeur, P. De 1' interprétution. EmJis sur Freud. Paris, Seuil, 1965.
58. Idem.
59. Idem.
60. Althusscr, L. "Frcud e Lu<.:an" ( 1964), in Posições-2. Rio de Janeiro, Graa\, 1980,
pp. 111- 116.
61. Sobre isso, vide: Bnchclard, G. O novo espíri1o científico (1934). Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1968; Dm:hclard, G. La formatíon de l' esprit scientijique
(1938). Paris. Vrin, 1975, 9! ediç11o: Bachclnrd, G. L' Engagement rationa/iste.
Paris. PUF. 1972.
62. Sobre isso, v ide: Cangu ilhcm, G. L e normal ele pathologique (1943). Paris, PUF.
1966; ÉIUdes d' histoire et de philosophie des scíences. Paris, Vrin, 1968; La
formution du concept de rejlexe uux XVI/e e XV/Jit siecles. Paris. PUF. 1955.
63. Sobre isso, vide: Cnnguithcm, G. "L'objct de J'histoire dcs sciences", in Études
d' histoire et de philosophie des sciences, p. 9-23.
· 64. Fichnnt, M., Ptchcux, M. Sur I' lristoi1·e des sciences. Paris, Maspero, 1969.
65. Althusser, L. ';Freud e L11can". in Pvsições-2.
66. Lacan, J. "Fonction et champ de 111 paro!c ct du langage cn psychanalyse" ( 1953),
in Écrits.
67. Lncan, J. Les quarre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Le Séminàire,
livre XI.
68. Lacan, J. L' Envers de la psychunalyse. Le Séminaire, livre XVII (I %9-1970).
Paris. Seuil, I991.
69. Lncan, J. L' Éthique de la psychanalyse. Le Séminaire, livre VIII (1959-1960).
Paris, Seuil, 1986.
190 PSICANÁLISE, CIÉNCIA E CULTURA
Paris, 1936; Lncan, J. "Le stade du miroir commc formateur du Je" (1949), in
Écrits; Lacan. J. "Remarque sur Je rapport de Daniel Lagache: psych:malyse et
structure de la personalité", idem.
59. Freud, S. "Psychologie des foules et analyse du moi", cap. VI. in Essais de
psychanalyse.
60. Idem, p. 163-6.
61. "Segundo testemunho da psicanálise, quase toda relação afetiva Intima de alguma
duração entre duas pessoas - relação conjugal, amigável, parenta! e filial -
contém um fundo de sentimentos negativos c hostis, que só escapa à percepção
em conseqüência do recalque. Isso é mais evidente cada vez que um associado
se altera com os colegas, que um subordinado resmunga contra o seu superior. A
mesma coisa se produz quando as pessoas se reúnem em unidades mais impor-
tantes. Cadn vez que duns familias se avaliam por um casamento, cada uma delas
se considera, à custa da outra. como a melhor c a mais distinta. De duas cidades
vizinhas. cadttotuna se torna a concorrente invejosa da outra; o minúsculo cantão
se lança sobre o outro... GruJ)Os étnicos estreitamente aparentlldos se repelem
reciprocamente..." Frcud, S., illcm, p. 162-3.
62. Gramsci, A. Maquiem:/, a política e o estado moderno. Rio de Janeiro, Civiliza-
ção Brasileira. 1968.
63. Hegel, G.\V.P. La phénomeno/ogie de I' esprit ( 1807), voi. li, p. 42. Paris, Aubier,
1941.
64. Sobre isso, vide: Freud, S. "Psychologie des foules et analyse du moi", caps. IV,
V, VII, VIII c X, in Essais de psychanalyse.
65. Idem.
66. Idem, caps. IV c VIII.
67. Idem, caps. VII c VIII.
68. Frcud, S. "Totem and Taboo", cap. IV, in S. E., vol. XII.
69. Sobre isso, vide: Frcud, S. "Psyd10logh: dcs foulcs c analyse du moi", cap. X, in
Essais de psydwnalyst~; "Lc moi c lc ça", cnp. 111, idem; Freud, S. "Moses and
Monotheism: Thrce Essays" ( 1938), in S.E.. vol. XXII L
70. Freud, S. "Totem e Talx>o", cap. IV, idem.
71. ..... Isso nos conduz liO mtscimcnto do ideal do ego. pois atrás dele se oculta a
primeira c a mais importante idctllil1ca~·ão do indivíduo: a identificação com o
pai da pré-história pessoal." Frcud, S." Le moi et Ie ça", in Essais de psychanalyse,
p. 243.
72. "Talvez seria mais prudente dizer identificação aos pais pois, antes do co-
nhecimcnlo certo da difcren~·a de sexos, da falta do pênis, ao pai e a mãe não se
concedem um valor diferente.", idem, p. 243.
73. Hobbes. T. Lévialhan. Traité de la maliére, de la forme et du pouvoir de la
républíque ecdesiastique et civile ( 165! ). I! pane. Pris. Sirey, 197 L
74. Rousseau, JJ. Diswurs sur I' inégalite parmi les hommes. Paris, Aubicr Mon-
taigne, 1973.
15. Freud. s. "Civilit<~tion and lts Discontcnts", in S.E.• vol. XXI.
76. Freud. S. "Thrcc Essays on thcory of Scxuality"(!905). idem, vol. VIl, p. 193.
77. Freud, S. "Pulsions et dcstins dcs pulsions", in Métapsychologie.
78. Freud, S. "Le prob!emc économiquc du masochisme" (1924), in Névrose, psy-
chose et pervesion. Paris, PUF, I 973.
NOTAS 201