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PENSAMENTO FREUDIANO

I. ENSAIOS DE TEORIA PSICANALÍTICA


Parte 1: melapsicologia, pulsão, linguagem, inconsciente

Jl. ENSAIOS DE TEORIA PSICANALÍTICA


Parte 2: narcisismo, sublimação, fantasma, ato e tempo

111. P~CANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

IV. 0 ATO PSICANALÍTICO

V. AS ESTRUTURAS CLÍNICAS
JOELBIRMAN

PENSAMENTO FREUDIANO 111

Psicanálise,
Ciência e Cultura

Jorge Zahar Editor


Rio de Janeiro
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ISBN 85-71 10-292-9 (JZE,RJ)

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos F.ditor(s de Li.\' TOS. RJ

Birman, Jocl. 1946


D52 1p Psicanálise. ciencia e cultura/Jod Dirman.
- Rio de Janeiro: Jor&<! Zahnr Ed., 1994.
(1\.'nsamento freudiano; 3)

ISBN 5-7110-292-9

I. Psicanãlise - Discursos. conferências eu:.


2. Ciência- Discursos, conferências etc. 3. Cultw-a
-Discursos. conferências etc. I. Título. 11. S~rie.

CDD- 150.195
94-0718 CDU- 159.964.2
Sumário

Introdução . . . . . . . . . . . . . . 7
A direção da pesquisa psicanalítica 13
Os impasses da cientificidade no discurso freudiano
e seus destinos na psicanálise . . . . . . . 28
Leituras sobre a cientific idude da psicanálise . . . . 54
A filosofia e o discurso freudiano: Hyppolite, leitor de Freud . 66
Desejo e promessa- encontro impossível . . . . . 78
Psicanálise e política: uma introdução metodológica 97
Sujeito freudiano e poder: Tragicidade e paradoxo 111
O sujeito na diferença e o poder impossível . . . . 118
A ética da psicanálise e a moral n:1s instituições psicanalíticas 145
Sujeito, valor e divida simbólica . 161
A morte entre a ética e a violência 175
Notas . . . . . . . .. . . . . . . 185
Para Daniela
Introdução
Fronteiras, limites e confins da psicanálise

Este.Jivro se constitui de onze ensaios psicanalíticos sobre djferentes temas:


ciência, filosofia, política, ética, religião e. economia. Sua finalidade ê o
estabelecimento de um diálogo interdisciplinar da psicanál.ise com algumas
das ciências humanas. Nossa pretensão, forjada paulatinamente nos últimos
anos, como s:e evidencia pelos momentos diferentes nos quais os ensaios
foram escritos, foi a de construir uma interlocução fecunda da psicanálise
com outras disciplinas, centmda em alguns temas que são também especiais
para estes saberes. Contudo, pela dispersão temporal dos ensaios agora
reunidos e também por uma questão de metodologia, não temos absoluta-
mente a intenção de esgotam1os os diferentes campos teóricos em pauta. Ao
contrário, nosso propósito é explicitar alguns tópicos, operando na fronteira
da psicanálise com outros saberes, de fomta a construir problemáticas que
proporcionem uma interlocução interdisciplinar.
O estabelecimento deste diúlogo se tornou possível por razões de
ordem teórica. Nos últimos anos, impôs-se pouco a pouco em nosso campo
intelectual, e em escala internacional, um paradigma interdisciplinar de •
pesquisa, de maneira que diferentes saberes procurem sair do seu isolamento
para dialogar com disdplinas próximas, que trabalham com temáticas co-
muns e. similares. A resultante deste processo de interlocução foi a cons-
tituição de novas problemáticas de pesquisa, que se ordenaram nas fronteiras
de diferentes disciplinas, e a retomada de temáticas antigas que se renovam
pela interlocu-ção entre diversas disciplinas. ·
. Neste con.texto, a vsicanálise foi permanentemente convidada a se
inserir nestes espaços dialógicos. No que se refere ao Brasil, isso era uma
novidade, já que até os anos 60 a psicanfllise era excluída desse diálogo. Além
disso,. em-fuj'lção de seu isolamento, a psicanálise se posicionava como
auto-suficiente, evitando se colocar num .campo que implicava confrontos

7
8 PS ICANÁI.I S I~. C! ÊNC IA E CUL TU I~ A

inevitáveis. Porém, a implantação de espaços interdisciplinares, como um


modelo plural de inwstiga~·ão de certas temáticas, acabou por s~: impor como
um estilo de pesquisa do qual a psicanálise não podia se excluir, com o risco
de comprometer o seu prôprio c:unpo collceitu:ll.

/1

Assim, no se inserir no di:'ilogo interdisdplínar, a psicanálise passa a respon-


der às mesmas queslões de outras Jisciplin:1s que participam de uma interlo-
cução desta onlem, ou seja, os limiles de sua incursão na exterioridade do
campo clássico de suas referências, a legitimidade de seus movimentos para
a periferia de seu campo e o rendimento eonceilual dessas incursões. Isso
acarreta pergunt:ts inc vit!iveis para os diferentes saberes que aceitam o
desafio interdisciplinar: seriam teoricamente rigorosas estas pesquisas, isto
é, pode r-se· ia falar sobre temas em princípio estranhos aos campos empíricos
de referên<:ia de uma dada disciplina'! Se e~ta indagação inicial é respondida
de muneiru ufirmativa, u questão que se impõe em seguida é sobre a possível
• extensão da interdísl:iplinaridadc e sobre os se u ~ I imites, d~ forma a se manter
o rigor conceitual das prol>lem(ttk:as construídas. Vale dtzer, até que ponto
é possível a extensão do <.'ampo dt! uma uada disciplina, sua elasticidade?
Podemos JepreenJer de t:tis indagu\·ões que o que se encontra em p:luta
são problemas de frontl!iras, que tr:u;am t<\Jitos limites possíveis quanto
perfilam opacidades entre as diferentes Jisciplinus. Portanto, o que seques-
tiona são os poros das fronteirus ex.istt.!ntes e mesmo os espaços onde
fronteiras nfio foram ainda tr:.•~·ud:•s, uma ~spécie de terra de ninguém ainda
não ocup:1da pelos s;~bercs cstabcb:itlos.
É import:utte dcs ta~·ar que est1 metáfora espacial sobre as fronteiras
não pr~isa ser pensatla segundo o m<Jdelo imperialista do aparelho de
Estudo, que pretende induir no seu território o que se insere em outros
domínios e mesmo o que seria umu tcn·a in c xplorada. Pelo contrário, não nos
parece possível que o ~·ampo de qu:1lquer disciplina possa. ter u~a elas-
ticidade absoluta. pois se ussim fosse us disciplinas correnam o n sco de
perder sua identidatle conceitual e seus fund amentos. Vale dizer, a extinção
do campo de qualquer disciplina paru a investigação de uma temática
somente é possível qu!mdo o movimento deextensão tem como contrapartida
• necess:'lria o movimcmo Je rc:romo c de r~flexão sobre os seus fundamentos,
que funcionam ~·o mo gar:tntia epistemolôg.ic;\ da incursão teórica e ~fe~~m
legitimidade para o movimenlú de extensão. Port:mto, qualquer d1sc1phna
apresent:1 um limite epistemológico incvít:'lvcl <1ue define o campo dos
possíveis pam suas incurs1">es, não podendo, pois, falar a~usívamente do que
queira e da maneira que: quci1~1 . Porém, 4u:mdo o movm1ento de salda se
JNT JWDUÇÃO 9

realiza, com a sua contrapartida lógica de retomo e de refleltão sobre os seus


fundamentos, a disciplina em pullla torna-se não apenas mais consistente,
como também incrcn)enlu a potencialidade de seus conceitos em função das
novas ligações estabelecidas pela problemática outra que pôde construir.
Nesta perspectiva, o problema dos limites se transforma na questão dos
confins, para nos vuler da bela imago:m de Pontalis quando se refere à
remodelaçiio clín ic-a do campo psi<:analítico. 1A metáfora dos confins remete
aos espaços inexplorados até ent:io por uma d:1da disciplina, mas onde não
existe ainda uma b~u-reira estabelecida, interditada, impossível de ser ultra-
passada. Por isso mesmo, a incursão é potencialmente possível e l~gítima.
Mais do que isso, a explora\·ão dos confins é absolutamente cructal num
momento da história das tlisciplinas, pois é justamente através de tal explo-
ração que as di sciplinas podem apresemur suas possibilidades conceituais e
se tomar teoricamente mais consistentes. Além disso, esta é a condição de
possibilidade das disciplinas enunciarem algo de novo e de inédito. Vale
dizer, a ex.plora,·uo dos L:onfins se impõe no campo dos desdobramentos
necessários para o desenvolvimento teórico e empírico dos saberes exis-
tentes.
. A interdisciplinarid:1de não implica aqui a identidade tleobjeto te6rico. , ·
Assim, se diferentes saberl!s tmbal halll sobre um mesmo tema, não significa
que tenh:un o mesmo objeto teóri<.·o. Entret•mto, foi esta leitura da inlerdls·
ciplinaridade que se propagou nos anos cinqüenta e sessenta, o que não se
mostrou historicamente fecundo, pois impl ic~u subordinações hierárquicas
entre as disciplinas e impasses epislemológicos inevitáveis. O que se impõe
agora é outra interpretação da pesquisa interdisciplinar, através da qual os
diferentes saberes realizem recorres no campo de um d:1doproblema, recortes
que se estruturamm m1s linhas de fon;:• ·dl! seus objetos teóricos e de seus
con<.·eitos fundamentais. Pam marcar esta ruplllra interpretativa, alguns
autores preferem se referir, nesta modalid:u.le de pesquisa, à idéia de lrans-
disciplinaridade em \'ez daquela de illterdisciplinaridnde.2 Portanto, é o
problema escolhido pelos diferentes saberes que será o canal par.1 o diálogo
entre as disciplinas, enquunto essas impõem a construção de problemáticas
pela mediaÇão de seus conceitos específicos. Com isso, pode-se realizar a
produ~·ão de conhecim~nto, a constituição de positividades inéditas e a
elabor<M.·ão de novos <:onceitos.

/I/
Foi nessa d'Ír\.'\·ão teórica <Jue estes ensaios se construlram, na medida em que
já nos orient{tvamos por unu• outm com:er\·:io d ;1 pes•.JUÍsa interdisc:iplinar.
Assim, forJill as exigências intcmas da psi~·aniilise e as questões que foram
lO PSICA NÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

se impondo para a construção de outras problemáticas que estimularam a


produção destes emaios ao longo dos anos. Com isso foi possível pensar em
temáticas importantes, abordadas por outros campos do saber, da perspectiva
dl:l psicanálise. Dessa maneira se realizou um outro recorte destas temáticas,
que se remodelam inesperadamente quando recebem a incidência da leitura
psicanalílica.
Abordamos, portanto, algumas temflticas trabalhadas por outras disci-
plinas, as quais se espc<.:iticaro no recorte psicanalítico que propomos,
assumindo uma certa singularidade. Podemos enumerar as seguintes ques-
tões destacadas nos ensaios: o poder, a crença, o valor, a ética, a violência e
a cientificidade. A leitura psicanalítica retoma esses temas a partir do lugar
da função sujeito em psicanálise, nos seus pressupostos teórico e metodo-
lógico.
A leitura da problemútica do poder pela psicanálise implica o destaque
das dimensões de força e de representaçlio, que se fundamentam numa
le.ilura pulsional do poder. Dessa forma, este recorte remete para a oposição
.entre guerra e política, entre força e ret6rica, de maneira a buscar com essas
equivalências um diálogo possível da psicanálise com a filosofia política.
A crença coloca que:;tões níticas para a leitura psicanalítica do sujeito,
na medida em que se contrapõe à ordem do desejo. Desta maneira, o diálogo
enlre psicanálise e religião tem como fi o condutor a oposição entre os
registros do desejo e da crença. Com isso, é possível indicar como se
constituiu historicamente a oposição entre a medicina e a religião, fundada
na diferença entre a cum e a salvaçüo, para argumentar em seguida de que
fonna o campo psicanalítico, fundamentado no sujeito de sejante, indica uma
ruptura radical com as ordens médica e religiosa.
A reflexão sobre o valor, ao nos remeter para a regulação das trocas
econômicas e para o que sustenta a equivalência entre as mercadorias,
pertenceria ao registro da economia política. Entretanto, o intercâmbio de
mercadorias se reali:w entre sujeitos, onde o valor se funda no corpo e se
exlrai do corpo do sujeito. Com isso, o sujeito se inscreve no circuito da
circulação social e simbólica dos valores, através dos gozos e das perdas de
seu corpo. Neste contexto, apresentam-se modalidades diferentes de cor-
relação de valores no sujeito, o que regula suas relações com os oulros
sujeitos e com as coisas. Po1tnnto, os circuitos do desejo, do gozo e da perda
estão pennanentemente em pauta nos processos de troca, de maneira que é
sobre o corpo do sujeito que o valor incide e do qual é retirado. Enfim, as
modalidades de circulação do valor no sujeito nos fazem defrontar com uma
reflexão sobre a incidência do valor de uso e do valor de troca no sujeito, de
fonn~ a representá-los numa tópica psíquica du subjetividade, com ~s suas
con~e qOências inevitáveis nos registros ético e político.
INTRODUÇÃO 11

A ética é uma dimensão essencial do campo psicanalítico, mas que


perpassa ao mesmo tempo o conjunto das pr.iticas sociais. A ética se impõe
justamente porque existem sujei!Os diferentes em pauta no campo social, com
interesses diversos e conflitantes, que exigem uma modalidade de regulação
de suas diferenças. A retlexão sobre os fundamentos desejante e pulsional
da ética é inevitável no campo psicanalítico, pois é nas bases da ética e de
seus impasses para o suje ito que se funda a experiência psicanalítica. Portan-
to, a delimitação da problemática da ética na psicanálise, como diferenciada
do campo da moral e remetendo pum u âesortlem do campo pulsional, é um
caminho fecundo pamque se estabeleça uma interlocução enlre a psicanálise,
as ciências humanas e as prí1ticns sociais.
A violência, nos registros do social e do político, é uma das temáticas
cruciais onde a leitura Ja ética pela psicanálise se impõe como fundamental
na atualidade. No contexto brasileiro. o diálogo da psicanálise com as
ciências humanas é fundamental, se considemm1os a condição de descalabro
ético em que vivemos já há muito tempo. As exigências de tal diãlogo são
cada vez mais propícias para que se possa repensar nas modalidades perver-
sas com que se reveste a violência no Brasil. Por este viés, se recoloca
também em cena o diálogo entre psicanálise e política, pois a leitura pulsional
do funcionamento do poder e o esvuzirunento da retórica face à força nos indicam
um caminho possível pam pensarmos na relação da subjetividade com o poder.
A cientificidade da psicanálise é uma problemática que marcou não
apenas a constituição da psicanillise como um campo do saber, mas também
norteou suas relações sempre tensas, com a filosofia e as demais ciências.
Afinal de contas, qual é o estatuto epistemológico do saber psicanalítico?
Nossa finalidade nos ensaios que procuram te matizar esta problemática é não
apenas retomar os argumentos e os contra-argumenlos que constituíram este
campo teórico, marcado pela polêmica, assim como seus desdobramentos e
superações na atualidade. Procuramos seguir, ao mesmo tempo, uma lógica
epistemológica e histórica na exposi~·ão, pam delinear a constituição desta
problemática e sua superação. Na atualidade, a questão da cientificidade da
psiçanálise deixou de ser o índice de um impasse epistemológico, como se
apresentou durante décadas, pois os fundamentos do debate teórico sobre a
c~ntificidade se tnmsformaram .
Assim, indicamos de maneira esquemática como, através da explora-
ção das fronteiras e dos confins da psicanálise, é possível estabelecer um
diálogo desla com as ciêncins hurnan:1s e a ti losofia, e retomar reflexivamente
para os fundamentos da psicanfílise. Por isso mesmo é que iniciamos este
livro com um ensaio sobre a direção da pesquisa em psicanálise, indicando
as possibilidades e os impasses da pesqu isa psicanalilica, maneira de delinear
e de lraçnr os fundamentos teóricos deste campo teórico de investigação.
A direção da pesquisa psicanalítica 1

/. Em busca de un~a direção

Quais as questões que nos são colocadas pelo campo da pesquisa em


psicanálise? É possível extrair desse campo multifacetado uma problemáti·
ca, isto é, uma direçüo teórica segura que possa nos oferecer uma reflexão
rigorosa da pesquisa psicanalítica?
Sem dúvida, diversas questões se apresentrun imediatamente a nós para
serem tematizadas, indicando a multiplicidade deste campo e a sua complexi-
dade. Além disso, esse campo se caracteriza por sua diferenciação interna,
pois essas questões se configuram como heterogêneas, considerando tanto
suas dimensões quanto suas abrangências teóricas.
Em função disso, faremos inicialmente um inventário de temas que nos
parecem pertinentes, sem a pretensão de sermos exaustivos, para indicar a
complexidade do campo de pesquisa em pauta. Entretanto, não pretendemos
desenvolver neste ensaio a totalidade desses temas, mas somente de tinir uma
direção rigorosa para a pesquisa em psicanálise, coerente com os pressupos-
tos freudianos desse saber.

li. lnventârio inicial

Consideremos um gntpo inicial de indagr~ções. Existe a possibilidade de se


empreender a teorização dos conceitos psicanalíticos, sem que se coloque
em cena, em contrapartida, as referências fundamentais da experiência •
psicanaliticd! Ou, dito de outra maneira, é possível pensar na existência da
teoria psicanalítica na exteriorid:1de da clínica, fundada na transferência?
Qual a consistência epistemológica da teoria em psicanálise sem o correlato
dessa experiência? Essas diversas perguntas se articulam aqui como um
bloco teórico e indicam o caminho crucial da indagação neste ensaio, pois a
14 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

problemática que se enuncia é se existe pesquisa psicanalítica sem que se


considere, de fonna direta ou indireta, as exigências fundamentais da expe-
riência psicanalítica.
Deste bloco inicial de questionamentos deriva um segundo conjunto
de indagações, intimamente relacionado ao anterior. Assim, a pergunta
básica é se é possível pensar na existência de uma psicanálise dita "pura", a
que se contraporia uma modalidade "aplicada" de psicanálise. Os termos
"puro" e "aplicado" podem se deslocar e se inscrever em diferentes contextos
de referência, desde que consideremos a teoria e a experiência clínica como
pólos destacados para nossa reflexão.
Se considerannos a teoria como o pólo representativo da "pureza" em
psicanálise, então a clínica seria da ordem da "impureza", isto é, uma das
aplicações possíveis do "ouro puro" da teoria psicanalítica. Com isso, a
experiência analítica seria uma modalidade menor de metal face ao brilho
grandioso da teoria, de forma que a clínica seria apenas o "cobre" aplicado
da psicanálise, para continuannos a nos valer de metáforas freudianas reti-
radas da química e da metalurgia.2 Poder-se-ia até mesmo dizer que, mesmo
sendo uma das aplicações da "pura" teoria, a clínica seria indubitavelmente
a sua aplicação mais importante. De acordo, este desdobramento teórico é
indiscutível. Porém, isso não tnmsformaria absolutamente o lugar subsidiário
e hierarquicamente infe rior da clínica frente à teoria, pois esta representaria o
"ouro puro", enquanto aquela seria o "cobre", a "impureza" da liga misturada.
Desloquemos radicalmente o valor relativo desses pólos em contraste.
Assim, poderíamos dizer que a clínica representaria a psicanálise em estado
''puro" e que a teoria seria necessariamente subsidiária da clínica, seu lugar
epistemológico sendo definido como o da reflexão sobre as vicissitudes da
experiência analítica. Entretanto, a teoria não seria hierarquicamente inferior
à clínica analítica, nem tampouco a aplicação da experiência psicanalítica,
mas seu correlato e contraponto, na medida em que encontraria na clínica o
• seu lugar possível na perspectiva epis1emolôgica. Contudo, a extensão e
inserção da teoria psicanalítica em outros campos empíricos, sem que se
produzam as mediações essenciais, corresponderia a uma aplicação da teoria
psicanalítica.
Evidentemente, a questão oUlra que se impõe, a prutir destes blocos
anteriores de indagações, diz respeito ao que se define como clínica e
experiência psicanalíticas. O discurso freudiano tinha uma representação
relativamente clara sobre a clínica, quando estabelecia a oposição entre a
• psicanálise "pura" e a psicanálise "impura", que seria modificada para se
inserir na assistência médico-social mais abrangente.3 Nesta oposição entre
o "ouro" e o "cobre", Freud sublinhava a existência da pureza psicanalitica
que se contrapunha à psicoterapia como o seu resíduo de impureza. Não
A DIREÇÃO DA PESQUISA PSICANALÍTICA IS

obstante, essa última centrada na transferência teria eficácia clínica. Desta


maneira, se coloca a questão crucial sobre o que se define como a experiência
psicanalítica, seus fundamentos e suas operações metodológicas, assim como
se essa experiência admite a diversidade em sua materialização clínica.
Enunciamos propositahneme diversas oposições e dua1ismos que
perpassam o campo psicanalítico em sua estrutura: teoria/experiência psica-
nalítica, psicanálise "pura"/psicanálise "aplicada", experiência psicanalíti-
ca/clínicas psicanalíticas. Estas oposições delineiam um espaço teórico
produtivo visando um pensamento crítico sobre alguns dos problemas colo-
cados pela teoria e pela pesquisa psicanalíticas.
Para o encaminhamento desta leitura crítica vamos considerar a psica-
nálise, por uma exigência de rigor, como representada pelo conjunto de
enunciados do discurso freudiano, pam apreender como esse discurso deli-
neava a problemática da pesquisa psicanalítica.

111. Em que consiste a pesquisa psicanalítica?


Vamos centr-dr nossa leitura no comentário de fragmentos importantes do
discurso freudiano, inseridos num contexto histórico de grande produtivi-
dade teórica e de relativo isolamento de Freud dos seus discipulos. em função
da eclosão da Primeira Orande Ouem1. Referimos-nos aos anos 1914-19 17,
período em que Freud realizou a elaboração teórica de "Para introduzir o
narcisismo" ( 1914)4 e dos ensaios metapsicológicos (1915-1917). Quanto a
esses últimos vamos nos restringir ao texto "As pulsões e seus destinos"
( 1915), ensaio inaugural da "Metapsicologia".5
Na primeira parte de "Para introduzir o narcisismo", Freud nos coloca
duas grandes questões teóricas: l. Qual seria a relação entre o narcisismo e
o auto-erotismo, considerando-se que esse seria o "estado da libido" na
origem da história do sujeito'~ 2. Admitindo-se a existência de um inves-
timento primário da libido no ego (libido do ego), por que ainda seria
necessário admitir a existência de pulsões do ego que .não fossem libidinais?
Se, como propunha então 1ung, Freud admitisse a existência de apen·as uma
energia psíquica indiscriminada, de someme uma modalidade de energia, não
escaparia de todas as dificuldades colocadas pela distinção entre pulsões do
ego e libido do ego, e entre libido do ego e libido do objeto?6
À primeira indagação Freud responde, de forma inequívoca. que "é
necessário admitir que não existe desde o começo, no indivíduo, uma unidade
comparável ao ego; o ego deve sofrer um desenvolvimento. Mas as pulsões
auto-eróticas existem desde a origem; alguma coisa, uma nova ação psíqui-
ca, deve vir pois se acrescentar ao auto-erotismo para dar forma ao narci-
sismo".1
I ~··
' '
16 PSICANÁLISE. CI ~NCIA E CULTURA

Portanto, mediante este fragmento, o discurso freudiano repudia qual·


quer concepção biológica sobre o eu e a~mite q~1e e~sa í~stâ~~ía psíquica
deve corresponder a uma aquisição posterwr na h1stóna do md1v1duo, a uma
construção complexa que se constituiria lógic~ e histori:a~ente após .o
auto-erotismo .. Neste coute.xto, o discurso freudJano .constitui a sua teona
sobre o eu, sublinhando Freud a exigência de tematização desse conceito pela
primeira vez na sua obrn, apesar de já 1er circunscrít~ a instância do ~u co~o
pólo defensivo no conflito psíc1.1ico desde "O proJeto de uma ps1colog1a
cientifica'.s e dos ensaios sobre as psiconeuroses de defesa.9
Assim, o eu se consliluiria a parlir do outro, como enuncia Freud no
final da segunda parte do ensaio sobre o narcisismo. 10 Por isso mesmo, o ~u
seria um ego ideal, uma projeção e an tecipaçã~ do ego da~ fi~uras ~a~nta1~i
com a finalidade de conservação e de re produ\·uo de seu propno narctstsmo.
Além disso, o ego narcísi~·o, construído por um conjunto de identificaç~s a
partir do outro, seria antes de mais nada um ego corporal. Desta ma?e1ra, a
concepção do corpo no discurso freudiano surge como um dos destmos do
narcisismo, como se fom1Uiou em 1923 no ensaio "O ego e o id''. 12
É a maneira como Freud enc:uninhn a segunda de suas questões, centro
da problemática deste ensaio, que deve reter aqui a nossa atenção. Para isso,
vamos citar o seu argumenro em toda sua extensftp:
Intimado a responder de rnandra decisiva à segunda <tucsrão. qualqu~r
psicunnlisln sentirá um mui-estar cvi<knlc. Encontra-_se tomado pel? seniJ-
mcnto que é o de ul>andonar a ouscrvn\i\u por estéreiS debates teóncos; e,
entrelan 10, nl\o s~: pouc fu gi r u um:1 tt'ntati va de cluc idaç11o. Seguramente,
representações como libido do e-go, energia das pulsõc~ do ego etc .•.nllo sao
nem particularmen te clams de :1prccn<kr, nem sufic1entc:ncnte n_cas em
conteúdo: uma tcori;l espcculativa das rd.1çõcs em causa se propona antes
de tudo a se fun dar sobre um conce ito ddi nido {'Om rigor. Entretanto, eis
aí preds:1mente .11 meu ve r. u diferença entre urn:.' t.coria ~specul :ui~a e ~ma
ciência construídu sobre a intl'rpt-c tu~·i\o d;1 cmpma. A uh•ma não InVeJará
à espc{'Uht\'iio o privilégio d~: um fund;am~nto p u:<:ldo ao cordel, logi:a-
mentc irrcprovávcl, mas se l.'onlcnlar5 de bom grado co~ concepçocs
fundamentais nebulosas, evanescentes, apcnns reprcscnlá\'CIS, que ela es-
pera poder apreender mais claramcntc no curso de seu dcscnvolyimento, e
que ela está prestes também a trocnr eventualmente por outras. E que estas
• idéias não silo o fumlnmcnto da ci,:ncia, sobre a qunl tudo repousa: este
fundamcnlo, ao contrlirio, é somente a observação. Eslas idéias nllo cons-
tituem as fundações mas o cimo do cdit1cio, e elas podem sem dano ser
subslituidas e retiradas. Nós fazemos ainda, em nossos dias. a mesma
experi~ncio pora a fisic••: ~u:ts intui~·ões fundamentais s~brc ? ~atéria. os
cenlros de força, a mraçào etc. sl\o apenas menos d•scuhve•s que as
concepções correspondentes em psicanálise. . .
Os conceitos de libido do ego c de libido do objeto t1ram o seu valor
de sua origem: uma elabura<;àO a partir dos caracteres íntimos dos processos
A DIREÇÃO DA PESQUISA PSICANALITJCA 17

neuróticos e psicóticos. A distinçllo, nn libido, de uma parte que é própria


ao ego e de umn outra que se liga aos objetos, é a cor.seqOência inevitável
de wna primeira hipótese que separava as pulsões sexuais e ns pulsões do
ego. Esta separação me foi imposta pela análise das puras neuroses de
transfertncia (histeria e neurose obsessiva). E tudo o que cu sei é que todas
as tentativas para elucidar estes fenômenos por outros meios fraca.ssaram
radicalmente.
Na ausência completa <.le uma teoria d:IS pulsões, qualquer que seja a
sua orientaçiio, nos é permitido, ou an tes imposlo, fazer primeiro a prova
de não importa qual hipótese, sustemando-a com conseqüência att que ela
se subrraia ou se verifique.U

Este texto é bastante esclarecedor sobre os critérios teóricos que


orientam o discurso freudiano em sua pesquisa. Não deixa de ser espantosa
a desenvoltum com que Freud define a dire\'Üo da investigação psicanalítica.
Duas formulnções fundamentais são realizndas neste fragmento freudiano:
I. A oposição entre a "teoria especulativu" e a "ciência construída sobre a
interpretação da empiria"; 2. Em seguida, Freud remete a representação da
"empiria" em psicanálise ao funcionamento psíquico das neuroses e das
psicoses, particularmente ao campo das neuroses de transferência, isto é, ao
campo da analisibUidade.
Quais os fundamentos e as implka~·ões teóricas dessas formulações
enunciadas pelo discurso freudiano'? F:.ll'emos um breve comentário sobre a
leitura freudiana da pesquisa psi<:unalitica, baseando-nos para isso na inter-
pretação dessas formulações.

IV. Psicanálise, ciência e filosofia

No que conceme ao primeiro tópico, o que Freud esrabelece é possivelmente


a oposi\·ão entre a ti losofia e a ciência, isto é, as representações que o discurso
freudiano constrói sobre esses diferentes campos do saber.
Assim, o discurso frl!udiano enuneia que a fílosofia se define como um
tmbnlho teórico centrado na "especul:t\·ão", que, mesmo quando renlizado
de forma rigorosa, é desvinculado das exigências de el:iboraçi'io dos da~os
empfricos. Em contraposição, a ciência estaria estreitamente vinculada à
elllJlirj.a, tendo porranto um l;ampo de referência bem circunscrito e restrito.
Seria por esta referência ao universo da empiria que o discurso freudiano
pôde enunciar que os conceitos psicanalíticos poderiam ser enunciados e
modificados conforme as vicissitudes das exigências emplricas. Enfim, o
discurso freudiano pode afirmar que o fundamento da ciência é a "observa-
ção" e não a constmção dos conceitos para a elaboraçlío da "teoria es-
peculativa".
18 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

É preciso sublinhar aqui, antes de mais nada, que o discu!I"So freudiano


se inscreve num contexto bem preciso da história das ciênci:as, no qual a .
emergência teórica do Círculo de Viena pretendeu estabelecer proposições
rigorosas para de unir o discurso da ciência em contraposição ao discurso da
metafísica. Para isso, seria necessário considerar a oposição radical emre as
proposições com sentido (discurso científico) e as proposições sem sentido
(discurso metafísico). O critério de sentido se basearia na possibilidade de
verificação dos enunciados das proposições, de maneira que a exigência de
14
verificação remetesse imediatamente aos fatos de ordem experimental.
Além disso, é preciso destacar a retomada, pelos cientistas, da filosofia
de Kant, na segunda metade do século XIX na Alemanha, em contraposição
à filosofia de Hegel. Enquanto o discurso kantiano permitiria fundamentar o
discurso científico pelos limites impostos à metafísica, o discurso totalizante
15
do hegelianismo seria o paradigma da realização da metaflsic:a . Portanto,
a filosofia kantiana permitiria fundar a oposição teórica entre as proposições
com e sem sentido, enquanto que o discurso hegeliano silenciaria esta
oposição fundamental ao se constituir como um sistema panlogista e como
16
uma modalidade de We/tanschauung.
É o reconhecimento deste contexto teórico e histórico que nos permi-
tirá circunscrever a dimensão de alguns dos enunciados freudianos. Assim,
o discurso freudiano articulou o trab.alho psíquico, pressuposto no discurso
filosófico, ao funcionamento psíquico da paranóia e da esquizofrenia. Trata-
se de uma leitura metapsicológica, evidentemente, mas que pressupõe ine-
quivocamente o solo histórico e epistemológico da filosofia alemã da virada
do século. Desta maneira, o di se urso filosófico seria marcado estruturalmente
pelo "excesso de interpretação" face ao que seria oferecido pelo real como
fenômeno (paranóia). Ou então o discurso filosófico evidenciaria um dis-
tanciamento da realidade comum e a constmção de uma outra ordem do real
(esquizofrenia).
Assim, em Totem e Tabu, o discurso freudiano enuncia que, se a
. histeria é quase uma obra de arte e a neurose obsessiva é quase um sistema
17
religioso, a paranóia é quase um sistema filosófico. Evidentemente, nestás
proposições o quase indica a identidade metapsicológica entre os diferentes
discursos, mas também insinua suas diferenças intransponíveis, pois é claro
que a paranóia não é uma filosofia, nem a histeria uma obra de arte. Pela
mediação dessa diferença anuncia-se a presença da operação psíquica da
sublimação, que é a condição de possibilidade para a passagem entre .a
primeira e a segunda parte dessas proposições.
Da mesma forma, no ensaio metapsicológico sobre "O inconsciente";
a mesma proximidade é tecida entre a psicose e a filosofia. Com efeito, o
trJbalho psíquico da esquizofrenia é superposto agoro~ ao da 'filosofia, pois ·
A DIREÇÃO DA PESQUISA PSICANALÍTICA 19

em ambos se indica a não discriminação me.tafsicológica entre a repre7


sentação de palavra e a representação de coisa. 1 Portanto, na leitura meta-
psicológica, os filósofos e os esquizofrênicos confundem as palavras com as
coi~as, manejando o universo lingüístico como se fosse o uni verso das coisas.

V. Metapsicologia e o arbítrio na interpretação


A oposição entre psicanálise e filosofia no discurso freudiano impõe uma
indagação sobre o estatuto da metapsicologia nesse discurso, isto é, sobre a
identidade e a diferença da psicanálise em relação à filosofia e à psicologia.
Assim, a metapsicologia não se identifica absolutamente com a psicolo-
gia, na medida em que esta pretende realizar o e!ltudo da consciência e a
psicanálise se funda na pesquisa do inconsciente. Centrada no inconsciente,
a psicanálise pretende ultrapassar o registro....d.a consciência e se aproximar
do funcionamento das pu lsões. V aIe dizer, a psicanálise não é uma psicologia
das faculdades e do eu, baseada na introspecção, mas pretende ser uma
analitica do sujeito, centrada na palavra e na escuta, baseando-se para isso
na interlocução psicanalítica. Pretende-se, com isso, a transformação da
economia libid inal e do funcionamento pulsional do sujeito. Enfim, no
discurso freudiano, a psicanálise é inseparável de uma prática de transforma-
ção do sujeito, de um aro que tenha uma incidência radical em sua economia
pulsional.
Porém. a genealogia da palavra e do conceito "metap~logia" nos
remete para a palavra "metafísica", de onde o discurSo freud1ano retirou a
palavra e pôde construir o conceito. Assim, se com Freud a psicanálise
pretendia construir uma outra modalidade de psicologia, fundada no incons-
ciente e nas pulsões, o discurso freudiano não se construiu absolutamente
para isso se baseando nos cânones de cientificidade estabelecidos pelas
ciências naturais e pela psicologia introspectiva. O que o discurso freudiano
realizava efe~ivamente eram operações de interpretação, baseadas na escuta
dos analisantes, de onde construía as suas hipóteses metapsicológicas sobre
o psiquismo.
Mas, o que era o saber da interpretação, o seu estatuto epistemológico,
no início do-século? Mui tas coisas, evidentemente. Porém, seguramente nada
era mais distante dos cãnones estabelecidos de cientificidade do que um saber
da interpretação. Sua superposição aos campos da arte e da filosofia eram
freqüentes, de maneira que não se reconhecia rigor científico para os saberes
fundados na· interpretação.
Assim,· a psicanálise se constituiu como um saber da interpretação.
Freud, ·para isso, baseou-se nos discursos dos historiadores e dos gramáticos
alemães, 19 que representavam n.o século XIX a história, a Lrngua e a cultura
20 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

segundo um modelo evolucionista.20 Portanto, apesar da pretensão de Freud,


que perdurou em boa parte tle sua obra, de adequar o discurso ps icanalltico
às exigências ins tituídas de c ientificidade, suas diversas tentatjvas foram
eminentemente fracassadas. A psicanálise não se construiu absolutamente
co.rno um discurso científico-natural, pois ns suas operações metodológicas
estavam próximas das que eram utilizadas no campo dos saberes da história
e da linguagem.
É bastante revelador da transformação de ideais epistemológicos no
percurso do discurso freudiano sublinhnr agora o limite técnico da operação
de rememoração na experiência analítka, indicado já por Freud em 1914,2 1
e o seu reconhecimento cabal dos processos de repetição. Destacada inicial-
mente no registro clínico, a compulstio de repetiçcio pnssa a ser delineada em .
seguida como a problemática fundamental da experiência psicanalíüca,
estando na origem da constitui~ão do concei to de pulsão de morte. 21 O que
estava em causa nessa ruptum teórica do discurso freudiano, entre outras
coisas, era o limite imposto à exigência de verijicaçiio das hipóteses meta-
psicológicas, pela rememom~·ão do analisante na experiência psicanalítica.
Com efeito. a exigência de cientificidade das hipóteses metapsicoló-
gicas no discurso freudiano se e\·idenciava na demanda de verificação, que
se realizaria mediante o processo de rememora~ão do analisante.23 Para além
de qualquer outro efeito subjetivunte no analisante, implicado na experiência
24
da rememoração, a e;r.igência dessa última na economia teórica do discúrso
freudiano se fundava na regulação epistemológica do saber psicanalítico, na
medida em que era através <.la rememoração dos analisantes que a figura do
analista poderia validar/invalidar as suas proposições interpretativas e me-
tapsicológicas.
Sabemos com que cautela teórica Freud introduziu posterjormente no
discurso psicanalítico o conceito de construçito,25 inscrevendo então de
forma sistemática no método analítico um instrumento de trabdho que já se
encontrava em aç::!o desde "O Homem dos Lobos",26 pe·lo menos. A cautela
excessiva de Freud se deviu justnmente ao limite ostensivo que este ins-
trumentoclínico colocava pura os processos de rememomçãoe de verificação
na cena psicanalítica.
Desta maneira, se a rememon1ção da figum do analisante pemlite a
verificação pontu~1l da interpretação do anal ista, com a construção o psica-
nalista se defronta rad icalmente com o que e~~.iste de arbitrariedade na função
do intérprete. Esse arbitnírio da interpretação coloca um limite fundamental
na representação empirista do saber psicanalítico, deslocando e sse saber do
campo do detenni nismo para o campo do indeterminismo, no qual o conceito
de pulsão como 11exigência de trabalho"27 para o psiquismo se desdobra na
compulsão de repetição e no conceito de pulsão de morte.211
A DIREÇÃO DA I'ESQUISAPSICANALÍTICA 21

VI. Interpretaçcío,filosofia e bruxaria


'
Nesta perspectiva. um saber da· interpretação seria uma modalidade de
discurso teórico bem próximo da "especulação" da filosofia. Portanto, seria
uma forma de saber que poderia se transfonnnr, a qualquer momento, num
sistema delironte de interpretaçào. Esse risco mortal se colocava como uma
ameaça latente no interior do discurso freudiano, orientando sempre as
estratégias constitutivas desse discurso desde o final do século XIX.
Com efeito, sabemos que, desde a elaboração do "Projeto de uma
psicologia científica"- como nos revela a sua correspondência com Fliess
- , Freud questionava a lógica das hipóteses metapsicológicas sobre o
psiquismo, preocupado que estava com o rigor científi.;o de suas referências
teóricas e de seus meios de verificação empírica. 29 A anatomia fantasmática
do· psiquismo, que orientava sua construção teórica, obcecava Freud com
dúvidas de tal ordem, exatamente porque não sabia por onde passava a
ruptura entre a teoria e o delírio. Por isso mesmo, Freud era obrigado a
repassar sempre o que já escrevem, reler minuciosamente seus manuscritos,
buscando n convicção e a certeza de que estaria no registro da ciência, e não
no registro do delírio. 30
A não publicação desta obra magistral por Freud, que é um motivo de
perplexidade para os psicanalistas desde os anos cinqüenta, indica que, pelo
menos para ele, a obra estava mais próxima de um sistema delirante do que
de um discurso científico. Evidentemente, a tentativa de interdição por Freud
de qualquer publicidade para esta obra e de sua correspondência com Fliess.
quando Mnrie Bonaparte se apossou posteriormente desses escritos, deve-se
ao fato de que exisliam nesses últimos indícios de sua e;r.periência transfe-
rencial com Fliess. Porém, o temor revelado pelo estilo delirante desses
textos inscreve-se também no campo tmnsferencial da relação de colabora-
ção científica entre Freud e Fliess.
A não adequação d<l psicun{llise, como saber da interpretação, aos
cânones de cientiticidade vigentes no tina I do século XIX. leva Freud a supor
a pro;r.imidade da psicanálise com a tilosofia. Por isso mesmo, ao cunhar o
termo metapsicologia. disse ao seu amigo Fliess que, com a invenção da
psicanálise, estava realiznndo o desejo de sua juventude de ser um fil ósofo. 31
Desta maneira, podia enunciar que nada lhe era mais estranho e distante de
seJJs sonhos juvenis do que se trunsfonilar num terapeuta. 32
Estranha afirmação? Pretensão p~1111do;r.al, no contexto de outros enun·
ciados do discurso freudi ano? No campo discursivo de sua constituição e no
momento histórico de sua emergência, a psicanúlise como saber da interpre-
tação não podia mesmo ser reconhecida como um discurso científico. sendo
pois deslocada a sua representação teórica para o campo da filosofia, em
22 PSICANÁLISE, CJENCIA E CULTURA

função de sua dimensão "especulativa" e dos impasses colocados na verifi-


cação de suas hipóteses metapsicológicas. Por isso mesmo, sempre que Freud
·realizava um grande passo, forjando um novo conceito f1,mdamenlal, como
o de pulsão de morte em "Além do princípio do prazer", ele sublinhava que
estava no campo da "especulação", para deixar livres QS seus discípulos da
obrigação de aco mpanhá· lo em sua ruptura com a empiricidade e as impos-
sibilidades de verificação experimental. 33 .
Porém, nesta mesma direção de le itura é preciso destacar agora a
existência de outra metáfora forjada pelo discurso freudiano . Trata-se da
superposição instigante entre as representações da metapsicologia e da
bruxaria. Com efeito , em "Análise com fim e análise sem fun" 34 a metapsi-
cologia é identificada com a bruxaria, justamente quando Freud alude à
" bruxa metapsicologia", recorrendo então ao Fausto de Goethe. Da mesma
forma como·em "Além do princípio do prazer", a evocação da metapsicolo-
gia cemo bruxaria se realiza num momento do texto onde se faz necessária
a invenção de uma no va interpreta~·ão . teórica e a ruptura com uma leitura
estabelec ida, isto é, quando Freud empreende uma "especulação".
Não podendo inserir a psicanáHse no registro da ciência então es-
tabelecido, e criticando ao mesmo tempo a psicologia consciencialista em
sua pretensão de fundame ntar um saber da interpretação, Freud é obrigado a
procurar referenciais teóricos no território exterior ao da ciência. Por isso
mesmo o discurso freud iano encontra-se com os registros teóricos da bruxa-
ria e da alquimia. Estabelece-se·então , pelo mesmo movimento identificante,
a cumplicidade entre psicanálise e filosofia, pela superposição entre as
representações da interpretação e da "especulação". Nada mais distante,
portanto, do que a inscrição da psicanálise no campo da ciência e , em
contrapartida, a facilidade para sua aproximação possível com o território da
mística.
Foi nesta perspectiva que o discurso freudiano pôde enunciar, em
"Uma neurose demoniaca do século XVII", a aproximação da psicanálise
com a demono logia, assim como a oposição entre a psicanálise e o discurso
da ciência. Este contraste espetacular se ordena no discurso freudiano pela
formulação prec isa de que, se a " teoria demonológica" da loucura na Idade
Média foi substituída pela " teoria somática" da "ciência exata" na moderni-
dade, a psicanálise representaria historicamente a restauração da verdade da
demonologia face aos cânones positivistas da medicina moderna, assim
co~o- ~seu resgate le~itimo face às pretensões positivistas da psiquiatria no
terntono da loucura? .
Portanto, ex ilado do campo da ciência pelas exigências positivistas de
seus cânones e pelo ideal de verificação empírico de seus enunciados, apenas
ficava para o discurso freudiano, como saber da interpretação, a possibilidade
A DIREÇÃO DA PESQUISA PSICANALiTICA 23

de encontrar a sua identidade teórica no campo dos saberes que foram


excluídos da cidade da ciência e da n1zão com a revolução científica dos
séculos XVII e XVIII. Desta maneira, a psicanálise se encontrou com o
ideário teórico do Renascimento, silenciado definitivamente do mundo da
cientificidade justamente porque a prática da ·interpretação constituía-se
como uma de suas ferramentas fundamentais de trabalho. Com isso, a
psicanálise foi identificada à demonologia e à alquimia, saberes que unifica-
vam os territórios terrestre e celeste do cosmo pelos procedimentos da
interpretação, e não pela leitura causul do universo infinito definido pela
e xtensão?6
Porém, no século XIX e com a asce nsão triunfante da razão cientificis-
ta, a filosofia como metafi sica também foi excluída do universo da razão e
da significação. Com o neopositivismo do Círculo de Viena, o discurso
filosófico passou a ser representa~ o como enunciando proposições sem
sentido, isto é, proposições que não poderiam ser verific adas empiricamente.
Foi neste contexto que o discurso freudiano fo i identificado com a filosofia,
pois sendo ambos considerados moda lidades de interpre tação, o que estes
saberes realizavam seriam .formas de "especulação". Enfim, considerando a
primazia desse último registro teórico e histórico, no qual psicanálise e
filosofia foram identificadas como interpretação e "especulação", é que
podemos interpretar como o discurso freudiano se aproximou num momento
posterior dos saberes pré-científicos, mediante a prática da interpretação.

VIl. Experiência psicanalítica e empiriafreudiana


Empiria ou "especulação"? Afinal de contas, onde se insere o discurso
freudiano? Alguns de seus enunciados revelam uma pretensão teórica em
construir um saber centrado na emp iria e na verificação. Porém, o que se
destaca da leitura meticulosa de um outro conjunto de enunc iados deste
d iscurso enigmático é a "especulação" e a bruxaria alq uimista. Com isso, a
metapsicologia e a interpretação freud ianas não se sustentam sempre nos
ideais da veriticaçào e da empiria, encontrando-se pois com a arbitra-
riedade do intérprete, mesmo quando se trn ta de e nunciar algo sobre os
conceitos fundamentais da psicanálise. Enfim, podemos sublinhar que o
impasse está colocado aparentemente no fund amento da leitura freudiana da
psicanálise.
Para sairmos deste impasse e encontrarmos a direção teórica da pes-
quisa psicanalítica, vamos continuar a investigar o texto freudiano. Nesta
perspectiva, pretendemos realçar os pressupostos teóricos que se anunciam
no preâmbulo da metapsicologia freudiana, onde em "As pulsões e seus
24 PSICANÁLISE, CII1NCIA E CU L.TURA

destinos" se realizam alguns comentários epistemológicos sobre a cons-


trução teórica da psicanálise.
Assim, vamos citar um longo frag1uento deste ensaio de Freud:
freqüentemente escutamos a scguin~ cxigéncia: _uma cil!nda ~ve set
construída sobre conceitos fundamcntms claros e 01Udamente de f rnidos. Na
rtalidade, nenhuma ciéncia, mesmo a mais exata. começa por tais defi-
nições. O verdadeiro começo di! toda ativid ~de cicntlfica con~iste ~tes na
descriçno de fenômenos, que sl!o em segu1tla or<k:nadO$ e msendos em
. relações, Jã nn descrição nilo se pode evitar aplicar ao material ~ert~s idéias
abstratas que se busca aqui ou ali, e nlio certamence na exper~nc1a atWll.
Tais id~ins - que se cornarllo os conceitos fundamentais da cifncia - 500
ainda mais indispens6vcis na elaboração ulterior dos materiais. Elas com-
portnm primeiro, n eccss<~rimncnte , um certo grau de indeterminação; não
pode ser quest:io de circunscrever claramente seu conteúdo. Enquanto elas
estão neste cstndo, coloca-sede acordo sobre a sua significação multiplican--
do-se as referências no material da cllpcriência, dos quais elas parecem set
retiradas mas que, crn rcalid;~de, U1es t submetido. Elas tem, pois, com todo
o rigor, o curfncr de convenções, ainda que tudo dependa tJo fato que não
sejam escolhidas arbitrariamente, mas determinadas por suas ~m portantes
relaçOcs com os mlUCri;lis empíricos; estns r~laçõcs, acred1ta-se tê-las
adivinhado antes mesmo de poder to.!r o conhccunento e fornecer a prova
delas. Nào ~ senão após um C)(amc mais aprofunda~o do domfoio dos
fenômenos considerados que se pode apreender mais precisamente os
conceitos cicntílicos fundamentais que se requer e modifici-los progres·
sivarncntc parn tomá-los amplamente utilizfiVeis, assim como livres~ toda
contradição. Éentào que pode ser o momento de encerrá-las em defin1ções.
Mas o progresso do conhecimento não tolera também a rigidez nas deft-
niçõcs. Como o exemplo da tisicn ensina de m:mcira manifesta, mesmo os
..conceitos fundamcntab;", que fo11un lillados n:1s definições. mostram o
seu conteúdo constantemente moditicndo.
Ellistc um cont·cito fundamental convcncionnl deste eénero. ainda
bastante confuso no momento. do qunl não podemos prescindir em psico-
logia: o de pulsão.l1
Nesse texto, Freud retoma basi<::unente os mesmos tópicos destacados
em seu ensaio sobre o narcisismo, indicando, porém, os caminhos por onde
se realiza sua "especulaçiio'' teürica. Assim, mostra como submete o "mate-
rial da experiência" its "idéias abstraias", que funcionam de fonna aprio-
rística, para empreender suas ''tlescric.·ões dos fenômenos". Ess_as "idé i~s
abstratas" são considcr:~das "convencionais". não se consu!Jstuncaando po1s
como um a priori da razão. Assam, · as ""d' ~n~>r Iação"
· abstmtas" - " e"r~u
1 eaas
- podem ser descamadas, posteriormente ou não, na medida em q~ _se
apresentem como importnntcs ou ineficazes pa~a a ela~raç ão da e~lptna.
Portanto, o estntuto dos conceitos fundamentaiS no dtscurso freudaano é
convencional.
A DIREÇÃO DA PESQUISA PSICANALÍTICA

É nesta perspectiva que Freud se propõe a desenvolver o conceito de


pulsão (Trieb) em psicunálise, conceito fundamental da sua metapsicologia,
solo constitutivo dos demais conceitos metapsicológicos (recalque e incons-
ciente). Para isso, estabelece uma grade de oposições conceituais para
enunciar os conceitos de pulsãoe de psiquismo: excitação e estímulo; interior
do organismo e exterior do organismo; força de impacto constante e força de
impacto momentâneo; fuga impossível da força e fuga possível da força. Com
isso se estabelece a exigência de satisfação da pulsão, a necessidade de sua
regulação pelo princípio do prazer. Tudo isso leva Fr!!ud a definir o psiquis-
mo como um "aparelho de domínio de excitações", com a finalidade básica
de descarga das excitações pulsionais e o evitamento de que essas atinjam o
nível energético zero. Assim, o discurso frl!udiano pode enunciar que a lógica
do psiquismo ind ica a sua ruptura com a lógica do organismo, pois sublinha
o modo pelo qual a idéia de "domínio de excitações" revela algo que
tmnsborda com as idéias do aparelho nervoso e de reflexo. 38 Portanto, o
conceito do psiquismo como corpo não se identifica ao conceito de organis-
mo neurofuncional.
O que o discurso freudiano realiza agui, em sua tentativa de enunciar
o conceito de pulsão? Frellll lan\·a mão dos conceitos de Fechner, da fisiolo-
gia, da psicofísica e da termodinâmica, para se aproximar da construção
teórica do psiquismo como objeto científico, sendo esse o seu referente
fundamental. Porém, o psiquismo com que se defronta o discurso freudiano
não é um psiquismo artilicializado num bboratório, seja de neuro-anatomia,
de neurotisiolog ia ou de psicologia introspectiva. O psiquismo freudiano é
um. psiquismo que fa la, não urua fu la solitilria, mas inserida num circuito de
interlocução.
O psiquismo com que tmbalha a psicanálise é o psiquismo de um
sujeito concreto gue fala para um outro de maneira constante e que tem no
outro o seu pólo fundamen wl de refen!ncia. Então, como intérprete e como
dispensador de objetos de satisfação pulsional. o sujeito procura no outro o
reconhecimento de seus desejos e de suas demandas, de forma que sem o
outro o sujeito simplesmente não se constituiria como tal.
Portanto, a constn1~·ilo do conceito do psiquismo no discurso freudiano
se fun.da •1o reconhecimento da existência de um sujeito falante, que demanda
a um outro uma ajuda vital de ordem terapêutica. Essa demanda de ordem
terapêutica indica o seu desejo da ordem do reconhecimento por um outro
sujeito, que pode realizar este pedido pelo reconhecimento de seu desejo
mediante a reconstrução de sua história.
Este é o quadro fundamental da empiria freudiana, onde se estabelece
uma experiência ao mesmo tempo intersubjetiva e alteritária entre sujeitos,
considerados como seres fitlantes lançados no circuito da interlocução. No
26 PSICANÁLISE, CIêNCIA E CULTURA

ensaio do narcisismo, no fragmento citado anteriormente, Freud sublinhava


essa referência empírica da psicanálise, ao destacar a sua relação com as
neuroses de transferência e o ounpo tranill.rMciol da experiência psicaoJlí-
tic a.
Essa referência, contudo, é originária no discurso freudiano, e não um
acréscimo tardio da e)(periência psicanalítica, na medida em que o campo
transferencial desta experiência constitui o solo epistemológico da psicaná-
• lise, sendo portanm fundante do discurso freudiano. Assim, desde os momen-
tos constitutivos da psicanálise, quando Freud trabalhava com a catarse, a
hipnose e a sugest ão, fonnulou-se no discurso freudiano o conceito de que o
"tratamento psíquico" se realizava no campo da fala?~ Neste contexto, o
discurso freudiano pretendeu superar o dualismo entre corpo e psiquismo
mediante a categoria de linguagem, pois a fala poderia agir nas diversas
enfermidades do corpo e do espírito, já que era a mediação entre estas
diferentes modalidades do ser. 40
Assim, foi pela es::,na de u~sujeito que fala para um outro, de suas
dores insuportáveis, e que pede o reconhecimento vital de seus impasses, que
se constituiu a experiência psicanalítica. Foi pela elaboração teórica dessa
experiência que se constntiu a metapsicologia freudiana e um saber centrado
na interpretação. Portanto, foi no campo dessa experiência transferencial,
pretendendo realizar a escuta interpretante de uma história desejante e
procurando viabilizar os destinos das intensidades pulsionais no psiquismo,
que se constituiu o campo da empiria freudi ana.
Nesta perspectiva, a experiência psican alítica é a base da pesquisa
em psicanálise e é e la que tomece os e ixos fundamentais para seu
• norteamento no registro teórico. Por isso mesmo, foram os impasses dessa
e)(periência cruc ial que não apenas fundaram o discurso freud iano, mas
que orientaram as transformações da metapsicologia freudiana. Esta
sempre foi a direção da pesquisa psicanalítica, se considerannos o discur-
so freudi ano como o paradigma 1e6rico do saber psicanalítico. É nesta
medida somente que Freud pôde estabelecer os conce itos fundamentais
da psicaná lise como "concepções" para a leitura da experiência psicana-
IHica, mas ao mesmo tempo se descartar de les, construindo novos concei-
tos e hierarquizando seus antigos conceitos nos novos contextos que se
apresentavam, tendo como d ireção de suas indagações teóricas os im-
passes colocados pelo processo psicanalítico. Portanto, o d jscurso freu-
diano pôde ser reinventado con tinuamente no longo de cinco décadas de
investigação, justamente porque refazia a leitura de seus conceitos fun-
damentais, con fo rme os impasses indicados pela experiência psicanalíti-
ca, não se agarrando pois escolnsticamente a esses e nunciados provisórios
de s ua teoria.
A DIREÇÃO DA PESQUISA PSICANALITICA 27

V/11. Norteamento do inventário inicial


' '

Considerando que a e)(periéncia psicanalítica é o ~ue define a direção da


pesquisa freudiana em psicanálise, podemos re tomar agora de maneira
esquemática'alguns dos tópicos mencionados na introdução deste ensaio.
Em primeiro lugar, não existe psicanálise "aplicada", pois o campo
teórico da psicanálise e da metapsicologia se funda na experiência analítica '
centrada na transferência. Por isso mesmo, não existe aplicação da psicaná-
lise na exterioridade da experiência da transferência, sendo esta que define
a espessura e o diapasão trágico da interlocução psicanalítica. Por isso
mesmo, a oposição pura/aplicada não faz qualquer sentido para a psicanálise, "
sendo um resquício teórico da le itura freudiana realizada pela psicologia do
ego, quando se pretendeu tn\nsformar a psicanálise num setor da psicologia
geral, em que essa última era representada como um saber geral da adaptação
e voltada para a adaptação entre o organismo e o meio ambiente.
Da mesma forma, a experiência psicanalítica admite diversas· pos-
sibilidades de clínica, desde que nesta diversidade sejam reconhecidas as
condições epistemológicas e éticas para a construção do espaço psicanalítico,
isto é, uma experiência centrada na fala, na escuta e regulada pelo impacto
da transferência. Esta diversidade clínica se justifica não apenas pelas dife-
rentes formas de func ionamento psíquico que se apresentam para a escuta
analítica, mas também pela diversidade de espaços em que a experiência
psicanalítica é possível. Estamos pressupondo com esta leitura que a psica-
nálise não se identifica absolutamente com o exercício virtuoso de uma
técnica pois esta é extremamente variável, conside rando-se evidentemente a
invariabilidade de seu método. Enfim, existem técnicas diferenciadas em
psicanálise que, como espécies, correlacionam-se com o método psicanali-
tico como sendo o seu gênero.
Portanto, a pesquisa em psicanálise se funda na experiência psicanalí- •
tica mesmo quando se concentra na elaboração teórica de questões aparen-
temente bastante distanciadas deste espaço fund amental de referência, isto
é, q uando trabalha na e laboração de conceitos metapsicológicos. A leitura
do discurso freudiano revela inequivocamente que era essa a direção impri-
mida à pesquisa analítica em sun constituição teórica e histórica. Da mesma
forma , foi a través de sua articulação rigorosa neste solo epistemológico que
o discurso freudiano pôde estabelecer uma relação dial6gica frutifera com os ·
demais campos do saber, indicando com isso a sua curiosidade inesgotável
e os "múltiplos interesses da psicanálise".41 ·
Os impasses da cientificidade no discurso
freudiano e seus destinos na psicanálise 1

I. Cientificidade, ética e poder

Neste ensaio pretendemos traçar algumas das linhas de desenvolvimento


teórico que marcaram a relação polê mica da psicaná lise com o discurso
da ciência. Com este objetivo vamos demarcar inicialmente as fronteiras
da problemática epistemológica colocada no discurso freudiano, me- ·
diante a formulação de suas questões cruciais. Estas evide nciam o modelo
de ciência a que esta va submetida a psicanã Iise no contex.to histórico de
sua constituição e o seu contraponto, isto é, o modelo de cientificidade
construído pela psicanálise com os critérios teóricos possibilitados pela
constitu ição do seu objeto teóri~.:o. Esta duplicidade e até mesmo a
opos ição de registros conceituais, teve e fei tos fundamentais no desenvol-
vimento do saber psicanalítico e na representação de sua cientificidade
pela razão cientifica..
Assim, a pretér\Silo de Freud em inscrever a psicanálise no universo da
c iência esteve sempre presente ao longo de seu percurso teórico, em seus
primórdios e nas mllltiplas reformulu~·ões cruciais que imprimiu à psicanálise
no itinerário de sua peS<JU i sa. Contudo, se considt:rarmos o modelo de ciência
dominante, no contexto histórico da constitlli~·ão da psicanálise, é evidente
que o saber psicanalítico nilo se inseria no discurso da ciência. Em contra-
partida, em seu percurso, o discurso freud iano construiu alguns critérios
conceituais rigorosos pam pod~r avaliar a consistência interna de seu objeto
teórico, critérios estes que remetiam para um outro modelo epistemológico
de cientificidade e que nüo era reconhecido como tal no contexto histórico
da constituição da psicanálise.
Essa contradição teórica e histórica teve desdobramentos fundamentais
no momento pós-freudiano da psicanálise, quando a questão de sua cientifi-
c idade gerou uma polêmi<:_a teórica importante no processo social d~ sua
legitimação como saber. E preciso considerar aqui as diversas tradtções

28
OS IMPASSES DA CIENTIFICIDADE NO DISCURSO FREUDIANO 29

culturais em que se inscreveu e se difundiu a psicanálise no Ocidente, pois a


ava1iaçã0' de sua cientificidade c a modalidade de cientificidade representada
pelo saber psicanalítico estiveram também na dependência estrita do univer·
so cuiiUral vigente.
Com efeito, entre os anos quare nta e sessenta, a tradição anglo-
saxônica discutiu a cíentitic idade da psicanálise pelo caminho teórico •
norteado pela filosofia neopositívista e pelo cientificismo naturalista,
enquanto a tradição francesa tematizou a questão pela mediação da
fenomenologia e da hermenêutica. Assim, na tradição teórica anglo-saxô-
nica, a cientificidade da psícanúlise permaneceu sempre como uma ques-
tão polêmica e o saber psicanalítico nunca teve um lugar garantido na
cidade da ciência. Já a tradição francesa reconheceu a legitimidade da
pretensão freudiana de cientificidade da psicanálise, desde que se consi- 1
derasse esta no registro da expcri~m:ia psicanalítica, e não no discurso da
metapsicologia.
Nos anos sessenta e setenta, o campo teórico desta problemática se
modificou, pois a questão da cientiliciúade da psicanálise passmu ..o.cupar
um lugar secundário no novo contexto histórit.:o. Assim, a questão da cienti-
ficidade foi descolocada pelas questões é tica e política, que passaram a se
inscrever no primeiro plnno dos debates.
Essa conjuntura históricu emergente correspondeu ao deslocamento do
lugar social da psicanálise nos Estados Unidos, já que, de saber fundamental
de referência nos campos da psiquiatria e da psicologia, a psicanálise
começou a ser substituída paulatinamente por outros saberes do psiquismo.
Em contrapartida. esse foi o momento cnu:inl do desenvolvimento da psica·
nálise francesa e de sua expansão no t·enário internacional, onde, sob a
liderança teórica incontestável t.le Lacan, a psicanálise realizou a sua difusão
social na França.'
Foi nessa conjuntura que o saber psicunalítit·o, como um discurso com '
a pretensão intelectual de se inscrever no fogos da ciência. se deslocou para
outro lugar simbólico, onde pretendiu ser reconhecido como uma ética.
Evidentemente, não como uma ética qualquer e muito menos como uma
moral, mas como uma ética elo cleseju. Na perspectiva desta ética, o sujei!o
se
do inconsciente funda no desejo, d~ m:meira que o sujeito é fundamental-
mente desejante.
Foi neste contexto histórico também que se representou o lugar
crucia l da psicanálise nu histó.-ia da loucura no Ocidente e sua incidência
na constituição das modernas tíguras da subjetividade. De forma comple-
mentar, se representou a sun inser~·ão nns modernas tecnologias do poder,
de maneira a se perfilar um novo horizonte oe leituras teóricas sobre a
ps icanálise.
30 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTIJRA

IJ. Fisicalismo?

Desde os seus primórdios, a psicanálise foi radicalmente criticada pela


sexologia, pela psiquiatria e pela psicologia, que colocavam em ques!Ao
o rigor teórico de suas construções intelectuais. Indagava-se sobre sua ci-
entificidade através de uma série de perguntas lançadas ao discurso freudi-
ano.
Seriam teoricamente sustentáveis os argumentos freudianos sobre a
etiologia sexual das neuroses e sobre a existência do psiquismo inconsciente?
As hipóteses freudianas poderiam ser experimentalmente verificadas e enun·
ciadas em linguagem quantitativa, como se exigia então para a validação e
reconhecimento de qualquer formulação científica? O campo clínico da
experiência psicanalit ica e sua eficácia terapêutica na resolução dos sintomas
das neuroses poderiam ser considerados como critérios seguros de positivi-
dade para a construção da psicanálise como um discurso científico?
Essas questões polêmicas perpassaram a relação do discurso freudiano
com a racionalidade científica do final do século XIX e das primeiras décadas
do século XX. A psicanálise foi sistematicamente criticada, pois suas hipó-
teses teóricas não se estruturavam pela experimentação e pela verificação
devidamente controladas, estando submetidas ao saber e às peripécias aci-
dentadas da prática psicoterápica. A experiência clínica era imprevisível em
seus efeitos terapêuticos, apesar dos bons resultados registrados pelo discurso
freudiano na resoluçõo das neuroses. Não existia uma previsibilidade dos
resultados terapêuticos, apesar da constituição paulatina de uma teoria-dos
impasses na psicoterapia. Além disso, as hipóteses psicanalíticas eram con-
sideradas excessivamente -abrangentes em suas for,nulações e impossíveis
de serem submetidas a um processo qualquer de mensuração e de quantifi-
cação.
Nessa perspectiva, o discurso freudiano foi inserido no campo da
estética, e não no campo da ciência, pois, com a abrangên~ia excessiva de
seus enunciados teóricos e a sua leitura qualitativa dos fenômenos mentais,
a psicanálise não teria qualquer consistência científica. Evidentemente,
desde os seus prim6rdios.2 a metapsicologia freudiana levou em conta a
importância crucial da leitura quantitativa do psiquismo, o que se desdobrou
posteriormente no desenvolvimento sistemático da dimensão econômica na
metapsicologia.3 Porém; a .questão da intensidade das pulsões era um enun·
ciado teórico e não se desdobrava na prática da menstlração.
• A experiência clínica em considerada sem condições necessárias para
o conrrole rigoroso de seus efeitos terapêuticos e de .seus procedimentos
metodológicos. Com efeito, apesar do esforço teórico do discurso freudiano
em discriminar conceitualmente a psicanálise e a sugestão,4 e de enunciar a
OS IMPASSES DA CIENTIFICIDADE NO DISCURSO FREUDIANO 3)

positividade teórica do campo da transferência até mesmo pela leitura


sistemática de seus impasses terapêuticos,5 o espaço psicanalítico não era
representado efetivamente por seus críticos como um verdadeiro espaço ,....
experimental.
Assim, os enunciados teóricos do discurso freudiano poderiam ser
representados como interessantes e bastante sugestivos para a imaginação
ávida de novidades de seus leitores, mas sua cientificidade era fundamental·
mente discutível. Os enunciados psicanalíticos eram fascinantes e até mesmo
sedutores, mas não se ordenavam na lógica do discurso cientifico dominante
e em suas exigências de verificação. O discurso freudiano, portanto, era
representado como inscrito no registro da estética, e não no registro teórico
da ciência.
Em 1896, o sexologista Kmfft-Ebing afirmou que o discurso freu-
diano sobre as neuroses era um "conto de fadas científico",6 após assistir
à conferência inaugura l em que pela primeira vez Freud apresentou
sistematicamente a sua teoria da sedução sexual como condição fun·
<.lamentai das neuroses. 7 Da mesma forma, Stern e Liepman, num comen·
tário crítico sobre A interpretação dos sonhos, então recém-publicada, se
referiam à obra como uma "produção artística". 8 Na mesma linha de
comentários, Havelock Ellis considerou a psicanálise um discurso estético,
e não uma produção científíca.9 .
Freud procurava responder incisivamente aos seus respeitados críticos
de diferentes maneiras, enunciando sempre positivamente a cientificidade da
psicanálise. Para isso, baseou-se inicialmente nos pressupostos do fisicalis·
mo e da termodinâmica, que se constituíam então o paradigma 10 da cienti-
ticidade no campo das ciências da natureza. Tendo iniciado o seu percurso
científico na pesquisa básica, nas áreas da anatomia e da fisiologia do sistema
nervoso,11 Freud dominava perfeitamente a linguagem e as hipóteses hege-
mônicas no campo das ciências da vida. 12
Podemos acompanhar a utilização dessa linguagem fisicaJista ao longo
do discurso freudiano, que pretendia apresentar a psican~i se mediante ·a
retórica dentificista de seu contexto histórico. Assim, desde o Projeto de
uma psicologia científica, o discurso freudiano evidenciava a demanda de se
enunciar para a comunidade científica na linguagem do fisicalismo, para que
a psicanálise pudesse ser reconhecida como uma ciência. 13 Dentre outras.
razões, Freud não quis publicar esta obra magistral da psicanálise, na medida
em que revelava os impasses radicais de inscrever de forma coerente as
hipóteses psicanalíticas no discurso do fisicalismo.
A mesma intenção teórica e u-mesn]a opçilo retórica se recolocaram no
capitulo metapsicológico deAimerpretaçcio .dos sonhos, 14 se bem que de·
forma mais nuançada e transformada. Nos ensaios metapsicológicos de
32 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULITRA

1915, I.S odisc~rso freudiano desenvolveu os pontos de vista tópico, dinâmico


e econômico da metapsicologia, upropriando-se da retórica fisicalista. Por·
tanto, seria mediante esra retórica que o uiscurso freudiano espera va caucio-
nar o seu modelo originí1rio do aparelho psíquico, a teoria da sexualidade e
a sua leitura sobre a etiologia das neuroses.
Essa apropriação da retórica fisicalista e essa exigência de cientifici-
dade perpassaram o discurso ti·eudiono como uma totalidade, continuando
presentes nas obras mais tardias de Freud, npesardos impasses que o modelo
<!e-cientific idade colocava para a sustentação d.a racionalidade psicanalítica.
E importante destacar que esta exigência e esta retórica não ocuparam exa-
tamente a mesma posição no desenvolvimento teórico do percurso freudia-
no, pois houve uma evidente tr.lnsfonnuçi\o estilística no discurso freudiano,
reveladora· das reordenações epistemol6gicas que se processam no saber
psicanalítico. Essas transfom~ações são fundamentais na leitura c.lo discurso
freudiano, pois introduzem uma heterogeneic.lade inc.licativa de rupturas
cruciais no saber psicanalílico, que revelam fissuras na aparente homogenei·
.dade da retórica fisicalist<~.
· Além disso, é preciso consider:.~r uma outm distinção epistemológica,
fundamental para a leitura do discurso freudiano: a diferença entre os
enunciados explíciros e os enunciadoJ implícitos, isto é, a maneira como o
discurso freudiano se apresentava na retórica física lista e o que através disso
é possível se enunciar de uma ou1ra modalidade de retórica teórica. Na
veroade, os enunciados implícitos emm também explícitos, mas inseriam~se
em outras modatídades de escritos do discurso freudiano, escritos estes
distantes das formulações da metapsicologia. Os escritos clínicos, técnicos
e culturais do discurso freudiano, portanto, revelam uma retórica bastante
diversa da retórica lisiculista, onde podemos apreender de maneira direta os
signos indicadores de urna outra forma de mcionalidade.
De qualquer maneir.t, poJemos consiuemr quê o discurso freudiano é
um conjunto he1erogêneo de enunciados que podem ser reagrupados em
diferentes subconjumos de acordo com sua recórica. Assim, quanto mais
próximos da metupsicolo.l!ia mais estes enunciados são marcados pela retó-
rica fisicalista, e quanto m;lis nos distanciamos <la metapsicologia, mais esta
retórica se faz ausenle e opaca. Dessa maneira, existem os enunciados
f~udianos explkítos sobre a cientitkidade fisicalista da psicanálise e os
enunciados fre udianos fonnuhtdos em linguagem nilo-fisicalísta. Estes tllti-
mos revelam a consti tuição de outru r~::tórica e outm modalidade de saber.
Portanto, se consider;~rmos positivamente esse outro universo de enunciados,
é possível empreender a leitura crític:u do universo de enunci-ados apresenta·
dos na retórica fisicalistu e retirJr deles n evidencia dos conceitos psicannll·
ticos.
QS IMPASSES DA CIENTI FICIDADE NO DISCURSO FREUDIANO 33

Ill. História, senticlo e linguagem


O discurso freudiano formulou, desde os seus primórdios. e de maneira
incontestável, que as neuroses se inscreviam na ordem do sentido e na order.n •
do história, isto é, que os sintomas das neuroses revelavam uma significação
que poderia ser descoberta pelo procedimento da psicanálise, e que este
sentido se inscrevia no tempo da história do sujeito. A introdução dos
registros da significação· e da história na leiturd dos sintomas marcou a
ruptura teórica do discurso freudiano com n interpretação médica da loucura,
pois descartou desde o início os registros somático e anatômico do lugar
epistemológico de paradigma no campo da psicopatologia.
A loucura se fundaria então na história do sujeito, não sendo portanto.
um efeito de perturbações no psiquismo produzidas no registro do corpo
biológico. A produção da loucura se realizaria no psiquismo de maneira
positiva, inscrevendo-se no psiquico os seus mecanismos de estruturação e
de reestruturação, não sendo entlto necessário recorrer a uma ordem d~
causalidade inscrita no corpo anatômico e na desregulação fisiológica do
organismo. Por isso mesmo, além de ser da ordem da história, a loucura é da
ordem da significação, puis a concepção do sentido dos sintomas articula-se •
intimamente com a idéia de história e de tempo da subjetividade.
Foi nesse sentido que o discurso freudiano pôde enunciar, desde seus
primórdios, que "é. sobretudo de reminiscências que sofre o histérico",16
sublinhando assim que é no registro da memória que se constituem os
sintomas e. o.s.o(dro~nto do sujeito. Ao destacar a dominância do registro da
memória na produção das neuroses, o di~curso freudiano articula de maneira
indissolúvel a categoria de sujeito com os registros da significação e da
história, considerando impossível a separm;ão entre sujeito, sentido e his-
toricidade.
Da mesma forma, em A psicoterapia da histeria, escrito logo em
seguida, o discurso freudiano evidenciou a sutil tessitura da significação no
campo do psiquismo e no registro da memória, onde se articularam intima·
mente as coordenadas do sentido e da tempora!idade. Esta articulação foi
enunciada através de mecáfoms bastante reveladom.s da historicidade do
sujeito: a estratijicaç<io das inscrições psíquicas e a idéia de arquivo. 17
Assim, exisliriam diversas estratilicações de significação no psiquismo e que
se ordenariam em diferentes arqu ivos. Estes se superporiame estabeleceriam
entre si as mais diversas modalidades de arranjos de relação.
Essa leitura não se restringe ao esrudo da histeria, mas pretende-se
abrangente, pois pressupõe uma concepçt1o de sujeito que se encontra em
conslituição no discurso freudiano . Assim, esta interpretaç!io se realiza
também nos campos das obsessões e das psicoses, com a elaboração do
34 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

conceito de defesa entre os anos 1894 e 1896. 18 Então, com a universaHzaçilo


do conceito de defesa na totalidade do campo da psicopatologia, o discurso
freudiano esboçou a sua concepção de sujeito fundado nos registros da
significação e da história.
Esta concepção de sujeito, fundada no sentido e na história, foi a
condição de possibilidade paro a construção do conceito de inconsciente.
Pela mediação deste conceito, pôde-se sustentar não apenas a significação
completa dos sintomas neuróticos, como também se deslocou o registro
psfquico no qual a indagação do sentido se realizaria. Com efeito, a pesquisa
freudiana passou a centrar a busca da significação no registro da linguagem
• e não no registro da consciênciu, ou seja, o sentido dos sintomas estaria
ausente do campo da consciência, mas se inscreveria no psiquismo incons-
ciente e se revelaria pela fala. Ponanto, a reminiscência remeteria para um
outro registro do psiquismo que estaria além da consciência, que foi deno-
minado inconsciente.
Nessa perspectiva, o discurso freudiano sobre o psiquismo se choca-
va com a representação de cientificidade então vigente, baseada no fisicalis-
mo. Além disso, como se colocava no discurso freudiano uma critica à
concepção conscienciulista de sujeito, o saber psicanalítico se chocava
também com esta concepção de sujeito estabelecido numa certa tradição
• filosófica. Na verdade, estas duas questões se articulavam como séries
teóricas da mesma problemática, já que o discurso freudiano sobre o sujeito
fundado na linguagem e não no ser da consciência colocava uma questão
fundamental para o discurso da ciência então dominante e para o discurso
filosófico. ·
Com efeito, a concepção de sujeito fundado na consciência se consti-
tuiu na tradição ocidental com a tilosotia de Descartes, que também fundou o
discurso dá ciência moderna no sécu lo XVII. 19 Assim, o sujeito da consciên-
cia fundado no coglto cartesiano e a cientiticidade baseada no registro da
extensão matematizável do mundo são as duas faces da mesma problemática.
Estabeleceu-se com isso uma separação absoluta entre o registro do sujeito
(res cogitans) e o registro do mundo (res extensa), mediante a qual se
constituiu um critério de cientificidade baseado no modelo detenninista da
"' causalidade mecfinica, em que a subjetividade se restringia ao registro do
pensamento. A ceneza da existência de sujeito se fundava no ato do pensa-
mento, após o desntio sistemático de todas us certezas ensinadas pela tradi-
ção, mediunte a d(tvida hiperbóli<.:a. Portanto, as concepções de sujeito e de
ciência constituídas nesta tra<.li~·ão se estabeleceram sob o pressuposto da
ruptura absoluta entre o Jlltltldo do corpo e o mundo do espfrito, que marcou
de maneira indelével a trudi~·ão teórica do Ocidente no século XVIII e
também, por um bom tempo, no século XIX.
OS IMPASSES DA CIENTIFICIDADE NO DISCURSO FREUDIANO 3S

Por isso mesmo, no momento histórico em que o discüiSO freudiano


fonnulou uma outra concepção de sujeito fundado na linguagem e na história,
que se chocou com a concepção de sujeito centrado na consciência, colocou-
se também em questão a cientificidade deste discun;o, isto é, se ele não estaria
inscrito no campo da ciência. Então, a psicanálise poderia ser um discurso
muito interessante e sedutor nas suas hipóteses teóricas, mas seria um
discurso estético, e não científico.
Isso também se enunciou, de maneira crucial, na tradição teórica de
então,namedidaemqueodiscursofreudianocolocouemquestãoodualismo
cartesiano entre os registros do corpo e do espírito. Com efeito, o discurso
freudiano fonnulou, apontando como a problemática fundamental de sua
pesquisa, a pergunta de çomo é possível que o registro do corpo se articule •
no registro do sujeito, isto é, como o corpo se inscreve no sujeito e se
trll,llsfonna numa presença. Em seu percurso teórico, o discurso freudiano
desenvolveu e sistematizou esta questão por dois caminhos simultâneos,
constituindo os conceitos de pu/stio20 e de corpo erógeno. 21 .
A pulsào foi definida como uma "exigência de trabalho" imprista ao
P.siquismo em função da articulação do registro psíquico no registro corporal.
E esta "exigência" contínua, imposta ao psíquico pela pulsão, que exige um
"trabalho" pennanente do psiquismo de domínio da pressão (Drang) pulsio-
nal. Este dominio da força da pulsão passa necessariamente pelo outro, que,
como lugar onde incide o impacto pulsional, é a condição de possibilidade
para o oferecimento de objetos de satisfação para a pulsão e da interpretação
da exigência pulsional. Dessa maneira, a pulsão constrói o seu circuito de
sajisfação peta mediação do corpo do outro que, como instância simbólica, •
pennite também a ins.crição da força pulsional num sistema de nomeaçilo e
ele interpretação. Enfim, seria nesse percurso que a força pulsional se
inscreve no universo simbólico através de seus "destinos", entre os quais o
sujeito do incxmsciente é um dos momentos cruciais.22
Seria nos desdobramentos desse mésmo percurso que o corpo eróge110
se constituiria na história do sujeito, mediante a transformação da força
pulsional no circuito pulsional, pela incidência do desejo do outro nesta
força da pulsão. Assim, seria o investimento do outro, pelo oferecimento de
objetos _ele satisfação e pelos cuidados realizados no corpo d9 demandante,
que transfonnaria a pulsão em pulsão sexual, possibilitando a constituição
do corpo erógenoP Este teria uma dimensíio auto-erótica24 e outra que seria
nardsica,25 residindo esta distinção na dependencia dos diferentes momentos
cruciais do circuito da pulsão. De qualquer maneira, seria por este "trabalho" •
de transformação e de simbolizaçdo da força pulsional, no contexto do
investimento do outro, que as pulsões se ordenariam em diversas m-gani-
zações sexuais ao longo da história sexual do sujeito.
36 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

Essa complexa construção teórica realizada pelo discurso freudiano só


se tornou possível na medida em que. pela psicanálise, se constituiu um
campo inédito de experiência psfquica para a individualidade, que produziu
uma ruptura epistemológica no campo da psicologia clássica. Com efeito, na
medida em que a psicologia clássica se restringia à pesquisa do caJJlpo.da
representação, centrada na consciência e com a utilização do método da
introspecção, a psicologia renovava o pressuposto do cartesianismo, pelo
qual o psiquismo se reduzia à interioridade da consciência. Dessa fonna, o
sujeito se reduzia ao registro do eu e s:e delinhva pelos processos intelectuais
de reflexão, pelos quais o entendimento era o que se destacava como ponto
crucial da investigação: penso, logo sou.
Assim,. o discurso freudiano deslocou o estudo do psiquismo do
campo da representação no registro da consciência e passou a questionar a
representação no registro do discurso. Entretanto, este discurso era conside-
rado em estado prático, isto é, como um discurso reenviado por um sujeito
para outro sujeito. Com isso, constituiu-se um campo intersubjetivo fundado
na interlocução, estruturando-se uma experiência psíquica centrada no diá-
logo.
Portanto, o discurso freudiano realizou um duplo deslocamento meto-
dológico para a construção da ruptura epistemológica com a psicologia
clássica, o que provocou efeitos teóricos e clínicos fundamentais, pela
possibilidade entreaberta de uma oura fonna de experiência psíquica:
.. I. DeslocaJ11ento da pesquisa da representação centrada na consciência
para a sua investigação no registro da linguagem;
2. A representação inserida na linguagem foi estudada considerando a
linguagem em estado prático, inscrita no circuito de trocas com o outro. Vale
dizer, a linguagem foi investigada como interlocução e discurso, no campo
dialógico com o outro.
Para que esse duplo deslocamento metodológico fosse possível, Freud
se baseou na recente tradição clínica que pretendia solucionar terapeutica-
mente o sofrimento psíquico das neuroses com as técnicas da hipnose e da
sugestão. Charcot e Bemheim representavam estas duas tradições clínicas,
consideradas por Freud pertinentes para a pesquisíl das neuroses. O que estas
técnicas tinham em comum é que em ambas o sujeito era colocado no diálogo
com o outro, de maneira que a individualidade e a enfennidade eram inscritas
no campo dialógico da investigação.
Entret~nto, freud radicalizou essa experiência dialógica e pôde des·
tacar a dimensão da interlocução nela presente, pois colocou o paciente numa
posição mais ativa, face ao terapeuta, do que aquela que ocupava nos
contextos da hipnose e da sugestão. Além disso, o diálogo não se reduzia ao
relato dos sintomas, mas se realizava também na comunicação das experiên-
OS IMPASSES DA CIENTIFlCIDADE NO DISCURSO FREUDIANO 37

cias que perpassavam a história da individualidade. Então, foi a radicalização


da dimensão de interlocução da hipnose e da sugestão, assim como o
descentramento do diálogo do plano dos sintomas, que constituiu as con-
dições de possibilidade para a construção do espaço psicanalítico. Portanto,
a transferência como marca da experiência analítica se constituiu por esta
série de novas direções metodológicas na experiência clínica, centradas no
diálogo. .
Nessa perspectiva, formulou-se no discurso freudiano a concepção de
que o sujeito é necessariamente dialógico, isto é, uma modalidade de sujeito
que se constitui apenas pelo outro e através do outro. O que implica enunciar
que não existe qualquer possibilidade de representar o sujeito como uma
mônada fechada, como uma interioridade absoluta, pois a. interioridade
subjetiva remete sempre para. a exterioridade do outro. Portanto, o conceito
de sujeito do inconsciente só pode se constituir no quadro experimental onde
se destacaram os registros da intersubjetividade e da alteridade, fora do qual
o sujeito é figurado como uma interioridade abstrata e pensante, como
apregoava a psicologia da consciência e das faculdades dos séculos XVIJ,
XVIII e XIX.
Para isso, o discurso freudiano preparou a sua ruptura epistemológica
desde o estudo sobre as afasias, quando enunçiou pela primeira vez que o
psiquismo era antes de mais nada um aparelho de linguageTTL26 O conceito •
· de aparelho de linguagem foi o antecessor imediato do conceito de aparelho
psíquico, enunciado no Projeto de uma psicologia cientíjica.21 Foi neste
contexto que o discurso freudiano funcionou como uma crítica do c~ia- •.
nismo,pois deslocou a pesquisa do psiquismo da interioridade da consciência
para o registro dialógico da linguagem. Ponanto, é preciso destacar que, se
a psicanálise criou uma concepção original do sujeito fundado na história e
na significação, isso foi o efeito epistemológico de um sujeito investigado
nos campos do discurso e da interlocução, sendo pois construído um sujeito
de ordem estritamente intersubjetiva.
A descoberta freudiana, portanto, se realizou pela constituição de
um conjunto de inovações teóricas que estabeleceram uma ruptura epis-
temológica com a tradição dominante na psicologia desde o século XVII e
que colocaram questões cruciais para a filosofia consciencialista. Não obs-
tante, o discurso freudiano se enunciou freqüentemente, sobretudo nas suas
obras metapsicológicas, na linguagem fisicalista que era dominante no
discurso científico das décadas iniciais desle século. Foi esta oposição de
enunciados teóricos no discurso freudiano, onde se contrapõem a gramática
da significação e a retórica cientificista, que dominou a discussão·epis-
temológica da psicanãlise no período pós-freudiano, nos anos quarenta e
cinqüenta. ·
38 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

IV. A refutação da cientificidade


Para es.b~ar este de.bate epistemológico, sublinhando as modalidad~s de
aprop~wç~o ~ de rernrerpretaçtio de que foi objeto o discurso freudiano.
é prec1so md.Jcar de fonna sumária os espaços sociais e as tradições cullu-
rals onde se mscrev.eu ~ movir~ent~ ~sicana.lítico no Ocidente. Isso porque
esta cartografia da d1fusao da ps1canal1 se nos mdica algumas das coordenadas
que nortearart_l este debate, fome1.:endo as razões pelas quais se desta-
caram ce~as m.dagações teóricas, a insistência em algumas questões e a
he~em?~Ja conJUntural de certos modelos de cientificidade na história da
ps1canahse.
. A psicanálise obteve a sua primeira grande difusão social nos Estados
Un~dos, a~ós a sua constituição na Europa, a partir dos anos trinta. Desapa-
recl~a ?a Austria e da Alemanha, com a ascensão do nazismo, a psicanálise
subSIStiu na E~ropa, em pequena escal~, apenas na Inglaterra e na França.
~s Estados U?Jdos foram a terra prometida da psicanálise, onde se radicaram
dwersos anal1stas que fug iram do terror nazista.
As décadas de quarenta e cinqüenta COJTesponderam ao periodo da
grande e~pans~o da psi~análíse no território norte-americano. Nesse contex-
!o, a ps!caná!Jse amencana deteve o domínio incontestável no cenário
mtemac1~nal ~ ~ co~ seqiiente hegemonia política na Associação Internacio-
nal d~ Ps1can_ahse~ JUStamen.re ~o~ue os Estados Unidos eram o país que
poss.uJa o ma1or numero de InStituições de transmissão da psicanálise e de
a?ahstas em todo o mundo. Entretanto, no início dos anos sessenta, esta
d1fusão ~omeçou a encontrar obstáculos s ignificativos, indicando o declínio
• progress1vo da psicanálise na cultura norte-americana.28
. A difusão d~ psicanálise nos Estados Unidos teve efeitos epistemoló-
g•~os .fun.damen1a1s, se considerurmos a sua incorporação pelos discursos da
ps1qu•atna e da psicologia, provocando a perda de sua autonomia teórica.
In7orpo':~a pela psiquintr_ia e pela medic ina, transformou-se numa prática
IW'Oter:np•ca centrada n~ 1deal da cura e numa prática social de orientação
pre~~ntlva. ~~s~ manem1, a psicanálise inscreveu-se no grande projeto
• pollt1co e sanu~·~ norte-amencano de produção da saúde meittal, que se
desenv.olveu p~•?c1palmente nos anos cinqüenta e sessenta, perdendo..seu
potencial de critica da medicina e da psiquiatria e transformando-se numa
e~peciali_dade médica: Por outro lado, a psicanálise foi apropriada pela
29

P~~L" o ~ og1a norte-amencana, que pretendia transforrná·la numa "verdadeira"


c1encJa, de ba~e fisicali ~ta e q_uantitativa. Enfim, em qualquer destas incor·
pomções teóncas, a ps1canáhse perdeu a sua especificidade como saber
~paga~do ~s fronteiras epistemológicas de seu objeto e de seu método d~
mvesllgaçao.30
OS IMPASSES DA CIENTIFICIDADE NO DISCURSO FREUDIANO 39

Foi nesse contexto histórico que se realizaram os grandes debates sobre


a cientificidade da psicunúlise, nas décadas de quarenta e cinqüenta. A
afirmação da niío cientificiJude da psic:málise, na tradição norte-americana,
se constituiu-sobretudo porque o modelo de ciência em pauta era fundado na
filosofia neoposítivista. Assim, o discurso freudiano foi examinado apenas
nas proposições de seu discurso metapsicológico, onde foi exigida a valida-
ção empírica de suas pretensas fonnulações fisicalistas. Desta maneira,
pretendeu-se a verificação experimental com critérios empíricos das propo-
sições freudianas, através de pesquisas centradas no registro do comporta-
mento e do uso sistemático de mensuração.
Portanto, a tradição filosófica neopositivista exigia da psicanálise a
realização de um modelo ideal de c ientificida~e, de que o discurso freudiano
ficava muito aquém. As proposições teóricas da psicanálise não eram empi·
ricamente verificáveis segundo este modelo de cientificidade e, por isso, o
_discurso freudi ano não eru considerado como inscrito no campo da ciência.
Da mesma fom1a, a leitura de Popper também não reconhecia o estatuto
. científico da psicamílis{, postulando que nilo seria possível construir no
discurso freudi ano os argumentos pam a sua refutação. Assim, aconteceria
com a teoria psicanalíti<:a, nos discursos de Freud e de Adler, o mesmo que
se daria com a teoria marxista: a impossibilidade de refutação. Isso porque
ambas não circunscreveram de fonna consistente os seus limites epis-
t~.mológicos, produzindo sempre os mesmos argumentos para justificar os
seus impasses. 31 Enfim, uma teoria q ue pode sempre explicar tudo e não
define os seus limites epistêmicos de validade não poderia ser considerada
uma teoria científica.
Nos Estados Unidos, a denominada psicologia do ego constituiu-se
como uma modalidade de discurso científico da psicanálise, mediante o qual
procurou-se incorporar estas críticas provenientes da filosofia neopositivista.
A psicanálise foi então transformada numa região da psicologia geral, sendo
esta representada como uma derivação do saber biológico e centrada na
pesquisa dos processos gerais de adaptaçlio do indivíduo às exigências de
seu meio amb.iente. 32 Esta foi a resposta teórica da psicanálise norte-ameri-
cana às exigências de cientificidade que lhe foram lançadas pela filosofia
neoposítivista, que acabaram também por descaracterizar a especificidade
teórica e a autonomia epistemológica do saber psicanalítico.

V. Ciência e interpretação
Deslocando-nos agora da tradição norte-americana da psicanálise e dos
discursos sobre a cientiticidade, dominantes na tradição anglo-saxônica,
podemos destacar um debate inteiramente diverso sobre o estatuto científico
PSICANÁLISE. CH1NCIA E CULTURA

do saber psicanalítico. Apesar de sua inserção periférica no movimento


analítico nos anos trinta e quarenta, a tradição francesa desenvolveu um
discurso sobre a cientiticidade da psicanâlise que estabeleceu um corte
radical com a tradição norte-americana baseada na filosofia neopositivista.
Na tradição francesa, a cientificidade da psicanálise foi enunciada
positivamente, porém foi representada como um saber da interpretação e
como uma prática hermenêutica. Nessa leitura do discurso freudiano, a
metapsicolqgia, nos seus enunciado:; fisicalistas, e os enunciados do modelo
cientificista presentes no discurso freudiano foram criticados e colocados em
segundo plano, pois a nlCionalidade psicanalítica seria definida por sua
dimensão interpretativa.
Esse caminho teórico de Ie itura da psicanálise foi o efeito, nesse campo
específico, de uma fonnulaçfio mais abrangente sobre o discurso da ciência,
que funcionou historicamente <:orno uma crítica radical da concepção posi-
tivista de cientiticidade. Esta fonnulação teórica abrangente foi enunciada
por Dilthey, que visava a fundamentação das ciências do espírito face às
ciências da natureza, e pelo discurso filosófico da fenomenologia.
Assim, baseando-se nas proposições da filologia e da história, que
desde o início do século XIX começaram a s!stematizar os seus procedi-
mentos de pesquisa. Dilthey pretendeu distinguir epistemologicamente as
c_iências da natureza (Narurwissenchaft) e as ciências do espírito (Geisteswis-
~.tlchaft). Para isso. enunciou algumas proposições epistemológicas que
marcaram de maneira indelével o debate sobre a ciência no final do século
XIX, onde era dominante o discurso positivista sobre a cientificidade. Foram
destacadas as seguintes diferenças:
1. Enquanto as ciências da natureza procurariam estabelecer relações
de causalidade entre os fenômenos, as ciências do espírito pretenderiam
• apreender relações de sj_gnijicaçli(J no campo do discurso;
.2. As ciências da natureza, ponanto, se concretizariam peJo procedi-
mento metodológico da explicação, enquanto as ciências da cultura adota-
riam o caminho metódico da compreensão; · .
3. As ciências da natureza seriam marcadas pelosjdeais teóricos do
• d~terminismo ~ do universalismo, enquanto as ciências Qa cultura consid~­
rariam as idéias de incerteza e de contexto;
4. Com isso, o lugar epistemológico do intérprete seria fundamental
no campo das ciências do espírito, pois as suas escolhas seriam decisivas para
direcionar as interpretações 110 éontexto de polissemia dos discursos. O que
não ocorreria, evidentemente, com a suposta neutralidade do naturalista
observando os fenôme-nos, no cmnpo das ciências da natureza.33
Nessa perspectiva, Dihhe.y realizou a crítica sistemática do ideal
positivista de ciência, _que se materializou no discurso do cienti{icismo
OS IMPASSES DA CIENTIFICJDAOE NO DISCURSO FREUDIANO 41

r::Úur&lista do Século XIX. procurando realizar no campo das ciências do


espírito a revolução copemicana empreendida por Kant no campo das
ciências da natureza. Assim, da mesma fonna como Kant realizou a "critica
da razão pura", baseando~se na física de Newton,3 4 Dilthey se propunha a
realização da "crítica da mzão histórica".
Weber retomou a via teórica indicada por Dilthey, para fundamentar
as ciências históricas pelo método da compreens âo, constituindo o campo da
sociologia compreensiva.3s Da me-sma forma, podemos destacar que Weber
seguiu; em sua leitura teórica do campo da científicidade, a crítica da
concepção positivista e naturalista da ciência, o que colocava o campo das
ciências do espírito em permanente desvantagem face às ciências naturais.
Com isso, as ciências históricas não poderiam jamais se deslocar do tempo
da pré-história da ciência e se inscrever no registro da ciendficidad~.
Finalmente, a filosofia fenomenológica realizou ao mesmo tempo a
crítica ao ideal de ciência do natumlismo positivista, de forma a destacar o
lugar do sujeito na produção do discurso científico. Com isso, enfatizou as
dimensões históricas do sujeito e d~1 ciência, de maneira a indicar o lugar
fundamental do intérprete no campo da produção científica.
Portanto, foi no campo teórico dessas diferentes tradições críticas que
a psicanálise foi retomada pela tradição francesa como um saber fundado na
interpretação. Para isso, o modelo de cientificidade fisicalista foi criticado
no discurso freudiano, para que se pudesse sublinhar o registro hennenêutico
que se encontraria presente na psicanálise.

VI. Mélllpsicologia e interpretação


A partir da década de I 920, est;1be leceu-se progressivamente na tradição
francesa uma oposição radical entre o modelo naturalista de cie~tificidade>
presente em alguns dos enunciados freudianos, e o modelo da experiência
psicanalítica, centrado na escuta, na interpretação e na transferên~ia. Esses
dois modelos seriam teoricamente incompatíveis, não existindo entre eles
qualquer possibilidade de solução de eonlpromisso. A psicanálise como
saber precisaria, portanto, depurar-se de seu modelo naturalista de cientifi-
cidade, a fim ·de se desenvolver em suas potencialidades teóricas como saber
a
da interpretação. Esta seria exigênCia fundamental a ser realizada por uma
• epistemologia da psicanálise.
Esta problemática teórica foi condensada da seguinte maneira: enquan-
to as coordenadas interpretativa e intersubjetiva da experiência psicanalttica
permitiram ao discurso freudiano retirar a psicologia das abstrações da
filosofia clássica- pela constituição do sujeito propriamente dito, fundado
no discurso é na interlocução-, a metapsicologia freudiana formulava-se
42 PSICANÁLI SE. CI.ÊNCIA E C ULT URA

como uma represenração fisicalista do psíquico, onde est.e era representado


inclusive como uma mônada, em estado de isolamento em relação a outros
psiquismos. No discurso freudiano, portanto, os registros interpretativo e
fisicalista do psiquismo eram amagõnicQs. Esta leitura marcou de maneira
indelével o desenvolvimento teórico da·psicanálise francesa até o fmal dos
anos sessenta. sendo mediante esta oposiçüo ue modelos que se puderam
reconhecer a fecundidade e a inovação do discurso freudiano na tradição da
psicologia (modelo da interpretação), bem como criticar os seus impasses
teóricos (modelo fisicalista). .
Podemos reconhecer em Politzer a posição de inaugurador desta
vertente teórica da leilura da psicanálise, com a p'ublicação de sua Crírica
dos fundamentos (/a psícolof,ia, no final dos anos vinte. 36 Nesse contexto
histórico, em que na França 7 imperava a crítica radical da psicanálise e o
38
discurso freud iano tinha sido incorporado pela troúição neuropsiquiátrica,
P~r foi indiscutivelmente o primeiro autor a reconhecer a ino.vação
te.órica representada pelo discurso freudiano na história da psicologia. ·
Em sua pesquisa teórica sobre as condições de possibilidade para a
constituição de u&na "psicologia concreta" e que se opusesse sistematica-
mente à balofa psicologia das t:'lculdades baseada na introspecção.-Politzer
deslacou a importância crucial representada pela psicanálise, pelo behavio-
risrno e pela psicologia da fonna para esta produção teórica. Esses diferentes
discursos teóricos representavam o encaminhamento JruÜs fecund o para a
construção da "psicologia concreta", pois inseriam o-psiquismo de maneira
holista em contextos reais da ação.39
A psicanálise, porém, estava em destaque dentre as tendências princi-
pais da psicologia contemporânea. pois, além de inserir o psiquismo num
contexto de ação, o psiquismo foi representado a partir do sujeito. Assim,
centrodo na linguagem e no diálogo, Q sujeito no discurso freudiano foi ·
Ífl$Crito na relaç-;'ío com o outro, através do conceito de transferência. Dessa
maneira, a psicanálise configurou o sujeito em "situações dramáticas",
revelando o alcance fundamental da categoria de "drama" no campo da
"psicologiaconcreta".40 Seria no contexto dramático da relação e do diálogo
com o outro que se revelariam as questões do sujeito no discurso freudiano.
Apesar desta evidente modernidade teórica nos regist~s dramático e
dialógico, o discurso freudiano encontraria o seu maior obstáculo ao revestir
a sua inovação teórica com u linguagem fi sicalista da metapsicologia. Com
efeito, para PQiitzer o grande impasse epistemológico do" discurso freudiano
foi o de pretender apresentar a sua descoberta científica com a retórica e os
valores da "psicologia cl:\ssica'.', comprometendo o desdobramento das
possibilidades teóricas da psicanálise. Por isso mesmo, a pretensão da crítiça
epistemológica seria n de libertar a psicanálise do seu cientif1eismo fisicalis-
OS IMPASSES DA CIENTIFICIDADE NO DISCURSO FREUDIANO 43

ta, para que ela pudesse se desenvolver como uma concepção dramática do
sujeito.41 •
Num outro registro, essa mesma oposição teórica de modelos foi
retomada por Dalbiez, quando estube.leceu a contraposição radical entre o
"método" e a "doutrina" no discurso freud iano. Com efeito, a psicanálise
revelaria a sua inovação teórica pela metodologia que forjou, onde a relação
com o outro através do diálogo estaria no primeiro plano, mas a sua "doutri·
na" seria falsa pelas hipóteses pulsionnis e a linguagem cientificista pela qual
se enunciou. Portanto, numa perspectiva teórica bastante próxima da leitura
de Polilzer, Dalbiez propunha a separação radical entre o "método" e a
"doutrina", de forma a se preservar o "método" de pesquisa da psicanálise,
mas de se descartar inteiramente da "doutrina" freudiana,42 como sendo um
entulho.
Os primeiros ensaios de locnn se inseriram na mesma tradição teórica,
na medida em que sublinhavam enfaticamente a inovação teórica do discurso
- freudiano pela estrutura da experiência psicanalítica e realizavam a crítica
sistemática da metapsicologia freudiana. Nessa crítica inicial formulada por
Lacan. fica patente que a metapsicologia revela a retórica fisicalista a ser
descartada no discurso freud iano, enquanto a descoberta freudiana se daria com
a construção da experiência psicanalítica centrada na fala e na transferência. 43
Entretanto. na leitura de l acan a experiência psicanalítica é apresen-
tada de maneira primorosa, pois se sublinham os efeitos transferenciaís da
experiência na decomposição das identificações constitutivas do psiquismo.
Da mesma forma, a interpretação psicanalítica é enunciada em seus efeitos
estruturantes sobre o sujeito, na e l ucida~ão dos enigmas e impasses de· sua
história. Nesse contexto, fica claro que a intenção de lacan é pretender
demonstrorque o processo psicanalítico é regulado por uma lógica irrefutãvel
e_rigorosa, constituindo-se uma verdadeira experiência científica. apesar de
não se enunciar pela retórica fisicalistu.
. AJõ~.im, a psicanálise seria um saber da interpretação que se constituiu
no campo da . expedência intersubjetiva. Estas seriam as marcas episte- •
mológicas de sua cientificidade. Para encaminhar sua demonstração teórica,
lacan se sustentou na filosotia fenomenológica (Husserl e Hegel), na psico-
logia da forma e na etologia, para realizar uma releitura de Freud,44 que se
apoiou principalmente na segunda tópk'a45 e na segunda teoria das pulsões.46
Contudo, o registro energético da metapsit.:ologia freudiana foi descartado
por Lacan, que enfatizou o registro interpretativo da psican6lise.
Em 1953, l acan tr.msformou as suas referências teóricas na releitura
do discurso freudiano, deslocando-se de uma teoria centrada na categoria de
imaginário para uma teoria centrada na categoria de simbólico. Para isso,
Lacan se aprimorou na utilização dos saberes lingüistico e antropológico,
44 PSICANÁliSE. CIÊNCIA E CULTURA

mediante os discursos teóricos de Saussure47 e de Lévi-Strauss. 48 A psicaná-


lise, contudo, continuou a ser fundada no campo da interpretação, destacan-
do-se agora o conceito de significante e a categoria de história para
representar o sujeito do inconsciente como uma estrutura.49 Enfim. o registro
econômico da metapsicologia freudiana continuou a ser descartado pela
releitura de Freud realizada por Lacan nos anos cinqüenta, de maneira que
era no campo simbólico. na ordem diacrítica dos significantes que o campo
psicanalítico continuou a se fundar corno saber da interpretação.
Nos anos sessenta, Lacan indicou os limites teóricos desta leitura da
psicanálise, justamente porque a dimensão econômica da metapsicologia
freudiana exigia uma outra modalidade de solução teórica. Foi só então que
o conceito de pulsão (Trieb) passou a ser tematizado no discurso lacaniano,50
colocando de maneira crucial os limites epistemológicos da psicanálise como
saber da interpretação e O!i impasses de sua cientificidade. Nessa viragem, a
psicanálise começou a ser pensada como uma prática, inscrevendo-se no
~ discurso da ética, e não no discurso da ciência, como veremos adiante.

Vl/. O sujeito do inconsciente


Foi nessa conjuntura histórica que a filosofia francesa começou a estabelecer
um diálogo crítico e permanente com a psicanálise, considerando os desen-
volvimentos teóricos anteriores. As décadas de quarenta e cinqüenta foram
bastante férteis na produção de argumentos críticos lançados ao discurso
freudiano, correspondendo no registro do discurso filosófico ao florescimen-
to da psicanálise francesa, com as inovações teóricas de Lacan.
Nesse contexto, ainda se colocava em cena a problemática da cientifi·
cidade, onde se contrapunham as retóricas do fisicalismo e da interpre-
tação. Porém, a leitura da psicanálise como saber interpretativo recebeu
uma inflexão decisiva, apesar de se inscrever ainda no mesmo registro, pois
o que se colocava em pauta agora em o estatuto teórico do sujeito do
inconsciente. ·
Essa questão ocupava uma posição fundamental na pesquisa de Lacan
desde os seus primórdios, como indicamos anteriormente, mas transfonnou-
se então no centro do debate teórico sobre a consistência epistemológica da
psicanálise. A leitura realizada por Lacan do discurso freudiano constituiu,
evidentemente, o campo de interlocu\·ão privilegiado desse vigoroso debate
intelectual da filosofia com a psicanálise.
Essa polêmica teóriça sobre o estatuto do inconsciente (oi marcada pela
incidência, crucial para a tilosofia françesa, desde os anos trinta, da fenome -
nologia e da filosofia existen<:iul. Assim. através dos discursos de Husserl,
Hegel e Heídegger. a filosofia se renovou na França. fazendo o seu acerto de
OS IMPASSES DA CIENTIFICIDADE NO DISCURSO FREUDIANO 45

contas com a poderosa tradição cartesiana:51 Com efeito, estes discursos


funcionaram como instrumentos de crítica à herança cartesiana. Por isso
mesmo, foi colocado em pauta o estatuto conceitual do inconsciente, pois era
o ser do sujeito fundado na consciência da filosofia de Descartes que estava
no centro ~o debate. O dualismo entre os registr:os do corpo e do espírito foi
radicalmente questionado em sua pertinência, de maneira a se desenvolverem
com muita riqueza teórica as problemáticas da linguagem e da intersubjeti-
vidade na reflellão sobre o sujeito. Nestas circunstâncias, o estatuto do sujeito
do inconsciente tornou-se uma questão fundamental para a filosofia.
Inscrevendo-se na tradição filosófica orientada por Husserl e Heideg-
ger, pela qual procurava fundar o sujeito na rehu;ão com o outro em situações
existenciais, Sartre considerava insustentável o conceito psicanalítico de
inconsciente. Para ele, o inconsciente se reduzia à posição de "má fé" do
sujeito, podendo pois ser enunciado como uma figura existencial da
consciência, que se inscreveria na relação dialética do suje ito com outros
sujeitos.52
Da mesma fonna, marcado pela herança filosófica de Husserl e procu-
randose deslocar dos impasses teóricos colocados pela filosofia da consciên-
cia, Merleau-Ponty indicou desde o início de seu percurso a necessidade de
tematizar a abertura originária da consciência para o mundo e para o outro.
Nesse contexto, o estudo da percepção ocupou um lug~r central em sua
pesquisa.53 Apesar de a categoria de consciência implicar a idéia de intenção
da fenomenologia de Husserl, isto é, a consciência ser sempre consciência
de algo que a transcende e estar inserida num corpo, a consciência ainda é o
campo da referência fundamental da fenomenologia de Merleau-Ponty. Vale
dizer, mesmo sendo consciência perceptiva, ainda é no campo da consciência
que se realizam as indagações teóricas de Merleau-Ponty. A categoria de
inconsciente não poderia ter lugar nesta concepção filosófica, de maneira
que, no momento inaugural deste discurso, o pensamento freudiano foi
criticado em seu fundamemo, s4 sendo considerado um modelo mecanicista
de psicologia.
Entretanto, no desenvolvimento de seu percurso, Merleau-Ponty rea-
lizou uma aproximação efetiva com o discurso freudiano, conferindo um
lugar consistente ao conceito de inconsciente. Passou, então, a tematízar o
corpo como "carne", de forma que o registro do inconsciente passou a ser
identificado ao "sentir" mesmo da coisa, pelo corpo do sujeito.55 O que
implicou a transfonnação fundamental do cogito cartesiano no pensamento
de Merleau-Ponty. que do "eu penso" de Descartes se transfonnou no "eu
quero", nessa ontologia do corpo. Enfim, o inconsciente foi tematizado no
registro do desejo, na apropriu~·ão sensível e erótica, pelo corpo, das coisas
constitutivas do mundo.
46 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

No contexto de uma pesquisa abrangente sobre a hennenêutica no


campo das ciências humanas, Ricoeur realizou a sua leilura sobre Freud,
retomando a tradição iniciada por Politzer e Dalbiez. A pretensão de Ricoeur
era renovar a oposição estabelecida por Dilthey entre ciências da natureza e
ciências da cultura, fazendo uma releitura das ciências da cultura pelo
caminho epistemológico de saberes hennenêuticos. Para isso, estabeleceu
uma investigação no universo dos símbolos, delineado pelas diferentes
ciências humanas, onde a construção da categoria de interpretação e a
constituição da hermenêutica como saber filosófico se colocaram como
questões primordiais.
Assim Ricoeur procurou demonsrrar, em sua leitura sistemática de
Freud, que as exigências cientificistas da energética, no discurso da metapsi·
cologia, estavam subsumidas à retórica da interpretação. Dessa mane i·
ra, o discurso freudiano seria a construção de um saber da interpretação
e a psicanálise se inscreveri<L, de fato e de direito, na tradição hennenêu-
tica.56
No campo desta tradição teórica, u inserção de Hyppolite é bastante
singular, introd uzindo urna questão polêmica que pennanece como um
problema de grande a!Uulidade. Hyppolite reconhece a existê ncia de doi~
modelos opostos de cientificidade no discurso freudiano: o modelo fisicalísta
do aparelho psíquico da metapsicologia, sua dimensão positivista, e o modelo
interpretativo e intersubjetivo que se revela nos enunciados da experiência
psicanalítica. Porém, em vez de consider::~r esta duplic idade teórica como um
impasse na cientific idadc da psicanálise - onde o comentador deveria
escolher entre "método" e "doutrina". " psicologia concreta" e "psicologia
introspectiva", retórica fisicalista e retórica hennenêutica - , Hyppolite
sublinha positivamente a existência dessa duplicidade de registros no d iscur·
so freudiano, assinalando a indica\·ão de uma problemática original enunc ia·
da pela obra freudiana. O discurso fre udiano não seria nem a produção de
uma ciência da natureza nem a elaboração de uma ciência da cultura, mas
uma tentativa ·de articulação entre os registros da natureza e do espírito.~ 7
Nessa perspectiva, o discurso freudiano teria a pretensão teórica de
articular uma filosolia da natureza·e uma filosofia do espírito, sendo jus-
tamente isso o que evidenciaria a duplicidade teórica dos registros de
cientificidade no discurso freudiano. Porém, isso não implicaria enunciar que
o pensamento.freudiano tenha solucionado teoricamente essa problemática
que pretendeu articular, mas a inexistência de solução coerente não retira a
indic.a ção de que esta seria a problemática teórica colocada pelo saber
psicanaHtico.58
Evidentemente, existe um di{Liogo em surdina entre a leitura de Hyp-
polite do discurso freudiano e o desenvolvimento da obra de Lacan, na
OS IMPASSES DA C!ENTlfiCII)ADE NO DISCURSO FREUDIANO 47

medida em que o lugar primordiul desse encontro foi a fenomenologia de


Hegel e o campo da inters ubjetividade, onde esta se fundava na dialética do
senhor e do escravo. Entretanto, esse encontro se revela também na leitura
de Hyppolite da problemática evidenciada pelo discurso freudiano, no qual
a articulação entre a filosofia da natureza e a filosofia do espírito remete para
a demanda de se pesquisar o conceito de pulsão no discurso freudiano. Foi
para a elaboração desse conceito freudiano que o discurso de Lacan teve que
se voltar de maneira sistemátka. qunndo procurou desenvolver a categoria
de real na psicanálise e sair dos impasses colocados pela hegemonia do
registro simbólico. Como logo veremos, foi por este viés também que Lacan
passou a representar a psicanálise como uma prática inscrita no discurso da
ética e não mais no discurso da ciência.

Vlll. O inconsciente como objeto da psicanálise


Antes de seguirmos esse desdobramento teórico da epistemo logia da psica·
nálise, é preciso destacar uma formuluçüo importante sobre a c ientificidade
da psicanálise, enunciada na década de sessenta e que teve em Althusser seu
maior representante teórico. Nessa formulaçiio, a psicanálise se constituiria
efetivamente como um discurso científico, na medida em que produziu um
objeto te6rico, art icu lado de maneira coerente por um método de inves-
tigação e por uma técnica. Esse conjunto delinearia a psicanálise legitima-
mente como uma ciência.59
Esse discurso epistemológico sobre a psicanálise pressupõe um mode-
lo rigoroso de cientificidade, em que se enuncie de maneira positiva as
condições de uma epistemologia regional e se realize a crítica sistemática da
filosofia positivista da ciência. Além disso. pressupõe a existência de uma
ruptura teórica entre o objeto do discurso c ientífico e o objeto do discurso do
senso comum, delineando a historicidade do discurso científico. .
A epistemologia de Althusser inscreve-se na tradição francesa da
filosofia da ciência, que se inicia na década de trinta com Bachelard e que
teve em Canguilhem um de seus mais em inentes herdeiros. Enquanto Bache·
lard constntiu uma imensa obra epistemológica centrada na análise dos
d iscursos da química e da física modernas/,o a pesquisa de Canguilhem se
61
baseou no exame sistemático da biologia e da medicina.
A epistemologia anunciada por G. Bachelard destacava o advento do
discurso cientítico pela constituição de um objeto teórico, que se produzia
medinnte a reulizaçào de um cone epistemológico com o universo do senso
comum. O universo do senso comum se organizava como sendo de ordem
prê-científica, empreendem.Jo-se alruvés ...te pr~ticas técnicas e sociais, regu·
ladas por valores idcológi<.:os, LI~ acordo com a linguagem de Althusser.
48 PSI CANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

Dessa maneira, a constituição de qualquer discurso científico marcaria uma


descontinuidade na história, na medida em que pela invenção de seu objeto
teórico e seu correspondente no campo conceitual se inscreveria uma nova
forma de representação do mundo. Além disso, a descoberta científica
únplicaria a reinvenção da linguagem, no processo teórico de uma repre-
sentação original do mundo.
Esse discurso epistemológico se realizou através de uma crítica radical
da filosofia positivista da ciência, que teve uma incidência fundamental na
França desde a sua formulação por Comte no século XIX, representando de
fato e de direito uma ruptura com a tradição positivista. Com efeito, nessa
tradição teórica formulava-se que a verdade era uma essência substantiva,
inscrita desde sempre no mundo das coisas, e que o trabalho da ciência seria
o desvendamento progressivo dessa verdade absoluta.
Não se enunciava nesse contexto a diferença entre o objeto natural e o
objeto científico, que se superpunham em uma perspectiva científica nortea-
da pela pesquisa de fatos como reveladores da verda<;le. O discurso científico,
portanto, não seria uma construÇ'dO contra as representações ideológicas,
tampouco uma invenção conceitual. Por isso, a filosofia positivista fonnula-
va a não-historicidade interna do objeto da ciência, de maneira que a relação
deste com a linguagem era meramente exterior. .
A leitura da ciência realizada pelo positivismo revelaria portanto que
a história era extrínseca ao discurso científico, pois a história da ciência se
restringia ao relato das descobertas, na biografia dos cientistas, na organiza-
ção das sociedades científicas etc. Não existia uma história da ciência
fundada na construção de novos conceitos e de novos objetos teóricos, isto
é, daquilo que marcaria um novo tempo na história do saber. Em contrapar-
tida. a leitura de Bachela.rd construiu uma idéia absolutamente original da
história da. ciência, onde os impasses e os obstáculos teóricos para a emer-
gência do discurso científico se destacam no primeiro plano da construção
histórica. Com isso, a história da ciência foi fonnulada como sendo pois uma
história eminentemente epistemológica, de forma que a epistemologia de um
certo saber nortearia a construção de sua história conceitual e de seus
obstáculos.62 .
Nessa perspectiva, inauguraram-se as condições de possibilidade para
a concepção de diferentes discursos científicos, considenmdo para isso a
diversidade de seus· objetos teóricos e de seus métodos específicos de
indagação do real. Assim, os diferentes discursos científicos produziriam os
seus métodos e suas técnicas de acordo com a especificidade teórica de seus
objetos. Desponta, então, uma epistemologia regional, em que se reconhece
a diversidade dos diferentes discursos científicos pela diferenciação de seus
objetos teó ricos.63
OS IMPASSES DA CIENTIFICIDAOE NO DISCURSO FREUDIANO 49

Dessa maneira, não seria possível a comparação teórica entre diversos


discursos científicos, pois seria impossível a comparação de regimes epis-
temológicos diferentes. Rigorosamente, não eJtistiria o discurso da ciência
como se formulava no positivismo, mas discursos das ci2ncias, o plural
destacando sua diversidade e difereAc;a epistemológica.
Já no contexto da concepção positivista, o discurso da ciência era
enunciado no singular, o que destacava ·um modelo ideal de cientificidade ao
qual todos os discursos teóricos, com a pretensão de se inscrever no fogos da
ciência, deveriam se adequar de fonna sistemática. Assim, a física foi
enunciada como a ciência por excelência, a realização desse modelo ideal de
c ientificidade no qual deveriam se basear os demais discursos teóricos para
se transformarem em discursos científicos propriamente ditos.
Transfonnada pela tradição positivista da ciência em modelo ideal de
cientificidade ao longo do século XIX, a física era vislumbrada em seus
procedimentos experimentais e em sua linguagem matematizada como o
ideal de qualquer discurso pretensamente científico. Dessa maneira, cons-
tituiu-se o fisicalismo como ideal de cientificidade, o que marcou de maneira
indelével a concepção de Freud sobre o discurso da ciência, onde. ele
procurou inscrever a psicanálise a qualquer custo na retórica da cientifici-
dade.
Foi no campo dessa tradição epistemológica que Althusser enunciou a
cientificidade da psicanálise. Não seria a adequação ao ideal do fisicalismo
que defmiria a inserç·ão da psicanálise no campo da ciência, uma vez que este
ideal seria exterior ao discurso psicanalítico. Este é que deveria definir seus
· critérios teóricos próprios, de acordo com as exigências epistemológicas de
seu objeto teórico. Pot1anto, a psicanálise se constituiria como uma ciência,
na medida em que enuncia a existência de seu objeto teórico: o inconsciente.
Seria a construção coerente deste objeto teórico no discurso psicanalítico que
revelaria a sua cientiticidade. Além disso, a construção deste objeto teóric.o
se inscreve no carnpo da experiência psicanalítica, centrada na transferência
e na interpretação, onde se articulam as exigências do método analítico para
a realização do proçesso psicanalltico. .
Aithusser fuz á critica não apenas das exigências fisicalístas da preten·
são de déscaracierizar a cientificidade da psicanálise, como também das
tentativas de apropriação indevida da psicanálise pelos discursos filosóficos,
sublinhando a originalidade teóricu da psicanálise exatamente naquilo que
constituta problema para o reconhecimento desta pela fil osofia. Assim, o
inconsciente seria o objeto teórico da psicanálise, mediante o qual esta teria
realizado o corte epistemológico com n tradição dn psicologia da consciência
e com o discurso da filosofia consciencialista, possibilitando com isso uma
nova leitura do psiquismo e das perturbações psíquicas.64
50 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

Portanto, Althusser enuncia a cientificidade da psicanálise através do


conceito de inconsciente, reafirmando emão pela positividade deste sua
crítica incisiva à leitura da fenomenologia existencial sobre a psicanálise. ,
Evidentemente, a leitura de Allhusser, centroda no conceito de inconsciente,
é o contraponto filosótico do trabalho teórico realizado por Lacan, no qual o
inconsciente fundado na linguagem foi enunciado como o conceito funda·
mental da psicanálise.65 A leitura de Ahhusser foi a contrapartida epistemo·
lógica do discurso de Lacan sobre a psicanálise centrada no simbólico, onde
o inconsciente foi representado como uma estrutura constituída por um
conjunto diacrítico de significantes e a psicanálise se realizaria clinicamente
no campo da fala e da linguagem.

IX. Desejo e ética na psicanálise


A fundamentação epistemológica da psicanálise, realizada de maneira pri-
morosa por Althusser, não retirou o discurso psicanalítico do campo da
interpretação e da in ter~ubje t iv idade. Ao contrário, no desdobramento da
leitura estrutural de Lacan sobre o simbólico, constituiu o campo da inter-
pretação em psicanálise com maior rigor teórico e afastou de maneira radical
qualquer tentativa de se pretender fundar a cientificidade da psicanálise
segundo os cânones do tisicalismo.
Porém, com o desenvolvimento teórico e histórico da psicanálise como
um saber fundado na interpretação, a questão da cientiticidade da psicanálise
foi sendo colocada paulatinamente em segundo plano. A introdução de
categorias fenomenológicas e existenciais na releitura do discurso freudiano,
por diferentes comentadores de Freud, teve em contrapartida o efeito de
relativizar a impot1ância da questão da cientificidade da psicanálise. O que
não implicou absolutamente a destituição do seu valor teórico e o seu
reconhecimento pelas demais ciênc:ins humanas. Ao contrário, foi no contex-
to histórico desse dt!b:~te rigoroso qut! a psicanálise se t..ansfonnou num pólo
pennanente de questões cntciais para o discurso filosófico e que este não
permaneceu incólume iis questões colocadas pela psicanálise para a raciona-
lidade filosófica.
Além disso, a pesquisa teórica de Lacan passou a encontrar obstáculos
significativos para unia leitura da psicanálise centrada no ~gistro simbólico.
A experiência clínica colocava questões intransponíveis para esta leitura,
pois permaneciam impasses na experiência psicanalítica que eram irredutí~
veis à interpretação teórica pelo registro simbólico.
Foi nesse contexto que Lacan passou a introduzir a categoria de real
na psicanálise, como uma tentativa de interpretur estes efeitos pslquicos
irredutíveis à interpreta\'ão teórica pelo simbólico e pelo imaginário. Esses
OS IMPASSES DA CIENTIFICIDADE NO DISCURSO FREUDIANO Sl

efeitos psíquicos indicavam a demanda de reconhecimento de que existia


algo no psiquismo que não se transformava imediatamente em símbolo e que
existe sempre um resíduo no psiquismo que não era assimilável pelo sistema
de simbolização. Com isso, se reconheciam os limites do registro do simbó·
/ico em psicanálise e a necessidade de se reconhecer efetivamente a dimensão
econômica no psiquismo destacada pelo discurso freudiano, sem que isso
implicasse o discurso fisicalista e o cientificismo em psicanálise.
Assim, Lacan passou a realizar a leitura da energética em psicanálise
e a tematizar pela primeira vez o conceito de pulsão.66 Nesse contexto, foram
possíveis a elaboração do conceito de fantasma com maior rigor e a cons-
tituição do conceito de objeto a como objeto causa do desejo. Com isso, a
experiência psicanalítica foi repensada em suas coordenadas constitutivas e
o lugar do analista foi representado de fonna instigante.67 A economia da
satisfação pulsional e os seus impasses se colocaram no primeiro plano da
experiência psicanalítica, e a pr:.ítica da interpretação ficou subsumida nos
destinos e nos obstáculos do circuito pulsional.
Nessa perspectiva, a psicanálise foi enunciada como um discurso
inserido no campo da ética e não no campo da ctência, na medida em que
indica os impasses pam a inscrição da pulsão no campo da simbolização.
Nesse processo de tmns forma~·ão da pulsão, do registro da força para o
registro do símbolo, sobra sempre um resto, um residuo, que é a condição de
possibilidade para a reprodução do próprio circuito da pulsão.68
Assim, enunciando-se como uma ética do desejo, que não se restringi·
ria mais ao campo do discurso da ciência, a psicanálise seria t~ma experiência
singular que funcionaria como a condição de possibilidade para que o sujeito
acedesse ao desejo singular de sua história e pudesse ao mesmo tempo se
encontrar com os impasses cruciais de suas exigências pulsionais.
Enfim, abordou-se aqui a desistência e a recusa da psicanâlise de se
inscrever no Jogos da ciência, apesar do reconhecimento incontestável de
suas contribuições teóricas para as demais ciências humanas e para a filoso-
fia, e a sua pretensão de se enunciar como uma prática clfnica fundada na
ética do desejo e nos impasses das pulsões nos caminhos para a sua satisfação.

X. Saber, desejo e poder


A problemática da cientiticidade recebeu uma crítica contundente no contex-
to da epistemologia e da tilosofia francesas, através da constituição da
arqueologia do saber e da genealogia do poder empreendidas no percurso
teórico de Foucault desde o inicio dos anos sessenta. A ·crítica de Foucault
ao discurso da ciência e a seus impasses teve efeitos importantes no campo
psicanalítico, não apenas porque a questão da cientificidade em então ~le-
52 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E ClJLTURA

vante para aquele campo, mas porque a psicanálise foi uma problemática
crucial que perpassou toda a obra de Foucault.
Em contraposição à tradição epistemológica francesa pela qual se
formou ~ foi marcado, Foucault realizou uma crítica ao discurso da epis-
temologia, abandonando em suas pesquisas o estudo dos conceitos e dos
objetos teóricos das ciências. Seus estudos, portanto, não se inserem mais no
campo da história das ciências, no sentido cunhado pela tradição de Bache-
Iard e <?anguilhem. Sua proposta teórica seria realizar uma arqueologia do
~aber, 1sto é, como a história <.lo Ocidente construiu certos saberes que se
mscrevem em prálicas sociais de normalização.M Dessa maneira, revela-·se
uma crítica à categoria de verdade, tal como enunciada pela tradição da
epistemologia francesa, pois a verdade dos enunciados teóricos não é deci-
dida por critérios interiores ao campo, mas por valores que se fundam nas
práticas de normalização do social. A leitura de Foucault é marcada peJa
interpretação política dos saberes, apresentando uma crítica incisiva à pureza
conceitual do discurso da ciência. A politização da leitura de Foucault
acentua-se ao longo de seu percurso teórico, quando se deslocou paulatina-
mente da leicura primorosa das episteme:; dos saberes70 para o das estratégias
de normalização implicadas nesses saberes. Esse deslocamento implicou a
passagem da arqueologia do saber para a genealogia do poder.11
Foi nessa perspectiva que Foucault empree ndeu a leitura da história
da loucura no Ocidente, indicando que n superposição da concepção da
loucura com o conceito de doença mental foi um acontecimento histórico
recente e iniciado na aurora do século XIX. Essa leitura da loucura como
doença méntal implicou o não-reconhecimento de qualquer verdade na
loucura.72
Essa tradição não se instituiu imediatamente na história do Ocidente
mas foi longamente preparada desde a Idade Clássica. Assim, no Renasci~
mento a loucura era representada oomo enuncindora de verdade, mas desde
a .Id~e Clássica a loucura foi inscrita no registro da Desrazão e se preparou
h1stoncamente a concepção psiquiátrica do século XIX.13
Foucault localiza essa ruptura social e esta transformação na concep-
ção da loucura no século XVII em dois registros diferentes:
. 1. No registro político-socitll foi constituído o hospital geral, para onde
fo1 expulsa do espaço social a totalidade do universo marginal da Desrazão.
Os loucos se inscreveram no universo da marginalização e foram ativamente
excluidos do espaço social;
2. No registro fi/os6fico. com a constituição da filosofia cartesiana e
do cogito centrado no pensamenro, a Razão foi enunciada como se contra-
pondo à De:sra.zão, de fonnn que o discurso da Razão se identificou his-
toricamente com o discurso da ciência e se contrapôs ao discurso da loucura.
OS IMPASSES DA CIENTIFICIDADE NO DISCURSO FREUDIANO 53

O efeito histórico desse processo foi a perda de qualquer poder de


verdade da loucura, que passou n ser representada como "ausência.de obra".1 4
Entretanto, a não-verdade da loucura se constituiu pelo poder absoluto de
verdade da ciência, de maneira que a Razão se construiu na tradição do
Ocidente pela tentativa de silenciar o universo da Desrazão.
Nessa arqueologia da loucura, a psicanálise é figurada de maneira
dupla e ambígua pois, além de ser enunciada como herdeira da tradição
médico-psiquiátrica do século XIX, retoma a tradição da loucura do Renasci-
mento. Com efeito, Foucault sublinha a pretensão freudiana de reconhecer a
verdade da loucura, onde a loucura seria a fonna de o sujeito dizer a verdade
de sua história e poder assumir a verdade de seu desejo. Enfim, Foucault
ret~ma positivamente a psicanálise como um saber da interpretação, pois
sena a restauração da loucura como poder de verdade pela interpretação que
estaria no fund amento do discurso freudiano.
Posteriormente, a leitura de Foucault da psicanálise se transformou,
com a passagem da arqueologia do saber para ·a genealogia do poder. O
imponante agora seria a inserção da psicanálise numa série de teénotogias
de produção da subjetividade e da sexualidade, que desde o século XVIII
disciplinaram os corpos no Ocidente. A psicanálise seria uma das tecnologias
que se inser~ram nesta estratégia de normalização, onde as yerdades que ela
pode enunc1ar sobre o sexual e o desejo se inscrevem lambém· nesse dis-
positivo social de normalização dos corpos.n
Esse último discurso de Foucault sobre a psicanálise como uni poder
de normalização do sexual é o contraponto histórico e temático do discurso
de Lacan da psicanálise como uma ética do desejo. Para ambos, portanto,
não é mais a problemática da cientificidade da psicanálise que está em pauta
nos anos setenta, mas as probl~máticas da ética, do poder e do desejo.
. . Enquanto para Lacan enunciar a psicanálise como uma ética do desejo
1mphca encontrar uma alternativa possível para a psicanálise como saber, na
exterioridade do registro da ciência, para Foucault os seus enunciados sobre
o poder nonnalizador da psicanálise implicam indicar a sua impossibilidade
histórica e os seus impasses. ·
Leituras sobre a cientificidade da psicanálise 1

I. A transformação de um paradigma

A questão da cientificidade do d iscurso freudiano sempre se colocou como


uma problemática crucial na história dn psicanálise, impondo-se essa in-
dagação do interior do movimento psicanalítico e de sua exterioridade,
representada pelos discursos da filosofia e de diferentes campos cient1ficos.
Desde os primórdios da psicanálise, essa questão se apresentou de maneira
premente, quando Freud e seus principais discípulos sustentaram a legitimi-
dade da inserção do saber nascente no registro da razão cient1fica. Essa
pretensão do campo psicanalítico enconcrou oposições gigantescas, oriundas
dos discursos epistemológico e científico. A problemática que se colocava
no calor do embate era sobre o estatuto teórico e o fundamento do saber
psicannlhico, caso esse não pudesse se inscrever no campo da razão cient1·
fica.
Este apaixonante debate teórico prosseguiu durante décadas, sempre
recomeçando o embate entre os opositores. Enrretanto, desde os anos ses-
senta a sua chama vem se apagando progressivamente, de fonna que atual-
mente a questão da cientificidade da psican:Hise não é mais considerada uma
questão primordial, colocando-se de maneira secundária nos campos da
filosofia e da psicanálise. Neste contexto, a psicanálise foi reconhecida como
uma modalidade de saber legítimo, sem <1ue isso implicasse necessariamente
em qualquer reivindicação sobre a sua cientificidade, por parte dos analistas,
e sobre seu reconhecimento como ciência, por parte da filosofia. Em suma,
a questão da cientificidade não fu ncionava mais como um critério absoluto
de valor nos campos filosófico e cultural, para o reconhecimento da legiti-
midade de qualquer modalidade de saber.
Podemos depreender então que se processou uma transfonnação radi-
cal no paradigma regulador dos campos da epistemologia e da filosofia, onde
a questão da verdade se deslocou do registro da ciência e migrou pnra um

54
LEITURAS SODRE A CIENTIFICIDADE DA PSICANÁLISE 55

território simbólico regul~1do pelos registros da linguagem, da ética e da


po/itica. O que se coloca agora como wna problemática teórica crucial
não é a indagação sobre o que é a verdade, as suas certezas e a sua
irrefutabilidade, mas como se realizam a sua produção, a sua recepção e
a sua reprodução no espaço sociaL O que está em pauta é o agenciamento
sócio-político e lingüístico da verdade, as suas formas de difusão no
tecido social e as modalidades de sua apropriação como certeza ir-
refutável.
Assim, além de consider:umos que durante este século a psicanálise
conquistou um lugar no mundo, nas tradições culturais do Ocidente, onde foi
reconhecida como uma modalidade legítima de saber e pôde se difundir no
tecido social, existe também nesta não-cobrança atual sobre a cientificidade
da psicanálise uma evidente transfonnação do paradigma teórico que regula
a leitura dos saberes. Esse paradigma, centrado anterionnente no registro da
cientificidade, constituído numa longa tmdição iniciada no século XVII e
que se desenvolveu muito desde o século XIX, desloca-se agora para os
registros da linguagem, da ética e da política. Como não poderia deixar de
ser, pois a psicanálise se desenvolveu teoricamente t:unbém no diálogo com
o que lhe em exterior, o saber psicunniÚico foi marcado em sua leitura pela
incidencia desses diferentes paradigmas. Se inicialmente a questão de sua
cientificidade obcecava os teóricos, essa exigencia, agora, se não caiu
inteiramente por term, passou a ocupar um lugar secundário no campo do
debate teórico sobre a psi<.-análise.
O que pretendemos esboçar neste ensaio é a incidência de diferentes
modelos de ciemift eültule no discurso psi<.·analítico, assim como o desloca·
mento da questão da cientilicidade de um lugar centml, no debate atual sobre
a psicanálise. Inicialmente, vamos definir alguns impasses sobre a cientifi·
cidade, que se desenvolveram no campo do discurso freudiano. Em seguida,
indagaremos como a psicanálise pretendeu se transformar numa ciência
empírica, apresentando a si própria impasses para a verificação de suas
hipóteses metapsicológicus. O passo seguinte será indicar como se pretendeu
transfonnar a psicanálise num saber do sujeito e da interpretação, quando
encontrou maiores possibilidades de desenvolvimento. Finalmente, veremos
como este debate se desloca na atualidade e de que modo a questão da
cientificidade tende a ser silenciada.

11. Impasses epistemológicos no discurso freudiano


A relação do discurso freudiano com â problemática da cientificidade foi
marcada pelo paraâo.r.o pois, se inicialmente Freud pretendeu constituir a
psicanálise como uma ciência rigorosamente natuml,2 a impossibilidade
56 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

desse projeto teórico foi se impondo pouco a pouco em seu percurso intelec-
tual. Assim, apesar d a exigência de cientificidade para a construção
rigorosa da psicanálise, baseando-se para isso nas ciências naturais e em
sua demanda de quantificação, o d iscurso freudiano se desenvolveu de
fato e de direito como uma ciência da cultura, centrado na categoria de
interpretação.3
Este paradoxo acompanhou todo o desenvolvimento histórico do dis-
curso freud iano, sendo esta duplicidade de modelos epistemológkos um dos
responsáveis pelos desdobramentos históricos que marcaram a epistemolo-
gia da psicanálise em diferentes tradições culturais. Assim, se a tradição
anglo-americana sempre pretendeu que a psicanálise fosse uma ciência
empírica, submetida aos processos objetiváveis de verificação, a tradição
francesa procurou fundá-la como um saber da interpretação. Antes de esbo-
çarmos em linhas gerais essas diferentes tradições epistemológicas da psica-
nálise, vamos sublinhar as contrndições presentes no discurso freudiano
sobre essa questão. .
Fonnado como pesquisador no cnmpo da neuro-anatomia e como
médico neurologista, num contexto cultural marcado pela filosofia da natu·
reza e pelo positivismo científico, Fre ud pretendia que a psicanálise se
constituísse como uma ciência natur.tl, segtl;lrlo o modelo quantificável da
fisiologia. Posteriormente, a constituiçllo do Círculo de Viena, com sua
leitura crítica da metafísica e procurando fundar a especificidade do discurso
científico, teve uma incidência cn1cial no estabelecimento dos cãnones de
cientificidade do discurso freudiano.
Com efeito, se a psicanálise pretendia sé constituir como uma ciência
seria necessário que a sua constmçào teórica fosse realizadacomproposições
com sentido, isto é, proposições que pudessem ser verificadas como fatos da
experiência. Caso contrário, seriam as suas proposições sem sentido, inscr~­
vendo-se então no campo da metaflsica.
Se o discurso freudiano procurava construir a metapsicologia com
a linguagem dominante das ciências da época - a fi siologia, a termodi-
nâmica e a psicofís ica - . em contr.lpanida o que se constituía era uma
modalidade de saber centrado na interpretação e na existê ncia da trans-
ferência. O discurso freudian o procurava superar este impasse epis-
temológico, enunciando a c:xigênciu de rememoração no processo
analítico como o critério fundamental de verificação de suas hipóteses
metapsicológicas e clínicns.4 .
Entretanto, as contradições teóricas se avolumavam no d1scurso freu-
diano. Nilo podendo construir propo:;ições empíricas irrefut.áveis, ide. õltifica-
va freqOentemente n ps icnnúlise à prúticu da "especulação",5 superpondo-se
então com a tilosotit ·Assim, como uma modalidade de saber da interpreta-
LEITURAS SOBRE A CIENTIFICIDADE DA PSICANÁLISE 51

ção, a psicanálise se aproximava perigosamente da filosofia e poderia se


transformar em uma v isão de mundo. Este era o risco primordial da metatl-
sica, pois, misturando as representações de palavra e as representações de
coisa,6 perdia os limites sobre o que poderia dizer com rigor sobre os objetos
do mundo.
Era este o terror das proposições sem sentido. Na tradição cientifica
alemã da segunda metade do século XIX- em que predominava a crítica
ao projeto panlogista e totalizante de Hegel? ao lado de uma proposta
teórica de retomada da filosofia de Kant, por representar a crítica da
metafísica - ,8 qualquer signo de "especulação" e de não verificação das
proposições teóricas indica va o descaminho da razão científica e o retomo
à metafísica. Evidentemente, essa possibilidade era aterrorizante para
Freud, que pretendia que a psicanálise fosse reconhecida conio um dis·
curso científico. Não obstante, no discurso freudiano, a psicanálise como
metapsicología se identificava freqüentemente com a metafísica, e mes-
• mo com a bruxaria.9
Podemos }lpreender pela leitura do discurso freudiano um duplo
conjunto de enunciados teóricos, pelo menos. O discurso freudiano não é
unívoco e homogêneo quanro a isso, mas plurivoco e heterogêneo. Por
isso mesmo, é um discurso polêmico no que conceme à questão da
científicidade.
Pelo primeiro conjunto de enunciados teóricos pode·se sublinhar a
existência da exigência episremológica, no discurso freudiano, de que a
psicanálise fosse fundada como uma ciência rigorosa, de base empírica e
verificacional, como as ciências naturois. Entretanto, pela presença simultâ-
nea de um segundo conjunto de enunciados, não apenas se reconhece a
impossibilidade deste projeto epistemológico, como também se anuncia e se
realiza a construção de um sa.be r da interpretação. Sublinhando a dimensão
hennenêutica da psicanálise e inscrevendo-a no campo das ciências da
cultura, o discurso freud iano acaba por inserir a psicanálise na tradição da
filosofia e da mística. ~
Porém, nos momentos teóricos do discurso freudiano em que os
paradoxos e as impossibilidades de anicuJação entre estes diferentes modelos
epistemológicos se impuseram de maneira t1agrante, como quando construía
a "Metapsicologia", Freud tenta contornar o obstáculo pela afirmação de que
os conceitos fundamentais de qualquef ciência são "convencionais", poden-
do, pois, ser constituídos e substituídos confonne o desenvolvimento e os
desdobramentos do seu campo empírico. 10 Por isso mesmo, os conceitos
"especulativos" da psicanãlise poderiam ser propostos para ordenarem o
campo empírico e serem descartados em seguida, em função das novas
exigências desse campo.
58 PSICANÁLISE. CIENCIA E CULTURA

111. O naturalismo na psicanálise


Esta duplicidade de modelos epistemológicos inscreve-se em diferentes
tradições filosóficas e psicanalíticas. A difusão e a expansão da psicanálise
em difecente.s undições culturais c.lo O~idente · tiveram como um de seus
efeitos inevitáveis a sua recepção, incorporação e interpretação segundo os
paradigmas sociais vigentes. Isso significa que o discurso freudiano foi
objeto de leituras teóricas diferenciadas e que, de acordo com as categorias
símbólicas dominantes nessas tradições culturais, privilegiaram-se detenni-
nadas dimensões desse discurso no lugar de outras. A questão da cienti-
ficidade foi retomada de diferentes maneiras nesses diferentes contextos
culturais, explorando sempre, porém, as virtualidades imanentes ao discurso
freudiano.
A tradição anglo-amerkana da psicanálise realizou a sua leitura do
discurso freudiano nele destacando o seu ideá rio neopositivista de cientiftci-
dade. Vale dizer, a psicanálise deveria se adequar aos cânones de verificação
experimental, construindo as suas proposições teóricas de forma a pos-
sibilitar esta verificação, se quisesse ser reconhecida como inscrita no campo
da razão científica. Em contrapartida, a tradi~·ão francesa realizou uma leitura
da psicanálise baseada no modelo da interpretação. procurando construir
uma teoria do sujeito em psicanálise. Portanto, nessa última tradição teórica
o discurso freudiano foi retomado no campo do pensamento hennenêutico.
Consideremos inicialmente a tradição anglo-americana da psicanálise.
Pretendemos destacar esquematicamente algumas das linhas de força que
foram constitutivas do discurso psi~an:1lítico, assim como as principais
críticas epistemológicas à psicanálise, tendo a questão da cientificidadecomo
o eixo teórico fundnmental para a leitura crítica.
Na teoria psicanalíticn, n denominada psicologia do ego, desenvolvida
nos Estados Unidos por Hartmann, Kris e Lowenstein,11 foi indiscutivel-
mente o projeto teórico mais importante para que a psicanálise se constituísse
como um saber científico, centrado no modelo empírico de verifiCação
experimental. O modelo epistemológico da cientificidade natural regulava a
construção desse projeto teórico. Pam isso, a psicanálise não era considerada
como um saber autôt1omo, circunscrito por um objeto teórico-especifico, mas
deveria corresponder a um ten·itório no interior do campo mais abrangente
da psicologia geraL Portanto. a psicanálise era reconhecida como uma
modalidade da psicologia. não tendo fitce a essa qualquer especificidade
teórica.
Nesta perspectiva, a psicologia era representada como uma teoria
adaptativa do OJianismo e do indivíduo, estudundo as relaçoos do organis-
mo/indivíduo com o seu meio ambiente. Neste contexto, a psicanálise se
LEITIJRAS SOBRE A ClENTIFICIDADE DA PSICANÁLISE 59

fundaria na biologia e na etologia, construindo-se teoricamente como uma


concepção desenvolvimentista do ego, centrada no crescimento e no amadu-
recimento conseqüente de suas funções adaptativas às exigências diversifi-
cadas do meio ambiente. No campo teórico assim delineado, foi possível
representar a existência de um ego livre de conflitos, não marcad.o pela
incidência do narcisismo e da sexuação, denominado de região autônoma do
ego.
Para a realização desse projeto teórico, a psicologia do ego precisava
transfonnar a metnpsicologia freudiana, para torná·la conceitualmente veri-
ficável e quantificada pela pesquisa empírica. Em suma, seria preciso retirar
da metapsicologia freudiana a sua dimensão "especulativa", como o escan-
daloso conceito de pulsão de morte, para transfonná-la numa teoria opera-
cionalmente verificável e testada pela pesquisa empírica. Desta maneira, o
discurso psicanalítico foi utilizado, no exterior do espaço analítico e trans~e~
rencial, para a realização de pesquisas empíricas que pennitissem não apenas
comprovar a validade de suas hipóteses rnetapsicológicas, mas também
pennitir o seu desenvolvimento em outros contextos. Com isso, tematizou-se
a oposição entre a psicanálise "pum" e a psicanãlise "aplicada", a primeira
encontrando na clínica psic.."analítica o seu modelo ideal e a segunda
provocando seu deslocamento para outros contextos experimentais.
Apesar dos evidentes esforços teóricos da psicologia do ego para
transfonnar a psicanálise numa ciência rigorosa, segundo os critérios epis-
temológicos da ciência natural, a filosofia da c iência vinculada à tradição
neopositivista não reconheceu a validade teórica dessa pretensão. Indiscuti·
velmente, foi de Nngel a crítica recente mais importante desta pretensão do
discurso psicanalítico em ser trnnsfonnado numa ciência rigorosa, pois a
12
metapsicologia psicanalítica .não pem1itiria a sua validação empírica. Por-
tanto, os conceitos fundamen tais da psicanálise, que consubstanciavam a
base teórica da concepção do aparelho psíquico, não ernm passíveis de
validação experimental e, conseqiíentemente, a psicanálise não poderia se
inscrever no campo da razão científica.
Entretanto, esse embate teórico já fora apontado e se iniciara hã várias
décadas, com as críticas de Wittgenstein e de Popper à ciemificidade da
psicanálise. Para Wittgenstein, a psicanálise nüo poderia se inscrever no
discurso científico, , na medida em que as suas proposições seriam sem
sentido, isto é, não seriam passíveis de serem veriticadas pela validação
empírica,13 enquanto que, para Popper, a não cientifiCidade da psicanálise se
fundaria em sua impossibilidade teórica em prouuzir argumentos para a sua
refutabilidade. 14
Com as fil osofias de Popper e de Wittgenstein nos defrontamos com
duas epistemologias fundamentnis da modernidade, que criticaram rad ical·
60 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

mente a psicanálise como ciência, e que tiveram um impacto gigantesco na


cultura anglo-saltônica. Cabe recordar, porque isso é historicamente impor~
tante, que ambos os autores se fonnaram filosoficamente no Círculo de
Viena, ape'sar de suas diferenças de perspectivas teóricas.

IV. Sujeito e interpretação na psicanálise


A tradição francesa da psicanálise caracterizou-se pela tentativa sistemática
de fundamentar uma leitura do discurso freudiano como uma ciência da
cultura e não como uma ciência da natureza. Seria preciso destacar que os
enunciados do discurso freudiano deveriam ser considerados como se
inscrevendo em relações de sentido e não em relações de causalidade. Neste
contexto, a psicanálise se caracterizava do ponto de vista epistemológico
como um saber da interpretação. Por isso mesmo, no campo dessa leitura
teórica, destaca-se a questão da linguagem como a problemática fundamental
do campo psicanalítico, articulada com a questão do sujeito.
Nesta perspectiva. estabeleceu-se uma oposição fundamental na leitura
crítica do discurso freudiano pela tradição francesa, onde se contrapunham
radicalmente nesse discurso os enunciados metapsicológicos e os enuncia-
dos hermenêuticas. Nessa oposição considerava-se que os enunciados me-
tapsicológicos eram tributários de uma leitura causalista do psiquismo,
enquanto os enunciados hennenêuticos seriam decorrentes de uma leitura
interpretativa.
Estabeleceu-se, então, uma hierarquia teórica entre os escritos freudia-
nos, de fonna que se os escritos metapsicológicos não eram desprezados
teoricamente, eram, contudo, submetidos à grade de interpretação regulada
pela perspectiva hennenêutica. Portanto, criticava-se a metapskologia freu~
diana pela presença massiva de pressupostos teóricos do mecanicismo fisi-
calisla, destacando-se, em contrapartida, o método de descoberta anunciado
no discurso freudiano, fundado no espaço psicanalítico e na prática da
imerpretação. Enfim, a solução teórica do impasse seria a retirada de qual-
quer autonomia epistemológica da metapsicologia, através de sua inserção
no quadro teórico de um snber da interpretação.
A genealogia teórica dessa linha de pesquisa encontra inequivoca-
mente na leitura crítica de Politzer, empreendida sobre o discurso freudiano,
a sua origem histórica e epistemológica. Em seu já clássico Crítica dos
fundamentos da psicologia, publicado em 1928, Politzer·enfatizava o seu
projeto teórico de constituição da "psicologia concreta", que já se encontrava
em andamento, com o desenvolvimento da psicanálise, do behaviorismo e
da psicologia da fonna. A denm:ninada "psicologia concreta" já se anunciava
em estado de esboço teórico, daí o seu não acabamento, pelas realizações
LEITURAS SOilRE A CIENTIFlCIDADE DA PSICANÁLISE 61

desses diferentes discursos psicológicos. Entretanto, preçisava ser pensada


em seus fundamentos epistemológicos para se constituir como urna teoria
coerente e marcar o seu rompimento com a denominada "psicologia clás-
sica''. 15
Entretanto, a psicanálise se destacava na modernidade face aos demais
discursos psicológicos, na medida em que constitufra não apenas uma leitura
do sujeito centrada na linguagem, mas porque também construiu um espaço
dialógico com a cura psicanalitica. Com isso, possibilitava a colocação em
cena do sujeito concreto. Neste contexto, enunciou-se o conceito de drama
como o correlato do sujeito concreto, falando para um outro, delineando
então a sua existência em uma situação dramática. 16
. Se esses pressupostos indicavam a originalidade teórica da psicanálise,
em sua colaboração impar para a construção da "psicologia concreta" e para
a crítica da psicologia introspectiva, o discurso freudiano através da cons-
trução da metapsicologia corresponderin a um retorno à "psicologia clás.:
sica". Isso porque a metapsicologia freudiana empreenderia uma leitura
pretensamente causalista e mecanicista do psiquismo, que não corresponde
ao seu grande avanço teórico, isto é, um método de interpretação do sujeito,
centrado nas categorias de drama e de significação. 17 Enfim, o discurso
metapsicológico seria uma espécie de obstáculo epistemol6gico18 para o
desenvolvimento da psicanálise, cuja ruptura teórica com a "psicologia
clássica" se realizou justamente pela constituiçiio de um método de interpre-
tação fundado no sujeito.
Em 1936, Dalbiez retoma, com outros conceitos, a mesma direção
teórica definida pela leitura de Politzer, mas mantendo a mesma estrutura
cótica. Assim, ao opor método psicanalítico (experiência analítica e interpre-
tação) e doutrina psicanalitica (metapsicologia), destacava que a inovação
freudiana se. fundava no campo do método de interpretação, enquanto que a
doutrina metapsicológica não apresentava qualquer consistência teórica.19
Nos anos quarenta e cinqüenta, o existencialismo sartriano20 e a
filosofia fenomenológica21 de Merleau-Ponty criticaram a psicanálise em
seu registro metapsicológico, argumentando que essa leitura do psíquico era
mecanicista, tendo como conseqüência nefasta a coisificação e a objetivação
do sujeito. Em contrapartida, destacavam a inovação frelftfiana em sua leitura
interpretativa do psíquico. Porém, a dimensão interpretativa da psicanálise
deveria ser retomada em outras bases teóricas, ao se eliminar a metapsicolo-
gia freudiana, Se destacando aqui as categorias de existência, de íntenciona-
lidade e de intersubjetividade.
Da mesma fom1a, a oposição teórica entre metapsicologia e inter-
pretaçio estava presente na leitura que Ricoeur empreendeu do discurSo
freudiano nos anos sessenta, em sua pesquisa sistemática voltada para a
62 PSICANÁLISE. CJ ÊNCIA E CULTURA

construção de uma hennenêutica geral. 22 Assim, Ricoeur indicava a exis-


tência de uma contradição interna ao discurso freudiano, polarizado entre a
energ_ética ~metaps!cologi_a) e o s~ntido (interpretação).2:r O campo teórico
~a ps1canáhse, porem. sena defimdo de fato e de direito como um saber da
Interpretação, de maneira que as suas proposições energéticas deveriam ser
cons1deradas num contexto eminentemente hermenêutica.
Ape_sar de intelectualmente inspirado nessa tradição teórica, marcada
pela opostçã~ entre metapsicologia e interpretação, Hyppolite pretendeu
superar ess~ 1mpasse e ~ssa duplicidade de modelos de cientificidade pre-
~ntes no dtsc~rso freudtano. Assim, em vez de se descartar da metapsicolo-
gJa ~a.ra sub1mhar a henn~nêutica freudiana, Hyppolite enunciou que a
duphc1dade de modelos ep1s!emológicos presentes no discurso freudiano
indicava um problema teórico. Nesta perspectiva, formulou que tal duplici·
dade revelava uma problemática teórica enunciada pelo discurso freudiano,
através da qual~ procurava resolver o impasse entre os regisiJ'os da natureza
e da .cu~tura. D1to de outra maneira, o discurso freudiano pretende~ se
conslJ!utr como uma problemática que articulasse a filosofia da natureza e a
filosofia ~o espírito, on<.le .a metapsicologia se inscreveria na primeira ver-
tente teónca e a hennenéuuca na segunda. 24 Se o discurso freudiano solucio-
nou e.ssa articulação é outra questão. mas seria essa a problemática teórica
constituída pela psicanálise.

V. Linguagem e psicanálise

~ crítica de Hyppolite sobre a epistemologia do discurso freudiano já se


mscreve no cont~xto histór~co da psicanálise francesa, marcada por um
grande desenvolvunento re6nco, que encontrou indiscutivelmente na pesqui-
sa de Lacan a sua maior referência e inventividade conceitual. Interlocutor
destac~dC: no pe~~rso intelectual de Lacan, tendo a filosofia de Hegel como
a medtaçao mats Importante deste diálogo, Hyppolite já indica um outro
momento histórico nas relações entre a filosofia e a psicanálise na França.
Da mesma forma, Sartre e Merleau-P0111y também realizaram esta interlocu-
~ão. da filosofia ~om a psicanál i~e, tendo na figura de I,.acan o seu dialogante
mdtreto, na me~1da em que ~altzaram us suas leituras críticas da psicanálise
qua~do Lacan JU desenvolvta a sua interpretação do percurso freudiano. As
med1ações teóricas aqui se realizaram através da filosofia de Husserl e de
Heidegger, sem falar no lugar estratégico ocupado pela filosofia hegeliana.
Entretanto, não há qualquer dúvida de que os ensaias de Hyppolile revelam
uma ruptura importante. no diálogo entre a filosofia e a psicanálise, jus-
tamente porque a fHosofta se mostra lllU is penneáveJ ao impacto do discurso
LEITURAS SOBRE A CIENTIFICIDADE DA PSICANÁLISE 63

freudiano, podendo repensar em seus termos as proposições teóricas da


psicanálise.
Desde o início de seu percurso teórico na psicanálise, Lacan retomou
em seus tennos a oposição conceitual traçada por Politzer entre metapsico-
logia e saber da inteipretação, em que critica os impasses epistemológicos
da metapsicologia freudiana e ressalta a impmtãncia da psicanálise como
saber da inteipretação. O que Lacan desenvolveu de maneira brilhante foi
uma teoria do método psicanalítico que dispensaria a metapsicologia freu-
diana, principalmente em seu regisuo econômico. Em contrapartida,
empreendeu a consiJ'ução rigorosa do método da interpretação e do funcio-
namento do dispositivo psicanalítico. Neste contexto, destacam-se as cate-
gorias de sujeito, sentido e in terlocuçiio, deI ineando-se o campo psicanalítico
pelos eixos da linguagem e da imago. Desta maneira, baseando-se em Hegel,
Husserl e Heidegger. assim como na psicologia d.:l forma e na etologia, Lacan
propõe uma leitura do sujeito em psicanálise fundada na interpretação, onde
o registro econômico da metapsicologia freudiana é descartado.25
Apesar da mudança radical em alguns de seus referenciais teóricos nos
anos cinqüenta, com a introdução da lingüística de Saussure e a concepção
de simbólico de Lévi-Strauss, a estrutun1 do discurso teórico de Lacan
manteve a mesma posição crítica face à metapsicologia e fundou com maior
rigor o campo freudiano c:omo um saber da interpretação. Neste contexto, a
psicanálise foi definida como "o campo da fala e da linguagem", marcado
pelas incidências do símbolo e pelo domínio do registro simb61ico, de
maneira que o conceito de inconsciente foi <.letinido como "transindividual"
e ordenado "como uma linguagem". 26
Foi neste momento tl:!óri<.:o e histórico que a cientificidade da psicanã·
lise, segundo os cânones de um saber da interpretação, atingiu o seu apogeu
e o iluminisma.psicanalítico foi alçado ao seu maior esplendor teórico.
Assim, Lacan pretendeu fundar epi.stemologicamente a psicanálise na lógica ·
do significante, base teórica para a construção do conceito de inconsciente e
da teoria psicanalítica d<l inteipretação. No campo da filosofia francesa foi
Althusser quem legitimou a.fundamentação científica da psicanálise. que
finalmente reencontrou com Lacan a mpturu epistemológica realizada ~or
Freud, após uma longa história de impasses e de obstácu~s conceituais.

VI. A étka e a política


"los anos sessenta essa solução reórica já indicava as suas contradições e as
suas impossibilidades, relacionadas possivelmente com os impasses apresen-
tados no ato psicanalítico. Com isso, Lacan retomou o registro econômico
da metapsicologia freudiana. trabulhando então, pela primeira vez em sua
64 PSICANÁLISE. CIENCIA E CULTURA

obra, o conceito de pulsão. Com a introdução do conceito de pulsão e a


articulação correlata do regis1ro do real em psicanálise, o que está em questão
é o projeto da psicanálise ser uma c iência. Com efeito, o que Lacan passa a
enunciar é que a psicanálise é uma ética e não uma ciência. Como desdobra·
mento teórico desta fomlulação surge a concepção de que no campo freudia-
no o inconsciente é é tico e não ôntico. 28
A inflexão final do discurso de Lacan marcou de forma contundente a
ruptura interna da psicanálise com os cãnones de cientificidade, deslocando-
se a sua fundamentação do registro da ciência para o da ética. Entretanto, é
possivel indicar tantbém esta mudança de paradigma, no exterior da psica-
nálise, no campo da filosofia e da história dos saberes.
A leitura de Foucauh da psicanâlise é e loqüente na abordagem dessa
mudança de paradigma que fundamentava a emergência histórica e o desen-
volvimento do d:scurso psicanalítico. Assim. desde os anos sessenta, Fou-
cault procurou inscrever a psicanálise no campo da política e da ética,
colocando indagações cruciais para a sua fundamentação como ciência. Para
isso. realizou uma arqueologia da loucura na história do Ocidente, destacan-
do a constituição da psiquiatria e da psicanálise na produção moderna da
loucura. Sem entrar aqui nos pormenores dessa monumental pesquisa, cabe
ressaltar como Foucault diferenc ia a psicanálise da psiquiatria, exatamente
porque a psicanálise pern1itiria que a loucura fosse reconhecida como ver-
dade, ao inserir o louco no campo tmnsferencial e intersubjetivo da experiên-
cia psicanalírica.29
Neste contexto, é evidente o compromisso teórico de Foucault com a
tradição interpretativa da psicanálise, como mostra o lugar que concedeu à
questão da linguagem e da verdade no discurso freudiano. Além disso, é
evidente o impacto teórico na sua leitura de algumas das concepções de
Lacan. Não obstante, Foucault já circula num outro paradigma teórico, pois
já não trabalha mais no campo definido pela oposição ciência versus não-
ciência, mas na construção histórica de práticas discursivas imantadas nos
registros político e ético.
Foi em sua genealogia da sexualidade no Ocidente e na construção de
saberes sobre o sexual que o paradigma político se desenvolveu de fonna
mais contundente, paro fundar a constituição da psicanálise. ~om efeito,
Foucault passa a criticar radicalmente o modelo estrutural de Lacan e a lógica
do significante, além da concepção do desejo em psicanálise. Ao desejo
lacaniano. Foucauh contrapõe a vontade de poder de Nietzsche, inserindo
então a psicanálise no dispositivo de poder da modernidade, como uma das
formas privilegiadas de produção do sujeito.30
Assim, apesar de suas diferenças teóricas evidentes e da impossibili·
dade de sobrepor essas duas leituras da psicanálise- Lacan pretende fundar
LEITURAS SOURE A CIF.NllACIDADE DA PSICANÁLISE 6S

uma ética do tlesejo e Foucault um:t ética na ••ontatle ele poder -,é nítido
o deslocamento do ·pan.tdiglil:t teórico que regula a leitura da psicanálise.
Com efeito, em ambos se destaca o deslocamento teórico do debate do campo
48 ciência para os campos da ética e da Política. Podemos dest:&e.nr também
que a le itura de Deleuze sobre a psicanálise indica o mesmo deslocamento
de paradigma teórico. 31 É nesse terreno que se joga agora os destinos teóricos
da psicanúlise, tícando como evocação do passado a consideração da cienti-
ficidade da psicanálise como lugar privilegiado para a sua fundamentação
teórica.
A filosofia e o discurso freudiano:
Hyppolite, leitor de Freud

I. Renovação na leitura de Hegel

Jean Hyppolite nasceu em Jonzac em 1907 e faleceu e1n 1968, contando com
a idade de sessenta e um anos. Realizou um longo percurso intelectual no
campo da filosofia francesa, desde professor para o curso secundário na
província até os postos mais avançados do magistério. Assim, ensinou na
Universidade de Strasbourg ( 1945-1948) e na Sorbonne ( 1949-1954). Em
seguida, foi diretor da École Nonnal Supérieure, onde ficou até 1963, quando
então assumiu a posição de professor do Collêge de France, onde pennaneceu
até sua morte.2
A obra que nos legou é admirável em diferentes dimensões. Ela se
caracteriza não apenas por sua multiplic:idade- com Hyppolite demonstran-
do um pleno domínio do idealismo alemão e da filosofia modema3 -.como
tanlbém pela originalidade de sua leitura de Hegel. Como especialista em
Hegel, traduziu para o francês Afenomenologia do espírito,4 e nos ofereceu
como tese um comentário magistral desta obm,5 que desde então constitui
uma das fontes fundamentais para a formação de intelectuais interessados na
filosofia de Hegel.
Nesta retomada de pensamento de Hegel, o que caracteriza a interpre-
tação de Hyppolite é o lugar fundamental atribuído ao discurso hegeliano na
filosofia moderna. Vule dizer, Hegel n;io é considerado apenas um filósofo
importante do século XIX dentre vários outros, que dada a sua relevância
exige dos comentadores da história da lílosofia a realização da exegese de
seu discurso. Pelo contrário, a filosofia hegeliana seria nesta leitura a matriz
da filosofia moderna.
Com efeito, pam Hyppolite o<.·ampo de incidência da filosofia de Hegel
é mais abrangente, pois as problem:íticas teóricas delineadas pelo pensamen-
to de Hegel encontram-se no fundamento da filosofia moderna. Assim, em
sua leitura, as grandes tendências do pensamento moderno encontraram as

66
A FILOSOFIA E O DISCURSO FREUDIANO 67

suas origens nas problemáticas constituídas pOr Hegel e, ·por isso mesmo,
estabeleceriam um diálogo pemlaneote com o discurso hegeliano, seja este
realizado de maneira direta ou indireta. ·
No que tange à tradição filosófica francesa, a intrOdução do discurso
hegeliano assumiria uma feição pm1icular e deveria ter um- efeito decisivo,
além da característica a que nos referimos acima. Com efeitO:, para Hyppolite,
os pressupostos da filosofia hegeliana permitiram introduzir a dímens4o
histórica na leitura dos problemas filosóficos, perspectiva de abordagem que
estaria ausente na história da filosofia na França de Descartes a Bergson.6
Autor fundamental na retomada histórica dos estudos hegelianos na
França, ao lado tle Jean Wahl7 e Alexandre Kojeve,8 Hyppolite foi também
a mediaçãofundamental para o e:itabelecimento de um diálogo fecundo entre
a filosofia e a psicanálise. Esta arti~ulação entre filosofia e psicanálise foi
possibilitada,por um lado, pelo discurso de Hegel e, pelo outro, pelo "retomo
a Freud" promovido pela investigação de Lacan desde os anos cinqüenta.
Evidentemente, este encontro teórico entre Hyppolite e Lacan não foi
fortuito, pois apesar de enunciarem discursos diferentes e se inserirem em
campOs diversos do saber, ambos se fundamentaram na filosofia de Hegel.
Por isso mesmo, este encontro se inscreve na história da filosofia francesa,
que desde os anos trinta retomou o pensamento de Hegel e construiu as bases
teóricas para uma nova interpretação do seu discurso.9
Neste contexto, se empreendeu a releitura da filosofia de Hegel por J.
Wahl, A. Kojêve e J. Hyppolite, na quul foi atribuído destaque especial aos
textos iniciais de Hegel e principalmente A fenomenologia do espírito. 10
Nesta obra, a dialética do senhor e do escravo 11 ocupou uma posição
fundamental para a elucidação do pensamento hegeliano e para a exegese da
totalidade de seu discurso filosófico. Assim, mediante o destaque atribuído
à dialética do senhor e do escravo, é sublinhada no discurso hegeliano a
dimenstio dramática que marcuria a constituição do sujeito e não, como na
leitura de outros comentadores do seu pensamento, a construção de um
sistema filosófico, que teria realizado com sua lógica o ápice de sua reflexão
teórica.

1/. A dialética hegeliana no ''retorno a Freud"


Foi neste caminho metodológico e no campo desta problemática filosófica
que se introduziu Lacan na pesquisa psicanalítica. Com efeito, a leitura de
Hegel, mediada pela interpretação de Kojeve, 12 foi uma das condições de
possibilidade para que Lacan empreendesse a releitura renovadora de Freud.
Desde os anos quarenta, os escritos teóricos de Lacan revelam as
marcas das fonnu!ações de Hegel, principalmente nos ensaios sobre o estádio
68 PS lCANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

do espelho, 13 a causalidade psíqt_•ica 14 e a agr~ssividnde. ~ D~sde então .foi


1

se intensificando a presença do <.ltscurso hegelwno na teonzaçao promov1da


P<>r Lacan, de fonna a se transformar numa refe~ncia p~adigmática q~e
norteia a sua leitura da psican{•lise. Mesmo com a 1ntroduçao do referencial
teórico da lingüística, possibilitado pelu antropologia estrutural .com .a me-
diação de Léví-Strauss 16· 17, a relerência hegeliana ainda n~rteou o ho~1zonte
teórico de Lacan por muito tempo e orientou a sua rele1tura do d1scurso
freudiano. Evidentemente, nlgumas problemáticas delineadas pela filosofia
de Heidegger também or.ientanun a pesquisa de·Lncan deste período. mas a
incidência de Hegel produziu marcas indeléveis em ~u discur~. .
· Desde o seminário sobre a ungústul, 18 a perspecuva Jacamana, dehnea-
d~ a partir de Hegel, começou a relevar alguns impasses teóricos importantes.
que exigiram que Lacan repensasse a totalidade de seu proces~o. Aproble·
má rica do real no discurso teórico dt: Lm:an começou progressivamente a se
constitui-r e a indi,·ar um novo espaço 1eóri~o para a investigação psicanalí·
tica. Assim, foi a !.!~l imitação do campo de simbolização possível no sujeito
e na psicanálise que intpôs um limite ;\ abordagem de Lacan, ~té então
norteada por Hegel. Entretanto, esses impasses teóricos não implicaram a
recusa dos instrumentos conceituais entreabe11os pela filosofia de Hegel,
mas significaram a sua retomada num plano de maior complexidad~, o~e
se impusseram alguns limites que a psic.:un:ílise coloca para a dJalétJca
hegeliana. .
Neste contexto o "retorno u Fremi" renlizado por Lacan fo1 empreen-
dido também através'de A fenomenologi(l do espírito, na qual Lacan igual-
mente destacou a relevúncia da dialética do senhor e do escravo. fio condutor
na exegese de Hegel que orientou a tilosotia francesa nesse momento
histórico. . . .
Fundando-se nestn leitura do discurso de Hegel é que Lacnn conshtu1u
um conjunto dê conceitos originais no c~unpo teórico da psicanáli~, como
por exemplo o conceito de estúuio do espelho, e~tabele~e.ndo d1~erenç~
fundamentais com o que Wullon descrevera com mu11a argucul na ps1colog1a
da criunça.' 9 Da mesma forma, retirou rm.licalmente as conseqüênci?s que
esta perspectiva teórica entreabria para a retomada da problemática do
narcisismo no uiscurso freudiano. Finalmente, mostrou não apenas a rele-
vância, mas tambén~ a incidência destes conceitos no campo do processo
psicanalítico, possibilitando então uma nova leitura da lógica q~e sustenta o
ato psicanalítico.
Nesta releit um de Freud, medi atia peln dialética do senhor e do escravo,
o processo analítico se apresenta remodelado em. alguns de seus .traços
fundamentais. Embora múltiplos, estes traços un1ficam-se num SIStema
coerente, que revela a minuciosa articulação interna forjada por Lacan a
A FILOSOFIA E O OISCURSO FREUDIANO 69

partir das categorias filosótic:ts de Hegel. Não pretendemos tematizar a


totalidade destes traços neste contexto, mas somente nos referir a alguns
deles, considerando o momento inicial da pesquisa teórica de Lacan.
Fundando-se no c.:onceito de estúdio do espelho, caracterizado como
uma estrutura do sujeito e não apenas como um momento do desenvol-
vimento psicogenético da crian~·a - considerado então como uma dimensão
constitutiva do ego e que desti na o sujeito à alíenação num outro, o qual é
simultaneamente estruturant~ do sujeito20 - , Lacan pôde promover a relei-
tura da agressividade em psic.:~múlise. Nesta perspectiva, a agressividade se
apresentaria no confronto narcísico delineado entre subjetividades, sendo
então uma experiência intersubjetira. O que implica afirmar que a agres-
sividade não é um resíduo eliminável na estrutura do sujeito, que seria
produzida pela "fn1stração" de uma " necessidade" instintiva que conduziria
necessariamente o sujeito à regressão e conseqüentemente à agressão. A
agressividade é uma dimensão fundamental na estrutura do sujeito, na
medida em que este se constitui mediante a sua alienação num outro, que lhe
oferece o suporte para a sua constitui~·ào. Enfim, a agressividade se apresenta .
necessariamente no processo analítico, na medida em que neste conceito o
sujeito é confrontado com a posir;ilo alienante que o constitui enquanto tal e
diante do desejo de re<:onhecimento pelo outro.21
Por isso mesmo, o fenômeno clínico que Freud denominava de trans-
ferência negativa apreSt!nta-se desde o início de qualquer experiência de
análise, estando na origem e no fundamento de qualquer processo analítico.
Assim, a transferência negativa não seria um fenômeno secundário, atípico
e portanto eliminável deste processo, como um resíuuo, uma vez que o
confronto narcísi<.·o da figura do analisallle com a figura do analista produz
no analisante uma fer ida narcísica Lh!cisiva, pois coloca em questão a sua
auto-suficiência e sua demnnda de reconhecimento pela figura do analista. 22
Em uecorrência dest:1remodel:t\'ào do campo da experiência psicana-
lítica, o conceito de pulsão de morte foi repensado numa perspectiva dialé-
tica. Destn fornHl, Lat·~m empreendeu a t·ríticn da concepçilo biológica deste
conceito fundamental da teoria psic:malítil"a, retinmdo-o do registro biológi·
co e inserindo-o na dialética da intersubjetividade.2 3
Ao introduzir o con~eito Je re;tl em psicanálise, Lacnn pressupunha
uma crítil:a anterior ao conceito freudiano de princípio de realidade. Assim,
fo rmulou a existência de um campo psíqu ico inserido num "além do princípio
de real idade"2 ~ como um p>~radi~mu 1eórico que seria anãlogo ao ••aJém·do
princípio do prazer'' de Freud.h Fundamentado nesta critica, Lacan pôde
retomar o conceito de real na psictul!\lise tendo como referência o discurso
hegelimio, isto é," num contexto teórico que define inicialmente a oposiçllo
entre o real e o racional, para afirmar em seguida que é da contradição entre
70 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

o real e o racional que o real é transformável e inserido no registro do


simbólico.26 Evidentemente, o que Lacan formulou posteriormente como o
registro do real revela uma grande distância em relação à problemática
teórica desse momento, pois a posteriori o registro do real revela o que é
impossível de siinbolização para o sujeito. 27

111. Afilosoftafrancesa e a psicanálise


Foi neste contexto histórico, caracterizado pela grande renovação teórica da
psicanálise francesa, na qual o discurso de Hegel ocupou uma posição
fundamental, que Hyppolite estabeleceu o diálogo inicial entre a filosofia e
a psicanálise·. _ .
Até então, a psicanálise era uma forma de saber que nao era devida-
mente considerada na tradição francesa, não apenas no campo da psiquiatria
como também no campo da cultura em geral. A incorporação da psicanálise
pela medicina, pela psiquiatria e pela cultura francesa foi bastant~ lenta,
sendo o movimento surrealistn a e:tceção mais destacada nesta conJuntura
histórica. 28
Não é um acaso, certamente, que Lacan tenha sido ao mesmo tempo
influenciado pelo surrealismo, publicundo alguns artigos em revistas do
movimento, e a figura fundamental na renovação da psicanálise francesa.
Nesta perspectiva, pode ser considerado a personagem histórica que realizou
a mediação entre a novidade teórit:a representada pelo discurso freudiano e
a psiquiatria francesa.''9
Entretanto, seria necessária a supemção de alguns obstáculos fun-
damentais no contex 10 da cultura francesa desse período para que a psicaná-
30
lise pudesse ser incorporada e legitimada como uma modalidade de saber.
Por ora, vamos subl inhar a existência de dois obstáculos que interessam à
explicitação de no:;so tema, não pretendendo dizer co,1n isso que tenham sido
os únicos.
Antes de mais nada, o valor que a sociedade francesa atribuía à sua
tradição cultural e à sua diferença face a outras tradiçõe~ n~s p~~eira~
décadas do século XX. A implicaçao disso no que concerne a ps1canahse fo1
decisiva em sua incorpor~ção pela cultura francesa, pois Freud realizou uma
descoberta fundamental no campo do saber, que teve uma intluência imensa
ao longo do século, trabalhando a partir dos impasses colocado~ pel.as
investigações neuropntológicns e hipnóticas de Charcot nocampoda h1stena.
Com isso, a França se viu privada de uma descoberta decisiva no campo do
saber contemporfineo e teve no discurso de Pierre Janel, Uf!l d~s hetde~ros
privile~iados de Charco!, um obstáculo importante para a d1fusuo da pSICa-
nálise. 1
A flLOSOFIA E O DISCURSO FREUDIANO 71

Evidentemente, esta questão detine upenos uma dimensão que ordena


a oposição feita ao discurso freudiano pela psiquiatria francesa, principal-
mente se considerarmos a rivalidade enrão existeote dos franceses com os
paises de língua alemã. Para ser incorporada por esta tradição cultural, a
psicanálise teria que se apresentar como uma "psicanálise à francesa",
segundo a interpretação reveladora formulada por Smimof.32
Esta não foi a única oposição importante para a incorporação do
discurso freudiano na Fnmça e talvez nüo representasse o impasse decisivo.
Além disso, a tradição cartesiana da filosofia francesa. definida pelo para-
digma do consciencialismo, foi Olllm impossibilidade fundamental n~te
processo. Para Freud, a filosofia da consciência sempre representou o mator
obstáculo para a compreensão da psicanúlise e à sua conseqüente incorpora·
ção como uma fom1a legítima de saber.
Freud não dizia ironicamente que era preciso superar o "sintoma"
consciência se quiséssemos reconhecer algo que nos enuncia o discurso
psicanalítico~3 Nesta perspectiva, o ensaio freudiano "As resistências à
psicanálise" foi escrito originalmente em francês para ser publicado num.a
revista francesa. Freud definia, assim, de forma reveladora, duas modali-
dades maiores de "resistência" à psicanálise: a medicina e a filosofia da
consciência. 34 Evidentemente, isso não é um acaso, tendo este ensaio des-
tinatários precisos na conjuntura fmncesa.
Por isso mesmo, fazia-se necessária uma refonnulação nos fun-
damentos da filosofia da consciência para que o discurso psicanalítico
pudesse ser incorporado ao contexto cultural da França. Nessa perspectiva,
a introdução da filosofia de Hegel, da filosofia de Husserl e da filosofia de
Heidegger foi a condição de possibilidade para essa transformação teórica,
na medida em que inseriram a problemática da consciência no contexto da
relaÇ"ioentre diferentes consciências, de fonna que a problemática do sujeito
passou a ser interpretada no campo da intersubjetivídade. Com isso, a
cortstítuição da consciência passa necessariamente pela história que funda o
ser da consciência na relação com outras consciências. Enfim, a consciência
fundada na história é man:ada fum.lamentalmenle pela tempora/ülade.
. Nesta transfonnação histórica da problemática da consciência, no
conte:tlo intelectual francês, diversos autores ocupar.lm uma posição fun-
damental. Dentre esses encontram-se os maiores teóricos da filosofia fran-
cesa desse período, como Sartre, Merleau-Ponty, Hyppolite etc ... Para quase
todos, a psicanálise represemavo, em alguma medida, uma indaga,ão para a
reflexão filosófica. Esta indagação podia ser teoricamente s.oluciouada,
apresentar impasses complicados ou ser defmitivamente descartada pelo
discurso filosófico, pouco importa, mas a problemática do inconsciente
colocada pela psicanálise não podia mais ser desconhec ida como acontecia,
72 .· PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

ou recusada pura e simplesnieme. Es1a mudân\'a teórica indica a refonnula-


ção histórica que se processou no cont~xto úa filosofia france.sa.
Não vamos re<tlizar aqui o inventúrio das diferentes respostas da
filosofia francesn para a probtemútica clo inconsciente, porqüe foge ao
objetivo deste ensaio. Pretendemos esboç:tr somente alguns dos tópicos da
instigante leitura que Hyppolite rl!alizou do discurso freudiano, destacando
a originalidade de sua interpretal;ào.
Além disso, é preciso considerJr que, poste riomiente~ a fil osofia
dialogou com a psiçanálise e r\!tomou as questões colocadas por esta num
outro plano teórico, deslocando as proble mútit'as que estavam em:pauta neste
período histórico. 35 Porém, o d iúlogo estabelecido por Hyppolite com a
psicanálise teve um akan(;e fund:unental , pois não apenas constituiu o campo
teórico ~este diálogo t.·omo também mapeoll problemáticas importantes que
ainda permanecem utuai:;. Por isso mesmo. o diálogo de Hyppolite com o
discurso freudiano continua <~tual, apesar do contexto histórico em que se
constitui e de suas ref~r~nc i as pr~isas ao campo intelectual da filosofia
francesa. · ·

TV. Uma leitura jilosójica de Freud

Como dissemos, o diúlogo de Hyppo\ite com a psicunálise se realizou através


de Lncnn, sendo através dessa mcdia\'ão que se tomou possível unra leitura
tilo'sófica de freud. Em contrapartid<J, a leitnm de Hyppolite sobre alguns
conceitos freudi;mos teve um:t incid~nl·ia importante no pensamento 9e
Lacan.
O di(llogo de Hyppolitc t·om Lacan se realizou mnto em nível fonnal
- podemos indicar isso pdas inúmcr:1s vezes <1ue Hyppolite se refere a
Lacar em seus ens.Íios sobre a psicanálise -, como taJI',lbém por sua
participaçifo <.lii-cta nos semin{trios inil·iais de Lac"an. Assim, o clássico
comentário d<.diyppolite sobre o conl·cito de dcnegaçào36 em Freud foi
emitido no semin:'1do sobre ''Os estTi!Os técnicos de Frcud",37 sendo devida~
mente imroduzklo .po~ ufna imponantl! inwn·en~ão de Lacun,38 a que se
seguiu um segi.mdo comcntiirio~N após~~ apresentação de Hyppolite. A grande
importância cont'e ritb por L;tl·an a csll! di:Uogo pode ser verificada pela
inclusiio_desscs textos em sl!us EscriW.'i.
· A filosofi;t <.h: I h!cd ruJl(:ionou co111o ;1 media~ão fundame"nta l deste
diálogo. Entrc,tanto, a f~nomcnoh>gia de llusscrl. :i filosofia existcndal de
1-Icid?gger e cl'e Sartre t:un~m ot·upariÍill um lugar importante ·nesse dialogo
com a pskanúlise, eml>ori1 se situassem em posição secund:'1rhi face à
inn ~u~nda de· Hegel. ·
A FltOSOf.'IA E O DISCURSO FREUDIANO

Podemos agora acompanhar o esforço teórico de Hyppolite para arti-


cular as proximidades e as d iteren~:as entre o projeto intelectual da psicani-
lise e o projeto da analíti<.:a existencial. A referência ao campo intelectual
francês se encontra aqui presente, pois se o pensamento de Heidegger ocupa
o lugar de paradigma da filosolía existencial, o debate com Sartre se realiza
de modo direto e indireto, na medidn em que este realizou críticas importantes
a.o discurso psicanalilico neste t:ontexto bistórico40• 4 t. Da mesma fonna,
Hyppolite estabeleceu alguns contrapontos entre Freud e Bergson, indicando
as diferenças entre seus projetos teóricos:u
Outra refetência fmn<:esa importante, retomada criticamente por Hyp-
polite, é a distin~·ão estabe lecida por Dalbiez entre método e doutrina em
psicanálise. Porém, enquanto Dalbiez enfatizav<J a riqueza do método freu-
diano e destituia de valor a teoria psicanalítica, Hyppolite procurava retirar
radi~:almente algumas das cun:;eqüências filosóficus coloc3das pelo método
freudiano. mas respeilando <ts exigênci~1s filosótic.:as colocadas pela doutrina.
Assim, se o método freudiano pressupõe uma filosofia do espírito, na
med ida em que é baseado na interpretação num contexto intersubjetivo, a
doutrina freudiana, com a representu~·iio de for\·as e energias no psiquismo,
atualizaria uma problemática pe11encênte iifilosofla da n{ltureza. Para Hyp-
poüte, Freud pretenoeu articular estas 1.l.iterente s modalidades do discurso
filosófico, sem escolher entre estas diferentes perspectivas ~eóricas. 43
Para esta leitum filosólica de freud, é preciso considerar minuciosa-
mente os seus textos teóricos e clíni<:os. a fim oe que se possa proceder a um
tr-.J.balho consistente de exegese - ·como se realiza com. o discurso de
qualquer outro filósofo quando :;e pretende estabelecer os princípios para a
sua interpretação. Este é o prim~1do metodológico que orienta a leitura de
Hyppolite, procurando extrair do exame interno dos textos freud ianos as suas
conseqüências filosóficas e não impol' ao discu~o dé Freud um esquema
teórico preestabelecido.
Paro isso, entretanto. é preciso ret·onhecer antes. de mais nada a
grandeza do empreendimento teórico realizado por Freud, pois este perse-
guiu incansavelmente uma pr~blcmátit'a do inkio ao fim de sua pesquisa
psicaunlític:t, sem teinc:r colocar em questão as suas diferentes formalizações
diante <.las iltJ(Igações e J:ts cuntraJi~·õl!s que se apresenrava:

Nm.la 6 mais atraem~ qu~ a kitur;c d:ts ol>ws tk fh:ud. Tcm·se o sentimento
de uma dcsl.'oocrta J>Cill.:\ll;t, <.l~ umtr;cl>alho em profundidade que não cessa
jamais de colocar em qucst<1o scu.s próprios resultados p:tra abrir novas
pcrspccliv:1s .~~

Em seguida. 6·prct·iso destaca~· merodologic&miente que a problemática


da psicanálise se insere no con ll'Xto da filosofia contemporânea, isto é, â
74 PSICANÁUSF.. CIÊNCIA E CULTURA

matéria-prima com que tmbalha a psicanálise é análoga à matéria-prima


processada pela fenomenologia e a filosofia existencial. Por isso mesmo, são
internas as relações da psicanálise l'Om as grandes tendências do pensamento
contemporâneo, pois a psican(t)isc :><.: revela também como uma filosofia da
existência e do destino hwnanos:

... Eu partia da convicçl1o de que a filosofta contemporânea era inseparável


da psicanálise, que a fenomenologia ex.istcricial e a analítica existencial se
inspiram nela, e da convicçl\o igual de que a psicantíl~se era também uma
filosofia da existência c do destino humano. Esta conv JCÇ1io se ancorou em
mim pc lu leitura menta das obras de Freud e a meditação sobre.as obras dos
filósofos atuais. Dito de outra maneira. eu encontrava um clima comum,
problemas comuns...4s

Nessa perspectiva, Hyppolite reconhece que Freud não é somente um


médico que desco briu uma nova moda Iidade de tempêutica para a.s neuroses,
nem apenas um neurologista criativo e um psicólogo talent_o~o , ~as "um
fil ósofo de primeira grandeza, ou antes um destes homens de gemo (tao raros)
• ..46
que desvelam, descobrem uma v1a nova... .
Porém, se a problemática delineada pelo discurso freud1ano nos relatos
clínicos se insere no campo da filosofia, é preciso que a descoberta de Freud
se apresente como um "método concreto e fecundo, ~ue é mais a descoberta
de uma problemática do que um sistema acabado". 7 Assim, se o método
freudiano não é um sistema fech<ldo e se é "decepcionante" a "linguagem
positivista" de Freud, é neces.~ário interpretar o discurso freudiano, indo além
do que Freud enunciou para explicar a significação fil osófica do projeto
freudiano:
... Para apreciar a sign ificar;ão filosóticn da obra fr~u.diana é nec~ssário não
temer ir além de ccrms fórmulas do Mestre, c CJtphcJtar um sentido que ele
formulou nitidamente. Assim se manifcstarti o carâter altamente filosófico
desta cJtploração e desta obra.4l!
Consideremos, então, a dualidade de modelos que ordenam e per·
meiam o discurso freudiano, onde pod~:mos depreender a contraposição no
psiquismo entre representuções da nature.za e da ~igni~caçã?, isto é •. entre a
ordem da causalidade e a ordem do sentJdo. Assun, e prectso considerar a
existência da "linguagem positivist;l" de que Freud se serve pennanente-
-1 •1
mente em seus textos, mas que e, ...1nauequaua para o seu propn
' ·o cam·tnho" ,49
pois o que a psi<:análíse busca pemwnentemente é a "relação entre ~íntomas,
sonhos, acontecimentos da vida psíquica e sentidos ocultos que sao a fonte
dos acontecimentos" .50
Qual a razão dessa inadequação? Ora, esta inadequação se coloca
porque Freud utiliza freqüentemente um modelo "positivista", de caracterís-
A FILOSOFIA E O DISCURSO FREUDIANO 15

ticas energéticas, para a representação do psíquico, que se contrapõe ao


el'.ame minucioso no plano da significação que ele realiza na interpretação
dos sintomas e das outms formações do inconsciente. Assim, existiria um
contraste e mesmo uma contradi~·ão entre o "materialismo da energia" e a
"análise intencional". 51 Apesar de Freud sempre se manter metodologica~
mente no registro da significação, ele "jamais abandonarã completamente
esta representação energética".52
Nesse contexto, Hyppolite estabelece um princípio metodológico im-
portante para a leitura do discurso de um autor, pois não impõe ao texto de
Freud um modelo a priori, mas considera a dualidade de registros como o
índice de uma questão importante, <tue indica então o campo de uma pro·
blemática delineada pelo discurso freudiano:

... ~ necessário evitar. talvez, trair Freuo escolhendo um:~ interpretação


contra a outra, pois ele pretendeu uma espécie de síntese à qual niio pôde
chegar, e existe uma originnlidndc neste misto, na recusa de separar uma
fllosofia da natureza e uma tilosofia do cspfrito. Vai-se sempre em Freud
de uma imagem naturalista a uma compreensão, c vice-versa...53

Assim, onde Dalbiez destacava a oposição entre método e doutrina


psicannllticos, Hyppolite sublinhava a tentativa de Freud em articular uma
filosofia da natureza e uma filosofia do espírito. Evidentemente, pretensão
teórica não realizada por Freud, mas reveladora da problemática que esse
constituiu e indicou panl superar o dualismo entre o corpo e o espírito. O
conceito de pulsão (Trieb) - onde se perfila a oposição entre força e
representação54 - . que ocupa o centro du teorização freudiana, indica que
foi esse caminho teórico que Freud desenvolveu em sua pesquisa e que
encontrou diferentes impasses que o conduziram à transfonnação de sua
representação do psiquismo.
Porém, é no campo da interpretação do sentido da experiência do
sujeito que se revela a riqueza do método psicanalítico. Hyppolite destaca
como Freud constituiu um método fecundo para a hennenêutica do sujeito,
que ultrapassa bastante o horizonte de um cientificismo estreito onde se
pretende inseri-r o projeto freudiano. Foi trilhando esse caminho metodoló-
gico que Hyppolite valorizou as minuciosas interpretações forjadas por
Freud, baseadas na experiência intersubjetiva da clínica psicanalítica, para
explicar a constituição do sujeito. Assim, as descrições clínicas legadas por
Freud foram retomadas por Hyppolite como indicadores seguros de uma
aventura intelecuml que Freud se permitiu percorrer e foram a condição de
possibilidade para uma rel1exão origin:tl sobre o sujeito no pensamento
contemporâneo. Neste contexto, A interpretação <los sonho:/'s é considerada
o monumento mais fulgurante da pesquisa freudiana, na medida em que aí
76 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

foi articulada de maneiro sistcm:1ti<:n a interpretação do sentido que ordena


a e~periência do sujeito.
Assim, se é por esse viés llll!todológico que o discurso freudiano
colocou a problemática da constituição do sujeito pela interpretação do
sentido da sua história e do seu des~jo, Hyppolite se pennite retiror daí então
as conseqüências teórit·us indic.:ad:1s pelo c:uninho freudi ano. Se estas conse·
quências nem sempre foram explicitadas pelo discurso freudiano, foram
contudo indicadas e é isto <JUe penuite Hyppolite assinalar que elas se
inserem em oposições precisas no c.::unpo ua tilosofia contemporânea.
Foi nesse contexto que Hyppulite pretendeu estabelecer as possiveis
articulações internas entre os discursos de Freud e de Hegel, em que procurou
aprender algumas das unnlogias entre ns suas problemáticas teóricas. Par-a
isso, destacou as condiç·ões de possibilidade para a constituição do sujeito
em A fenomenologia do espírito de Hegel e a contrapôs ãs condições em que
o sujeito se constitui no discurso freudiano. Num dos passos decisivos desta
leitura, sublinhou a passagem Jramática da consciência natural para a auto·
consciência, mediante uma série J e tiguras da consciência. É nesta ttansfor·
mação dramática que se destaca a dialética do senhor e do escravo.
Porém, par:t essu Jeituru é necessúrio definir a priori a modalidade de
relação existente entre Hegel e Frcud, u tim de delinear o caminho possível
de reíntegra~·ão que destaque devidamente a problemática comum entre os
discursos destes autores.
Assim, esta relafiâO não pod~ ser Jetínida em termos de influência
histórica, pois parece que Freud nunca leu Hegel e este nüo poderia eviden-
temente ter lido Frcud. É possível pensar que Freud nunca !eu Hegel pelas
mesmas razões que se reL·usav;l a ler Nietzsd1e, isto é, "apesar das satisfações
que poderia extmir disso, para não se arriscar a se deixar intluenciar na
originalidade de suas próprias desL·obertas".56
Então,,sc esta rl!hl\·ão não se fun da na influência histórica da proble-
mática <.le Hegel sobre a de FrcuJ, I! preciso im,.ertê-la. Nesta pespectiva, a
escolh<t metodológica d\! Hyppolite é marcada pela audácia, na medida em
que ele se propõ~ empr~ender a leitura de Hegel através Jo discurso freudia-
no, numa visão retrosp~ctiv:.L Com isso, o que propõe é traçar as analogias
existentes entre as problem:'1ticas desses diferentes discursos:
Por outro la<.lo, o bom s~uso parú·.: nos proibir de falar de uma influência
rctrospct·tiva, uma cspél'i<' tk intluO:nçia nsccndcnc.lo o curso do tempo, de
Fn:ud· sobre llq:d. Entn:lanlo, .! esta cspédc de :~bsurdo que cu queria
justitkar frimclro. pois ele compona algo de vcnla<.lciro que é a rctros-
pcc<jlio...5

Assim , n e xpcri~ncia dram:'1 til·a de l·onstitt•i~·fto do ·sujeito em A {ello-


menologia d o espíriw é interpretada pdas L·ategorias do processo psicanalí-
A FILOSOFIA E O OISCUI<SO FREUDIANO 77

tico, na qual se destaca a tragédi:t de Édipo, tal como este foi descrito por
Freud em A interpretaçlio dos sonhos. Estabelece-se então uma analogia
entre as problemáticas do sujeito na psicanálise e nn filosofia de Hegel:
... é num esplrito que não é tiio diferente d11quele da psicanálise freud iana
nestes textos, que nós ensaiaremos encarar, por uma interpretaçlo propria-
mente retrospectiva, a fenomenologia de Hegel. Reler assim a Fenomell()-
logia consistiria a encarar a tom Iidade dcst:l obra ~o diflci I c sinuosa como
a verdadeira tr:1gédia de! Édipo da totnliuadc do espirito humano, com talvez
es1a diferença que o desvclamcnto t"tnal - o que Hegel denomina "saber
absoluto"- permanece arnbiguo e enigmático:''
A categoria de intersubjetividade ocupa uma posição estrat~gica na
leitura de Hyppolíte, sem a qual não s~riu possível interpretar o percurso do
sujeito ~o ato psicannlít ico e na "fenomenoloiia do espírito". Assim, é
necessário não apenas a presen~·a mas também a antecipaç1io, lógica e
histórica, de um sujeito para que um outro sujeito possa efetivamente se
constituir. Com efeito, a passagem da consciência natural para a consciência
de si .somente seria possivel pela media~·ão de uma outra consciência que
polnnzn o processo dramático e pemlite à primeira consciência a experiência
de uma série de figuras descritas por Hegel em sua obra.
Da mesma forma, o ato psicanalítico é inscrito neste contexto dramá-
tico, no qual a figura do analista ocupa um lugar que é a condição de
pos.sibilidade que pennite o acesso da tigura do nnalisante à posição de
sujeito. Então, as figums dromáticas, mediante as quais o sujeito se representa
e se apresenta no longo do processo analítico são análogas às figuras descritas
por Hegel no percurso da consciência em A fenomenologia do espírito. Com
isso, a dimensão metafísica da psican(rlise se esbÔça com traços bem deli-
neados para Hyppolite.
Com efeito, Hyppolite sublinha no que existe de mais fundamental no
discurso freudiano, que é u des<:oberta do processo psicanalítico centrado na
transferência, uma "inquietação filosófica fundamental de Freud, que se
dissimula atrás de uma lécni<.:a terapêutica". 59 Por isso mesmo, é preciso
repensar o que significa a idéia de '\·ura" pela psitanftlise e indagar se se trota
de uma modalid:1de de ..lerapêutka", pois na perspectiva freudiana a proble-
mática da "cura" assume uma dimensão metafísica, implicando o acesso do
sujeito à vertlade de sua história e do seu desejo.60 Enfim, a questão da "cura"
pela psicanálise desembo,·a na problemátka da verdade, a questão filosófica
por excelência.
Desejo e promessa- encontro impossível
O discurso freudiano sobre a religião*
..No principio era a açlo"
S. Frcud, Totem e Tabu I

1. Leitura metodológica
A relação entre a psicanálise e a religião pode ser investigada de diferentes
pontos de vista, se considerarmos a perspectiva das diversas ciências huma-
nas que poderiam assumir esta problemática como objeto <fe pesquisa.
Embora essas diferentes modalidades de abordagem impliquem um recorte
discursivo es~cí.fico e formas particulares de teorização, elas não são
excludentes mas complementares, pois seus diferentes objetos recortam
diversos campos de positividades.
Porém, se o instnunemo interpretativo e o objeto da interpretação
forem a psicanálise e a religião, o contexto teórico da questão se transforma
radicalmente. C01n efeito, se considemrmos que existe uma polaridade
insofismável entre psicanálise e religião, a complementaridade entre elas se
apresenta como impossível, pois se nos centrannos na problemática que
funda cada uma destas formas de saber, a tematização construida a partir de
cada uma delas será radicalmente diterente.
Assim, considerando o pólo interpretativo da relação, o desdobramento
discursivo será necessariamente diverso. Nessa perspectiva, se nos centrar-
mos no pólo ..psicanálise", procurando circunscrever o lugar da religião no
discurso psicanalítico, a resultante de nossa indagação será certamente
bastante diferente do que se nos baseannos no pólo "religião", onde a
psicanálise Se apresenta como objeto de renexão, de crítica e mesmo de
perplexidade para o discurso religioso.
Considerando, então, esta bifurcação inicial numa perspectiva meto-
dológica, é possível realizar ainda uma outra inflexão teórica. Assim, pode·
mos submeter cada uma destas indagações a uma modulação histórico-social.
Vale dizer, podemos destacar a e!listência de diferéntes formulações psica-
nalíticas sobre a religião, desenvolvidas em tempos diversos, como sendo
determinadas historicamente em contextos sociais específicos. O que se

78
DESEJO E PROMESSA - ENCONmO IMPOSSÍVEL 79

impõe, então, é uma interpretação dessa variação histórica. Da mesma fonna,


as leituras que a religião realizou da psicanálise não são idênticas, mas
apresentam oscilações significativas, na medida em que o discurso religioso
passou· de uma repulsa absohna da psicanálise para um reconhecimento
relativo; como, aliás. se realizou com outras fonnas de discursos.
Nesta leitura, privilegiaremos o pólo .. psicanálise", de maneira a
circunscrevennos a interpretação psican:11ítica da religião. Delimitando mais
ainda o objeto deste ensaio, nossa pretensão é traçar de modo esquemático a
leitura empreendida por Freud do discurso religioso, pois a pers~va
pós-freudiana se distanciou fundamentalmente das linhas definidas em seus
primórdios, como .indicaremos de passagem nesta apresentação.
Além disso, é preciso destacar que o discurso religioso, que é o refe-
rente do discurso freudiano, é aquele representado pela tradição judaico-
cristã, pois foi com esta tradição religiosa que a psicanálise se confrontou
em seus primórdios, tanto na cultura européia,quanto na norte-americana.
Enfim, falar em religião para a psicanálise, remete necessariamente para ~sta
tradição religiosa.
Uma leitura mais ac urada dos escritos freudianos talvez revelasse neste
discurso uma diferenciação face à tradição judaico-cristã, de fonna que esta
se diversificaria nas suas várias forma~·ões ético·religiosas. Nesta pers·
pectiva, a ética freudiana com sua obstinação pela verdade e sua reverência
pela lei simbólica se mostraria mais próxima do judaísmo e até mesmo do
protestantismo do que do catolicismo, sendo este talvez o foco privilegiado
da crítica freudiana. Entretanto, não vamos explorar neste ensaio esta pro-
blemática, que se abre para o campo da ética.

TI. Memória e reminiscência


Mesmo definindo o objeto especítico deste trabalho, vamos enfatizar estas
variações discursivas entre psicanálise e religião, à guisa de introdução, pois
são do maior interesse histórico, na medida·em que nos indicam a diferença
e a proximidade entre estas fonnas de saber nos primórdios do movimento
analítico e na atualidade.
Se na perspectiva freudiana a psicanálise assumia uma postura crítica
face ao discurso religioso, na atualidade mantém uma relação de razoável
coexistência pacífica. Não queremos dizer com isto que no discurso freudia-
no não se reconhecia a relação do sujeito com o universo do sagrado, o que
seria uma grossa bobagem, mas que na atualidade os psicanalistas não
consideram mais uma impossibilidade radical a convivência do sujeito com
a psicanálise e com a religião, ou mesmo que seja psicanalista e crente de
wna fé religiosa. A indagação que se impõe aqui é o que se processou com
80 [>SICANÁLISE. CIÊNCIA cCULTURA

a psicanálise para que se realizasse esta transfonnação radical no registro dos


valores. · · ·
Da mesma fonnn, ns religiões católica e protestante repudiavam ini·-
cialmente a psicanálise. considenmúo o seu discurso um atentado moral aos
valores fundwnenlais du· cristandaJe.- Por lsso·mesmo, seria uma práiica
potencialmente perigosa ao rebanho ue fiéis. Considerada pansexualista, a
psicanálise era represe nta~a como uma amença pnra a instituição familiar e
promoveria, pottanto, n desordem social.
. Tematiz:mdo il problem!íti1:a da sexualidade em sua relação com os
valores morais fundnmentnis - retirando a sexu:liidade do registro biológi-
co, formula.ndo a exislência J a sexualidade infantil e fundando a ética numa
matéria-prima cuja origem é sexual - e desdobrando a sua teoria numa
prâtica clínica que incidia em indivíduos singulares, a psicanálise era repre-
sentada como umn arne:wa à cstnllum da "moral sexual civilizada" e ao
interdito cristão de não se falar no sexual. Enlim, se o sexual é um "mal"
necessário, este deveria se limitar à sua função de reprodução da espécie, não
sendo aberta qualquer possi bi Iidade para que o sexual se fu noasse no princi-
pio do prazer e muito menos no além do principio do prazer, pois com isto
reinaria a desordem social.
Até os anos cinqüentu, a psicanálise era representada pela religião
como signo da desordem, que niio somente a crilica\·a enquanto ameaça de
dissolução dos bons costumes, como também proibia que seus fiéis se
submetessem u um processo analítico. Os padres <tue queriam se submeter a
uma análise erJm marginalizados c freqücnteJilente a realizavam às escon-
didas de suas ordens religiosas.
Na Europa, ns primeiras crônicas históric:ts da aventura dos religiosos
no campo interdito da psicanálise começam a ser esboçadns.2 Esta epopéia é
bem mais tardia no Bmsil, tendo que esperar o boom da psicanálise no final
dos anos sessenta para que se descongelassem as fronteiras e a incursão de
religiosos no cmnpo da psicanálise n:io fosse representada como uma trans-
gressão, pois o peso dos vulores traui~: ionai ~ n:i soeieoade brasiIe ira era muito
mais importante. Assim, desde os anos vinle, uma figura do porte de Alceu
Amoroso Lima jú assin:tlava o perigo élico rcprcsentm.lo pela psicanálise,
num discurso que se fundava na filosofia e na rdigião. 3
Consideremos agora o outro pólo dL!sta rda1;:1(). Em seus prim~rdios o
movimenlo analítico prut ic:uneme se restringia :1 Viena, onde imperavam
sólidos valores ~atól it.·os, c se limitava :t um grupo Je judeus. Estes não eram
praticuntes ua religião jud:tka, mas jú eram mnrcndos pelo processo de
emancipação dos guetos jut.laicos init.·iado t•om a revolução francesa e sua
inserção nos diferentes países europeus. considentndo aqui as dimensões
política e culturat."5 Porém, era bas1ante evidente a referência étnica deste
DESFJO E PROMESSA - ENCONTRO \MPOSSiVEL 81

grupo de inlelectuais. A uifusão do movimento analítico em outros países


europeus se processava, ruas ú in~:orporação tle novos adeptos se realizava
também enlre pessoas oriund:ts dn comunidade jm.laica: Knrl Abraham
(Aiemnnhn), Erncst Jone:; (Inglaterra), S(mdor ferenczi (Hungria) etc., para
nos referirmos às figums mais eminen1es.
Esta referência étnica do grupo originário era uma fonte permanente
de preocupação para Freud, que 1emia que a psicanálise fosse representada
como umn "ciência judaica".~ Por isso mesmo, o engajnmenlo de Jung no
movimento analí1ico foi um acomccimcnto da m:lior relevância no percurso
freudiuno, pois representava não apemts uma figura importante no pensamen-
to psiquiátrico de entfio - ao lado Jo seu mestre l31euler, eminência teórica
do discurso psiquiálrico em língua alemã, trabalhando ambos no hospital
Burghõlzli de Zurique- como lambém significavtt a abertura do movimento
psicanalítico para a Suíça protestante. Através de Jung, a psicanálise não só
se retirava do gueto judaico. inserindo em seu movimento figuras de outras
fomtações étnicas, corno se aproxima va t<~mbém do maior centro psiquiátrico
europeu do início do século. Enlim, através de simpatizantes como Jung e
Bleuler, Freud obtém o p:tssaporte uefinitivo parn não permanecer restrito ao
mundo vienense e judaico, projetmdo a psicanálise na Europa e iniciando o
seu reconhecimento internacional.
Além da imporlância Jas pesquisas psicop:llológicas de Jung e de
seu brilhantismo intelecwal, pois não nos esqueçamos de que Freud
escolheu-o como seu ht!rdeiro na direção do movimento psicanalítico
intermt<.:ionu1,7 é evidente que o apego afelivo e as conciliações políticas
de Freud com Jung se deveram" estas razões. Porém, é preciso considerar
que Freud teve 11 coragem sufidcntc para romper com Jung, quando este
passou a realizar articuht~·ões da pskanálise com a psiquiatria e com os
pressupostos da ética protestunle. insustenlá veis para as concepções do
discurso psicanalítico.
Esta problemática por si só e.'(igiria toJo um desenvolvimento, para
indicar as relações orgânicos exi st~ntcs p<tr:t Freud entre as exigências
teóricas da psicnnálise e a oire\·iio a ser imprimida ao movimento psi<:analí-
tico. Assim, freud nfio transgr~dia as cu n~cp<;ões fundamentais do discurso
psicanalítico, que funJam~nla\'al\1 a ética da psil·anúl ise, mesmo que com
isso ticasse fm:i li1aua a difusfto Jo movimento analítico. Nesta perspectiva,
o debate com Jung é exemplar desta postura freudiana, pois o rompimento
entre ambos se deu quando Jung procurou abolir certos pressupostos básicos
da psicanálise - a L'Ont:eps·:io da cxistên~ia da sexualidade infantil e o
conceito de complexo de Edipo - para facilitar a sua difusão na ins·
tituição psÍ{Iuiátric:t e andecer as resistências oriundas da moral religiosa
estabelecida.8
82 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

Pvrém, desde os anos quarenta se transfonnou progressivamente o


lugar da psicanálise no espaço social, sendo atribuídos a esta reconhecimento
e prestígio, que produziriam possivelmente alguma fonna de confusão em
Freud que talvez se perguntasse se a psicanálise que adquiriu tanta reputação
social ainda é a mesma que ele constituiu. Não dizia Freud, quando ia realizar
sua primeira viagem aos Estados Unidos para proferir conferência na Clark
University,9 que os americanos ainda não sabiam, mas que estava levando a
"peste" para eles?
Assim, os anos quarenta e cir.qlienta marcaram a grande epopéia da
psicanálise nos Estados Unidos, regi:;trando-se em seguida o seu esvazia-
mento progressivo. 10 Nos anos ses.senta e setenta o movimento psicanalítico
se expandiu na França, principalmente com Lacan, 11 e após este período
começa a dar sinais de retra<;ão. No l3rasil, o processo foi mais tardio,
realizando-se sua difusão nos anos setenta. Não cabe discutir aqui as razões
da ascensão e da relativa queda de prestígio da psicanálise, mas somente
indicar que, com o prestígio que adquiriu a instituição psicanalítica, ela se
beneficiou da própria modernização de valores dos quais a psicanálise foi
um dos instmmentos sociais de remodelação.
Neste contexto, o discurso religioso não repele mais a psicanálise como
outrora, mas convive com esta reconhe<.:endo-a como uma modalidade de
saber que existe no espaço social. Isto não implica o apagamento das
diferenças fundament:tis que existem entre a psicanálise e a religião, pois em
certas tendências do pensamento católico continua a existir uma hostilidade
latente face à psicanálise. Recentemente o cardeal-arcebispo do Rio de
Janeiro não apontou a relaÇão ex istente entre a expansão da violência no
contexlo urbano e a cultura permissiva possibilitada pela psicanálise? t2
Porém, na economia interna de nosso ensaio, estas questões são im-
portantes somente como uma forma de introdução, servindo para nos aleriar
quanto a um possível equívoco de pressupor qualquer superposição entre as
concepções psicanalítica e religiosa do sujeito e do mundo, pois estas são
essencialmente divergentes.
Nessa perspectiva,· pretendemos agora destacar alguns argumentos
cruciais do discurso psicanalítico, mediante os quais Freud pretendeu em-
preender a crítica da i/usao religiosa e assimtlar a diferença fundamental que
existiria entre a psicanálise e a religião. ·

/li. A cura e a salwtçlio


A correspondência emre Freud e o pastor Ptister, mantida de fonna sis-
temática entre 1909 e 1938, constituí talvez o arquivo discursivo mais
importante para baliz.annos a relação entre os discursos psicanalítico e
DESFJO E PROMESSA- ENCONTRO IMPOSSÍVEL 83

religioso. considerando que algumas das teses fundamentais deste debate


foram assumidas na vivucidade de um diálogo amigo e cordial, em que os
interlocutores assumiram posições discordantes. Assim, Freud pontuou as
impossibilidades colocadas pela inserção da psicanálise na prática pastoral,
atividade de Pfister, enquanto este indicava as modificações que imprimia
no discurso psicanalítico para direcionar a sua prática pastoral de "salvador
de almas". 11•14
Destacaremos apenas o comentário de alguns fragmentos desta corres-
pondência que remetem ao que é estrutural na crítica que Freud realiza do
discurso religioso, de tünna a podermos retomar outras referências do
discurso freudiano sobre a religião.
Assim, numa carta datada de novembro de 1928, quando a discussão
com Pfister já estava num tom acalorado e se acentuavam as diferenças
existentes entre as éticas psicanalítica e religiosa, Freud fonnulou a relação
surpreendente que estabelecia entre as suas duas últimas obras, "A questão
da análise leiga" 15 e "O futuro de uma ilusão".t6 Pela primeira, pretendia
proteger a psicanálise con1m os médicos, e pela segunda protegê-la dos
padres:
Nilo sei se você apr~cndeu bem o elo secreto que existe entre a antílise para
os não-médicos e a ilusão. No primeiro, pretendo proteger a análise contra
os méJicos. no outro, contra os padr~s. Gostaria de conceder-lhes um
estatuto que ainda não eJ~iste, o estatuto de pastores de almas seculares que
nllo teriam necessidade de ser médicos e não teriam o direito de ser
sacerdotes.t7
O que é notúvel neste fragmento da correspondência é, antes de.mais
nada, que Freud aa1icula a medicina e a religião num mesmo conjunto e as
opõe em bloco à psicanálise. O que implica afimtar, por um lado, a especi-
ficidade do campo psicanalítico face aos campos médico e religioso, que se
desdobra evidentemente numa indicação de diferentes formas de racionali-
dade. Por outro, Freud destaca enfaticamente a existência de uma ética
particular que deveria nortear a prática da psicanálise, onde os analistas
seriam "pastores de nlmas seculares".
Evidentemente, as racionalidades terapêutica e religiosa não são idên-
ticas e, considerando certos aspectos, até mesmo opostas. A oposição se
funda na diferente relação que a medicina e a religião estabelecem com o
discurso científico. A medicina pretende se basear nas diferentes ciências e
se instrumentaliza em sua prática em discursos científicos, o que não é o caso
da religião que se funda na fé. Com efeito, mesmo quando se baseia nas
aquisições fornecidas pelo discurso científico, o que é inevitável numa
cultura penneada pelos valores do cientificismo, a religião orienta-se fun-
damentalmente pela fé e pela crença.
84 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

Ce11ameme, encontramos na oposir;ão ciência/crença um dos alicerces


fund amentais da crítica freudiana da religião. Assim, a exigência da compro-
vação empírica e da demonstração da verdade referenciada pelos critérios da
razilo científica é uma das dimen~ões essenciais da crítica freudiana do
discurso religioso. Nesta perspcçliva, Freud é um dos herdeiros do pensa-
mento do século XVIIJ, pautando-se em sua indagação teórica como um
verdadeiro discípulo do Iluminismo, como lhe classifica Pfister com muita
perspicácia. 18
Entretanto, é prec isocin:unscrever esta questiio nos termos em que ela
se formula no discurso freudiano. Assim. a psicanálise pretende realizar uma
critica contundente da ilusão humana, considerando-se que a ilusão do sujeito
não se funda na lógica do mtendimento mas na lógica do desejo, como foi
assinalado por Frcud em "O futuro de uma ilusão". 19
A ilusão não se restringiria à idéia de um erro do intelecto, mas seria
produzida pela pretensão do desejo de lJliC ulgo seja aquilo que não pode ser.
Portanto, ciência e crítica da ilus;jo constituem aspectos da mesma
problemática no d isL·urso freudiano, trtH;~111do as fronteiras do campo da ética
psicanalítica, onde esta se funda no desejo. Emão, o sujeito marcado pela
experiência analítica <.! e veria estar abeno ao questionamento de suas certezas
e de suas ilusões, pois aquilo que o instigu no processo desta experiência é a
indagação sobre os destinos do seu desejo e, por isso mesmo, daquilo que
orienta a S!ia produ\·tlo ilusória.
Esta formulação se npresenta eventualmente nos escritos freudianos
sob um sabor evolucionistu e positivista. Assim, Freud retoma em Totem e
tabu uma interpretação então em voga. de cunho evidentemente evolucionis-
ta, segundo u qual a humanidade teria passndo de uma idade originalmente
mágica para a idade cientítica. pela mcdia~·ão da idade religiosa. A insegu·
rança do homem diante tla natm-eza, pela imponderubilidade desta e pelo
desconhecimento humano das for\·as que a regem, colocaria necessariamente
.o homem frente à demanda de upcl:lr pam o mundo do além, justifi cnndo
então o período religioso da história da humanidade. Neste contexto, o
domínio do homem sobre a natureza pela conqqista da ciência seria a
condição de possibilid:tde de sua emancipa~·iio, tanto das intempéries da
natureza quanto do mundo c.Jo além, ~tbrindo-se então para o sujeito a
possibilidade de constru~·ão de sua história.20 .
Evidentemente, quando se s~rve desta construção mítica, Freud está
preocupado em repensar a retomada deste puradigma no registro da consti-
tuição da subjetividmle. Assim, çada infante reviveria esta epopéia em sua
constituição como sujeito, tendo tjue apelar e se sustentar em figuras paren-
lais que seriam necessariamente onipotentes, diante do desamparo fun-
damental (Hiljlosiglceit) que camcteriza sua posição origin:íriu.21 Mediante
DESEJO E PROMESSA- ENCONTRO IMPOSSÍVEL 85

esta construção positivista do udvento da idade da ci!ncia na história, é a


estruturação do sujeito que se enuncia no discurso freudiano, onde o sujeito
conquista o domínio sobre a imprevisibilidade de seu corpo, do mundo e do
Outro, superando assim o seu desamparo originário.
Porém. destacando a oposição c iêncialcrença no contexto da lógica do
desejo como o critério fundamental a ser considerado na crítica freudiana da
religião, mesmo assim Freud reuniu a medicina e a religião num conjunto
que se contrapõe à psicanálise. Portanto, a aproximação que o pensamento
freudiano realiza entre os discursos médico e religios.o não se baseia neste
critério diferencial, pressupondo outro fundamento comum.
Que fundamento seri~• este'! A problemútica do desejo e da ilusão nos
oferece ainda o instrumento crítico onde o discurso freudiano pretende
manter a sua diferença ética e su<~ especifkidade teórica face à medicina e à
religião. É preciso agora uma outr~1 inflexão nesta problemática, para destacar
como os discursos médico e religioso po<.lem se encontrar num certo ~eg istro,
apesar de se distinguirem num outro. ·
Nessa perspe<.:tiva, podemos delinear a questão considerando a dimen-
são de promessa que, de maneira implícitu e explícita, orienta a medicina e
a religião em suas tl iferentc s práticas sodais. Então, é na promessa de um
bem, de um valor tr.msceJt:utc,l)UC:: os discursos médico e religioso direcio-
nam as suas práticas-o que não é o caso da psicanálise, que pretende apenas
que o sujeito se encontre com o seu desejo. Enfim, enquanto a psicanálise
não pretende prometer nada ao sujeito <lue empreende uma experiência
analítica, a medicina realiza a promessa de cura e a religião realiza a
promessa de saii'(IÇÜO.
Assim, a medicina não é uma ciência, apesar de se basearem discursos
científicos para instrumentar suas diferentes modal idades de prática. Esta
legitimidade çonferida pelo dis<.·urso científico é fundamental no registro da
representação, numa ordem soda! penneada pela ideologia cientificista, pois
desta maneiro a medicina pode sustentar a ilusão humana de que a vida do
indivíduo pode ser ecemamente préservada e este fica protegido de ser ferido
em seu des:lmparo originúrio. Entiio, a medicina promete a cura, bem
supremo que veicu la as suas práticas e. por meio tlisso, evitaria a morte e
fomentaria a ilusão de imortalidade do· suje ito.
Foi ntrc1vés dessa promessa de cura que a medicina moderna se consti-
tuiu na aurora c.Jo século XIX e se desdobrou até a atualidade, construindo
assim a ilusão de que uma orc.Jem social completamente medicalizada produ-
ziria uma sociedade perteita. 22 Portanto, foi com este alicerce ilusório que a
medicina se erigiu como um poder fundamental na modernidade.
O ideal de promo\·ão da vida e de recusa da morte encontra-se inscrito
nos fu ndamentos epistemológicos da medicina moderna, que como clínica
86 PSICANÁLISe. CIÊNCIA E CULTURA

se constituiu pela anatomia patológica.23 Com isso, a idéia da morte adquiriu


a posição de ser operador conceitual da idéia de vida. Assim, com Bichat a
vida se definiu como o "conjunto de forças que se opõem à morte", vida e
morte consideradas como os alicerces da medicina moderna.. Mais do .que
isso, foi realizada uma inversão crucial entre estas categorias, pois com a
anatomo-clínica é a idéia de morte que adquire a posição de valor epis-
lemoló_gico fundamental, regulando então a concepção de vida. 24
E no contexto dessa leitura nrqueológica da constituição da medicina
moderna que Foucault p<lde criticar a concepção de Canguilhem da idéia de
norma baseada no valor da vida, 25 onde a medicina clínica se fundaria na
filosofia do vitalismo, pontunmlo que "o vitulismo aparece sobre o fundo
deste 'mortalismo' ".26
A moral laica ua medicina modernn ocupou progressivamente o lugar
, social até então ocupado pela mona! religiosa na Idade Clássica.27 Assim, a
sociedade disciplinar28 instrumentada pelo saber médico- que é a matriz
arqueológica da totalidade das ciências humanas, que se baseiam na reparti-
ção do espaço social mediante a oposiÇão nonnaVpatológico29 - é uma
ordem social medicalizal.ln e encontra nos discursos médico-psicológicos um
de seus alicerces fundamentais.
Porém, se o saber médico, fundado no ideal normativo da higiene
social, ocupou parcialmente o campD anteriormente preenchido pela religião,
sem silenciá-la. é porque pôde se agencinr num suporte imaginãrio e operar
num campo da representação do social que tinha a ver até então com o
discurso religioso. Ora, se a medicina realiza a promessa de éura e a religião
arucula a promessa de salvaç-ão, o ideal da cura se inscreve no campo da
salvação, numa ord~m social derivada pela representação cientificista. Por-
tanto, existe na proposição da cura um projeto de salvação instrumentado
pelo discurso científico, que promete ao indivíduo a ilusão da imortalidade
e o domínio sobre a morte.
Assim, diversamente da mel.licina e da religião, a psicanálise freudiana
não pretende realizar qualquer promessa, não se comprometendo nem com
a cura como salvaçiio, nem com a salvação como cura. Vale dizer, a
psicanálise nii.o se insere no projeto de imortalidade do indivíduo e assinala
sempre os seus limites, projeto este que se materializou historicamente no
imaginário social pelos ideários da salvação e da cura. Então, o que a
psicanálise pretende é colocar a figura do analisante diante da estrita lógica
de seu desejo, o que implica colocá-lo diante do compromisso com a verdade
singular de seu desejo e o seu desdobramento ético que é a crítica das ilusões.
Foi nesse contexto que se constituiu o ceticismo freudiano, que deve
ser rigorosamente interpre tudo como a crítica para o sujeito de suas for-
°3
mações ilus6rias. Com efeito, a tragicidade que perpassa o discurso freu-
DESEJO E PROMESSA- ENCONmO IMPOSSlVEL 87

diano- principalmente em seu percurso final iniciado nos anos vinte, que
se materializou na formulação da ex istêncía da pulsão de morte e de um além
do princípio do prazer3 t - evidenciá as impossibilidades colocadas para o
sujeito de sustentar as ilusões ilimitadas de seu narcisismo. Então, o sujeito
é confrontado com os limites de sua existência e com o horizonte pos-
sibilitado por sua história.
Foi nesse contexto também que Freud escreveu grande parte de suas
assim denominadas obras sobre a cultura. O que não é um acaso, certamente,
pois foi apenas nesta virada cn1ci:1l de seu pensamento que as impossibilida-
des existenciais do sujeito se colocavam com maior vivacidade para a sua
indagação teórica. Porém, além dessa rnzão, que é da ordem do fat o, coloca-
se também uma rnzão da ordem do direito, porque é nas formações imaginá-
rias da cultura que o sujeito encontra ns condições de possibilidade para
formentar as ilusões de seu narcisismo.
Forma de racionalidade que pretende delinear a singularidade do
sujeito desejante, a psicanálise constitui uma modalidade de ética bastante
original na modernidade, e (.'UjOS pressupOStOS diferenciais indicadOS até
agora apenas esboçam a sua oposição üs diferentes éticas que fundam as
promessas rel igiosn e terapêutica.

IV. Unidade e multiplicidade no sujeito

Assim, é na tematização de uma ética fundada no desejo que podemos


delinear a questão que contrapõe a psicanálise e a religião. A problemática
do desejo indica ponlos cruciais que perpassaram o debate de Freud com Jung
e com o discurso religioso em geral, pois assinala, por um lado, o lugar
ocupado pela sexualidade e o seu correlato que é a perversão polimorfa
infantil no discurso freudiano e, pelo outro, a concepção de sujeito que é
descentrado do ego e do exercício da sua vontade.
Esses pressupostos da psic;lOálise são cmTelatos, exigindo, por isso
mesmo, que a sua articulação se esboce ao mesmo tempo. Assim, uma das
formulações originais do pensamento freudiano é de que a individualidade
não é uma unidade cemmda no eu - como é, aliC1s, a pretensão da instância
psíquica do ego - mas uma multiplicidade de estruturas psíquicas e de
pulsões que estabelecem entre si uma rehtção de c:onjlito. Este conflito é
estrutural, o que impl ica dizer que o indivíduo" nunca se apazigua numa
hannonia estável. Esta é apenas momentllnea, na medida em que o conflito
impõe ao indivíduo um desequilíbrio constante.
É a diversidade pulsional que submete o indivíduo a este desequilíbrio
estrutural, desordenando a instância do ego e impondo ao sujeito um trabalho
88 PSICANÁLISE, CIÊNCiA E CULT URA

permanente de simbolização, para que a hannonia perdida possa ser restabe-


lecida.32
A multiplicidade e a diversidade pulsionul revelam que o ser da pulsão
é parcial por nuturezn, mas ~1s pulsões estabelecem entre si relações provi-
sórias em unidaJes maiores e que estas se rompem nos fragmentos originá-
rios. num processo regulado pelo uin:unismo libidinaJ. 33
Considerundo esta multiplil:iuude de materiais do psiquismo, que se
representa pelu diversidade dos ammjos possíveis entre as pulsiíes, é que o
método do:: decifrnmento consiJ1JÍuo por f.reud toi denominado de psico-análise.
Com efeito, como revela n metMo1~1 da ciência química de onde esta palavra se
derivou, este método pretcnue ser uma wwlítica das pulsões, de fonna que o
objeto do disçurso psicanalítico se fumla nas impossibilidades que se colocam
para o sujeito quando as pulsões sexuais d~vem se inscrever no U11iverso da
palavra. Enfim, é n;t ru1icula<;ão do <:orpo erógeno e do verbo que se apresen1am
OS diferentes JeslÍllOS que podt:m se <.·o locar p:lnl as pulsões sexuuis.
Foi no campo desta problemfuica quo:: se delinearam as diferenças
b<ísicas entre Freud e Jung. Para este, sempre foi problema reconhecer a
existência da p~rversidade pol Í111orfa infantil, da multiplicidade pulsional, do
complexo de Ed ipo e do sujeito descentrado da instância do ego. Por isso
mesmo, Jung procurou desscxualizar o ser da pulsiio- com a fonnulação
de que o !nvestim~1~10 pulsional ~ realizado por uma energia psíquic_a em
geral e nao pela !Jbtc.lo· 4 - medtante a qual a concepção da sexualu.lade
identilicada com a genitalidade toi restabeleciua. Em conseqüência, com o
primado da genitalidadc, o sexual não é mais representado como uma
multiplicidade de pulsõl!s que buseam o prazer, pois o sexo visaria a repro-
dução. Com isso, a unidad~! do indivíJuo no registro do ego é reswumda pela
inva lida~·ào da teoria da ti i,·ersidaJ e pulsional.
Na prátint c:línica, 110 registro do CIH:aminhamento do proce.<>so psica-
nalítico, a concep,·ão uc Jung promove uma inwrsão metoJolôgica signifi-
cativa, pois enfatiza a importâm:ia da opl!ração do:: :>in lese face à operação de
análise, na medida em que o funcion>uJJ ento dl!sta de maneira isolada seria
moralmente perigoso.35 Enfim, est:l consiucra\·ão de ordem metodológica é
o desdobramento nec:ess~rio do restabelecimento da unidade do indivíduo
na instância do ego e da uni fic:ac;:io da diversidade das pulsões no registro
da genitalid:tde. '
Nesta perspecti v :~, f.reud rl!spondi:ll ao pastor Plister numa carta datada
de 19 18, quando este se mostrava excessiYamcnte preocupado com os efeitos
moralmente danosos da analítira das pulsões e realçava com Jung a im-
portância da síntese, que mctoc.lologi<.:amente o que importava para a figura
do analista era a descon.stru,·ão pulsional e que a síutcse uas pulsõcs cabia ao
analisnnte:
DESEJO E PROMESSA - ENCOmRO IMPOSS iVEL 89

Na ttcnica psicanalíticau:lo ~ necessário um trabalho especial de sfntese;


disto. o indivíduo se encarrega mdhor do que nós.J6

O pressuposto ético-religioso desta perspectiva de síntese das pulsões


é bastante evidente, pois o que esti1em questão nesta demanda de síntese pelo
analista é a imposição de uma norma de regulaçlio da sexualidade. A
importância disso é que esta proposição continua sendo bastante atual na
crítica que o discurso católico dirige à psicanálise , pois o que se questiona é
a oposição entre um sujeito delinido como multiplicidade descentra<.l a e um
sujeito uno e totalizado. Assim, no discurso de recepção do V Congresso
Internacional de Psicoterapia e Psicologia Clínica, Pio XII sublinhava o
dever, contra a perspectiva "psico-analítica", de apreender "o homem como
unidade e totalidade psíquka".n

V. O sujeito e o Outro

Então, se é verdade a importância da concepção de um sujeito múltiplo e


descentrado no debate da psican:.ílise com a rel igião, podemos retomar
agora outras indicações deste pressuposto fu ndame ntal no disc urso
freudiano.
Esta concepção teórica foi delineada pelo d iscurso freudiano desde os
seus primórdios, ao fundar a tópica do inconsciente,38 sendo rigorosamente
representada em A imerpretaçt1o dos ~·onlws:-9 e formali zada nos escritos
metapsicológicos de 1915.40 Assim, na oposiçi'io entre diversas instâncias
psíquicas- inconscienrclpré-cons~:icnte/consciente - , Freud circunscre-
veu a distribui1;ão tópicu do psiquico em diferentes registros, que estabele-
cem entre si rela~·ões de <.:ontlito mediados pela censura.
Foi na segunda tópi~a que esta oposição conflitante entre registros
psíquicos se reve lou de m;meira mais dramática c indicou também de forma
evidente a posição restrita ocupada pelo ego na pretensa hegemonia exercida
sobre o psiquismo. Com deito, quando o psiquismo é uistribuído entre os
registros do id, do ego e d'o supcrego, não :tpenas a heterogeneidade das
instâncias se revela de moúo mais patente, corno também o ego se apresenta
em sua dependênci:t rad ic~tl f:u.:e aos demais r(!gístros psíqu icos e face à
realidade.
Em O ego e o id, ensaio em que f-reud fonnalizou a então inovadora
concepção uo psiquismo, a Jikrença da psicanálise frente à psicologia
clássica -que conferi" ao ego :t hcgcmonin compl~ta sobre o indivíduo-
foi reprcselll:tda por uma mct:'ifora polí tic.·;~. Com efeito, o ego foi figurado
como sendo um monarca constitucion:tl face ils llem:1is instâncias psíqu icas
90 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

e às exigências da realidade, a quem deve se submeter para o estabelecimento


de suas decisões e de suas açõcs.41
Nessa tópica, o pólo da realidade se apresenta como constitutivo do
psiquismo do l>-ujeito, sendo representado pelo Outro face ao qual o infante
se submete para se constituir como sujeito no registro simbólico. Assim, o
Outro é a mediação necessária pela qual as pulsões como força (Drang)
devem atravessar para se inserirem no uni verso da representação e, então, se
inscreverem em representantes-representação.42
Além de revelar com maior nitidez a perda de hegemonia do ego sobre
o psiquismo, é importante ressaltar nesta mudança de tópica a ênfase maior
atribuída por Freud à dimensão econômica do psiquismo. Assim, a economia
energética das pulsões passa a ocupar um lugar mais relevante na metapsi-
cologia freudiana do qu~ no quadro teórico anterior. O que implica dizer que
a questão da pulsüo como força se apresenta corno um tópico crucial. Com
isso, a problemática da inscriçüo da força pulsional no universo da repre-
sentação se impõe como um problema teórico fundamental e como uma
questão clínica básica no contexto do ato psicanalítico.
Com efeito, como estrutura psíquica a instância do id é mais abrangente
do que o registro do inconsciente, pois além de inserir este como resultado
das inscrições das pulsões no universo da representação, indica o pólo
eminentemente pulsional do psiquismo. 43 Portanto, Freud destaca na segun-
da tópica a existência de um registro psíquico marcado pela economia das
pulsões, sem apresentar qualquer representação. Em contrapartida, é esta
força da economia pulsionul que impõe ao sujeito um trabalho permanente
de inscrição da "pulsionalidade" no seu domínio.
Assim, o registro do id é o campo por excelência da pulsão de morte
(Tanatos), definida por Freud como o espa<;o psíquico da desintricação, da
existência da pulsão em estado puro, que se regula pela lógica da descarga
imediata. Então, a pulsão de morte se encontra na exterioridade da lingua-
gem, não estando inscl'ita no universo da representação. Portanto, o ide a
pulsão de morte são os herdeiros conceituais, 11este contelltO do discurso
freudiano, da perversidade polimorfa infantil e das pulsões parciais que
foram introduzidas por fremi desde Três ensaios sobre a teoria da sexuali·
dade. 44
Delineada pela figura do silêncio e como :.mtipalavra, por sua ellterio-
ridade ao registro da línguagem, 45 a pulsão de morte se impõe ao sujeito
"como uma medida de exigência de trubalho que é imposta ao psíquico, em
conseqüência de sua ligação ao corporal",46 como formulava Freud como
uma das características básicas da pulsão. Entiio, mediante o Outro, a pulsiio
de morte se inscreve no universo da representação pelo trabalho de ligação
empreendido pela pulsi1o dn vida (Eros).
DESEJO E PROMESSA- ENCONTRO IMPOSSÍVEL 91

Porém, por esta "elligência de trabalho" permanente que impõe ao


psiquismo, a pulsão de morte coloca o sujeito diante de seu desamparo
fundamental. Este desamparo é estrutunal, o que implica afirmar que não é
superado sem vestígios como um estágio genético-evolutivo do desen·
volvimento do indíviduo. mas permanece como algo insistente que submete
o sujeito a um trabalho pennanence de simbolização, pela dimensão traumá~
tica que caracteriza o impacto pulsionaiY Por isso mesmo, em seu percurso
teórico final, a angústia foi tematizada por Freud como se inserindo numa
estrutura de antecipação e de sinalização do perigo, pela qual se evidencia o
impacto pulsional na economia do sujeito, para evitar a experiência do
traumatismo psíquico. 48 .
Evidentemente, este desamparo fundamental é tanto maior quanto
mais precoce é o indivíduo no tempo de sua história, pois nestas condições
a individualidade não dispõe de meios instrumentais de simbolização para
realizar este dominio do impacto pulsional. Neste contexto, podemos formu-
lar que a estruturação do sujeito representa a aquisição, por este, de instru~
mentos de simbolíza\~ão pam empreender o domínio e a ligação das pulsões.
Porém, apesar deste trabalho de inscrição das pulsões no universo da repre-
sentação, permanece sempre uma diferença na estrutura psíquica entre a
capacidade de simbolíza~,·ão do sujeito e a força do impacto das pulsões que
caracteriza a estrutura do desamparo fundamental.
Em função de sua prematuraçào biológica e psiquica o infante deman-
da necessariamente a presença das figuras parentais, para que possa sobre-
viver e realizar a ordenação do seu psiquismo. Esta ordenação se empreende
nos registros imaginário e simbólico, mas o processo encontra a sua domi-
nância no registro simbólico. Assim, através das figuras parentais se realiza
um trabalho insistente de investimento libidinal do corpo natural e de
interpretação da experiência pulsional do infante, que desta maneira vai
estabelecendo de modo progressivo o domínio e a ligação das forças pulsio-
nais. Enfim, a resultante deste processo é a simbolização primordial, onde as
forças pulsionais se inscrevem no universo da representação.
Portanto, a inserção do infante no universo da representação se realiza
mediante o Outro que ocupa a posiçflu de intérprete, no qual o infante se
aliena para se humanizar e se t·onstituir como sujeito. Desde o "Projeto de
uma psicologia científica", Freud já destacava esta exigência fundamental
da interpreta<;ão pelo Outro pam a constituição do sujeito. 49
Nesse contexto interpretativo estão condensadas diversas formulações
psicanalíticas, mas que vwnos separar nos seus vários momentos e registros
teóricos, para melhor destacar a suu m1iculnijiio conceitual. Assim, vejamos:
LO sujeito não se constitui somente de fonna intrinseca, mas princi-
palmente de maneiro e.'Ctdnseca, mediante o Outro;
92 PSICANÁLISE, CI ÊNCIA E CULTURA

2. O que implica dizer que a concepção de sujeito elaborada pelo


discurso freudiano é fundada na intersubjetivülad~. isto é, o sujeito se
constilui necessariamente através Je um outro sujeito;
3. Esta constituiçiio do sujeito através do Outro se realiza nos registros
do corpo erógeno e ôu representu~·ão, de maneira que sem este eixo da
alteridade a sexuação do corpo e o advento do sujeito nos processos de
simbolização seriam impossíveis;
4. A constituição Jo sujeito no registro do corpo erógeno se realiza
através da figura materna, que "perverte" a economia natural do corpo
infantiL Vale dizer, sem o investimelllo erógeno do corpo natural do infante
pela figura materna não existe qualquer possibilidade de constituição do
corpo erógeno e da dinâmica pulsional, como afinnava Freud desde os Trê.r
ensaios sobre a teoria clal'e.nwlidaclc;50•51
5. Porém, se este in\'estimento erógeno é fundamental para a cons-
tituição do sujeito e pan1 u sua abertura ao universo da sexuação, esta
"perversão" ua economia du ~:orpo naturul do infante é a condição de
possibilidude de sua e:~periênt·ia traumiltica origimíria e do seu desamparo
fundamental, pois é o que produz a pulsa\"iiO do sexual;
6. Finalmente, frente 11 esta força pulsional provocada pelo inves-
timento erógeno na suu mlllt ipl ic idade e di vcrsidade, o Outro como intérprete
realiza o trabalho de liga~·i\o pela inscrição da força pulsional no universo da
representação.
Nesta perspectiva, u sedu~·ão originúria e a interpretação primordial
são representadas no psiquismo do sujl!ito como reuliz<~ções das figuras
parentais. Então, é através destas figuras que o infante realiz~ a sua alienação
primordial e pode se ~:oustituir como sujeito. Porém, a releváncia da inter-
pretação pelo Outro é fundamental para que o infante possa dominar o
impacto da pulsiio sexual e promover" sua inscri~·ão no unh:erso simbólico.

VI. Palavra e aro


É neste contexto que o discurso freudiano pode assumir como uma fonnula-
ção legítima para a psicanálise o preceito básico do Evangelho de Sllo João,
no qual se afirma que "no princípio era o Verbo", onde o primado para a
constituição do sujeito e do mundo é conferido à linguagem.
Com efeito, a palavra primordial é vei<:ulada pelas figuras pnrentais
que se apresentam na ex.periênria do sujeito como sendo os suportes do
registro simbólico e do Outro. Pam Freud, :~s tiguras dos pais e seus
representantes seriam os ''d~uscs" primordi;~is do infante, que lhe iniciam na
cartografia secreta do corpo e lhe ensinam a acidentada geografia do mundo,
de forma a marcarem o infante de maneira indelével em sua estrutura psíquica
DESEJO E PROMESSA - ENCONTRO IMPOSSÍVEL 93

e na ordenação simbólica do mundo. Por isso mesmo, nos primórdios da


ordenação psíquica do infante os pais siio representados como figuras onipo-
tentes, sendo os con·elatos da onipotência que permeia a organização narcí-
sica do ego ideal.~2
Porém, é preciso que posteriormente o sujeito possa desarticular defi-
nitivamente na sua estrutura psíquic<J a palavra que lhe constitui no seu ser
e as figuras parentais que siio os mediadores do registro simbólico. para que
possa se emancipar da posição de infante e assumir a direção do seu desejo.
Paro isso, é preciso que as figums parcntais possam morrer simbolicamente,
isto é, que sejam destituídas pelo sujeito de sua onipotência primordial e
relalivizadas na existência de seu poder, para que assim o sujeito possa
escrever as mnrcns dn sua história. É a esta destituição da onipotência
primordial. do infante e das figuras parentais, que o discurso freudiano se
refere como sendo da ordem d:1 e,rperiência da perda e da castração. Enfim,
é com a morte da onipotênciu dus tigums parentuis que estas podem adquirir
a consistência evanescente do símbolo e emancipar definitivamente a palavra
no funcionamento do sujeito.
Esta problemática foi fonnulada pelo discurso freudiano em Totem e
tabu, onde se realiza a leitura do mito da horda primitiva construído por
Darwin e a que FreuJ impõe um;~ reflexão singular em sua interpretação.
Nesta leitura, os filhos assassinam em conjunto a figura onipotente do pai
primordial e constilllem a sociedade humana, marcada pela interdição do
incesto.
A mone da figura do pai primordial se realiza em função da onipotência
que o caracteriza no exercício do poder, pois, detentor da totalidade dos
prazeres e das riquezas. impede aos filhos qualquer incursão no território
inrerdito do poder. Diante do reconhe(.·imento de sua fraqueza face à figura
paterna, aos tilho~ somente resta a possibilidade de se associarem para
superar a sua fragilidade pela conjugação de suas forças.
Em função deste assassin:uo do pai originário e da culpa resultante
deste ato, o pai concreto desaparecido seria representado simbolicamente
pelo totem. indicando por esta ausência que este lugar fundador do pai é
eminentemente simbólico; se qualquer um dos filhos pretender ocupar este
lugar sagrado estará fadado ao mesmo destino. Com isso, o poder é comparti·
lhado e distribuído entre os innãos, sempre mediado pela figura simbólica
do pai morto. 53
Qual é o lugaro<:up::~do por este mito dns origens no discurso freudiano,
na medida em que não se pretenda conferir a esta narrativa nenhuma
realidade histórica? O que importa destac:1r na leitura deste mito é que, para
inscrever símboli<:amente a figum do pai motlo no psiquismo, o p-.tí onipo-
tente precisa ser assassinado por um ato do infante, que assim lhe destitui de
94 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

sua onipotência e revela simultaneamente que o poder que lhe era atribuido
lhe transcende, na medida em que é a palavra que funda a relação entre os
diferentes sujeitos no registro simbólico.
Esta questão é encaminhada por Freud no final de Totem e tabu, quando
se precipita como conclusão deste ensaio magistral que "no princípio era o
ato".S4 As!>im, o discurso fre udiano assume como um postulado psicanaHtico
o apotegma fáustico enunciado por Goethe.55 Esta fomlUiação concisa do
Fausto se contrapõe literalmente ao primado atribuído ao verbo no Evangelho
de São João, de maneira que na prioridade ontológica conferida ao Verbo ou
ao ato se estabelece uma oposição entre diferentes concepções do sujeito e
do mundo.
Com efeito, a prioridade atribuída ao ato sobre o verbo significa para
Goethe, antes de mais nada, a ruptura com o primado conferido à palavra
divina na tradição do Cristianismo e o anúncio de um universo constituído
inteiramente pelo homem. Assim, como :mífice do mundo, o sujeito se abre
para a constituição de sua história, impulsionado pelo seu desejo e instru-
mentado pelas ciências constn1ídas pelo homem.
Na tessitura poética do Fausto, ordena-se uma transgressão fundamen-
tal do sujeito, que se materinliza no discurso dramático pelo pacto com o
diabo em troca da aquisição da ciência. Por isso mesmo, esta transgressão é
um ato instaurador de uma outra ordem do mundo, representando um pecado
crucial face aos valores da ·tradição do Cris.tianismo e do universo divino.
Porém, é por esta transgressão que o sujeito abre as portas para um outro
mundo e assume inteiramente a sua condição de sujeito, pois passa a construir
a sua própria história pela ciência por ele constituída, trocando então a
segurança divina pelo fruto proibido do saber. Enftm, ao perder a segurança
sust~ntada pelo verbo divino o sujeito deve arcar agora com o seu desamparo
fundamental, onde o desejo inuicando a sua falta ê o que lhe impulsiona na
busca do saber.
Portanto, ao assumir o upotegma fáustico enunciado por Goethe no
discurso psicanalítico, F.reud está fonnulando que para que o 1nfante possa
desc.obrir a ~struturo1 uo v~:rbo na sua l:Onstitui~ãv eminentemente simbólica
e-possa assumir os riscos do seu próprio desejo, é-preciso que ele rompa com
a "proteção divina" fomecida pelas ftguras parentais. Desta maneira, consi-
derando a oposição entre as categorias da pré-história e da história,56 o sujeito
pode se deslocar do registro da pré -história para o da história, podendo viver
entllo o dest.jno traÇado pelo seu desejo.
. ·. Porém, esta mudança di! posi~·ão do sujeito face ao registro simbólico
e às ftgllras parentais é confli tivll, pois impõe ao sujeito o reconhecimento
tio seu desamparo fundamentnl,e da castração, pam assumir então a direção
do·seu desejo.
DESEJO E PROMESSA - ·ENCO NTRO IMPOSSÍVEL 95

Por isso mesmo, a promessa de salvação e a promessa de cura cons·


titucm uma sedução bastante fácil para o indivíduo, pois, apesar de ser
alienante para o sujeito, oferece a este um apaziguamento ilusório face ao
desamparo fundamental, camullando a angústia de castração. Portanto, a
religião oferece um curto-circuito ao sujeito, pois lhe promete a ilusão de
escapar d~s impossibilidades colocadas no desamparo pela alienação na
cert~za infalível da crença. Promessa que sem dúvida protege o sujeito, na
med1da em que lhe afasta uo que é imprevisível no desejo.
Nesta perspectiva. Freud formulou que a experiência psicanalitica se
distinguia das práticas terapêuticas baseadas na hipnose e na persuasão, pois
estas, como práticas penneadas pela promessa, não apenas se fundam como
principalmente permanecem restritas no registro da sugestão. Entretanto,
para o discurso freudiano a sugestão é um efeito decorrente da transferência,
fundando-se na sua tessitura libidinal. A psicanálise não pretende curar pela
transferência, mas se submete aos seus efeitos como sendo um desdobramen-
to inevitável do processo analídco. Por isso mesmo, impõe-se no ato psica-
nalítico a exigênci!l de interpretação da transferência, para explicitar assim
a lógica que a C-'\trutura e para poder decifrar então a verdade singular da
história do sujeito. 57
Enfim, se a suge~tão, como efeito produzido na transferência, não é
articulada na ordem da interpretação, a ilusão de salvação e a ilusão de cura
podem se realizar como promessa e se materializarem como ato no dis-
positivo terapêutico.

VI!. Pastores de almas seculares?


~pe_sar de pretender se fundar na verdade do desejo e não se colar a qualquer
tlusao, O futuro de uma ilus(io foi ca:iticado por alguns discípulos diletos de
Freud, na medida em que a perspectiva entreaberta neste ensaio revelava uma
nova modalidade de crença baseada no ideal da ciência. Vale dizer, para estes
discípulos, Freud teria acreditado nas promessas promovidas pela ilusão
cientificista.
Assim, Pfister respondeu aos postulados de O futuro de uma ilusdo
com um ensaio intitulado A ilusüo de um futuro, apontando que a dominação
do homem sobre a ordem natural não implicava absólutamente o domínio da
ilusão humana. 58 Da mesma forma,num comentário lapidar sobre este escrito
freudi ano,-Reik destacava a ilusão cientificísta que perpassa as considerações
de Freud.59
Evidentemente, tal problemática é fundamental pnrn as considerações
finais deste comen tário, pois assin:da que qualquer modalidade de saber que
não seja originariamente religioso pode ser perfeitamente inserido pelo
96 PSICANÁUSF.. CIÊNCIA E CULTURA

indivíduo na lógica da fé e du crença. Assim, apesar da rude e interminável


crítica que teceu das ilusões humanas e da escuta sutil para captar as
artimanhas do desejo, a psicanálise também pode ser recuperada para os
registros da promessa e da salvação.
Este desdobramen to se realizou historicnmente com tendências impor-
tantes do movimento psi<:analítil:o pós-freudiano, quando a psicanálise foi
institucionalizada numa grunde burocracia centralizada, na qual as hierar-
quias e os rituais institucionnis apresentam semelhanças espantosas com a
instituição religiosil. Neste contexto, o tlíscurso psicanalítico se transformou
nos seus valores fundamentais. sendo marcado com as características de
religiosidade e por promessas de sa l va~·üo pela cura, onde os analistas
passaram a acreditar que potliam prometer algo e oferecer aos seus anali-
santes o ideal da cura como salvação.
Com isso, o discurso psicanalítico afastou-se mdicalrnente do projeto
freudiano, e p:m.:elas significativas do movimento analítico acreditaram até
mesmo ser possível a construção de uma ordem social baseada nos supostos
valores da psicanálise. Pura isso, artkularam-se como instituição com os
discursos médico e psiqui{nrico para renovar os instrumentos de poder da
sociedade disciplinar. Conseguir:un assim reulizar parcialmenle, pela psiqui-
atria preventivista, o pesutlelo que utcrroriznvu Frcud como um pressenti-
mento sombrio sobre o fulllro da psicanálise:
Nossa civilizn\·llo exerce umu prcss!lo quase intolcrfiVcl sobre nós, ela pede
um corretivo. É inscnSilto esperar da psican:llisc que elo seja ch:~mada,
apesar de todas ii S diliculóildes que 11prcscnta, para oferecer um dia aos
homens semelhante corretivo'! Talvez um amcrk:ano tcrâ um dia a idéia de
emprcgm umn pnrtc óc seus bilhões para fazer a educação analítica de seus
social wurkusc construir um cx<'! rcito par:l a lutll contra as neuroses, filhas
de nossn c ivil iza~·ilo!
-Ah! Ah! Uma nova l'Sp<'!dc tk " Ex~ rcito da Sal vação"!
-Por que não'! Nossa imagin:wilu nilo pode ttnbalhar senil o segundo
modelos. A on<.la de prosNitos que inv;~d ir então a Europa deveria evitar
Victút, onde a <tnftlise sofrcri:t um traumatismo precoce detendo a sua
evolu<;ão".w

Nesta perspectiva, psicnn:'dise e re!igiüo convivem mais facilmente na


atualidade do que nos primórdios do movimento analítico, pois a transfor-
mação realizada nos fundmnentos do Jiscurso psicanalítico e a remodelação
realizada nos seus valores na dire<,·fio ue reulizur promessas de salvação
retiraram da psic:múlise o seu potencial crítico das ilusões do sujeito.
Psicanálise e política:
unta introduçüo metodológica1

I. A psicanálise e o discurso toflllizante da polfrica

A relação cJa psicanálise e da políticn jú foi objeto dos mais acalorados


debates ao longo da história da psicanúlise. Essas discussões sempre se
pautaram pel:1 controvérsia, num embate marcado pela paixfio dos interlocu-
tores, principulmente por parte daqueles que reivindicavam da psicanálise
um engajamento político mais definitlo e que a criticavam por sua pretensa
"neutralidade". Dizia-se, assim, que esta postura da psicnnúlise seria revela-
dora de uma evidente posi<;ão política, isto é, a sua "neutralidade" seria a
assunção de um lugnrdefinido no campo político e indicaria a sua ideologia.
Além disso, como complemento dt!stus atribuições, a psicanálise ocuparia
uma posição "clitista", seja pelos custos que estariam implicados em sua
prática seja pela sua longu tlum~·flo.
Com esta fonmtl:wão le vantei um número de questionamentos que não
silo estranhos a nossos ouvidos, mas qu<: cYidcnci:.un, contudo, um enreda-
menta de diferentes problemas e planos de ;má lise. Porém, estas questões
foram enunciadas freqiie!ntemente desta maneiru e, numa certa medida, ainda
o são. Por isso mesmo. resolvi partir deste lugar comum p:u11me interrogar
sobre esta problenllíticiL Nesta con tig ura~·üo discursiva, cabe perguntar
inicialmente quem é o referente destas atribui\'Ões: a psicamílise, enquanto
campo específit·o de saber'! Ou a imaitu i~·ão psicana!itica? Ou, então, os
psicanalistas, ou par~·elas destes, enquanto ngentes sociais'? Sublinhar a
existência destes diversos referentes, que se encontram fundidos nestas
atribuições, implica assinalar que existe uma formulação totalizante sobre a
relação da psicanúlise coma política que t·abe col<x:ar aqui em relevo, indo
em busca de uma partkulariz<u;iio dos tópicos lJllt! pem)itam um melhor
dimensionamento desta problem(ttica.
Destaquemos ent:ío alguns fios discursivos que sustentam algumas das
fonnnlaçõcs sobre t<~l relação. Na discrituina<;iio destes enunciados procura-

97
98 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

remos configurar algumas tem6ticas. Porém, não anteciparemos respostas,


até mesmo porque não as temos de antemão, mas vamos nos indagar sobre
alguns pontos. Enfim, nosso esforço será o de circunscrever um campo
pertinente de questões e não o de fonnular respostas apressadas.
Assim, vejamos. O que se sublinhava era o estilo totalizante que
caracteriza o discurso enunciado anteriormente sobre a relação da psicanálise
com a política. Este discurso ocupa um lugar histórico muito importante nas
colocações sobre o que é o "político" e o "apolítico" na psicanálise e define,
pela própria exigência de totalização que lhe é inerente, as regras pelas quais
uma certa prática soc ial é considerada politicamente como "positiva" ou ·
"negativa". O que significa dizer que este discurso totalizanle sobre a política .· ·
se desdobra num discurso ético sobre as práticas sociais, hierarquizando-as,.
e ntão, segundo o seu sistema de valores. ·
Ora, este discurso tolalizante sobre a prãtica política é o que foi
incisivamente questionado desde os anos sessenta, pela e mergência· de
um conjunto de movimentos sociais que não se adequavam à exigência
de totalização detinida por este discurso. Estes movimentos são represen·
lados por minorias sociais. éticas e sexuais, que apresentam configurações
específicas em suas lutas contm o poder e que não se adequam a este
• estilo totalizante de engajamento político. A questão destes movimentos
sociais não se coloca como sendo a conquista do aparelho do Est:tdo, mas a
da busca de reconhecimento de suas diferenças sociais, é ticas e sexuais, isto
é, da afirmação da legitimidade destas difere nças, para que a posse destes
emblemas pelos agentes sociais não implique a diminuição do seu valor
social.
Estes movimentos sociais tiveram uma enorme tmnscendência his·
tórica, pois através deles se materializou uma outra concepção do ato
polilico. Com efei10, a importância que tiveram tais movimentos consistiu
em indicar a existência de uma grande multiplicidade de lugares sociais onde
se realizava o confronto com o poder, de maneira que a oposição conquis·
tar/não conquistar o aparelho de Estado deixou de ser o critério absoluto para
se dizer algo sobre as conse()iiências da prática política, oposição esta que
norteava o julgamento anterior sobre tal prática. A crítica ao discurso
totalizante foi uma das condi~·ões de possibilidade para a emergência de
outros movimentos sociais a nível instiLm:ional que não existiam anterior-
mente, ou que, então, não eram reconhecidos como pertencentes ao registro
político. Assim, os discursos críticos às práticas médica e psiquiátrica se
organizaram nesta conjuntura histórica, da mesma forma como certos movi·
mentos críticos face à instituição pedagógica. Portanto, a consideração da
especificidade de cenas príaticas sociais colocava, em contrapartida, a de-
manda para o exame de problemas políticos particulares que lhe seriam
PSICANÁLISE E POLÍTICA: UMA INTRODUÇÀO METODOLÓGICA 99

a
inerentes. Enfim, constituição de análises teóricas sobre os micropoderes,
com as pesquisafde Foucault,2•3•4 se realizaram também nesta conjuntura.
Neste contexto, a relação da psicanálise e da política vai ser repensada,
perdendo então o estilo totalizante anterior em que esta questão era fonnulada
do modo caricato que esbocei inicialmente. Assim, pensar agora esta relação /
implica sublinhar devidamente as questões particulares ao campo psicanall·
tico e não considerar· a política usando como parâmetro as exigências do
discurso totalizante.
Comecemos por remontar esquematicamente algumas linhas teóricas
que circunscreveram esta problemática na perspectiva do discurso totali-
zante, pois, apesar deste se encontrar historicamente questionado, ele é ainda
bastante presente no nosso espaço social e seus antigos arg umentos se
apresentam revestidos com novas formas.

Il. Psicanálise ou politica?


Examinemos com mais vagar as formulações encaminhadas na introdução.
Quem afirmava, no campo da política, que a psicanálise não era uma fonna
engajada de pensamento e que sua posição de " ne utralidade" correspondia a
um evidente posic ionamento ideológico? Evidentemente. um interlocutor de
fác il localização histórica e que te ve um impacto decisivo na constituição de
uma representação crítica das esquerdas brasile iras sobre a psicanálise. De
fato, esta fonnulação se origina de uma particular tradição marxista e que
denominaremos de stalinista. Então, primeira afirmação deste debate: tal
fonnulação não se origina do pensamento da esquerda em geral, mas de um
setor decisivo da mesma que se constituiu com a tradição stalinista. Partindo
desta matriz ideológica, poderemos achar, se quisennos, uma série de va-
riantes discursivas que encontram neste núcleo a fonte para as suas enun·
ciações.
Procuraremos delinear alguns contornos desta matriz discursiva. Du-
rante décadas a psicanálise foi literalmente execrada pelo pensamento mar-
xista oticial como sendo uma ideologia pequeno-burguesa, por se preocupar
apenas com os con tl itos psíquicos das ind i v id ~ai idades e não conferir, assim,
o devido lugar aos grandes problemas sociais que acionavam as massas
proletárias em seu confronto com a burguesia. Este foi o padrão ideológico
que dominou o pensamento marxista desde o início dos anos trinta até a
década de sessenta, isto é, o período dominado pela orientação stalinista no
movimento comunista internacional.
Esta foi a marca indelével que o stalinismo imprimiu nas relações
oficiais do marxismo com a psicanálise, encontrando-se presente como um
mandamento dumnte quatro décadas na tradição política ocidental. Antes da
100 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CUI.TURA

hegemonia stalinista, contudo, emm diferentes as relações da vanguarda da


~vol~ção vitoriosa com a psicanálise. Com efeito, se recordannos as expe-
nêncJ~S de Vem Schmidt nos anos vinte e a liberaHzação dos costumes
sexua1s na. União Soviética, no período lenínista pós-revolucionário, pode-
remos reg1strar a presença do pensamento freudiano como um referencial
ideológico importante, dentre outros, que orientava as mudan~as.5 Porém, a
. orientação stalinista obstruiu qualquer consideração pela inovação trazkia
pela psicanálise ao fechar, simultaneamente, de fonna definitjva o de-
senvolvimento das po tencialidades da Rússia pós-revolucionária no que
concerne ao lugar da subjetividade e .d a sexualidade. Neste contexto a
psicanãlis7 foi estigmatizada como um movimento pequeno-burguês, qu; se
preocupana apenas com a problemótica do indivíduo.
Sabemos atualmente o significado e os efeitos desta virada sta linista
não apenas no que se refere ã leitum do pensamento de Marx, mas também
no que representou de re forço das estruturas totalitárias do Estado soviético
e. da bur?cracia partidária. Diante dessas instâncias, qualquer exigência de
smgulan~ad~ manifestada ~elas individualidades era considerada ilegítima,
sendo atnbutda a um desvto pequeno-burguês e a um virtual desencami-
nhamento na construção do Estado socialista. Enfim, o terrorismo anti-sub-
jetivo atingiu as raias do absurdo, e a exclusão de qualquer legitimidade
possível a ser conferida no discurso freudiano deve ser analisada consideran-
do esta conjuntura histórica.
A transformação do pensamento de Politzer sobre a psicanálise, antes
e_após os anos trinta, revela esta mudança na ideologia marxista que as-
smalamos. Assim, na "Crítica dos fundamentos da psicologia" o discurso
fr:ud_iano é. rec~nh.eci,~o, por P~litzer, na sua inovação epistemológica face
ã p~1colog1a class1ca , na med1da em que retirou a psicologia dos impasses
t~óncos criados pela inexistência da categoria de sujeito e a conseqüente
d1s~lução de seu objeto numa intinidade de faculdades psíquicas. A psica-
nálise é valorada como o primeiro empreendimento teórico que colocou o
"d~am~ ~tumano:· como eixo epistemológico para a construção do saber
psJcologiCO. Por 1sso mesmo, e la é destacada como um dos fundamentos para
a constituição de urna "psicologia concreta".6
Mesmo considerando as críticas fonnulauas à metapsicologia freudia·
na, que revelaria o reaparecimento do antiquado instrumental de conceitos
da "psicologia diíssica", Politzer pontuava o que existia de fundamental no
~iscurso freudiano, apresentando os seus argumentos, inclusive, com um
gra~de sabo r de modernidade. Com efeito, o destaque conferido pela psica-
nn!Jse ao "drama humano", como eixo fundantc do seu saber, abre o horizonte
para se pensar o aro psicanalítico como fundado na relação intersubjetiva,
na qual a experiência transferencial e a 1.:línica psicanalítica são colocadas no
PSICANÁLISE E POLÍTICA: UMA INTRODUÇÃO METODOLÓGICA 101

primeiro plano da constn1ção epistemológica da psicanálise. Porém, nofinal


dos anos trinta, Politzer jf1 se afastara destas formulações iniciais, atribuindo
outra valoração ao pensamento freudiano e passando a enfocá-lo numa
perspectiva d iversa. 7 .8
É inquestionável a relevflncia hist6ricn que teve o pensamento inicial
de Pol itzer na renovação da pskanúlise frnocesa.9 Desde os anos trinta Lacan
já se referia a esta Jeitum do uiscurso freudiano, 10 no qual o objeto da
psicologia centrado no "dr.ama humano" foi o eixo epistêmico por onde a
inrersubjetividade na experiência analítica foi repensada. Posterionnente, a
perspectiva fenomenológi<.:n que oriemava a leitura de Politzerda psicanálise
seria criticada pelos discípulos de Lu;an, que iriam assinalar a estreiteza de
sua concepção de sujeito, na qual este é situado como existindo apenas na
primeira pessoa e não como um sujeito que po<.le ocupar as mais diversas
posições no plano fantasm(atico. 11
Porém, se ressaltamos a importância desta tradição teórica é porque foi
através dela que se realizou um corte importante na interpretação stalinista
da psicanálise e que teve efeitos importantes, na passagem dos anos setema,
na rel:~çiio qu~ as esquerJas brasileiras estabeleciam com a psicanálise. Com
efeito, foi pela retomada da trilha entreaberta por Politzer, mas por sua
supemção numa perspectiva lacaniana, que Althusser reconsidera a impor-
tância da psicanálise para o marxismo. Assim, a psicanálise é novamente
valorada como uma inovn~·ão epistemológica digna de destaque, com todas
as çonseqüências ideológicas que as revolwjõcs científicas têm o poder de
engendra r na perspectiva teórica de A lthusser. Desta maneira, a es-
pecificidade epistêmica do campo psicanalítico seria aquilo que lhe confere
vigor com~ pensamento crítico, contrariamente às diversas tentativas que
furam realizadas para a anexação da psicanálise a outras formas de saber,
como a medicina. a psiquiatria, a psicologia, a antropologia e a filosofia.
Enfim, Althusserreabre as relações da psican;ílisecom o marxismo, retirando
a psicanálise do limbo em que fora colocada pela ideologia stalinístnP
Considerando esta ve1tente do pensamento marxista podemos subli-
nhar uma primeira linha de tangcnciamento da psicanálise com a política.
Assim, na tradição stalinista o saber psicanalítico é recusado como uma
totalidnde,.dclínean<lo-se como um niín saber e com todas as características
atribuídas à ideologia, isto é, como um discurso constituidor de falsa
consciência e, por isso mesmo, capaz de desviar as massas trabalhadoras de
suas reais contmúições sócio-históricas. A psicanálise seria uma ideologia
pequeno-burguesa e, para a política do proletariado, seria um obstâculo ã
revolução por ter a sua preocupa\·ào <.·entrada na questão da subjetividade.
Nesta perspectiv:1, a rela~·ão da psk:análise e da política seria de exclusãó
absolma: ou a psicanálise, ou n política. Melhor dizendo: ou a psicanálise,
102 PSICANÁLISE, Clf.NCIA E CULTURA

ou a política revolucionária, na medida em que a psicanálise seria colocada


como uma forma de ideologia que serviria aos interesses das classes domi-
nantes.
Porém, é preciso que nos indaguemos sobre algumas categorias desta
forma de pensamento para a qual o realce dado à problemática do sujeito
funciona como obstáculo teórico-prático à problemática da sociedade. As-
sim, a tradição stalinista pregaria o retorno a uma fonna de discurso que
permeava o horizonte ideológico do século XIX, no qual se contrapunha as
categorias de "indivíduo" e de "meio social" como se fossem duás essências
absolutas que não se interpenetravam, de maneira que valorar metodologi-
camente o pólo do "indivíduo" implicava retirar o peso correSjpondente do
pólo "meio social". e reciprocamente. Entretanto, um dos méritos do discurso
freudiano foi o de procurar superar esta dicotomia esquemática, dialetizando
as relações entre "indivíduo" e "sociedade" e assinalando as marcas in-
deléveis que a ordem cultuntl produz necessariamente na comstituição de
qualquer subjetividade.
Assim, se para o pensamento freudiano o sujeito se constitui através
do outro e a partir do outro 13 - enquanto este é o intérprete de seus
movimentos pulsionais originários, de maneira que a subjetividade se funda
efetivamente como um sujeiw-interpretaçcio - , a ordem da cultura estará
presente na construçüo de qualquer subjetividade. Desta maneira, o sujeito
se constitui como ser de conjlito entre as onlens da natureza e da cultura,
tendo que arcicular para a sua fundação as demandas destas séries contrapos-
tas. A formulação freudiana em o Mal-estar na cívílízação se constitui a partir
desta problemática central da interpretação psicant~lítica do sujeito, estando
este definitivamente posicionado como um impossível ponto de articulação
absoluta entre a natureza e a cullura. Então, o sujeito é condenado ao
"mal-estar" que a sua existência cultural lhe coloca, sendo isso o que define.
a dimensão trágica do pensamento freudiano. 14 Enfim, se esta tese não define
com clareza uma política psicanalítica freudiana, ela implica, contudo,
afirmar incisivamente a impossibilidade de harmonia absoluta entre o sujeito
e a cultura, relação esta sempre destinada ao conflito para o suj~ito.
Portanto, não existiria esta relu~·ão maniqueísta de exclusão absoluta
entre as categorias de "indivíduo" e t.le "sociedade" na démarche freudiana,
como estava pressuposta na ideologia stalinista. Com o discurso freudiano,
a individualidade já é marcada pela cultura em suas modelagens pulsionais.
Vale dizer, a individualidade é configurada a partir de uma ordem simbólica
que lhe confere a base de sua org<mização subjetiva. Assim, foi necessária a
ruptura da hegemonia stalínista no plano do discurso marxista oficial, por
um lado, e a emergência histórica das problemáticas da subjetividade e das
minorias sociais como questões políticas nos anos sessenta, pelo outro, para
PSICANÁLISE E POLÍTICA: UMA INTRODUÇÃO METODOLÓGICA 103

que a questão do sujeito fosse formulada de maneira diversa e a psicanálise


pudesse ser represent~1da pelo marxismo numa outro perspectiva.
Posteriormente, esta problemática foi reaberta pela tradição marxista,
principalmente com Althusser, úialetizando a relação de mútua exclusão
entre política. e psicanáli:\e, de modo a conferir a esta um valor crítico que
fora retirado por esta tradição. Contudo, o caminho teórico de Althusser é
eminentemente epistemológico, reconhecendo a especificidade do objeto
teórico da psicanálise e do seu método de interpretação. Entretanto, a política
não é tematizada diretamente COJ no uma questão, como algo que a psicanálise
tivesse acesso ao seu pensar e ao seu fazer, se bem que as críticas indiretas
aos preconceitos stalinistns sobre a psicanálise por Athusser atribuem a esta
um lugar pos itivo no campo ideológico, como um saber científico sobre a
subjetividade, retimndo-a, entiio, do limbo em que fora colocada pelo stali-
nismo.
Enfim, nos anos sessenta já se reconhece a particularidade epistêmica
do campo psicanalítico e a originalidade de sua experiência, não se exigindo
então da psicanálise aquilo que ela niio é e não pretende ser. Este seria um
dos resultados deste percurso teórico-crítico, onde não se pretende demandar
da psicanálise aquilo que ela não pode oferecer, sem que isto implique que
ela seja consi<lerada como um obstáculo à prática da política revolucionária
e tampouco como uma prática constituidora de falsa consciência.

l/I. A psicanálise na política


Com isso reencontramos uma outra vertente da tradição marxista que reco·
loca numa perspectiva diferente a relaçiio da psicanálise com a política.
Porém, também aqui esta relação se caracteriza pela totalização. Se na
tradição stalinista o discurso totaliznnte atribuía um lugar negativo à psica-
nál ise na política revolucionária, nesta outra a totalização adquire o caráter
posit ivo, isto é, de conferir sentido à psicanálise somente quando esta se
vincular à desmistificaçiio da fals~1 cons<:iência. Portanto, nesta outra tradição
a relação da psicanálise e do marxismo não é de exclusão mas de comple-
mentaridade, de forma que o discurso psicanalítico se transforma num
instrumento fundamental du política, exatamente porque pennitiria assinalar
os mecanismns pelos quais as ideologias se enraízam nas subjetividades.
Refiro-me à tradi<;iio freudo-marxista alemã dos anos trinta que encon-
trou em Reich e Fromm os seus teóricos. Esta tradição se constituiu na
conjuntura da ascensão do nazismo, no qual a problemática que se colocava
de modo dramático era <.le saber como e por que as classes dominadas
aceitavam o lugar de opressão política e de exploração econômica a que eram
submetidas, :apesar dos sinais evidentes do processo de dominação revelados
104 I'SICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

pela análise du realidude social. Assim, a problemática da ideologia foi o


espaço teórico desta articula~·ão da psican(tlise com a política, de maneira a
se designar para a psicanálise o lugar de explicar os efeitos e os mecanismos
subjetivos deste processo de dominação, v:lle dizer, as bases intrapsíquicas
em que se enraízam as formações ideológicas.
Assim, as ideologius seriam parcialmente determinadas por certas
configurações intrapsíquicas e modelariam socialmente as individualidades
para atender às demandus da produção social. Neste contexto, o conceito de
caráter se constitui no discurso teórico pura designar como e onde se insere
na estrutura subjetiva o campo das idt::o logias, e a sociedade capitalista
nos seus diversos tempos históricos poss ibilitaria o desenvolvimento de
certas e struturas caracteriológicas para legitimar o processo de domina-
ção. A institu ição familiar e outros aparelhos ideológicos do Estado
seriam os canais por onde se realizaria a produção das subjetividades
domintldas, e que ençontraria na regulaçilo da sexualidade o seu ·ponto
fundamental de impacto.
Sabemos do alcance que tiveram estas noções no discurso teórico e na
prática política lle Reich; algumas lle las, inclusive, adquiriram uma grande
importância para a teoria da técnica psicanalítica. Assim, a oposição caráter
genital/caráter pré-geniwl conslituíu·se como um conceito fundamentnl, da
mesma forma corno os efeitos destu oposição para o encaminhamento do
processo :malítico. 15 Comudu, por mais brillinntes e atraentes que sejam as
múltiplas an:ílises de Rckh para a intt:rpretaçfso de algumas características
da ideologia fascista, 16•17 exislia uma evidente pretensão de totalização
conferida ao discurso psicamllítico e na qual este perdia a especificidade do
seu campo epistemológico de v:didade, isto é, a relação intersubjetiva no
espaço analítico.. Então. ncsL<t totalização conferida à psicanálise - que
passm:ia a interpretar u sociedade como um tollo e não o sujeito num contexto
intersubjetivo - . esta se transforma num saber sobre a sexualidade ·e sua
prática apenas teria sentido se estivesse voltada para liberar as massas
oprimidas, c uja sexual idade esturia imobilizada pela couraça· carac- ·
teriológ ica pré-genital.
Nesta perspectiv:t, a =sociologizaçtio <.los conceitos psicanaliticos Se
realiza, conr vistas a auequur u psican{tlise a esta inserção totalizadora no
espaço social. Assim, a forma pela qual Reich recusa o conceito de pulsão
de morte, interprl!tando-o como uma ideologia Jo pensamento freudiano
em que se eternizaria a forma nssumiua pelo indivíduo na ordem burgue-
sa, é um exemplo flagrante Ji sso. 1 ~ Da mesma maneira, dimensões fun-
damentais do discurso freudinno são sociologizndas por Fromm, a ponto
deste retirar qualquer rele\'o il tl!oria Jus pulsões, marca neflativa do "ins~
tintivismo" biológico de Freud e que funcionaria como um obstáculo a esta
PSICANÁLISE E POLÍTICA: UMA INTRODUÇÃO METODOLÓOICA lOS

pretensão totalizante da psicanálise. Em contrapartida, o caráter é interpre-


tado numa perspectiva sociológi<:a e inserido em longos períodos históricos,
sendo considerado como um efeito das fonnações ideológicas, principal-
mente através da família nas suas relações com as demandas da produção
social.
Nesta tradição marxista, portanto, a psicanúlise não é excluída como
uma totalidade, mas, ao contrário, é restaurada como um instrumento que
pemlitiria explicar ce11as fonnas que assume a dominação social, conside-
rando as vias pelas quais as ideologiús se corporificam nos indivíduos pela
promoção de certas formações caracteriológicas. A noção de "caráter sado.
masoquista" elaboradu por Erich Fromm é um outro exemplo eloqüente
disso. Entretanto:a especificidade do discurso psicanalítico foi rompida neste
movimento, pela constituição de um discurso totalizante que definiria a t'mica
forma legítima para a sua existência. Enfim, a psicanálise se transforma numa
modalidade de libertação da sexualidade, sobretudo com Reich, forma de
possibilitar a circulação da libido que, represada pela couraça caracte-
riológica, romperia com as bases do processo de dominação e, portanto, com
a "psicologia de massas do fascismo".
As equações esquemáticas do freudo-marxismo dos anos trinta, isto é,
a relação direta do caráter com as ide olog ias e as suas articulações com as
estruturas de produção e de poder, foram rompidas pelo pensamento crítico
dos anos cinqüenta e sessenta. Assim, se n:t ideologia stalinista o mecanicis-
mo teórico se colocava na antiquada oposição " indivíduo" versus "meio
social" e se o freuc.lo-m:irllismo proc urou superar esta oposiç-Jo absoluta pela
mediação do conceito de caráter, o met·anícismo permaneceria nesta última
formulação na tentativa de articulac,·ão diret:t entre caráter e ideologia, pois
isso se realizava sem considemr os diferentes registros teóricos que estavam
em pauta e os diversos discursos que deveriam dar conta destes objetos. Com
efeito, consillernr a cultura como constituidora llo sujeito, como pretendia
Freud, não implicava que se poderia instrumentar uma prática policica a partir
das marcas simbólicas imprimidas na subjetividade. Enfim, existiria aí um
snh o mortat no plano da teoria que se desdobraria ilum "voluntarismo" no
plano da prática po lítica. ·
O mérito qlle tiveram algumas das formulações tios teóricos da Escola
de Frankfu11 fo i o de romper com a artit·ula\•ão uireta entre caráter e ideologia
dos autores dos anos trinta. O com:eito de caráler foi substituído pelo de
personalidade, 'nmi·canJo assim a continuidade e a diferença entre estas
tradições. Com ns pesqliis<IS de Auorno e de llorkheimer sobre a "persona-
lidade autoritária", rcnlizadns em 13erkeley no pós-guerra, foi quebrada esta
relação direta, pois tanto· a ideologia "conservador<~" quanto a "liberal"
podiam ser determinadas pela mesma estl'\ltum personalógica. A constituição
106 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

da personalidade a partir dos aparelhos ideológicos do Estado não foi


recusada, mas formulada com maior complexidade, considerando-se com
maior rigor a nova etapa do modo de pi'Odução capitalista, numa reflexão
sobre as novas formas histórit:as de socialização e o impacto que provocam
sobre a estrutura da personalidade. 19
O pensamento marxista da Escola de Frankfurt também se caracteriza
pela exigência de total izaçfio, numa crítica da cultura produzida pelas fonnas
avançadas do capitalismo e seus efeitos çonstitutivos sobre as individu·
alidades. Porém, este discurso totalizante é relativo se comparado com a
tradição anterior, justamente porque caberia conferir o devido lugar à subje·
ti vidade e à calegoria do particular na crítica da cultura contemporanea,20
marcada pela massificação e a unidimensionalidade (Marcuse). A psicanálise
é valorada na medida em que constitui um saber sobre o particular numa
ordem social que tende ao apagamento da diferenciação subjetiva, e o seu
anacronismo histórico constituiria em contrapnrtida a sua grandeza.21 Porém,
encontra-se novamente presente aqui a exigência de totalização da psicaná·
lise, pois o seu discurso é investido como um instrumento crítico da cultura
e ao qual se atribui um grande poder de libertação social.
Assim, o discurso freudiano é revulorizndo em seu potencial ideológico
quando cabe conferir ao particular e à subjetividade um lugar decisivo na
desmistificação de uma ordem social massificante, mas que, parndoJtal-
mente, delineia e possibilita a satisfação das necessidades humanas como em
nenhum outro momento histórico. Em contrapartida, esta sociedade de
abundância, se regula a produçiio das necessidades e a satisfação dos desejos
humanos, torna cada vez mais opaca, para a apreensão dos indivíduos, a
maquinaria sofisticaua que os controla. A resultante disso é o silenciamento
da subjetividade que se apaga em seus traços diferenciadores. O discurso
analítico é, então, por um lado, convidado a fornecer explicações críticas para
as formas pelas quais as individualidades são adaptadas e perdem o seu rosto
nesta ordem social e, pelo outro, como aquele que aponta para a utopia de
um mundo liberto destes mecanismos.
Nesta perspectiva, a psicanálise é inserida num processo totalizante da
crítica da cullllra e tia ideologia comemporaneas e, com isso, se perdem as
marcas específicas do seu campo de positividade. Apenas com Habennas a
especificidade de seu campo é considerada com maior rigor, quando ele
inclui a transcendência da relação intersubjetiva da cura psicanalítica como
um pólo epistemológico fundamental na teoria crítica da cultura. Porém, para
isso, a descoberta freudiana é reimerpretuúa numa teoria complexa dos atos
lingüísticos e da interação comunicativa, de maneim a responder às exigên-
cias mais amplus do consenso e da li bertaçiio 'soci<li promovidos pela formu·
laçilo de Habermus.22
PSICANÁLISE E POLÍTICA: UMA INTRODUÇÃO METODOLÓGICA 107

IV. Os efeitos políticos da psicanálise


Ao longo deste percurso constatamos, de maneiras diferentes, a exigência
de totalização que foi demandada da psicanálise ao se tentar a sua
articulação com as temáticas da política e da ideologia. Esta totalização
foi negativa, como no caso da tradição stalinis.ta que gerou uma série de
preconceitos face à psicanálise que nos acompanham até o presente, como
positiva, como na tradição freudo-marxista e na Escola de Frankfurt.
Porém, em todas estas tradições não se considera devidamente a es-
pecificidade do campo analítico, exatamente por esta demnnda de totali-
zação.
Ora. a relação da psicanálise com a política acaba por ficar equivocada
por este cnminho teórico, tal a amplidfto que se exige na articulação do ato
psicnnalitico e da prática política . Isto porque, com Freud, a psicanálise não
'pretende ser nem uma metatlsica da subjetividade nem uma metafísica do
social, apresentando-se mnbus estas démarclti!S como formas ilusórias do
desejo humano que revelariam um projeto de "snlvução da humanidade".23•24
Assim, a psicanálise freudiana não pretende ser nem um processo de "salva· •
ção" do sujeito 'nem apresenta um projeto de "regeneração social", advindo
daí, em parte, o "mal-estar" que ela socialmente ainda provoca quando assim
exercida, que seria a contrapartida do "mal-estar:• que ela revela no sujeito
pelos conflitos com a cultura que lhe constitui.25
Porém, nesta perspectiva a psicanálise não seria apolítica como poder·
se-ia pensar, nem tampouco libertadora absoluta da sexualidade e das amar·
ras do poder. O que a psicanálise encontra no fundamento de qualquer sujeito
é a luta interminável deste contra as imposições da ordem cultural, pelas
marcas que esta impõe na org<mização pulsionol e as transgressões que o
sujeito realiza para superar as nonnas que lhe marcam de modo indelével.
Portanto. seria neste espaço de conflito que a psicanálise procura recoiocar
o sujeito, estrutura básica de sua constituição.
É por este caminho que o ato psicanalítico pode apresentar efeitos
políticos, na medida em que se choca com ideologias fundamentais da nossa
modem idade. Antes de mais nada enquaQto processo crítico da medicaliza-
ção e da psiquiatrização da "experiência da loucura",26 pois enquanto busca
recolocar o sujeito face aos impasses que lhe constituem enquanto tal, a
psicanálise não promete a cura mas busca aumentar as possibilidades de
liberdade para o sujeito. A sua mptura com o saber psiquiâlrico se realiza por
um outro viés, restnurnndo nu intersubjetividade constitutiva do espaço
analitico a "experiência da loucura" que fora silencinda ~la emergência
hisiórica do discurso psiquiátrico nu aurora do século XIX. 2 •28 Portanto, não
existe a prescriçílo de nenhum ideal de cura, o que implica as múltiplas
108 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

possibilidades que são abertas pam as soluções subjetivas de acordo com a


infinidade das articulações pulsionais.
A p:>ican{ll ise freudiana pretende de linear a singularidade do sujeito e
a verdade de sua lzistório e, por isso mesmo, inaugura para cada subjetividade
uma experiência particular em que não cabem soluções nonnativas, isto é,
preestabelecidas no discurso tcóril.'o. Então, não existe norma para a resolu-
ção de qualquer processo analítico e p ara o encaminhamento de qualquer
estrutura edipiann, estanuo u figura do an;~Jista entregue à mesma contingên-
cia diante da figura de qualquer analisante, vale dizer, sem normas absolutas
que definam a sua pr:ítica e a sua té<:n ica.
É, portanto, nesta tentativa do unali sta ocupar um lugar singular na
re!ação intersubjeti va e possi bi lira r aemergência da "experiência da loucura"
no analisando que a psican(llise frcudiunn representa uma ruptura com o saber
. '/, .. .
pssqu~::ltnco, porque nesta poss~·üo a ti,gura do analista não é detentora de
nenhum saber absoluto sobre o psiquismo do outro. estando submetido às
mesmas injunções que o seu analisante. A síngularização exigida na relação
an~lítica implica ambos os protagonistas de maneira tão radical que não
extste a presença de nenhum discurso normativo a que o psicanalista possa
apelar com a fina l idad~ de se proteger do impacto desta experiência. Enfim,
a figura do annlista reencontraria em si mesma e nos outros a quem analisa
o mesmo conflito interminóvel entre o desejo e as normas, que nunca se
apazigua de maneirn delinitivn.
Assim, primei r~• conclusão n ser retirada sobre os efeitos políticos deste
modelo freudiano da psicanálise: u singularização das figuras implicadas na
relação intersubjetivu funcionaria como obstáculo a um discurso nonnatívo
sobre a subjetividade e a cura, o que retira qualquer sujeito deste lugar de
detentor de um suposto saber absoluto sobre o outro. Como desdobramento
desta proposiç:1o, podemos nlimwr que qualquer tliscurso totalizante é colo-
cado em questão e, portunto, u críti~·a ;, psiquiatriwção da "experiência da
loucura" é constituti va do espaço psicanalítico.
Ao descrever estas <:aracter ís tica~ Jo discurso freudiano não tenho
qualquer ilusão de que é desta maneira que a psicanálise está sendo exercida
na atualiuade. Pdo contrúrio, o que se registra c::~ua vez mais desde os anos
quarenta, com o processo de insti tucion:lliza~-ão da psicanálise, é a assunção
de um modelo no 'rual o analista "sabe" o que é melhor para o paciente, de
que a psícanúlise possuiria um saber absoluto sobre o psíquico que pode ser
aplicado 1io outro na reta~·ão analític1. Os destinos do prazer e da dor seriam
perfeitamesite regulaJos neste discurso. Portanto, riesta normalização dl)
sn~e.r psi~analílk!o a figura do analista não está mais implicada enquanto
SuJeito smgular no ato psicanalítico. m:.s é detentora impessoal de um
discurso que seria a fonte pur(l a prol.hr~·ão de interpretações.
PSICANÁLISE E POLÍTICA: UMA INTRODUÇÃO METODOLÓGICA 109

Assim, o discurso psicanalítico se tnmsforma inevitavelmente num


discurso pedagógico e a experiência intersubjetiva se estagna no espaço
analítico, modelando-se numa re/aç(ío interpessoal, isto é, uma relação entre
egos. Esta mudança da psicanálise é histórica, correspondendo à transforma-
ção da lógica psicanalítica na lógica do saber psiquiátrico, vale dizer, à
incorporação da psicanálise no campo do saber psiquiátrico e que seria o
correlato epistemológico do processo social de institucionalização da psica-
nálise. Neste c onte~ to, a psican(llise adquire um enorme poder social, sendo
o seu discurso o que possibilitou a modernização da psiquiatria e de setores
significativos da prática médica, através das quais se investiu um enorme
poder de controle das redes sociais na sociedade modema.29•30 Portanto, este
modelo curativo-nonnativo da psicanálise corresponde a uma inserção da
psicanálise num lugar destacado nus redes de controle do espaço social.
Nesta perspectiva, os efeitos políticos do ato psicanalítico que subli-
nhamos anteriormente, pela crítica ao discurso normalizador, se voltam agora
para a crítica da prútica analitka tal como esta se encontra institu[da de
maneira dominante na mo<.lernidade. As relações da psicanálise com a
poHtica se esboçam agora de maneira concreta, considerando a especifici·
dade do ato psicanalítico em sua contraposição ao discurso nonnativo-tota-
lizante que se inseriu na prútica analítica. Assim, a manutenção do que existe
de mais fundamental no ato psicanalíti<:o implica, antes de mais nada, um
trabalho sistemático para deslocar a tigura do analista deste lugar de detentor
de um discurso normativo pelo qual se silencia niio apenas a sua singulari-
dade como também a do analisante, de onde o analista profere regras sobre
o psíquico do outro que impossibilitam qualquer delineamento de uma
singularidade e produz no analisante um processo de ideologização "confor·
mista". A crítica à "neutralidade" analítica encontra aqui o lugar de enuncia-
ção de sua verdade, quando o analista se esconde num suposto saber e evita
o contato com as experiências originais a que está exposto o seu narcisismo
em cada relação analítica.
Como desdobramento da questüo da nonnatização do ato psicanalíti-
co, coloca-se em pauta o processo de fonnação analítica. Com efeito, se
a psicanálise se apaga cada vez mais como· experiência intersubjetiva, a
figura do analista pnssa a trabulhur com um suposto código de verdades
sobre o psíquico do outro, a responsabilidade deste complexo processo
sócio-histórico acabando por recair sobre as instituições analíticas, pelo
modo que estas promovem a transmissão da psicanálise. Podemos formular
aqui interrogações genér;~as que retomam o que formu lamos anteriormente
sobre a inserção da psicanálise no interior da psiquiatria. Assim, que com-
promissos interinstitucionais e intru-institucionais foram constituídos pela
instituição psicanalítica de maneira a configur:1r este desvio normalizador na
110 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E. CULTURA

transmissão da psicanálise? Quais foram os lucros- econômico, ideológico


e de preslígio social - que a instituição analítica obteve para funcionar em
grande parte como um obstáculo à tmnsmissão da psicanálise?31
Ainda como decorrência dessa questão colocam-se em discussão algu-
mas características do ritual psicanalítico e as condições instituídas de seu
contrato, isto é, as exigências definidas institucionalmente para a circunscri-
ção da prática analítica. A oposição psicanálise/psicoterapia analítica se
coloca aqui de maneira frontal. Assim, se a psicanálise é uma relação
intersubjetiva, o que cauciona a definição de sua prática por uma norma fixa
sobre o número de sessões? Por que a prática analítica se define pela
existência de três ou quatro sessões semanais, que qualquer outra regulari·
dade, inferior a esta, se define como sendo uma forma de psicoterapia
analítica? Ora. por que a regularidade das sessões não pode ser adaptada às
circunstâncias de cada indivíduo, considerando as condições deste objetiva
e subjetivamente? Ou será que esta oposição psicanálise/psicoter.tpia ana-
lítica não visa estabelecer hierarquias econômicas e sociais no campo psi-
coterápico. pretendendo fot1alecer o poder das instituições analíticas e
reproduzir as diferenças sociais nos demandantes?
Procurar resolver os impasses assistenciais pela crítica do modelo
psicanalítico é certamente uma prática importante, desde que nos enten-
damos bem sobre qual é o modelo analítico que está em pauta: o modelo
a
instituído. em que psicanálise funciona como uma prática de normalização?
Ou será que se pretende, assim, fortalecer este modelo burocrático e promo-
ver ao lado disso a universalização das ditas psicoterapias analíticas, consi-
deradas como um produto inferior no mercado de bens simbólicos? Desta
maneira, se existe uma tendência dominante no campo da saúde mental, da
qual a instituição analítica partic ipa de forma ativa, que visa promover as
psicoterapias normutivas para increme ntar a demanda de psiqu iatrização do
social, gostaríamos não apenas de poniUar criticamente este proce sso como
também de repensar o mode lo instituído de prática analítica. que acaba por
contrapor a psicanálise "nobre" e a " vulgar" psicoterapia analítica. Enfim, estas
figuras se inserem numa mesma eshutum de discurso e não podem ser conside-
radas como essências mcionais que se fundamencam de maneira absoluta.
Na perspectiva de repensar as relações da psicanálise e da política a
partir das questões colocadas nô espaço analítico, é preciso que nos in-
daguemos também sobre um conjunto de atos que o analista realiza na cura
analítica. Assim se colocaria em discussão a maneira pela qual se fixa o preço
das sessões, o direito aos recibos doe imposto de renda e pequenas decisões
unilaterais que ape nas be ne ficiam o analista, que são realizados entre nós
com muita tranqü ilidade sem que se considere de vidamente os seus efeitos
no processo analítico.
Sujeito freudiano e poder:
tragicidade e paradoxo 1

I. A conjunção entre sujeito e poder


Enunciar qualquer proposição sobre a problemática definida pela relação
entre psicanálise e poder é destacar. logo de início, que estamos face a uma
conjunção afinnativa. na qual a possibilid:uJe da disjunção entre estes termos
·apenas se coloca no horizonte positivo da inscrição do sujeito do inconsciente
no registro do poder. Vale dizer. no discurso freudiano o poder é uma
instância simbólica e um lugar real que está no fundament ·,da constituição
do sujeito, pois é fa~e.a.o poder que o sujeito primordialmente se ordena e se •
desordena seguidamente para a produção de sua singularidade. Portanto, é
apenas no diálogo e no confronto com o lugar do poder que o sujeito realiza
a sua produção e a sua reprodução como sujeito da diferença.
O que implica dizer que para o discurso fre udiano o sujeito não se
restringe ao registro da inferioridade, pois este tem como contraponto
necessário o registro da exterioridade.2 Assim, o suje ito freudiano se ins-
creve nos registros do pensame nto e da ação, estando subme tido aos impe·
rativos da linguagem e do gozo. Por isso mesmo, é um suje ito encarnado e
comprome tido com os destinos do mundo, pois as incertezas trágicas destes
destinos remetem para a sua condição fund ame nta l de sujeito. Portanto, em
não sendo o sujeito da interioridade absoluta :...._ como o sujeito da consciên-
cia do cogito cartesiano3 e o suje ito da psicologia clássica fundado na
introspecç1io4 - e o sujeito do protestantismo - que paga as suas dívidas
para com Deus nas cavilações obsedantes de sua consciência e na rígida
moral do trabalho5 - . o sujeito do inconsciente pressupõe o registro da
exterioridade não apenas para a sua fundação como também como território
para a sua fruição.
Este registro da exteriori.du<.le não se representa apenas pelo conjunto
de coisas e de objetos, pela mediação llos quais se articula o sujeito para o
gozo e a satisfação de seus d~sejo~. mas também se tlgura pelopóloalteritário

111
I 12 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

do Outro. É o Outro como linguagem e <:o mo ser que é o contraponto fundante


do sujeito, pois é pela mediação do Outro que a multiplicidade de coisas e
de objetos do mundo se orden:-1 para o sujeito como um conjunto significativo
para o seu desejo. Da mesma forma. é pela mediação do Outro que se articula
a relação entre os diferentes sujeitos, de maneira a se delinear o horizonte
para o confronto e para a apropria\·üo das coisas e dos objetos do mundo.
Por isso mesmo, a problemátit·a do poder é interna ao campo freudiano,
não existindo pois qualquer exterioridade possível entre psicanálise e poder,
na medida em que a constitui\·ão do sujeito é mar<:m.la por sua inscrição no
campo do poder.

li. Parado.ro e tragicidade


Contudo, a relação do sujeito t·om o poder é marcada pela contradição, pois
o sujeito tende a perder a sua mar<.:n distintiva face aos outros sujeitos pela
sua inscrição num sistema de poJcr. Diante da universalidade do código
simbólico de um datlo sistema de poder, num território circunscrito do espaço
social, o sujeito se apresenta de m:1neiru anônima e perde a sua diferença
simbólica frente aos demais sujeitos. Em funç·ão disso, apesar de se constituir
positivamente e atinnutivumente nu sua relação com o poder, o sujeito
também se rebela contra o poder para a produção e a reprodução de sua
singularidade. Desta m:meira, o sujeito afirma a sua condição de sujeito da
diferença, contrapondo-se ativamente à universalidade do código simbólico
e impondo pda sua negatividade face a este as marcas da sua singularidade.
Vale dizer, além de ser contraditória, a rela~·ão do sujeito com o poder
é marcada pelo paradoxo, pois ao mesmo tempo que o sujeito se constitui no
e pelo pólo alteritítrio do poder. sem o qual não existiria, o sujeito estabelece
um contraponto face ao poJcr, para afirmar a sua l'Ondição <.:amo sujeito da
diferença e corno singulariJ ade.
É esta dimcns:io de paradoxo, que marca a relação do sujeito com o
poder, que podemos depreender do período tardio e teoricamente maduro da
obr.1 freud iana. Com efeito, em Mal·eswr na civi/izaçâo o discurso freudiano
sublinha que apesar do s ujeito s~ ins<.:rever e estar imerso na cultura para se
constituir como sujeito, esta irucrsão é nmrcac.la por um " mal-estar" que é
estrutural, já que não pode ser jamais u\trapassado.6 Pelo contrário, na
medida em que a civiI iza\·iio progride tecnologicamente e aumenta o domínio
do homem sobre a natureza, aumentam também em contrapartida as exigên-
cias da cultura sobre os diversos suje itos e se produz um incremento do
"mal-estar". Entim, o progres~o <.: ivilizatório não é um antídoto seguro para
a satisfação psíquica c para o g1>20 erógeno, na meuida em que não fornece
possibilidades para a aquisi~·ào J:r " felicidade" humana. ·
SUJEITO FREUDIANO E PODER: TRAGICIDADE E PARADOXO 113

Da mesma forma, as figuras e argumentos desenvolvidos por Freud em


Psicologia das massas e análise do ego, ulém de indicarem a impossibilidade
de separar os registros do sujeito e do social, evidenciam também a impos-
sibilidade do sujeito ser <.:ompletamente absorvido pela sociedade e pela
cultura? Com efeito, algo no sujeito insiste no seu contrJponto frente às
exigências so<.:iais, embora seja impensável a constitu i~·ão do sujeito na
exterioridade das relações com os outros. Por isso mesmo, a. r~l aç:io do sujeito
com. a sociedade e a cullura é marcada pela tmgicidade, pois se a inscrição
nestes registros é a e x ig~m: ia fundamental para n constituição do sujeito, nem
por isso o sujeito se deixa absorver inteiramente e marca continuamente a
sua diferença simbólica.
Neste contexto, o discurso freudi ano pode enunciar que o homem não
é um ..animal de massa", mas um "uni mal de horda", enfatizando a existência
de um abismo insuperúvel entre o sujeito e a sociedade, apesar de que sem a
referência ao Outro n5o existe também sujeito.8 Para isso, o discurso freu-
diano se vale de uma célebre passagoem de Sd10penhnuer, em que este indica
pela metáfora do porco-espinho a ex.ígência de mediações e de intervalos nas
relações inter-humanas: <.:omo cntr< os porcos-c·spinhos, a reunião humana é
problemáti<.:a, exigindo uma certa distflm.:ia entre os sujeitos, já que uma
aproxima\' ão excessiva produz eriçamcnto, viol~n<.:ia e repulsão, provocada
pela ameaça de aniquilamento.9
Portanto, o sujeito freudiano e u associação humana são delineados
pelo discurso freudiano de maneira tr(tgica, na medida em que se o sujeito
apenas se constitui como tal pelu mediaçiío da associação entre os homens,
algo insiste no sujeito que se contrapõe ativamente a esta absorção, para
manter a sua singularidade. A tmgkiJade Ja posição J o sujeito é a revelação
do parado;>;o constitutivo do seu ser, pois a manutenção do sujeito da
diferença delineia o horizonte de desarmonia nas rduçõcs entre os sujeitos.

/li. Pulslio e sujeito


O que se impõe ngora à nossa indaga~·üo é a razão deste parndoxo que funda
a relação do sujeito <:om o poder. A metapsicologia freudi:1na possibilita o
encaminhamento desta questão pelo enunciado do conceito de pulsão.
Ass im, a delínição do <.:on<:eito de pulsão no discurso metapsicológico
de 1915 é pontual:
...o conceito de "'pulsiio" npar~c~ como um conceito·li;nitc entre o psíquico
e o som:uico, como o rcpr~s~ntantc psíquico dns excitações provenientes
do interior do corpo c atingindo nu psiquismo. como uma medida de
· ell.igência de trabalho qu\' é imposta ao ps!quico em ·conscqoencia de sua
ligllção aocorpora1. 111 ·
114 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

Não pretendemos realizar aqui a exegese sistemática deste enunciado,


pois já a empreenuemos em outros contextos, 11 mas somente sublinhar o que
interessa à nossa discu~si\o presente. Assim, o discurso freudiano explícita a
existência de duas dimensões que são constitutivas do ser da pulsão, di-
mensões essas que se contrapõem mivamente no sujeito e que podemos
destacar pelos seguintes pares tlc opostos: quantidatle versus qualidade, força
versus represcntw;ão, energia l'ersus símbolo.
O que é patente na elabornção freudiana do conceito é que a pulsão,
rigorosamente falando, não é somática e permanece na exterioridade do
psiqu ismo, 12 pois este é figurauo como um s istema articulado de repre-
sentações: inconsciente/pré-conscientdconsciente. 13 Antes de mais nada a
pulsão é "exigência de trabalho", isto é, for~-a e "pressão" (Drang). A sua
inscrição no universo da representação se realiza pela mediação do Outro,
que possibilita objatos de s:1tisfação para a pulsão e um sistema de interpre-
tação que regula o oferecimento dos objetos. É somente mravés do Outro que
a pulsão se inscreve em representnntcs no universo da representação (repre-
sentantes-representação da pulsüo), constituindo-se então os diferentes des-
tinos da pulsão no universo da representação: inversão no seu contrário,
retorno sobre a própria pessoa, recalque e sublimação. 14 Portanto, o sujeito
do inconsciente se constitui apenas pelo circuito da pulsão no campo do
• Outro, sendo então um efeito e um destino da pulsão neste circuito.
Desta mnneira, existe um nbismo entre os registros da pulsão como
força e como representação. A passagem de um registro para o outro exige
um "trabalho" de simbolizn\'flo, para que a tmnsposição se realize. São as
condições de possibilidade de satisfação da "pressão" pulsional pelo (fere-
cimento de objetos. proporcionadns pelo Outro, que definem a efetividade
da tmnsposiçào entre os diferentes registros.
A absorção da "pressão" pulsional pela insl·riçuo simbólica possibilita
a ordenação do sujeito, impondo ao mesmo tempo um limite para a descarga
da pulsão. Pela inscrição a pulsão pen.le a mobilidade absoluta. passando a
circular num circ"ito restrito, estabelecitlo pelas,regras do simbolismo e pelo
objeto de satisfação que foi oferecído pam o domínio da "pressão" pulsional.
Enfim, por esta perda de mobilidatle absoluta da pulsão o sujeito advém e se
inscreve no registro da castração.
Não obst<:lllte, a "pressão" insiste, pois a pulsão é uma força constante
e persiste a "exig€ncía de trabalho". Com isso, as articulações realizadas pela
ordem simb6Jica são permanentemente desarrumatlas e impõe-se a demanda
de novos armnjos de rcla,ào entre as representações. Conseqüentemente,
introduz-se desta maneira um potencial de incerteza para o sujeito, que
procura restabelecer permanentemente a orJem no contexto da desordem,
para evitar o caos no sistema de representações.
SUJEITO FREUDIANO f. PODER: TI{AGICIDADE E PARADOXO 115

Assim, o contraponto entre a absorção da "pressão" pulsional pelo


simbólico e a desarrunuu;lío contínua pro<luzida pela insistência da "força
constante'~ é o que funda n rel:1ção de paradoxo entre o suje ito freudiano e o
poder. Desta mnneira. o sujeito se estabelece como diferença e como singu-
laridade pela insistência da força pulsional face às exigências da simboliza-
ção, na medida em que o sujeito ~o inconsciente'é a realização da "exigência
de trabalho" imposta pela "pressão" pulsional.
A passagem da primeira p;u·a a segunda teoria das puls ões, evidenciada
pelo discurso freudiano. enunciou a e~ ist ênc i n do abismQ entre as dimensões
da pulsão como força e como inscriçiio num sistema de representações, Com
efeito, quando o discurso freudiano formulou a existência de uma pulsão sem
representação 15 - a pulsiio de morte-, caral:terizada pelo silêncio e pela
não discursividade. 16 o que se sub linhava era o espaço a ser percorrido entre
estas diferentes dimensões do pulsional. Com isso, enfatiza-se o trabalho a
ser realizado na transposição e u incerteza quanto às suas possibilidades de
realização.
Enquanto na primeira teoria das pulsões 17 o discurso freudiano enun-·
ciava que a passagem do registro da força para o do símbolo era de fácil
efetivação, desde que fossem retirados certos obstáculos considerados como
sendo exteriores no ser da pulsão, com a segunda teoria das pulsões esta
transposição passa a ser figuratla como marcada pela incerteza, pois os
obstáculos seriam internos ao ser da pulsão. Com isso, introduz-se uma
desam1onia estrutural e não acidental no sujeito freudiano, o que implica a
desarmonia na relação entre os diferentes sujeitos.
Considerando esta leitum J o discurso freudiano, podemos estabelecer
agora a aproximação da problt!m:.1tica do sujeito e do poder em psicanálise
com algumas questões da filosotía política.

IV. Encontro marcado


Assim podemos remeter a oposição freudiana força/representação para algu-
mas das polaridades fundamenrais da filosofia política. Nesse discurso
podemos sublinhar quatro oposições, pelo menos, para a delimitação da
problemática do poder.
Antes de mais nada, falar do poder é enunciar a oposição entre força
e polÍiica, na qual a. política seria a maneira fundamental na ~gulação das •
relações de forçn entre os homens. Reconhece-se aqui a inevitabilidade da
foi\' a e da violência que estariam presentes nas relações inter-humanas, mas
aquelas deveriam receber um limite inequívoco para promover a sua inscri-
ção nas trocas sociais. A política realizaria o agenciamento destas relações,
sendo figurada pela retórica e pela negociação. De fonnacomplementar, pela
I 16 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

soberania que passa a materializar, o Estado moderno representaria a única


instância social que deteria o monopólio legítimo da força, para manter a
ordem social. 18
A oposição politica!força se desdobra na polaridade entre política e
guerra. Esta oposic,;ão se c:onstituiu no discurso da filosofia política clássica,
principalmente entre os teóricos do contrato social, 19 e pressupõe que de
maneiras diferentes. segundo os diversos autores, o estabelecimento do
Estado como instância política soberana regularia as relações primordiais de
guerra entre as irldividualitlades e se instiruiria como lugar de garantia das
relaçõ~s contratuais. Assim, se as suposiçucs antropológicas e as soluções
enuncradas pelos diversos teóricos do contratualismo são evidentemente
diferentes, a oposi ç~o polític:u/guerra e a passagem do estado de natureza das
individualidades para o estudo político se encontmm no centro desta reflexão
teórica.
A formalização de Hegel também se inscreve no eixo desta polaridade,
se bem que de maneira diferente, pois com Clausewitz o discurso hegeliano
enuncia a guerra como a continua~·ão da política e esta regularia as relações
°
de força inerentes às relações inter-humanas. 2 Foi no campo definido por
esta oposição que MarK também representou a política no eixo sustentado
pela guerra entre as classes, enunciando a luta de classes como sendo a
categoria básica de sun lílosofia da hist6ria.21 -
Neste contexto, podemos destacar que as duas polaridades anteriores
desdobram-se nas oposições ordem/desordem e regra/força, onde estas
diferentes polaridades evidencinm cntegorias fundamentais para se pensar na
problemática do poder. Estas quatro oposi\·ões detinem alguns dos eixos do
discurso da filosotia política, com a finalidade de traçar a cartografia da
questão do poder.
Podemos sublinhar ugora como nn problemática do poder se destaca a
problemática da morte, sendo esta o limite permanentemente evocado para
a força e para a violência, de maneira a tornar possível as relações inter-hu-
manas no espaço social. Com efeito. o terror da morte das individualidades
é o cootraponto insistentemente recordado para a inserção dos agentes sociais
nos universos da ordem e da regra, que apenas assim seriam capazes de
estabilizar as relações de disputa entre os homens. Portanto, é face ao temor
da morte e ao valor atribuído à continuidade da vida, que transcendem como
valores ao registro da natureza e se inscrevem no registro simbólico, que se
centram estes diversos discursos sobre o poder.
Assim, foi no centro da oposiçiio entre a vida e a morte que o discurso
fre~diano se inseriu para pensnr a problemútica do poder. Não porque Freud
quisesse e se propusesse a pensar a questiio do poder diretamente, e se
apresentasse como um autor do campo da fil?sofia política, mas sim porque
SUJEITO H~EUDIANO E PODER: TRAGICIDADE E PARADOXO 117

a fonnulação da questão do sujeito n partir dos impasses das pulsões colocava


a psicanâlise inevitavelmente frente aos efeitos do poder na constituição da
subjetividade.
Foi no espaço delineado entre a força e o símbolo que o discurso
freudiano inscreveu o sujeito dn diferença e fundou a ética da singulari-
dade da psicanálise. Po r isso mesmo, Freud teve que se defrontar com
algumas polaridades fundamentais do discurso da filosofia política sobre o
poder, como um enconlro rnarcndo pelo uestino e pela história de maneira
inevitâvel.
O sujeito na diferença e o poder impossível1
"No enlanto, quase parece que analisar u ja a terctira destas profissões
impossíveis, nas qiwis poúe·se de saída estar certo de um sucesso insuflei< nte.
As duas outras, conlu:ciclas há muito tempo, são educar e governar".

(S. Fre ud. Análise c:om fim e análiJe sem fim)

I. A bruxa enfe itiçada

Os efeitos na psicanálise uc: :;ua difusão uo :>ocial são dissonantes com os


pressupostos do discurs:> freudiano. Diferente do estilo pessimista e da ética
trágica que perpassnm o discurso freudiano, a moderna psicanálise é marcada
pelo otimismo e pela euforia na crença em promover a felicidade humana.
Este é o reconhecimento inicial que precisa ser realizado para que possamos
• delinear a problemática da política no discurso freudiano.
Freud imaginou que estava levando a peste para os Estados Unidos,
quando embarcava para as célebres conferencias na Universidade Clark2 e
iniciava a epopéia americana da psicanúlise. A memória histórica nos evi-
dencia que os norte-americanos pestificaram a psicanálise contra o disçurso
freudiano. Esta mutação foi logo reconhecida por Freud, 3 que o destacou em
diferentes momentos de sua obra ..~ A psic:rn:Hise foi transformada numa visão
de mundo (Wetwnschauung), numa moral para a mo<.lelagem da indivi-
dualidade às múltiplas exigênci<ts da sociedade complexa. Este processo
perdurou até os anos sessentn, quando se iniciou de fom1a segura o tlesinve-
stimento paulatino da psicanálise nos Estados Unidos e sua substituição
correlata por outras modalidades de psicotempia. A americ.tnização da
psicanálise implicou não apenas sua trJnslomlaç~o numa especialidade médica
e psiquiátrica, mas tmnbém numa disciplina inserida no campo da psicologia
geral. Nesse contexto, a leitura dos conceitos freudianos era repulada pelo
imperativo da aduptaçiio das individualidades no espaço social.
Evidentemente, esta transfom1açào da psicanálise é o correlato da
mudança no seu lugar social, em que de um movimento a psican51ise se erigiu
numa instituição, constituindo uma poderosa organização internacionaL A
Associação Internncional de Psicanálise! se estabeleceu com uma estrutura
hierárquica, na qunl se instituiu õ.l oposição entre analistas formadores e
não-fonna(!ores, tmlteriali'lando·se a diferença essencial en1re análise didá-

11 8
O SUJEITO NA DI FERENÇA E O PODER IMPOSSÍVEL 119

tica e análise terapêutica. Desta muneirc1, a instituição analítica passou a


regular o ensino, a transmissão e os critérios para a seleção de candidatos ao
oficio de psicanalisar.6
Neste contexto, a psicanálise se instituiu como uma moral de regulação
das individualidades numa ordem social altamente competitiva, em que se
prometia a felicidade pela uquisiç:io de seus modelos de subjetividade, para
a ascensão do indivíduo num espaço marcado pela grande mobilidade social.
Par-a isso, transformou-se o pe1fil do movimento psicanalítico, que passou a
empreender uma estratégia de normalização das relações humanas e que teve
como condição de possibil idade a norn1alizaçiio dos analistas pela instituição
psicanalítica.
Nos anos quarenta e cinqüenta alguns psicanalistas eminentes, de
diferentes tradições históricas e teóricas, dest~tcõJram os efeitos perversos na
transmissão da psic~múlise que se articulava com essa reestruturação do
campo analítico: Balint.7 Gitelson.8 N~u.:ht9 e Lacan. 10 O XVIII Congresso
Internacional de Psicanálise, realizado em Londres em 1953, foi o cenário
onde se encenanun alguns desses impasses. Da· mesma fom1a, A. Freud
destacou a existência de tais efeitos perversos sublinhando a diferença entre
a geração heróica dos analistas e a recente safra institucionalizada, onde
imperavam os padrões de normalização sociaL 11 Enfim, o efeito fundamental
deste processo social foi a tr;msfonnação que incidiu na construção da
identidade do psic<malista, quê fundado anterionnente na experiência psica-
nalítica, se deslocou decisivamehte pura a instituição.
Assim, é preciso const ~lhrr que o feitiço se voltou contra o feiticeiro,
que a bruxa metupsirológica 12 se transformou inequivocamente numa meta·
fisica vulgar. Por isso, é necess<Írio reconhecer que, no fundamental, a
psicanálise contemporflnea não é freudiana. As exceções apenas confirmam
a regra. É inegável, porém, a posição tle poder que a psicanálise ocupa no
imaginário social. Evidentemente, essa ocupação não é homogênea, nem a
psicanálise se inscreve da mesma maneira e no tempo nas diferentes tradições
sociais do Ocidente. Entretanto, essa diferenciação histórica e social não
invalida a formulação de que a psicanálise ocupa de diversas maneiras um
lugar estratégico na modernidade.
Para ev idenciar a consistência desta fonnulação é preciso distinguir
entre reconhecimento, legitimidade e difusão social da psicanálise. 13 Essas
categorias indicam diferentes níveis de Jiscurso e remetem para campos
diversos da realidade soci:ll e histórica. Assim, o reconhecimento teórico da
psicanálise como modalid;tc.le original de saber, que possibilitou a escuta de
dimensões da subjetivid;tde até então inuudíve is, foi a fo rtuna do discurso
freudiano. O campo da loucura foi aberto decisivumente para a obra infinitiva
da interpretação, retirando a figura do louco do destino do limbo asilar. Além
t20 l'SI CANÁ U SE. Cli:NCIA E CULTURA

disso, o estatuto teórico incerto da psicnnálise entre os campos da ciência, da


política e da ética colocou problemas fundamentais para as demais ciências
humanas, que estabeleceram desde então um diálogo produtivo com a
psicanálise, que ninda permanece em curso.
A legitimidade social C'onquista<.la, porém, pela psicanálise, com base
no reconhecimento de sua argúcia clínica e teórica, não consegue explicar a
espantosa potencialidade de sua expansão no social. Assim, se o reco·
nhecimento da psicanálise é a condiç·fio de possibilidade para uma difusão
social, isso não se constitui•em condição :mficiente para a realização do
processo de sua difusão. Para essa produção é preciso algo a mais, pois não
é regulada apenas pelas potencialidatle s do discurso freudiano .
Com efeito, a difus(10 social <.la psican!ílise ocorreu apenas em poucos
lugares do mundo ocidental, enquanto em outros tal processo decididamente
não aconteceu, apesar de ter existido o reconhecimento teórico do discurso
psicanalítico. As razões para isso silo múltiplas e complexas. Não preten-
demos discuti- tas aqui,'" mas apenas mapear essn diversidade para circuns·
crever a problem(llica em pauta.
Assim, nos Estallos Unidos, " difusão da psi<.:análise no social ocorreu
entre os anos quarcnt;~ e sessent:l, quanllo se iniciou seu desinvestimento
progressivo e o investimento em outr..1s formas de psicoternpia. 15 Da mesma
forma, o boom psi<:analítico na r-rança se iniciou nos anos cinqüenta, tendo
na figura de Lacan seu grande profeta. 16 DeseJe o início dos anos oitenta,
porém, é crescente o desinteresse pela psican(tlise, que se evidencia na queda
vertiginosa da dcnwnda paru unúlise. Na Ingluterra nuncu chegou a acontecer
essa forma de difusão da psicanálise no social. apesar da reconhecida impor-
tância internacional que teve a sua instituiçüo e o prestígio de alguns de seus
teóricos (M. Klein, A. Freud, D. Winnicor). Desde os anos cinqüenta,
registra-se uma difusão maciça da psicanálise na América Latina, tendo
inicialmente na Argentina e posterionnente no Brasil os seus cenários de
florescimento. Por isso mes111o, u Assot:iação Internacional de Psicanálise e
a intema<:ionnl lacaniana disputam no momento a hegemonia na América
Latina, buscando ao sul do Equador a possibilidade de uma difusão política
que não ex iste mais nos EsLados Unidos e na Frnnça.
O que caracteriza a difusão da psicanúlise no social. diferindo do seu
reconhecimento tcóriço e lcgitimidildc, é seu investimento como o grande
mito da modernidade, o que somenle a~:onteceu em nlgumas formações
soc iais num período circunsniro de tempo. Desta maneir.1, a psicanálise se
instituiu como uma visrio de mundo, como um ~:ürr:ma ~om a potencialidade
de interpretar qualquer dimensão d;t existllnria humana. É possível, portanto,
encontn.1r respostas prontas e embalsamadas no discurso psicanalítico para
qualquer uma das m a zel a~ hurnanitS. Enfim, num esti lo totalizante, a psica-
O SUJEITO NA DIFERENÇA E O PODER IMPOSSÍVEL 12 1

nálise se institui como uma moral, capaz de oferecer um código fechado onde
as individualidades encontram um mapu com direções infalíveis para seus
percursos na incerteza da existência.

Il. A excentricidade da bruxaria


Quando a psicanálise, porém, se transfonnn numa moral laica, não é mais
freudiana, pois perde com isso a medida do seu lugar social e poder. Com
efeito, o discurso freudiano atribuía à psicanálise um lugar de excentricidade
no espaço social, excentricidade relativa, evidentemente, na medida em que
criticava sistematicamente a poss ibilid~tde de sua trdnsfonnação num sistema
moral com a pretensão totalitária de interpretação do mundo. 17 Por isso
mesmo, nos últimos tempos, Freud empreendeu uma crítica sistemática da
Weltanschauttn8 religiosa. tilosófica, política e médica, quando já começava
se esboçar a transformação da psicamí lise num sistema moral.
Nessas criticas, o discurso freudiano indicava que o sujeito.se fundava
na jinitude e na incompletude, procurando destacar que a psicanálise não
dispunha de meios para promover a salvação do homem, 18 pois pela expe-
riência psicanalítica o sujeito era conduzido para o reconhecimento dos seus
limites. Assim, se a psicanálise procurava ser uma das realizações culturais
do sonho prometéico tia ciêncin. pretendendo ampliar o domínio humano
sobre o universo das coisas e indicando para isso algumas pistas para o acesso
à realidade psíquica, a possibilidade de:;se domínio foi sempre fo rmulada
como sendo relativa. No discurso frcutliano, porém, esse relativismo não se
deve apenas a mzôes de ordem llistóric:l -em função da precariedade do
conhecimento científico :;obre o psiquismo e que pudesse ser corrigida no
futuro pelas novas descobertus - mas a razões de ordem estrutural do
psiquismo, na medida em que, com a dcsl·oberta tio inconsciente, o indivíduo
perdeu o poder absoluto tle domínio sobre as coisas e sobre si mesmo. Por
isso mesmo, o discurso freudiano pôde formular que a descoberta do incons-
ciente pela psicanálise representou a terceim grande humilhação no amor-
próprio da humanidade, 19 pois da mesm:t forma como a teoria heliocêntrica
de Copémico descentrou a Tern1 do sistema planetário20 e a teoria evolucio-
nista de Darwin reduziu o homem ao :;eu devido tamanho na escala animal,21
o inconsciente descentrou o sujeito da consciência e destacou seus limites
fundamentais .2 2
Portanto, a jinitude e a incomplemde humanas foram destacadas no
discurso freudiano na çrítica dil religiiio, quando se reconhece que habitamos
um mundo sem Deus e sem heróis, onde a figura do pai não é mais uma
referência absoluta. 23 Esses mesmos atributos do sujeito, contudo, se reen-
contram na crícica freudiana da ciéncia, pois com o reconhecimento do
122 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

inconsciente perdem-se tumbém as certezas advindas do conhecimento da


realidade material e se avolumam ns incertezas oriundas da realidade psíqui-
ca. Da mesma fonna, a crítica da onipotênda do discurso da filosofia clássica
apresenta-se sob a forma d.o,desenv.olviment.o.das ilusões da consciência.24
Finalmente, a crítica ao discurso da medicina se coloca pela formulação da
inexistência da cura absoluta e da stllvaçiío pela tera~utica médica, pois a
denominada cura psicanalítica pretende ser apenas a descoberta, pelo sujeito,
da verdade singular de sua história pelo reconhecimento do seu desejo.25
Nesta perspeçtiva, a psicanálise seria a terceira grande humilhação na
auto-estima da humanidade ao longo de sua história. pelo descentramento
decisivo que promoveu do s ujeito em relação à consciência e ao pretenso
domínio absoluto do indivíduo sobre o mundo, sublinhando os limites do
sujeito e do discurso da ciência na sua legiferação sobre o universo das coisas..
Por isso mesmo, a psicanálise provoca resistências viscerais 26 mesmo quando
parece enfeitiçar com suas verdades. A existência de fascínio pelas verdadês
do inconsciente, porém, deve nos alertar para a mise-en-scene do eng~o.
pois o inconsciente nos remete pnru p horror e as incertezas do gozo. E a
certeza desse enfeitiçamento que os analistas não podem deixar de registrar,
sendo para o reconhecimento dessa obv iedade que as gargalhadas estridentes
da bruxa metapsícológica nos enviam. Enfim, o discurso freudiano ~pre­
senta a psicanálise como unta prática inserida nas fronteiras das possibili-
dades humanas, pois coloca o sujeito frente ao reconhecimento do território
do impossível.

1/l. O imposJivel
Freud fonnulou literalme1üe que psicanulisar era um empreendimento da
ordem do impossível, ufinn:Jndo que educar e governar eram práticas sociais
inseridas também nas fronteiras do impossí ve I, 27 "nas quais pode-se de saida
estar certo de um sucesso insuficiente".28 Assiin; se para o discursá freudiano
psicanalisar, educar e governnr são experiências iascritas nos limites do
impossível, isso indica inicialmente uma unidade e uma identidade dessas
práticas, apesar de suas diferen~·as. A enumeração destaca, porém. também
a especificidade da psicanúlise na sua distinção com a pedagogia e a política,
evidenciando que psicanalisar niio é ensinar como ser homem nem como se
governa os homens. Esta fornm !ação indica que psicanalisar é uma experiên·
cia impossível mas que se insere entre dois pólos fundamentais que delineiam
o horizonte do impossível, considernndo o lugar fundamental ocupado pelo
ensino e pelo governo nas sociedades humanús.
Ao lado de outras pn\ticas sociais complementares, a edticação preten-
de algo mais do que ensinar, pois se propõe a construir o sujeito de acordo
O SUJEITO NA DIFERENÇA E O PODER IMPOSSÍVEL 123

com as regras estabelecidas numa tradição cultural e num espaço social


detenninados. Pelas práticas pedagógicas, pretende-se a produção de um
ser-de-cultura, onde o sujeito é marcado pelo ethos e pelo habitus que
regulam seu corpo e suas relações com os outros. 29 Em contrapartida,
podemos fonnular esquematicamente que a política pretende realizar a
gestão dos homens, regulando as ·relações de força entre os indivíduos, os
segmentos e os grupos sociais. Foi nesta perspectiva que Weber fonnulou
•que o Estado representa o "monopólio da coação fisica legítima",30 e que
Marx representou a história em tem1os políticos como ..luta de classes" e o
Estado como o lugar para o exercício da força pela classe dominante.31
Enfun, a categoria de força permeia es1as diferentes concepções e se coloca
como sendo o outro da política. ·
Para o discurso freudiano, o que torna quase impossível as práticas da
educação e do governo é o reconhecimento de que existe no psiquismo algo
que se opõe radicalmeme à completa absorção do sujeito pelo Outro, pelas
regras e pela linguagem, mantendo-se esse algO como extrínseco ao diálogo
e à ordem simbólica. Esse algo a mais existente no psiquismo foi enunciado
no discurso freudiano de diferentes maneiras, na dependência do momento
do percurso. teórico: o inconsciente, o sexual, o id, a pulsão e a pulsão de
morte. Não estamos dizendo que tais conceitos sejam idênticos, pois foram
invenções realizadas por Freud para solucionar impasses teóricos e clínicos,
em momentos diversos Ja sua obra. Apesar de suas diferenças, entretanto,
destacaram esse algo a mais existente no psiquismo, que se opõe à submissão
total do sujeito à ordem simbólica e ao diálogo com o outro. Portanto, é o
reconhecimento desse algo a mais o que coloca a experiência da psicanálise
nos limites do impossível, pois é a existência desse algo que pode conduzir
o sujeito aos linútes da loucura e pam as fronteiras de sua singularidade,
podendo conduzi-lo a uma existência sem saída e possibilitar·ao sujeito uma
posição de diferença radical face a qualquer outro. Isso evidencia que a
psicanálise trabalha com uma matéria-prima explosiva onde atravessa per·
manentemente uma região perigosa, pois são muito tênues as fronteiras entre
o possível e o impossível, já que está em questão o que é fundamental no
sujeito.
A leitura que o discurso freudiano realizou da educação e da política
foi evidentemente parcial, pois interpretou os impas5<!s e~istentes nessas
práticas a partir da perspectiva deste algo destacado pela psic~álise, que
constituiu a matéria-prima do impossível. Foi deste lugar do impossível para
e
o sujeito que Freud interpretou o ensino o governo como protícas sociais
inseridas nos limites do impossível. Portnnlo, é esse lugar do impçssíveJ para
o itJjeitQ que .deve ser destacado e delineado quando se pretende evidenciar
a tese sobre a poiUica que se en_çyntra presente no discurso freudiano.
124 PSICANÁliSE, CIÊNCIA E CULTURA

A interpretação freudiana da política é essencialmente metapsicológi-


ca, sendo apenas deste lugar teórico que Freud pode enunciar qualquer coisa
sobre a política e os impasses do exercício do governo.
No discurso fremliano existe uma formulação sobre a política que é
paradigmática, pois se enuncia que o poder é um lugar de representação do
• impossível. Daí porque o excn:kio do poder, isto é, a govemabilidade, é
desequilibrado por essência e não por mero acidente de percurso, na medida
em que não existe qualquer possibilidade Je que a totalidade dos indivíduos,
inseridos numa dada ordem social, se satisfaça igualmente nas suas deman-
das ao poder e seja contemplada pelo poder de acordo com seu desejo. A
conseqüência dessa tese é que a gueJTa é a estrutura permanente que permeia
as relações inter-humanas e sociais, podendo se realizar abertamente ou
existir em estado latente.
Desta maneira, a política é a prática social que pretende administrar
estas relações bélicas constantes numa li alia orllem social e nas relações entre
diferentes ordens sociais. Quando esta gestão se transforma numa atividade
impossível, a guerra latente se transfonr~. numa guerra real. Portanto, se a
• guerra e' a contmuaçao
. ~ d a po I'JtiC<~
. como pretend.ta li· ege I,32 Clausewt.,z33 e
34
Lenin, o pamdoxo se evíllencia na medilla em que a política é a tentativa
de gestão da guerra, que está sempre prestes a explodir com a maior crueza
nas relações humanas, caracterizando um pennanente desequilíbrio nas
relações sociais. ·
É a demonstração desta tese do discurso freudiano sobre a política e o
poder que pretendemos esboçar em seguida.

IV.Incompletude,finitude e morte
O esboço do campo psicanalítico delineado nas fronteiras do impossível,
destacado inicialmente pelas categorias de finitude e de incompletude do
sujeito, remete a conceitos fundamentais do discurso freudiano: a angústia
de castração e a ordem simbólica. Esses conceitos são fundamentais para se
pensar na constituição do sujeito no discurso freudiano, como sendo radical-
mente sujeito do inconst·iente.
O conceito de inconsciente no disct:rso freudiano corresponde à reali-
zação de uma produ~·ão psíquit·a, sendo um dos destinos possíveis das
pulsões, onde Freud destaca diversas operações estruturais na gramática da
. pulsão: o retorno sobre a flróprin pessoa, a passagem do ativo ao passivo, o
recalque e a sublimação. .; O sujeito do inconsciente somente se constitui
com a operação do recalque, que é um destino particular das pulsões,
implicando um processo complexo e intrincado de inscrição da força (Drang)
pulsional no universo da representação (Vorstellung).36
O SUJEITO NA DIFERENÇA E O PODER IMPOSSÍVEL 125

Para a construção do conceito de sujeito do inconsciente, como um


destino pulsional, o discurso freudiuno se funda em dois pressupostos hete-
rogêneos e opostos para representar a ordem humana: o corpo pulsional e a
ordem simbólica. O corpo pulsiona! remete para o universo anárquico das
pulsões, onde elas existem como forças e são parciais. As pulsões existem
na exterioridade do psiquismo, sendo este detinido pela inserção e a mode-
lagem das pulsões pela ordem simbólica. Pela definição freudiana, "o con-
ceito de pulsão aparece como um conceito-limite entre o psíquico e o
somático, como o representante psíquico das excitações oriundas do interior
do corpo e chegando ao psiquismo, como uma medida de exigência de
trabalho ~ue é imposta ao psíquico em conseqüência de sua ligação ao
corporal". 7 O que implica dizer que a puls:io não é uma força nem somática ,
nem psíquica. mas um ser de passagem entre a ordem da natureza e a ordem
da cultura.
É a inscrição da pulsào como força no universo da representação que
delineia o horizonte para os diferentes destinos da pulsão e para os acidentes
de percurso que se colocam necessariamente nessa inscrição. Assim, se a
pulsão passa pelo Omro como itinerário obrigatório para a regulação da
demanda de satisfação, na medida em que é no campo do Outro que se perfila
o horizonte dos objetos de satisfoção, o efeito disso é a divisão do psiquismo
(Spaltung) entre o pólo energético da pulsão e sua inscrição como repre·
sentação através do Outro. Est:1 divisão estrutural do psiquismo destaca a
incompletude do sujeito e sua alienação fundamental, pois é somente através
do Outro que ele pode se constituir como sujeito e a pulsão pode realizar um
percurso para a satisfação da pressão. Além disso, a divisão indica a finitude
do sujeito, pois para sua constituição é necessário o apelo ao Outro, indicando
o limite de suas possibilidades.
No discurso freudi:mo, a angústiu de castração se insere numa série de
angústias, que são equivalentes e regul:tdas pelo valor da perda.38 A perda
evidencia a incompletude e a finitude do sujeito, pois ele demanda algo que
lhe falta como condição para sua satisfação possível. A pulsão, como força
constante e como exigência de trabalho permanente, indica a incompletude
humana que lança o sujeito na pulsação interminável para obter, através do
Outro, uma completude supostamente perdida (trauma do nascimento).39 Os
objetos parcil1is, destacados pelo discurso freudiano (seio, fezes, pênis, corpo
matemo, bebê), 40 são represemações i11ravés das quuis o sujeito evidencia a
sua falta no circuito du pulsão e medi:mte us quais anseia restaurar o paraiso
perdido da sua completude. Os objetos purciais, contudo, revelam também o
. campo do Outru, pois é utravés do investimento libidinal do Outro que certas
partes do corpo erógeno se destlu.:am e se inscrevem numa circulação
intersubjetiva, como aquilo que é demandado e oferecillo como dom de
126 PSICANÁUSI.l, CIÊNCIA E CULTURA

satisfação, de maneira n direcionar os possíveis arranjos do circuito da pulsão


com a finalidnde de realizar a possível satisfa~·ão.
Assim, se os objetos parciais são equivalentes, isso indica não uma
identidade essencial, mas gue eles remetem para uma mesma operação de
busca de s~tisfação e de completude através do Outro, operação essa que se
refrata e se reconstitui nos diferentes estitgios da história do sujeito: des-
mame, controle das fezes, diferença sexual. 41 O fundo comum que perpassa
essas diferentes formns e regula os diversos circuitos pulsionais é, porém, o
anseio do retorno no corpo materno como sendo n representação paradisíaca
da completude, isto é , o lugar mítico onde não teria existido falta e onde o
gozo se marcava na estrutura do ser.
A angústia de cnstntçiio se destal'a na série das angústias de perdas e
o phallus se destaca como objeto parcial justamente porque está no fun-
damento do <:omplexo de Édipo, que marca a diferença de sexos e a descon-
tinuidade das gerações. onde u relação com a ordem simbólica se insere no
primeiro plano da experiência psíquiça. A angústia de castração é a marca
fundamental da incomplt!tude humana e o efeito primordial pelas transgres-
sões do sujeito dos interditos que fundam a ordem simbólica. A figura do pai
é a representação da ordem simbólica, a mediação fundamental para que a
pulsão como força constante se inscreva no universo da representação, de
maneira que o corpo possa se escrever <:omo símbolo.
Assim, a figura do pai como representação da ordem simbólica é a
mediação que se imerpõe entré a figura materna e a figura do infante,
reiterando pura a mãe a transcendência da ordem simbólica e introduzindo o
infante nessa ordem. A figura putema é a interpolação que se instaura entre
o C<?rpo da mãe e o corpo do infanre, -ordenando o desejo materno para o
reconhecimento da alteridade do corpo i,lu infante, para não tomá-lo como
um mero prolongamen.to de seu próprio <.:orpo. Essa é a condição de pos·
sibilidade para que o corpo do infante possa ser investido pelo desejo da mãe
e não ser um pedaço de carne para o gozo materno. Enfim, estabelecida a
incompletude do gozo no corpo do infante, as pulsões podem advir no
prato-sujeito como força constante e como exigência de trabalho para que se
realize, a constituição do sujt!ito do int'onsciente.
E preciso, porém, sublinh:tr que no discurso freudiano a figura paterna
não se restringe ao pai renl. Com efeito, n paternidade se funda na figura
transcendente do pai morto, que foi representado desde Totem e tabu como
o lugarp.rirnordiul onde ~e on.Jenn a <:ultura. como a condição de possibilidade
pura a passngem du nntureza pnra u ordem da cultura. 42 Teria sido o assas-
sinato pelos tilhos da figura onipotente do pai originário que produziu um
lugar vazio, onde se. nlocuva anteriormente o pode'r absoluto, e se constitui
como efeito u ordt!ll\ simbólicn como media~·ào fundamental da relação entre
O SUJEITO NA DifERENÇA E O I'ODER IMVOSSÍVJ::L 127

os filhos. 43 Portanto, nesta representação freudi:ma, n ordem da cultura é uma


sociednde fraterna, onde os irmãos <:omo iguais trabalham em conjunto, na
qual a circulação da linguagem é o contrnponto ao lugar vnzio da figura do
pai.
Nesta perspectiva, a constituição do sujeito do inconsciente marcado
pela finitude tem como solo fundante a figura da morte, na medida em que
é a morte da figura da onipotência originária que é a condição de pos-
sibilidade para a const ituição da linguagem e do símbolo. A metáfora da
morte é uma outra maneira de enun<:i:lr a angústia de castração como
fundante do sujeito, pois indica um limite intransponível para a onipotência
do gozo na descarga imediata das. pu lsões e estabe Ieee um intervalo que toma
possível a inscrição da força pulsional no uni verso da representação. Destaca,
porém, ao mesmo tempo, que o lugar do poder absoluto não tem figurante
pennanente, pois a ordem da c.:ulLura se constitui como linguagem pela
destruição de quem pretendeu algum dia o<:upar o lugar absoluto da posse
dos be11s materiais e da totalidade dos corpos, matéria-prima para o gozo
permanente. Enfim, no discurso freudiano, a ordem da cultura é fraterna,
sendo pois uma associação entre pares que devem se comungar nas suas
diferenças, tendo o lugar vazio do poder absoluto como a estrutura de fundo
que regula sua reunião, suas intercessões e interdições.

V. Sujeito e cultura

Assim, não ex.iste no disc:urso freudiano quulquer possibilidade de se pensar


na exterioridade das categorias do sujeito e cultura, pois a constituição do
sujeito impl ica o Ouu·o represenwdo pela cultura, sendo o sujeito definido
radicalmente pela alteridnde no <:ampo social. O discurso freudiano, porém,
indica ao mesmo tempo a existêm:ia Je ulgo no registro do corpo que não se
inscreve como sujeito, pois não se absorve no Outro e impõe uma insistente
diferença no campo do social. Existe·, portanto, uma desarmonia que é
constitutiva da relação entre suje itos na cu h ura, onde o corpo pulsional marca
permanentemente sua diferença face aos outros corpos no espaço social.
O discurso freudiano nos coloca então diante de um paradoxo, afarman-
do ao mesmo tempo que o sujeito é impossível fora do campo do Outro e que
existiria uma desarmonia fundamental entre o corpo e a cultura. Mas se
consideramos que a pulsàl) é essenciulmente for~a. existente pois na exterio-
ridade dá ordem simbólica e, por isso mesmo, exigindo um trabalho para sua
inScrição no simbóli<:o, o paradoxo se desv;me<:e. pois indica a exterioridade
radical da pulsiio face ao universo do diálogo e da negociação, matéria-prima
do impossível.
128 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

Vamos caminhar com mais suavidade na leitura destas proposições,


explicitando um poul:O mais a primeira formulação para retomam1os em
seguida a outra. Assim, seria ingênuo pensar na separação absoluta entre as
categorias de sujeito e de sociedade no discurso freudiano. pois nesse o
sujeito é imediatamcnlc:: rcprésentado no campo da intersubjetividade, impli-
cando sempre outros sujeitos. Em venlade,esla separação é a leitura realizada
pelo pensamento individualista elo discurso freud iano, pois naquele o social
é representado como uma ugrcgaç<io de individualidade, sendo essas môna-
das incomunicáveis. Evidentemente, no individualismo o sujeito fica re-
duzido ao indivíduo, e a aniculação entre os indivíduos é representada em
termos de relações interpcssoais. Estas teses do individualismo se fundam na
identidade entre o psiquismo e ul:onsciêm:ia, entre o eu e a consciência, que
se desdobra nas formula~·Oes do liberalismo clássico e do I ivre-arbítrio, onde
o sujeito enquanto eu tle<:ide sobre as próprias ações sociais usufruindo da
posse total de suas faculdades mentais existentes no campo da consciência.
Entretanto, com a formulação freudiana de que o sujeito ~e funda numa
divisão cstrutuntl do psiquismo e que o sujeito do inconsciente é exterior ao
campo da cons<·iêncía, :1 concepção índívíúualisla do s!Ujeilo e do social
recebe uma crítica contum.Jente, pois com isso o eu passa a ser representado
como submetido permanentemente às imposições do id e às exigências do
superego. Desta maneira, o eu é Jesalojauo da posição de soberania que
ocupa no pensamento individua 1ista e na psicologia, passando a ser regulado
por outros poderes no governo da subjetividade. Por isso mesmo, em O Ego
e o Id, o eu não é mais representado como um "monarca absoluto" que detém
o poder soberano sobre a totalidade de seus súditos e que pode fazer a guerra
contra as outras monarquias, mas como um monarca cons titucional que tem
que realizar negociações com os demais poderes subjetivos para a fommla-
ção de uma lei:

... o ego, na sua relação com a ação, tem. por assim dizer. a posiç!o de um
monarca constitucional, s~m •• san)'àu do <tua! pode se tornar lei, mas que
avalia muito antes de opor seu veto :1 uma lei do parlamcnto.44

É destu perspectiva mewpsícológica que Freud pode enunciar, no


primeiro parÍlgrafo da introJuçiio da Psicologia das massas e análises do
ego, que não existiria oposição entre psicologia individual e psicologia
social, pois? indivíduo está I:Hl~·~•do no l:ampo do social:

... Na vida psfquica do imlivíduo wmada isoladamente, o Outro intervém


regularmente como moúclo, sustentáculo c adversário, e desse fato a
psicologia inúividunl ~ também, d~ imediato e simuhancamente. uma
psicologia social, nesse sentido ;unpliado mas perfeitamente j ustificado.45
O SUJEITO NA DIFERENÇA E O PODER IMPOSSÍVEL 129

Nesta perspectiva, a oposiçiio não seria entre indivíduo e sociedade,


mas entre "atos psíquicos sociais e narcís icos", dependendo pois do registro
psíquico onde se inserem os objetos possíveis de satisfação no circuito
pulsional:

As relações do indivíduo com seus pais e com seus irmãos e irmãs, com
seu objeto de amor. com o seu professor e com o seu medico, portanto todas
as relações que constitulram até o presente o objeto privilegiado da inves-
tigação psicanalítica, podem ter a pretensão de ser consideradas como
fenômenos ·sociais e se opõem enliio a alguns outros processos que deno-
minamos nnrcísicos., nos quais a s;uisfação pulsionada subtrai à influência
de outras pessoas ou renuncia a isso. A oposição entre os atos pslquicos
sociais c rutrcísicos- lllculcr diria, t:llvez: nutísticos - se situa pois,
exatamente no interior mesmo do domfnio da psicologia individual e não
é de natureza para separar cssn de uma psicologia social ou psicologia das
massas.46

Portanto. Freud enuncia a existência de níveis diferentes do circuito


pulsional, onde o Outro está implicado ou descartado, e que a força puls ional
se inscreve no verso da representação ou existe em estado puro, pois na leitura
metapsicológica o indivíduo funciona simultaneamente em registros dife-
rentes. O que implica alinnnr que o sujeito é de ordem intersubjetiva,
exigindo a referência a outros sujeitos para sua constituição. Além da
presença de outros sujeitos, porém, o corpo pulsionnl se polariza face a uma
alteridade estmtural, onde o Outro é representado pela linguagem, lugar onde
se articula o sujeito do inconsciente pela inscrição das forças pulsionais.
Enfim, é a ordem da linguagem que realiza a mediação possível entre os
diferentes sujeitos, materializado:; na sua tessitura pela morte da figura
onipotente do pai e do poder absoluto.
Podemos retomar agora a segunda f ormu!ação, que indica va o aparente
paradoxo no discurso freudiano. Assim, a pesnr do sujeito do inconsciente ser
constituído pelo Outro e ser de estatura imersubjetiva, existe algo a mais no
aparelho psíquico que não é hannônico com a cultura e não se absorve na
ordem da linguagem, produzindo com isso a diferença mínima e insofi smável
na relação do sujeito com o corpo. O corpo e o erotismo não são absorvidos
inteiramente pelo Oulro e tnmsforma<los em sujeito do inconsciente, pois são
os correlatos do Outro, mas se situam no registro das pu lsões. É o que permite
a produção <in singularidude subjetiva, pois é a força constante e a ex igência
permanente de tntbalho que é imposta ao simbólico pelo pulsional. Pólo da
fundação das uiferenças subjetivas, este algo é o que pennite e indica a
ex.istência de ü m eu sinto <1ue não se col!ljuga como eu devo no imperativo
categórico freudiano. A simbolização é o trabalho que se impõe ao sujeito,
de maneira permanente, no intervalo estrutural entre o eu sinto e o eu devo,
130 PSICANÁLISE, CIENCIA E CULTURA

para realizar a costura impossível entre o universo da força e do mundo da


representação.
É evidente que esta costura não se realiza necessariamente, na medida
em que o percurso deste intervalo estã sujeito a impasses e mesmo a
obstáculos intransponíveis, já que não é um processo regulado por determi-
nismos naturais. A heterogeneidade entre a ordem pulsional e a ordem
simbólica é o que funda a possibilidade dos impasses e obstáculos, de fonna
que as pulsões podem ter diferentes destinos no mundo da representação. 47
Esta diferença mínima entre o eu sinto e o eu devo no imperativo categórico
freudiano é o que pode permitir que o sujeito constitua um estilo singular de
e11:istência, marcando de maneira radical sua diferença face a qualquer outro
sujeito, mas é o que pode conduzir também à impossibilidade absoluta dessa
constituição subjetiva e à produção limite de modalidades diferentes de
experiência do sujeito nn cultura, o que é fundamentalmente perpassado pelo
conflito, não existindo então qualquer possibilidade de superação absoluta
da diferença estrutural entre o corpo e a ordem simbólica. O abismo entre
essas ordens é intransponível, de forma que quanto maior forem as exigências
do Outro maior será também o mal-estar na <.:ultura,48 já que com isso o eu .
sinto marcará seu intervalo intran~ponível frente ao eu devo e demarcará
o território do impossível. É em função deste fundamento <.:onflitivo da
subjetividade que a idéia de cura no discurso freudiano não se identifica
com a demanda de adaptação do sujeito no social, pois essa exigência
pressupõe uma harmonia impossível entre o universo das pulsões e o mundo
simbólico. Por isso, a experiência psicanalítica é infinita,49 não existindo
costura possível que anule o intervalo estrutural entre a ordem pulsional e a
ordem da representação, retirando para sempre o sujeito do mal-estar na
cultura.
A existência ueste conflito estrutural entre o corpo pulsional e a
ordem simbólica nos permite destacar a di mensão teórica do conceito de
pulsão de morte, pois essa seria a forma radical da existência da pulsão,
isto é , a pulsüo como força constante e como exigência absoluta de gozo
pela descarga total. A pulsão ue morte é a modalidade de existência do
pulsional que não se inscreve no círculo do Outro sob a forma de
representantes (represemnnte·rt!prese ntayão e representante afelivo), não
se simbolizando e se opondo a qualquer simbolização, pois pretende a
realização da completude e do gozo absoluto; pela descarga imediata e
sem qualquer mediação. Por isso mesmo, a pulsão de morte fo i repre·
sentada no discurso freudiano pelu figura retórica do silêncio, como uma
modaliuade de anti-reprcsentavão, 50 já que o silêncio é a ausência de
palavras, apesar du existência de ruídos e barulhos desarticulados que
delineiam o cnmpo do si lêncio.
O SUJEITO NA DIFEI~ENÇA E O PODER IMPOSSiVBL 131

Esse discurso foi enunciado detinitivamente por Freud no final do seu


percurso, na obra Mal-estar na cultura, quando expôs inicialmente a desar-
monia fundamental entre o psiquismo e a ci~ilizaífo, em fu.nção d.a exis-
tência da pulsão de morte como poder de destru tção. Em segutda, o d1scurso
freudiano considerou que o desenvolvimento histórico da civilização, pelas
demandas crescentes que impõe às individualidades, promove o incremento
do conflito psíquico pelas renúncias que exige do corpo pulsional.52 As
diferentes técnicas inventadas pela humanidade, ao longo de sua história.
para se desviar destas renúncias ou para melhor absorvê-las pela racionali-
zação, se mostraram impotentes, revelando em última instância os impas-
ses que a civilização impõe pam o sujeico. 53 A resultnnte maior disso é o
mal-estar na cultura que se incrementa com o desenvolvimento civili-
zatório e impõe renúncias crescentes ã subjetividade. Enfim, a produção
da violência e da agressividade é o correlato necessário do processo civili-
zatório, no registro intersubjetivo, ao mesmo tempo que o seu outro, o
masoquismo.
Neste contexto, esboça-se o horizonte possível onde se insçrevem as
categorias de política e de poder no discurso freudiano, pois, inserido na
ordem social permeada estruturalmente pelo mal-estar, o sujeito incompleto
e finito pretende não apenas marcar sua diferença absoluta frente aos demais
sujeitos, mas também buscar realizar sua completude dionisíaca de qualquer
maneira, rivalizando com os outros sujeitos para a conquista dos precários
objetos de satisfação e dos espaços de produção desses objetos. Qualquer
solução pretensamente igualit:íri:J, definida a priori por uma instância de
planejamento da produção e da distribuição da riqueza da soberania absoluta,
se apresenta como impossível, jCt que a demanda dos diferentes sujeitos é
singular e a regulação da satisfação é estruturalmente desigual. Daí porque
a descrenÇa freudiana na solução socialista, tal como ela se perfilava nos anos
trinta, com o discurso stalinistn da pós-Revolução Russa e da construção do
Estado sov iético. 54
Assim , as relações entre os homens se apresentam como um estado
permanente de guerra, já qúe impera u disputa pelos objetos limitados de
satisfação e o confronto de forças é um obstítcu lo poderoso à hannonia sociaL
Neste campo de forças, o exercício do governo é uma prática social nos
limites do impossível, sendo a política a tentativa de gestão, pennanente-
mente recomeçada, da guerra insistente que penneia as relações inter-huma·
nas pela posse dos objetos de prazer. Por isso mesmo, como prática social, a
politica se inscreve nas bordas do impossível, pois pretende legislar nas
fronteiras de um t~rritório que indica a oposição ativa do sujeito à absorção
pela ordem simbólica.
132 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

VI. Massa, horda e poder


Esta formu!ação sobre o impo~sível na polí;ica, constituída pela oposição
entre os reg1stros do corpo puls10nal e da ordem simbólica foi tematizada de
outras maneir:a no discurso freudiano. Nós indicamos ante~ionnente que para
F~e~d a .~po~~çã~ fun~amen!al,; nlio se encontrava entre a "psicologia in-
. diVIdunl ~a pstcolog1a socJal , mas entre os registros social e narcísico.ss
A econo~•a e as figu~as do narcisismo vão nos pennitir indicar agora, num
outro reg1stro mel~psJcológico, o que tematizamos até agora pela oposição
entre o corpo puls•onal e a ordem simbólica.
No discurso freudiano a economia do nurcisismo se materializa em
figums fund~mencais, que revelam diferentes relações com o Outro e com o
~razer, co.nsJderando este como o valor de regulação da subj~·ti vidade: o ego
1deal e o 1deal do ego. Assim, enquanto no ego ideal o eu se coloca como
sendo o seu próprio ideal, não exis]indo então qualquer instância transcen-
dente no estabelecimento do ideal. no ideal do ego o eu se submete a um valor
transcendente que funciona como mediação entre os sujeitos. O que implica dizer
que a alteridade ~omo .v~lor en contra~se presente apenas no registro do ideal
do ego, onde ex1ste etehvnmente o cumpo da intersubjetividade o que não
~or:e no e?o ide?J.S~S7 A decon·ência. disso é que o ideal do ego e'o superego ·
S;ã~ mstílncJas ps1qutcas que se constituem pela elaboração do complexo de
Ed!~· enquanto que o ego ideal, apesar de se ordenar nas fronteiras da estrutura
edtptana, está inscrito na exterioridade do complexo de Édipo.
Po~t anto, podemos dizer que o ideal do ego implica a incidência e o
reco~ hec1mento da ordem simbólica nu relação do sujeito com o seu corpo
pulslonal e com o outro, enquanto que no ego ideal existe a incidência mas
n.ão ~ ~econh.ecimento da ordem simbólica. Existe, então, meuiação pelo
stmbol1~0 no tdea.l do ego, mas essa mediação se encontra ausente no registro
~o ego 1deal. A ~tfe~ença de sexos e as identificações secundárias apenas se
mscrevem no pstqUJsmo com o ideal do ego e com o complexo de Edipo. É
neste contexto apenas que o sujeito reconhece a paternidade como fundada
?a fig~ra da morte, promovido pela castração da müe fática e da onipotência
mfant1l co~o. representa\·ões do ego ideal, e a palavr.t pode então circular
entre os SUJeHos como maneira de inscrição da diferença subjetiva e da
ordenação do diálogo.
O conc.eito d~ narcisismo das pequenas diferenças, introduzido por
Freud em Ps1co!ogw das massas e análise do ego,58 é uma outra maneira
pa~a s_e tematiza~ a problemática do mal-estar na cultura para a subjetividade,
po1s e pelo cammho do narcisismo uas pequenas diferenças que os corpos
estabelecem relaç~s de oposiçilo entre si, pura se distinguirem radicalmente
e para o estabelecimento de fonnas diversos de dominação. Peta tentativa de
O SUJEITO NA DIFERENÇA E O PODER IMPOSSÍVEL 133

domlnio sobre o corpo do outro, o sujeito pretende extrair os objetos passiveis


para a promoção do gozo (ego ideal), mas é pelo obstáculo permanente que
é interposto para essa violação predatória que se constitui também um
sistema de diferenças entre os sujeitos (ideal do ego), inscre vendo aeconomia
do narcisismo num espaço intersubjetivo regulado por valores transcen-
dentes ao gozo imediato e absoluto.
Na tematização deste conceito, o discurso freudiano destaca como o
narcisismo das pequenas diferenças transcende o campo da individualidade
e se inscreve no campo d:ts diversidades inter-humanas: família, grupos
sociais, segmentos sociais, classes sociais e estados. 59 Seria pela oposição
das unidades da mesma espécie entre si que se constituiria e reproduziria a
própria identidade das unidades no cnmpo do confronto, marcando cada uma
delas sua diferença pam com as demais,60 numa guerra permanente de
posições.61 Então, como no discurso hegeliano,62 a guerra tem no discurso
freudiano uma efetiva dimensão estruturante das diferentes identidades, pois
permite a constitui~o e a remodelaçüo in tini ta das unidades inter-humanas. Ao
lado disso, porém, a guerra tem também sua dimensão destrutiva, pela ânsia de
dominio sobre o outro que promove e pela pretensão de cada uma das unidades
em confronto de impor o seu sistema de valores como superior ao dos outros.
É esta leitura teórica que pennite a Freud representar metapsicologi-
camente a massa e enunciar que o homem é um animal de horda. Assim, na
orgltnizaçiio da massa, a singularidade subjetiva se apaga, as diferenças se
anulam, as subjetividades se tornam homogêneas diante do imperativo •
categórico do eu devo representado pelo líder carismático. Em função disso
as subjetividades. quando dissolvidus no corpo da massa, se tomam capazes
de realizar atos para os quais estariam incapazes se estivessem sozinhas. O .
poder: carismático da palavra do líder é o catalisadorda organização da massa
e de suas ações, homogeneiznndo a~sim a massa pela constituição simultânea
de objetivos e inimigos comuns. A fusão, porém, das singularidades num
bloco compacto tem um limite estrutural infalivel, caso o carisma do líder
não consiga ~nunciar fin alidades comuns e inimigos na exterioridade da
massa para manter sua economia narcísi<:a, pois caso contrário a violência
implode no campo da organização de massa pela mise-en-scene do natcisis-
mo das pequenas diferenças que se insinua entre as singularidades. Seria
portanto neste sentido que o homem é um :tnimal de horda e não um animal
de massa, pois existiria ulgo no sujeito que se opõe radicalmente à sua
absorção completa ~lo simbólico e indica a sua diferença em algum mo-
mento do processo. '
A massa apresenta uma organização complexa e polarizada, numa
leitura metapsicológica. Assim, elliste o agrupamento homogêneo dos iguais,
que se contrapõe à figura do líder como agenciador da massa. O Uder
t 134 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

representa o ideal do ego, mas frente 11 esse centro destacado as indivi~


dualidades perdem momentaneamente suas diferenças face ao ideal maior.
A organização da massa se fun!.laria na crença. do grupo no carisma do seu
líder, na crença no seu poder onipotente. Qualquer mácula nesta repre-
sentação, porem, é capaz de produzir a fratura da organização, levando a
massa ao pânico, à desorganização e à debandada geral. Além disso, a figura
do líder deve ter uma habilidade especial para manter uma distância mínima
entre seus liderados, permitindo a existência de diferenças, pois senão o
narcisismo das pequenas diferenças pode implodir a organização coletiva.64
Enfim, este é o paradoxo da figum do líder e que indica os limites estruturais d.o
seu poder, destacando a dimensão impossível do seu governo sobre os homens,
pelos impasses colocados à satisfação das demandas heterogêneas da massa.
A fascinação da massa pela figura do líder se alimenta da promessa de
compleJ.ude que ele anuncia e que se superpõe à demanda das indivi-
dualidades por esse bem supremo. Esta é a leitura freudiana da existênci~ da
transferência positiva, .mas também é a construção teórica para a interpreta-
ção das experiências do hipnotismo e da sugestão.65 Entretanto, a fascinação
se rompl abruptamente na massa pelo desequilíbrio libidínal produzido pelo
narcisismo das pequenas diferenças, que impõe as <.liferenças mínimas das
singularidades entre si e de cada uma delas com a figura do líder. Neste
momento o líder perde seu carisma -e poder onipotente, de forma que sua
possibilidade de exercício de governabilidade é radicalmente colocada em
questão. Na experiência psicanalitic.a esta transformação se apresenta na
mudança do registro da transferência. em que esta, de positiva, se transforma
em negativa,66 .
Neste çontex to, se a figum dglfder contornar o impasse pela imposição
autoritária d.o seu poder e de sua força, .a massa pode ainda se submeter por
um certo tempo, acreditando.novamente na promessa da completude.que lhe
é oferecida. Rebela-se, porém, em seguida, de . maneira glob.al e local,
destituindo o líder que já perdeu seu curisma, pela dinâmica do narcisismo
das pe9uenas diferença$.
E preciso dest!}car que a leitura freudiana da organização metapsico-
lógica das massas indica um pamdoxo imponante, que se desdobra numa
série de efeitos .e indica questões fundnmemais. Com .efeito. Q poder se
apresenta, por um lado, como um lugar impossível de $Cr ocupado de maneira
absoluta e soberana por qualquer um, pelos impasses que sublinhamos, mas,
por outro, a leitura indica que o poder é um lugar ft}ndarnental para o sujeito,
pois é pelos efeitos irradiantes da sua estrutura que se produzem.as singula·
ridades e as pequenas diferenças subjetivas. .
Como se fundamenta este paradoxo? Freud construiu uma teoria para
soh,1cionar os impasses de.tal paradoxo, e.nunci~ndo que o lugar da figura do
O SUJEITO NA DIFERENÇA E O PODER IMPOSSÍVEL 135
~

Jíder deve ser mantido Como Ulll lugar vazio, na médida em que é um lugar
impossível de ser.oc-upado integmlmente por qualquer figura humana. Esse
r
é o lugar do pai morto, da reminiscência da onipotência humana, que deve
ser limitada para que se constitua a ordem simbólica como o seu outro,
condição de possibilidade para o mediação entre os sujeitos pela linguagem.
Dito de outra maneira, o vazio nesse lugar soberano indica a existência de
um mundo sem Deus, mundo secularizado pela ciência e dominado pelo
poder dos homens. Nesse mundo desencanta!.lo.os.bomens devem inventar
suas formas de saber e reinventar permanentemente seus discursos, para
estabelecer o diálogo entre si e remÇJdelar a paisagem do universo. O lugar
vazio do Deus inexistente, porém, indica também a demanda interminável
de simbolização a que está destinado o sujeito, condição indispensável para
a transformação do universo das coisas, reinvenção permanente das formas
de relações inter-humanas e a constituição da experiência da nist6ria.
Esta formulação foi inaugurada em Totem e tabu, obra que se encontra
nos primórdios do percurso freudiano sobre o poder e sobre os limites da
simbolização humana. ·

V/1. A lei e a morte


Vamos esboçar esta problemática, retomando a constituição da teoria do
poder em Totem e tabu onde a morte e o poder absoluto se colocam como
categorias fundamentais , destacando o di se urso freudiano uma série de temas
que são centmis no discurso da filosofia política sobre o poder. ·
No capítulo final de Torem e labu fomm introduzidos no discurso freudia-
67
no a figuro da morte do pai primordial e o mito da horda primitiva. Depois de
enunciada pela primeira vez, a nnrrutivu desse mito retomará posteriormente e~
diferentes momentos do discurso freudiano, para destacar a transcendência
fundadora da morte do pai p::u11 o sujeito, a culpa primordial na ordem humana,
e a conseqüente constitui~•io da cultura, da sociedade e da história humana.
68

Freud nos relata uma experiência primordial que estaria nas fronteiras
da natureza e da cultura, demarcando a constitui~ão do sujeito, da sociedade
e da história. A narrativa é marcada pela construção mítica, na qual se
evidencia a ausência ún comprovação hi~t6rica fornecida pela memória da
humanidade. Trata-se, por1anto, d~ um mito das origens. Qnde o que funda a
narrativa é a reminisc€ncia do sujeito e não a ordem da memória, reminis·
cência essa que se revela pela experiência da.repetição que se apresenta no
processo psicanalítico. ·
De acordo com e~su paráboln, teria existido algum dia uma figura
pntema que detinhn o poder absoluto sobre as riquezas e os bens de prazer~
usufruindo (.le maneira soberana da totalidade dus forttes de gozo. O pa1
136 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

primordial era o detentor da totalidade dos bens materiais e das mulheres,


mesmo as que fossem as suas tilhas. Essa figura paterna ameaçava com a
morte quem se insurgisse contr.t o seu poder soberano, mesmo os que fossem
os seus filhos. Enfim, teria existido na horda primitiva um estado de coisas
caracterizado pela onipotência absoluta em detrimento de todos os outros,
onde imperava a ausência de qualquer lei, à qual, como instância transcen-
dente, todos devessem se submeter em condição de igualdade e que definisse
as interdições fundamentais da ordem humana: o incesto e a morte.
Os demais homens da horda, filhos do pai primordial, sentiam-se
prejudicados pela ordem existente, pois não poderiam desfrutar de qualquer
forma de prazer sexual e usufruir das benesses da riqueza. Sendo, porém,
cada um deles mais fraco que o pa i, não podiam desafiá-lo, pelo temor do
aniquilamento. A solução para esse impasse foi encontrada quando os mais
fracos resolveram se associar para combater o pai gigantesco, reunindo suas
forças precárias e constituindo então uma força hercúlea para desafiar o pai.
Desta maneira, o pai primordial foi assassinado pela associação dos irmãos,
que constituíram um pacto em que ninguém poderia ocupar o lugar da figura
pacema e exercer o poder tirJni(;o sobre os demais.
Assim, ter-se-ia constituído o lugar do pai como um lugar vazio e
virtual, onde se erigiu um totem simbolizando a sua presença e simultanea-
mente destacando a sua ausência. Nesta posição, regulada pela oposição entre
presença e ausência, a figura paterna não é evidentemente uma figura real
mas um simbolo, delimitando um espaço potencial onde se funda o poder. A
patemidmle como símbolo do poder remete para a experiência da morte. A figura
da morte, porém, reenvia pam a onipotência absoluta e para o poder soberano,
que recebem com a associaçcio hu!llana um limite violento para suas existências.
No discurso freudiano, po1tanto, existe uma articulação orgânica entre
a morte, o símbolo e a ordem social, pois é a morte da figura soberana do pai
primordial que é a condição de possibilidade para a associação entre iguais,
pela mediação da linguagem e pelo estabelecimento do pacto simbólico. Foi
neste sentido que Freud retomou no tina! de Totem e tabu o apotegma
faustiano ''no principio era ação", 69 pois seria o assassinato do pai primordial
a condição de possibilidade paru a constituição da ordem simbólica e para a
instituição de um pacto social que regularia a relação de troca entre os iguais.
Entretanto, a associação entre iguais que se reconheceram como fracos,
visando com isso a mone da figura do pai primordial, seria o operador funda-
mental desse conjumo de tr.tnstonnações constitutivas da ordem simbólica.·
A produção e a presença da figura do totem seriam a representação do
pai morto, destacando a experiência primordial para a emergência da ordem
social e da cultura, indicando o limite traçado par:t a onipotência originária
como condição de possibilidade para a constituição da ordem simbólica. A
O SUJEITO NA DIFERENÇA E O PODER IMPOSSÍVEL 137

morte seria o destino infalível para qualquer um dos participantes da as-


sociação humana que pretendesse ras urar o pacto simbólico e exercer o poder
absoluto. Portanto, com o estabelecimento da ordem simbólica se define ao
mesmo tempo o limite absoluto, isto é, a morte e a castração, para qualquer
um que tenha a pretensão de ocupur o lugar da figura do pai, para gozar de
maneira absoluta com a totalidade das mulheres e das riquezas. Enfun,
estabelece-se a proibição do incesto como o interdito fundamental da ordem
humana e da cultura, intimamente ligado à figura da morte e ao limite face
à onipotência primordial que se marca no corpo.
Quando o discurso freudiano retoma a essa problemática em O ego e
o id, para tematizar a constituição do sujeito nas suas identificações primor-
diais, a figura do pai morto é enunciada com a mediação fundamental para
que sejà possível ao proto-sujeito a experiência da perda dos objetos das
pulsões: seio, fezes, pênis.1° Freud formula que, ·sem a mediação do pai
morto, não existe qualquer possibilicf·lde de impor limites intransponíveis às
exigências do gozo pulsional e conseqüentemente à emergência do de-
sejo, pois esse se constitui apenas pela perda limitadora do gozo pulsio-
nal. Evidentemente, essa seria a condição de possibilidade para a
constituição do sujeito como desejante. Porém, a figura do pai primordial
estaria inscrita num registro além da diferença sexual, não sendo nem pai
nem mãe, nem homem nem mulher, pois não seria marcada pela diferença
sexual, sendo então a sua morte o limite imposto à sua onipotência, de onde
deriva genealogicamente no psiquismo a identificação primária e poste-
riormente a diferença sexual.7
Assim, o discurso freudiano sobre o poder enuncia que é impossível a
ocupação eterna do lugar absoluto do poder, pois o preenchimento infinito
desse lugar de máxima onipot~ncia tem como conseqüência inevitável ·a
morte de quem tem a pretensão em ocupá-lo. Essa é a condição de pos-
sibilidade para a existência de um mundo sem Deus e para a constituição de
uma sociedade democníticu, em. que.o lugar do.podernão é ocupado..etema-
mente por nenhum mortal e onde a soberania é distribuída em diversos
domínios do poder político regu.lu.nneme re;r~~aliada pela ordem social. Por
isso mesmo, esse lugar é para se manter vazio, pois é seu vazio que é
a condição de possibilidade da ordem simbólica e do seu correlato que é
a ordem social. Da mesma forma, a política e a história apenas se cons-
tituem como efeitos privilegiados da produção deste espaço potencial, do
vazio do poder absoluto. Entim, seria esse vazio que possibilitaria a cons-
tituição dos interditos fundamentais da ordem humana, em que a figura da
morte seria o operador primordial, pois impõe um limite absoluto para a
onipotência originária, possibilitando a constituição da linguagem e da
ordem social.
138 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

VI/l. A morte, a piedade e o social


Freud enuncia o mito da horda primitiva como um fragmento discursivo
retirado de Darwin. A problemútica que se encontra presente na leitura
freudiana, porém, transcende a n:fcrência biológica, reenviando para o
arquivo discursivo da filosofia moral e política do século XVIII. Parece-nos
que o discurso freudiano retoma uma questão central da filosofia política
clássica, imprimindo uma leitura psicanalítica.
Na filosofia do contrato social era fundamental delinear as condições
de possibilidade <la passagem do indivíduo para a ordem social e para a ordem
política, do indivíduo isolado para a sua inscrição no Estado, isto é, de como
o indivíduo renunciava a uma série de prerrogativas que poderia desfrutarno
estado de natureza para se associar com outros indivíduos numa sociedade e
num Estado. No estado de natureza, esquematicamente falando, cada qual
vivia para o seu próprio usufruto, acumulando coisas que possibilitassem a
manutenção da vida, valor supremo do direito natural. Porém, como cada
individualidade estava preocupada com sua própria vida como valor fun-
damental, a possibilidade da guerra de todos contra todos estava permanen-
temente colocada no horizonte, pois era crucial para cada um a manutenção
da vida nestecen:.íriodelnta pela sobrevivência. Com isso, a ameaça de morte
das individualidades se colocava permanentemente como possível, pondo
em risco a vida dos indivíduos. Seria o paradoxo existente no estado de
natureza que teria conduzido a humanidade ao estado de sociedade e ao
estado político, como formas de existência capazes de garantir contra os
riscos de morte existentes no estado de natureza. Entretanto, essa as~ociação
entre os homens na sociedade e no Estado teria implicado a renúncia da
liberdade absoluta que cada individualidade gozava no estado de natureza.
Evidentemente, este desenho da existência do indivíduo no estado de
natureza e apassagem parn o estado de sociedade é uma construção de·ordem
mítica, delineando um mito das origens onde os impasses colocados pelo
estado de natureza impunham necessariamente a passagem para o estado
político. A vida como valor supremo do direito natural seria, porém, a
regulação fundamental para a superação dos impasses do estado de natureza
e a passagem para o estado político. ·
Entretanto, considerando o campo desta problemática, é preciso des-
tacar agora como os diferentes autores divergem na leitura dos impasses
colocados no estado de natureza e na regulação da passagem para o estado-
de sociedade. Assim, para Hobbes, o estado de natureza seria caracterizado
pela guerra permanente. Nesle conlexto, existiria sempre o risco iminente da
morte das individualidades. Seria o terror da morte que faria com que cada
um dos indivíduos renunciasse a uma parcela do seu direito natural, para a
O SUJEITO NA DIFERENÇA E O PODER IMPOSSÍVEL 139

manutenção do valor fundamental·desse direito que seria a vida. Então, para


a manutenção da vida díante da ameaça de morte, cada um dos indivíduos
teria alienado uma parcela do seu poder a um soberano, que ~assaria a mediar
pela lei as diferenças e os atritos entre as individualidades. 2
Em contrapartída, Rousseau atribuiu à piedade face ao outro, no
contexto da rivalidade bélica pela sobrevivência, o valor fundamental que
faria com que cada individualidade renunciasse ao seu poder absoluto e
constituísse uma ordem social pela associação com os outros. Seria, então, a
recusa de matar e de destruir o outro que faria com que cada individualidade
estabelecesse um limite ao seu poder absoluto, alienando uma parcela do seu
direito natural para que tomasse possível a constituição da ordem social que
regularia a relação entre os indivíduos.73 .
A primeira questão a ser respondida aqui é se é possível indicar a
presença do pensamento de Hobbes e de Rousseau em outras passagens no
discurso freudiano, já que quando Freud enuncia a existência do mito da
horda primitiva em Totem e tabu, sua referência direta é Darwin. Em seguiqa,
é preciso destacar a modalidade de apropriação realizada por Freud dos
discursos de Hobbes e Rousseau, sublinhando a interpretação freudiana da
problemática da filosofia política clássica. .
Assim, a referência a Hobbes é bastante óbvia no discurso freudiano.
principalmente, com a formula~·ão da existência da pulsão de morte na
segunda teoria das pulsões, pois avolumam-se as referências no texto freu-
diano à máxima do Leviatã: "o homem é o lobo do homem... Com efeito, no •
Mal-estar da cultura o imperativo da élica cristã centrada no paradigma do
"amor ao próximo" é criticado como sendo psiquicamente insustentável, ao
que Freud contrapõe o imperativo élico "o homem é o lobo do homem",
retirado da filosofia moral de Hobbes, como mais condizente com a lógica
da pulsão de morte.74 A marca da tragicidade da é.tica freudiana no final do
seu percurso teórico é fundada no reconhecimento desta verdade, que se
baseia na lógica mortífera do nru·cisismohumano e nos desdobramentos da
pulsão de morte como pulsão de destruição.
A primeira teoria freudiana do sadismo, porém, é marcada pelo pensa-
mento de Rousseau, pois Freud formula na sua teoria das pulsões que.
estruturnlmente, o sadismo é anterior uo masoquismo e que a transfonnação
do sadismo originário em masoquismo seria realizada pela expe,rj~ia
psíquica da piedade. Vale dizer, seria pela piedade ao outro, onde é extrava-
sada a descarga da pulsão de domínio,7s para não destruir o outro, que o
proto-sujeito desinveste da violência sádica originária e retoma a violência
sobre si mesmo, estabelecendo então a diferença originária entre dentro e
fora, para se constituir como sujeito numa experiência marcadamente mascr
quista.76 Em contrnpartida, na segunda teoria das pulsões, Freud estabelece
140 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULnJRA

o primado do masoquismo sobre o sadismo, na medida em que a pulsão de


morte~ originária e não uma derivação do sadismo. de forma que o proto-
sujeito prefere promover a morte do outro para não desaparecer na autodis-
. solução pelos efeitos da pulsão de morte em estado puro.71
Nesta perspectiva, podemos fonnular que, na passagem da primeira
para a segunda teoria das pulsões, o discurso freudiano se deslocou de um
paradigma que o aproll.imava de Rousseau para um outro que o aproximava
de Hobbes, indicando com isso os limites impostos ao operador teórico da
piedade e a incidência do conceito de pulsão de morte. Desta fonna, o
discurso freudiano sublinhava a passagem do imperativo ético do cris-
tianismo; que enunciava que se "deve amar ao próximo como a si mesmo",
para o imperativo ético de Hobbes, pelo qual"o homem é o lobo do homem".
A descoberta freudiana da economia do narcisismo, com as suas múltiplas
derivações no aparelho psíquico pelas djversas estruturas ideais e a articula-
ção de algumas dessas estruturas com a economia da pulsão de morte,
desempenhou um lugar fundamental na transformação no imperativo ético
que regulava o discurso freudiano. . .
Podemos deslacar ainda, porém, a presença de um outro md1cador
teórico desta problemática do discurso freudiano. Com efeito, a primeira
teoria das pulsões é definida pelo conflito entre as pulsões sexuais (libido) e
as pulsões do ego (interesse), na qunl us pulsões sexuais apontam para um
pólo hedonista da natureza que seria regulado pelo pólo social dos interesses
do ego, que interditaria a natureza paradisíaca do homem.11 A resultante
disso seria inevitavelmente o conflito psíquico implantado na inserção do
sujeito na ordem social, de forma que "a moral sexual civilizada" teria
necessariamente como ·conlnlpartida "a enfennidade nervosa dos tempos
modemos".711 Enfim, esta seria uma oulnl referência teórica importanle
de uma temática deslocada do discurso de Rousseau no pensamento freu·
diano, deslocada porque Rousseau nllo fala da sexualidade na abor-
dagem dessa temática, mas que nos indica que Freud tinha acesso à
problemática teórica do arquivo discursivo da filosofia ~lítica do século
XVIII.
Esta é a questão crucial-que pretendemos destacar neste comentário.
Não estamos dizendo que Freud é um comentador de Rousseau e de Hobbes,
nem tampouco que Freud seja um teórico que utilizou sistematicamente as
categorias e as temáticas da filosofia política clássica. Em contrapartida,
queremos afinnar que a retomada do mito darwinista da horda primitiva no
discurso freudiano passa pela pmblemática da <.:onstrução da ordem social e
da ordem polftica, que se encontra presente nestes autores fundamentais da
filosofia política e moml do século XVIII. A leitura freudiana de Darwin,
portanto, nlio é naturalista, na medida em que a preocupação de Freud 6
O SUJEITO NA .OIFERENÇA E O PODER IMPOSSÍVEL 141

sublinhar como o pacto simbólico é ao mesmo tempo um pacto social e um


pácto político, marcando a passagem do registro da natureza para o registro
da cultura pela morte do pai primordial, pela constituição da lei e pela
instituição da associação entre os homens.
Nesta perspectiva, foi a problemática teórica da filosofia política
clâssica, retomada no discurso freudiano de maneira específica pela teoria
das pulsões, que definiu a direção crucial que Freud imprimiu na leitura do
discurso de Darwin sobre o mito da horda primitiva, onde foi inserida uma
série de temáticas que estavam ausentes do discurso de Darwin e que se
encontravam presentes na interpretação freudiana. O que implica dizer que
a 1eoria freudiana do sujeito, ern que a ordem simbólica é o seu outro, tem
como correlato uma concepção psicanalílíca sobre a ordem social e o poder,
na medida em que na sua teoria o sujeito não pode ser representado como
uma mônada isolada na exterioridade da ordem simbólica, da ordem social
e da ordem política. Enfim, no discurso freudiano o pacto simbólico implica
ao mesmo tempo o pacto social e o pacto político.
Estabelecida, porém, esta problemática teórica similar e algumas das
filiações teóricas presentes no discurso freudiuno sobre o sujeito e o poder,
é preciso deslncar agor.J esquematicamente algumas das diferenças entre
estes teóricos, para não suponnos que se trale de referenciais teóricos
idênticos. Pretendemos sublinh:tr com isso a especificidade da leilura freu-
diana sobre o poder, marcando sua diferença nesse campo de semelhanças.
Assim, no discurso teórico de Hobbes e de Rousseau, é importante o
referencial da filosofia da consciência, mesmo que não se possa considerar
esses autores como inseridos na tradição cartesiana. A referência, porém, ao
ser da consciência é fundamental nos discursos filosóficos de Hobbes e
Rousseau, onde a categoria de contmto social é um conceito crucial para que
se possa representar a passagem da idéia de indivíduo em estado isolado para
sua inscrição nos registros social e político, pois essa transfo1111ação que
implica renúncias e perdas pura o indivíduo no estado de natureza passa
necessariamente pelo câlculo e pela deliberação do eu e da consciência. Em
contrapartida, o discurso freudiano formula que a associação entre os innã.os
é o efeito da culpa pelo assassinato da figura paterna e não um contraio soc1al
deliberado pela escolha livre e autônoma da consciência. Trata-se, en1ão, de
um paclo originário mediante o qual se ordena ao mesmo tempo o sujeito e o
social, nlio existindo pois qualquer subjetividade antes do estabelecimen-
to do paclo simbólico. Desta maneira, o 4õujeito se conslitui no registro
do inconsciente tendo a ordem simbólica como o seu Outro, não existindo
pois no discurso frçudiano as categorias da consciência e do eu como
instâncias psíquicas autônomas, que seriam decisivas para a escolha e a
deliberaçüo.
142 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

IX. O poder, a verdade e a morte


O que se destaca, porém, como a questão comum entre o discurso freudiano
e o discurso da filosofia política clássica, mesmo considerando suas diferen-
ças fundamentais, é a problem~tica da morte. Para estes teóricos seria
impossível pensar na questão do poder sem inserir a temática da morte, sendo
a morte a questão crudul que se encontra como a fonte primordial do poder
e em tomo da qual o poder se organiza como dominação. Essa relação
orgânica entre a morte e o poder transcende o quadro da filosofia política
clássica onde ela foi anunciada e marca o discurso da modernidade sobre o
poder, indicando ao mesmo tempo como a enunciação da verdade é regulada
pelas relações de força. Desta maneira, o discurso freud iano sobre o poder
se inscreve no horizonte teórico entreaberto na modernidade, onde se desen-
volveram de maneira decisiva as relações entre a morte, o poder e a verdade.
Assim, a problemática dn morte é fundamental na reflexão hegeliana
sobre o poder e sobre o sujeito, pois seria n ameaça da morte do senhor que
define a aceitaçilo do escravo de sua condição de escravidão e o reco-
nhecimento simultàne·o da posí1;ão de dominação do senhor. Seria, porém,
pela dialética do trabalho que o escravo subvertia a condição de dominação
absoluta do senhor, retirando-o de sua posição soberana e tirânica, de forma
a se deslocar da condição de coisa e receber o reconhecimento de si mesmo
mediante o trabalho.80 Existiria então para Hegel uma tensão radical entre a
morte, o poder e o trabalho, entre os quais se teceria por oposição a construção
do sujeito, da razão e do espírito, que imprimem limites decisivos à onipo-
tência tirânica do senhor, sustentada na dominação e na ameaça da morte.
Marx retoma essa problemática hegeliana mediante a categoria de luta
de classes e realiza a construção de uma teoria da história, reinterpretando a
dialética hegeliana do senhor e do escravo no contexto da luta de classes,
onde ind ica que a luta de classes seria regulador da história e das transfor-
mações sociais e políticas da história da humanidade. 81 Desta maneira, não
existiria no discurso de Marx qualquer possibilidade de se pensar a proble-
mática da verdade na exterioridade do campo socinl construído pelas relações
de força entre os homens, sendo pois n prob lemntica da morte e da dominação
política o que regularia a enunciuçiio da verdade. Numa outra ordem de
discurso, Nietzsche estabeleceu também a relação íntima que existiria entre
o poder, a morte e a verdade, pois a verdade se fundaria na relação de força
do intérprete, de maneira a se estabelecer a relação entre o dizer e quem diz, ,
quando diz e como diz.82
Foi estabelecendo a relação orgânica entre estas temáticas e categorias
que Foucault empreendeu a sua leitura da modernidade, onde articulou as
categorias de verdade e de interpreta\·âo, marcando a diferença radical que
O SUJEITO NA DIFERENÇA E O PODER IMPOSSiVEL 143

existiria entre a concepção de interpretação da Idade clássica e a moderna


concepção de interpretação. Assim, enquanto na Idade clássica a verdade
teria um referente último que a fundaria, um ponto absoluto de origem para
onde se dirigiria o trabalho da interpretação, na modernidade não existiria a
crença num ponto absoluto de origem, pois a interpretação é sempre inter-
pretação, na medida em que a we.te.nsa verdade é já resultante de uma "
interpretação anterior e não uma origem absoluta. 83
Para Poucault, essa rransformação na concepção de interpretação da
Idade clássica para a modernidade indica n passagem da semio/ogia para a
hermtnêutica, pois nesta a verdude já é interpretação, sendo isso que se
poderia depreender das diferentes modalidades de hermenêutica em Freud,
Marx e Nietzsche. Com efeito, no contexto do discurso desses diferentes
autores, como a verdade já é interpretação e não origem absoluta para a •
construção da interpretação, a i'nterpretação se perfila no horizonte como um
trabalho interminável, mas onde a verdade se ordena regionalmente e se
precipita como evidência pela sua rcgulução por relações de força: a se~ua.
Iidade em Freud, as relações de prodw;ão e a luta de classes em Marx, a força
vital em Nietzschc. 84 Portanto, a leitura de Foucault indica a construção da
hermenêutica da modernidade como fundada na relação orgânica entre
verdade e interpretação sem ponto absoluto de origem, destinando a inter-
pretação a um trabalho intermináveI na qual, contudo, aquilo que se apresenta
pretensamente como verdade originúria seria a ordenação regional de re-
lações de força. Enfim, parece que Foucault aponta inequivocamente para
uma relação de fundação entre verdade e energética, saber e poder, onde a
categoria de força como poder seria o elemento decisivo na ordenação
momentânea e regional da verdade.
Assim, seria a dimensão da força que perpassa permanentemente a
totalidade das relações entre os homens fiO espaço social que funda a
concepção de poder na sua rela<;ão com as problemáticas da verdade e da
morte. Nesta perspectiva, seria o domínio momentâneo nas relações de força
no espaço social que regularia o regime dn distribuição regional do poder e
da produção de verdades. Por isso mesmo, Foucault pode enunciar que a
guerra é a cond ição bãska que permeia as relações inter-humanas, rndicali-
zando a articula!fiiO entre a guerra, a morte e o poder que foi introduzida na
filosofia política clússica e desenvolvida pela tradição filosófica do século XIX.
Nesta perspectiva, a política seria a continuação da guerra, estando o
exercício da governabilidade permanentemente ameaçado pela emergência
da guerra, na medida em que é a força que regula as relações entre os homens.
Por isso mesmo, não é a guem• que é a continuação da política, mas de
maneira inversa seria a política a tentativa de administrar a guerra que
atravessa as relações humanas no espaço sociul. Enfim, Foucault não se
PSlCANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

inscreve no pólo da tradição teórica de Clausewitz, de Hegel e de Lenin, que


afi~avam que a guerra seria u continuação du política com outros meios,
po1s para Foucauh a política seria u continuação da guerra.85.86

X. A força e a retórica

A p~lítica c?mo forma de_ n.tediação das relações entre os homens no esp.açQ
socJal, med1ante o exerCICIO da govemabilidude, é freqüentemente repre-
sentada pela palavra retórica, instrumento fundamental de. negociação, de
persuasão e de dissuasão nos confrontos de força existentes no campo social.
A palavra, porém, também se insere numa lógica de tinida pelas coordenadas
das relações de poder, não sendo pois constituída somente por significantes
puros na exterioridade das relações tle for~·u. Por isso mesmo, o lugar do
poder indica as fronteiras do impossível, pois não existiria na modernidade
um lugar da verdade qt~e fosse exterior aos investimentos e aos desinves-
timentos regulados pela relações de força. Ao mesmo tempo, porém, o poder
é u~ lugar fundamentul na delimitação da cartografia do espaço social, na
' medtda. em que é en~ .tomo das múltiplas distribuições do domínio do poder
que se mserem os diferentes agentes sociais em estado !alente de guerra. O
J><?der, .n:s suas m.ú~tiplas regiões sociais, é a condição de possibilidade para
a mscnçao dos SUJeitOs, num cenário em que a produção das diferenças possa
se realizar de maneira permanenre.
. ~ssim, podemos considerar que o disc.:urso freudiano sobre o lugar
tmposstvel do poder•. un~ Ju_gar que não pode ser ocupado por ninguém de
fonna absoluta e a útstnbutçào conseqüente da soberania, se insere numa
tradi~ão importnnte ~a moderniuade, na qual a guerra é o que marca as
relaçoes fund:unentuas entre os homens. Neste contexto, a política repre-
sentada pela retórica é uma tentativa permanente de administrar essas re-
lações, de regular e c.le estabelecer m·ediações nas relações entre os homens,
mas a palavra é sempre um instrumento precário apesar de fundamental, para
sustent~r a ges~ão das relações de força entre os homens e possibilitar a
produçao das dtferenças entre os sujeitos.
No discurso freudiano a dimensão de força que permeia a relação entre
os.h~m~ns, marcando a distânciu e a proximidade entre os corpos, sendo "a
ex1genct~ do. lrabalh? qae é imposta ao psiquismo por sua vinculação ao
co~oral '. fot ~enonunada de pulsão. A pulsão é a condição de possibilicbde
da sunb.ollz.aç<~O huma1w; e a retórica, como modalidade de simbolizaçào, é
a te~ta_tl.va mststente de regulução da forçu pulsional. Enfim, a pulsão é a
posstblltdade de produçã? da diferença, apesar de ser ao mesmo tempo a
fonte pennanente do confronto mortal entre os sujeitos e os corpos.
A ética da psicanálise e a moral
nas instituições psicanalíticas•

I. Recortes da ética
P<tra formular qualquer questão sobre a ética nas instituições psicanalíticas
é preciso enunciar. antes de mais nada, a direção metodológica que preten-
demos imprimir na sua abordagem. Vale dizer, é necessário destacar o recorte
que vamos realizar deste tema, para empreender a sua construção como uma
problemática. Para delinear as coordenadas colocam-se pelo menos dois
movimentos teóricos: um referente à ética propriamente dita e outro concer-
nente à instituição psicanalítica.
Inicialmente, é preciso enfatizar que a ética a ser esboçada aqui é a que
se funda no discurso e na experiência psicanalíticas. Não pretendemos
discutir a questão da ética na sua universalidade filosófica e antropológica,
na exterioridade da psicanálise. Não estamos afirmando com isso entretanto,
que a ética da psicanálise, apesar de sua especificidade, não estabelece
relações dialógicas com outros discursos sobre a ética. Pelo contrário,
estamos enunciando que qualquer diálogo somente é possível se delinearmos
os lugares e os registros ontle se inscrevem os interlocutores.
Assim, a psicanálise se constitui como um campo ético que pode
dialogar com outras éticas existemes, na medida em que a ética não é uma
exigência exterior à psican:llise. que esta pode acrescentar como um mero
adendo por exigências sociais e des!acar em seguida como um resíduo. Por
isso mesmo, sem desenhar os contornos onde se insere a questão da ética na
experiência analítica n5o é possíve l enunciar quais são os imperativos da
ética da psicanálise. Conseqüentemente, sem isso, não é possível enunciar
também qualquer comentário sobre u ética na instituição psicanalítica.
Antecipando de maneira sintética o desenvolvimento teórico que em-
preenderemos adiante, podemos enunciar que a ética da psicanálise se funda
no reconhecimento do sujeito como desejo. Com isso se formula que na
psicanálise o sujeito é desejante, que o sujeito é representado no registro do

145
146 PSlCANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

desejo, sendo este o seu fundamento epistemológico e ético. Entretanto, a


assunção do sujeito como desejante tem como corolário o reconhecimento
da sua singularidade, isto é, do sujeito na sua alteridade e na sua diferença
essencial face a qualquer outro sujeito.
No que conceme uo segundo desenvolvimento teórico, é preciso
considerar que a ética em pauta não se refere a uma instituição qualquer, mas
à instituição psicanalítica. Assim, não é possível pensar a questão da ética na
instituição analítica, sem considerar qunl a finalidade primordial desta ins-
tituição e o seu objetivo social.
Desta maneira, partimos da pressuposição de que a instituição analítica
deve ser um lugar social que constitua as condições de possibilidade para a
produção e a reprodução da psicanálise. Para isso, a instituição analítica deve
funcionar como um espaço simbólico que permite o estabelecimento de
relações de troca entre os analistas. onde essês possam comunicar as suas
experiências clínicas, nos impasses que essas colocam e nas possibilidades
que indiçam para o desenvolvimento do saber psicanalítico. Portanto, a ética
na instituição psicanalítica deve se referir necessariamente a uma instância
ideal de regulaçilo da experiência psicanalítica, a que todos os seus membros
estão submetidos na medida em que são agentes desta experiência. Por isso
mesmo, a ética na instituição analítica coloca como exigência básica a
indagação sobre a modalidade das relações institucionais existentes entre os
seus membros, em que se pergunt:\ permanentemente se o agenciamento das
relações institucionuis constitui us condições de possibilidade para a produ-
ção e a reprodução da psicanálise.
Porém, se a finalidade da instituição analítica revela a sua ética, o
objetivo social evidencia a sua política. Assim, se o objetivo social da
instituição analítica é a produç·ão e a reprodução social da psicanálise, sob a
forma da constituição de novos anal ist~ts e da difusão da psicanálise no
espaço social, este objetivo político deve ser subordinado à ética da psicaná-
lise. Com efeito, não interessa às exigências da ética da psicanálise que essa
se difunda socialmente de qualquer maneira e produza novos analistas para
a reprodução social da instituição analítica sem considerar os imperativos
éticos do discurso psicanalítico. Portanto, se a política está subordinada à
ética no encaminhamento dos processos de produção e de reprodução sociais
da instituição analítica, esta passa n se regular por outros valores que aqueles
definidos pela ética da experiência psicanulítica e se institui uma "perversão"
fundamental du ética da psicanálise na institui\·iio analítica.
O que implica dizer que a ética na· instituição analítica deve ser
homogênea à ét.ica da psicanúli~e. pois a instituição psicanalítica deve ser um
lugar simbólico para a gestão social da psicanálise. Assim, não pode existir
qualquer ruptura entre a ética que funda a experiência analítica e a ética que
A ÉTICA DA PSICANÁLISE E A MORAL 147

regula as relações na instituição psicanalítica, senão ~sta não pode funcionar


como instância de regulação simbólica entre os analistas.
Em decorrência desta articulação interna entre a ética da psicanálise e
a ética da instituiçilo analítica, podemos enunciar, como um pressuposto
teórico desta leitura, uma formulação que existe desde os primórdios da
psicanálise: a psicanálise não se et~sina, ~as se tran~mite. Assim, falar em
rransmissao, e não em ensino da pstcanâltse, é enuncear que esta somen~ se
insere no sujeito pela experiência psicanalítica fundada na tra~sfe~ncta e
não pelo caminho do saber universitário. Por isso mesmo, a 1~scn~ã? do
sujeito na psicanálise tem uma dimensão é~icn fun~amental, ~IS ~ logtc~ .e
a singularidade do sujeito recebem marcas mdel~vets na e~penêncta an.a!J~t·
ca. Portanto, a instituição psicanalítica, que realiza a quest~o da tran~mt_ssao
da psicanálise, tem uma responsabilid:.~tle cruciol nos destmos posstvets da
ética da psicanálise.

li. O psiquismo e suas oposições


Podemos formular que o saber psicanalítico se constitui nos seus primórdios,
com 0 di se urso freudiano, com a formulação da existência de uma polaridade
estrutural que seria fundante do psiquismo. Esta ~o!aridade seria nã~ apenas
produtora, mas regularia também as suas cond1çoes ~e reprodJiç~o como
psiquismo. Vale dizer, o psiquismo se funda ~um regtstro_essenctalmenle
conflírivo, que se encontra presente nas suas ongens e nos dtversos momen·
tos de sua história.
Esta proposição se upresentou inicialmente no discur:o fr~udia.no
como referida diretamente ao registro clínico, como uma equaçao ehológtca,
e conseqüentemente como uma modalidade de solução tera~utica das
psiconeuroses, baseadas no conflito psíquico entre o sexual e o nao-sexu~t.
Porém, a formulação de que as anomalias do psiquismo se fund~ noconfltto
psíquico, que assume diferentes figurações conforme a modahdade de neu·
rose em pauta,2 se tmnsfonnm~ paulatinamente na ~pção de que as anon:a-
lias do psiquismo são fonnas merentes ao ser do pstqu1co e não ~~as exceçoes
3
justamente porque a estrutum do psíquico é essenc..:iaJmente oonflttJVa. •A •

Desta maneira, se o sujeito não se restringe ao ser da consctenc1a,


transcendendo mesmo a esse registro e se funda no registro inconsciente, o
sujeito se revela como essencialmente dividido. 4 O pensamento freudiano
manteve a representação dividida do sujeito ao longo do seu desenvol-
vimento teórico, apesar das trnn~fo~mações metap~ic_ológjcas ~a figuração
do psiquismo realizadas na primetra e na segunda toptcas. Por 1sso ~esmo,
Freud não podia concordar com a denominação ~osogrâfíca de '_'esqu1zofre·
nia" atribuída a uma certa modalidade de pstcose, e prefenu, contra a
148 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

psiquiatria, a denomina~·ão de "parnfrenia", exatamente porque não teria


sentido designar uma enfermidade como a "doença da divisão", quando na
psicanálise o sujeito é representado como essencialmente dividido (Spa/-
tung).1
Nesta perspectiva, o conflito psíquico é estrutural no discurso freudia·
no, perpassando esse de maneira ininterrupta, mesmo considerando as suas
inúmeras refonnulações. Podemos atirmar que o processo teórico da exis-
tência de uma polaridade estruturulno psiquismo é o eixo fundamental para
a construção das diversas oposições teóricas que se estabeleceram ao longo
do discurso freudiano. Ness~ts oposições, cada um dos tennos não vale
enquanto tal, como elemento e como substancialidade, mas somente enquan-
to referido ao outro pólo da oposi\-'fiO e no contexto maior do conjunto de
oposições d<;> sistema teórico qui! sustenta cuda par de opostos.
Para exemplificar o que estamos enunciando, recordemos algumas
dessas oposições conceituais: inconsciente/pré-consciente/consciente; re-
presenta~ão de coisulrepresentação de palavra; processo primário/pro·
cesso secundário; energia livre/energia ligada; pulsão sexuaVpulsào de
auto-conservação; pulsão de viua/pulsüo de morte etc. Nesta cartografia
sumária de oposições conceituais podemos registmrque cada um dos termos,
de cada par de oposições, nilo tem qunlquer significação como elemento
isolado, mas apenas quando ref~rido uo outro. Da mesma forma, cada par de
opostos não tem quulquer signiticnção considerado em si mesmo, mas se
funda no campo do conjunto das oposições. Este campo funciona como um
sistema propriamente dito, na medida em que as partes somente existem e
têm significação quando subsumidas ns regras da totalidade. Esta totalidade
como sistema está presente nos registros tópico, dinâmico e econômico da
metapsicologia freudiana,8 que estabelecem entre si relações de isomorfia,
de maneira que os pares de opostos ins<:riws num registro remetem aos pares
de opostos inscritos nos outros registros metapsicológicos.
Esta rede sistêmica de oposições,conceituais e a correlata polaridade
constituinte do psiquismo remetem para uma oposição básica que se encontra
no fundamento da metapsicologia freudiana, isto é, a oposição entre o corpo
pulsional e a ordem simbólica.

Ill. Pulscio, polaridade e ambigüidade


A oposição entre o corpo pulsional e a ordem simbólica se enuncia no
discurso freudiano na forma de definir o ser da pulsão. Esta se define como
uma polaridade entre a energia e a inscrição da energia no campo da
representação, como· a polnridnde entre a quantidade e a qualidade. Vale
dizer, a pulsão é definida como a oposição entre a "exigência de ltabalho"
A ÉTICA DA I'SICANÁLISE E A MORAL 149

imposta ao psíquico pelo corpo e a ordem simbólica como interpretante da


energética da pu!são. Esta polaridade estmtural se apresenta na ambigüi~ade
do discurso freudiano na definição do ser da pulsão•.em que esta é enunc1ada
tanto como força quanto como energia inscrita no campo representacional.
Desde o Projeto de uma psicologia cienlífica podemos registrar as
condições de possibilidade para a constituição do.conceito de p~lsão, prin-
cipalmente na ênfase conferida por Freud na leatura da quantJdade e na
exig«!!ncia econômica para o func ionamento do psiquismo.9 Porém, este
conceito se enunciou nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, onde
jâ podemos surpreender a existência da an~ bigü idade na .sua definíç~o.
Assim, vamos sublinhar como o uascurso freud1ano conceatuava a
pulsão em 1905:
Por pulsiio nós designamos o representante psíquico de uma fome contínua
de cxcita\·ão proveniente do interior do organismo, que diferenciamos da
''excitaçiio" extc:rior e descontínua. A puls11o está no limite dos domínios
ps!quico e· tlsico. A concep\·ão mais simples, e que pnr~ce se impor
inicialmente, seria que as pulsõcs niíu possuem qualquer qunltdadc por el~s
mesmas. mas que existem somente como quantidade suscetível de produzir
um certo trab<~lho na vida psíquica. 10

Desta maneira, podemos depreender Ja detinição enunciada por Freud


que a pulsão ê ao mesmo tempo uma "excitação" e um "representante
pslquico", uma "exigência de trabalho" ao psiquismo e um "trabalho" no
campo das representações, uma "quantidade" e uma "qualidade". É na
oscilaçao entre dois pólos diversos e irredutíveis que é enunciado o ser da
pulsüo. É a esta oscilação que nos referimos como a ambigüidade do discurso
freudiano sobre a pulsão. .
Dez anos depois o discurso freudiano retoma a definição do conceato
de pulsão, no contexto dos escritos metapsicológicos, em A s pufsões e seus
destinos. Podemos depreender neste ensa io a mesma ambigüidade que
sublinhamos ac ima:
... O conceito de "pulsl\o" nos ;~parc.:ce como um conceito-limite entre o
psíquico e o somfilico, como o representante p~íquic? ~as excitações,
provenientes Llo in~crior Llo corpo e ch.egando à v1da p~1qu1ca, como ~ma
medida de exigê-nc1a <.le twl>:llho que~ unposta ao psiquJco em conseqUên·
cia de sua ligllç-ào ao corpoml. 11

Assim, permanece no discurso freud iano a ambigüidade entre os


registros econômico e representacional da pulsilo, de maneira que o registro
dinâmico onde se inscreve o contlito psiquico se apresenta como uma
derivação imediata desta polaritlatle constitutiva do ser da pulsão. Nesta
perspectiva, esta ambigüidade não é uma imprecisão do discursa. freudiano
150 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

na definição do conceito melapsicológ ico fundamental, pois indica o espaço


teórico e ontológico onde se inscreve a pulsão.
Com efeito, a pulsão seria in·edutível ao registro biológico e ao registro
psíquico, se enunciando como uma outra forma de existência. Portanto, a
pulsão seria uma modalidade de existência entre o somático e o psíquico,
inserindo-se na fronteira entre a ordem da natureza e a ordem da linguagem,
apresentando-se como um ser de passagem entre a ordem natural e a ordem
simbólica.
É fundamental destacar esta polaridade e esta ambigüidade no conceito
de pulsão, pois é deste lugar teórico que derivam as demais polaridades do
psiquismo enunciadas no discurso freudiano. Evidentemente, isto não pode-
ria ser diferente, na medida em que a pulsão é o conceito fundamental da
metapsicología freudiana. do quul são construídos os demais conceitos
metapsicológicos. Não é um :tcaso certamente que os ensaios metapsicoló-
gicos de 1915 comecem com um escrito sobre a pulsão, a partir do qual são
construídos os demais conceitos metapsicológicos. isto é, o recalque e o
inconsciente.
Esta posição teórica primordial designnda para o conceito de pulsão,
com a polaridade estrutural inscrita no seu ser, delineia o campo epis-
temológico da psicanúlíse. Com efeito, esta se esboça como discurso teórico
e conio experiência clínica num terriiório limítrofe, inserido entre o corpo
natural e o corpo simbólico, sendr, iJOÍs a psicanálise irredutível aos domínios
do somático e do psíquico. É esta posição de passagem entre os registros
natural e simbólico que define o ser da pulsão, que indica o campo epis-
temológico da psicanálise. Esta é a especificidade teórica e ética do discurso
psicanalítico.
Nesta perspec tiva, o sujeito do inconsciente como um dos destinos das
pulsões é a resultante de um processo cle produção da diferença no campo
definido por esta polarização estrutural. Nesta produção da diferença, a
loca lização e as condições do Outro, no pólo simbólico do campo polarizado,
são condições fundamentais pura a transformação da pulsão como energética
para a pulsão como representação, isto é, para a inflexão do ser da pulsão do
pólo da quantidade pam o da qualidade.

IV. Sujeito da diferença e singularidade

É a possibilidade de produçiio da diferença, no campo polarizado entre a


energética e a representação, que constitui o sujeito como singularidade. Esta
formulação define também a especificiclade do discurso ps icanalítico sobre
o sujeito.
A ÉTICA DA PSICANÁLISE E A MORAL 151

Com efeito, se a psicanálise pretende ser uma experiência íntersubje-


tiva fundada na transferência e centrada na singularidade do sujeito, realizan-
do-se pelo reconhecimento do seu desejo na reconstrução de sua história, é
fundamental para isso que o discurso psicanalítico possa fundat o sujeito nas
condições de possibilidade de sua produção como diferença. Vale dizer, é a
"exigência de trabalho" que o corpo pulsional demanda à ordem simbólica
e a interpretação realizada pela ordem simbólica desta "exigência de traba-
lho" que constituem as condições de possibilidade para a produção do sujeito
como diferença.
Assim, o sujeito da diferença em psicanálise se funda na consideração
de duns questões cruciais:
1. A pulsão como "exigêncía de trabalho" imposta ao psíquico, como
"força constante", tem o poder de produzir rupturas nos circuitos estabeleci-
dos de significação e de satisfação que o sujeito estabeleceu com o seu corpo
e com os outros. Po11anto, se a pulsão na sua p:ucialidade e multiplicidade 12
é a representação do caos e da Jesordem, ela tem o poder de desarrumar
permanentemente a ordem da representa<;ão estabelecida pelo registro sim·
bólico. Por isso mesmo, o impacto constante du desordem impõe uma
"exigência de tmbalho" ao simbólico sob a forma de um processo de
interpretação, cuja resultante é a singularização do sujeito e a sua produção
como diferença;
2. Porém, apesar do registro simbólico ser um universo ordenado que
regula a desordem do corpo pulsional, a ordem simbólica é uma rede de
oposições de represent:~ções, na qual cada termo não vale por si mesmo, mas •
somente no contexto da totalidade das representações. Assim, a ordem
simbólica é constituída por um si~Lema diacrítico, onde se estabelece também
um campo de diferenças, de maneira que a "exigência" de diferença pos-
sibilitada pelo corpo pulsional se inscreve num campo representacional
marcado pela diferençn. Enfim, a produçflo da diferença encontra as suas
condições de possibilidades nos registros pulsional e simbólico, e na pas-
sagem do primeiro para o segundo registro.
Nesta perspectiva, o sujeito do inconsciente é e!>senciahnente sujeito '
da diferença, tanto porque udvém do universo pulsional da desordem que
desarticula a ordem estabelecida no registro do ego, quanto porque as pulsões
se inscrevem corno diferença num registro que é potencialmente diferenciado
na sua estmtura diacrítica.
Freud enunciava no ensaio Al· puil-ões e seus destinos que o incons-
ciente e o recalque são derívac;ões do universo caótico das pulsões, 13 ra-
mificações na tessitura simbólica da energética da pulsão como "força
constante". Porém, se o re~·••k1ue originário, que inscreve a mobilidade da
energia e a fixação da pulsão na representação, é a condição de possibilidade
152 PS ICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

do inconsciente, 14 o sujeito do inconsciente se estabelece no intervalo entre


as inscrições como sujeito da diferença. É o sujeito do inconsciente como
diferença e como singularidade que é o produto primordial do campo
psicanalítico, pois é com a sua produção e com a sua reprodução que se
constituem o discurso teórico e a ex~eriência clínica na psicanálise.

V. Ética, moral e sujeito desejante


1 A ética da psicanálise se funda no reconhecimento do sujeito da diferença,
no reconhecimento da singularidade do sujeito. Portanto, quando se formula
que a ética da psicanálise é uma ética do desejo, fundada no desejo e não no
"bem supremo", como enuncia Lacnn, 15 o que se encontra em pauta é uma
concepção do sujeito como diferença e como singularidade.
Para elaborarmos um pouco mais esta interpretação que estamos
encaminhando é preciso nos atermos agora na leitura dos significantes
"singular" e "singularidade". Assim, "singular" é o que é "único", opondo-se
ao que é "pluml" e "múltiplo". 16 O significante "singular" é representado
positivamente quando se faz referência no discurso a uma "personalidade
singular", isto é, uma indi vidualidude "especial", "rara" e "extraordinária". 17
Esta atribuição é retomada negativamente nas referências de uma "singula-
ridade" pessoal nos registros da "excentricidade" e da "extravafância", onde
a individualidade é representada como "esquisita" e "bizarra". 1 Em qualquer
destas acepçõe::; o "singular" represenla uma ruptura com a concepção de lei,
se bem que a ruptura se refere ao campo definido pela universalidade da lei,
como no discurso da cosmologia, em que a "singularidade" se refere "à região
do espaço-tempo onde as conhecida~ leis da física sucumbem e a curvatura
do espaço se torna ínfinita".' 9
De~ ta maneira, a concepção da singularidade indica a marcação de uma
descontinuidade no campo do contínuo, a produção de algo que é heterogê-
neo num campo definido pela homogeneidade. a irrupção de algo que é
diferença no campo do mesmo. Por isso, se produziria na singularidade a
emergência de algo que é (mico e não a pluralidade do múltiplo, rompendo
pois com a regularidade da lei, mas considerando esta como o campo que é
pressuposto para indicar a irrup~·ão do que é único.
Retomando estas indica,·ões semíinticas no registro da subjetividade,
podemos sublinhar que :t ruptura diferencial rcalizuda pelo que é singular no
campo do mesmo envolve um risco fundamental, pois o atributo da unicidade
pode se desdobrar negativamente nn "esquisitice" e na "extravagância", (lU
então positivumente. como na emergência de um ser "especial" e "raro". Dito
~e outra muneira, podemos enundar (JLie o risco presente no ato de singula-
n zaçl'í o para a subjetividade é que este pode conduzir o sujeito para a
A éTICA DA PSICANÁLISE E A MORAL 153 t
"excentricidade" da loucura e para o "exibicionismo" vazio, ou então pos~
síbilítar ao sujeito a constitui~·ão de um estilo original de existência e a
produção de uma obra.
Nesta perspectiva, o singuhtrnão se opõe ao universal, mas o pressupõe 1
na sua fundação como condíçüo de possibilidade para a sua constituição, pois
é no percurso pelo uni versa I que o que é particular se constitui como singular.
Assim, o particular é o que se encontra na exterioridade do universal, o que
não passou pela prova crucial de seu confronto com o universal, para ser por
este marcado e colocar naquele a sua nmn:a indelével como singularidade.
Enfim, a singularidude não se opõe uo universal mas ao campo do mesmo,
na medida em que o ato de singul:u·iza~·ão do sujeito pressupõe uma ruptura
com o mesmo no seu percurso e no seu afrontamento mortal com o universo.
Esta sumária exegese filológica dos significantes "singular" e "singu-
laridade", na sua articulação com as categorias de universalidade e de
particularidade, é fundamental de ser realizada pois nos coloca no campo da
tradição filosófica alemã pós-bntiana onde se fonnou Freud, na qual foi
buscar freqüentemente, de maneira din:la e indireta, as fontes de sua ins-
piração e de sua linguagem. Nesta tradição teórica foi estabelecida a diferen-
ça conceitual entre os campos du moral e da ética, onde se conferia à ética
uma exigência de totalização inexistenle na moral, de forma que a moral
deveria ser submetida à ética. Emão, enquanto a moral fica circunscrita ao
registro da individualidade (Schelling) e "ao domínio da intenção subjetiva"
(Hegel), a ética supõe a "sociedade de seres morais'' (Schelling) e o "reino
da moralidade" (Hegel). 20
Assim, enquanto a moral se estabelece no registro da particularidade, •
onde a universalidade s~ impõe como uníver~alidade abstrata, na élica se
constitui uma singularidade pelo diálogo efetivo do sujeito com a "sociedade
dos seres morais" e o "reino da moralidade". A singularidade é o resultado
do percurso dramático de uma individualidade particular no campo da
universalidade, cuja resultante é um sujeito, onde se interpenetram de forma
orgânica o particular e o universal. Desla fonna, é na ética que o sujeito se
singulariza face a uma lei univers<~l . de maneira que é no registro da ética •
que se pode delinear um lugar pos:;ívcl para o sujeito, onde este seja marcado
pela imposi~·ão da lei moral universalizante corno exigência tle existir numa
comunidade de iguais, mas intlicantlo ao i11esrno tempo como o sujeito é
(mico no campo transccdcll(e do universal.
Podemos subiinhar então como o sujeito do inconsciente, como sujeito •·
da diferença e como singularidade, é a enuncia<;ão de um sujeito ético,
constituindo-se no campo teórico desta problemática. Com efeito, o sujeito
do inconsciente se fun<.l a no confronto das pulsões com o universo da ordem
(lei moral), não podendo pois se constituir tanto na descarga das pulsões, na
154 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E ÇULTURA

medida em que sucumbiria inteiramente, quanto ser devorado pelas exigên-


cias do Outro sob o risco de se estruturar no registro da psicose. Desta
maneira, para que o sujeito do inconsciente se constitua, é fundamental que
se singularize face à universalidade da ordem simbólica, inscrevendo nesta
a energética das pulsões e ttansforri1ando estas em desejo. Enfun, o sujeito
do inconsciente se estabelece como sujeito desejante, delineando o seu lugar
de existência corno diferença apesar do constrangimento universalízante a
que é submetido pelas exigências da lei moral.
É este paradoxo que constitui o campo do saber e da experiência
psicanalílica, de maneira que a ética da psicanálise deve ser a manutenção
permanente deste paradoxo pelo reconhecimento de suas exigências fun-
damentais, pois sem estas condições tle possibilidade não existiria o sujeito
do inconsciente, como singularidade e como sujeito do desejo. Portanto, a
ética da psicanálise não é exterior ao campo psicanalítico, pois este campo
tem critérios internos fundamentais para a regulação do discurso e da
experiência psicanalíticas. Entim, a ética da psicanálise não se representa
como um código normativo que deveria regular a prática clínica dos analis-
tas, mas algo que se funda nas próprias condições de produção e de reprodu-
ção do objeto teórico da psicanálise, isto é, o sujeito do inconsciente como
desejo, singularidade e diferença.

VI. A finalidade ética da instituiçüo psicanalítica


As instituições analíticas são organizações sociais constituídas com a finali-
dade da transmissão da psicanúlise, na medida em que esta não se ensina
apenas como uma modulidnde de discurso teórico, como se realiza nas
demais fomtas de saberes teóricos, através da tradição da cultura universitá-
ria. Assim, se o domínio do saber teóri<:o e do manejo conceitual adequado
do discurso psicanalítico deve se constituir em dimensões fundamentais do
ensino e da pesquisa em psic:málíse, estes domínio e manejo estão subordi-
nados ao primado da experiência psicanalítica, que é o campo por excelência
da transmissão da psicanálise. Assim, é a introdução de uma individualidade
no processo psicanalítico, onde será submetida aos efeitos da lógica da
transferência no campo de uma experiência intersubjetiva, que indica o
caminho primordial onde se realiza a lnmsmissão da psicanálise. Portanto, o
ensino teórico se subordina às exigências éticas delineadas pelas coordena-
das desta experiência primordial.
Com isso, enunciamos urna proposiçüo que se desdobra em duas
conseqüências fundamentais, nos registros ético e epistemológico. Primeiro,
que não exi:ste qualquer fonna de domínio do discurso teórico em psicanálise
que autorize ao exercício du ato psicanalítico, isto é, que possibilite a alguém
A ÉTICA DA PSICANÁLISE E A MORAL 155

o estabelecimento do processo analítico. Com efeito, se a experiência psica-


nalítica se funda no lugar e no desejo do analista, este desejo apenas pode se
constituir pela experiência analítica. Portanto, nenhuma modalidade de do-
mínio teórico do discurso psicanalítico, por maior que seja a sua mestria
conceitual, pode possibilitar o acesso ético a este lugar simbólico e ao desejo
do analista.
Em segundo lugar, é preciso considerar que as transformações cruciais
operadas no discurso psicanalítico, ao longo da história da psicanálise. que
se constituíram como novos paradigmas conceituais21 se basearam sempre
numa nova leitura da éxperiêncin psicanalítica, fundada transferencialmente
na escuta de outras estrutur.1s psíquicas. Assim, desde Freud, que inaugurou
o saber psicanalítico centrado nas psiconeuroses, até M. Klein (psicose).
Lacan (paranóia) e Winnicott (estados limites), as transformações teóricas
significativas se basearam sempre em subversões da escuta no registro da
experiência psicanalítica.
Portanto, se nos registros ético e epistemológico a transmissão da
psicanálise se funda na experiência psicanalítica, baseada na intersubjetivi-
ª
dade da transferência, instituição psicanalítica como espaço simbólico de
gestão socjal da transmissão da psicanálise deveria ser um lugar que sus-
tentasse a possibilidade de reconhecimento do sujeito da diferença. Desta
maneira, as instituições analíticas deveriam funcionar como espaços simbó-
licos que dessem respaldo para que uma prática clínica fundada no reco-
nhecimento do sujeito da diferença pudesse ser efetivamente sustentada, pois
a produção do sujeito como singularidade é o valor ético fundamental que
regula a experiência psicanalítica e a protluçiio de novos psicanalistas.
Assim, a instituição psicannlítica deveria ser o lugar onde os analistas
se encontrassem para que, no reconhecimento de suas diferenças, pudessem
constituir um espaço simbólico que possibilitasse sustentar a tragicidade da
experiência psicanalítica, no que esta implica de impasses e de obstáculos
cruciais para a produção do sujeito da diferença. É neste sentido que a
instituição analítica deveria se regular por uma prática a que se subordinaria
a política na psicanálise, pois a reprodução social da psicanálise e da
instituição analítica implicam a reprodução da matéria-prima que lhe é
essencial, isto é, do sujeito da diferença. ·

V/1. O horror pela diferença


Porém, nada mais distante desta exigêm:ia do que o funcionamento das
instituições analíticas. O exame superficial destas revela o escândalo ético,
se considerarmos como valor o imperativo da diferença e da singularidade.
Nas instituições analítit·as impera n impossibilidade de convivência com a
156 E
PSICANÁUSE, CIÊNCIA CULTIJRA

difere~ça, onde esta impossibilidade atinge níveis de horror, pois o que


se regtstm é uma verdadeira inrolerência, no sentido mais literal desta
palavra.
Com efeito, a diferença nas instituições analíticas não é reconhecida
co~o u~. valor que p~ssibil.ita o .desenvolvin~ento da teoria e da prática
pstcanaht1cas por cammhos maud1tos, na med1da em que permita a cons-
tituição de uma alteridade e de uma interlocução legítimas. Pelo contrário, o
• an~ncio ~~qualquer diferença é interpretado como uma ameaça à instituição
pstcanahttca, apesar de ser enum.:iuc.Ja em termos do discurso analítico, pois
introduz uma escuta diversa, uma valoriza~·ão diferencial de certos aconte-
cimentos e uma direção singularizada do processo analítico.
Podemos mesmo dizer que a impossibilidade de reconhecimento da
diferença e a intolerância nas instituições analíticas se encontram presentes
na totalidade do campo, perpassando os gmpos vinculados à Associação
Internacional de Psican:ílise e as instituições l:Jcanianas. Em ambas, a emer-
gência de qualquer diferença produz como efeito a produção de uma acusa-
ção, visando o silenciamcnto do interlocutor, onde se questiona a pertinência
psicanalítica da diferença enunciada: "isto que se diz. é psicanálise mesmo?
Do que se fala, afina! de <:ontas?"
Neste contexto, um outro enunciado importante que é acionado diz.
respeito à reprodução instiiUcional: "quem está falando?" Nós sabemos que
o sistema hiertirquiço nas instituições analíticas é diversificado, conforme as
instituições e o seu campo de pertinência. Porém, mesmo nas instituições
representadas como mais "libemis," a hierarquia existe, baseando-se em
critérios políticos poderosos: lfuem pode psicanalisar futuros analistas, quem
pode supervisionar, quem pude ensinar etc... Evidentemente, existem analis-
tas clinicamente mais experientes do que outros, assim como os que são mais
t~lentosos .para o en~in.o e para a pesquisa. Entretanto, esta diferença simbó-
hc.a no. regzstro do d1 re 1to nfio autoriza u produção de um sistema hierárquico
no reg1stro do fato institucional, pois implica enunciar que um analista vale
mais do que um outro.
' Com efeito, num saber fundado no reconhecimento da diferença não é
P?ssível. eswbe!ecer qualquer hierarquia de valor entre analistas, pois a
hter.mtuta é a anulação cabal de que são todos iguais apesar de diver!iOS e
• difer~ z:_tes: Desta maneira, no campo psicanalítico somente pode existir a
opos1çao fundamental entre ser e não ser analista, pois é a passagem de uma
figura para a outra que é simbolicamente significativa, estabelecendo-se uma
ruptura cntcial. Enfim, não é possível instituir uma hierarquia entre ser mais
e ser menos analista, já que é um absurdo para a ética t.lo sujeito da diferença.
Da mesma forma. a rela~·üo entre as instituições analíticas revela a
mesma intolerJ.ncia e o hot1·or pela diterenç·a. É preciso considerar aqui que
A ÉTICA DA PSICANÁLISE E A MORAL . 151

o campo psicanalítico brnsileiroestá polarizado entre as instituições inseridas


na Associação Internacional de Psicnnálise e no campo lacaniano. Esta
representação do campo analítico não está sendo pensada como uma inserção
formal nestes donúnios, mas como participação num certo ideário ideológi-
co. O que implica dizer que existem instituições analíticas que se inscrevem
nestas tradições simbólicas, sem que isso represente qualquer modalidade de
compromisso em termos organizacionais.
Assim, se as instituições analíticas se inserem na mesma tradição
simbólica (Associação Internacionnl de Psicanálise e campo lacaniano)
existe um reconhecimento mínimo entre elas, já que com isso se trabalha para
a reprodução social da sua tradi ~·ão simbólica. Porém, a relação entre ins-
tituições inseridas em diferentes tradições é a do não reconhecimento abso-
luto. Então, o outro, o estrangeiro para o campo de uma dada tradição
simbólica, é representado sempre como não sendo analista, pois indicando a
diferença para o campo em pnuta é considerado como um impostor e wn
cllarlatão. Entim, é neste contexto que se enuncia de maneira pejorativa que
uma dada tradição simbólica não realiza a "verdadeira" psicanálise, mas
apenas uma modalidade de psicoterapia.
Os objetivos desta estratégia do não reconhecimento de uma outra
tradjção simbólica são muito pouco nobres, pois o QUe está em pauta não são
valores psicanalíticos, mas critérios políticos visando a reprodução no social
de uma dada tradição e o aniquilamento social da sua rival. Assim, o que se
pretende com a atribuição soei<~\ de quem é psicanalista e quem não tem
legitimidade para isso é a conquista de prestígio social para uma dada
tradição simbólica à custa da outra, considerando o que está implica-
do concretamente neste ganho de poder: difusão no social, com a produção
e a reprodução conseqüentes do mercado da clínica e da fonnação psicana-
líticas.
Porém, se diante dos adversários de uma outra tradição simbólica as
instituições vinculadas a uma mesma tradição se compõem taticamente,
organizando-se como um exército para a manutenção dos seus domínios e
movimentando-se com a perspectiva imperialista de se expandir para os
territórios dos seus rivais, no interior das instituições de uma dada tradição
simbólica o processo de reconhecimento da diferença é marcado por impas-
ses cruciais. Isso porque o confronto mortifero se estabelece também no
interior das instituições analíticas vinculadns a uma mesma tradição simbó·
lica, na medida em que existem nestas instituições diferentes sistem4s àe
filiaçiio. Os representantes destes sistemns de tiliação não estebelecem entre
si relações de reconhecimenlo_de suas diferenças, mas de luta de prestigio,
na. qual se pretende reafirmar a identidade do seu sistema de filiação e
aniquilar a legitimidade dos demais sistemas·de filiação em pauta.
158 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

VIII. Filiaçâo, morte e castração


Examinemos a lógica fundante dos sistemas de filiação nas instituições
analíticas de maneira sumária, mas de fonna cuidadosa, para indicar alguns
dos impasses que podem se produzir na sua funcionalidade e que conduzem
a relações moníferas no contellto das instituições psicanalíticas.
Assim, qualquer instituição analítica se apresenta composta por dife-
rentes grupos, que se originaram em psicanalistas diversos inscritos em
tradições diferentes da psicanálise, e que constityem diversos sistemas de
filiação. A simbolizuçiio possível de um dado sistema de filiação implica o
reconhecimento da morte do seu criudor pelas criaturas que dele se origina·
ram, de maneira que a sua presença absoluta como figura do analista possa
se transformar na sua ausência. Desta mttneira, se indicaria o lugar do analista
como o espaço primordial do vazio, n.üo sendo pois facultado a ninguém a
sua ocupação de modo absoluto e eterno. Neste sentido, o lugar do analista
é o /.ugar do mor/o, condição primordial para a constituição do~ processos
de simbolização e do süjeito da diferença. En11m, o lugn~ do analistá se
• institui como espaço simbólico onde se constituem permanentemente o
discurso e a experiêncill psiclmalíticas.
Contudo, para isso é fundamental que o analista possa reconhecer a
sua posição como simbólica, onde como tigura exerce a função psicanalítica,
sendo a mediação d~ uma experiência intersubjetiva que se funda em algo
que lhe transcende. Portanto, o analista não pode deter o poder absoluto ~obre
o lugar que ocupa, sobre as coord~nadas do discurso psicanalítico que detém
temporariamente na experiência analítica e conseqüentemente o controle
sobre os destinos simbólicos de sua linhagem na psicanálise.
O discurso freudiano delimitou o lugar simbólico da figura do analista
em diferentes registros teóricos. Pretendemos destacar aqui somente dois
desses ·registros, que estão intimamente relacionados ao que estamos subli-
nhand'o agora. Assim, referindo-se à morte do pai da horda primitiva em
Totem e tabu, 22 Freud ent~1tizou a problemática ética da morte do pai como
se inserindo nas origens de qualcjuer processo de simbolização e na conS-
tituição d'o· si~teJúa de tiliação: De forma complementar, emAs pulstJes e seus
destinos 23 e ein Para introduzir o narcisismo, 24 Freud sublinhou a dupla
ex istência d~ su)e ito na sua articulação com o sexual, em que no primeiro
registro ele é o·seu ·próprio fim e no segundo o indivíduo é assujeitado a uma
cadeia de filiação que lhe é trails<:edente. Portanto, entre o sexual como
"substfincia mortal" c como "substância imortal" se estabelece uma polari-
dade·estruturnl no psiq"uismo, no qúal o ego representa o registro da "niorta-
• ljdade'' e o sujeito do incónsciente se irlscreve no registro da "imortalidade".
E neste segu'n<.lo registro que a reproduçilo sexttnl se 1ransfom1a em reprodu~
A ÉTICA DA PSICANÁLISE E A MORAL 159

ção simbólica, em que a morte do pai primordial e a emergência da filiação


se articulam de maneira básica, constituindo a dívida simb_ó/ica como o valor
fundante da ética na psicanálise.
Entretanto, nas instituições analíticas ellistem impasses no processo de
sim boi ização.dos sistemas de fi liaçilo, que conduzem à luta de prestígio entre
os representantes dos diferentes sistemas de filiação. Neste contexto, cada
qual pretende representar a "verdadeira" psicanálise frente às "falsas" psica·
nálises, não se estabelecendo qunlquer possibilidade de reconhecimento das
diferenças. São diversas as razões deste imbroglio simbólico, mas preten-
demos destacar somente urna de las que nos parece crucial. Ela se funda na
impossibilidade da mone simbólica da figura do analista, fundador de uma
linhagem. numa dada instituição analítica.
Este impasse evidencin a impossibi lidade de simbolização do fim de
análise, da angústia de castração e de morte da figura do analista. Assim, se
produzem efeitos mortíferos na sua linhagem, não se realizando a transfor-
mação da posição do analista do registro da presença para o da ausência. Com
isso, não se realiza efe ti vame me a morte simbólica do pai e o reconhecimento
do seu valor mítico, na medida em que a figura do analista permanece num
eterno presente, sem j:unais desaparecer na sua descendência.
O que pretendemos dizer com isso? Que existe um obstáculo fun-
damental ao reconhecimento da diferença na instituição psicanalftica que se
enralza nos destinos da transferência na experiência analítica primordial dos
futuros nnalistas..Vale dizer, um dos obstáculos éticos nas instituições analíticas
se funda em impasse no registro da " liquidaçào" da transferência, na medida em
que a figura do anali$tU não admite o seu limite e a sua morte possfvel,
impossibilitando com isso efetivamente o tim da análise de seus analisantes,
<."'m sua transfomm\'ào de presença em ausência. Desta maneira, não se realiza
na ellperiência analítica o processo simbólico da diferença e não se empreende
a tnmsmissão crucial da psican(llise, isto é, do sujeito como singularidade. .
Vamos enunciar isso com mais vagar. }. experiência analítica se
COilStitui na medida em que o htgar do analista é investido pelo analisnnte
como ponador de um pretenso saber sobre o desejo, o gozo e a morte. A
figura do analista preenche esta fun~·ã9 qoe lhe é atribuída. Evidentemente,
este saber é ilusório, o que condu~iu Loc.'ln a denominar o lugar do analista de
"sujeito suposto saber". Porém, é um engodo necessário para o estabelecimento
da experiência rum!ítica, sendo l'onstitutivo du lógica da transferência.
O encaminhamento do processo analítico se realiza na direção' de
destronar a figura do analista deste lugar sngrndo, de representação do saber
absoluto. Com isso, se produz. nu figura do nnulisante a decepção e a desilusão
de que ninguém pode ocup:•r este lugar absoluto, que qualquer humano está.
aquém desta figuração. E o reconhecimento da perda deste lugar, numa
160 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

experiência depressiva, que constitui a condição de possibilidade para o


sujeito poder reconhecer a figura do analista como relativa e a relatividade
de qualquer sujeito.
É esta relatividade q ue é constitutiva do sujeito da diferença, es-
tebelecendo a distância ubissal entre quo:Jiquer sujeito singular e o lugar do
intérprete absoluto. A experiência analítica deve produzir o reconhecimento
simbólico de que não existe a figura do intérprete absoluto, pois este é um
lugar simbólico com o qual dialogamos permanentemente, para nos produ-
zirmos e reproduzirmos corno sujeitos da diferença. Com isso, passamos a
dialogar com este lugar da ausênciu, como a condição de possibilidade para
o discurso. Enfim, o novo analista que se engendrou pela lógica deste
processo simbólico passa a investir agora na continuidade da psicanâlise,
onde a promoção de outras experiências analíticas e da teoria psicanalítica
são indicadores de sua dívida simbólica com a psicanálise. ·

IX. Eu sei, mCls mesmo assim...


Entretanto, no campo da instituição analítica este processo simbólico encon-
tra obstáculos cruciais, quundo se coloc:un de maneira frontal as angústias
de castração e de morte da fLgma do analista, do seu sistema de fil iação e da
sua instituição de referêncii.l. Neste contexto, a reprodução crucial do seu
lugar institucional, de sua linhagem e da sua instituição analítica são obs-
táculos intransponiveis pam que a figura do analista se desloque de sua
posição de saber absoluto. Porém, a hierurquia institucional é a outra face da
mesma questão, pois é a enunciação cabal de que o sujeito da diferença não
é o valor fundamental que circula nas insrituições analíticas.
Neste registro institucional, a psicanálise deixa de ser uma ética da
di(erença e se transforma numa moral , onde os seus adeptos passam a falar
o mesmo discurso, sem constituir qualquer estilo singular, e passam a
reverenciar os mesmos cultos. Assim, de uma ética a psicanálise·se transfor-
ma numa moral fundad~t nos efeitos m01tíferos do superego,25 onde a
inventividade singularizante dos analistas se silencia na reverência sacrali-
zante da instituição analítica e da sua linhagem. Com isso, a psicanálise se
transfonna numa seita fundamentalista, onde o enunciado de qualquer dife-
rença e o exercício da çrítica são imediatamente transformados num "ataque"
à psicanálise, pois o funcionamen to institucional se inscreve num registro
eminentemente nan:ísico. Enfim, este é o efeito mortífero mais importante
que a.-. instituições anillílicas produzem na psicanálise, pois desta maneira a
experiência psicanalítica não pode produzir o sujeito da diferença como o
seu valor fundamental, sendo isso então um impasse crucial para a transmis-
são da psicanálise.
Sujeito, valor e dívida simbólica:
Notas introdutórias sobre o dinheiro
1
na metapsicologiafreudiana

I. /nterdisciplinaridade na economia

Problema estrutural na sociedade br.tsileira há pelo menos trinta anos, já


estabilizado por sua pennanência no espaço social e quase naturalizado no
imaginário social pela longa duração, a intiação,_em sua c~onicidade, desafia
a criatividade teórica dos economistas e denunc1a dr:unattcamente, nos seus
efeitos sociais, os impasses das soluções técnicas. Ao incidir sobre parcela
significativa das individualidades inseridas no espaço social, a intla~ão
produz um impacto devastador que se evi~en~ia na deterioração p~~resstva
das condições de exist~ncia da grande matorta da população brastletra. Isso
indica que os problemas suscitados pelo valor da moe~a: numa dada forma-
ção social, afetam a existência humana em diferentes regtstros, transcenden-
do em muito a dimensão das relações econômicas.
Assim, o processo social da produção de mercadorias, as suas troc_as
entre os agentes econômicos e a circulação da moeda nun~a formaçã.o s?C•al
não se restringem a uma questão meramente econôtmca, mas tndtcam
seguramente outros registros par.\ a sua. real.izaçiio ~a c~n~ social e par~ a sua
indagação teórica. Entretanto, nos (tltunos a~os, m~tttu m-se .na soct:d_ade
brasileira a crença de que a disciplina econômtca tena as condtções teoncas
para solucionar as questões e os impasses produ~idos ~la infl~ção. O Estado
brasileiro, utHizando-se de diferentes governos, tnvesuu mass1vamente nessa
possibilidade, a ponto de promover um incre~ento pr~gressiv?.do poder dos
economistas nas suas instfi ncias fundamentais de dectsão pollttca.
Parece-nos que é a crítica dessa posição política e teór~ca que co~sti~i
o elemento motivador deste encontro acadêmico. Com efetto, a reahzaçao
de um seminário interdisciplinnr sobre a intlnção é o reconhecimento caba!,
pelos organizadores, de que este não é simpleSJ~e nte u~ p;ob_lema econômi-
co, mas implica outras dimensões fundnmentms da ~xt_stencta humana. Por
isso mesmo os registros social, político, cultural e subJellvo foram destacados

161
)62 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

como capazes de fornecer indicações cruciais, de diferentes maneiras, para


que se possa pensar na ihserçiio e na circulação da moeda na ordem social.
Conseqüentemente, os mesmos registros teóricos podem oferecer caminhos
que nos possibilitem indagar não apenas sobre as causas, mas também sobre
as modalidades de existência e os efeitos da inflação na sociedade brasileira.

/1. Ceticismo e horror na brasilidade

Para muitos economistas brasileiros, a disciplina econômica tem as soluções


técnicas para a inflação vigente no poís, e há muito tempo essas soluções já
circulam no mercado simbólico das idéias no Bmsil. Esta formulação é uma
maneira concisa de dizer que os obstnculos existentes para a superação da
inflação não se encontram basicamente nas téc nicas econômicas, mas em
outros registros que regulam a coexistência humana no espaço social brasi-
leiro. O que significa que a solução tecnocrática da inflação vem sendo
questionada por segmentos da comunid:1de dos economistas.
Além disso, esse tipo de solução tecnocrática da int1ação entrou em
crise, em rota de colisão com a sociedade brasileira. Esperamos que essa crise
seja definitiva e resol utiva, em face dos efeitos mortíferos da inflação pela
desestruturação produzida na tessi tura do social. Não vamos nos referir aqui
aos efeitos desestrutura ntes 11ue podem ser d estacados pela leitura dos
indicadores econômicos, pois falia-nos competência para isso. Em contra-
partida, destacaremos outras indicações que nos permitem realizar uma
leitura sumária do imaginário :;ocial. Ne:;se contexto, a desestruturação se
revela por alguns signos privilegiados que se encontram presentes na nossa
experiência cotidiana e que se representam na midia.
Antes de mais nnda, a violência, que se tr.msfonnou nos últimos anos
num atri buto básico e na marcu registmda da sociedade brasile ira. A violên-
cia perpassa as relações soe iais de mnne ira abrangente e em diferentes níveis
de complexidade, transformando-se em nlgo naturalizado, frente ao qual a
população brasileira se "acostuma" e se "confonna", tendo em vista a
impossibilidade de o Estado estubelecer um limite rigoroso e eficaz que o
regule de forma segura.
Em seguida a impunidade, que se desenvolve e se di versifica em face
da não regulação da violência. Inserindo-se de fom1a universal em diferentes
grupos sociais, apesar das suas divers:ts modalidades de agenciamento e de
operacionalização na tessitura do social, a impunidade é escandalosa na sua
exibição pública c n11 certeza da ausência de limites para a sua reprodução
diversificada - razão pela qual ela representa outro lado da violência e o
corolário para o incremento monstruoso des ta última.
SUJEITO, VALOR E DÍVIDA SIMBÓLICA 163

A morte pe rde a sua dimensão trágica- marca que ~mpre a distin~iu


nos registros individual e coletivo- dada a sua banalidade. Com efe1to,
resultante da articulação entre a violência e a impunidade, a mortes: inscreve
na cena social como algo ro tineiro. e não como uma ruptura crucial. com a
ordem da vida. Dessa maneira, nos últimos anos, passamos a conv1ver de
forma progressiva com uma representação naturalizada da m?~·
A conseqüência crucial desses signos nas relações soc1a1s é o horror,
que impregna a totalidade das trocas inter-humanas. O horror se trans!'o.nna
em presença terrorífica no im::~ginário social a tal ponto que o cotad1an0
brasileiro se apresenta a todo momento como um pesadelo e como a Jnun-
ciação iminente do caos. . . . . .
Com isso, a dimensão disruptiva da extstênc1a se mater1~hza no
registro dos acontecimentos e pode se realizar..co~~ ato a qualquer ms.tant~.
Enfim, o cotidiano brasileiro se transforma na cromca da morte anunc1ada .
Pela operação imaginária do horror, a desesperança se estabelece
como a forma básica de humor da brasi lidade, enraizando-se em grupos
sociais cada vez mais abrangentes e tomando-se o seu estado de ânimo
fundamental. Como desdobramento dessa melancolia, que impregna os
ideajs no imaginãdo social, a desesperllnça se revela na inseguranç_a assus-
tadora da população brasileira quanto ao presen~e e ao futur~ da na~ao. Com
isto 0 ceticismo se transfonna no discurso éuco que maas se difunde no
esp;ço urbano, na descrença crescente do valor do ~rus co~o n~çã~. .
Nesse contexto a emigração passa a se enunc1ar no unagmân o soctal
como uma alternativa: como uma modalidade de "salvação" para a existência
das individualidades. Apresenta-se, no Primeiro Mundo, em larga escala
como uma possibilidade real diante dos impasses intran~ponív~is colocad~s
no horizonte de nossa experiência social. A solução emtgratóna e a veloci-
dade com que vem se processando em diferentes regiões do pai~ nos ú~tim~s
anos. é un:ta novidade de. fato no cenúrio brasileiro e na memóna da h1st6na
nacional. . . .
. De diferentes manein1s, esfacela-se no imaginário socaal a crença
difundida de que "o Brasil é o país do futuro" e de que "o sertanejo ê um ·
forte", isto é, de Q\!~ a população brasile ira é capaz de sup?rtar qualq~er
desgraça e ainda assí1 n acredita r na grandeza e no futuro d~ pats como naçao.
A ·inviabilidade do Brasil está colocada na ordem do dta e. na pauta dos
debates, pois já se pergunta ent coro. de forma in.audita, ~e o B~il "pode d~
certo", de fato, como nação e se a crença que tsso sena poss1vel não tena
passado de um sonho cole Li vo. . _ .
Assim, a crise econômica se articula com as d1men.soes polít1ca e
social, que se sustenwm de maneirn insofismável. Podemos d•z:rque ~~)ores
particularistas conslituí.rnm modalidades autoritárias de relaçoes pohttcas e
164 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

rearticularam os laços sociais de maneira tal que tomaram inviável qualquer


fonna de solução tecnocrática. É o modelo político que se construiu no pais
e o correlato estilo de modernizaç{ío que se imprimiu na ori:...nização desse
modelo que se encontram na base da crise brasileira.
Vale dizer, a economia poderá até voltar a crescer significativamente
nos tempos futuros e o processo inflacionãrio ser regulado, mas a crise
brasileira transcende o registro economicista. Na realidade, existem marcas
indeléveis produzidas na tessitura das relações sociais e políticas que perpas-
sam estruturalmente a c rise nacional e que não serão apagadas apenas por
correções de rumo da economia.
Certamente essas marcas exigirão dos cientistas sociais e políticos
bastante imaginação teórica para que possam surgir alternativas viáveis para
os impasses da brasilidade.

!li. E a. psicanálise com isso?


A crise brasileira é também uma crise de valores, como indicamos acima ao
sublinhar alguns de seus efeitos no imaginário social. Esses efeitos penneiam
a totalidade da estrutura social, interpondo-se de tal fonna nas relações
institucionais e no funcionamento político que as soluções tecnocráticas se
apresentam como insuficientes para dar conta da magnitude da questão em
pauta.
É nesse registro que se colocam os efeitos simbólicos e reais da crise
brasileira sobre a subjetividade. Conseqüentemente, uma leitura psicanalítica
sobre o dinheiro se impõe nesse contexto, para que se possam destacar alguns
elementos da relação do sujeito com o dinheiro. Não há dúvida, todavia, que
a colaboração da psicanálise a essas discussões é limitada. infinitivamente
menor que as leituras que podem ser empreendidas pelas dife.rentes ciências
sociais e a ci!ncia política. Essa limitação se deve a extensão e consis~ncia
teóricas do campo psicanalítico, que se centra na relação do sujeito com o
seu corpo e com os outros sujeitos para enunciar suas fonnulações teóricas
sobre o psiquismo.
O recorte teórico que o discurso psicanalítico pode realizar é o de
sublinhar a relação do sujeito com o dinheiro nos registros simbólico e real,
tendo como correlato a relação com o seu corpo e com os demais sujeitos.
Nesse sentido. tomaremos como objeto de nossa leitura a ação da circulação
do dinheiro sobre o sujeito, sobre o corpo, sobre o gozo e no circuito de trocas
com os outros sujeitos. É por esse viés que se poderão delinear alguns efeitos
da cri~ bras iIeira e da inflação - enquanto estas supõem uma problemática
de valores- sobre a subjetividade. Com base nessa perspectiva, enunciar
qualquer proposição que articule inflas:ão e vida cotidiana, na leitura psica·
SUJEITO. VALOR E DÍVIDA SIMBÓLICA 165

nalítica, implica a análise de como o dinheiro se.·ín.st're no psiquismo e, em


conseqüência, q ue significação pas's a a ter para subjetividade. Portanto, esta
leitura pressupõe a formulação de uma metapsicologia do dinheiro, isto é, as
modalidades de incorporação, de circulação e de metabolização do dinheiro
pelo psiquismo.

N . Metapsicologia e psicologia
A metapsicologia é o nome cunhado por Freud para designar a especificidade
da leitura teórica, realizada pela psicanálise, dos processos e atos psíquicos.2
Esse tenno Se identifica com a concepção de teoria em psicanálise, em que
as dimensões positiva e mítica se articulam de mane;.ra orgânica. Assim, a
metapsicologia evidencia, por um lado, a cientificidade do discurso psicana-
lítico e , por outro, o que na leílura psicanalítica é irredutível a uma concepção
positiva de ciência. Nessa segunda dimensão, a psicanálise como saber da
interpretação foi representada pelo discurso freudiano como uma fonna de
"m itologia" e mesmo como uma modalidade de "bruxaria",3 justamente
porque não seria passível de ser verifícaua empiricamente pelos procedimen-
tos da experimentação científica.
No discurso freudiano se enuncia que a metapsicologia é uma leitura
do psiquismo baseada nos pontos de vista tópico (lugares psíquicos), din4-
mico (jogo de forças entre as representações mentais que funda a teoria do
conflito no psiquismo) e econômico (intensidade dos investimentos das
representações psíquicas).4 Essa formulação toma evidente qu~ o "ap~relh~
psíquico" não se restringe ao campo das representações mentaiS, mas mclu1
também na sua estrurum as dimensões de conflito e intensidade.5
A leitura freudian~ do psiquismo considera, portanto, que este trans·
cende não apenas o campo da representação mental, mas que também é
marcado por uma divisão estrutural constitutiva da subjetividade. A subjeti-
vidade é concebida como sendo estruturalmente clivada (Spaltung), de
maneira que o sujeito na psicanálise é figurado como sendo marcado por uma
desannonia fundamental, que não é um acidente patológico no seu percurso
histórico, mas a sua fonna originária de constituição.
A palavra metapsicologia indica que a psicanálise pretende se~Au~a
modalidade de saber do psiquismo que transcende o campo da conscJencla
e do eu- da certeza e da verdade - , no qual a filosofia clássica, desde
Descartes, inseriu o sujeito.6 Com Freud, o psiqu ismo passou a revelar o que
existia de fundamental para o sujeito justamente nos momentos de ruptura
da continuidade da consciência, quando a subjetividade era balançada nas
suas certezas e a dúvida demolia subitamente as verdades construídas pa-
cientemente pelo eu. Portanto, é nos fenômenos residuais da consci!ncia e
166 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTIJRA

do eu - em que as fonnações do inconsciente rompem a continuidade do


ser da consciência e a performance utilitarista do eu é subvertida na sua
funcíonalídade- que o sujeito se enuncia na sua verdade mediante o sooho7•
o lapso8 e o humor.
A psicanálise é uma metapsicologia, pois pretende sei' uma interpreta-
ção do psiquismo que transcenda o ser da consciência e do eu, destacando a
dimensão inconsciente da subjetjvidade. Pretende ser uma le itura do psiquis-
mo q ue vá mais "além" du consciência, em direção ao registro do incons-
ciente e das pulsões. Esse é o sentido primeiro da palavra metapsicologia,
pois o prefixo grego "meta" quer dizer "além de". Contudo, esse signific-ado
se artkula, num outro registro, com uma crítica da psicologia como metatl-
sica da consciência e com uma crítica da metafísica como análise do ser da
consciência, já que no discurso freudiano a palavra metapsicologia constitu~
se como uma derivação da palavra metafísica10• Enfim, como crítica da
psicologia da consciência e da metafísica centrada na .consciência, a psica-
nálise pretende ser uma interpretação do psiquismo fundada no inconsciente
e nas pulsões, que coloque em questão as certezas do eu e a consciência como
verdade.

V. Sujeito do inconsciente e alteridade


Enunciar que o psiquismo, pam :t p.>icanálise, se funda no inconsciente é
formular, em decotTência, uma outra proposição fundamental: o psiquismo
não se restringe à interioridade, como era a sua concepção na psicologia
clássica.,11 A psicologia clássica, centrada na consciência, considerava o
psiquismo como o universo da privacidade absoluta da individualidade, e a
exterioridade, o seu Outro. Se o sujeito era representado de maneira solipsis-
ta, como uma mônada interiorizada no campo da consciência, ficava ditlcil
resol ver o impasse de como uma mônada poderia ter uma abertura para a
relação com o Outro. Por isso mesmo, o método de investigação da psicologia
cláss ica se baseia na introspééçào, em que o eu e a consciência do indivíduo
buscam infinitamente a sua verdade pelo exame do campo de representações.
Em contrapartida, para o discurso freudiano, o psiquismo é inte-
rioridade e exterioridade ao mesmo tempo, não sendo possível enunciar
qualq uer coisa sobre o registro interno sem que se formule algo sobre o
registro externo. Isso porque o psiquismo é antes de mais nada diálogo com
o Outro, encontrando na ordem da linguagem o campo para a sua produção
e para a sua reprodução como fenômeno. Assim, a psicanálise como ~todo
se funda no falar e no escutar, que balizam a experiência psicanalítica, pois
é mediante o diãlogo e os efeitos do sujeito sobre os outros sujeitos que se
constituem as marc.as de sua verdade. Aexperiência psicanalítica fundada na
SUJEITO, VALOR E DÍVIDA SIMBÓLICA 167

transferência e na fala é justo o oposto da experiência psicológica centrada


na cohsciência, já que a primeira supõe um sistema de trocas entre sujeitos
e a segunda pressupõe um psiquismo que não implica qualquer outro.
Na definição Jacaniana do inconsciente como uma ''realidade transio-
d ividual",12como um registro psíquico que transcende não apenas o eu como
também a interioridade absoluta, as oposições in temo-ex temo, dentro-fora e
indivíduo-sociedade se relativizam, perdendo qualquer conotação substan-
c ialista, pois passam a se referira um sujeito que é coostitutivamente abertura
para o mundo. Por isso mesmo, o sujeito em psicanálise pressupõe a cultura
para a sua cons tituição, sendo a cultura como ordem simbólica a condição
de possibilidade do sujeito. Enquanto ser dialógico o sujeito é alreritârio na
sua estn uura, pois o sujeito do inconsciente é constituído pelo Outro. Enfim,
o inconsciente é o conjunto de efeitos do Outro no psiquismo e o diálogo do
sujeito com o Outro mediante esses mesmos efeitos psíquicos.

VI. Sujeito do inconsciente, circuito da satisfação


pulsional e dfvida simbólica
Se o sujeito se consti1ui a partir do Outro, sem o qual o i ncons~iente é
impensável como registro psíquico, anuncia-se então uma outra d1mensão
crucial dessa questão: a dívida simbólica que o sujeito estabelece com o
Outro como resultante da sua constituição como sujeito. A dívida simbólica
é o que possibilita que as individualidades inscritas na mesma cultura e no
mesmo universo lingüístico passem a compartilhar ·dos mesmos valores,
apesar da diferença entre as subjetividades e a diversidade nas suas modali-
dades de existência. A oívidu simbólica é a condição de possibilidade para o
sistema de trocas entre os sujei tos e para a demanda de reconhecimento que
marca estruturalmente qualquer sujeito. Enfim, é o que possibilita a com>·
13
t ituição de um pacto simb6lico entre os diferentes sujeitos, permitindo
entlo que estes estabeleçam entre si laços sociais e o horizonte possfvel para
a coexistência política.
Na leitura que encaminhamos, o registro simbólico não se restringe
apenas à ordem da linguagem. apesar de encontrar nesta o seu eixo de
referenda fundamental, mas se apresenta também nas ordens política e
social. São essas diferentes ordens, transcendentes ao corpo do proto-sujeito,
q ue pennitem no sujeito se constituir a partir do Outro, sendo originariamente
corpo pulsional.
Não pretendemos nos alongar nesse tópico, mas destacar o que 6
relevante para a questiio em pauta. Pura que se possa conceituar o incons-
ciente, o discurso freudiano pressupõe um conceito anterior, que é o de pulsão
(Tritb), o que significa dizer que, paro que se possa constituir o sujeito do
168 PSICANÁLISE, CiêNCIA E CULTURA

inconsciente, o ser da pulsão é o seu fundamento. O inconsciente é uma


transformação realizada pela ordem simbólica sobre o ser da pulsão, de
maneira que é um dos destinos da pulsão na ordem simbólica. 14
Recordemos a definição de pulsão, enunciada pelo discurso freudiano
em As pulsões e seus destinos, no contexto da maturidade teórica da psica-
nálise:" ... o conceito de 'pulsão' nos aparece como um conceito-Jjrnite entre
o psíquico e o somático, como o representante psíquico das excitações, saídas
do interior do corpo e atingindo o psiquismo, como uma medida da exig!ncia
de trabalho que é imposta em conseqüência de sua ligação ao corporal". 1j
Essa definição indica que a pulsão não se insere nem no registro
somático nem no psíquico, portanto não se inscreve nem na natureza nem na
cultura. Seu espaço de e}(istência encontm-se entre o somático e o psíquico.
Com isso, o discurso freudiano propõe a existência do pulsional como um
terceiro registro entre a ordem da natureza e a ordem simbólica.
É inevitável, porém, que a pulsão se inscreva no campo do Outro e no
registro simbólico, pam que se possa encontrar formas de satisfação e se
estruture então num circuito regulado pelo princípio do prazer. Original-
mente, a pulsão é apenas força (Drang) e sua tendência imediata é para a
descarga total da e}(citação, para que o corpo pulsional possa expulsar o
"excesso" de excitabilidade e encontrar o estado de apaziguamento pela ·
imobilidade. Em Além do princípio elo prazer, o discurso freudiano passou
a definir a pulsão como sendo originariamente pulsão de morte 16 e que se
regularia pelo principio do nirvana (descarga da excitabilidade até o nlvel
zero e não para o nível mínimo, como na regulação prazer-desprazer). 17
Evidentemente, se o corpo pulsional fosse deixado a si mesmo, o seu
destino seria a morte, pela descarga total da pulsão regulada pelo princípio
do nirvana. Para que a existência psíquica se torne possível, é necessária a
intervenção do Outro, que passa a oferecer objetos de satisfação para que a
pulsão como força possa se estruturar num circuito regular. Nesse processo,
é constituído um desvio crucial do movimento imediato para a descarga, para
o movimento media to da satisfação, marcando o deslocamento do "aparelho
psíquico" da regulação pelo princípio do nirvana para a sua regulação pelo
principio do prazer. É com essa intervenção fundamental que o circuito da
pulsão se ordena, passando a se fixar em objetos de satisfação e tendo na
satisfação o seu alvo. Vale dizer, a satisfação é a possibilidade do circuito
pulsional se reproduzir como circuito e não retomar a via originária da
descarga. Enfim, a satisfação é o que pennite a constituição do sujeito como
desejante, tendo corno fundo a iminência da morte produzida pela descarga
pulsional.
As condições de possibilidade desse desvio estruturante são o Outro e
a ordem simbólica, pois, para que a força pulsional possa encontrar objetos
SUJEITO, VALOR E DÍVIDA SIMBÓLICA 169

de satisfação, é necessária a nomeação empreendida pelo Outro. Na verdade,


é em função da interpretação da "e}(igência" pulsional promovida pelo Outro
que é oferecido simultaneamente em ato um objeto de satisfação para fixar
o circuito da pulsão. Portanto, a "exigência de trabalho" da pulsão é a
condição de possibilidade para a realização de "trabalho" no Outro e na
ordem simbólica, em que a pulsiio se inscreve sob a forma de seus repre-
sentantes: representante-representação e afeto. 18
Foi nesse sentido ·q ue o discurso freudiano enunciou os destinos da
pulsão na ordem simbólica, que são as diferentes fonnas de ordenação da
força pulsional no circuito de satisfação, de que o sujeito do inconsciente se
constitui. A "inversão no contr-:irio", o " retomo sobre a própria pessoa", o
"recalque" e a "sublimação" são os caminhos dessa promoção de trabalho
pela ordem simbólica, 19 de maneira que a pulsão como força nela se inscreve
e o sujeito do inconsciente pelo recalque se constitui. .
A constituição do sujeito do inconsciente pressupõe, assim, a ordena-
ção do circuito de satisfação da pulsão. Por isso mesmo, ele é um sujeito do
desejo. Além disso, suas condições de possibilidade são o Outro e a ordem
simbólica, sem os quais o corpo pulsional ficaria restrito à descarga nirvânica
e à morte. Enfim, o advento do sujeito e sua reprodução como desejante
implicam a dívida simbólica, pois apenas assim o sujeito do inconsciente
pode se constituir no seu enfrentamento com a morte.

VII. Valor de troca e valor de uso

A inscrição do dinheiro na subjetividade se realiza no contexto da divida


simbólica e do pr~esso de reconhecimento. O dinheiro é uma das modali-
dades de troca que o sujeito maneja na relação com os outros sujeitos para o
reconhecimenco do seu lugar simbólico. Evidentemente não é a única moda-
lidade possível de troca entre sujeitos, mas é certamente uma forma impor~
tante numa ordem social centrada no mercado. Neste, a subjetividade obtém
o reconhecimento de seus emblemns simbólicos mediante a produção e a
troca de bens materiais e simbólicos,' que se realizam pela circulação econô-
mica da moeda.
Porém, a produção e a troca de bens somente resultam em efeitos na
economia libidinal da subjetividade na medida em que são emblemas sim-
bólicos para que o sujeito seja reconhecido por outros sujeitos. Isso porque
está presente neste enunciado a formulação de que o desejo primordial de
qualquer sujeito é o desejo de reconhecimento. Se o desejo de reconhe-
cimento é crucial para o sujeito, isso indica que, parn o discurso freudiano,
o sujeito é o contrário da figura da auto-suficiência e da onipotencia narcísica,
170 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

pois é desde sempre marcado pe1-a falta e precisa do reconhecimento do Outro


para poder se reproduzir como sujeito.
Foi essa falta radical que o di~curso freudiano enunciou sob a forma
das figuras da perda e da castmção, indicando assim que a falta do sujeito ·
jamais se preenche e que sua carência do Outro é uma vocação hwnana. Por
isso, estabeleceu a equivalência simbólica dos diferentes objetos parciais
(corpo matemo, seio, fezes, pênis e criança), constituídos nos diferentes
momentos da história libidinal do sujeito, cotno formas de gozo e tentativas
sempre malogradas para o preenchimento dessa falta estrutural.20 Da mesma
forma, as diferentes produções humanas e a moeda- como símbOlo social
de equivalência dessas produções - se inscrevem na mesma cadeia de
objetos parciais, na qual o sujeito busca preencher a sua falta e obter
interminave lmente o reconhecimento do Outro como sujeito.
Com isso se evidencia que, no discurso freudiano, o dinheiro não é
representado como um meio de aquisição para o preenchimento de neces-
sidade, mas para a satisfação de desejos. Com efeito, para a psicanálise, a
subjetividade não está centrada na leitura naturalista das necessidades vitais,
em que a individualidade busca se preencher pelo cálculo utilitarista de
prazeres com a aquisição de bens que responderiam às suas necessidades
reais, pois o que está em questão é o sujeito desejante. Para este, é o seu
reconhecimento pelo Outro que ocupa um lugar estratégico na sua reprodu·
ção como sujeito do desejo. Por isso o sujeito se inscreve num circuito de
trocas intersubjelivas, única maneira de saldar a sua dívida simbólica. Con-
sidera-se, assim, que o acesso do sujeito ao prazer é regulado pelo reco-
nhecimento e pelo pagamento da dívida simbólica, já que a experiência do
prazer implica o reconhecimento do sujeito. Numa ordem social baseada no
mercado de bens materiais e simbólicos, o dinheiro como instrumento de
troca é uma forma básica para a oblenção do prazer, ao qual a moeda constitui
uma via privilegiudu de acesso, uma v~z que permite o reconhecimento do
sujeito.
Entretantp, se sublinhamos até agora a tigura da moeda como vàl~r de
troca, devem~ s des1acur o seu contraponto, isto é, o dinheiro como valor
de uso. A qualquer nwmento o sujeito pode perder o sentido do dinheiro
como valor de troca, que possibilila o reconhecimento entre os sujeitos, e
acreditar que a posse do dinheiio em si é o bem supremo. Nesse processo, o
sujeito procuranp(lgar a ~uu condição tr:ígica como sujeito da falta e empe-
nha-se na cren~a de lJUC pode construir a sua auto-suficiência absoluta
medinnle .a posse do.dinheiro, considerudo o bem supremo. Quando isso
ocorre, o d\nheiro ~e trunsfonna num valor em si, um valor de uso que pode
ser goz.ado pelo ~ujei10 na su;1onipotência. Assim, existe aqui uma transgres-·.
são,crucial nu Jun~·ão simbólica do dinheiro para o sujeito, transformado por
SUJEITO. VALOR E DÍVIDA SIMBÓLICA 171

este num fetiche, isto é, num objeto de adoração para a obtenção do gozo
auto-suficiente, o bem supremo pura a subjetividade. Estabelece-se então o
gozo fetichista.
Na subjetividade, o dinheiro circula num campo imantado entre dois
pólos, definindo economias líbidinais absolutamente diferentes, já que, em
uma, a sua regulação se realizu pelo valor de uso, e na outra, pelo valor de
troca. Examinemos o contraponto entre essas fonna.s de economia libidinal,
nas quais o valor e o prazer têm destinos bastante diversos.
Na economia libidinal regulada pelo valor de uso, a subjetividade
supõe que o dinheiro em si é a fonte do poder, como se a sua posse pudesse
lhe oferecer os meios de acesso à total idade d:ls riquezas e dos prazeres, como
se o sujeito pudesse "compmr" o gozo e o seu reconhecimento como
subjetividade. O dinheiro se transfomm no bem supremo, de fonna que se
destaca o caráter perverso do gozo fe tichista. Nesse tipo de economia, a
subjetjvidade não espera o reconhecimento pelo que é e pelo que poderia ser,
mas pelo que tem, supondo que a apropria\ão da riqueza em si pudesse de
fato impor ao Outro o seu poder. A subj~tividac.le funciona como se pudesse
prescindir do Outro e fosse absolutamente auto-suficiente. O sujeito supõe
que é o detentor do seu ideal, regulando-se apenas pelo ego ideal e não se
submetendo a qualquer ideal que o tmnscenda. 21 Foi nesse registro libidinal
que o discurso freudiano caracterizou o prazer da analidade e o erotismo
presente no caráter anal. 22
Em contrapartida, na economia psíquica regulada pelo valor de troca,
o sujeito supõe que o reconhecimento pelo Outro é fundamental para saldar
a sua dívida simbólica. Por isso mesmo, demanda ao Outro o seu reco-
nhecimento, já que este se legitima pei<J que o sujeito é e nuo pelo que tem.
Nesse processo, o sujeito se submete a um ideal transcendente ao eu, não
sendo pois o detentor do seu próprio ideal, mas regulando-se pelo ideal do
ego.23 Enfim, o pmzcr sine qua non que se impõe ao sujeito é o reco·
nhecimento do seu lugar como sujeito.
Evidentemente o sujeito oscila entre os registros do ego ideal e do ideal
do ego, mas a dominância psíquica se de~loca para o ideal do ego quando o
reconhecimento pelo Ou1ro se estabelece no sujeito. Em caso contrário, a
dominância do ego ideal se implanta na subjetividade, de fonna que o
dinheiro como fetiche circula no psiquismo e o gozo fetichista domjna a
relação do sujeito com os outros e as t·oisas. Com isso, os ou tros se transfor·
mamem coisas, coisas que servem para o sujeito gozar.
Nesse contr:tponto, o funcionamenlo psiquico é revelado quando existe
na subjetividade o reconhecimento da dívida simbólica - onde o sujei-
to reconhece a sua falta e a sua demanda ao · Outro - e quando esse
reconhecimento não se realiza: nesse caso, a subjetividade acredita ser
172 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

auto-suficiente e detentora do bem supremo. Na economia psíquica do valor


de troca, o sujeito está submetido à lei simbólica que regula as relações
inter-humanas e funda a ética dapolis. Porém, na economia libidinal do valor
de uso, a subjetividade não reconhece qualquer lei simbólica, pois acredita
ser a fonte da lei e quer impor de forma absoluta as suas exigências ao Outro
em todas as circunstâncias.
Na economia psíquica do valor de troca, o desejo do sujeito se inscreve
no campo dialógico e se regula pela falta, enquanto que .no psiquismo
sustentado no valor de uso não existe qualquer negociação poss ível e a
retórica se anula nas relações inter-humanas, pois o sujeito não quer perder
jamais. Portanto, na primeira possibilidade, o pacto simbólico da polis está
em processo de reprodução pennanente, enquanto que, na segunda, o pac-
to simbólico é transgredido continuamente, já que para incrementar a mais-
valia do seu gozo o sujeito manipula o corpo do Outro para dele extrair sua
riqueza e seu prazer. Enfim, us econom ias psíquicas em pauta são absoluta-
mente excludentes e se regulam por lógicas libidinais opostas pois, pela
economia psíquica do valor de uso, a polis humana e o pacto simbólico são
solapados no seu fundamento e, p!lr'ü não perder jamais, o sujeito devora o
Outro para o incremenro do seu gozo.
No contexto de severa crise social, a economia psíquica do valor de
troca tende a ser sopuluda pela do valor de uso, pois o que está em pauta de
maneira dramática é a possibilidade de morte para o sujeito e de desapareci-
mento para o seu sistema de filiação. Quando a crise assume caráter prolon-
gado, como é o caso brasileiro, esse processo de solapamento se toma ainda
mais destruidor, intletindo a dominância do prazer para o pólo da perversão.
O desequilíbrio duradouro entre essas posições identificatórias provoca uma
severa fragmentação nu tessiwra psíquica, de maneira que as relações inter-
humanas passam a ser reguladas pela lógica da guerra, e a retórica política
não mais gerencia a polís de fonna eficaz. ··

Vlll. O estilo macabro na brasilidade


É nesse contexto mais ubrnngente que s.e delineia de forma trágica a impos·
sibilidade de pagamento da dívida simbólica. Essa impossibi lidade coloca o
sujeito no limite do seu eclipse pois, pelo não-pagamento da dív ida. ele não
pode ser reconhecido pelo Outro. Com isso, pennanece numa posição
psíquica de falta radical, já que nào se anuncia no seu horizonte qualquer
possibilidade de resgate, defrontando-se com experiências psíquicas-limite:
a culpa, a depressi\o e o mnsoquismo. Isso porque a pulsão de morte
encontra-se em condições de descarga absoluta, em estado de desintrincação,
na medida em que não está regulada pela pulsão de vida.
SUJEITO, VALOR E DÍVIDA SIMBÓLICA 173

As conseqüências da crise brasileira sobre a subjetividade são devas-


tadoras, pois a impossibilidade de regulação da dívida simbólica se impõe,
já que o Outro não oferece mais a l'ondi<;ào pam a reprodução do sujeito como
desejante. Com isso, o sujeito é arrancado do espaço de trocas inter-humanas
e deslocado para as fronteiras <la ordem social. Efetivada a transposição, o
Outro não se delineia mais para o .sujeito como capaz de ser o sustentáculo
da ordem simbólica. como a condição de possibilidade para a legiferação das
trocas intersubjetivas. A diversidade e a diferença entre as subjetividades na
sua dimensão positiva- são os elementos que possibilitan1 que qualquer
sujeito se diferencie simbolicamente dos outros - t.ransformam-se em
negatividade; a diferença se converte em desigualdade, no que concerne às
condições básicas para a reprodução do sujeito desejnnte, e a assimetria entre
as individualidades assume feições catJstróficus. Como a lei .simbólica que
regula as trocas inter-humanas encontra-se fragmentada, cada Outro se
delineia no horizonte do sujeito como sendo um virtual apropriador de suas
possibilidades d~ riqueza e de desejo.
Assim, o espaço sol·ial se desloca da posição de lugar de trocas
intersubjet.ivas para uma posi~·ão de lugar de guerra de quase todos contra
todos; de um espaço de r~conheci mento recíproco, o tecido social implode e
se trnnsmutu num espaço de combates mortais. Nesse contexto, a política,
retórica que reguln o diálogo intersubjetivo e que pemlite a negociação entre
os diversos grupos sociais, se quebra e a guerra se instala no espaço social.
A apropriação do corpo do outro, t·om a pilhagem e mesmo a dizimação,
trnnsfonna-se na máxima moral que sustenta as ações humanas para a
reprodução social das individualidades.
Na inexistência ú.:: uma lei simb61it·a que regule as individualidades,
o ideal do ego se eclipsa e o ego ideal se transfonna na instância narcísica
dominante na subjetividade. que passa a oscilar entre os pólos do masoquis-
mo e da violência s:ítlica - únicõls alternativas possíveis na economia
psíquica do ego ideal. É nesse registro psiquico que podemos depreender os
efeitos perversos da crise brasileira sobre as individualidades. Vale dizer, é
nesse registro psíquico que podemos sublinhar alguns dos efeitos da crise
brasi leira sobre a subjetividade, dentre os quais a moral cética que permeia ·
o tecido social é a sua versão mais sublimada.
No registro psíquico do ego ideal, balizado nns posições identificató-
rias do masoquismo e do sadismo primordiais, as patologias sociais que se
desenvolvem manifestam-se pela culpa, pela depressão e pelo masoquismo.
A violência é o contraponto qu~ u subjetividade lança mão para sobreviver
no caos devastador sustentado pela pu lsão de morte. Para não ser engolida
pela voragem sempre renascente da morte, a individualidade eventm o corpo
do outro e pratica sistematicameme a pilhagem dos seus bens. Essa é a lógica
174 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

cruel que regula o gow perverso, quando a simbolização se anula na sua


possibilidade de produzir diferenças, e o corpo do outro se transforma apenas
num fetiche para a realização do festim canibalístico das individualidades.
O cenário brasileiro se delineia com esses traços macabros, pois as
marcas psíquicas que são esmaecidas na dominância do registro do ideal do
ego se apresentam de forma caricata na hegemonia do ego ideal. Além disso,
o estilo macabro da brasilidadc destaca-se nesse cenário em função da escala
devastadora em que a totalidade do prOÇesso se realiza. Nesse contexto, o
ceticismo e a perda de confiança no Brasil como nação são pontuações étkas
que ressoam melancolicamente, como uma nostalgia da posição desejante
do sujeito.
A morte entre a ética e a violência1·
Notas introdutórias sobre a "cultura da violência"

/ . Percurso na violência

O que se pretende dizer com a expressão cultura da violência? Certamente,


a temática não se refere à constataçao da existência da violência em qualquer
cultura, já que f orça e vioUncia são constitutivas do sujeito inserido nas
relações humanas, não existindo. portanto, qualquer ordem política sem a
presença daquelas. Com efeito, o problema que sempre se colocou para a
filosofia política foi de como mantê-las em limites compatíveis com a ordem
social, já que a partir de um certo limiar o exercício da força e a existência
da violência no espaço social colocam uma impossibilidade crucial para a
manutenção e a reprod ução da ordem social.
Nesta perspectiva, a filosofia se preocupou, desde a sua constituição
na Antigüidade entre os gregos, nn suu reflexão sobre a ética e a política, com
a questão do melhor regime político possível (Monarquia, Oligarquia e
Democracia), na qual a indagação sobre o que era mais compatível com à
existência da polisse conjugt~va com a preocupação do que poderia melhor
desenvolver as suas potencialidades, isto é, possibilitar o desdobramento de
suas instituições políti~~<~s de maneira a não implicar a violência ética das
virtualidades humanas. Da mesma forma, desde os séculos XVII e XVIn a
filosofia política clássica pretendeu representaras condições de possibilidade
para o estabelecimento do pacto político e da soberania, na qual a indagação
sobre os princípios de legitimidade do poder se harmonizava com as preocu-
pações sobre a violência na política e a ilegitimidade no exercício do poder.
Portanto, se a fo rça e a violência são dimensões constitutivas das
relações humanas e se o problema que sempre se delineou na tradição do
Ocidente foi o de como detinir os limites seguros para essas dimensões que
possibilitassem s imultaneamente a reproduçn:o da ordem social, a questão
inaugural que se impõe neste artigo é a de se perguntar sobre o traçado desses
limites, para procurar definir a articulação possível entre as idéias de cultura

115
176 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

e de violê~cia. D~sta p~blemática deriva uma segunda indagação, intima-


~ente ~rt1culada a antenor: como. essa relação pode atingir a fronteira do
tmpossJvel, onde certas formas de vio lência conduzem a cullura a impasses
fundamentais.
. Assim, pretendemos ez~camínhar de maneira esquemática esta dupla
mdagação, procurando temutJzar algumas das questões que nos são coloca-
das por essas indagações. Portanto, esse trabalho pretende ser um comentário
da expressão cultura da violência.

li. Formas de violência e ordem simbólica


Vamos iniciar este percurso teórico com n formulação de que a .;io!ência é
um g.ênero que admite múltiplas espécies que precisamos diferenciar. Assim,
constderando <.:om Bourdieu a diferen~·a entre violência simbólica e violência
concreta, podemos atirmnr que qualquer cultura se funda na violência
sim~61ica~ que .define a submissão de seus membros a um conjunto de
códtgos s1mbóhcos. Contudo, apesar de simbólica, essa modalidade de
violência é arbitrária, já que pela diversidade de culturas existentes constata-
se que diferentes códigos simbólicos produzem culturas diversas. não se
pod~ndo formular entre essas qualquer hierarquia de valor. Nesta pers-
pecuva, as transgressões pelo niiC' •econhecimento da ordem simbólica de
uma dada cultura configuram uma situação de violência concreta.2 Estas
transgressões foram estudadas desde o século XIX, pelas ciências sociais,
como "patologias sociais". Dessa maneira, a violência concreta indica uma
descontinuidade, uma ruptura com a ordem simbólica delineada no contexto
de uma_dada tradição cultural, sendo um conceito antropológico que fot
constru sdo tendo a ordem simbólica como paradigma para a sua constituição.
A escolha que realizamos nesta leitura do sistema teórico de Bourdieu
~ara tr.tçar a fronte ira entre modalidndes diferenciadas de violência, é reJa~
t1vamente arbitrária. Com efeito, existem diversos discursos teóricos no
campo das ciências sociais que prerendem, mediante o uso sistemático de
seus conceitos, fundar a possibilidade historicamente efetiva da violência nas
práticas sociais. nas suas múltiplas espécies. Assim, podemos formular sem
qualquer risco de engano que us teorins mais consistentes sobre o sociaJ
constituídas desde o século XIX, procurnrrun estabelecer os limites ent~
essas modalidades de violência. Vale dizer, qualquer discurso sistemático
nos campo.s da sociologia, da antropologia e da política, sempre pretendeu
fundar a d1ferença entre as modalidades legftima e ilegítima de violência
sem considerar aqui a consistência dos indicadores escolhidos, no context~
de cada um ?e~ses. disc ursos, p11ra traçnr uma fronteira segura entre esses
campos da V1olenc 1a e o valor c.le suns realizações teóricas.
A MORTE ENTRE A ÉTICA E A VIOLÊNCIA 177

Neste contexto, não pretendemos arbitrar qual seria, entre as diversas


teorias sobre o social, a mais consistente para interpretar os fenômenos da
violência, pois não somos competentes no campo das ciências sociais. Ass im,
lançar mão da leitura de Bourdieu é importante na medida em que é possivel
definir o lugar onde se insere, no discurso sobre o social, a problemática
psicanalítica da subjetividade, j á que no discurso de Bourdieu a cultura é
definida como um sistema simbólico e na psicanálise o sujeito do incons-
ciente se funda na ordem simbólica. Evidentemente, a fom1a pela qu·al o
discurso teórico de Bourdieu representa os processos de socialização primá-
ria e secunJária,3 artit.:ulando-os com a instauração de um ethos e de um
sistema de habitus. 4 não se superpõe aos pressupostos do discurso freudiano
sobre o sujeito. Porém, estabelece o campo de uma problemática onde se
toma possível o diálogo trnnsdisciplinar entre sociologia, antropologia e
psicanálise, mesmo considerando que essas diferentes disciplinas realizam
recortes no campo dessa problemát ica que lhes são específicas.
Entretanto, é preciso cir<.:unscrever historicamente a constituição do
discurso sociológico, destacando como desde as suas origens a problemática
desta fronteira , entre fonnas diferentes de violência, foi uma questão crucial
para o estabelecimento de um snber sobre o social e para a nossa repre-
sentação do social. Assim, na nrqueologia de Foucault a representação
moderna do social, constituída na aurora do século XIX. foi construida pela
mediação do discurso da medicina, que traçou marcas indeléveis entre o
normal, o anormal e o palológicos. Essas categorias tiveram simultanea-
mente um efeito analítico e um campo de incidência nos espaços do corpo,
do psiquismo, das relações humanas e do social, não existindo pois qualquer
possibilidade de desarticulá-las dessas múltiplas referências na sua matriz
histórica originária_ Com efeito, a medicina que inaugura a modernidade é
ao mesmo tempo medicina do soe: ia! e JllCU ic ina científica da indiv idualidade,
sendo como higiene social uma medicina de reorganização do espaço urbano,
pretendendo incidir nos registros Jo corpo e da moral, como medicina
somática e medicina mental.6
Nesta perspectiva, o discurso sobre o social é o correlato da cons-
tituição de uma nova tessitura das relações entre os homens, permeada pelas
exigências de normaliwçcio e das práticos de disciplinas, em que a modela·
gem dessas práticas sociais tivemm no discurso médico o seu paradigma.7
Foi no campo entre:1berto por esta leitura crítica que Deleuze pôde formular
que o social, como nós o representamos nn modernidade, é uma invenção
recente, constituída na viragem do século XVJII para o século XIX. 8 Da
mesma forma, foi no contexto dessa mt:sma problemática - a emerg@ncia
de uma nova representuçüo do social onde inexiste qualquer critério de
totalização e que é pulverizado por um conjunto de mônadas individu-
178 PSICANÁLISE, CIENCIA E CULTURA

alizadas -.mas proveniente de uma outra tradiçiío teórica, que o norte-ame-


ricano Rieff pôde fonnul ar que a sociologia se constituiu justamente no
século. XIX pretendendo se indagar sobre esta tmnsfonnaç-ao radical na tradição
do Ocadente e pam restaurar uma nova representaç-.lo da comunidade.9
. A~sim~ foi no solo de um espaço social penneado pelas estratégias da
rnedicahzaçao e regulado pelas práticas de nonnalização que se desen-
volveram .no séc.ulo XIX as ciências humanas. O que implica dizer que a
arqueolog1a do d1scurso sociológico e das demais ciências humanas somente
pode ser r~al i zada consider.ando como seu solo fundador a arqueologia do
saber médiCO e a g~mt:ulogia do poder da medicina sobre o espaço sociaJ,
anco~d? na normal iznçüo dos corpos e do campo moral. Com efeito, o lugar
estrategico ocupado pelas categorias de normal e patológico, no discurso
ina~gural da sociologia com Durkheim, indica isso. Da mesma fonna, a
pos1ção fundamental desempenhada pela problemática da anomia nesse
discurso teórico remete para essa mesma questão, onde se pretendia discri-
m!n~ e~tre os campos legitimo e ilegítimo da violência, na medida em que a
cnmmalidade ernuma preocupação centml na construção dessa problemática. 10
. Para Donzelot, teórico fonnado na tradição inaugurada por Foucault,
os dtscursos da sociologia e da psicanálise se constituíram no final do século
XIX tendo como condição de possibilidade as práticas de medicalização do
social. Porém, esses discursos teóricos procuraram relativizar a oposição
abs~luta en.~ nonnal e patológico, .tal como estava então instituída pela
trad1ção med1ca. estabelecendo mutLzações e variações qualitativas entre
esses pólos. Portan1o, a sociologia e a psicanálise representaram ru~turas
marcantes com o discurso e as práticos de normalização da medicina. 1 Por
iss~ mesmo, é possível deli~eat entre esses saberes um campo possfvel para
o diálogo sobre a problemática que se encontra em pauta, apesar das diferen-
ças evidentes no campo de seus objetos teóricos, pois ambos se estabeleceram
pelo recorte específico que realizaram nos campos do nonnal e do patológico.
Enfim, retomando o encaminhamento in icinl desta problemática pode-
mos afinnar que não é um acaso que ns transgressões, que materializam o
exercício da violência concreta, fossem denominadas de "patologias soei ais"
desde o início do século XIX, pois se evidencia com isso a sua origem médica
pela palavra "patologia" e a ruptura com essa tradição pelo tenno "social".

li/. Sujeito e projeto identificatório


Assim, ~eline;~ndo como possível a relação de colaboração transdisciplinar
entre ps1canálise e ciências sociais, podemos estabelecer esquematicamente
agora a dialética entre violência concreta e violência simbólica indicando a
inserção da subjetividade nessa problemática.
A MORTE ENTRE A ÉTICA E A VIOLÊNCIA 179

Podemos formular que a violência concreta ser:i representada na sua


periculosidade numa hierarquia de valores, considerando se a transgressão
incide em alguma região pontual da ordem simbólica ou se atinge os seus
pressupostos. Vale dizer, existem interdições básicas numa dada ordem
simbólica cuja transgressão subverte o fundamento da cultura, que utiliza
então dispositivos repressivos violentos para reafirmar ritual mente os pres-
supostos do seu sistema simbólico. São esses pressupostos que fundam o
discurso ético de uma dada cultura.
A língua ocupa uma posi~·ào fund amental na constituição da ordem
simbólica, mas se ar1il·ulando com os registros político e social para es-
tabelecer os valores do campo cultural. Evidentemente, esses valores são
históricos, da mesma forma que as regras que constituem a gramãtica da
ordem simbólica e ns molhtlidades de repre ssão que reafimuun os seus
pressupostos fund:uncntais. Nns írltimas décadas o Ocidente foi radicalmente
transfonnado nos seus valores, o que nos aponta efetivamente para a his-
toricidade desses e suu conseqüente arbitt~Lrie<.lade.
Na constituição úa subjctividadl!, pela leitura psicanalítica, a ordem
simbólica é o pólo fundamental de ulteridade que funda o psiquismo no
registro da representaç::io, de forma a se contr..lpor ao pulsional, de maneira
que se o corpo pulsional representa o caos, caracterizado pela multiplicidade
de pulsões parciais, a ordem simbólica é a instância legiferante que regula a
anarquia do corpo pubional. Foi nesse sentido que o discurso freudiano
enunciou u existência das pulsões e de seus destinos, pois esses destinos
indicam a regulação da força (Drnng) pulsional pela ordem simbólica, a
putsão no campo da representação (Vorstellung). 12 Portanto, a "inversão no
seu contrário", o "retorno sobre a própria pessoa", o "recalque" e a "subli·
mação.. n indicam a gramática da montagem pulsional e o itinerário obriga-
tório de qualquer pulsão no processo de sua inscrição no universo da
representação.
O que implica dizer que, pam a produ~·iio e a reproôuçào do psiquismo,
é fundamental a consistência da ordem simbólica, permitindo que o sujeito
se constitua não como identidnde mas como um projeto identificatório. Isso
porque o sujeito é dividido, marcado estruturalmente por uma clivagem
(Spaftung) que não pude ser jamais suturada, constituído por uma série
ve marcas resu1I:Jntes .uas
, I I • . -
mscnçoes pu Is1omus,
. . !4 ue
.I
mo d o que o pro-
jeto identifíc:llório é necessariamente assintótico e nunca se materializa
muna identidade plena e definitiva. Ponunto, esse projeto é a resultante
da inscrição das pulsões no universo da representação, pela mediação da or-
dem simbólica, tendo como cenário constitutivo a relação do sujeito
com o Outro e os objetos de s:uisfação oferecidos pelo outro no circuito da
pulsão.
180 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

A conseqüência teórica d isso é que, como o psiquismo para a psicaná·


lise é concebido como fund amentalmenle inconsciente e atravessado por um
amontoado disperso de identificações, a não consist.1ncia da ordem simbóli·
ca, que sustema o projeto identifica tório, pode conduzir o psiquismo ao limite
do colapso. Esta é a condi~ão de possibil idade para a explosão da violênc ia
concreta e para o seu contraponto esm uural que é a experiência masoquista
devastadora.
Com efeito, as estrut uras psíquicas carac terizadas pela dominância
surpreendente de comportamentos madços de passagens ao ato e pela
mise-en·acte de fa ntasmas, pela t1agelação mortífera do corpo até limites
in imagináveis, indicam uma fragilidade marcada do projeto identificatório,
pois a individualidade não encontra uma o rdem simbólica consistente onde
possa se constituir como subjetiviuade. Neste contexto, as p ulsões se defron-
tam com um obstáculo radical p:tra a sua inscrição no universo da repre-
sentação, somente restanuo como possibi lidade para o sujeito a descarga
brutnl sobre o corpo do outro e sobre o próprio corpo do indivíduo. Assim,
se o exercício da violência concreta sobre o corpo do outro é a única
ailernaliva de que d ispõe o sujeito para se referenciar pela especularidade e
pela dominação brutal da subjetividade do outro, a violentação masoquista
do próprio corpo revela a impossibilidade para o suje ito desse procedimento
para a dominação da angústia e a conseqüente submissão incondicional ao
poder do outro, numa reversão fundamental do pe rcurso das pulsões.
Portanto, na ausência do pólo alterit:írio legiferante, o sujeito é atingido
no seu valor nardsico básico, isto é, na r~pre sentação do seu corpo, já que
não pode mais ge rir as fo ntes possíveis de satisfaçüo, pela perda de seus
instrumentos de interpret:t\'ão fundauos na ordem simbólica. Por isso mesmo,
na ausência de urn projeto identi ticatório, manifesta-se com bru talidade a
violência concreta, como a única possibilidade q ue dispõe o sujeito para a
sobrevivênc ia narcísica do corpo, para não sucumbir na mortificação
masoquista.

IV. Culwra da violência?


Porém, não deve ser apenas disso que se fala quando se coloca a questão da
cultura da violência, na medida e m que a possibilidade da transgressão está
colocada ern qualquer teoria do simból ico que pretenda ser corrente e
consistente. Assim, essa expressiio aponta para um outro referente que
devemos dest ac~1r, pois ind k a um::t forma de cultura q ue não apenas produz
a vio lência c.:omo uma virlualidadc como também desta se al imenia, como se
processa nas culturas bactcrio lógicHs o nde se promove artificialmente o
crescimento de co lônias de bactérias. O que está em pauta aqu i é algo
A MORTE ENTRF. A ÉTICA E A VIOLÊNCIA 181

inteiramente difere nte , já que e xistiria uma produção planificada da violên-


cia concreta e falar e ntão em cultura da violência é enunciar a existência de
um sistema de produção da violência que estaria integrado no campo da
cultura.
Nós sabemos que a expressão cultura da violência e seus correlatos,
como "subcultura da violência" e "subcultura do crime", são utilizados
freqüentemente na lítemtura antropológica. Existem inclusive múltiplas
monografias sobre essas temáticas, onde se apresentam ricas etnografias
destes campos marginais da sociedade, que são da melhor qualidade acadê-
mica. Da mesma forma, encontramos no campo da investigação antropoló-
gica o uso de expressões próximas a essas, como "subcultura da droga",
"subcultura da prostitui\'i'ío", '\ubcultura da doença mental", "subcultura do·
homossexualismo" etc... Esses estudos antropológicos pretendem circuns-
crever com isso a investigação de certos grupos e segmentos sociais que se
pautam nos seus comportamentos sociais por regras e códigos específicos,
de forma a conferir essas denominações para o campo de pesquisa de seus
objetos. Não estamos questionando a validade disso absolutamente, que está
inclusive consagrado pelo uso, mas apenas queremos explorar aqui uma
indagação limite. Vale dizer, o que pretendemos é radicalizar uma reflexão,
conduzindo ao seu limite uma indagação sobre esta problemática, onde se
pergunta sobre a compatibilidade absoluta entre as idéias de cultura e a de
violência concreta.
Portanto, é preciso se ind~•gar agom se uma cultura que organiza
um sistema planitic:tdo de violência não indica os limites de sua ordem
simbólica, revelando uma crise fundamental de seus pressupostos éti-
cos. Vale dizer, reconhecer a existência no espaço social de um campo
concreto da violência que não seja regulado pelos mecanismos simbólicos
da cultura, onde aquele campo adquira autonomia, não implicaria afirmar
que os valores b:.ísicos da ordem simbólica se encontram numa crise de
fundamentos?
Poder-se-ia argüir contra isto que a modernidade se caracteriza pela
existência deste sistema de produção da violênt·ia, não implicando a sua
existência na sua autonomia da ordem social e na implosão do psiquismo.
Essa foi a ousada interpretação realizada por Foucault em Vigiar e punir, ao
sustentar que a gestão do social desde o século XV IH não se realizaria apenas
por mecanismos jurídico-políticos, mas também por procedimentos discipli-
nares denominados de polícia. Com isso, o t:ootrole social se realizaria por
tecnologias de normalização. L'ondição histórica de possibilidade para a
constituição das ciéncia:o humanas. Enti m, u formação dessas disciplinas
teóricas estaria inserida num campo de práticas sociais voltadas para a
disciplinarização e para o e xercíc io de poder concreto sobre os corpos,
182 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

instituindo recortes específicos para a mobilidade dos indivíduos no espaço


social. 13
Neste contexto, a violênc.:ia seria não npenas produzida mas regulada
nas suas particularidades por mecanismos concretos que transcendem a
ordem da lei. O social seria uma tessitura co•úplexa de corpos e de relações
entre corpos, inteimmente permeado pelo jogo de forças e pelo confronto
permanente entre forças, estando pois num estado constante de desequilíbrio.
Porém, Foucauh não se eximiu de sublinhar as conseqüê nci~s de sua hipótese
teórica, já que a polícia proprÍlllllCnte dita estaria diretamente vinculada à
produção social da violência concreta e da criminal idade, não sendo pois uma
instituição apenas de defesa social contra aquelas, mas um pólo fundamental
para a sua produção organizada. 16
Na sua obra seguinte sobre a história da sexualidade. Foucault desdo-
brou esta pesquisa de maneira genial, indi<:ando em A vontatle de saber a
conseqüência mnis radical de sua hipótese de trabalho, articulando de fonna
brilhante as problemátit·ns da violência e da produção da sexualidade na
inauguração da modernidade. 17 Com efeito, na leitura de Foucault teria se
constituído no Ocidente desde o século XVllluma "implantação perversa"
da sexualidade, t-a através de uma política minuciosa de controle social dos
corpos para direcionar a sua eficácia eróge na e produtiva. O que implica dizer
que a representação do social instituída na modernidade corresponde como
resultante à constitui<;ão de um projeto político "perverso". onde os corpos
das individualidades foram mapeados nos seus menores detalhes e captura-
dos em seus movimentos infinitesimais para se inserirem no projeto de
produção e de reprodução da riqueza das nações.
Na nossa leitura, a psit·análise se constitui no final do século XIX tendo
como condição histórica de possibilidade esta "implantação perversa" da
sexualidade e do corpo im.lit·ada por Foucault. tendo então o discurso
freudiano destacado os impasses em que se encontra o sujeito na moderni-
dade, para a real iza~·iio dos seus desejos, face a essa "implantação perversa"
do sexua1. 19 Certamente, não é um uci.lso que o discurso freudiano tenha sido
denominado de ..punsexualista" no início do século XX, na medida em que
realizou uma crítica radical das categorias de degeneração e de perversão que
foram estabeleddns pelos discursos dn psicopatologia e da sexologia, pro-
curando destal·ar u ·'st.'xualidudc perverso-polimorfa" infantil e o auto-ero-
tismo como a fonte originÍiria da erogenei<.lade. 20 Enfim, o discurso freudiano
nos Três ensaios sobre (I teoril1 da se.~ualidade funcionou como instância
crítica e unticriminulizante do se)(ual, tul como foi instituída pela "implanta-
ção perversa" da sexualidade desde o século XYJI1.
Por isso mesmo, o desenvoh·imento posterior da investigação de
Foucnuh exigiu o contmponto para a multi pl icillude das tecnologias do poder
A MOKTE ENTRE A ÉTICA E A VIOLÊNCIA 183

e da produção da violência, sob a fonna de mecanismos de subjetivação.


Podemos registr.tr aqui que essa nova direção da pesquisa de Foucault revela
a necessidade te6ríc.:a de estabelecer um pólo de regulação simbólica do
sistema social na sua leitura da modem idade, para estabelecer alguma fonna
posstvel de alteridade no funcionamento "perverso" do poder. Assim, a
investigayão foucaultiuna sobre o poder se desdobrou, em as "l;~nologias
do sei f', 2 "O uso dos prazeres"22 e "O cuidado de si",23 no estudo SIStemático
dos sistemas éticos· ela subjetivaç(io, onde se definiu a condição de pos-
sibilidade da governabilidacle na ~uticulação entre as fonnas de poder e as
modalidades de subjetivução. Esta interpretação formula que a ordem do
corpo (força) é regulada pelas ordens social e política, representadas pela
metáfora do guerra, mediante uma ética dos processos de subjetivação.

V. lnterdiçt7o tia morte e discurso ético


Desta maneira. a expressão cultura da violência indica uma contradição
fundamental entre os seus termos. Por isso mesmo, quando esta expressão se
inscreve na linguagem e se refere a práticas sociais, como as que ocorrem
atualmente no Brasil e onde existe um fenômeno de explosão brutal da
violência em todas as suas modaI idades, isso indica uma ruptura fundamental
nas ordens social e simbólica. Com efeiro, a violência concreta perpassa a
totalidade do tecido social, com transgressões grosseiras da ordem sim-
bólica e na absoluta impunidade, se materializando de diferentes maneiras
conforme a diversidade dos grupos sociais. Registra-se nas classes médias e
populares n difusão de mecanismos simbólicos de identificação com o
agressor, na medida em que as instâncias sociais responsáveis pela gestão da
ordem política, a começar pelo Estado. transgridem com os fundamentos da
ordem simbólica.
Evidentemente, este quadro social catastrófico somente se toma pos-
sível quando não se reconhece muis certos pressupostos da ordem simbólica,
como o dirt!ito à vida e a intercliçcio tia morte. Com efeito, quando se passa
a assassinar cruelmente crianças em massa, a estuprar brutalmente crianças
e adolescentes em proporções assustadoras. a matar velhos indefesos para
roubar uma n inhar.ia, a difundir a criminal idade na inffinc ia de maneira qúase
infinita e desorganizada, onde se encontra o reconhecimento social pelo
direito à vida e a interdiçào da morte?
Porém, quundo u ordem socinl passa a naturalizar n convivência com
a morte em estndo bruto, com a fome em proporções aterradoras, com o
abandono de cri11nças. com a pilhugem do outro para sempre levar a melhor,
não nos inserimos mais no universo do reconhecimento recíproco e do
confronto onde se reconhece n existência de diferenças legitimas. mas no
184 . PSICANÁLIS E. CIÊNCIA E CULTURA

registro do aniquilamento. Com e teito, na uialét ica hegel iana do senhor e do


escravo a dominaç:lo se baseia na imposição da vontade do senhor sobre
o escravo e não na mone desse, que tem af.ossibilidade de se libertar e de
ser reconhecido pela mediação do trabalho.2 Entretanto, no quadro brasileiro
da cultura da violência o que está em pauta é a possibilidade do aniquilamen-
to, existindo de fato uma política de genocídio, que se concentra evidente-
mente em certos grupos e segmentos sociais, mas que tem efeitos abrangentes
que perpassam a toralidnde do espaço social e incidem nos pressupostos
básicos da ordem s imbólica.
Neste contexto, a lógica da cultura da violência no Brasil é a da guerra
pela subsistência, motivada pela superpopulação em relação às fontes de
subsistência, como foi formulada por Maquiavel para distingui-la da guerra
política. 2>Da mesma forma, a guerra permanente que permeia as relações
entre os homens na cultura da violência não se restringe à representação da
guerra como prática social para redefinir e ritualizar a identidade política de
uma nação, tal como foi louvada por Hegel no início do século XIX como
pertencente ao registro J a política,26 onde regras sociais definem uma ética
para o confronto.
Portanto, na cultura da vio lênda a única possibilidade entreaberta para
o indivíduo de certos grupos sociais é a de matar para sobreviver, enquanto
é possíve l evidentemente, pois o sujeito lica restrito à manutenção do seu
corpo narcísico na falência de um projeto identificatório fundado na ordem
simbólica. Enfim, como o que está em questão é a ruptura dos pressupostos
da ordem simbólica, a emergência de profetas messiânicos e de governantes
perversamente moralistas é saudada ilusoriamente pela massa desesperada
brasileira como uma promessa de salvação.
Notas

Introduçüo

I. Pontalis, J.B. "Bomcs ou confins", in Nouvelle revue de psychanalyse, n2 30,


Paris. Gallimard. 1974, p. 5-16.
2. Birman, J. "A prosa da psicanâlisc·-. in E maios de teoria psicanalitica, parte 1,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993. p. 31-32.

A direção da pesquisa psicanalítica

L Conferencia reulizada no 1nstiuno de Filosofia de Ciências Sociais da Unjversi-


dade Federal du Rio de Janeiro. na "Semana de Estudos de Epistemologia e
Psicnnãlise", organizada pelo Dcpartamcmo de Filosofia, em 28 de abril de 1992.
2. Evidentemente, estamos nos valendo. de maneira propositalmente deslocada, das
metMoras utilizadas por Frcud oum ensaio de 1918. Nesse momento se colocou
em Budapeste, no Congresso Internacional de Psicanálise, a questão da extensi!o
clinica da psicuntllise para uutros contextos menos rigorosos para o seu exercido
terapêutico. Vale dizer, o que se impunha como questlo era a "popularização" da
prãtica analítica, proposta por Fcrcnczi. Sobre isso, vide: Freud, S. "Les voies
nouvcllcs de la therapeutique psychanalytique" ( 1918), in La technique psycha-
nalytique. Paris, PUF, 1972.
3.ldem.
4. Freud, S. "Pour introdu ire !c narcissismc" (1914). in La vie se.ruelle. Paris, PUF,
1973.
5. Freud, S. "Pulsiuns ct dcstins dcs pulsions" (1915). in Métapsychologie. Paris,
Gallimard, 1969.
6. Freud. S. "Pour imroduire le narcissisme", in La vie sexuelle, p. 84.
7. Idem. O grifo t: nosso.
8. Frcud, S. "Esquisse d'une psychologíc scientifique" (1915), in LA naissance de
la psychanalyse. Paris, PUF, 1913.

185
186 PSICANÁLISE, CIENCIA E CULTURA

9. Freud. S. "Les psychonévroscs de dHense" ( 1894), in Nb rose, psychose er


perverslon. Paris, PUF. 1973: "Nouvcllcs remarques sur les psychon~vroses de
d~fense" ( 1896), idem.
10. Freud, S. "Pour introduire le narcissisme", in La vie sexuelle, p. 96.
11. Idem, p. 96-99.
12. Preud, S. "Lc moi et Je ça" ( 1923 ), cap. 11, in Essais de psychanalyse. Paris,
Gallimard, 1981.
13. Freud, S. " Pour introduire le narcissisme", ín La vie se.xue/fe, p. 84-85. O grifo~
nosso.
14. Sobre isso, vide: Bouvercssc, J. "La théorie et l'observation dans la philosophie
des scicnces du positivisrne logique", in Chntelet, F. Le )()f siecle. Histoire de
la philosophie, voi. 8. P11ris, Hachctte, 1973, p. 76- 134; Meotti, A. "EI empirismo
lógico", in História i/c/ pensamieii/(J fi/Qsófico y científico, vol. VII. Barcelona,
Ariel, 1984. p. 22 1·276.
15. Lôwith, K. De Hegel à Nietzsche. Paris. Gallimard. 1969.
16. Hyppolite. J. "Lc tragiquc et Jc rmionncl d:ms la philosophie de Hegel", in
Figures de la pe11sée phi/Qsophique, vol. J. Paris, PUF, 197 1. p. 254-261 .
17. Freud, S. Totem et Tabou ( 1913), ca.p. 2. Paris, Payot, 1975.
18. Freud, S. "L'inconscicnt" ( 1915), tópico VII, in Mltapsychologie.
19. Sobre isso, vide: Knufmunn, P. "Freud: la lhéorie frcudienne de la culture", io
Chntelet, F. Le x.x< siecle. His/Qire de la philosophie, vol. 8, p. 17-55.
20. Foucnult, M. Les 1110/s et les choses. ll parte, cnp. VIII. Paris, Callimard, 1966.
21. Freud, S. "Remémoration, r~pétition ct éluborution" (1914), in La technique
psychanalytique.
22. Freud, S. "Au-c.Jclà du príncipe llu plaisir" ( 1920), in Essais de psychatUJiyse.
Paris, Gnllimarc.J, 19M I.
23. Sobre isso, ville: Chcrtok, L .. Stcngcrs, I. O coração e a razão. A hipnose de
Lavoisier a Lacan, caps. I c 11. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990.
24. Lacan, J. "Fonction ct chump llc la paroIc ct du languge en psychanalyse" (1953),
il parte, in Éaits. Paris, Scuil, 1956, p. 254·258.
25. Freud. S. ·~constructions in anulysis" ( !937), in The Standard Edition of the
complete psychological worlcs of Sigrnun<.l Frcuó, vol. XXII. Londres, Hogarth
Press, 1978.
26. Freud, S. "Extrait de l'histoirc d'unc ncvrose infnntile (L'homme aux 1oups)", in
Clnq psychanalyses. Paris, PUF. 1975.
27. Freud, S. "Pulsions et destins dcs pulsions", in Métapsychofogie, p. 17.
28. Freud, S. "Au-delà du príncipe du plaisir", in Essais de psychanalyse.
29. Frcud, S. ''Lettrcs à Wilhclm Flicss, notes et pluns"( 1887-1902), in La tUJissance
de la psychanalyse, p. I 07.
30. Idem.
31. Idem, p. 143·144.
32. 1dem.
33. Freud, S. "Au-dclà du principc du plaisir", in Essais de psychanalyse, cap. IV, p.
65.
34. Freud, S. "Analysis terminablc and intl'tmi n.•b~c" ( 1937), S.E.• vol. XXIII.
35. Freud, S. "Une névrosc <.lémoniaque au XVIlcmc siecle" (1823), in Euais de
psychanalyse appliquée. Paris, Gallimard, 1933.
NOTAS 187

36. Sobre isso, vide: Koyré, A. Mystiques, spirituels. alchil~ist~s du .xvre, sie~le
a/femand. Paris, Gallinwrd, I 971; Koyré, A. Du monde à I umvers mfim. Paras,
Gallimard, 1973. .
37. Freud, S. " Pulsions et destíns dcs pu lsions", io Métapsycht?logie, p. 11-12. O gnfo
é nosso.
38. Idem, p. 12·20.
39. Freud S. "Psychical (or mcmnl) trcatmcnt" ( 1891), in S. E., voi.II.
40. Freud: S. 011 Aphasia (1891 ). New York, lnternatlonn1 Universities Press,
1953.
41. Freud, S. "The claíms uf psycho·ana1yse to scicntific interest" (1913), in S. E.•
vol. XIII.

Os impasses da cien tificidade no discurso freudiano


e seus destinos na psicanálise

1. Desenvolvimento de uma conferência realizada em setembro de 1989, na Escola


Nacional de Saúde Pública, inscrioa no seminário "Histórin da Ciência e SaOde
Coletiva".
2. Turkle, S. Jacques Lacan. La /rrupció11 dei psicoanálisis en francia. Buenos
Aires, Paidos, 1983.
3. Freud, S. "Esquissc d'une psychologie scicntifiquc" (1895), 11parte, in La tUJissance
de la psychanalyse. Paris, PUF, 1973.
4. Sobre isso. vide: Frcud, S. "Pulsions ct dl!stins dcs pulsions" (\ 91.5), in Métapsy-
chologie. Paris, Gallimard, 1968; Frcud, S. "L'inc~n~cient", 2!!-_cap.• idem..
5. Sobre isso, vide: Frcud, S. "De la psychotMrap1e (1905), an La tec?mque
psychanalytique. Paris. PUF, 1972; "La dy~amique ~u transfc.rt" <.1912), adem.
6. Freud, S. "Frngmcnt d 'une annlyse d'hysréne (Dom) ( 1905), tn Cmq psyclwna·
lyses. Paris, PUF, 1975. . " . . ...
7. Sobre isso, v ioc os comentários de J. Strachey. m Thc aettology of hystena m
S. E., vol. li!. Londres, Hogarth Prcss. 1978.
8. Freud, S. "The Aetiology of li isterill'' ( l 896), idem.
9. Jones E. La vie et i' oeuvre de Sigmuml Freud. vol. l. Pnris, PUf, \969, p. 396.
10. Freud, S. "Dclnsions anc.J dre<tms in Jt-nscn's Gradiva" (1907), in S. E., vol.
IX. - . íJi S"
11. Sobre esta categoria. vide: Kuhn, T. A estrutura das revoluçoes c1en11 tcas. ..o
Paulo, Perspectiva, \975.
12. Jones. E. La vi e et /' oeuvre de Sigmu11d Freud, vol. I.
13. Assoun, P.L.Introduct/Qn à /'epistémo!ogiejreudienne. Paris, Payot, 1981.
14. Freud, S. "E~quissc d' une psychologic scicntifique". in La naissance de la
psychunalyse. .
15. Frcud, S. L ' /merprétatiun des rê1•es ( 1900), cap. VIl. Pans, PUF, 1976.
16. Freud, S. Métapsycholo8ie. .
17. Breucr, J., Freud, S. "Les mécnnismes ps~chiqucs des phén?mcn~s hysténques.
Communication préliminuire" ( 1893), in Etudes sur l' hystüte. Pans. PUF. 1971 .
18. Freud, S. " Psychothérapie de l'hystérie" ( 1895), idem.
188 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

19. Sobre isso, vide: Frcud, S. "Lcs psychonévroses de défense" (I 894), in Névrose,
psychose et perversion. Paris. PUF, 1973; "Nouvelles remarques sur Ics psycho-
névroscs de défcnse" (1896), idem.
20. Sobre isso, vide: Descartes, R. "Discours de la méthode pour cond uire sa raison
et chercher la vérité dans lcs scienccs" (1633), in Oeuvre et letrres de Delcartes.
Paris, Gallimard, 1949; ~scancs, R. "Méditations. Objections et réponses"
(1641), idem.
21. Sobre isso, vide: "Pulsions et dcstins des pu!sions" (1915), in Métapsychologie.
22. Freud, S. Trois essais sur la théorie de la sexualité, 2~ ensaio.
23. Sobre isso, vide: Frcud, S. "Pulsions et dcstins dcspulsions", inMétapsychologie;
"La rcfoulemcm" ( 19 I 5), i<lcm; ''L'inconscicnt" ( 1915), idem.
24. Freud, S. Trois essais sur la théorie de lu sexualité, ::?.~ensaio.
25. Frcud, S, idem.
26. Frcud, S. "Pour introduirc lc nan:isisme" (19 I 4), l~cnp., in La vie sexuelle. Paris,
PUF, 1973.
27. Freud, S. On Aphasiu (1~91 ). Nova Yurk, lntcrnational Univer~itics Press, I953.
28. Frcud, S. "Esquissc d 'une psycholugie scicntifiquc", I! parte, in Naissance de la
psychanulyse.
29. Sobre isso, vide: Rajchman, J. "Psyt·hanalysc I) 1'américaíne", in Critique, n. 333.
Puris, Minuit, 1975.
30. Sobre isso, vide: Birman, J. Enfermidade e loucura. Sobre a medicina das
inter-relações. Rio de Janeiro. Campus, 1980: Birmnn, J. Freud e a experiência
psicanalítica. Rio de Janeiro, Taurus-Ti!lll>rc, 1989.
31. Idem.
32. Popper, K. Conjecwres and Rt![utations. Londres, Routledge and Kegnn Paul
1963. '
33. Sobre isso, vide: H:~rtmmm, H. Essays on Ego Psych.ology. Nova York:, Inter-
national Universitics Prcss, 1976: Hanmann, H., Kris, E., Lowcnstein, R.M.
Papers on Psychoanaly1ic Psydw!ogy. Nova York, lntcrnntional Universities
Press, 1964.
34. Dilthey, J. lmroducción alas ciendas de/ espirilu. Mntlri Revista de Occidente
1966. . •
35. Kant, E. Critique de la raison pure (1781). P:1ris, PUF, 1971.
36. Sobre isso, vide: Wcbcr, M. Essais sur lu théorie de la science. Paris, Plon, 1965.
37. Politzcr, G. Critique desfondc•lllcnts de la psydwlogie (1928). Paris, PUF, 1968.
38. Freud, S. "The rcsistnnccs to psycho·analysis" (1925), in S. E., vol. XIX. Londres,
Hoganh Press, 1978.
39. Roudincsco, E. Histuire d,: la psyâumalyse en France, vo!. 2. Paris, Scuil, 1986.
40. Politzer, G. Cri fique des [onde lll!Jl/S de lu psychologie. Introdução.
41. Idem, caps. I c I I.
42.Jdem, cnps. 111, IV c v.
43. Dal_biez, R. Lu mt!thode psychunaly1ique erla doctrine freudienne, vo!s. I e 11.
Parrs, Dcsdée de llrouwcr, 1936.
44. Sob~c isso, vide: U1<.:an, 1. "A u·dl! 1~ d u princ ipe de rcalité" ( 1936), in Écrits. Paris,
Sctul, I 966; ''Lc stadc du miroir conunc fornwtcur de la function du Je" (1949)
idem; "L'agressivité cn psychanalysc" (1948), idem.. '
NOTAS 189

45. Sobre isso, vide: Lacan, J. De la psychose paranoíaque dans ses rapports avec
lapersonnalité, suivi de premiers écrirs sur laparanoi"a ( 1931, 1932, 1933). Paris,
Scuil, 1975.
46. Freud, S. "Au-delà du príncipe du p!aisir" (1920), in Essais de psychanalyse.
Paris, Gallimard, 1981.
47. Freud, S. "Lc moi et lc \'11" (1923), idem.
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49. Lév i-Strauss, C. Les structures elémemaires de la parenté (1949). Paris, Mouton,
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55. Merleau·Ponty, M. La structure du comportement, cap. 111. parte 111, 3. Paris,
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56. Sobre isso, vide: Merlcnu-Ponty, M. "N:IIure et Jogos: Je corps humain" (1959-
1960), in Résumés de cours (Coll~ge de Frnnce, 1932-1960). Paris, Gallimard,
1968; Mcrlcau-Ponty, M. Le vr'sible e1 /'invísible. Pélris, Gallimard, 1964.
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58. Idem.
59. Idem.
60. Althusscr, L. "Frcud e Lu<.:an" ( 1964), in Posições-2. Rio de Janeiro, Graa\, 1980,
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61. Sobre isso, vide: Bnchclard, G. O novo espíri1o científico (1934). Rio de Janeiro,
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Paris. PUF. 1972.
62. Sobre isso, v ide: Cangu ilhcm, G. L e normal ele pathologique (1943). Paris, PUF.
1966; ÉIUdes d' histoire et de philosophie des scíences. Paris, Vrin, 1968; La
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63. Sobre isso, vide: Cnnguithcm, G. "L'objct de J'histoire dcs sciences", in Études
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· 64. Fichnnt, M., Ptchcux, M. Sur I' lristoi1·e des sciences. Paris, Maspero, 1969.
65. Althusser, L. ';Freud e L11can". in Pvsições-2.
66. Lacan, J. "Fonction et champ de 111 paro!c ct du langage cn psychanalyse" ( 1953),
in Écrits.
67. Lncan, J. Les quarre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Le Séminàire,
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68. Lacan, J. L' Envers de la psychunalyse. Le Séminaire, livre XVII (I %9-1970).
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69. Lncan, J. L' Éthique de la psychanalyse. Le Séminaire, livre VIII (1959-1960).
Paris, Seuil, 1986.
190 PSICANÁLISE, CIÉNCIA E CULTURA

70. Foucault, M. L 'A.rchéo logie du sa voir. Paris, Gallim:trd, 1969.


71. Fouc:ault, M. Lel· mots et les dwses. Pnris, Gallimard, 1966.
72. Foucauh, M. Surveiller .:1 punir. Paris, Gnllim:trd, 1976.
73. Fouc:auh, M . lliltoire de lafolic c) l'üge classique. Paris, Gallimard, 1972.
74. Idem.
75. Idem. Vide os :migos no apêndice da obm original.
76. Foucnult, M. La vo/unré de savuir. 1/iswire de la sexualiri I. Paris, Gallimard,
1976.

Leituras sobre a cientiflcidade da psicanálise

1. Aprescnut~·il o realizada no Instituto de Filosofia c de Ciências Sociais da Univer-


sidade F~:dc ral do Rio de J;mt'iro. em 30 ~abril de I992, na mesa-redonda sobre
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2. Freutl, S. " Esqui~sc tl'unc psydtologic scicntifil(Ue" (1895). I! parte, in La
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3. Sobre a oposiçllo entre c i~ncias n:u urais c ciências da cultura. vide: Dilthey,
W. Jnrroduc:ci6n a las dencius de/ espiritu. Madri. Revista de Occidente,
1966.
4. Sobre isso, vide: Chcrtok, L.. S tcngc~. I. O coração e a razão. A hipnose de
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6. Frcud, S. "L' incons<.:icnt" ( 19 15), parte VIl. in Métapsychologie. Paris, Galli-
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9. Frcud, S. "Une névrosc d~moniaquc au XVII~m" si ceie", in Essais de psychana-
lyse appliquée. PMis, Gallinmrd, 1933.
10. Frcutl, S. "Pulsions ct dcstins dcs pnlsions" ( 1915). in M étapsychologie, p. 12.
11. Sobre isso. vide: Huruna111t, M. Essuys u11 Egu Psyclwlogy. New York, Interna·
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18. Sobre isso, vide: Bachelard. G. IA jornuJtion de l' esprit scientifique. Pans, Vrm,
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20. Snrtre, J. P. L' ltre et le néant. Paris, 1943. ·
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24. Hyppolite, J. "Philosophie et psych:malyse" (1959), in Figures de la pensee
philosophique, vol. l, p. 406-442.
25. Sobre isso, vide: Lacan, J. "Au-delà du príncipe de rcalité (1936), "Le stade du
miroir comme fonnateur de la function du Je" (1947) e "L'agressivité en
psychanalyse" ( 1948), in Écrits. Paris, Scuil. 1966. ,
26. Lacan. J. "Fonction et champ de la paro Ic ct du langage en psychanalyse ( 1953),
idem.
27. Althusser. L. " Freud e Lacan" ( 1964), in Posições- 2. Rio de Janeiro. Graal, 1980.
28. Lacan. J. Les quarre concepts fondamentaux de la psychanalyse (1964). Le
séminilire.livre XI. Paris. Seuil, 1973.
29. f<Jue<~ult, M. Histoire de la fo/ie à I' tlge classique. Paris, Gallimar_d, 197~.
30. Foucault. M.I.A volonté de savoir. Histoire de Ia sexualité I. Pans. GaiiJmard,
1976.
31. Deleuze. G., Guanari, F. L'Anri-Oedipe. Paris, Minuit. 1972.

A filosofia e o discurso freudiano:


Hyppolite, leitor de Freud

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de Janeiro. Taurus-Timbre. 1989.
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3. Hyppolite. J. Figures dt la pensée plrilosophique, vol. l e H. Pan~, PUF, I ~71.
4. Hegel, E.W.E. La phénomino/ogie de I' espirit, vols. I e 11. Par1s, Monta1gne,
1941. . . ..
5. H yppolite~ J. Geneses tt structure de la phlnom/nologie de I' espirit de Hegel.
Paris, Montaígne, 1946. . .. .
6. Hyppolite, J. Jn troduction à la philosophie dt Hegel (1948). Pans, Seud, 198_3.
7. Sob~· isso, vide: Hyppolite, J. "Hegel et Kierkegaard dans la pensée frança1se
contempbralne" (1955), in Figures de la pensü philosophique, vol. I, p. 197;
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raine", idem, p. 233-234.
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9. Sobre isso, vide: llyppolite, J. "'La phénoménologic · de Hegel etla pensée française
contemporaine", in Fisures de la pensée phi/osophique, vol. I, p. 23) -241 ; Koyré, A.
"Rnpport sur l'érm dcs études hégélicnnes en Frru1ce" (1930), in Etudes d'histoires
de la pensée philosophíque. Paris, Gallimard, 1971, p. 225-251.
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Jorge Zahar Editor, 1988.)
13. Lacan, J. " Le stndc du miroir rornrnc fonnatcur de la fonction du Je telle qu 'elle nous
est rév~lée dans J'c!lpcricncc psychanalytiquc" (1949), ín Écrits. Paris, Seuil, 1966.
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e Antropologia. vol. 11. S!'to Paulo, EDUSP, 1974.
17. Lév i-Strauss, C. Les strut·tures elémtmlares de la parenté (1949). Paris, Mouton,
1967. (A.r estruturas elemenwres do parentesco. Petrópolis, Vozes, 1976).
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19. Wallon, H. Les origines áu caractere chez I' enfam (1934). Paris, PUF, 1973.
20. Lacnn, J. "Le stade du miroircomme formateurdc la fonction du Je telle qu'elle
nous est révélé~ dans l'cxpériencc psychanalytiquc", in Écrils.
21. Lacan, J. "L'agressivité cn psychnn:llyse", idem.
22. Idem, p. 107.
23. Idem, p. 101-106. •
24. Lacan, J. "Au-dch\ du príncipe de rcalité" (1936), in Ecríts.
25 . Freud, S. "Au-dclà du principc du plaisir" (1920), in Essais de psychaiUJlyu .
Paris. Gal!imard. 1981.
26. Laca o, J. "Fonction et champ de la parolc ct du langage en psychanalyse" (1953),
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27. Lacan, J. Encore. Le Séminaire, vol. XX. Paris. Seuil, 1975. (Mais, ainda. O
Seminário, livro 20, Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1985).
28. Roudinesco. E. Hiswir~ d~ la psychat1alyse en France, vol. 2, }!parte. cap. I.
29. Idem.
30. Sobre isso, vide: Smirnof, V. " De Vienne à Paris", in Nouvelle revue de psycha·
IUJiyse, n. 20. Paris, Gnllimard, 1979.
31. Sobre isso, vide: Prévost, C.M. Janet, Freud et la psychologie clinique. Paris,
Payo[, 1973.
32. Smirnof, V. "De Vienna i\ Paris", in Nouvelle revuede psychanalyse, n. 20.
33. Freud. S. "L'inconscicot" (1915), in Métaphychologie. Paris, Gallimard, 1968.
34. Freud, S. "The resistanccs to psycho-analysis" (1925), in The Standard Editlon
of the complete psychqlogical works of Sigmund Freud, vol. XIX. Londres,
Hognrth Press. 1978.
35. Sobre Isso, vide: Foucault, M. Historie de la folie à l'âge clas.siqut. Paris,
Gallimard, 1972 (História da loucura na idade clássica. Silo Paulo, Perspectiva,
NOTAS 193

1978); Deleuze, G. e Guattari, F. L' Anti-Oedipe. Capitalisme et schizophrénie.


Paris, Munuit, 1972. (O anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia. Lid>Oa, Assfrio
e AI vim, s/d); Ricoeur, P. De/' interpretation. Essais surFreud. Paris, Seuil, 1965
(Das interpretações. Ensaios sobre Freud. Rio de Janeiro, !mago, 1977); Fou-
cault, M.La volontédu savoir. Paris,Gallimard, 1976. (História da sexualidade I.
A vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1977.)
36. Hyppolite, J. "Comrnentaire parlé sur la 'VemCinung' de Freud" (1955), in
Figures de la pensée philosophique. vol. I.
37. Lacan, J. us écrits techniques de Freud. u Séminaire, vo\. 1. Paris, Seuil, 1975.
(Os escritos 1écnicos de Freud. O Seminário, livro l. Rio de Janeiro, Zahar
Editores. 1983).
38. Lacan, J. "lntroduction au commentaire de Jean Hyppolite sur la 'Vemeinung'
de Freud", in Écrits, p. 369-380.
39. Lacan, J. "Réponse au commentaire de Jean Hyppolite sur la ' Vemeinung' de
Freud", idem, p. 381-399.
40. Hyppolite, J. "Psychanalyse et philosophie" (1955), in Figures de la pensée
philosophique, vol. I.
41. Hyppolite, J. "L'existence humaine et la psychanalyse" (1959), idem.
42. Hyppolite, J, idem, p. 398-399.
43. Hyppolite, J. "Philosophie et psychanalyse" (1959), idem, p. 409-410.
44. Hyppolite. J. ''Psychannlyse et philosophie", idem, p. 373-374.
45. Hyppolite, J. "Philosophie et psychanalyse", idem. p. 406. O grifo ê nosso.
46. Hyppolite, J, idem, p. 407.
47. Hyppolite, J. "Psychanalyse et philosophie", idem, p. 374.
48. Idem, p. 374-375.
49. Idem, p. 380.
50. Idem.
51. Hyppolite, J. "Philosophie et psychanalysc", idem, p. 409.
52. Idem, p. 408.
53. Idem. p. 409-410.
54. Freud, S. "Pulsions et destins des pulsion" ( 1915), in Métapsychologie.
55. Freud. S. L'lnterpretaJion des rêves (1900). Paris, PUP, 1976.
56. Hyppolite. J." ' Phénornéoologie' de Hegel et psychana1yse" (1957), in Figures
de la pensée philosophíque, vol. I, p. 213.
57. ldt:m, p. 2 13.
58. ld~m. p. 2 14.
59. Hyppolite, J. "Philosophie et psychanalyse", idem, p. 409.
60. Idem, p. 408.

Desejo e promessa - encontro impossível

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S., Jung, C.G. Corresptmdance, vol. I. Paris, Gallimnrd, 1975.
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ordem do sexual. Rio de Janeiro.
13. Freud, S. Correspondance avec le pasreur Pjister ( 1909-1936). Paris Gallimard
1966. • •
14. P~ra o ~omcntário desta correspondencia, com a seleção de alguns fragmentos,
v1de: B1rman. J. "Sobre u correspondência de Frcud com o pastor Pfisler", in
Religião e sociedade, n. I 1/2. Rio de Janeiro, Campus, 1984.
15. Freud. S. The Question ofLay Anuiysis (1926), in S.E., vol. XX.
16. Freud. S. The Future uf an Jiusion ( 1927}, idem, vol. XXI.
17. Freud S. Correspondam:e avec /e pasreur Pjisler, p. 183.
18. Freud, S. Correspondunce de Sigmund Freud avec le pasteur Pfister, p. 167.
19. Freud, S. The Future oj an llu~·ion, in S. E., vol. XI, p. 30·31.
20. Freud, S. Totem e tabu, caps. 2 e 3.
21. Freud. S.lnhibition, symptôme et angoisse ( 1926). caps. VIII,1X e X. Paris. PUF,
I 973.
22. Foucault. M. Naíssance de la dinique, caps. 11, 11\ e IV. Paris. PUF. 1975.
23. Idem, cap. Vlll.
24. Idem, p. 147·149.
25. Canguilhem. G. "Essai sur quclques problêmcs concernant le nonnal et le
patho!ogique" (1943), in Le normal et /e pathologique. Paris, PUF, 1975.
26. Foucauh, M. Naissunce de la cliniq11e. p. 148.
27. Foucnult, M. ÜJ mots et fes choses, caps. 111, V e VI. Paris, G:~llimard, 1966.
28. Sobre isso, vidc: FouCtl u.lt, M. " A vmladc ~: ns form:•sjuridicas", in Cadernos da
PUCI RJ, n. 16. Rio de Janeiro, 1974; Foucault, M. Surveiller et punir. Paris,
Gnllimard, 1975.
29. Foucault. M. Naissance de lu clinique, c<1p. VI, p. 35·36.
30. Freud, S. The Furure ojun llllsivn, in S.E., vol. XXI, p. 30·31.
31. Frc~d, S. "Au·ddi\ du príncipe du plaisir" (1920), in Essais de psychanalyse.
Pans, Pnyot. 198 1. ·
32. Freud, S. "Civiliz:uion and lts Descontents" (1930), in S.E., vol. XXI.
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35. Freud. S. "Lcs voies nouvelles de la thémpeuliquc psychanalytique" (1912), in
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36. Freud, S. Correspondance de Sigmund Freud avec le pasreur Pjisrer, p. 104.
37. Sobre isso, vide: Gratton, H. Psydwnalyse d'hier e/ d'aujourd'hui, cit.'ldo por
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39. Frcud, S. L'lnierprélatÍoll des rives (1900), cap. VIl. Paris, PUF, 1976.
40. Freud. S. " L' Inconscicnt" ( \915). in Méwpsychologie.
41. Freud, S. "Lc moi et lc ~·a" ( 1923), in Essais de psyc:hanalyse, p. 271.
42. Freud, S. "Pulsions ct dcstins dcs pul~ions" ( 1915). in Mérapsycho/ogíe.
43. Freud. S. "Lc moi ct h: \':t", C<lp. 11, in E~·suü tfe psychanalyse.
44. Sobre isso, v ide: Frcud, S. Trois essaís sur luthéorie de la se.xualité (1905). Paris,
Gnllimllrd, 1962; Laplanche. J. Vie etm ort en psychanalyse. Paris, Flammarion,
1970.
45. Freud, S. "Le moi etlc ~a", cap. IV, in Essais de psychaMlyse.
46. Freud. S. "Pulsions et ucstins dcs pulsions", in Essaís de psychanalyse.
47. L1plnnche. J. L' angoisse. Pl'oblémcuiqlle I. Puris, PUF, 1980.
48. Frcud, S. Jnhibition, symptônu et angoisse, ClipS. VIl· X.
49. Frcud, S. "Esquissc d'unc psychologie cicntitique" (1895), in Naissance de la
psyclwnalyse. Paris, PUF, 1973, p. 336 c 370.
50. Frcuu, S. Trois essais :.·to· la théol'ie de la se.~ualité, 22 ensaio.
51. Sobre isso, vide: L <~pliu•che, J. Vie er mort en psychana/yse; Laplanche, J. " La
sexualit6", in 8ul/eli11 de psydwlogie, vo\s. XXIII-XXIV. Paris, 1969-1970.
52. Freud, S. "Pour introduirc Ie narcissime" (1914), Jf!cap., in La vie sexuelle. Paris,
PUF, 1973.
53. Freud, S. Towu e tabu, Ciip. IV.
54. Freud, S, idem, p. 185.
55. Goethc, J. W. FciUsto, parte I, Cclll• 3. Belo Horizon·.c, Itatiaia, 1981.
56. Freud, S. " L' lnconscienl" ( 19 15), cap. VI, in Métapsychologie.
57. Frcud, S. "De la psychulh~rapic" (I 905), in Lu rechnique psychanalytique.
58. Freud, S. Correspondance de Sigmu11d Freud avec le pasreur Pjister, p. 164-189.
59. Reik. T. "Remarques à propus de l'avcnir d'uoe illusion et Frcud"(1927), in
Topique, n. 26. Paris. EPI, 1980, p. I 27·143.
60. Frcud, S. La questiv11 de I' analyse profam:. ( 1926) Paris, Gallimard, 1985. p. 139.

Psicanálise e polftica: uma introduç<io metodológica

I. Conferencia pronunciada em Salvndur, em 16.6.1984, no seminârio robre "O


discurso c a prática pskana\íti~:a", promovido pdn Associnção Psiquiátrica da
Bahia. Nesta trunscri~·ão acrescento npenas lllgumas referências bibliográficas,
196 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

para sustentar algtlmas afirmativas e situar alguns conceitos. Publicado original-


mente em Tempo psicanalítico, vol. IX, n. I. Rio de Janeiro, Sociedade de
Pslcanãlise Jrucy Doylc, 1986.
2. Foucault, M. "A verdaue e as forml'ls jurldicas", 4! e 5!conferências, in Cadernos
da PUCIRJ, n. 16. Rio de Janeiro, 1974.
3. Foucault, M. Survei/ler c/ punir, 3! parte, caps. I, 11 e 111. Paris, Oallimard,
1975.
4. Foucault, M. Microjísica do poder. Rio de Janeiro, Ornai, 1979.
5. Sobre isso, vide: Rcich, W. A revolução sexual. Rio de Janeiro, Zahar, 1974.
6. Politzer, O. Critique desfondemcnts de la psychologie (1928). Paris, PUF, 1968,
caps. I e 11.
7. Idem, caps. 111 c IV.
8. Politzer, O. "Les fondemcnts de la psychologic", in Ecrits 11. Paris, Sociales,
1969.
9.1dem.
IO. Ll'lcan, J. "Lcs comp Ic xcs fam ili:1ux dans la form<~tion de I' indi vidu ", in Encyclo-
pédie frança/se sur la vie me111ale, vol. 111. Paris, 1936.
11. Laplanche, J. Leclaire, S.L.: lnconscie111: une élltde psychanalytique, L
12. Althusser, L. "Freud ct Lnc:ln" ( 1964-1965), in Positions. Paris, Sociales, 1976.
13. Freud, S. "Le moi ctle çu" (1923). caps. 11 e 111. in Essais de psychanalyse. Paris,
Payot, 1981.
14. Frcud, S. "Civilizmion imd its discontcnts" (19:30), in TI1e Standard Edition of
thecornplete psychulugil:al wurksofSigmund Frcud, vol. XXI. Londres, Hogarth
Prcss, 1978.
15. Rcich, W. L'Analysecaractérie/le, ).!!. e 2.!!. pllrtcs. Paris, Pnyot, 1971.
16. Rcich, W. Til e mass psychology offaâsm. Londres, Condor, 1972.
17. Rcich, W. Li:>ten, little man! Londres. Condor, 1972.
18. Reich, W. Reich par/e de Fr~:ucl. Paris, Payot, 1972.
19. Sobre isso, vide: Rouanct, S.P. Teoria crítica e psicanálise, 2! pane, cap. 8. Rio
de Janeiro, Tempo Bwsilciro, IY83.
20. Idem, 2! parte, caps. 4 c 6.
21. Jdcm.
22. Habcrmas, J. Connaisscnce el inlérêl, 3ª pm1c, caps. lO, li c 12. Paris, Oalli-
mard, 1976.
23. Sobre isso, vide a discussão de Prcud com Pfister: Freud, S. Correspondance de
Sigmund Freud w•ec te pasteur Pjisu:r ( 1909-1939). Paris, Gallimard, 1966.
24. Birman, J. ''Sobre ;t correspondência de Freud com o pastor Pfister", in R eligião
e sociedade, n. 1112. Rio de Janeiro, Cmnpus, 1984.
25. Frcud, S. "Civili:wtion ;md lts Discontcnts" ( 1930), S.E., vol. XXI.
26. Foucault, " Nietzsdlc, P:cml, Marx", in Nietzsdut. Cahicrs de Royaumont, Phi·
losophic n2 VI. 1'11ris, Miuuit, I%7, p. 183·200.
27. Foucault, M. Histoire til: la fulie u /' llge chmique, 3! par1e. Paris. Oallimard,
1972.
28. Birman, J. A psiquiatria como discurso da moralidade. Rio de Janeiro, Oraal,
1979.
29. Birman, J. "Demanda psiquiátrica c sal>er psicannlitico", in Figueira, S. (coord.),
Sociedade e doença mer.tal. Riu de Junciro, Cmnpus, 1978.
NOTAS 197

30. Birman, J. Enfermidade e Loucura. Sobre a medicina das inter-relações. Rio de


Janeiro, Campus, 191!0.
31. Sobre isto, vide: Birman, J. "Em casn de ferreiro... espeto de pau", 4!. parte,
in Cerque ira, O. (org.) A ,·rise da psicanálise. Rio de Janeiro, Oraal, 1982.

Sujeito freudiano e poder: tragicidade e paradoxo

1. Este texto é condensação das proposições principais que apresentamos oralmente


no seminf1rio "Encontros com Hélío Pellcgríno", na mesa-redonda intitulada
"Teoria e Poder", realizada em 14 de noveml>ro de 1991.
2. Sobre isso, vide: Politzcr, O. Crítique des fondements de la psychologie ( 1928).
Paris. PUF, 1968. •
3. Descar1cs. R. "Mé<.litutions. Objcctions ct réponses" (1641). in Oeuvres ellettres
de Descartes. Paris, Gallimard, 1949, p. 160·175.
4. Politzer. O. Critique des fondements de la psycholog!e.
5. Wcber, M. L' Ethique protestante etl' esprit du capitalisme. Paris, Plon, 1964.
6. Freud, S. Ma/ais e dans la civilisation ( 1930). P&tris, PUF, 1971.
7. Freud. S. "Psychologie des foulcs et analyse du moi" (1921), in Essais de
psychanalyse. P<tris. Payot. I ~81.
8.ldem.
9. Idem.
10. Freud. S. "Pulsíons ct dcstins d~:s pulsions" (1915), in Métapsychologie. Paris.
Onllimard, 196H, p. IS.
11. Sobre isso, vklc: Birman. J. "A prosa da psicanálise", in Tempo psicanalítico,
n. 25. Rio de Janciro, SPID, 1991; 13innao, J. Freud e a interpretação psicaiUJ-
/ítíca. Rio de Jnnciro, Rclumc-Dumarí1, 1991.
12. Freud, S. "L'Inconsdcnt" ( 1915). in Mélapsychologie, p. 82.
13. Jdem.
14. Frcud, S. "Pulsions ct dcstins de pulsions", in Métapsychologie.
15. Freud, S. "Au·d~il) du principe du plaisir" (1920), in Essais de psychanalyse.
16. Frcud, S. "Lc moi t•t lc ça" (1923), i<.l~:m.
17. Frcud, S. "Lc troublc psychog~niquc de In vision dans la conception psychana-
lytique" ( 191 0). in Nérrose, psychose et perversion. Paris, PUF, 1973.
18. Webcr, M. Economie el société, vol. I. J! parte, cap. I, 17. Paris, Plon, 1971. p.
57.
19. Sobre isso, vide: Hobl>cs, T. Léviathan. Traité de la matiere. de lo forme et du
pouvoir de la république ecclesicmique et civile ( 1651 ). Paris, Sirey. 1971;
Rousseau. J.J . OiH·ours sur I' origine etles fondements de l'inegalilé parmi
les hommes. Paris. Au!Jicr Montaigne. IY71; Locke,J. "Segundo tratado sobre
o governo". in Os pensadores, vol. XVIII. São P<~u lo, Abril, 1973.
20. Sobre isso, vide: Philoncnko, A. "Ethique t:t guerre dans la pensée de Hegel", in
Essais sur la phi/asophie de la guerre. Paris, Vrin, 1988.
21. Mnrx, K.. Engels, F. L' ldéologie a/lemande. Paris, Socíales. 1968.
198 PSICANÁLISE. CIÊNCIA E CULTURA

O sujeito na diferença e o poder impossível

1. Publicado originalmente em: Revista de psicanálise do Rio de Janeiro, vol. l.


n. l.·Rio-dc Janeiro, I y<) I.
2. Frcud. S. "Fivc Lecturcs on Psycho·An~•lysis" ( 1910), in The Standard Edilion
of the Complete Psycbologicnl Works of Sigmund Freud, vol. XI. Londres.
Hoganh Prcss. 1978.
3. Sobre isso. vide: frcud. S.• Ju ng. C.G. Correspondance (1906-1914), vol. 11.
p. 287-90. Paris, Gallimard, I \175.
4. Sobre isso. vide: Frcm.l, S. ''On thc l-listory of thc Psycho-Analylic Movement"
(1914). in S.E.. vol. X IV; "Thc Question ofL:1y Annlysis" (1926), idem. vol. XX;
"Annlysis Tcrminul>lc und lntcrminaulc" (1\137). idem, vol. XXIII.
5. Freud. S. "11Jc Qucstion of u Wclwnschauug", in '·Ncw lntroductory Lcctures on
Psycho·Ana!ysis" (I \133), Confcr~ncia XXX V, idem, vol. XXII.
6. Birman. J. Fre111/ e a e.rplll'iêncht psicwwlítica. Rio de Janeiro, Taurus-Timbre,
1989.
7. Idem.
8. Bnlint, M...On thc Psycho·Annlytic Training System" (1947), in lnternational
Journa/ oj Psycho·Anolysis, vol. XX. L<mdrcs, 1948; "Analytic Training and
Training Anulysis", idem, vol. XXXV. Londres, 1954. .
9. Gitelson, M. "Problcms of Psycho-Analytic", in Psychoanalytic Quarte/y, vol.
XVII, n. 2. Nova York, 1948: Gitelson. M. "Thcrnpcutic Problems in the Analysis
of the Normul Cundidatc", in Jmemationul Journal of Psycho-Ana/ysis, vol.
XXXV.
10. Nllcht, S. ''The Dificultics ofDidatic Psycho-Analysis in Relation toTherapeucic
Psycho-Analysis", idem.
1 1. Lncnn. J. "Situation uc 1:1 psychanalysc llu psych:tnalyse co 1956", in Écrits. Paris,
Settil, 1966: "La psyehnnulysc ct son cnsdgnemcm" ( 1957). idem.
12. Frcud, A. "Diflicuhés survcmcnt sur lc chemin de la psychanalyse" (1%8), in
Nowvelle revu.: dt: fJS)'<Iwnalyse, n. 10. l'aris, Gnllim:ml, 1974.
13. Freud, S. "Analysis Tcrminul>le and lntcrminable" (1937). in S.E., vol. XXIII.
14. Birman, J. "rrcud c os des tinos ua psican(tlise" e "A critica freudiana no
cinqücntcnflria de sua morte", in Birman, J.. Damiiio, M.M. Psicanálise: oficio
imposs(vel? p. 216·8. Rio de Janeiro. Campus. 1990.
15. Idem, p. 218·27.
16. Castcl, P., C:\Slel. R., Lovcll, A. La société psychiatrique avancée. Le modele
americain. Paris. Grassct, 1979.
11. Turke, S. Lacan, J. La irrupdón dd psic()(uuílise en Francía. Buenos Aires.
Puidós, 1983.
18. Freud, S. "Tile Qucstion of" Weh:mschauuh". in ''Ncw lntroductory Lectures on
Psycho-An:~lysi s", in S.E., vol. XXII.
19. Frcud, S. "Civilization und Discontcnts" (1930}, idem, vol. XXI.
20. Frcud, S. "Une difticulté de la psychanalyse" ( 1917), in Essais de psychanalyse
appliquée, p. 141. Paris, Gallimard, 1975.
21.ldcm,p. 141-2.
22. Idem, p. 142·3.
NOTAS 199

23. Idem, p. 143-7.


24. Freud, S. "Thc Futnre of an lllusion" ( 1927), in S.e., vol. XXI.
25. Sobre isso, viuc: Frcud, S. "L'lnconscient" (19 15), caps. I e 11, in Métapsycho·
logie. Paris, Gallimard. 1968; Frcull. S. "The Resist.1nces lo Psycho-Analysis"
(1925), in S.E., vol. XIX.
26. Freud. S. "The Qucstion of Lay Annlysis". idem. voi. XX.
27. Freud, S. "Une difficulté de la psychanalyse", in Essais de psychanalyse appli·
quée.
28. "No entanto, quase parece que analisar seja a t.crccira destas profissões 'impos-
stveis'. nas qWlis pode-se de salda estar certo de um sucesso insuficiente. As duas
outras, conhecidas há muito tempo. são educare governar.", in Freud, S. "Ana-
tysis Teminab\e aud lntcrminable", vol. XXII I, p. 248.
29. Idem.
30. Bourdieu. P., Passeron, J.C. La reproduction. Paris, Minult, 1970.
31. Weber. M. Economie et Sociéti, J! parte, cap. I, 17, p. 57. Paris, Plon, 1971.
32. Marx, K.• Engels, F. L'ldéo/ogie allemumle. Paris, Socinles. 1968.
33. Sobre isso, vide: Philonenko, A. "Ethique ct guem: dnns la pensée de Hegel". in
Essais sur la philosophie de la gum·e. Paris, V r in, 1988.
34. Sobre isso, vide: Philonenko, A. "Tolstoi et ClnusewíLZ", idem; Aron. R. Penser
lfJ guerrt, C/ausewitz, vol. I. Paris, Gallímar<l, 1976.
35. Aron, R. Penser la guerre, Clausewitz. vol. ll, J!!.pnrte, cap. ll, ldem.
36. Freud, S. "Pulsions et dcstins dcs pulsions'', in Métapsychologie.
37. Freud, S. "L' Inconscient", idem.
38. Freud, S. "Pulsions et dcstins des pulsions", idem, p. 18.
39. Freud, S.lnhibition. symptôme er angoisse ( 1926). Paris. PUF. 1973.
40. Idem.
41. Idem.
42. Idem.
43. Freud, S. "Totem and Taboo" (I913),1V, in S. E.• vol. XII.
44. Idem.
45. Freud. S. ''Le moi ctlc ça" ( 1923). ín Essuls de psychanalyse, p. 271. Paris, Payot,
1981.
46. Freud, S. "Psycho\og.ic dcs foulcs et analyse uu moi" (1921), idem. p. 123.
47. Idem, p. 123-4.
48. Freud, S. "Pulsions ct dcstins des pulsions", in Mitupsychologie.
49. Freud, S. "Civilizntion and its Discontents", in S.E., vol. XXI.
50. Freud, S. "Analysis Terminable nnd lntemlinable~. idem, vol. XXIII.
51. Frcud, S. "Le moi ct lc ça", cap. IV. in Essais de psychanalyse.
52. Frcud, S. "Civilization and lts Discontents", in S. E., vol. XXI.
53. Idem.
54.1dcm.
55. Idem.
56. Freud, S. "Psychologic lles foulcs ct ann!ysc du moi", in Essais de psychanalyse.
51. Sobre isso, vide: Fn:ud. S. "Psychologic dcs foulcs et ann!yse du moi", idem; "Le
moi et le ça", cap. 1!1, idem.
58. Para a leitura destes conceitos, vide: Lacnn. J. "Lcs complexes fnmiliaux dans Ia
formu lntion de !'inllivillu", in Encydopédiefrunçaise sur la vie menta/e, vol. VII.
200 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

Paris, 1936; Lncan, J. "Le stade du miroir commc formateur du Je" (1949), in
Écrits; Lacan. J. "Remarque sur Je rapport de Daniel Lagache: psych:malyse et
structure de la personalité", idem.
59. Freud, S. "Psychologie des foules et analyse du moi", cap. VI. in Essais de
psychanalyse.
60. Idem, p. 163-6.
61. "Segundo testemunho da psicanálise, quase toda relação afetiva Intima de alguma
duração entre duas pessoas - relação conjugal, amigável, parenta! e filial -
contém um fundo de sentimentos negativos c hostis, que só escapa à percepção
em conseqüência do recalque. Isso é mais evidente cada vez que um associado
se altera com os colegas, que um subordinado resmunga contra o seu superior. A
mesma coisa se produz quando as pessoas se reúnem em unidades mais impor-
tantes. Cadn vez que duns familias se avaliam por um casamento, cada uma delas
se considera, à custa da outra. como a melhor c a mais distinta. De duas cidades
vizinhas. cadttotuna se torna a concorrente invejosa da outra; o minúsculo cantão
se lança sobre o outro... GruJ)Os étnicos estreitamente aparentlldos se repelem
reciprocamente..." Frcud, S., illcm, p. 162-3.
62. Gramsci, A. Maquiem:/, a política e o estado moderno. Rio de Janeiro, Civiliza-
ção Brasileira. 1968.
63. Hegel, G.\V.P. La phénomeno/ogie de I' esprit ( 1807), voi. li, p. 42. Paris, Aubier,
1941.
64. Sobre isso, vide: Freud, S. "Psychologie des foules et analyse du moi", caps. IV,
V, VII, VIII c X, in Essais de psychanalyse.
65. Idem.
66. Idem, caps. IV c VIII.
67. Idem, caps. VII c VIII.
68. Frcud, S. "Totem and Taboo", cap. IV, in S. E., vol. XII.
69. Sobre isso, vide: Frcud, S. "Psyd10logh: dcs foulcs c analyse du moi", cap. X, in
Essais de psydwnalyst~; "Lc moi c lc ça", cnp. 111, idem; Freud, S. "Moses and
Monotheism: Thrce Essays" ( 1938), in S.E.. vol. XXII L
70. Freud, S. "Totem e Talx>o", cap. IV, idem.
71. ..... Isso nos conduz liO mtscimcnto do ideal do ego. pois atrás dele se oculta a
primeira c a mais importante idctllil1ca~·ão do indivíduo: a identificação com o
pai da pré-história pessoal." Frcud, S." Le moi et Ie ça", in Essais de psychanalyse,
p. 243.
72. "Talvez seria mais prudente dizer identificação aos pais pois, antes do co-
nhecimcnlo certo da difcren~·a de sexos, da falta do pênis, ao pai e a mãe não se
concedem um valor diferente.", idem, p. 243.
73. Hobbes. T. Lévialhan. Traité de la maliére, de la forme et du pouvoir de la
républíque ecdesiastique et civile ( 165! ). I! pane. Pris. Sirey, 197 L
74. Rousseau, JJ. Diswurs sur I' inégalite parmi les hommes. Paris, Aubicr Mon-
taigne, 1973.
15. Freud. s. "Civilit<~tion and lts Discontcnts", in S.E.• vol. XXI.
76. Freud. S. "Thrcc Essays on thcory of Scxuality"(!905). idem, vol. VIl, p. 193.
77. Freud, S. "Pulsions et dcstins dcs pulsions", in Métapsychologie.
78. Freud, S. "Le prob!emc économiquc du masochisme" (1924), in Névrose, psy-
chose et pervesion. Paris, PUF, I 973.
NOTAS 201

79. Freud, S. "Le troublc psychogcne de lu vision dans la conception psychanalyti·


que" (19 10), idem.
80. Freud, S. "La morale scxucllc civilisée et la maladie nerveuse des temps mo-
dernes" (1908). in La vie sexuel/e. Paris, PUF, 1969.
81. Hegel, G.W.F. La phénomtmologie de I' esprü (1807), cap.IV, vol.l.
82. Marx, K. Engels, F. L' ídéologie al/emande.
83. Sobre isso. vide: Foucault, M. "Nictzsche, Freud, Marx", in Nietzsche. Cahiers
de Royaumont. Philosophie nº- V I. Paris, Minuít, 1967.
84. Idem.
85. Idem.
86. Foucault, M. "Naissance de la prison", in Surveiller el punir. 3! parte. caps. I e
IL Paris, Gallimard, 1975.
87. Foucaulc, M. Lll volonté du savoir. Histoire de la sexualité, vol. I. Paris, Galli-
mard. 1976.

A étictl da psicanálise e a moral nas instituições


psicanalíticas

I. Este ensaio ~ o desenvolvimento da apresentação oral que realizamos na mesa-


redonda intitulada "A ética nn inslituição psicanalltica", organizada pela So-
ciedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, em novembro de 1990.
Publicado originalmente em Revista de psicologia e psicanálise, n. 3, Rio de
J3neiro, Instituto de Psicologia da Universidade do Rio de Janeiro, 1991.
2. Sobre isso, ver: Freud. S. "Lcs psychonévroses de défcnse" (1894), in Nivrose,
psychose et perversion. Paris, PUF, 1973; Freud. S. "Nouvelles remarques sur
les psychonêvrosc de défensc" ( 1986), idem.
3. Freud, S. L' lnterpréJaJion des r€ves ( 1900), cap. VIl. Paris, PUF, 1976.
4. Idem.
5. Freud, S. "L' Inconscient" (I 915), in Métapsychologie. Paris, Gallimard, 1968.
6. Freud, S. "Le moi et le ','a" (1923), in Em~is d~: psychanalyse. Paris, Payot, 1981.
7. Freud. S. ''Remarques psychan:tlitiqucs sur l'autobiographie d'une cas de para·
noia (Dementia Par:moidcs)". Lc presídent Schreber (1911), in Cinq psychona-
lyses. Paris. PUF, 1978.
8. Freud. S. "L'inconscient" ( 1915), in Métapsychologie. Paris, Gallimard, 1968.
9. Frcud. S. "Esquisse d'une psychologic scicntifiquc" (1895). t! parte, in IA
naissance de la psychanalyse. Paris, PUF. 1973.
10. Freud, S. Trais essais sur la Jhéorie de la sexualité (19Q5), j! parte. Paris,
Gallimard, 1962, p. 56.
I L Freud. S. "Pulsions ct dcstins dcs pulsions" ( 1915), in Métapsychofogie, p. 18.
12. ldem, p. 20·25.
13. Idem, p. 25.
14. Freud, S. "Le refoulement" ( 1915). idem. .
15. Lacan, J. L' E1hique de la plychanalyse. Le Séminaire, livre VIl. Paris, Seuil,
1986.
202 PSICANÁLISE, CIÊNCIA E CULTURA

16. Bunrque de Hohmda Ferreira, A. Nvvv dicionário da lingua portuguesa, 2! cd.


Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1986. p. 1591.
17. Idem.
18. Idem.
19.ldem.
20. Sobre isso, vide: Lalande, A. Vocabttfaire technique et critique de la philosophie.
Paris, PUF, 1976, 12!cd., p. 305-306.
21. Sobre a categoria de paradigma na epistemologia e na história das ciências, ver:
Kuhn, T.S. A esll·utura das rel·oluçües científicas. Silo Paulo, Perspectiva, 1975.
22. Freud, S. To/em elfabou (1913), cnp. IV. Paris, Payol, 1975.
23. Freud, S. "Pulsions ct destins des pulsions", in Métapsycho/ogie, p. 22-23.
24. Freud, S. "Pour introdu ire le nnrcisismc" (I 914), in IA vie sexuelle. Paris, PUF,
1973, p. 85-86.
25. Sobre os efeitos mortíti!ros do super-ego nas instituições de formação psicanalf-
ticn, ver: Balint, t-.1. "On the psychoanalytic training system", in lmerru;uional
Joumal of Psychoa~talysis, vol. 20. Londres, 1948; "Aoalytic training and
trainíng annlysis", i<.lcm. vol. 35. Londres, 1954.

Sujeito, valor e divida simbólica

1. Publicado originalmente em Cultura da inflação. Rio de Janeiro, Relume-Duma·


rá. 1993.
2. Freud, S. "L'lncon.scicnt" ( 1915), cap. 11, in Métapsychologie. Paris, Gallimard,
1968.
3. Frcud, S. "Analysis T.:rminablc and lntcrminable" (1937), in The Standard
Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, vol. XXIII,
Londres, Hogm1h Prcss. 1978, p.225.
4. Frcud, S. "L 'lnconsci~lll", cap. 11.
5.1dcm.
6. Descartes. R. '·Mé<.litations. Objl'Ctions ct réponses" (1641). in Oeuvreselleures
de Descanes. Pilris, Gallimard. 1949, p.l60-175.
7. Frcud, S. "The lntcrprctation of Drcams" (1900), in S.E., vols.IV e V.
8. Freud, S. "Thc Psychopathologie of Evcryday Lifc" (1901), id. ib., vol. VI.
9. Freud, S. "Jokes and their Relirtion to 1h~ Uru.:onscious'' ( 1905), id. ib., vol. VIII.
10. Carta de Frcud a Flicss. 2 úc ltl>ril de 1986. contida em "Lettres à Wilhelm Fliess
- N01es ct plilns" ( ~~~7- I902), in La 11ai:isanl'e de la psychanalyse. Paris, PUF,
1973, p. 143·144.
11. Politzer, G. Critique dcsfolldemems tle la psy,·hulugie (1928), caps. l e 11. Paris,
PUF, 3! etl., 1968.
12. Lncan, J. "Fonc1ion el champ de la parolc et du langage en psycanalyse" (1953),
in Écrits. P<tris, Scuil, 1966.
13. Freud, S. Totem ettabou (1913),~.:ap. l V. Paris, Payot, 1975.
14. Freud, S. "Pulsions et dcstíos dcs pulsions" (1915), in Métapsychologie, p.18.
15. Idem.
NOTAS 203

16. Freud, S. "Au-ddil du príncipe du plaisir" (1920), in Essais de psychanalyse.


Paris. Payot. 1981.
17. Freud, S. "Le prol>lcme économiquc du masochisme" (1924). in Nivrose, psy-
chose et perversion. Paris, PUP, 1978.
18. Freud, S. "L' lnconscicnt", cap. I11. in Mélapsyclwlogie.
19. Freud, S. "Pulsions e1 deslins dcs pulsiuns", id. ib., p.25.
20. Freud, S. "lnhibitions, symptome ctangoísse" (1926), cap. VII-X. Paris, PUF,
1973.
21. Freud. S. "Pour in1roduirc lc narcissisme" ( 19 14), in La vie sexuelle. Paris, PUF,
1973.
22. A esse respeito, vide: Freud, S. "Caract~re et erotisme anal" (1908) e ''La
disposition à lc névrosc obsessíonclle" (1913), in Névrose, psychose et perver·
sion.
23. Freud. S. "Pour ímroduire le narcisisme", in La vie sexue/Je.

A morte entre a ética e a violência

I. Este texto é o desenvolvimento de um trabalho inicial que foi apresentado no


scminflrio "Rio de todas as cri$cs", na sessão sobre "Cultura da violência",
organizado pelo Instituto Univ.:rsitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ)
e realizado em agos1o de 1990. Como o seminário linha uma perspectiva ttans-
disciplinar. a kitum psicanalítica que empreemkmos da questão da violência
pretendeu realizar um diálogo efetivo com :•s outras disciplinas, do campo das
ciências suciuis, presenles m1 discussão. Nesta versão atualizada, o trabalho
m<~ntcve o seu caráter condensado c o estilo ágil de um escrito que é adequado
para uma int\!rvcn\·ão oralnunu1 mesa-redonda, onde pretendíamos esboçar uma
hipótese da leitura sobre a probkmática da inserção da subjetividade na produçllo
e na reprodução da violência. na qual o sujeito em questão foi tematizado na
perspectiva da psicanálise. Contudo, para este livro realizamos transfonnnções
substantivas no corpo inicial do trabalho para dcstncar melhor algumas de nossas
formulações, mcdianlc um breve dcscnvolvim.:JIIo, assim como indicamos em
notas de pé de página as referências bibliogrfllicas mais importantes presentes no
texto para fornc~.:er ao leitor um pcn:urso possível de leitura.
2. Para a leitura rigorosa <.lestes I.:O!KeiiOS podem ser consultadas as seguintes obras:
Bourdieu, P. Esctctisse d'rme tluJorie de lu prutique, Gcnêve, Droz, 1972; Bour-
dieu, P.. Passcron, J.C. La nJpruduction. Paris, Minuit, 1970.
3. ldcn1.
4. Idem.
5. Foucauh. M. Naissancc de la c:linique. Pilris. PUF, 1975, 4!! ed.
6. Sobre isso, vi<k Birman, J. A psiquiatria como discurso da moralidade. R~ de
Janeiro, Grilai, 1978; Birm:m, J. Enfermidade e loucura. Sobre a medicina das
inter-retaçcJt:s. Rio de Janeiro, Cmnpus. 1980.
7. Foucault, M. Su,.veíl/er el P11nir. Paris, Gallim:rrd. 1975.
8. Dcleuze. G. "L'ltScension du soci:tl". in Donzelot, J.IA police desfamilles. Paris,
Minuít. 1977.
204 t>SICANÁLISE. CIENCIA E CULTURA

9. Rieff, P. O triunfo da ttrapêutica. Sno Paulo, Brasiliense, 1990.


10. Ourkheim, E. L~s regles de la mithode sodolugiqu(. Paris, PUF, 1973.
11. Donzelot, J. "Lc troisi~me âgc de la r~prcssioo", in Topique, n. 6. Paris, PUF,
1971.
12. Frc ud, S. "Pulsions ct dcstins eles pu lsions" ( 191 5), in Métapsycholagie. Paris,
GaHimard, 1968.
13. ldcm.
14. Preud, S . "L ' lnconscicnt" ( 19 15), idem.
1S. Foucault, M. Sunocil/t:r et Punir.
16. Idem.
17. Poucauh, M. La vo/anté de savoir. J/iswire de la sexualité, I. Paris, GaiJimard.
1976.
18. Foucault, M. -L' Impl :m ~atioo pcrvcrse", in La volonté d~ savoir, cap. IJ, 2.
19. Sobre isso. vide: llirman, J. Frcud e a experiênâa psicanalítica, 2! parte. A
constituição da psicanálise I. Rio de Janeiro. Tuurus -Timbre, 1989.
20. Freud, S. Truis ~ssais sur la théurie de la se.rualité (1905). Paris, Gallimard, 1962.
21. Foucault, M . "Ti.-cnulogics of thc Sclt' 1" in M:utin, L.H.• Gutman, H .• H utton.
P.H. Technolagies aftlle Self. Lonüres, Tavistoc!c Publications, 1988.
22. Foucnult, M. L' usag e des plaisirs. flistoire de la se.walité. 2. Paris, Gallimard,
1984.
23. Foucault, M. Le souci de soi. IJistoire de la sexualité, 3. Paris, Gallimard, 1984.
24. Hegel, G.W.F. La phb wménologie de /' esprit (1807), cap. IV, A, vol. I. Paris,
Aubier Montaigne, 1941.
25. Machiavel, N. "Discours sur la prcmi~rc d~cade de Tite-Live",livro 11, cap. VIl,
in Machinvcl, N. Oeuvres ,·ompleles. Pm·is, Gnllimard, 1952, p.533.
26. Hegel, G. W.P. La phbwmi11ologie de I' esprit, vol. 11, p.42.
PS ICANÁLISE, CIÊNCIA limites e até mesmo os confins de seu território
E CULTURA epistemológico. Isso feito, o discurso psicana-
Hiico podia retornar a seu espaço anterior de
referência e empreender a reflexão critica de
Este livro, Jerceiro volume de P.ensamento seus fundamentos.
freudiano, constitui-se de onze ensaios psica-
naHticos sobre diferentes temas: ciência, filo- A pesquisa interdisciplinar, portanto, oferece
sofia, política, ética, religião e economia. Sua à psicanálise a oportunidade de repensar suas
finalidade é estabelecer um diálogo interdisci- referências fundamentais e de se enriquecer
plinar da psicanálise com algumas das ciências conceitualmente através da exploração das
humanas, construindo uma interlocução fe- fronteiras e confins de seu território. É através
cunda com outras disciplinas e centrando-se de um percurso instigante, marcado pela diver-
em alguns tópicos especiais desses saberes. sidade de seus temas, que esta obra nos convi-
Contudo, ao circunscrever com rigor suas es- da a revisitar o pensamento freudiano.
colhas e possibilidades metodológicas, o autor
não tem absolutamente a intenção de esgotar
. JOEL BIRMAN é psicanalista; doutor em filoso-
os diferentes campos leóricos em pauta. Ao
fia pela USP; professor-titular da UFRJ, lecio-
contrário, seu propósito é explicitar algumas
nando no mestrado de teoria psicanalítica do
questões que operam na fronteira da psicaná-
Instituto de Psicologia; e professor-adju~to da
'lise com outros saberes, de forma a cernir
UERJ, onde leciona e é pesquisador no mes·
problemáticas que proporcionem uma interlo-
trado e no doutorado em saúde coletiva do
cução interdisciplinar.
Instituto de Medicina Social. Colaborador as-
O estabelecimento deste diálogo tornou-se síduo de várias publicações especializadas, é
possível por razões de ordem teórica e históri- autor de A psiquiatria como discurso da mo-
ca. Nos últimos anos, vem se impondo paula- ralidade ( 1978), Enfermidade e loucura
tinamente no campo intelectual um paradif(ma (1980) e A constituição da psican.álise, obra
interdisciplinar de pesquisa, de maneira que dividida em dois volumes: Freud e a experiên-
diferentes saberes procuram sair de seu isola- cia psicanaUtica ( 1989) e Freud e a interpre·
mento para dialogar com disciplinas próximas, tação psicunalítica (199 1). Trabalha atual-
que trabalham com temáticas comuns ou simi- mente na obra Pensamento freudiano, cujo
lares. A resultante desse processo de interlocu- primeiro volume publicado é Ensaios de teo·
ção foi a constituição de novas problemáticas e ria psicanalítica.
de recortes inéditos no real, que se ordenaram
nas fronteiras de diferentes disciplinas, e a reto-
mada de temáticas antigas que se renovam pelo
diálogo entre estas diversas disciplinas.
A psicanálise não poderia ficar de fora desse
universo de interlocução sem o risco de se
excluir do lagos dialógico e mesmo de se este·
rilizar em sua produção conceitual. Isso por·
que, na leitura crítica de Jocl Birman, a fecun-
didade teórica da psicanálise sempre se reve-
lou em sua história, quando ousou explorar os Cap11: Gustavo Meyer
PENSAMENTO FREUDIANO
JOEL BIRMAN

Planejado em cinco volumes, Pensamento freudiano


tem por objetivo sustentar e desenvolver uma leitura
da psicanálise tendo como referência básica o discurso
freud iano.
Os volumes I e 11 - Ensaios de teoria psicanalítica,
partes 1 e 2 - abordam a concepção da metapsicolo-
gia e seus conceitos fu ndamentais: metapsicologia,
pulsão, linguagem, inconsciente e sexualidade, na par-
te 1; narcisismo, sublimação, fantasma, ato e tempo,
na parte 2.
No volume III -Psicanálise, ciência e cultura - o
campo teórico para o diálogo possível da psicanálise
com outros saberes e práticas sociais é analisado,
discutindo-se a cientificidade do discurs0 freudiano e
suas relações no campo interdisciplinar da filosofia,
política, ética e religião.
Os volumes IV - O ato psicanalítico - e V -As
estruturas clinicas - efetuam, respectivamente, uma
leitura do ato psicanalítico e seus press upostos, e o
estudo de algumas estruturas clínicas presentes no
discurso freudiano.

IJZ·El Jorge Zahar Editor

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