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Recife, 2020

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universidade de pernambuco – upe
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Vice-reitor: Dra. Socorro Cavalcanti

editora universidade de pernambuco – edupe


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Prof. Dr. Belmiro do Egito
Prof. Dr. Carlos Alberto Domingos do Nascimento
Gerente científico:
Prof. Dr. Karl Schurster

Antigas leituras: ensino de História


souza neto, José Maria Gomes de (org.)
moerbeck, Guilherme (org.)
birro, Renan M. (org.)

isbn: 978-85-518-0000-0
1ª edição, março de 2020.

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização dos autores e da Edupe.

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O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA NO
BRASIL: PERCEPÇÕES A PARTIR
DAS PROPOSTAS DA BNCC
Priscilla Gontijo Leite1

E m 2015, iniciou-se a discussão aberta em torno da BNCC (Base Na-


cional Curricular Comum) com o principal objetivo de cumprir a
determinação do PNE (Plano Nacional de Ensino), que estipula o prazo
de dois anos para o MEC enviar uma proposta de currículo nacional. No
mesmo ano, foi disponibilizada a primeira versão para consulta popular,
ficando com a seguinte divisão dos conteúdos: 60% de responsabilidade
do programa nacional e o restante, 40%, para ser determinado na esfera
estadual e municipal, com o intuito de contemplar a pluralidade do país.
A primeira versão ficou disponível na internet para consulta popular até
março de 2016 e recebeu inúmeras críticas. O documento elaborado pela
ANPUH-Nacional, com o título Manifestação Pública da ANPUH sobre
a Base Nacional Comum, reúne as principais opiniões, principalmente
negativas, em torno da primeira versão.
Na primeira versão, não consta o nome da equipe responsável pelo
documento – fator que também foi alvo de censuras. Nela percebe-se
uma desconexão entre a proposta e os diversos projetos de pesquisa e
os programas de iniciação à docência desenvolvidos no país. A primeira
versão se diz contrária à perspectiva eurocêntrica, mas na prática, valo-
riza a história do Brasil a partir da chegada dos europeus no século XVI,
utilizando por exemplo o termo “Conquista”, sem nenhuma problema-
tização, algo que já foi revisto nos debates historiográficos. Além disso,

1. Professora Adjunta de Pré-História e História Antiga da UFPB. Área de pesquisa: democracia


grega, retórica ática, religião grega, direito ático. Contato: priscillagontijo.ufpb@gmail.com

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não há qualquer menção à pré-história brasileira. Também há problemas
no que tange a formação do ensino voltado para a cidadania, podendo
ela ser confundida com a formação cívica, pautada somente na apren-
dizagem de símbolos nacionais. A absoluta ausência dos conteúdos re-
lativos à História Antiga e História Medieval foi um dos pontos mais
polêmicos, unindo os especialistas dessas áreas que escreveram diversas
notas de repúdio a versão.2 A Anpuh–Nacional no manifesto supracita-
do sintetizou as críticas ao afirmar que

A ausência de referências à História Antiga e à História Medieval foi con-


siderada lacuna inaceitável da Proposta e, não por outra razão, mereceu
inúmeras críticas. Não há justificativa plausível para a omissão da História
de povos da Antiguidade de diferentes partes do mundo que legaram um
patrimônio material e imaterial reverenciado até os dias atuais. O mesmo
deve ser dito em relação à História Medieval, tão imprescindível para se
compreender modos de vida, ideias e valores que lhe são próprios e para
refletir sobre processos de mudanças que ocorreram entre a Antiguidade
e a Modernidade. Ao acompanhar e analisar o significado dessas trans-
formações históricas, muitos aspectos, inclusive, poderiam ser explorados
para a fundamentação da crítica ao eurocentrismo.3

Rodeada por essas polêmicas, uma nova versão foi divulgada em


maio de 2016, realizada por outra equipe, que, diferentemente da pri-
meira, teve o nome de seus componentes divulgado. Entre os meses
de junho a agosto, seminários estaduais ocorreram para discuti-la,

2. Alguns exemplos são: Carta aberta dos professores do Norte e Nordeste sobre a BNCC, (http://
site.anpuh.org/index.php/bncc-historia/item/3149-carta-de-professores-do-norte-e-nordeste-so-
bre-a-bncc) Carta de repúdio à BNCC produzida pelo Fórum dos profissionais de História Antiga
e Medieval (http://site.anpuh.org/index.php/bncc-historia/item/3127-carta-de-repudio-a-bncc-pro-
duzida-pelo-forum-dos-profissionais-de-historia-antiga-e-medieval); Um manifesto pela História e
pelas experiências das culturas da Antiguidade (http://site.anpuh.org/index.php/bncc-historia/
item/3123-manifesto-do-gtha-sobre-a-bncc).
3. Disponível em http://site.anpuh.org/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/noticias-destaque/
item/3352-manifestacao-publica-da-anpuh-sobre-a-base-nacional-comum-curricular. Acesso em
21/04/2016.

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priorizando a participação de professores da educação básica. A discus-
são com associações e instituições do ensino superior estava prevista
para setembro do mesmo ano, mas a etapa não ocorreu. No início do
ano seguinte, em fevereiro de 2017, o governo aprova a reforma do Ensi-
no Médio, em meio a grandes polêmicas, como por exemplo a utilização
do mecanismo de medida provisória (MP) para implementar a reforma.
Em abril, uma terceira versão da BNCC voltada somente para o Ensino
fundamental é divulgada. A escolha de dividir a BNCC para o Ensino
Fundamental e Médio, o não ocorreu nas versões anteriores, é justifica-
da pelos órgãos federais a partir de uma demanda específica do Ensino
Médio, que, com a reforma, terá a carga horária ampliada. Contudo, os
especialistas da educação não estão participando ativamente da constru-
ção das propostas e nota-se que após 2016 os canais de diálogo com o
governo enfraqueceram.
É inegável que a conjuntura política brasileira, com o afastamento da
presidente Dilma Rousseff e a instalação do governo de Michel Temer,
impactou diretamente nas discussões sobre a BNCC, que estavam ocor-
rendo de forma fervorosa principalmente em 2015. Há uma sensação
de que a proposta não seja cumprida tal como idealizada, pois o MEC
do novo governo tinha um claro perfil conservador e liberal. Há uma
corrente que deseja que os conteúdos sejam decididos pelo Congresso
Nacional e não por um grupo de especialistas, reunidos no CNE – Con-
selho Nacional de Educação. Vale ressaltar que em junho de 2016, sob o
novo governo, o CNE sofreu uma grave perda ao revogar as indicações
feitas anteriormente.4
Neste cenário, de uma maneira geral, a atenção dos profissionais do
campo da História volta-se para as discussões em torno dos múltiplos
projetos sob o nome de “Escola sem partido”, que prejudicam a atuação

4. Uma das principais críticas feita ao governo interino foi a remoção de especialistas em setores im-
portantes de todas as áreas do governo, assumindo pessoas sem o perfil técnico necessário. Tal
fato, prejudicou diversas políticas públicas que estavam em andamento, principalmente na área
da saúde, da ciência e da educação.

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do professor em sala e podem até mesmo criminalizá-lo; e também para
discussão da atual conjuntura política, em especial as propostas de re-
forma no campo da educação, do trabalho e da previdência. Diante des-
se quadro, verifica-se uma diminuição das análises sobre a segunda e a
terceira versões da BNCC, em parte porque os especialistas estão con-
centrados em outras, como por exemplo na reforma do Ensino Médio.
Há de considerar as incertezas rondam a implementação da BNCC, pois
há um silêncio das esferas governamentais sobre esse ponto e a possibi-
lidade de uma ampla participação da população. O que alimenta essas
inseguranças é a própria implementação da reforma do Ensino Médio,
apesar de várias críticas e os esforços de várias categorias para que o go-
verno alterasse alguns pontos. Dentre eles, destaca-se a contratação por
notório saber para os profissionais da educação, a educação a distância, e
as poucas informações sobre como serão oferecidos os percursos forma-
tivos aos alunos. No texto da reforma, há uma menção direta à BNCC, já
que os conteúdos serão ministrados de acordo com a base, mas até agora
não se sabe qual será a proposta da BNCC para o Ensino Médio.
A segunda versão da BNCC, no que tange à disciplina de História,
muda consideravelmente da primeira, principalmente no tocante à pro-
posta para o Ensino Fundamental. Na segunda versão, foram inseridos
os conteúdos relativos à História Antiga e Medieval, mas ainda é possível
detectar alguns problemas. O primeiro a chamar a atenção dos especia-
listas é a forma como o conteúdo é distribuído e apresentado ao profes-
sor. Os conteúdos relacionados à Antiguidade estão distribuídos entre
o 5º ano, o último ano dos anos iniciais do ensino fundamental, e o 6 º
ano, o primeiro dos anos iniciais do ensino fundamental. A Antiguidade
é utilizada como passagem para essas duas fases do Ensino Fundamental
que tem objetivos diferenciados. Nos anos iniciais do Ensino Fundamen-
tal, o foco é sensibilizar o aluno para a relação vida coletiva e memória,
partindo da família até a cidade5. Também está previsto uma “iniciação à

5. Brasil, 2016, 298.

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História como forma específica de compreensão da experiência humana
e de como ela permite articular e comparar diferentes espaços-tempo,
em diferentes sociedades e culturas”6. Essa passagem se dá justamente
pela aprendizagem das populações pré-históricas, seu processo de diás-
pora pelo mundo e posteriormente do desenvolvimento da agricultura e
da sedentarização. Em seguida, inicia-se os estudos dos povos da região
do Oriente Médio e do Egito. Segundo a proposta o objetivo é

Por meio da exploração dos primeiros indícios da presença da huma-


nidade na Terra, até as primeiras civilizações, o/a estudante vai, conco-
mitantemente, tomando contato com conhecimentos históricos já con-
solidados e aprendendo a pensar com a História. A articulação entre
objetivos de aprendizagem voltados para o conhecimento e objetivos de
aprendizagem voltados para o desenvolvimento da linguagem e de pro-
cedimentos históricos constituem um processo único e integrado de de-
senvolvimento do raciocínio histórico, que prepara o/a estudante para a
tomada de contato com um quadro mais abrangente a partir do 6º ano.7

Dessa maneira, a partir do 6º ano o aluno teria contato com um “qua-


dro mais abrangente”, com “processos históricos de progressiva comple-
xidade, exigindo uma maior capacidade de abstração”, que basicamen-
te é um desenrolar linear que vai da Grécia Antiga até o século XX, no
mundo pós-Guerra Fria.

Nos anos finais do Ensino Fundamental ganha espaço o desenvolvi-


mento dos conhecimentos necessários à lida com processos históricos
de progressiva complexidade, exigindo maior capacidade de abstração, a
começar pela mobilização do mundo da antiguidade clássica e medieval.
A proposta é a de que esse esforço de afastamento do tempo presente

6. Brasil, 2016, 298.


7. Brasil, 2016, 460.

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seja facilitado pelo estudo da História do Brasil, e que a reflexão sobre
o Brasil se faça sempre presente, ora de forma direta, ora indiretamente,
integrando recursos de linguagem e procedimentos de pesquisa.8

A segunda versão frisa que a complexidade dos processos históricos


se inicia com o mundo da Antiguidade Clássica. Fica evidente a utiliza-
ção da divisão da História Antiga em História Antiga do Oriente Próxi-
mo e História Antiga Clássica, com a predileção para a segunda, criando
na memória coletiva o enquadramento de que pertencemos a história do
Ocidente.9 Egito e a Mesopotâmia são relegados ao Oriente, ao campo
do exótico, o que reforça uma tendência eurocentrista que a proposta
tenta tanto combater.
De acordo com a proposta e a disposição dos conteúdos, a história
dos povos do Egito e da Mesopotâmia servem apenas de preparação
para a história de outros povos mais complexos, como os gregos e os ro-
manos. A estrutura da proposta demonstra uma evolução progressiva e
linear de povos mais simples para povos mais complexos, em que os pri-
meiros estão justamente localizados no Oriente (Egito e Mesopotâmia)
e os mais “evoluídos” estão no Ocidente e são os herdeiros da tradição
greco-romana, com ênfase ao ensino da democracia grega, direito roma-
no e da ascensão do cristianismo. Os conteúdos são dispostos de forma
linear, devendo o professor proceder segundo esta ordem: o ensino da
Mesopotâmia, Egito, Grécia, Roma, ascensão do Cristianismo, fim do
império Romano e o surgimento da ordem medieval – como demonstra
o conteúdo EF06HI21 “ Classificar a estrutura da sociedade feudal defi-
nida a partir de três ordens, dos oratores, bellatores e laboratores, repre-
sentadas pelas figuras do sacerdote, do cavaleiro e do camponês.”10 Se-
guindo essa lógica, os estudos sobre a Antiguidade iniciam-se no 5º ano,
quando o aluno tem em média 10 anos de idade, com a Mesopotâmia

8. Brasil, 2016, 460.


9. Guarinello, 2013, 7-15.
10. Brasil, 2016, 470.

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e Egito: “(EF05HI08) Conhecer as primeiras civilizações na Ásia e na
África (a Mesopotâmia, a Pérsia, o Egito faraônico, os povos núbios e he-
breus).”11 No 6º ano, com a idade média de 11 anos, o aluno tem o conta-
to com a história grega, com a ênfase nos aspectos políticos e na história
de Atenas.12 Segue para o estudo de Roma, ressaltando também aspectos
políticos, com a construção do República, do Império e a questão do
direito, como indica os conteúdos EF06HI07 “Conhecer o processo de
formação do Império Romano”13 e EF06HI08 “Compreender aspectos
da República romana e o papel do Direito na organização do Estado”14
- além de destacar o papel do cristianismo: EF06HI014 “Identificar as
origens do Cristianismo na região da Palestina e sua propagação por ou-
tras regiões do Império Romano”15. A Antiguidade se encerra no 6º ano
com o estudo da passagem do Antiguidade para o Medievo – conteúdo
EF06HI17 “Compreender a desestruturação do Império Romano e a for-
mação do mundo medieval na Europa.”16
Depois do 6º ano não há qualquer menção à Antiguidade nos 7º, 8º
e 9º anos, desaparecendo completamente durante o Ensino Médio, que
prioriza o ensino da História do Brasil e da sua relação com o continente
americano a partir da época moderna até os dias de hoje, muito seme-
lhante à primeira proposta. Com essa disposição, durante a educação
básica, o aluno somente terá contato com a Pré-História, Antiguidade e
o Medievo entre os 10 e 11 anos de idade em média, momento em que
ainda está em formação o raciocínio histórico, sendo que dificilmente
irá perceber toda a complexidade da organização social desses homens
e mulheres que viveram em tempos históricos remotos. Além disso, a

11. Brasil, 2016, 303.


12. (EF06HI01) Conhecer a história da Grécia antiga, com ênfase no processo de surgimento da
polis e da Filosofia. (EF06HI02) Reconhecer os conceitos de democracia e cidadania construídos
na Grécia clássica e, em particular, em Atenas. Brasil, 2016, 462
13. Brasil, 2016, 464.
14. Brasil, 2016, 464.
15. Brasil, 2016, 466.
16. Brasil, 2016, 468.

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não-retomada dos conteúdos de Antiga e Medieval auxilia na constru-
ção da ideia equivocada de que esses momentos da história foram supe-
rados, reforçando a ideia de progresso e que a história é uma sucessão
em que os povos do passado são superados pelo do presente.
A terceira versão da BNCC para o Ensino Fundamental mantêm al-
guns traços da segunda como a não retomada dos conteúdos nas séries
seguinte, a concentração nos estudos da Antiguidade Clássica em uma
única série, a disposição linear dos conteúdos e a valorização dos aspec-
tos políticos, apresentando uma história factual e política. Esta versão
apresenta a História como uma narrativa, sendo a operação com os do-
cumentos de natureza retórica17. Na sua percepção, o fazer histórico está
relacionado a capacidade de se indagar e fazer o diálogo18 e essa habili-
dade deve ser ensinada aos alunos . Os principais objetivos da História
para o Ensino Fundamental são:

estimular a autonomia de pensamento e a capacidade de reconhecer que


os indivíduos agem de acordo com a época e o lugar nos quais vivem, de
forma a preservar ou transformar seus hábitos e condutas. A percepção
de que existe uma grande diversidade de sujeitos estimula o pensamento
crítico, a autonomia e a formação para a cidadania.19

De acordo com a proposta, a disposição dos eventos em ordem cro-


nológica nos anos finais do Ensino Fundamental permite uma visão glo-
bal da história20, que lida com processos históricos complexos21, mesma
terminologia utilizada na versão anterior. Por isso, ela inicia-se com o
estudo da Antiguidade no 6º ano, com maior ênfase para a Antiguidade
Clássica:

17. Brasil, 2017, 347.


18. Brasil, 2017, 347, 369.
19. Brasil. 2017, 350.
20. Brasil. 2017, 367.
21. Brasil, 2017, 368.

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No 6º ano, contempla-se uma reflexão sobre a História e suas formas de
registro. São recuperados aspectos da aprendizagem do Ensino Funda-
mental – Anos Iniciais e discutidos procedimentos próprios da História,
o registro das primeiras sociedades e a construção da Antiguidade Clás-
sica, com a necessária contraposição com outras sociedades e concep-
ções de mundo. No mesmo ano, avança-se ao período medieval na Eu-
ropa e às formas de organização social e cultural em partes da África.22

Assim, na atual proposta, o ensino de Antiguidade e do Medievo se


concentra no 6º ano. Inicia-se com o estudo do Egito e da Mesopotâ-
mia na unidade temática “A invenção do mundo clássico e o contra-
ponto com outras sociedades”, que tem como objetivo desenvolver a
habilidade de “identificar aspectos e formas de registro das sociedades
antigas na África, no Oriente e nas Américas, distinguindo alguns sig-
nificados presentes na cultura material e na tradição oral dessas socie-
dades. (EF06HI05)”23 e de discutir o conceito de Antiguidade Clássica
(EF06HI06). As outras duas unidades temáticas são: “Lógicas da orga-
nização política” e “Trabalho e formas de organização social e cultural”.
Elas abordam basicamente os conteúdos de Grécia, Roma e Idade Média.
Assim, parece que os povos da África, Oriente e das Américas servem
apenas de preparação para entender o Ocidente, sendo que a construção
de “Nós” e os “Outros” se dá por critérios civilizacionais e progressistas.
Para o caso de Grécia e Roma, há a concentração nos estudos da pólis
e das fases políticas de Roma – monarquia, república e império. Uma
novidade é a inclusão da habilidade EF06HI1224 que reforça o ensino
dos processos de integração no Mundo Mediterrâneo, objeto de estudo
em diferentes grupos de pesquisa no Brasil. Outro ponto interessante é a
inclusão da temática da mulher no item EF06HI16: “Descrever e analisar

22. Brasil, 2017, 368.


23. Brasil, 2017, 371.
24. Descrever as dinâmicas de circulação de pessoas, produtos e culturas no Mediterrâneo e seu
significado. Brasil, 2017, 371.

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os diferentes papéis sociais das mulheres no mundo antigo e nas socie-
dades medievais”25. Nota-se também a retirada de tópicos relacionados
ao cristianismo. Não há qualquer menção a fenômenos religiosos no
mundo antigo, o que é uma grave lacuna, pois a religião é essencial para
entender aspectos políticos, econômicos e culturais dos povos antigos.
A descrição de habilidades e objetos de conhecimento é demasiada-
mente generalista, podendo provocar várias intepretações sobre o que
abordar e como abordar esses conteúdos na sala de aula. Um exemplo é
o item EF06HI10: “Conceituar “império” no mundo antigo, com vistas à
análise das diferentes formas de equilíbrio e desequilíbrio entre as partes
envolvidas”.26 Com base apenas na descrição, é possível concentrar ape-
nas no estudo do processo expansionista romano, ou incluir a hegemonia
ateniense durante a liga de Delos, ou até mesmo a ação expansionista de
Alexandre, o Grande. Também há de ressaltar que o conceito de império
e imperialismo para o mundo antigo envolve uma ampla discussão histo-
riográfica, sendo necessário conhecimento das práticas imperialistas do
século XIX que os alunos, por causa de sua faixa etária, ainda não domi-
nam. Isso demonstra um dos principais problemas de um ensino linear
progressivo e quando não há a retomada dos conteúdos em séries seguin-
tes, pois o aluno pode não perceber toda a dimensão do processo histó-
rico e do debate historiográfico em torno dele. Por isso, mesmo sendo
demonstrando a preocupação com a narrativa histórica e as discussões
historiográficas, na prática, essa versão não consegue atingir esse objetivo
por manter a disposição dos conteúdos de forma tradicional e linear.
A forma como a Antiguidade é apresentada nas duas últimas propos-
tas não se difere das críticas apresentadas há tempos por especialistas
no que se refere ao ensino da História Antiga na educação básica. Hoje,
como é evidente nos livros didáticos, tem-se uma divisão temporal tri-
partida que vai do Oriente (com o destaque da Mesopotâmia e Egito)

25. Brasil, 2017, 371.


26. Brasil, 2017, 371.

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para o Ocidente (Grécia e Roma) e tal aspecto se manteve forte na últi-
ma versão. De acordo com Gonçalves e Silva, essa divisão era a mesma
presente nos currículos da década de 1960 em que os estudos da An-
tiguidade se concentravam em torno do conceito de civilização, a fim
de entender a trajetória da civilização ocidental, que se iniciaria com o
surgimento de civilizações na beira dos rios Tigre e Eufrates até o desen-
volvimento das civilizações do Mediterrâneo.27 Na BNCC, se substituir
o conceito de civilização por processos históricos complexos, a lógica
permanece a mesma. Além disso, os autores ressaltam a predominância
de um visão eurocêntrica sobre a história do Egito, Mesopotâmia, Gré-
cia e Roma, com a valorização dos fatos políticos,28 aspecto que também
permanece forte na atual versão da BNCC.
O conceito de civilização foi revisitado e a sua crítica o deixou em
desuso, já que outras noções explicam de forma mais eficaz as socie-
dades humanas do período da Antiguidade, englobando a diversidade
de povos e culturas, bem como a interação entre elas. Um exemplo, é a
abordagem de Guarinello (2013) que utiliza os conceitos de interação e
hegemonia para explicar os processos históricos no Mediterrâneo, com
o foco em Grécia e Roma. Assim, com novas perspectivas e conceitos
que vão além da noção de civilização, os estudos da Antiguidade não fi-
cariam restritos a somente quatro realidades históricas, o que não acon-
teceu em nenhuma das versões da BNCC.
Observando os conteúdos explicitados nas diferentes versões da
BNCC é evidente o distanciamento entre a produção acadêmica recente
e o ensino escolar. Nas escolas, a seleção de temas a serem estudados
fica restrita a aspectos que legitimam uma tradição clássica: democracia
grega, em especial a ateniense, filosofia, mito, direito, república, língua
latina, império romano. Com isso, parece que a importância de se estu-
dar a Antiguidade está apenas no fato de o aluno conhecer as principais

27. Gonçalves e Silva, 2008, 25-28.


28. Gonçalves e Silva, 2008, 31.

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heranças greco-romanas. As pesquisas recentes realizadas no Brasil de-
monstram a dinâmica da Antiguidade e toda sua pluralidade, enfatizan-
do aspectos que vão para além da dimensão política.
Há também de se ressaltar o distanciamento da proposta com as pes-
quisas acadêmicas ao não considerar os estudos relativo à recepção da
Antiguidade, como demonstra a ausência de diálogo da Antiguidade
com os tempos posteriores. A proposta, assim, não atinge seu objetivo
de facilitar a percepção de um tempo longínquo com o atual. A dispo-
sição dos conteúdos nas segundas e terceiras propostas podem levar o
aluno a perceber a Antiguidade como etapas superadas e não perceber
como ela sempre esteve presente no horizonte político e cultural do
mundo ocidental.
Assim, num balanço da forma como a Antiguidade foi tratada nas
três versões da BNCC nota-se uma ligação mais forte com a forma como
os conteúdos são tratados nos livros didáticos do que com as pesquisas
acadêmicas e os projetos de ensino e extensão realizado nas universida-
des. Tal aspecto é muito claro nas segunda e terceira propostas, em que
a linearidade da disposição dos conteúdos segue o mesmo modelo do
livro didático. Os livros didáticos ainda tratam a História apenas como
uma linha contínua do conhecimento, em que causas e consequências
são encadeados de maneira linear. Com isso, toda a abordagem da His-
tória Antiga é condensada no início do ensino da História, ou seja, nas
séries iniciais dos ciclos constituintes do nível médio e/ou fundamen-
tal, sem fazer quaisquer ligações com os períodos posteriores. Assim, a
História Antiga é normalmente tratada em dois capítulos: Antiguidade
Oriental e Antiguidade Ocidental ou Clássica, dando maior ênfase à se-
gunda do que à primeira – justamente como é apresentada na segunda
e terceira proposta. Nesse sentido, cria-se a ideia de que a Antiguidade é
uma sequência entre os povos egípcios, mesopotâmicos, gregos e roma-
nos, em que cada povo foi “progredindo” e “superando” o outro, até que
gregos e, principalmente, os romanos nos legaram a base da “civilização”
ocidental.

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Pois bem, os livros são categóricos em afirmar que somos herdeiros
da tradição clássica; contudo, a demonstração dessa herança fica restrita
a algumas linhas, não se fazendo qualquer menção posterior de como
a Antiguidade foi apropriada ao longo da história do Ocidente. Assim,
o problema está na construção de uma linearidade estática, que dificil-
mente abre espaço para trabalhar conceitos como memória e tradição,
que também são essenciais para o ofício do historiador e muito valoriza-
das na terceira proposta.29
O livro didático, ainda hoje, mantém o mesmo tratamento com re-
lação à Antiguidade de meados do século passado, como evidencia as
críticas feitas pelos especialistas há mais de uma década,30 ao elencar os
principais problemas no tratamento da Antiguidade.31 A Antiguidade se
mostra como exótica e distante nos livros didáticos e muitas vezes é essa
a postura adotada pelo professor na sala de aula, uma postura que con-
tinua na formulação da segunda proposta, principalmente no tratamen-
to dado ao Egito e à Mesopotâmia, e que na última proposta não está
clara, devido a brevidade que elas são abordadas (EF06HI05). O único
ponto positivo dessa perspectiva é de aguçar a curiosidade dos alunos,
podendo estimular o envolvimento deles no processo de aprendizagem.
Entretanto, há o grave risco de que o conhecimento a respeito da An-
tiguidade seja reduzido a uma mera curiosidade, deslocado do mundo
real. Infelizmente, o que se nota nos cursos de História Antiga nas uni-
versidades é que o aluno chega com a percepção de que Antiguidade
está relacionada com a fantasia. Assim, o protagonismo dos eventos fica
a cargo de grandes heróis e deuses em detrimento dos acontecimentos
e personagens históricos. Os discentes trazem essas referências para a
sala de aula na universidade sem saber como problematizá-las, e, assim,
a História Antiga fica estanque, um conteúdo fechado em si mesmo e

29. Brasil, 2017, 347.


30. O número especial da revista Hélade do ano de 2001 traz uma série de artigos a respeito da
discussão entre o ensino de História Antiga e o livro didático. Disponível em http://www.helade.
uff.br /volume2 numeroespecial.html
31. Corsí, 2010, 145; Silva; Gonçalves, 2015, 4.

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sem nenhuma relação com a contemporaneidade. Formando os alunos
universitários com essa percepção, há grande possibilidade dela se per-
petuar nas aulas do Ensino Fundamental e Médio, quando se tornarem
professores.
Além do problema da linearidade, os livros didáticos também abor-
dam o conteúdo de História Antiga com simplificações, generalizações,
erros graves, anacronismos, juízo de valores e, normalmente, estão de-
satualizados, utilizando uma linha de raciocínio da primeira metade
do século passado.32 Assim, o conteúdo exposto no livro leva à constru-
ção de estereótipos e a manutenção de preconceitos. Se a Antiguidade
é apresentada dessa forma qual seria o sentido de sua manutenção na
educação básica? Por sermos herdeiro dessa tradição? Uma herança que
é apresentada de forma vazia e sem articulação com o real, estando mais
próxima da esfera do mito do que do cotidiano? Nessa ótica, entende-se
sua ausência na primeira proposta da BNCC. E por isso mesmo se deve
repudiar essa lacuna, por alimentar uma visão distorcida da Antiguida-
de, já ela seria aprendida sem uma reflexão crítica. É o mais grave, sua
ausência retira do aluno a possibilidade de contato com um momento
crucial da história humana e que lhe oferece subsídios para entender de
forma contundente o presente e se posicionar nele.
Dessa forma, tanto a primeira proposta como a segunda e a tercei-
ra não conseguiram sugerir uma reformulação no tratamento dado
a Antiguidade que vá além da defesa da herança da tradição clássica,
distanciando-se da produção acadêmica nacional. A primeira versão
simplesmente tolhe o aluno do contato com o conhecimento a respeito
da Antiguidade, sendo que ela irá permanecer no campo da fantasia, já
que o conhecimento sobre essa realidade irá vir de outros meios, princi-
palmente através do entretenimento, com filmes e jogos. Já a segunda e
terceira versões colocam os conteúdos relativos à Antiguidade sem uma
reflexão crítica, seguindo parâmetros adotados nos livros didáticos, que

32. Silva; Gonçalves, 2015, 9.

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seguem os mesmos modelos ainda de meados do século passado, que
podem levar a criação de estereótipos, e principalmente a ideia errônea
de que os povos do passado são mais “atrasados” do que os de agora.
Para uma mudança no tratamento da Antiguidade na educação bási-
ca, a defesa desse conhecimento deve ir além do argumento da “herança
da tradição clássica”, que claramente orientou a segunda versão e que
aparece de forma atenuada na terceira. A defesa da Antiguidade deve se
pautar na demonstração dos benefícios desse conhecimento para a vida
do aluno. Silva e Gonçalves destacaram bem o papel da História Antiga
no ensino da pluralidade cultural, defendendo que essa é a disciplina
que permite ao aluno o encontro radical com o diferente e a alteridade,
além de permitir o diálogo com outras disciplinas, em particular, a An-
tropologia e a Arqueologia.33 A História Antiga também possibilita ao
aluno a consciência de seu passado e faça reflexões sobre o seu presente,
alcançando um dos principais objetivos da História: fazer com que o su-
jeito tenha consciência do seu lugar no mundo, ponto colocado como
essencial na descrição do componente de História na segunda34 e tercei-
ra35 versões da BNCC.
Para uma mudança efetiva no ensino da Antiguidade na educação
básica temos que rever a forma como ela é apresentada nos livros didáti-
cos. Tal aspecto é importante diante do peso que o livro didático tem no
processo educativo, uma vez que ele é o recurso didático mais utilizado

33. Silva; Gonçalves, 2015, 7.


34. Esse estudo [o da História] favorecerá o exercício da cidadania na medida em que, comprome-
tido com o caráter complexo e plural desses nexos, estimule e promova o respeito às singulari-
dades étnico-raciais e culturais, e à liberdade de pensamento, de ação, de credo religioso, e de
opções políticas. Em suma, a partir de procedimentos e temas selecionados, o estudo da História
deve contribuir para a consciência de si e do outro, de modo que as identidades sociais possam,
compreensivamente, se constituir na relação com outras, dadas em diferentes tempos e espaços
sociais, e com elas conviver. Brasil, 2016, 155.
35. O exercício do “fazer história”, de indagar, é marcado, inicialmente, pela constituição de um su-
jeito. Em seguida, amplia-se para o conhecimento de um “Outro”, às vezes semelhante, mui-
tas vezes diferente. Depois, alarga-se ainda mais em direção a outros povos, com seus usos e
costumes específicos. Por fim, parte-se para o mundo, sempre em movimento e transformação.
Em meio a inúmeras combinações dessas variáveis – do Eu, do Outro e do Nós –, inseridas em
tempos e espaços específicos, indivíduos produzem saberes que os tornam mais aptos para
enfrentar situações marcadas pelo conflito ou pela conciliação. Brasil, 2017, 347.

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pelos professores no país e em muitos casos é o único instrumento aces-
sível para o profissional se manter atualizado, pois há uma carência de
material especializado e atual nas bibliotecas do país. Outro ponto fun-
damental é o fortalecimento dos cursos de História Antiga nas licencia-
turas de História com a atuação de profissionais especializados. O curso
de História Antiga deve ter a preocupação de demonstrar para os alunos
o intenso diálogo possível entre a Antiguidade e a Contemporaneidade
e também ter a preocupação de propor atividades que trabalhem com o
aspecto relacionado ao ensino de História Antiga na educação básica,
estimulando o aluno para essas reflexões e práticas. Há vários exemplos
positivos sobre a prática de ensino de História Antiga, como: i) o tra-
balho com documento textual realizado pelo PIBID da FURB, que in-
centivou o contato dos alunos do ensino fundamental com a fonte no
original, em grego, possibilitando aos alunos o desenvolvimento de ha-
bilidades de críticas de análise documental e também a reflexão sobre
a historiografia;36 ii) a elaboração da coleção didática do PET realizada
pela UFPR37 que trata de Pompeia; iii) o projeto Aprendendo com Clio
– Educação Patrimonial e Cultural Material da Antiguidade conduzido
pela UFRJ, que propõe atividades didáticas a partir de peças do acervo
do Museu Nacional;38 iv) e o projeto PROLICEN Vocabulário político da
Antiguidade: reflexões para o exercício da cidadania realizado na UFPB
numa parceria entre os cursos de História e Letras Clássicas.
O projeto Prolicen Vocabulário político da Antiguidade: reflexões para
o exercício da cidadania é orientado no tripé “ensino, pesquisa e exten-
são”, e tenta aprimorar o ensino da Antiguidade, com a demonstração do
importante papel que a universidade exerce para a construção desse co-
nhecimento e de sua divulgação adequada. O projeto nasceu da inquie-
tação ao constatar que os conceitos importantes para o entendimento do

36. Para mais informações vide http://www.periodicos.unir.br /index.php/ LABIRINTO/ article/ viewFi-


le/ 1158 / 1309
37. Para mais informações vide https://pethistoriaufpr.wordpress.com/
38. Para mais informações vide http://aprendendocomclio.wix.com/lhia

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mundo político eram muitas vezes dados sem sua associação histórica
com o período da Antiguidade, e quando isso acontecia era de forma frá-
gil, apenas indicando que a “Grécia foi o berço da democracia” ou que
“os romanos criaram a república”. Palavras como Democracia, República,
Senado, Monarquia, Oligarquia, Ditadura, Aristocracia são de uso comum
no nosso vocabulário e todas elas têm origem grega ou latina. Contudo, a
maioria dos alunos ao ingressar na universidade e cursar a disciplina de
História Antiga parecem ignorar esse fato e demonstram dificuldades ao
trabalharem com esses conceitos na temporalidade. Tal aspecto evidencia
lacunas do ensino dessa temática nos níveis fundamentais e médio, que
não conseguem de forma eficaz demonstrar a historicidade desses con-
ceitos, dando a impressão aos alunos que eles sempre existiram, apesar
de todo peso dos fatos políticos nos livros didáticos. A própria estrutura
linear da disposição dos conteúdos no livro didático reforça essa ideia e
a atual proposta da BNCC também corre o risco de corroborar para essa
impressão de atemporalidade para esses conceitos, mesmo focando as-
pectos políticos nas diferentes temporalidades.
Diante da análise de como os alunos ingressavam nos cursos de His-
tória e da temática da Antiguidade nos livros didáticos, foi planejado
um estudo sobre a construção do vocabulário político na Antiguidade a
partir da seleção de fontes textuais de diversos tipos, tais como o regis-
tro histórico, filosófico, dramatúrgico e retórico. O objetivo desse estudo
era a elaboração de materiais didáticos específicos para pensar os possí-
veis diálogos entre o mundo Antigo e o Contemporâneo voltados para
alunos da educação básica. Com isso, espera-se despertar no discente
e, consequentemente no aluno em fase escolar, a noção da importância
desses conhecimentos para a formação do cidadão, uma vez que é a par-
tir de seu vocabulário que ele encontra os elementos necessários para a
construção de sua argumentação teórica. Assim, um conhecimento mais
aprofundado do conceito ligado a esfera política irá permitir a constru-
ção de argumentos mais sólidos, tornando o sujeito mais consciente do
seu papel na política.

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O projeto está em andamento e conta com a participação de alunos
do curso de História e Letras Clássicas. A interdisciplinaridade foi um
aspecto presente desde a concepção do projeto, bem como a valorização
do diálogo e a construção de propostas coletivas. Dessa forma, o debate
e a integração do aluno no processo de construção do projeto foi uma
das preocupações dos professores orientadores. Formada a equipe, o pri-
meiro passo foi partir da realidade dos discentes para discutir o ensino
de História Antiga. Cada aluno narrou sua experiência no ensino funda-
mental e médio e na universidade. Apesar de os alunos terem estudados
em épocas diferentes e na rede privada e particular, a constatação foi
a mesma no que se refere ao ensino da Antiguidade durante a educa-
ção básica: o conteúdo relativo a Antiguidade foi apresentado no início
do Ensino Fundamental e não ocorreu uma discussão aprofundada no
que se refere ao vocabulário político, escopo da pesquisa. A maioria ain-
da relatou que durante o Ensino Médio, o conteúdo não foi ensinado e
somente na universidade teve um conhecimento mais elaborado sobre
a Antiguidade. Com a atual proposta da BNCC esse quadro tende a se
agravar, não tendo qualquer sinal de uma melhoria do ensino da Anti-
guidade na educação básica.
Depois de compartilharmos as experiências, realizamos leituras so-
bre o ensino de História Antiga e a maneira como ela é apresentada
nos livros didáticos. Muitos concordaram com os especialistas, emba-
sando sua argumentação nos relatos das experiências vivenciadas. Por
fim, analisamos um livro um livro didático do 1º ano do Ensino Mé-
dio adotado pela rede privada de João Pessoa. Verificou-se i) a dispo-
sição linear dos conteúdos e a divisão entre a Antiguidade Oriental e a
Antiguidade Clássica; ii) a ausência de documentos textuais originais,
utilizando adaptações; iii) utilização de imagens para representar do-
cumentos materiais sem a devida relação com o texto, reduzindo esses
documentos a ilustrações do texto; iv) a diagramação do livro com a
disposição entre as imagens e os textos não era feita de forma adequa-
da, deixando o livro com o aspecto de visualmente “poluído” e com

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várias imagens que não se relacionavam com o texto; v) a aproximação
da Antiguidade com a Contemporaneidade reforça a elaboração de es-
tereótipos – por exemplo, no início do capítulo sobre Roma Antiga,
há uma imagem de uma partida de futebol no Estádio do Pacaembu,
numa tentativa de relacionar ambos os períodos como uma política
de “pão e circo”; nesse caso, verifica-se uma analogia simplista desse
conceito, bem como toda a história romana reduzida estereótipo dos
espetáculos das arenas; vi) a Antiguidade é apresentada de forma dis-
tante da realidade do aluno.
Diante desse quadro, o grupo reafirmou a importância do contato
direito do aluno com a fonte histórica para o ensino da Antiguidade e
a carência dos livros em trabalhar com as fontes textuais. Por isso, prio-
rizou-se a seleção e o estudo de fontes textuais antigas que suscitassem
discussões sobre o vocabulário político, concentrando a discussão nos
seguintes autores: Heródoto, Aristóteles, Políbio e Tito Lívio. Foram se-
lecionados trechos que demonstrassem o conceito da democracia, mo-
narquia, oligarquia, aristocracia e tirania.
Após a seleção e análise da fonte, uma ficha foi elaborada com intuito
de auxiliar o professor no trabalho desta temática, possibilitando o con-
tato direto com a língua original. A ficha é composta pelas seguintes par-
tes: i) referência da fonte antiga – nome do autor, nome da obra, ano de
produção; ii) texto em português – com traduções realizadas pelos pró-
prios alunos; iii) texto original; iv) léxico – com a discussão dos termos
importantes para o entendimento da fonte; v) comentário – um breve
texto para auxiliar no entendimento da fonte; vi) tópicos a serem discu-
tidos em sala de aula – sugestões de temas que podem ser trabalhadas
pelo professor em sala de aula.
Acredita-se que o contato direito do discente com fontes antigas pos-
sibilitará a elaboração de materiais didáticos que problematizem a vi-
são generalista apresentada nos livros didáticos e desconstruam o senso
comum, possibilitando um diálogo ativo no processo de construção da
cidadania.

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Dessa forma, na atual conjuntura brasileira, o especialista em Anti-
guidade também deve estar em sintonia com a produção voltada para
a educação básica, acompanhando e opinando sobre a BNCC, além de
promover projetos que aprimorem o ensino da Antiguidade para além
dos muros da universidade.
O estudo da História Antiga é essencial para a formação do aluno e
está alinhada com a proposta maior da BNCC de promover um ensino
que busca a construção da cidadania e o reconhecimento da pluralida-
de cultural. Para tanto, a Antiguidade não pode mais ser apresentada de
forma estereotipada como aparece nos livros didáticos. O conteúdo da
Antiguidade tem um papel fundamental, pois demonstra para o aluno
que no passado havia culturas totalmente diferentes das de hoje, auxi-
liando no processo de aprendizagem da pluralidade. Além disso, possi-
bilita mecanismos para sua atuação na esfera política, o entendimento
do passado e do presente. Todos constituem elementos essenciais para o
exercício da cidadania baseada na tolerância com a diferença, a liberda-
de, o respeito e a participação ativa.

Referências Bibliográficas
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FINLEY, M. I. Democracia: antiga e moderna. Tradução de Waldéa Barcellos e San-
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Clarice Ehmke; SANTOS, Dominique Vieira Coelho dos. “Tá falando grego profes-
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ANTIGUIDADES E MEDIEVOS ENTRE OS
MUROS DA ESCOLA: UM EPÍLOGO
José Maria Gomes de Souza Neto1

À medida em que este livro se encaminha para o seu final, achei por
bem registrar o que pode ter sido o início de sua concepção: a Car-
ta Aberta que os professores de História Antiga e Medieval apresentamos
à sociedade quatro anos atrás. Segue-se o inteiro teor do documento:
 
Recife, 25 de novembro de 2015
Prezados colegas, desde o último mês de setembro, com a divulgação
da versão preliminar da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que
se encontra em consulta pública, é perceptível a ampliação das manifes-
tações contrárias à proposta. Através de eventos, fóruns e outros espaços,
os debates têm afirmado a insatisfação de diferentes setores da sociedade
com a construção da Base e com as orientações presentes na versão di-
vulgada. O componente curricular História, em especial, vem sofrendo
várias críticas de professores do Ensino Básico e Superior, e mesmo de
personalidades da educação, como o ex-ministro Renato Janine Ribeiro.
Entre os elementos presentes na versão da BNCC para o componen-
te História, um dos mais controversos é a exclusão das áreas de Anti-
ga e Medieval, que passam a ser conteúdos opcionais a serem definidos
pelos docentes. Tal orientação, no que pese a importância da defesa e
promoção da história Indígena, da história da África e mesmo da histó-
ria da América, pode ter resultados nefastos para o ensino de História,

1. Professor de História Antiga da Universidade de Pernambuco – Campus Mata Norte. Pós-doutor


em educação pela Universidade Federal de Sergipe.

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tanto nas escolas como nas Universidades. Consideramos que a História
deve trazer para o primeiro plano de análise regiões e povos que tra-
dicionalmente foram alijados da escrita oficial de nosso país e mesmo
do Ocidente, porém isso não deve ser feito em detrimento das expe-
riências humanas na antiguidade e no medievo, as quais forjaram, em
grande medida, o mundo em que vivemos atualmente. Os efeitos de tais
experiências extrapolam amplamente os limites geográficos do chamado
mundo ocidental e suas ressignificações, ao longo dos séculos, deixaram
e ainda deixam marcas indeléveis em inúmeras culturas de várias regiões
do globo. A língua portuguesa e o cristianismo, dois elementos consti-
tuintes e definidores da sociedade e da cultura brasileira, são dois exem-
plos claros deste processo.
Em outras palavras, a valorização dos povos ameríndios sem es-
crita não pode ocorrer em prejuízo do ensino da importância do sur-
gimento da escrita na Mesopotâmia milênios antes de Cristo. Afinal,
como entender nosso mundo contemporâneo sem que observemos
como ele começou a ser construído? Como compreender a introdução
do cristianismo na América sem conhecer o processo de afirmação e
expansão do discurso cristão no Império Romano e nos séculos ditos
medievais? Como entender a concepção moderna de democracia, sem
que reflitamos sobre a emergência dessa prática política na Antigui-
dade Oriental e seus desdobramentos na Antiguidade Clássica? Dessa
forma, consideramos, no mínimo, tendenciosa qualquer proposta que
limite as experiências cognitivas dos alunos, tal como nos apresenta a
versão publicada da BNCC.
Entendemos que os conteúdos de história Antiga e Medieval na
educação básica são indispensáveis ao desenvolvimento da capacida-
de reflexiva dos estudantes para lidar com aspectos político-culturais
que compõem as nossas experiências cotidianas, tanto no campo das
práticas religiosas, como o cristianismo, quanto no campo das práti-
cas políticas, como concepção de democracia e res publica, para citar
alguns exemplos; além disso, contribui para desnaturalizar a forma

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como nossa sociedade está organizada, porquanto permite entendê-la
como uma invenção humana.
Destaca-se, outrossim, a importância do exercício da alteridade
histórica, elementar a este componente curricular, uma vez que nos
permite compreender a formação e a dinâmica de sociedades diferen-
tes da nossa a partir de suas próprias categorias de pensamento, visões
de mundo e expectativas sobre a vida bem como modos de agir e pen-
sar, crenças e percepções de si e do outro particulares, já que construí-
das no tempo. Sob esta ótica, ler os clássicos torna-se uma atividade
indispensável à formação escolar, não na perspectiva de uma cultura
a ser emulada, mas como diferença que permite repensar nosso lugar
no presente.
Um dos agravantes envolvidos na atual versão da BNCC é a forma
como a proposta vem sendo construída. Com uma elaboração feita por
profissionais em sua maioria não identificados e com apenas a abertura
para o envio de contribuições, a Base peca por não resultar do debate
democrático entre um número significativo de profissionais da educa-
ção em suas diferentes instâncias. Entendemos que a BNCC tem uma
importância capital para os rumos da educação no país e, desta maneira,
deveria ser formulada levando em consideração os fóruns de licenciatu-
ras e pós-graduações, os conselhos de educação, as associações de cada
área e mesmo o maior número de profissionais e estudantes reunidos em
eventos específicos construídos pelo Ministério da Educação.
Destarte, nós, docentes das áreas de História Antiga e Medieval das
regiões Norte e Nordeste, tomamos uma posição contrária à atual versão
do BNCC e defendemos a revisão da proposta e a ampliação dos debates
acerca da mesma. Nesse sentido, mantemos a discussão entre os pro-
fessores da região e projetamos formas de atuarmos nesse importante
embate educacional. Aproveitamos a oportunidade para manifestar nos-
so apoio e solidariedade aos docentes do Rio de Janeiro e à ANPUH-RJ
que, após uma jornada dedicada à discussão do tema, decidiram pela
continuidade da mobilização e encaminharam, para o próximo dia 26 de

Antigas Leituras: Ensino de História • 459

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novembro, uma reunião visando a uma intervenção articulada nessa luta
que está sendo travada por todos os profissionais do Brasil2.

Esta carta foi assinada pelos mais diversos profissionais das duas re-
giões3, muitos dos quais hoje são autores de capítulos deste livro, que
veio à luz quase quatro anos após o documento. Cabe, então, uma per-
gunta honesta: após tantas águas corridas, aquelas palavras ainda encon-
tram eco? Digo sem tergiversar: sim.
Encontramo-nos, todos os profissionais de História, mas ainda mais
especificamente aqueles que lidam com o ensino escolar, diante de uma
esquina delicada, que me traz à mente as palavras de Caetano Veloso e
Gilberto Gil, na voz singular de Gal Costa:

Atenção ao dobrar uma esquina


Uma alegria, atenção menina.
Você vem? Quantos anos você tem?
Precisa ter olhos firmes/
Para este sol, para esta escuridão.
Atenção, tudo é perigoso!
Tudo é divino, maravilhoso!4

A esquina pede atenção à menina, cobra dela estar alerta ao mundo


novo que se desdobra diante de si, ou como bem colocaram Marcelo e
Thiago, a encontrar um “caminho viável em meio a tantas novidades de

2. Disponível em https://anpuh.org.br/index.php/bncc-historia/item/3149-carta-de-professores-do-
-norte-e-nordeste-sobre-a-bncc Acesso em 17/02/2019.
3. Roberta Alexandrina da Silva (UFPA); José Maria Gomes de Souza Neto (UPE); Douglas Mota
Xavier de Lima (UFOPA); Adriana Zierer (UEMA); Silvia Siqueira (UECE); Serioja Mariano (UFPB);
Renan Birro (UNIFAP); Renato Pinto (UFPE); Marcus Baccega (UFMA); José Petrúcio de Farias
Júnior (UFPI); Priscilla Gontijo Leite (UFPB); Márcia Severina Vasques (UFRN); Sínval Carlos Mello
Gonçalves (UFAM); Verônica Aparecida Silveira Aguiar (UNIR); Joana Clímaco (UFAM); João Paulo
Charrone (UFPI); Pâmela Torres Michelette (UFPI); Bruno Gonçalves Alvaro (UFS); Marcelo Pereira
Lima (UFBA); Luciano José Vianna (UPE).
4. Divino, maravilhoso. Caetano Veloso, Gilberto Gil, 1968. Gravada por Gal Costa em seu lp homô-
nimo de 1969.

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luzes piscantes, pixels e apps”. Desafio? Indubitavelmente. É possível ne-
gá-lo? Claro que não. Lembrando uma frase da introdução de Por que ler
os clássicos?, de Ítalo Calvino, a biblioteca do príncipe Don Fabrizio de
Salina (personagem de O Leopardo, de Lampedusa) explodiu. Das tabui-
nhas cuneiformes às necrópoles egípcias, de obscuras produções cine-
matográficas da Europa Oriental aos blockbusters hollywoodianos, mais
jogos, quadrinhos, teatro... tudo está progressivamente acessível, ainda
mais quando a popularização tem feito dos smartphones um compa-
nheiro de boa parte dos estudantes das grandes cidades brasileiras.
Não creio ser este um momento de encolhimento, de reação a essas
possibilidades, mas antes de interação com elas, de aceitar os desafios
a que nos apresentam, refletir e, sobretudo, agir diante deles, imbuídos
de espírito semelhante àquele que Lucien Febvre e outros fundadores da
Escola dos Annales tiveram quando iniciaram o movimento historiográ-
fico mais importante do século passado:

que não queria rodear-se de muralhas, mas sim fazer irradiar largamen-
te, livremente, indiscretamente mesmo, sobre todos os jardins da vizi-
nhança, um espírito, o seu espírito: isto é, um espírito de livre crítica e de
iniciativa em todos os sentidos.5

A questão fundamental, acredito, não reside na exclusão dos estudos


de Antiga e Medieval dos currículos (um risco que, de resto, não está
completamente descartado), mas na maneira como esses estudos dialo-
gam com o mundo que nos cerca: o currículo “não é um conceito, mas
uma construção (...) de certa conjuntura social envolvida por determi-
nados interesses, e neste sentido os significados do currículo devem ser
entendidos em seus contextos”6. O enredo que nos envolve a todos no

5. Febvre, Lucien. Combates pela História. Lisboa: Editorial Presença, p. 29.


6. SILVA, Lucas Melo da. Da paróquia ao município: ensino confessional da Escola Juvenato Padre
Guedes (1971-1995). Monografia de conclusão de curso apresentada ao Departamento de His-
tória da Universidade Federal de Pernambuco. Recife: UFPE, 2018, p. 15.

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presente momento nos desafia a repensarmos nossas escolhas curricu-
lares, rejeitando o imobilismo e reconhecendo-as como elemento essen-
cial à formação do cidadão brasileiro, ou como bem colocou Priscilla,
“auxiliando no processo de aprendizagem da pluralidade”: outros mun-
dos foram, são e serão possíveis, construídos por homens e mulheres
conscientes de seu papel histórico e do peso da atuação e das escolhas
individuais e coletivas. Os determinativos de etnia, classe, gênero, cren-
ça, dentre outros, precisam ser postos à prova, confrontados com a rea-
lidade que nos cerca. A reflexão que advém desse movimento é essencial
para que nossos estudos permaneçam vivos e relevantes, estimulando
nos alunos, em todos os níveis, uma “atitude historiadora”, capaz de
“pesquisar, buscar informações, analisá-las e selecioná-las; (...) aprender,
criar, formular, ao invés do simples exercício de memorização”7.
O ensino de Antiga e Medieval no Brasil escorava sua existência na
grade curricular nacional quase como um imperativo autoexplicativo, a
serviço a um projeto nacionalizante que estruturou os estudos em con-
teúdos da tradicional história positivista e privilegiou alguns eventos,
em detrimento de inúmeros outros, por considerá-los de caráter mais
global8; a noção de História Universal na qual o país se inseriu no sé-
culo XIX e permanece, com adequações, até agora, marcava seu início
na Antiguidade, nos egípcios e mesopotâmicos, daí a gregos e romanos,
numa concatenação linear que, eventualmente, chegaria até nós – nossa
história se iniciava com a chegada dos portugueses, que por sua vez si-
tuavam-se no recorte temporal mais amplo da Idade Moderna, seguin-
do assim a torrente histórica humana até a Contemporaneidade. Nesse
perfil, a Antiguidade estava solidamente localizada logo no início do
percurso, com as pirâmides, a democracia e a res publica como raízes de
tudo o que veio a seguir.

7. PCNEM, 2000, p.06. Disponível em http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/pdf/BasesLegais.pdf


Acesso em 22/02/2019.
8. Cf FONSECA, Thais Nivia de Lima e. História & ensino de história. Belo Horizonte: Autênti-
ca, 2006.

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Essa segurança, contudo, trazia em si o micróbio da rigidez, da falta
de contato com o mundo que rapidamente se transformava, em especial
a partir de finais dos anos 1980; mais de 30 anos se passaram, e a História
precisa lidar com outros temas: a urgente ampliação da África e da cultu-
ra afro-brasileira nos currículos escolares, a maior presença das mulheres
nas análises e nas discussões, a premente necessidade do conhecimento das
sociedades indígenas, as iminentes entradas de novos grupos, tais como a
comunidade homossexual9. Nesse mundo novo que se abria, as Histórias
Antiga e Medieval apoiavam-se num único pé, na canela fina da tradição,
e se não dessem o próximo passo, cairiam. Felizmente, esse passo tem sido
dado. A ampliação dos vários grupos dedicados à temática, a percepção
dos vieses imperialistas na estruturação interna da disciplina e seu conse-
quente combate através da inserção transversal de novos problemas, abor-
dagem e objetos, foram abertamente defendidos na Carta Aberta que cita-
mos, à qual se seguiram outros documentos de semelhante teor. Evidente
que ações precisariam ser envidadas para que o diálogo do tempo vivido
com a Antiguidade e o Medievo fosse salientado na sala de aula, e que o
simples costume não mais bastava para manter essas, ou quaisquer outras,
temáticas na grade curricular – ou como bem colocou Circe Bittencourt, “a
manutenção de uma disciplina escolar no currículo deve-se à sua articula-
ção com os grandes objetivos da sociedade”10 objetivos esses que vão além
dos conhecimentos específicos de cada área.

“A formação histórica, no movimento de aprendizado da objetivida-


de para a subjetividade”, afirma Jorn Rüsen, “significa também uma
flexibilização fundamental dos próprios pontos de vista do sujeito, uma

9. “A memória social e lutas históricas de determinados grupos, muitas vezes, não correspondem
à ortodoxia do pensamento histórico, que é apresentada em livros aprovados pelos organismos
oficiais do Estado”. MOERBECK, Guilherme. Caminhos possíveis para o ensino de História Antiga
na Educação básica: discussões preliminares. In BUENO, André; CREMA, Everton; ESTACHESKI,
Dulceli; NETO, José [org.]. Aprendizagens Históricas: debates e opiniões. União da Vitória/Rio de
Janeiro: LAPHIS/Edições especiais Sobre Ontens, 2018. p. 140.
10. BITTENCOURT, Circe. O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2008, p. 17.

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determinada forma de posição própria do sujeito ao apropriar-se inter-
pretativamente da experiência do passado. Posições originalmente só afir-
madas, com suas percepções seletivas, rígidos modelos de interpretação e
hirtas pretensões de validade, são capacitadas a transformar-se pela argu-
mentação aberta”11.

Creio que este seja um movimento relativamente pacificado dentro


da comunidade dos profissionais de História, mas não necessariamente
fora dela.
A esquina de que falamos anteriormente complexificou-se, transfor-
mou-se uma encruzilhada, na qual aos desafios impostos pelas novas tec-
nologias somaram-se o delicado contexto político em que nos encontra-
mos. Para os extremistas da direita, useiros e vezeiros na demonização do
professor em todos os níveis, a Antiguidade e o Medievo estão na ordem
do dia, embora não necessariamente da maneira como as refletimos:

É interessante ler lado a lado os historiadores europeus que escrevem hoje


sobre a Grécia e Roma, por exemplo, ou sobre qualquer outro assunto, e
aqueles que escreviam no século XIX, antes do grande cataclisma, da gran-
de desnacionalização do Ocidente a partir da I Guerra. Aqueles de então
viam‑se claramente dentro da história que contavam, participavam, fala-
vam com a paixão e o empenho de quem sente, de quem conhece as pes-
soas de que fala, eram íntimos de Péricles e Godofredo de Bulhões. Os de
hoje escrevem uma história fria, seus personagens não têm vida, são meras
figuras esquemáticas, parece que estão escrevendo história por obrigação,
nenhum sentimento do destino ou do mistério os conduz, não têm ima-
ginação, não conseguem ver‑se a si mesmos empunhando uma lança na
falange macedônia ou içando as velas na Santa Maria.12

11. RÜSEN, Jorn. História Viva: Formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Ed. UNB,
2007, p. 107.
12. ARAÚJO, Ernesto Henrique Fraga. Trump e o Ocidente. In Cadernos de Política Exterior. Brasília:
Fundação Alexandre de Gusmão, ano III • número 6 • segundo semestre 2017, p. 346.

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O que o autor, atual ministro das Relações Exteriores, pode querer ter
dito com esse parágrafo? O que vem a ser uma “história fria”? Ora, como
uma das questões mais importantes para a historiografia (e o ensino de
história) no século XXI é, precisamente o resgate do estilo, da fluência
narrativa, não haveria uma confluência de objetivos? Não, porque a pena
deste político está embriagada de profundo sentimento anti-globalizan-
te (ou anti-globalismo, como preferem chamar), do suposto resgate de
supostas tradições antigas e medievais, livres da problematização que a
historiografia vem levantando desde inícios do séc. XX, a qual Araújo, e
a ideologia por ele corporificada, despreza.
Esse passado – evocado, sumarizado, pela expressão latina Deus Vult13
(“Deus quer”, associada ao início da Primeira Cruzada) – retoma leituras
imperialistas que julgávamos ultrapassadas: na ponta da lança macedônica
estão os persas, símbolos do Oriente que precisava ser batido para sobre-
vivência, e resplendor, do Ocidente; a caravela de Colombo parte para as
Américas, conquista as almas dos silvícolas para honra e glória do Senhor
Jesus Cristo e gáudio-mor dos reis de Espanha (e Portugal), mas não cabem
nesse horizonte senões relativos aos custos humanos, ao fanatismo inerente;
tampouco os esforços de alteridade, da compreensão do diferente.
A narrativa do ministro Araújo lança mão de uma linearidade que,
dentre outras coisas, não distingue o tempo mitológico do factual, reu-
nindo-os todos sob a efígie da dominação ocidental (e branca e mascu-
lina) do mundo:

Os europeus de hoje não sentem mais que façam parte da mesma histó-
ria que seus antepassados, como sentiam até o começo do século XX. Já

13. “Em anos recentes, o brado “Deus vult” foi apropriado pela extrema direita na Europa e nos
Estados Unidos, e agora tornou-se um slogan para a extrema direita no Brasil. (…) No Brasil de
Bolsonaro, o novo governo e os grupos de extrema direita divulgam uma versão ficcionalizada
do Medievo europeu, insistindo que o período foi uniformemente branco, patriarcal e Cristão.
PACHÁ, Paulo. Why the brazilian far right loves the european middle ages. Pacific Standard Ma-
gazine, 18 de fevereiro de 2019. DIsponível em https://psmag.com/ideas/why-the-brazilian-far-
-right-is-obsessed-with-the-crusades?fbclid=IwAR3MiHYRyfwIsqgMaz-_eTcZbxL3bHg6r2hyTE-
60qfvnGGD_Z9nBr7Rh50o Acesso em 24/02/2019.

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não se percebem como atores do mesmo drama que colocou em cena os
cretenses e seu minotauro, os aqueus às portas de Troia, Eneias caindo
de joelhos ao entender que o Lácio era sua terra prometida (salve fa-
tis mihi debita tellus), Salamina e as Termópilas, Alexandre em busca da
imortalidade, Aníbal com seus elefantes às portas de Roma, as legiões
chegando à Lusitânia e maravilhando‑se ao contemplar pela primeira
vez as ondas majestosas do Atlântico, o logos de Heráclito e o logos de
São João, São Paulo pregando o Cristo‑Deus, o sonho de Constantino, a
conversão dos germanos e a conversão dos vikings, a cruzada dos barões
e a dos eremitas, São Francisco com os passarinhos ao ombro, Percival
e o Rei Artur, a partida das caravelas, as teses de Lutero, a Bastilha e a
Vendeia, Napoleão batido pelo inverno, Lourdes e Fátima, Sédan e Ver-
dun, Omaha Beach. Nada disso significa mais nada para um europeu – é
como se ele houvesse deixado o palco e sentado‑se na plateia, “já não é
comigo”14.

Esta genealogia, e as certezas que imbui, tem muito mais a ver com
as crenças religiosas do que com o conhecimento científico ou filosófi-
co; clara e declaradamente evoca um passado mítico sem reconhecê-lo
como tal, um produto das crenças, ideologias e contextos que o criaram.
Pelo contrário, afirma-se não ideológica, verdadeira, fática – logo, a úni-
ca digna de ser ensinada nas escolas.
Essa história, que se quer “quente” e “vívida”, é, em verdade, sinônimo
de exclusão, de um idealismo perverso e hegemônico que não reconhece
a diversidade nem como valor nem como dado da realidade, e que tem
se manifestado em associação a movimentos como o Escola sem Partido,
seja nas universidades, seja nas escolas.
Nesse ponto, desafios e perigos convergem diante de nós, pois como
bem colocou Guilherme, “a consciência da realidade é relevante na me-
dida em que se possa diferenciar fenômenos históricos reais dos fictícios, o

14. ARAÚJO, Ernesto Henrique Fraga. Trump e o Ocidente. In Cadernos de Política Exterior. Brasília:
Fundação Alexandre de Gusmão, ano III • número 6 • segundo semestre 2017, p. 345.

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que é uma tarefa difícil, sobretudo para os mais jovens”. Observem que a
proficiência do profissional de história nos artefatos tecnológicos que a
maré do tempo trouxe até a nossa praia é fundamental para que nossa
função de promotores da consciência da realidade seja mais bem alcan-
çada, mormente num cenário caracterizado pelas fake News – ao fim e
ao cabo, nada além das velhas mentiras, que a atualidade celebriza sob
uma terminologia anglófona e moderna. Distinguir realidades de fatos,
mitos de “mitos”, é um dos objetivos da educação, para o qual somos,
mais do que nunca, fundamentais.
É preciso, pois, mantermo-nos atentos aos desafios e perigos que nos
espreitam nas esquinas e nas encruzilhadas, pois nossas temáticas são,
cada vez mais, relevantes no tempo em que vivemos.

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