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ENGENHARIA RURAL

Alternativa energética

Palhiço de cana,
fonte de energia renovável
Marco Lorenzzo Cunali Ripoli, Tomaz Caetano Cannavan Ripoli e Carlos Antonio Gamero *

A dependência da sociedade moderna


MARY ABBOUD/AE

em relação ao petróleo, associada às in-


certezas de ordem político-militar na
principal região produtora mundial, tem
levado inúmeros países à criação de pro-
gramas buscando novas fontes alterna-
tivas de energia. Países, como Israel,
vêm investindo maciçamente no desen-
volvimento de equipamentos para o
aproveitamento da energia eólica, das
marés e solar, cujos resultados têm sido
bastante satisfatórios. Na Finlândia, a
geração descentralizada de energia é
uma tradição e a biomassa ocupa uma
importante posição na matriz energéti-
ca, atingindo por volta de 20% do consu-
mo de energia do país. Nos Estados Uni-
dos, a capacidade instalada de plantas
geradoras de eletricidade a partir de bi-
omassa, no final dos anos 1970, era de
apenas 200 MW; já no início da década
de 1990, atingia 8,4 GW.
Sayigh (1999) estabelece que a energia
renovável é uma commodity como qual-
quer outra forma de energia e tem seu
maior papel no encontro das necessida-
des globais de demanda por energia e no
combate do perigo do aquecimento glo-
bal. O autor comenta as previsões da
Shell International Petroleum Company
sobre o cenário do mercado de energia
para o ano 2060, quando o uso de ener-
gias renováveis no mundo poderá atin-
gir 70% da energia utilizada, contra os 5%
atuais. Segundo a Aneel (2002), estavam

68 Palhiço em soqueira de cana-de-açúcar; Sertãozinho, SP; 1996


S O LO S

em operação no Brasil 159 termelétricas momento, o palhiço vem sendo limitada- ainda, o impacto ambiental da queima
a biomassa, fornecendo uma capacida- mente aproveitado, pois é queimado em será totalmente anulado ao ocorrer uma
de instalada de 992 MW (equivalente a mais de 90% de sua quantidade, como precipitação pluviométrica. A chuva
8% do parque térmico de geração e a 1,4% operação de pré-colheita. “lava” a atmosfera, principalmente se for
de toda a capacidade instalada no país). O Brasil, que não vem conseguindo de média duração e de gotas pequenas.
Dessas, quatro usinas operavam com re- ampliar satisfatoriamente seu parque O custo de produção de energia elétri-
síduos de madeira (25,5 MW) e três com hidrelétrico, apresenta um potencial ca por co-geração está entre US$ 0,035
casca de arroz (14,4 MW). As demais uti- nada desprezível em relação à biomas- e US$ 0,045 por kWh, considerando-se o
lizavam o bagaço de cana-de-açúcar, sa vegetal. O binômio “energia de bio- preço da tonelada de bagaço combustí-
com amplo predomínio do Estado de São massa – controle ambiental” deveria ser vel em US$ 6,30, enquanto que a mesma
Paulo. meta prioritária das políticas energéti- energia comprada da rede oficial custa
No Estado de São Paulo, o setor gera cas e ambientais do governo. A cultura US$ 0,066. Os investimentos médios
para consumo próprio entre 1.200 e 1.500 canavieira hoje se insere perfeitamente para um sistema de co-geração, por kWh
MW, 40 usinas produzem excedentes de nesse contexto, pois apresenta grande instalado, situam-se entre US$ 900 e US$
158 MW, “e a luz que vem da cana já aju- potencial energético não aproveitado 1.150, inferiores aos observados em hi-
da a iluminar diversas cidades”. O poten- totalmente e, em decorrência, tem se drelétricas, e com a vantagem do menor
cial de geração de energia da agroindús- tornado agente causal de poluição am- prazo de instalação (Copersucar, 2001).
tria canavieira está em torno de 12 mil biental, mesmo que não seja o mais im-
MW – a potência total instalada no Bra- portante deles. A poluição ambiental RECOLHIMENTO É A QUESTÃO
sil é de 70 mil MW. Em 2002, em função causada pelos motores de combustão Atualmente, não resta nenhuma dúvi-
de novos projetos, mais 300 MW devem interna movidos a gasolina e, principal- da de que o palhiço é um material nobre
ser adicionados e, em curto prazo, o se- mente a óleo diesel, é muito maior do e de interesse econômico para as usinas
tor poderá contribuir com 4 mil MW adi- que a causada pela queima de biomassa do país. A grande questão que se discu-
cionais (Unica, 2003). No Brasil, apesar agrícola, como prática de pré-colheita. te é quanto ao melhor sistema para re-
da necessidade do país de buscar alter- Sobre a questão das queimadas causa- colher e disponibilizar esse material no
nativas, o governo tem oferecido tímido rem ou não poluição há, segundo estu- pátio da usina, sob o ponto de vista de
respaldo para tais iniciativas, nos últi- dos científicos, alguns pontos funda- eficiência energética dos sistemas, da
mos anos e atualmente. mentais que devem nortear qualquer quantidade de terra arrastada com o
O fato de o Brasil, em 2003, já abaste- discussão a respeito. O impacto ambien- material e em relação ao custo, posto na
cer 80% de suas necessidades de petró- tal da queima (de matéria vegetal ou de usina, em termos de R$/equivalente
leo não invalida a necessidade de busca combustíveis fósseis) depende do volu- energético, na forma de palhiço. A USP/
por outras opções que diversifiquem me de material lançado na atmosfera e ESALQ, a FCA/Unesp – Botucatu e o Gru-
nossa matriz energética, hoje calcada no do seu potencial poluidor. A queima de po Cosan S.A., em parceria, estão estu-
petróleo e nas hidrelétricas. Não há país uma certa quantidade de folhas secas, dando três sistemas de recolhimento do
no mundo – por sua localização, por sua quando muito, pode causar incômodo ao palhiço. Resultados parciais estão indi-
extensão territorial e pela tecnologia já vizinho; já a queima de 200 ou 300 pneu- cando que, em termos de “eficiência
desenvolvida e disponível (sem pagar máticos empilhados causará uma grave energética”, os sistemas de enfardamen-
royalties para multinacionais) – que deterioração da qualidade ambiental e, to, de recolhimento a granel e de colhei-
melhores condições possua para o apro- inclusive, poderá levar pessoas a inter- ta integral apresentam valores acima de
veitamento da energia de biomassa, prin- nações hospitalares por problemas res- 95%, ou seja, de cada 100 unidades de
cipalmente a proveniente da cana-de- piratórios e por alergia, principalmente. energia posta na usina, na forma de pa-
açúcar, já de grande importância socioe- Por outro lado, um regime de fluxo de lhiço, consomem-se, no máximo, 5 uni-
conômica para o país. Em um hectare de 300 veículos por hora numa rodovia, dades de energia na forma de óleo die-
canavial, pode-se obter em torno de deslocando-se a 80 ou 100km/h tem sel, em todas as operações envolvidas,
67.080 Mcal, assim distribuídos: 20,09% pouco efeito sobre o ambiente. Todavia, demonstrando a grande viabilidade, em
álcool, 40.03% bagaço e 39,88% palhiço 300 veículos deslocando-se em marcha termos de “eficiência energética”, de se
(Tabela 1). Este último é constituído por lenta por ruas estreitas de uma cidade, aproveitar essa biomassa.
ponteiros, folhas verdes e palhas, colmos com trânsito totalmente congestionado, A respeito da quantidade de terra ar-
não colhidos e/ou suas frações, mais ter- certamente irão deteriorar gravemente rastada, o que melhor resultado vem
ra agregada a esses constituintes. Até o a qualidade do ar da localidade. Mais apresentando é o enfardamento seguido

VISÃO AGRÍCOLA Nº 1 JAN | JUN 2004 69


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E.G.F. BEAUCLAIR/USP ESALQ


ceberá pela energia produzida por co- do, efetivamente, para a melhoria da
geração. E, mais, chegará o momento em matriz energética brasileira, calcada e
que os fabricantes de colhedoras serão perigosamente dependente do petróleo
pressionados pelos usuários a oferece- e das hidrelétricas (ultimamente, depen-
rem ao mercado colhedoras mais bara- dente também do funcionamento de ter-
tas (por volta de 30%) do que as atuais, moelétricas de aluguel, movidas a gás ou
pois serão fornecidas com motores de a derivados de petróleo, levando o cida-
potência em torno de 20% menor (os atu- dão brasileiro a pagar mais em sua con-
ais possuem de 300 a 350 CV), que con- ta, no fim do mês).
sumirão menos óleo diesel por hora ou
por tonelada colhida. Motores hidráuli- DHR, MAIS UMA OPÇÃO
cos que acionam os mecanismos de lim- O bagaço ou o palhiço da cana podem ser
peza serão desnecessários, bem como utilizados também para incrementar a
Sulcos em área de cultivo mínimo; Rio mangueiras do circuito hidráulico, exaus- produção de álcool, por um processo
das Pedras, SP; 1985
tores, ventiladores e despontador. Por- lançado em 2003 pelo Grupo Dedini, de
tanto, serão máquinas cujos custos de Piracicaba, denominado de DHR – Dedi-
operação, manutenção e reparo serão ni Hidrólise Rápida. Diferentemente do
da colheita integral. Em relação ao cus- menores que os das atuais, o que levará processo tradicional de produção de ál-
to por quantidade de energia posta na a uma redução significativa nos custos cool por meio da fermentação e destila-
usina, na forma de palhiço, a colheita do sistema de colheita. ção dos açúcares contidos no caldo da
integral do canavial por colhedoras Ainda em termos de colheita integral, cana-de-açúcar, esse processo, por ati-
combinadas é o que melhor resultado visando ao aproveitamento do palhiço, vidade química chamada hidrólise ácida,
vem apresentando. Entenda-se por co- não se devem esquecer mais alguns as- transforma o material celulósico do ba-
lheita integral aquela em que as colhe- pectos. Por exemplo, não serão necessá- gaço ou palhiço em açúcares, os quais,
doras operam com seus sistemas de lim- rios novos investimentos em equipa- fermentados e destilados, se transfor-
peza desligados. Assim, toda massa co- mentos, tais como: colhedoras de forra- mam em álcool. O início de seu desen-
lhida pela máquina (colmos e ponteiros, gem (que recolhem o palhiço a granel e volvimento ocorreu na década de 1980.
folhas verdes, palha e terra) vai ter à uni- que são importadas); enfardadoras (ci- Foi aprovado e financiado por agências
dade de transbordo. Optando-se pela líndricas ou prismáticas, de grande ca- governamentais brasileiras, com recur-
colheita integral, obviamente, haverá pacidade e importadas, havendo no sos provenientes do Banco Mundial. O
necessidade de se instalar uma estação mercado nacional dois fabricantes do processo DHR possui patente mundial.
de pré-limpeza antes das mesas de re- tipo fardo cilíndrico, de menor desem- No atual estádio de desenvolvimento, a
cepção das usinas, pois a matéria-prima penho, entre outras); veículos especiais produtividade é de 109 litros de álcool de-
proveniente dessa prática não poderá para o transporte do material; área de
ser enviada diretamente à mesa de re- estocagem no pátio da usina e máquinas
cepção, sob o risco de causar inúmeros para manipular o volume estocado.
problemas na qualidade do esmagamen- TABELA 1 | DISTRIBUIÇÃO DA ENERGIA CON-
A colheita integral evitará, ainda, o
TIDA EM UM CANAVIAL COM 60t/ha DE MA-
to, com prejuízos econômicos. tráfego dessas novas máquinas, que pas- TÉRIA-PRIMA E O EQUIVALENTE ENERGÉTICO
Algumas usinas, em São Paulo, já uti- sariam a fazer parte do sistema mecani- EM RELAÇÃO A OUTROS COMBUSTÍVEIS
lizam essas estações. Com a introdução zado das usinas, quais sejam, das forra- PRODUTOS QUANTIDADES
delas (já utilizadas, amplamente em geiras ou enfardadoras e unidades de Álcool 4.500 L
Cuba e denominadas de centros de acó- transporte que, ao transitar sobre o ta- Bagaço 15 t
pio), os custos de produção de açúcar e lhão, causam maior compactaçãoes do Palhiço 12 t
álcool terão um acréscimo. Todavia, es- solo e esmagamento de soqueiras, com
Materiais Equivalentes
timativas dão conta de que o valor do conhecidos reflexos negativos em safras
Petróleo (barril.t) 1,28
investimento e de manutenção poderá seguintes. Além disso, não seriam neces-
Petróleo (barril.ha) 31,90
ser amortizado em torno de dois anos, sárias novas equipes de controle e ge-
Óleo diesel (L/t) 228,49
considerando-se esse custo no custo to- renciamento. O palhiço, hoje, passa a ser
tal do sistema de recolhimento do palhi- Óleo diesel (L/ha) 5.524,20
uma fonte a mais para agregação de va-
ço e do quanto a unidade industrial re- Etanol (L/ha) 9.736,32
lor ao setor sucroalcooleiro, concorren-

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FIGURA 1 | OPÇÕES DE SISTEMAS DE RECOLHIMENTO E DISPONIBILIZAÇÃO DO PALHIÇO PARA de. É importante, todavia, efetuar balan-
CO-GERAÇÃO OU PRODUÇÃO DE ÁLCOOL
ços energéticos, caso a caso.
Nesse novo cenário promissor para a
PALHIÇO NO TALHÃO agregação de valor, por meio do aprovei-
tamento do palhiço e do bagaço para co-
geração de energia ou produção de álco-
ENLEIRAMENTO COLHEITA ol a partir dessas biomassas, deve-se le-
(1,2 OU PASSADAS) INTEGRAL
vantar uma nova questão de interesse
direto dos fornecedores de cana-de-açú-
car. Atualmente, pelos métodos de paga-
ENFARDAMENTO A GRANEL
(CILÍNDRICO OU PRISMÁTICO)
mento de cana, a quantidade de matéria
(RECOLHEDORA PICADORA)
estranha vegetal que acompanha a ma-
CARREGAMENTO
téria-prima leva a um deságio no valor da
TRANSBORDO
(CARREGADORA DE CANA) tonelada da cana entregue. Ora, se o ba-
gaço passa a ser uma biomassa que per-
CARREGAMENTO mite agregação de valor para a usina,
(CARREGADORA DE CANA)
PRENSA porque os fornecedores não devem ser
TRANSPORTE ALGODOEIRA
beneficiados por tal incremento econô-
DESCARGA
(CARREGADORA DE CANA) mico? A questão não é simples, mas me-
TRANSPORTE rece ser discutida, para se chegar a um
ESPECÍFICO consenso, permitindo transferência de
ESTOCAGEM
renda a eles, em função do que for co-
gerado ou produzido, em álcool, a partir
DESENFARDAMENTO ESTAÇÃO DE
(TRITURADOR) dessa biomassa.
LIMPEZA DE CANA

*Marco Lorenzzo Cunali Ripoli é doutoran-


ESTAÇÃO DE
LIMPEZA DE PALHIÇO ESTOCAGEM do da Faculdade de Ciências Agronômicas
(FCA) da Unesp, Botucatu;
Tomaz Caetano Cannavan Ripoli é
FORNALHA professor do Departamento de Engenharia
Rural da USP/ESALQ, Piracicaba
(ccripoli@esalq.usp.br),
Carlos Antonio Gamero é diretor da
Fonte: Ripoli; Ripoli (2002)
Faculdade de Ciências Agronômicas(FCA) da
Unesp, Botucatu.
sidratado por tonelada de bagaço in na- da temperatura e neutraliza-se o produ-
tura, com potencial para atingir 180 litros. to hidrolisado, com a estabilização do REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Atualmente, o custo do álcool DHR equi- açúcar obtido. Fermentação: por meio do ANEEL. Atlas de energia elétrica do Brasil.
vale ao da produção do álcool pelo méto- uso de leveduras, transformam-se os açú- Agência Nacional de Energia Elétrica. Brasí-
do tradicional, com possibilidade futura cares em álcool. Destilação: separa-se o lia. 153 p. Disponível em: <www.aneel.gov.br>
Acesso em: nov. 2002.
de se tornar 40% menor que o custo do ál- álcool dos demais componentes do vinho,
COPERSUCAR. Disponibilidade da palha de cana-
cool obtido do caldo de cana1. O processo principalmente água.
de-açúcar. Cenbio Notícias, Brasília, v. 4, n. 12.
DHR é composto por três etapas. Hidróli- Em relação ao uso do bagaço para a Disponível em: <http://www.cenbio.org.br/
se: um forte solvente da lignina, a alta tem- geração de energia elétrica, com as no- index1.htm>. Acesso em: nov. 2001.
peratura, é solubilizado, possibilitando vas tecnologias disponíveis (que redu- RIPOLI, T. C. C.; RIPOLI, M. L. C., Cosecha de caña
rápido acesso à celulose e à hemicelulose; zem o consumo energético para produ- verde: estado del arte en Brasil. In: Seminá-
rio X aniversário Cengicaña. Santa Lucia Cot-
processa-se, então, a hidrólise. Ocorre ção de açúcar e álcool) e com a adoção
zumalguapa. Cengicaña. 2002. Anais... (1 CD).
uma formação rápida de açúcares, que são do palhiço para a geração de energia,
SAYIGH, A. Biomass – Renewable energy – The
retirados do meio reacional por resfria- entende-se que não haverá competitivi- way forward. Fuel Processing Technology, v.
mento do material hidrolisado; interrom- dade entre os diferentes usos para o ba- 59, n. 1, p. 15-30, Apr. 1999.
pe-se a degradação dos açúcares por ação gaço e palha, mas sim complementarida- UNICA. Disponível em: <www.unica.com.br>.
Acesso em: nov. 2003.

1
Informação do fabricante.

VISÃO AGRÍCOLA Nº 1 JAN | JUN 2004 71

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