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a violência na sociedade:
Ilegal, Social e Legal

Alguns números:
Que a violência é um meio histórico
Oxford ou a Florença do S.XIV apre- de resolução de conflitos é uma evi-
sentam uma estatística de 110 homi- dência. A aproximação crítica a esta
cídios por cada 100,000 habitantes. realidade é considerar que «a guer-
São números elevados: a cifra baixa ra é o fracasso último da diploma-
a 20 - 40 por 100,000 habitantes de cia». A cínica (ou realista) é que «a
média no resto do continente. Mas guerra é a continuação da política
ainda isto é um pico: no S. XIII as ci- com outros meios». Seja como for,
fras eram consideravelmente inferi- a violência física (por não falar das
ores e com posterioridade ao 1500 poderosíssimas violências sistémi-
também vamos ver um descenso cas, simbólicas ou económicas que
progressivo até meados do S. XX (Ir- dão forma às nossas vidas) é uma
landa, por exemplo, chega aos 0.25 realidade presente hoje em dia e ain-
homicídios por 100.000 em 1950). da mais no passado.
Um dado a termos presente é a Podemos excluir desta análise a
realidade médica: estima-se que o guerra já citada. Esta é um fenóme-
50% das vítimas de homicídio do S. no organizado de grande escala, on-
XIX teriam sobrevivido se tivessem de o relevante é o grupo e não, como
acesso à nossa ciência médica. Lon- no caso que nós estamos a estudar,
ge de suavizar a intenção das tenta- o indivíduo. Embora seja errado pen-
tivas de assassínio, devemos ter pre- sar numa sociedade ou um contex-
sente que a população na altura não to «civil» na Idade Média, já que es-
era ignorante dos riscos: hoje esta- se é um conceito do liberalismo, com
ríamos dispostos a receber e produ- certeza podemos dividir a violência
zir feridas que no passado podiam interpessoal que fica fora do âmbito
ser com muita probabilidade causa militar em: auto-defesa (e o seu re-
de infeção e morte. A atitude, portan- verso o crime), violência social e vio-
to, devia ser bem mais prudente na lência legal. Todos eles são aspetos
auto-defesa, e em oposição, matar tratados pela Kunst des Fechtens,
alguém resultava mais simples: uma embora em diferente grau, como va-
ferida podia ser suficiente para ga- mos ver.
rantir uma morte dolorosa e dilatada. O crime e a auto-defesa existem
juntos. Em geral as nossas fontes não
Fonte: Making Sense Of Violence?
assumem a vontade de cometer um
Reflections On The History Of Inter-
delito por parte de quem lê — mas
personal Violence In Europe, por Ri-
sim da necessidade de nos defender
chard Mc Mahon, Joachim Eibach Et
dele. O tratamento disto é, em geral,
Randolph Roth, disponível em https://
secundário (a maior parte do córpus
journals.openedition.org/chs/1423
assume um único oponente com ar-
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mas iguais às nossas em combate dem, enquanto não tenham como


singular) mas Talhoffer, por exem- consequência a morte ou dano grave
plo, mostra imagens para a defesa e permanente, ser consideradas pelo
duma pessoa contra vários oponen- resto da sociedade parte da «esfera
tes. Este mesmo 3227a fala de co- privada» em determinados momen-
mo lutar contra «quatro ou seis pes- tos históricos, e assim ignoradas
soas» (mais bem fala da necessida- mesmo quando tecnicamente pude-
de de fugir delas... mas disto é ram ser ilegais.
possível deduzir que quem escreveu Não pode ficar sem menção cá
achava que devíamos poder vencer uma das mais trágicas exceções a es-
até três oponentes à vez). ta distinção: para a violência machis-
É importante destacar que fala- ta o tabu da morte nem sequer era
mos duma época em que a violência assim tão forte — não em poucos ca-
não é ainda monopólio do estado. sos o assassínio duma mulher pelo
Não existem exércitos regulares (vão seu homem, mesmo sendo do conhe-
aparecer como consequência da cimento público, era ignorado de for-
Guerra dos Cem Anos) nem polícias ma deliberada: a religião e a proprie-
como hoje as entendemos, e as dade privada conspiravam em contra.
«guardas» de muitas cidades são Cumpre também ter presente que
turmas rotativas de milícias forma- estamos a considerar violência «en-
das pelos próprios cidadãos. De mui- tre iguais» socialmente falando. Um
ta gente aguarda-se (exige-se) que plebeu a agredir um membro da no-
tenha armas na casa, suficientes pa- breza vai ter um tratamento diferente
ra formar um contingente com que do que a situação inversa. Esta assi-
defender a cidade ou o território. metria na aplicação da justiça é um
Neste contexto, para a resolução de facto tão atual como a realidade da vi-
muitos conflitos no nível do crime e olência — é por isso que os membros
da auto-defesa a pro-atividade da da casa real espanhola não são trata-
população é considerável. dos da mesma forma pelo sistema ju-
diciário que a oposição política.
Mas dentro dos parámetros indi-
A violência
cados, esta violência socialmente
socialmente aceitável
aceitável tem as suas próprias nor-
Vamos considerar violência «aceitá- mas, das que a mais forte seria o
vel» na sociedade aquela que não tem «não matarás» já exposto. Estas nor-
como consequência a morte, já que mas encontram por vezes codifica-
esta última costumava promover a ção legal, mas são em geral não es-
situação à categoria de delito. Inclui critas. Trata-se de situações alegais
as disputas ocasionais (brigas de ta- ou mesmo ilegais para as que a so-
verna, lutas entre vizinhos, etc) bem ciedade mostra tolerância — é um
como os duelos «de honra», muito fenómeno a suceder em toda época.
frequentemente não mortais, e ou- Assim, há apenas umas décadas não
tros «jogos» de dominação seme- era infrequente os nossos vizinhos
lhantes. Todas estas violências po- resolverem disputas através do va-
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rapau. O que na nossa geração resul- Porém, a estocada é considerada


taria numa denúncia na polícia era na Kunst des Fechtens o principal ob-
aceite na altura, considerando o en- jetivo: «...a ponta é centro, coração e
volvimento de autoridades superio- meio da própria espada». Devemos
res um mal maior. De forma seme- ter isto presente e analisar, em con-
lhante, os duelos pós renascentistas sequência, que quando o texto reco-
estiveram geralmente proibidos na menda o uso da ponta está a assumir
maior parte da Europa, mas não por um combate «a sério», onde a nossa
isso eram menos aceites. O propósi- vontade será acabar com a outra pes-
to dos mesmos era estabelecer o as- soa. O contexto em que se vai dar is-
cendente da palavra duma pessoa to nem sequer é a auto-defesa (pu-
sobre outra, e enquanto não produ- déramos ter que responder pela mor-
zissem mortos, com frequência a te de quem nos atacou, dependendo
justiça mirava para outro lado. das amizades que tenham e o que de-
E estas normas podem virar por las reclamem), mas uma figura legal
vezes muito específicas. Por acaso, muito específica que já citamos com
no Sacro Império do S. XVI não era anterioridade: o duelo judicial.
costume utilizar estocadas. Uma cu-
telada numa briga pudera ser enten-
O Duelo judicial
dida como uma forma legítima de au-
to-defesa, mas uma estocada facil- Para Spierenburg, o duelo representa
mente seria interpretada como um «uma inovação na prática da violên-
intento de assassínio deliberado. A cia» na medida em que «a demora en-
origem desta consideração é prova- tre o desafio e o combate promove a
velmente médica — uma estocada é contenção emocional. Trata-se dum
mais difícil de limpar (e em con- passo além da violência impulsiva, na
sequência, mais suscetível às infe- direção da violência planejada».
ções) que uma cutelada, e pode mais A origem deste duelo judicial es-
facilmente ferir órgãos internos que tá no direito consuetudinário dos po-
não é fácil curar com a tecnologia vos germânicos, que foi estendido por
médica da época. Mas há adicional- estes através da Europa durante a
mente uma consideração técnica: a época das migrações e formou a ba-
cutelada é boa para deter ataques, é se, por vezes hibridado com o direito
fácil de dar e fácil de atingir no alvo. romano e outros, para o sistema le-
Também tem maior «poder de para- gal de muitas terras. Ficou melhor re-
da», quanto é mais fácil que incapa- colhido nos códigos legais do Impé-
cite à oposição ao cortar tendões, li- rio Franco e do Sacro Império Roma-
gamentos ou músculos, ou simples- no desde o S. IX, e tem paralelismos
mente pelo choque da ferida na tradição do Holmgang escandina-
produzida. Tem um caráter mais ins- va. Foi perseguido pela Igreja Católi-
tintivo, menos deliberado. A estoca- ca desde mui cedo, possivelmente
da, por contra, requer uma execução porque o procedimento envolve dal-
mais precisa, e portanto mais inten- guma forma o apelo à intervenção di-
ção por trás dela. vina para separar a quem combate em
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justiça de quem mente, mas perdu- MS Thott.290.2º


rou durante perto de 700 anos. Os úl-
«Velaqui as sete causas pelas
timos duelos judiciais documentados
que um homem tem o dever
são do S.XVI, em que foram abolidos
de combater:
pelo imperador Maximiliano.
A nível de anedota: no Reino Uni- A primeira é o assassínio
do, como consequência do seu amor A segunda é a traição
pelo direito consuetudinário, o duelo A terça é a heresia
judicial foi tecnicamente uma opção A quarta é promover
legal até 1818, em que foi definitiva- deslealdade contra
mente abolido. Os Estados Unidos da o seu senhor
América, herdeiros do mesmo marco A quinta o sequestro
legal, nunca aboliram formalmente A sexta é o perjúrio
este mecanismo, pelo que ainda que A sétima, abusar de mulher
é sistematicamente rechaçado pelos ou donzela
tribunais, há argumentação legal pa-
» E esses são os motivos pe-
ra defender que continua em vigor.
los que um homem desafia
outro a um duelo. Esse ho-
Este duelo judicial era em princípio
mem deve mostrar-se diante
uma opção à que podia recorrer a no-
dum tribunal e presentar o seu
breza, os cidadãos livres dalgumas
caso pela sua própria palavra.
cidades (ver por exemplo a legisla-
Deve este homem nomear a
ção de Gelnhausen, que decreta que
quem acusa pelo nome de ba-
os habitantes do burgo não podem
tismo e apelido. Em chegado
ser obrigados a contender contra
o acusado, deve o acusador
gentes de fora, mas sim podem de-
repetir três vezes as acusa-
safiar a duelos quem não pertença à
ções diante de três juízes —
cidade) e, na mínima em certas oca-
salvo se algum deles não apa-
siões, mesmo os servos. Não era um
rece e não responde por si. En-
direito automático: se a parte acusa-
tão deve o acusador mostrar
da fora colhida «no ato», ou se exis-
que a sua necessidade é justa
tirem testemunhas ou provas sufici-
e correta. O acusado deve en-
entes, o curso da acusação seguiria
tender isto tudo tão bem como
um juízo normal. O recurso ao duelo
o acusador, e isto é importan-
judicial reservava-se para delitos
te pois vai em benefício da lei
graves em ausência de testemunhas.
da terra. E apenas após ouvir
Mas para falarmos do desenvol-
as testemunhas deve ser emi-
vimento, procedimento e consequên-
tido veredito.
cias do duelo judicial, que melhor que
» Então, quem fosse acu-
citarmos cá um trecho de Hans Ta-
sado deve mostrar-se diante
lhoffer, que foi (provavelmente) trei-
dos três juízes para responder
nador profissional de duelistas para
e defender. Deve mostrar-se
esta eventualidade:
livre de culpa e repetir que as
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acusações não são certas e apresentar-se diante dos juí-


que está disposto a combater zes [...] e nesse momento o
por essa verdade, como per- acusador deve jurar que tem
mite e requer a lei da terra que causa para combater contra o
pisa. Será então decretado o outro, e que considera o outro
seu tempo para treinar, e es- culpável. E assim os juízes
te será de seis semanas e qua- marcarão uma arena e uma
tro dias. Passado esse perío- guarda para o duelo e um ve-
do, deverão ambos combater, redito, e darão conselhos se-
seguindo o costume e direito guindo os costumes da terra:
da terra. Ambos os conten- que o homem errado será der-
dentes devem livremente ju- rotado segundo a honra de-
rar retornar ante o tribunal e manda, e que isto será prova
combater um com o outro, e de que o outro falou com ver-
assim cada um terá perto de dade e justiça.
seis semanas de treino em » Quando os combatentes
paz, e terão proibido romper se chegarem à arena, o juiz
essa paz até que chegue o mo- olhará para ambos e lembra-
mento que foi decretado pelo rá que está proibido tentar
tribunal. eludir o duelo nem por saúde
» [...] É assim que dous ho- nem por riqueza, e que nin-
mens vão ao duelo — salvo se guém poderá intervir na luta
tiverem menos de cinco graus nem ajudar os combatentes
de parentesco entre si: neste [...]
caso não poderão resolver » E se qualquer combaten-
através do duelo, e isto deve te saísse da arena antes de o
ser jurado por sete homens duelo chegar ao seu mortal
das ramas maternas ou pa- fim, seja porque foi empurra-
ternas da família de qualquer do fora pelo seu oponente ou
um deles [...] porque tenta fugir ou pelo mo-
» E se um homem desafia- tivo que seja, ou mesmo se ad-
do for tolheito ou tivesse má mite que o outro homem tinha
vista, será justo por parte dos razão na causa do combate —
juízes decretar que a pessoa então esse homem será julga-
completa seja posta ao nível do derrotado, e corresponden-
da outra, e este decreto deve temente executado e matado.
ser feito assim ambos os ho- Porque foi conquistado por
mens jurem, para assim o ho- outro homem em combate, e
mem tolheito ou com má vis- foi feita justiça seguindo a lei
ta ter oportunidade de vencer e costume da terra».
no duelo igual que o outro.
» E quando as seis sema- — Hans Talhoffer, 1459
nas tenham passado e chegue
o dia, então ambos devem

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