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Cadernos de Educação de Infância 75

Jul./Set.. 2005
Vamos Falar de…

Vamos Falar de…

A vida a brincar
Dra. Lisa Roque (Psicóloga clínica)
Dra. Sandra Rodrigues (Psicopedagoga)

“Brincar é um comportamento muito frequente em períodos de expansão


intensa do conhecimento de si próprio, do mundo físico, social e dos sistemas
de comunicação; o que nos pode levar a supor que a actividade lúdica está
intimamente relacionada com estas áreas do desenvolvimento.” Catherine
Garvey

A actividade lúdica tem sido relacionada com a criatividade, com a aprendizagem da


linguagem, com o desenvolvimento de papéis sociais e com outros fenómenos
cognitivos e sociais, mas brincar é indiscutivelmente um sistema afectivo-
comportamental, que não possui, no entanto, nenhum comportamento próprio ou
objectivo exclusivo.
Toda e qualquer brincadeira requer que os sujeitos estejam conscientes de estar a
praticar uma acção diferente do que aparenta, sendo essa atitude não literal que
permite que a actividade lúdica esteja defendida de consequências e efectivamente
é o que permite que brincar seja brincar.
Recentemente, acredita-se que os aspectos lúdicos do comportamento surgem
desde muito cedo na criança, a partir dos primeiros contactos com o outro, surgindo
já uma atitude não literal em relação às experiências que são comunicadas à criança
desde os primeiros meses de vida. Os aspectos da actividade lúdica incluem o
movimento e as modificações da percepção resultantes da mobilidade física.
Incluem os objectos e suas propriedades físicas, sujeitas a combinações e
associações. A linguagem e o discurso oferecem vários níveis de organização
propícios de serem utilizados para brincar. Os materiais sociais, tais como papéis,
situações e atitudes, conferem várias noções relativamente à forma como o universo
social está constituído. E, finalmente, os limites em que a aceitação ou a infracção
consciente das regras constituem um recurso primário para a actividade lúdica. Com
três anos de idade, a maior parte das crianças é capaz de verbalizar o seu
conhecimento de estar ou não estar a brincar e se o faz sozinha ou com outra
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pessoa. O êxito dos contactos entre crianças depende da consciência mútua de


estarem ou não a brincar. E, assim, o sorriso ou riso constituem sinais comuns
embora não essenciais à actividade lúdica.

O sorriso
O sorriso do bebé à vista da sua mãe tem sido designado por sorriso de
reconhecimento, ele surge por volta dos três meses e esta forma de “cumprimento”
desperta uma forte resposta materna. Se esta expressão nos primeiros tempos de
vida é instintiva, passa assim a fazer parte de um sistema de interacções sociais, no
qual o comportamento de cada um dos participantes é influenciado mutuamente. Na
idade do Jardim infantil, a criança já é capaz de considerar várias classes de
diferentes fenómenos divertidos e dispõe de uma gama de respostas, rir, sorrir, dar
risadinhas ou gargalhadas, que reflectem as distinções qualitativas ou quantitativas
que é capaz de estabelecer entre os vários acontecimentos divertidos. Há que
salientar que a criança doente, perplexa ou assustada não ri nem brinca.

O movimento e a interacção
O movimento e a variação de sensações são as primeiras possibilidades de jogo
que um bebé pode explorar sozinho e durante o período em que está a descobrir a
sua capacidade de controlar os movimentos. No bebé mais crescido, o movimento e
a alteração de sensações são obtidos, directamente, pela exploração do seu meio
ambiente. Quando descobre um padrão de acção tem tendência para o repetir e
exercitar, não só pelo prazer da experiência como também para pôr à prova e
alargar as suas consequências imediatas.
Embora o jogo com o movimento tenha uma base social no par mãe-bebé, não é
partilhado com companheiros da mesma idade ainda durante algum tempo. A sua
habilidade social assenta na experiência com adultos cooperantes. Assim, as
crianças não parecem ser capazes de se relacionarem com outras da mesma idade
antes de serem desmamadas, de serem capazes de se deslocar e de utilizar
sistemas de comunicação.
À medida que se vão tornando mais hábeis no movimento e na comunicação, as
crianças começam a ser capazes de se dedicarem àquilo que se entende por
brincadeiras turbulentas e desordenadas. Estas são caracterizadas por expressões
faciais, vocalizações, posturas e movimentos, comportamentos agressivos e outras
manifestações sociais tais como dar e mostrar. Em geral, as crianças mais novas
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passam mais tempo a observar do que a fazer com as outras as brincadeiras,


principalmente as brincadeiras turbulentas. Ver, observar, constituem formas de
exploração e nessa qualidade precedem a actividade lúdica social.

Os objectos
Citando Catherine Garvey, ”Descobrir o que são as coisas, como funcionam e para
que servem, ocupa uma grande parte da atenção e dos esforços das crianças na
primeira infância. Os objectos servem por diversas formas como elo de ligação entre
a criança e o meio. Proporcionam oportunidades para que a criança possa
representar ou expressar sentimentos, preocupações e/ou interesses dominantes.”
Os objectos proporcionam, também, um canal para a interacção social com os
outros. Um objecto desconhecido desencadeia numa criança uma série de
explorações e contactos que procuram a compreensão do mesmo, a sua textura, o
seu tamanho, a sua forma, conduzem a uma concepção mais madura do mundo
físico e suas propriedades.
Os objectos permitem a expressão e representação de pensamentos, emoções e
sentimentos, preocupações e interesses dominantes. Para além destes aspectos,
funcionam como um canal de interacção social com os outros, sobretudo nas idades
mais precoces, como os dois anos, em que dar, mostrar, partilhar, apoderar-se e
recuperar são base das interacções com os adultos. Possibilitam também o
desenvolvimento de estratégias de resolução de conflitos como a cooperação e
competição e ainda o desenvolvimento do pensamento divergente que se encontra
intimamente relacionado com a criatividade. Existem brinquedos preferidos e, como
é óbvio, as culturas assumem extrema importância na orientação das escolhas,
estipulando o que é adequado aos sexos, utilizando determinados materiais em
detrimento de outros.

O comportamento expressivo com objectos – Ludoterapia


“A razão principal da ludoterapia reside na libertação proporcionada pela expressão
metafórica de experiências íntimas, através de brincadeiras livres.”
Erik Erikson, citado por Catherine Garvey

Ao brincar com bonecas e outros objectos a criança tende a associá-los a membros


da sua própria família, escolhendo quase sempre um boneco de sexo idêntico ao
seu para se representarem a si próprias. As crianças reproduzem, por vezes, factos
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de que tiveram experiência directa e representam situações que, tudo nos leva a
crer, tiveram alguma importância para elas. Os objectos são desta forma
incorporados no seu comportamento expressivo. Estes aspectos são material para
aplicações terapêuticas como a ludoterapia. Aqui realça-se a noção de que ao
representar-se simbolicamente uma experiência ou situação traumática e ao
reviverem-na num ambiente de segurança psicológica, as crianças tornam-se mais
aptas a lidarem com esse problema na vida real.

Brincar com a linguagem:


Grande parte da actividade lúdica ritualista também se baseia nos recursos
proporcionados pela linguagem e pelo discurso. Desde as vocalizações baseadas na
estrutura das sílabas até às infracções relativamente sofisticadas da estrutura do
discurso ou das normas convencionais de conversação, quase todos os tipos da
sistemática regularidade da linguagem servem para brincar. Como exemplo, verifica-
se a distorção do significado e a violação de convenções sociais, que se dão apenas
quando a criança as tem assimilado.

Brincar com materiais sociais:


“Fazer de conta” é a transformação voluntária do aqui e agora, tu e eu, disto e
daquilo de acordo com o potencial de acção que os componentes de uma situação
eventualmente contenham. Para que isto se processe, normalmente a criança
anuncia a sua nova identidade, a sua transformação, ou falando com a voz alterada
ou através de qualquer acção que a identifique. E quando tal não é compreensível
para outra criança, talvez mais pequena, constitui um verdadeiro problema, que
conduz ao fim da brincadeira. A capacidade de fazer de conta é sobretudo uma
questão de comunicação.
Para “fazer de conta” a criança emprega os seguintes recursos:
1. Papéis e identidades distribuídos pelos participantes imediatos e/ou imaginários.
2. Planos de acção e enredos que podem ser conjugados de forma a constituírem
dramas mais extensos.
3. Objectos e ambientes que são mudados ou inventados à medida que se torna
necessário.
A técnica utilizada para comunicar o “fazer de conta” é a encenação. Esta, inclui
qualquer representação expressa por meio do conteúdo e forma do discurso, ou pela
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forma de agir, que a criança que faz de conta pretende realçar como características
da identidade adoptada ou adequados ao plano escolhido.

Os papéis de Personagens dividem-se em duas espécies:


Estereotipados - que se caracterizam com base na ocupação, acções e atitudes
habituais ou aspectos da personalidade. Ex., cowboys; bombeiros; bruxa; médico;
etc.
Ficção - que se caracterizam por serem independentes de qualquer acção
especifica. Envolvem indivíduos com nome próprio cuja origem pode ser da televisão
das histórias ou da tradição oral. Ex., Nemo, a Branca de Neve, Shrek, etc.

Os papéis familiares são mais fortes do que as personagens e aparecem aos


pares. Normalmente são a mãe e o pai, ou a mãe e o bebé. Estes papéis são
manejados pelas crianças como estando potencialmente sempre disponíveis.
Podem ser todas as pessoas representantes da família como avó, tia, mas também
pode-se incluir o brinquedo preferido, que é muitas vezes tratado como uma criança.
Estes papéis são mais fortes, mais presentes nas brincadeiras e a escolha destes
papéis são muito influenciados pela idade e o sexo da criança. Sendo que, no fazer
de conta, os pais, maridos e mulheres podem fazer um maior número de coisas
diferentes e conversam mais, enquanto que da criança ou bebé espera-se
obediência e estão sujeitos a castigos ou a repreensões.
Inicialmente o jogo com objectos no faz de conta está preso às propriedades
perceptivas ou físicas dos objectos. Mas quando a criança atinge um nível de
maturidade cognitiva que lhe permite lidar com papéis e planos, ela torna-se menos
dependente nas suas brincadeiras das propriedades reais dos objectos, ou seja, o
fazer de conta entusiástico e imaginativo faz-se com o que está à mão. A criança
que faz de conta e tem imaginação adquire a experiência de lidar com, de
recombinar e alargar as associações entre palavras e as coisas, pessoas e acções.
Assim, o “fazer de conta” é um tipo de actividade lúdica que tem demonstrado
aumentar o comportamento cooperativo das crianças e que contribuem para
melhores realizações na solução de problemas de equipa, que dá origem a um
comportamento mais sensível em relação aos papéis desempenhados. Verifica-se
também um aumento da originalidade e da criatividade, dos progressos nas aptidões
verbais e na utilização da linguagem. O jogo com matéria social é um reflexo das
progressivas noções que a criança vai adquirindo acerca do mundo.
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O jogo com regras:


Os jogos são brincadeiras espontâneas que se tornam institucionalizadas através da
criação de regras específicas que regem o jogo, o comportamento dos participantes,
onde as regras devem ser comunicadas com precisão e onde podem ser aprendidas
ou ensinadas a outros indivíduos.
O jogo depende, então, da aceitação e aderência das regras por parte dos
participantes para existir, sendo mais formal, convencional e universal que as
brincadeiras. Neste sentido, e de acordo com a teoria do desenvolvimento,
enquadra-se o desenvolvimento desta actividade lúdica aquando da entrada das
crianças na escola, uma vez que é nesta altura que elas aprendem a submeter-se
voluntariamente a regras e restrições, a planear e executar sequências de
actividades mais longas, a autocontrolar-se, a utilizar a cooperação e competição
para resolver os seus conflitos e a transgredir as regras, permitindo aos participantes
testar os limites das suas capacidades.

Os contos de fadas
Citando Bruno Bettelheim (1995), “ Para que uma história possa prender
verdadeiramente a atenção de uma criança, é preciso que ela distraia e desperte a
sua curiosidade. Mas, para enriquecer a sua vida, ela tem que estimular a sua
imaginação; tem que ajudá-la a desenvolver o seu intelecto e esclarecer as suas
emoções; tem que estar sintonizada com as suas angústias e as suas aspirações;
tem que reconhecer plenamente as suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir
soluções para os problemas que a perturbam.”. De facto, os contos de fada
tradicionais não podem ser esquecidos neste contexto, uma vez que são igualmente
importantes para o desenvolvimento psicológico da criança. Estes contos universais
perpetuam-se no tempo, pois abordam conflitos interiores de forma a que a criança
seja capaz de compreender inconscientemente, ao mesmo tempo que proporcionam
exemplos de soluções, tanto temporárias como permanentes, para as dificuldades.
Uma das características destes contos é expor um dilema existencial de forma clara,
directa e concisa, permitindo à criança enfrentar logo o problema sem ficar confusa.
Desta forma, a criança confronta-se directamente com as exigências básicas da vida
como a velhice, a morte, a separação ou o dilema moral entre a escolha do bem e
do mal, representados pelas personagens. A criança identifica-se com o herói, não
porque é bom, mas porque ele enfrenta e tenta resolver as dificuldades e dilemas
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que a criança vivencia inconscientemente. Um exemplo disto é de que, à


semelhança do herói que tem um percurso solitário, a criança por vezes também se
sente abandonada.
Os aspectos mais significativos dos contos de fadas são de que, na vida, a luta
contra as dificuldades é inevitável, mas que se a criança as enfrentar com coragem
e confiança, sairá vitoriosa. E ainda de que a felicidade, segurança e bem-estar
emocionais alcançam-se através da criação de ligações afectivas positivas com o
outro.

Bibliografia:
Bettelheim, Bruno (1995), A Psicanálise dos contos de fadas, Venda Nova, Bertrand
Editora
Garvey, Catherine (1992), Brincar, Lisboa, Edições Salamandra
Rogers, Carl (1994), O tratamento clínico da criança problema, S. Paulo,
Martinfontes
Winnicott, D.W. (1975), O brincar e a realidade, Rio de Janeiro, Imago Editora Lda

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