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Nos anos
60, testemunhamos lutas identitárias cada vez mais prementes – lutas pelos direitos civis
dos negros e ascensão, de um modo geral, do movimento negro, uma “nova onda” de
movimentos feministas, lutas anticolonialistas, movimento gay, questões
multiculturais[1]. Essas discussões não cessaram de se renovar nas décadas posteriores.
Em todos os casos citados, falamos de questões muito concretas que ensejaram lutas
políticas, eventualmente embasaram discussões em torno de políticas públicas e, ao
mesmo tempo, promoveram reações contrárias que buscavam desqualificar os
movimentos. Para estas últimas, com diversos argumentos e intenções. Acompanhamos,
por exemplo, reações racistas, sexistas e homofóbicas. Acompanhamos, também,
reações anti-imigração, eventualmente em nome de uma “identidade nacional”, o
recrudescimento de movimentos religiosos e/ou nacionalistas e certa reação “ocidental”
a esses movimentos.
Este artigo visa discutir, filosoficamente, a questão da identidade dos sujeitos[4]. Ele
terá, necessariamente, uma perspectiva incompleta, porque está inserido no início de um
processo de pesquisa mais amplo, em torno da constituição dos sujeitos e dos sentidos.
No âmbito do artigo, o problema colocado é: o que unifica as diversas formulações em
torno da identidade? Que aspectos conceituais podem iluminar essa discussão que
perpassa tantas categorias, há “algo” que permita enxergá-las em um mesmo horizonte,
mesmo ressalvadas as óbvias diferenciações? Por fim, que implicações, especialmente
no âmbito político, podemos reivindicar a partir dessas formulações? Todas as questões,
ainda mais a última, terão respostas ainda excessivamente breves, que deverão ser mais
bem desenvolvidas em outra oportunidade.
Esse questionamento, antes de tudo, precisa lidar com duas possibilidades extremas.
Parafraseando a famosa querela medieval em torno dos universais, poderíamos esperar
duas atitudes opostas. Os “realistas” aceitariam a efetividade das identidades, ou pelo
menos de algumas delas. Nesse sentido, poderiam dizer que, sim, há negros e brancos,
brasileiros e estrangeiros, homens e mulheres. Os “nominalistas” tenderiam a colocar
estas afirmações sob suspeita. Por mais que admitam a efetivação prática dessas
nomeações na vida social e política, pensam a identidade como processos de
constituição, talvez impulsionados por relações de poder, que devem, frequentemente,
colocar entre aspas a “substância” dessas nomeações.[5]
A REDE DE SENTIDOS
Somos “animais linguísticos” – se quisermos ser ainda mais precisos, somos “primatas
linguísticos”. Frequentemente, a filosofia e as ciências humanas atenuam este fato,
apesar do zoon politikon de Aristóteles. A nossa condição animal nos deixa, antes de
tudo, envoltos num mundo “natural” e, como tal, afetados física e biologicamente por
esse mundo. Nesse contexto, somos dotados de certa protointencionalidade[6], de um
conjunto de emoções primárias, nos estabelecemos em um habitat, sentimos dor e
prazer, formamos grupos, estabelecemos relações de parceria, dominação e submissão
com outros animais da nossa espécie e de fora dela etc. Temos, por fim, um corpo, e nos
movemos a partir dele. Em hipótese alguma é trivial a importância da nossa condição.
Se quisermos compreender, minimamente, essa importância, podemos pensar na
diferença de um animal linguístico como nós de uma máquina linguística, como um
computador.
Cada um desses signos coletivos (homem, negro, brasileiro, pobre etc...) só obtêm,
assim, sua “identidade” a partir, a princípio, da compreensão de sua significação no
contexto da rede de sentido ao qual ele pertence. Como estamos exemplificando essa
discussão com relações tão diferentes como de gênero, “raça”, nacionalidade, classe
social, religiosidade e sexualidade, é claro que cada uma dessas categorias terá
fundamentações e exigências que as diferenciam, diferenciações que provavelmente
serão mais bem estudadas no âmbito de ciências empíricas (antropologia, sociologia,
psicologia...) que as abordarem. Mas o nosso desafio é, à luz do modelo aqui proposto,
elencar aspectos fundamentais que devem ser considerados para a questão da
identidade. Tentemos pensar alguns deles.
Apesar dessa condição prévia de sujeitos encarnados, e aqui entra o segundo aspecto, a
identidade é conformada no contexto de um sistema de diferenças, a partir da posição
que cada signo ocupa dentro desse sistema. Esta posição, já ressaltamos, não se dá
meramente pela comparação lógica do signo com os outros, mas pela relação de valor
atribuída a cada signo em comparação com os outros numa determinada rede de sentido.
[15] É em torno dessas relações que se conformam, também, os signos coletivos. Cada
nomeação, como os exemplos citados acima, representa, conjuntamente, um
determinado grau de atribuição e de valoração. Se os signos coletivos já representam
atributos dos sujeitos individuais, eles mesmos são qualificados a partir de outros
atributos que os designam e, assim fazendo, os valoram. São com esses atributos que
vamos, progressivamente, caracterizando homens e mulheres, negros e brancos,
brasileiros e estrangeiros, ricos e pobres, católicos e evangélicos, homo e
heterossexuais.
Para além dessa condição móvel premida pela historicidade, cada signo coletivo tem
uma temporalidade que o acompanha. Ou seja, ele é constituído a partir de uma relação
específica com seu passado e seu futuro. Aqui, se fala em grande parte da rede de
narrativas, míticas ou históricas, que o alimentam. Os grandes heróis ou violões, Os
fatos marcantes e as trajetórias contadas a respeito de cada um desses signos ajudam a
forjar os atributos e mesmo os estereótipos a ele associados. Todos esses aspectos
também forjam as expectativas futuras, as “promessas” que lhes são atribuídas.[18]
Para além dos pontos acima ressaltados, temos que destacar um sexto aspecto que torna
ainda mais complexas as relações descritas. Até aqui, pensamos em sujeitos coletivos
com diferentes classificações inseridos numa mesma rede de sentidos, isto é, numa
mesma estrutura abrangente de valor, ainda que cada sujeito ocupe posições diferentes
nessa estrutura. No entanto, as sociedades complexas têm, cada vez mais, posto em
contato sujeitos que não compartilham a mesma rede de sentidos, seja porque foram
formados em culturas diferentes, seja porque não assimilaram determinadas
transformações na própria sociedade, seja porque disputam, politicamente, valorações
diferentes no mesmo espaço público. Nestas sociedades, os sujeitos ocupam posições
antagônicas, uma vez que, ao não conjugarem a mesma rede de sentidos, disputam
valorações e posições hierárquicas não totalmente aceitas pelos outros sujeitos.[20]
Tentemos dar um exemplo: podemos imaginar que uma comunidade tradicional tenha
consolidado uma rede de sentidos que atribua valor diferenciado a homens e mulheres.
Nesta comunidade, a própria atribuição de homem e de mulher é interdependente, e cada
um dos gêneros ocupa uma determinada posição no sistema de classificações, posição,
como já dito, confirmada e exercida cotidianamente por diversas narrativas, rituais e
modos de reconhecimento. Poderíamos pensar, num sentido semelhante, que a mesma
sociedade também estabelecesse diferenciações fundamentais entre sujeitos de distintos
estamentos: os nobres e os plebeus, digamos, que também seriam posições que se
alimentam de modo interdependente. Em ambos os casos, o compartilhamento da rede
de sentidos faz com que haja certa aceitação dos sujeitos em relação à sua condição.
IMPLICAÇÕES POLÍTICAS
Como já deve estar claro até este momento, especialmente no âmbito de negociações ou
disputas de sentido tende a haver fortes disputas de poder, e essas lutas sempre estão
situadas no âmbito do valor. Poderíamos dizer, quase que genericamente, que os
sujeitos em relações antagônicas disputam a manutenção ou transformação de sua
condição no sistema de classificações em que estão inseridos, ou seja, disputam valor. É
claro que muitas das disputas envolvidas não são apenas em torno do “reconhecimento”,
mas são disputas “materiais”, em questões como posse da terra, distribuição de renda,
melhores salários etc. Mas os filósofos-economistas clássicos, especialmente Marx, já
sabiam que as disputas materiais são disputas por valor, consolidado em moeda,
mercadoria ou bens de capital.[22] Nesse sentido, as disputas de poder podem abarcar
um amplo espectro, desde disputas materiais, passando por disputas políticas (como o
sufrágio universal ou o direito de manifestação), outras disputas no campo jurídico, até
disputas por “reconhecimento” no âmbito da estima social – quebras de estereótipos de
grupos minoritários, maior visibilidade etc.
Num sentido amplo, podemos dizer que as lutas políticas progressistas buscaram
desenvolver e consolidar os valores de igualdade potencializados no século XVIII. Isso,
naturalmente, com todas as nuances necessárias a um conceito que não pode ser
pensado como uma igualdade matemática. A igualdade deve ser pensada negativamente,
em seus fundamentos, como um combate à desigualdade abusiva, nos diversos campos.
As recentes lutas pelo direito à diferença não podem ser pensadas, nesse contexto,
como uma oposição a essas lutas originárias, mas como uma sofisticação e
problematização delas, impedindo, inclusive, que as diversas nomeações identitárias
sejam cristalizadas, elas mesmas, em formas ilegítimas de dominação.
Se as proposições apresentadas por esse artigo fazem sentido, elas buscam fornecer
certa gramática conceitual que permitam uma compreensão mais precisa e unificada
dessas lutas no emaranhado de possibilidades e diferenciações que elas apresentam.
AUTOR
* Laurenio Leite Sombra é professor Assistente da Universidade Estadual de Feira de
Santana (UEFS). Doutor em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e
Mestre em filosofia pela Universidade de Brasília (UNB). Particularmente interessado
na constituição humana de sentidos e sujeitos, e nas relações de poder e aliança entre os
sujeitos no seio da constituição de sentido. E-mail: lausombra@hotmail.com
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