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detective
Os progressos nas técnicas de detecção, na
psicologia forense e nos sistemas de neuroimagem
permitem aos cientistas "entrar" no cérebro
dos delinquentes para prever os seus actos
e apanhá-los mais depressa. A análise do perfil
psicogeográfico é uma ciência muito útil para
apanhar os responsáveis por crimes múltiplos.
m Dezembro de 1980, a Scotland Yard balha. Os perfis clássicos centravarn-se, tradi-
completava cinco anos de investiga- cionalmente, na psicologia do agressor, a fim
ção e só possuía uma pista fiável so- de averiguar a sua forma de pensar e tentar,
bre o homem que andava a aterrori- assim, antecipar o seu próximo passo. O perfil
zar a Inglaterra: "o estripador do Yorkshire". geográfico, pelo contrário, não procura o "co-
Durante esse tempo, o criminoso assassinara mo", mas o "onde".
13 mulheres e tudo fazia crer que o número Após o êxito de Stuart Kind, David Canter,
aumentaria em breve. Foi assim que as autori- professor da Universidade de Liverpool (Rei-
dades policiais decidiram recorrer aos serviços no Unido), decidiu aprofundar a variante do
do biólogo forense Stuart Kind, conhecedor perfil já descrita. Com base nos seus estudos
do mundo dos vagabundos e malfeitores. sobre psicologia ambienta I, Canter deduziu
Após duas semanas a estudar os antece- que um assassino em série não age de forma
dentes do caso, Kind assinalou num mapa as fortuita. Por exemplo, a perfilagem clássica,
datas, os locais e as horas das agressões. O favorecido pelo FBI,ditava (ainda o faz) que
esquema que obteve fê-lo perceber que o as- as vítimas seleccionadas correspondem a um
sassino procurava a escuridão para encobrir os padrão comum que possui um significado para
seus crimes e que, possivelmente, precisava de o agressor. Em alguns casos, trata-se de pes-
regressar a casa antes de cair a noite. De acor- soas idosas, por serem as únicas sobre as quais
do com esta lógica, deduziu que, quanto mais o assassino pode exercer um domínio comple-
cedo se produzia o crime, maior era a distân- to; noutros, procura prostitutas, que não irão madrugada, talvez seja porque desempenha
cia que separava o "estripador" de casa. Com rejeitar o criminoso pelo seu aspecto físico. um trabalho nocturno. O mesmo se aplica re-
estas premissas, estimou que o homem vivia lativamente à escolha dos locats.vo perfil geo-
num lugar situado entre as localidades de Shi- MAPA BIOGRÁFICO MENTAL gráfico baseia-se na existência de uma série de
pleye Bingley... e acertou! Quando a Scotland O que Canter fez foi aplicar este raciocínio mapas mentais que estão associados às rotas
Yard cruzou esse dado com os suspeitos da ao meio que envolve o criminoso. Assim, che- e áreas que configuram o quotidiano do sus-
zona, localizou um camionista chamado Peter gou à conclusão de que não é apenas a esco- peito. Por outras palavras, os sítios e trajectos
Sutcliffe. As provas encontradas em sua casa lha das vitimas que proporciona dados sobre que um criminoso escolhe estão ligados à sua
e na cabina do veículo eram suficientes para o agressor; também o lugar e o período do dia actual biografia", explica David Canter. A téc-
o condenar à prisão perpétua. Sem se aperce- em que age contribuem com dados para a in- nica aplica-se, sobretudo, aos assassinos em
ber, Stuart Kindtraçara o primeiro perfil geo- vestigação. Por exemplo, se as agressões se série e aos violadores, pois parece funcionar
gráfico criminal da história. produzem sempre de dia, isso poderá dever- melhor com este tipo de criminosos do que
Esta técnica de perfilagem pretende deter- se ao facto de o delinquente ter família que com outros delinquentes. Ambos agridem re-
minar os locais mais significativos da vida do estranhe a sua ausência de noite; pelo con- petidamente, pelo que se toma mais simples
suspeito, como o sítio onde vive ou onde tra- trário, se os crimes ocorrem a altas horas da estabelecer um padrão (o modus operandi, em
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linguagem policial), ou mesmo aprender com organizados e não-organizados. Os primeiros espaço que não é suficientemente próximo
os progressos que registam. procuram não deixar indícios no cenário do cri- para poderem ser reconhecidos por alguma
Canter desenvolveu, na Universidade de me, parecem ter uma vida normal e estão inte- testemunha, nem tão afastado que coloque
Liverpool, um programa de psicologia de grados na comunidade, enquanto os segundos em risco a fuga. "Depois, começam a afastar-
investigação que introduziu ideias inovadoras representam o oposto. Os organizados corres- se, pouco a pouco, dessa base central, para
a luta contra o crime. Esse estudo deu origem pondem ao perfil do psicopata, os desorgani- evitar colocar em perigo o seu covil", explica
à classificação dos assassinos em série com ba- zados ao do psicótico. Posteriormente, foram o professor inglês. Todos estes dados foram
se na sua mobilidade, a qual inclui o assassino incluídos os mistos. reunidos e desenvolvidos pelo seu grupo de
eambulante, que se desloca a partir de uma trabalho, enquanto esperavam uma oportu-
ase à qual regressa depois de cada crime, e o VIAGEM AO COVIL DO PREDADOR nidade real para testarem as suas conclusões.
viajante, que se dirige a uma zona para prati- Segundo Canter, os seria I killers começam Esta chegaria em 1985.
csr o acta criminoso. Até agora, a classificação por agir em locais próximos de casa ou do Nessa altura, a zona norte de Londres era
is divulgada é a idealizada por três agentes emprego, onde se sentem mais seguros, de alvo, há três anos, dos ataques do "violador do
FBI(Robert K. Ressler, Roy Hazelwood e acordo com O que é designado em crimino- caminho-de-ferro". A imprensa inventara essa
n Douglas), que divide estes criminosos em logia por "zona de conforto". Trata-se de um alcunha porque o criminoso atacava mulheres
Interessante 51
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IJ
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Triangula e encontrarás. O programa Predator, concebido por
Maurice Godwin (à esquerda) usa os dados psicogeográficos do crime
para desenhar sobre um mapa a zona em que o delinquente ataca
(em cima, no caso do ''franco-atirador'' de Washington). Segundo
Godwin, há 80 por cento de possibilidades de ele viver no triângulo.
I
II Formas de trabalhar dos serial killers
11 Este esquema representa os principais modus
operandi dos assassinos em série, segundo
o especialista Oavid Canter. Assim, podem
ser deambulantes (padrão focalizado), quando
1I se deslocam de uma base até às zonas onde
i cometem o crime e regressam depois de cada
agressão; ou viajantes (padrão itinerante),
i quando viajam até à zona onde atacam.
II
I entre os 15 e os 19 anos que esperavam pelo de todos os crimes cometidos. "O Dragnet peitos, mas não conseguia decidir-se por um.
comboio em estações solitárias. Depois de elabora um mapa em que um círculo engloba Quando Garrido pegou nos dados e nas foto-
as violar selvaticamente, asfixiava as vítimas todos os cenários assinalados", explica Canter. grafias do caso, traçou um perfil, conforme lhe
com um torniquete feito com um pau e uma O diâmetro é calculado ao medir o espaço en-
I corda. Apesar de não adoptar cuidados no ce- tre os dois pontos mais distantes entre si. A
tinham pedido: "Homem, jovem (25/35 anos).
Relações interpessoais muito deficientes, pelo
i nário dos crimes e de ter mesmo deixado ves-
tígios de sémen e impressões digitais, a Scot-
teoria estabelece que a base a partir da qual
o criminoso age se situa muito perto do cen-
que será provavelmente solteiro ou divorcia-
do. Viveem Castellón ou num local muito pró-
J
" land Yard não conseguia fazer a investigação tro da circunferência. É aquilo que se tornou ximo. Dispõe de veículo. É provável que tenha
1
avançar. Em 1985, o desconhecido atacou três conhecido por "hipótese do círculo", que foi antecedentes penais devido a infracções por
[I
mulheres numa única noite. Os inspectores aplicada no caso de John Duffy. condução perigosa ou por actos violentos ...",
solicitaram, então, a ajuda de Canter. Com ba- assinalou, entre outros pormenores.
se nas declarações das escassas testemunhas EM BUSCA DE PADRÕES UNIVERSAIS Dos dados indicados, o que mais surpreen-
II presenciais, nos relatórios sobre as cenas dos O objectivo de Canter é estabelecer leis deu foi a inclusão do possível local de residên-
I: crimes e nos locais das agressões, o professor científicas que possam ser aplicadas a cada cia do criminoso. Garrido conseguira deduzi-lo
elaborou um perfil em que estabelecia que o caso individual, incluindo alguns tão remotos ao aplicar a hipótese do círculo de Canter. "O
culpado era casado, não tinha filhos, possuía como o de "Jack, o estripador", cujos crimes, agressor utilizou uma selecção de vítimas co-
I: uma vida conjugal infeliz e vivia em Kilburn- cometidos em 1888, foram analisados pelo mo se fossem raios de um círculo, cujo centro
Cricklewood, no Noroeste de Londres. Dragnet: o resultado indicou que o assassino era Castellón, onde vivia. Foi relativamente fá-
Quando o criminoso, que se chamava John vivia no mesmo bairro de Whitechapel onde cil definir o perfil nesse caso", diz.
'i Duffy, foi detido, ficou demonstrada a vera-
cidade de cada dado vaticinado por Canter,
se verificaram os cinco assassínios.
As teses de David Cante r mostraram es-
Apesar de êxitos como este, o perfil geográ-
fico acaba por não ser bem-visto entre a maior
incluindo o local de domicílio. O processo tar correctas em muitos casos. Foi o modelo parte das forças policiais do mundo. "Funciona
através do qual calculou a possível localiza- utilizado, por exemplo, por Vicente Garrido, apenas na esfera anglo-saxónica, como os Esta-
ção é o mesmo que continua a ser utilizado, professor de psicologia e criminologista, pa- dos Unidos, a Austrália e Inglaterra, e em países
actualmente, noutros casos, embora aperfei- ra apanhar o assassino em série de Castellón do centro e do Norte da Europa, como a Áus-
çoado pela prática. A equipa de Canter criou (Espanha). Tudo aconteceu entre 1995 e 1996, tria, a Noruega ou a Suécia", explica Garrido.
um programa informático chamado Dragnet quando cinco mulheres apareceram mortas na Essa reticência deve-se ao facto de que estabe-
("emboscada" ou "captura", em linguagem província. A Polícia tinha aprofundado a inves- lecer um perfil não é uma ciência exacta, moti-
policial), no qual se tem de introduzir o local tigação ao ponto de ter seleccionado dois sus- vo pelo qual diferentes peritos podem chegar
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a conclusões contraditórias no mesmo caso. perfil psicogeográfico. Na sua opinião, "o per- carrinha branca que numerosos testemunhos
Consciente disso, o ex-pclícia norte-ame- fil clássico apenas procura averiguar as moti- situavam na cenário de alguns dos crimes. Pa-
ricano Maurice Godwin criou, na década de vações do delinquente, a sua idade, sexo, raça recia óbvio que o homicida a utilizava para se
1990, o termo "perfil psicogeográfico", com o e nível de educação; os perfis elaborados pelo deslocar, mas ainda não se sabia se era tam-
objectivo de tentar unir o melhor do modelo FBIestão mais próximos da ficção do que dos bém dali que disparava.
psicológico e do geográfico. Afirma que pre- factos científicos". Chega a afirmar, num livro A maioria dos especialistas convidados a
tendia que reflectisse a sua perspectiva do cri- que escreveu, que esses perfis "são toscos e pronunciar-se em programas de TV era de
me como "expressão de uma interacção com- repetitivos: homem branco, abandonou os es- opinião que se tratava de um único indivíduo,
plexa entre o agressor, os seus antecedentes, tudos secundários, dificuldade no trato social, "possivelmente de raça branca". O próprio
conhecimentos e percepções e a localização e bla, bla, bla; são áridos e aborrecidos". Opinião Godwin foi convidado pelo CNN.A sua respos-
o tipo de objectivo". diferente tem Vicente Garrido, para quem os ta foi taxativa: "Não é um único franco-atira-
A entrada de Godwin no mundo da perfila- dois sistemas são complementares. dor, mas dois, e possuem um comportamento
gem produziu-se em 1993, quando conseguiu paramilitar." E acrescentou: "Os assassinos
que aceitassem o pedido para ir estudar, na ANTECIPAR O DELITO vão a deslocar-se pela estrada 1-95na direcção
Universidade de Liverpool, a cadeira de Psico- A primeira grande oportunidade que sur- Sul;o ataque seguinte poderá ocorrer na área
logia da Investigação, cujo professor era pre- giu a Godwin para provar as suas teses surgiu de Fredericksburg, na Virgínia."
cisamente David Canter. Sob sua orientação, em 2 de Outubro de 2002, quando James D. Nenhuma autoridade lhe deu ouvidos. A
aprendeu que os actos de um criminoso reve- Martin foi abatido a tiro no estacionamento 11 de Outubro, Kenneth H. Bridges era aba-
lam, quase sempre, mais dados do que aque- de uma loja de produtos alimentares, às 18.04 tido a tiro perto de Fredericksburg. Passado
les que se obtêm através dos interrogatórios. horas, em Washington. Foi a primeira de uma 13 dias, foram detidos dois homens negros,
Por outro lado, o sítio onde comete a agressão série de treze vítimas, sempre mortas da mes- John Allen Muhammad e John Lee Malvo (o
diz mais sobre o provável local de residência ma forma até dia 22 de Outubro: enquanto primeiro, executado em 10 de Novembro des-
do suspeito do que qualquer outra forma de se abasteciam de gasolina, cortavam a relva, te ano, tinha um passado militar na Guerra do
localização. faziam compras no supermercado ... Pelo mo- Golfo). Godwin acertara onde todos os outros
Com estas premissas e as lições bem apren- dus operandi, o assassino tornou-se conhecido tinham fracassado estrondosamente. Robert
didas, Godwin regressou aos Estados Unidos como "franco-atirador". Desde os primeiros Ressler, ex-agente do FBIe uma "instituição"
para expandir os seus conhecimentos e lutar ataques, o responsável pela investigação, o no âmbito da perfilagem criminal, reconheceu
para que as forças policiais norte-americanas chefe da Polícia do condado de Montgomery, os erros cometidos ao longo daqueles dias,
começassem a aplicar a moderna técnica do Charles Moose, recebeu a descrição de uma embora tenha assegurado que "o sucedido
Interessante 53
·Quatro tipos
indesejáveis
Vim Rossmo, ex-detective da Policia
Nde Vancouver, no,Canadá, e "pai"
do programa informático Sistema de Alvo
t;eográfico Criminal (CGT); classifica os
serial killers em quatro tipos, segundo os
respectivos padrões de mobilidade, .
Caçadores. Têm uma basefua oride pla-
neiam os assassínios e deslocam-se para
cometê-los, procurando a vítima propícia.
Ardilosos. Montam armadilhas para
atrair as presas, até conseguírem apanhar
uma delas. ' ",'
Deambulanfes. Desl~éam-se através de -
uma zona mais ou menos vasta, seguindo
uma vítima, e aproveitam a melhor opor-
tunídade p'ara atacá-la,
Pescadores. Atacam, uma vítima.tírandó
proveito de uma circunstáilcla fortuita,
possivelmente porque nesse momento es-
tavam a desempenhar outras actividades.
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