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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

PROGRAMA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA – PIC


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
ORIENTADORA: Prof.ª Cristian Carla Bernava
CO-ORIENTADOR: Prof. Thomás Antonio Burneiko Meira
ACADÊMICO(s): Beatriz Weiss Passos

FEMINICÍDIO E MISOGINIA:
UM ESTUDO A PARTIR DOS ASSASSINATOS ATRIBUÍDOS A JACK, O ESTRIPADOR

Maringá, 02 de março de 2022.


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA – PIC
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
ORIENTADORA: Prof.ª Cristian Carla Bernava
CO-ORIENTADOR: Prof. Thomás Antonio Burneiko Meira
ACADÊMICO(s): Beatriz Weiss Passos

FEMINICÍDIO E MISOGINIA:
UM ESTUDO A PARTIR DOS ASSASSINATOS ATRIBUÍDOS A JACK, O ESTRIPADOR

Relatório contendo os resultados finais


do projeto de iniciação científica
vinculado ao Programa PIC-UEM.

Maringá, 02 de março de 2022.


RESUMO: A partir da perspectiva de uma Sociologia do Direito que visa a compreender as
relações entre direito e sociedade no decorrer da história, esse estudo analisa os assassinatos
atribuídos a Jack, o Estripador, como feminicídios, isto é, como assassinatos que são cometidos
contra mulheres em virtude de sua condição de gênero. Busca-se desvelar se a “imoralidade”
associada a ocupação atribuída às vítimas, a prostituição, poderia ter motivado os assassinatos e
afetado a opinião pública da época, debruçando-se sobre a condição social das mulheres vitorianas e
os efeitos das leis vigentes sobre essa condição. Conclui que o que era compreendido como
prostituição englobava uma variedade de situações de degradação social a que estavam submetidas
as mulheres não-casadas naquela sociedade, degradação social simbolicamente reelaborada como
decaimento moral, justificando, assim, os assassinatos perante a opinião pública e podendo ter
servido de motivação misógina para os crimes e reforço dos padrões morais da época.

PALAVRAS-CHAVE: feminicídio; prostituição; decaimento moral; condição social das mulheres;


período vitoriano; Jack, o Estripador.

1
SUMÁRIO

1. Introdução 3
2. Objetivos 4
3. Desenvolvimento 5
4. Resultados e Discussão 6
4.1. O contexto social dos assassinatos 6
4.2. As mulheres na ordem moral sexual vitoriana e a experiência de decaimento das
mulheres da classe trabalhadora 10

4.3. O duplo padrão de moralidade vitoriano nas leis da prostituição, do casamento e do


divórcio 13
4.4. A diferença entre mulher virtuosa e mulher decaída 17

5. Conclusões: Jack, o Feminicida 19

6. Bibliografia 21

7. Anexo 23

2
1. Introdução

Jack, o Estripador era um assassino de prostitutas. Este é um dos poucos consensos que
parece haver na incerta história do mitológico assassino em série das ruas mal iluminadas da
Londres vitoriana. A partir desse consenso, surgiu a temática desta pesquisa, cujo objetivo era, a
partir da perspectiva de uma Sociologia do Direito que visa a compreender as relações entre direito
e sociedade no decorrer da história, analisar os assassinatos atribuídos a Jack à luz do novo conceito
de feminicídio.
Em “Femicide: The Politics of Woman Killing”, Jane Caputi e Diana E. H. Russell (1992, p.
15)1 definem feminicídio como “a mais extrema forma de terrorismo sexual, motivada por ódio,
desprezo, prazer, ou um senso de posse da mulher”; um crime de natureza misógina praticado
contra a mulher em decorrência do fato de ela ser mulher. Na legislação brasileira, por sua vez, a
Lei do Feminicídio (13.104/2015) considera o assassinato cometido contra a mulher por razões da
condição de gênero um crime qualificado, o incluindo no rol dos crimes hediondos.
Stela Nazareth Meneghel e Ana Paula Portella, em “Feminicídios: conceitos, tipos e
cenários” (2017, p. 3080), afirmam que “Em grande parte dos países, as vítimas são jovens, não
brancas, pobres e vivem em espaços urbanos onde a segurança é mínima ou inexistente”. Assim,
ocorre a subnotificação desse tipo de crime, onde as mortes não são propriamente investigadas e
muitos processos acabam arquivados. Desse modo, as autoras concluem que esse perfil de vítima
acaba revelando que o feminicídio é um crime diretamente ligado à dominação das mulheres,
afetando grupos mais vulneráveis da população e ocorrendo predominantemente em locais
marginalizados, onde o Estado é mais tolerante para com a violência.
Embora o cenário mais comum de sua ocorrência envolva o contexto doméstico ou familiar,
existem diversos contextos em que operam diferentes marcadores da diferença, que acarretam em
desigualdades, onde podemos observar a atuação do que Meneghel e Portella (2017) denominam
marcadores de gênero. Esses diferentes contextos acabam dificultando a identificação das causas e
motivações de crimes de feminicídio, muitas vezes escondendo seu caráter misógino.
Nesse sentido, Jill Radford (1992) afirma que uma das razões para o desconhecimento e
dificuldade de identificação do crime de feminicídio é justamente o fato de que a vítima não está
mais aqui para contar sua história, perdendo sua voz e sua capacidade de se defender das frequentes
acusações de que seus comportamentos teriam provocado sua morte, “justificando-a” socialmente e
reiterando o caráter naturalizado das relações de poder entre os gêneros na sociedade.

1 A partir desse momento, sempre que necessário a tradução será nossa.

3
À época dos assassinatos e ainda hoje, a ideia de que Jack, o Estripador era um assassino de
prostitutas ajuda a dar sentido para os assassinatos e a reforçar um código moral de comportamentos
aceitáveis e não aceitáveis para a conduta feminina. Ao se voltar para o significado social dos
assassinatos à época, Radford (1992, p. 6) defende que transmitiam um duplo aviso: para as
mulheres, “Saia da linha e isso pode custar sua vida”, para os homens, “Você pode matá-las e sair
impune”.
Isso porque Jack, o Estripador não só saiu impune - já que nunca foi descoberta sua
identidade - como também acabou se tornando um símbolo e uma “herança” de uma Londres
romantizada - uma cidade de ruas pavimentadas, iluminadas por lamparinas à gás - transformando-
se no protagonista da história e em um “gênio” jamais descoberto.

2. Objetivos

Inicialmente, essa investigação teve como objetivo geral estudar a possível influência da
misoginia nos assassinatos atribuídos ao assassino em série Jack, o Estripador, de forma a discutir
se seria possível qualificá-los como o que se compreende presentemente como feminicídio.
A partir desse objetivo geral, esta investigação também teve os seguintes objetivos
específicos:
- Compreender a formação da opinião pública inglesa sobre os assassinatos a partir da análise de
leis, cartas escritas pelo suposto assassino, documentos oficiais do inquérito e publicações da mídia
da época;
- Identificar a presença de elementos misóginos nas fontes estudadas de forma a compreender a
caracterização das vítimas como “imorais” pela opinião pública;
- Problematizar e desvelar como a suposta “imoralidade” das vítimas, caracterizadas como
prostitutas pela polícia e pela mídia inglesas da época, afetou a comoção da população inglesa
diante da brutalidade dos assassinatos;
- Compreender e se tal concepção de “imoralidade” pode ser considerada como de base misógina;
- Analisar as características dos casos de modo a admiti-los como crimes de feminicídio.
Tendo tais objetivos em vista, a pesquisa foi orientada de modo a desvelar se a
“imoralidade” associada a ocupação atribuída às vítimas de Jack, o Estripador, a prostituição,
poderia ter motivado os assassinatos e afetado a opinião pública da época.
À medida que a pesquisa avançava, e sabendo que o feminicídio é um crime que se comete
contra mulheres tão somente pela razão de estas serem mulheres, nos pareceu, então, adequado

4
investigar os lugares sociais ocupados pelas mulheres vitorianas a partir da história das vítimas e de
sua relação com a prostituição. Compreendemos que suas experiências (SCOTT, 1995, 1999),
poderiam nos ajudar a compreender causas e motivos que supostamente teriam levado ao
assassinato dessas mulheres, e assim refletir sobre o caráter misógino desses crimes enquanto tal, e
as formas como poderiam ter afetado a opinião pública da Inglaterra vitoriana.
Foi então que descobrimos que o imaginário a respeito dessas mulheres é enviesado: a partir
de seus assassinatos foi construída, para um público assustado e à procura de explicações para essa
história incerta, a justificativa de que elas eram prostitutas. Essa justificativa acabou ganhando
força, pois a própria noção de prostituição da época era muito mais complexa e ampla do que a dos
dias atuais, não se restringindo unicamente a troca de sexo por dinheiro, sendo que qualquer mulher
que estivesse em estado de decaimento social incluía-se nessa definição.
À vista disso, o objetivo da pesquisa deixou de ser apenas compreender como feminicídio o
assassinato de cinco prostitutas, para ser a análise dessa justificativa enquanto reforço de um código
moral de conduta para as mulheres vitorianas - produzindo como um de seus efeitos a separação
ideológica entre as que não feriam as normas de respeitabilidade da época e as que poderiam ser as
próximas vítimas.

3. Desenvolvimento

Conforme previsto na Metodologia e no Plano de Trabalho Individual do projeto, a pesquisa


foi desenvolvida primordialmente por meio do:

1) Levantamento e análise da bibliografia de suporte teórico-metodológico à investigação;

2) Levantamento e análise de fontes primárias, como cartas escritas pelo suposto assassino, leis,
documentos oficiais de inquéritos e publicações de mídia impressa da época;

3) Levantamento e análise de fontes secundárias, advindas de estudos especializados sobre a


temática investigada.

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4. Resultados e Discussão

4.1. Construindo o contexto social dos assassinatos

As mulheres que foram assassinadas em Whitechapel em 1888 pertenciam a uma classe


trabalhadora degradada. Para se compreender essa afirmação, é preciso retornar no tempo e
considerar os efeitos da Revolução Industrial sobre essa classe e, em especial, sobre as mulheres.

Segundo Friedrich Engels (2007), as invenções da máquina a vapor e de processamento de


algodão desencadearam a Revolução Industrial, a qual constituiu a Inglaterra como principal
terreno.
A crescente necessidade de força de trabalho exigida pelo avanço industrial cumulada com a
concorrência desleal em relação às indústrias têxteis familiares e, ainda, a perda de grande parte dos
direitos dos camponeses, principalmente o de acesso às terras comuns (MARX, 2011; MARTINS,
2008), acarretaram em um êxodo rural forçado para a busca de trabalho assalariado nos centros
urbanos da época.

Poder-se-ia esperar que a industrialização diminuísse os custos e o esforço humano na


produção de mercadorias e, assim, melhorasse as condições de vida da população. Entretanto, a
industrialização levou ao aumento dos preços dos alimentos e de outros produtos que a população
de origem camponesa já não podia produzir para seu próprio sustento (MARX, 2011). Assim, os
efeitos da industrialização logo foram sentidos pela classe trabalhadora, que foi submetida a
condições extremamente precárias de trabalho e de subsistência, se vendo explorada nas fábricas,
em tentativas de se produzir a maior quantidade de produtos ao menor custo, e, assim, valendo-se
da mão de obra mais barata possível.

Em “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”, Engels (2007, p. 46) argumenta que,


antes, a fiação e a tecelagem possuíam lugar na casa destes camponeses que

não precisavam matar-se de trabalhar, não faziam mais do que desejavam e, no entanto,
ganhavam para cobrir suas necessidades e dispunham de tempo para um trabalho sadio em
seu jardim ou em seu campo, trabalho que para eles era uma forma de descanso.

Essa vida considerada tranquila, onde os ciclos das estações e as condições de tempo
ditavam o ritmo de trabalho, seria alterada durante a Revolução Industrial. Os antigos camponeses
se converteriam na nova classe trabalhadora, impelida para as grandes cidades industriais que
cresceriam sem a infraestrutura necessária para alojar toda a população convertida em operariado,

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que se concentrou nos bairros que acabaram por adquirir “má-fama”, como Whitechapel, em
Londres.

Já no início desse período de industrialização, cerca de três quartos da população da


Inglaterra fazia parte da classe trabalhadora. As mulheres, embora excluídas de muitas funções
assalariadas, também estavam incluídas nesse grupo enquanto fonte de trabalho ainda mais barato
que a masculina e cada vez mais dependente de relações patriarcais e de funções domésticas e
reprodutivas. Nesse sentido, Silvia Federici (2017, p. 146) afirma que: “a separação entre produção
e reprodução criou uma classe de mulheres proletárias que estavam tão despossuídas como os
homens, mas que, diferentemente deles, quase não tinham acesso aos salários”.

Ainda, a chamada era vitoriana, em alusão ao reinado da Rainha Vitória (1837-1901),


permanece um sinônimo de um puritanismo sexual severo e repressivo. Ao mesmo tempo, de modo
contraditório, foi quando o debate acerca da sexualidade explodiu (FOUCAULT, 1999). É a época
em que foram inventadas as terminologias modernas que usamos para estruturar as maneiras como
pensamos e falamos sobre sexualidade, como “mulher decaída”, ou “fallen woman”, descrita por
Shantanu Siuli (2015, p. 509) como: “uma definição ampla que abrange qualquer mulher que teve,
ou parecia ter, experiência sexual fora do casamento, incluindo adúlteras e prostitutas”.

Jeffrey Weeks em seu “Sex, Politics and Society” (2014) argumenta que o “paterfamilia”
regia a institucionalização de um duplo padrão de moralidade, a partir do qual o reconhecimento da
pureza sexual da mulher respeitável (mãe e esposa) dependia de sua diferenciação e da degradação
da mulher decaída.

Nesse sentido, Shantanu Siuli (2015, p. 510) ironiza: “Toda a energia gasta em escrever
livros de conduta dizendo às mulheres como se comportar mostra a preocupação que o
comportamento feminino 'adequado' estava longe do natural, e teve que ser ensinado”.

Também cabe ressaltar que, primordialmente, a respeitabilidade sexual expressava as


aspirações e a vida da emergente classe média burguesa. E, só em segundo lugar, era moldada com
intuito de imposição sobre outras classes, como a trabalhadora. No entanto, Weeks (2014) defende
que, durante o século XIX, a classe trabalhadora teria sido alvo de várias tentativas de
“evangelismo” nessa direção. Uma dessas tentativas teria surgido a partir do proposto pelo sexólogo
Havelock Ellis, que sugeriu que “era a sexualidade feminina que constituía o problema social, pois
por meio dela se perpetuava a raça” (WEEKS, 2014, p. 48), e, portanto, a sexualidade masculina
não era o foco das discussões sobre respeitabilidade sexual. Este duplo padrão moral é aparente na

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legislação da época, a exemplo da Lei de Causas Matrimoniais de 1857 e da Lei de Doenças
Venéreas de 1864.

O duplo padrão de moralidade ainda tinha um impacto limitado sobre a classe trabalhadora,
que lidava com limitações materiais importantes. A esse respeito, o relato de Engels (2007, p. 67) é
significativo:

Depois de pisarmos, por uns quantos dias, as pedras das ruas principais, depois de passar a
custo pela multidão, entre as filas intermináveis de veículos e carroças, depois de visitar os
“bairros de má fama” desta metrópole – só então começamos a notar que esses londrinos
tiveram de sacrificar a melhor parte de sua condição de homens para realizar todos esses
milagres da civilização de que é pródiga a cidade, só então começamos a notar que mil
forças neles latentes permaneceram inativas e foram asfixiadas para que só algumas
pudessem desenvolver-se mais e multiplicar-se mediante a união com as de outros.

A partir das péssimas condições de vida, moradia e o desemprego desenfreado, observou-se


uma agitação da população mais abastada de Londres, que temia o aumento de crimes atribuídos
aos mendigos e vagabundos, estimados em mais de cento e cinquenta mil pessoas na segunda
metade do século XIX (BRANDÃO, 2014). Ainda, crescia o medo de que aquela congregação de
desempregados poderia se amotinar, criando um exército sem nada a perder, a exemplo da
manifestação do dia 13 de novembro de 1887, que ficou conhecida como “Domingo Sangrento”.
Segundo Hallie Rubenhold, em seu “The Five: A história não contada das mulheres assassinadas
por Jack, o Estripador” (2021), a manifestação foi marcada pela severa repressão policial, onde
quarenta dos manifestantes acabaram presos, mais de duzentos foram feridos e, pelo menos, dois
foram mortos.

Engels (2007, p.122) argumenta que, assim como a demanda de qualquer mercadoria: “se há
muitos trabalhadores, o preço cai, vem o desemprego, a miséria, a fome e, em consequência, as
epidemias, que varrem a 'população supérflua'”. Nesse cenário de crescimento da população
londrina, Maria Stella Martins Bresciani (1982, p. 22) atribui a Mary Shelley, autora do famoso
“Frankenstein”, e que viveu em Londres, o seguinte relato:

O inferno é uma cidade semelhante a Londres, uma cidade esfumaçada e populosa. Existe
aí todo tipo de pessoas arruinadas e pouca diversão, ou melhor, nenhuma, e muito pouca
justiça e menos ainda compaixão.

Ainda, George Augustus Sala (1859, apud RUBENHOLD, 2021, p. 93) traz a estimativa de
que em meados do século XIX, cerca de “setenta mil pessoas em Londres acordam todas as manhãs
sem ter ideia de onde vão dormir à noite”, e, em 1887, o número daqueles que dormiam na praça de
Trafalgar Square, no centro da cidade, variava entre “mais de duzentos” e “seiscentos” a cada noite,
segundo estimativas apresentadas por Rubenhold (2021, p. 94). Segundo a autora, para esses “sem-

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teto” existiam algumas opções: “pensões”, ou “hospedarias”, que forneciam lares temporários
extremamente precários e mal mantidos, a exploração das alas casuais das “casas de trabalho”
(“workhouses”), que funcionavam como albergues para apenas uma noite, e dormir na rua, quando
não podiam pagar por uma cama ou escolhiam não se submeter ao regime disciplinar das casas de
trabalho. Só em Whitechapel haveria 233 dessas pensões ou hospedarias, que acomodavam cerca de
8.530 pessoas sem-teto regular. Sob esse enquadramento, foi aprovada, em 1834, a Lei dos Pobres,
que, buscando pôr fim ao que o governo entendia como abuso do sistema de assistência oferecido
por meio de subsídios paroquiais, limitou o único amparo governamental para essa população ao
“acolhimento”, muitas vezes forçado, nas casas de trabalho, que imediatamente se expandiram por
todos os lados (ENGELS, 2007, p. 318).

Sobre a situação dentro dessas casas de suposto “acolhimento”, Rubenhold (2021, p. 72)
expõe:

As condições dentro da casa de trabalho eram bem conhecidas entre aqueles que olhavam
do lado de fora. O Conselho de Guardiões da Lei dos Pobres (Poor Law Board of
Guardians), que o administrava, queria que as coisas fossem assim. Dessa maneira, as
famílias trabalhadoras que se prezavam orgulhavam-se de sua capacidade de escapar da
necessidade de ir para o abrigo e desprezavam as que não a tinham conseguido. Nas
comunidades trabalhadoras, o estigma social de ter passado algum tempo na casa de
trabalho era tão grande que muitos preferiam pedir esmola, dormir em locais inadequados
ou se prostituir a se colocar à mercê do auxílio paroquial. Os vizinhos raramente se
esqueciam daqueles que haviam sido afetados pelo infortúnio, e muitas famílias
continuavam sofrendo a humilhação que vinha depois de uma permanência dentro da casa
de trabalho muito depois de ter saído dela.

Esse caráter de rigidez e estigma social da casa de trabalho acabava por atribuir uma função
de intimidação e prevenção geral, uma vez que qualquer coisa seria melhor do que ser
“encarcerado” nesses locais, ou ser forçado a depender dele. Independente da circunstância, todos lá
dentro pareciam ser tratados com igual desdém.

Faramerz Dabhoiwala (2013), em seu “As origens do sexo”, defende que, de modo
semelhante, paulatinamente tornou-se um consenso nos círculos instruídos que a moral das classes
trabalhadoras era uma questão pública, porque a força e a prosperidade geral da nação dependiam
diretamente dela, e porque os nascimentos ilegítimos entre os pobres eram considerados um fardo
para os impostos estatais e recursos da paróquia. Deste modo, essas instituições possuíam, também,
o papel de transformar mendigos, vagabundos e mulheres em situação de decaimento moral em
membros economicamente “produtivos” da sociedade. O uso de aspas aqui justifica-se porque, no
caso das mulheres, melhor seria dizer que a transformação econômica almejada as atrelava a esfera
da reprodução e não da produção (FEDERICI, 2017).

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A fundação de instituições de caridade para resgatar mulheres pobres do sofrimento sexual
foi, portanto, apenas um exemplo de um movimento mais geral para melhorar a saúde e
engrossar os números das classes trabalhadoras, e assim aumentar a força e prosperidade
nacional (DABHOIWALA, 2013, livro eletrônico sem paginação).

Era nesse contexto de pobreza, ausência de moradias dignas e perspectiva de subsistência,


exploração da força de trabalho e de uma ordem moral sexual dupla, diferente para homens e
mulheres, que, em 1887, a Rainha Vitória comemorou seu Jubileu de Ouro, com uma série de
eventos para celebrar meio século de seu reinado. Cerca de um ano depois dessas comemorações,
Polly Nichols se tornaria a primeira das cinco vítimas “canônicas”2 de Jack, o Estripador.

4.2. As mulheres na ordem moral sexual vitoriana e a experiência de decaimento das mulheres da
classe trabalhadora

A industrialização, a urbanização, a mobilidade populacional, a proletarização do trabalho e


o aumento das relações sociais capitalistas acarretaram em uma ruptura importante da estrutura
familiar da classe trabalhadora, evidenciada pelo aumento na taxa de natalidade de casais casados –
que estavam se casando mais cedo, e com mais mulheres engravidando logo após o casamento – e
do número de nascimentos de filhos ilegítimos de casais não casados (WEEKS, 2014).

Esse aumento provocou uma preocupação com os “perigos” da elevação do número dos
pobres e de um excesso populacional, que levou à adoção de ideias malthusianas que, por sua vez,
deram nova urgência à causa da restrição sexual (DABHOIWALA, 2013).

Ocorre que essa preocupação e essa restrição tiveram como principais alvos as mulheres,
uma vez que a sociedade vitoriana acabava “libertando” os homens da responsabilidade pela
gravidez e da paternidade. Portanto, longe de ser uma ruptura que libertou as mulheres, essa
mudança de mentalidade serviu para impor maiores restrições à sexualidade feminina, o que mais
tarde seria identificado como um elemento-chave do regime sexual vitoriano (WEEKS, 2014).

Nesse contexto, é fundamental entender a importância do casamento e da “domesticidade”


como porta de entrada para a respeitabilidade e a estabilidade social das mulheres. Eles estão
vinculados ao que Weeks (2014) chama de a “ideologia doméstica”, que teria promovido,
principalmente por meio das novas leis de casamento, uma diferença nítida entre casados e
solteiros, estabelecendo também os limites entre sexo lícito e sexo ilícito. Em outras palavras, a
2 São chamadas de “canônicas” as cinco vítimas cujas mortes - segundo acreditava a polícia londrina - teriam sido
cometidas pela mesma pessoa (RUBENHOLD, 2021).

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família conseguiu tanto exaltar a sexualidade, por meio do indispensável vínculo matrimonial,
quanto regulá-la severamente.

Em meio às crises políticas, por meio dessa ideologia a pureza moral tornou-se uma
metáfora para uma sociedade estável, uma vez que o casamento não era simplesmente uma união
religiosa, mas tinha profundas consequências sociais. Sobre o tema, Weeks (2014, p. 37), afirma:

A ideologia, tal como foi elaborada ao longo do século, era composta por uma série de
regras relativas ao casamento, à família e ao lar que, para os evangélicos, tinham raízes no
cristianismo, mas também estavam claramente relacionadas a aspirações sociais e
econômicas mais amplas. Uma parte central disso foi expressa em dois lemas: prudência
(um termo que já encontramos)[ 3] e adiamento (um corolário lógico do primeiro), diretrizes
ritualísticas para a classe média nesta fase de sua história, mas também apresentadas
secundariamente como modelos para os pobres.

Também, no que toca a restrição da sexualidade feminina, existia outra ideologia crescente
que delimitava, de forma clara, o que as mulheres podiam fazer sem violar as normas de decência: a
ideologia da respeitabilidade, que foi moldada dentro de uma separação de esferas sociais, onde o
homem destinava-se a ocupar a esfera pública, e a mulher a esfera privada. Portanto, a mulher só
era considerada respeitável dentro da vida privada, especificamente, do casamento, e, fora desse
vínculo matrimonial, decaía socialmente e se tornava “imoral”. Na prática, isso inevitavelmente
restringia as mulheres em suas vidas sociais, econômicas, culturais e sexuais (WEEKS, 2014).

Isto posto, podemos afirmar que existiam muitos fatores desfavoráveis à Mary Ann Nichols,
Annie Chapman, Elizabeth4 Stride, Catherine Eddowes e Mary Jane Kelly – as cinco vítimas
“canônicas” de Jack, o Estripador –, pois, além de terem nascido em famílias da classe trabalhadora,
também passaram por diferentes processos de decaimento social e moral por serem mulheres.

Conforme conta Rubenhold (2021), Mary Ann Nichols, ou Polly – como era conhecida –
nasceu em 26 de agosto de 1845 e, aos dezoito anos, se casou com William Nichols, com quem
viveu até março de 1880, quando se transfere para uma casa de trabalho. Um caso extraconjugal de
William levou Polly a separar-se do marido informalmente, fazendo com que ela deixasse a casa da
família. Com o passar dos anos, Polly se tornou “sem-teto”, dividindo suas noites entre as alas
casuais de casas de trabalho, pensões e ao relento. Deixar a “segurança” oferecida pelo casamento
com William a havia condenado a uma vida de extrema pobreza e mendicância. Embora Polly não
possuísse meios próprios de se sustentar, não há nenhuma evidência de que ela tenha recorrido à
3 Segundo Weeks (2014), a prudência dizia respeito, principalmente, à idade dos noivos. Noivos prudentes
escolheriam casar-se mais tarde, normalmente entre os 26 ou 27 anos para homens, e os 23 ou 24 anos para
mulheres, quando, esperava-se, já tivessem alcançado um nível de renda ou poupança suficiente para sustentar uma
família de forma independente.
4 O nome de Elizabeth aparece grafado com “z” e com “s” na bibliografia de referência, motivo pelo qual há variação
de sua grafia neste trabalho.

11
prostituição para se manter. Ao contrário, depoimentos das testemunhas do caso sugeriam
justamente o oposto, contestando essa alegação por parte da polícia londrina depois de seu
assassinato. Assim, o degradação social experimentada por Polly nos indica que essa condição era,
na época, entrelaçada com um decaimento de cunho moral.

Do mesmo modo, Annie Chapman, filha de um soldado, nasceu e viveu sua infância à
sombra da residência da família real, onde estudou e foi alfabetizada. Aos vinte e sete anos, após
anos de trabalho doméstico, Annie casou-se com John Chapman, e viveram juntos uma vida
confortável, mais próxima a de uma classe média. Nessa época, era comum que empregadas
domésticas fizessem uso regular de álcool, e Annie havia se tornado dependente. Devido ao
alcoolismo de Annie, a família para quem seu marido trabalhava pressionou-os para que se
separassem. Após a separação informal, Annie passou a viver entre pensões, casas de trabalho e as
ruas. Pouco antes de sua morte, em 1888, Annie viveu um relacionamento estável com Edward
Stanley, com quem dividia uma cama nas pensões. Assim como Polly, também não existem
evidências confiáveis que sugiram que Annie tenha trabalhado como prostituta, não existindo uma
única testemunha que pudesse confirmar que ela era uma das mulheres do bairro que faziam sexo
por dinheiro (RUBENHOLD, 2021). Nesse caso, a associação com um homem, sem a mediação de
um contrato de casamento, fez com que Annie fosse considerada uma prostituta pela polícia, assim
como Polly foi considerada. Esse padrão de duplo decaimento, social e moral, também se faz
presente nas experiências das demais vítimas “canônicas” de Jack, o Estripador.

Assim, por sua vez, Elizabeth Stride, nascida no interior da Suécia em 27 de novembro de
1843, havia sido declarada culpada de “viver lascivamente” em sua terra natal devido a uma
gravidez ilegítima e, ainda, por ser portadora de sífilis. Foi, em virtude disso, forçada a passar por
exames médicos duas vezes por semana no centro de investigações da polícia. Além disso, não
poderia sair de casa depois das onze da noite. Com o avanço da doença, Elizabeth acabou perdendo
o bebê, e teve de recorrer a prostituição para se sustentar, até que deu entrada no pedido de
emigração para a Inglaterra, onde conheceu John Stride e se casou, em 1869. Entretanto, após
problemas financeiros, o casal se separou em 1877, e Elizabeth passou a viver em pensões, se
sustentando como arrumadeira. Da mesma forma, não há confirmação de que ela tenha retornado à
prostituição no período anterior ao seu assassinato (RUBENHOLD, 2021).

Já Catherine Eddowes se tornou órfã muito cedo e teve de se mudar para a casa de sua tia no
interior. Lá conheceu Thomas Conway, um soldado aposentado por invalidez que sobrevivia de
uma pequena pensão, complementado pelo trabalho de vendedor ambulante de folhetins de baladas.
Com ele teve uma relação estável e filhos, embora nunca tenham se casado. Levaram uma vida de

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extrema pobreza até que, devido a atitudes violentas e agressões físicas por parte de Thomas, o
casal também se separou. Kate, como era conhecida, passou a viver um relacionamento estável com
John Kelly posteriormente, com quem dividia a cama nas pensões, quando possuíam dinheiro.
Embora Kate tenha estado nesse relacionamento até a data de sua morte, a polícia não acreditava
nas declarações de seu companheiro de que ela não se encontrava com outros homens por dinheiro
(RUBENHOLD, 2021).

Por fim, Mary Jane Kelly de fato ganhava sua renda exclusivamente através do comércio
sexual, o que acabou por reforçar a tese da polícia e da mídia da época de que o assassino estava
atrás de prostitutas, e desacreditar a versão das testemunhas das outras vítimas que negavam tal
tese, apesar da falta de evidências dessa presunção (RUBENHOLD, 2021).

O que é particularmente revelador nestas histórias é o que elas nos dizem sobre o poder da
definição sexual na formação e remodelação do que é moral e imoral. Na falta de evidências de que
Polly, Annie ou Kate já tinham se envolvido com prostituição, ou que Elizabeth havia retornado ao
comércio sexual, o decaimento social que experimentaram, enquanto mulheres sujeitas ao duplo
padrão de moralidade vigente durante a era vitoriana, fizeram com que fossem contaminadas pelo
estigma (GOFFMAN, 2008) da forma mais severa e “inteligível” de decaimento feminino da época,
o da prostituição. As histórias dessas mulheres nos sugerem, portanto, que havia várias maneiras de
uma mulher decair socialmente nesse momento histórico, mas que essas experiências eram
reduzidas a uma única, pela aglutinação das formas de decaimento sob o estigma da prostituição.
Nessa redução, o decaimento social – efeito da pauperização e das vulnerabilidades que advinham
da falta da “proteção” garantida pelos vínculos de casamento – convertia-se em decaimento moral.
Um decaimento moral que era reservado apenas às mulheres e, especialmente, às mulheres da classe
trabalhadora.

4.3. O duplo padrão de moralidade vitoriano nas leis da prostituição, do casamento e do divórcio

Para entender melhor o desenvolvimento da moralidade da época e do seu conceito de


respeitabilidade, precisamos compreender as formas de regulação moral, especialmente no que
tange ao papel do Estado como regulamentador direto do comportamento. No que diz respeito à
legislação sobre o sexo extraconjugal, havia uma suposição tácita de que a função do Estado era

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regular a esfera pública, contendo manifestações públicas do vício e da prostituição (WEEKS,
2014).

Deste modo, a prostituição se tornou o principal foco dos debates e esforços de reforma
moral empreendida no século XIX. Weeks (2014) afirma que o ato de prostituição em si não era
considerado ilegal. Na verdade, a legislação que tratava sobre a prostituição, como a Lei da
Vagabundagem de 1824 e a Lei da Polícia Metropolitana de 1839, foram criadas para regulamentar
o incomodo público com a prostituição, e não a existência da profissão em si.

No que pese essa suposta “tolerância” para com a existência da prostituição, a partir de
expressões como o “mal social”, resta evidente que havia uma grande ansiedade derivada das
implicações da prostituição, construída como uma ameaça externa ao lar e à domesticidade
feminina. Shantanu Siuli (2015) afirma que a prostituta rompia com a ideologia da família burguesa
vitoriana, ao direcionar o sexo para fora da domesticidade da união matrimonial.

Como tratado anteriormente, a ideologia doméstica (WEEKS, 2014) vigente nesse período
diferenciava mulheres respeitáveis e mulheres decaídas, e qualquer mulher que não se encaixava
prontamente nas definições de comportamento sexual apropriado, como mulheres em relações
casuais ou mães de filhos ilegítimos eram definidas como prostitutas. O que pode ser evidenciado
pela estimativa de 1840, que afirmava que o número total de prostitutas em Londres estava entre
“50.000 e 368.000” (WEEKS, 2014, p. 105), sendo que a cidade possuía, no início dessa década,
cerca de 2 milhões de habitantes (ROUMPANI; HUDSON, 2014). Se confirmada, uma estimativa
dessa monta acabaria tornando a prostituição a quarta maior ocupação feminina na era vitoriana
(WEEKS, 2014).

Não é que a prostituição não fosse relevante. Federici (2017) destaca o avassalador aumento
da prostituição feminina durante a consolidação do capitalismo industrial como um dos efeitos da
degradação socioeconômica da classe trabalhadora e, em particular, das mulheres dessa classe. No
entanto, o que está sendo apontado aqui é que, nesse período, a prostituição feminina era muito
mais do que uma ocupação, entre as poucas que estavam disponíveis às mulheres, devendo ser
considerada em sua complexidade.

Ainda, o medo generalizado da prostituição – estimulado por estimativas como as


mencionadas acima – também se originava do fato de que a categoria foi responsabilizada pela
incidência da sífilis, o que acarretou na criação da Lei de Doenças Contagiosas de 1860, que trazia
uma maior regulamentação estatal com o objetivo de reduzir o contágio, especialmente entre os
militares. Rubenhold (2021) argumenta que, na Inglaterra, o portador do sexo masculino estava

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isento de qualquer regulamentação, pois se acreditava que, se o Estado pudesse controlar a “mulher
decaída”, o problema seria solucionado. A preocupação com a disseminação de infecções
sexualmente transmissíveis, no entanto, não se restringia ao reino da Rainha Vitória, estando
presente também em outros países do continente.

Assim, as mulheres consideradas “propensas” a propagar infecções sexualmente


transmissíveis eram obrigadas a registrar seus nomes e endereços na polícia e a se submeter a
exames ginecológicos regulares para garantir que não estavam doentes. Entretanto, ficava a cargo
da polícia delimitar exatamente quem deveria ser colocado nesse registro, de modo que muitas
mulheres que não trabalhavam no comércio sexual foram forçadas a se alistar por outros motivos de
ordem moral (RUBENHOLD, 2021).

Esse pode ser o caso de Elizabeth Stride que, em março de 1865, foi intimada pela polícia
sueca a comparecer no primeiro de muitos exames ginecológicos de rotina ao qual foi submetida.
Stride estava grávida de seis meses, seu ventre estava aparente e não era casada. Ao tratar dessas
inspeções regulares, Rubenhold (2021, p. 196) registra:

A humilhação que as mulheres deviam sentir com as reprimendas desse tipo, especialmente
se não estivessem ligadas à prostituição, ou se seus crimes não fossem públicos, mas um
estupro ou uma indiscrição particular com um amante, devia ser enorme.
Independentemente de seu nome ter aparecido no que era coloquialmente chamado de “o
registro da vergonha”, Elisabeth continuou a se descrever em sua documentação não como
uma prostituta, mas como empregada.
A rotina de inspeção foi planejada tanto para disciplinar as “mulheres públicas” da cidade
quanto para examiná-las. Para evitar ofender as sensibilidades dos cidadãos respeitáveis de
Gotemburgo que passavam por Östra Hamngatan, todas as suspeitas e conhecidas
“mulheres públicas” eram convidadas a entrar no prédio da polícia por uma passagem
oculta nos fundos. Uma vez lá dentro, elas eram obrigadas a se despir e formar uma fila. Às
vezes, se a espera era longa, elas recebiam a ordem para ficar no pátio ao ar livre, tremendo
de frio, enquanto os policiais uniformizados as vigiavam.

Ao obrigar mulheres suspeitas de serem prostitutas a reconhecerem sua condição e se


exporem publicamente, Weeks (2014) argumenta que a Lei de Doenças Contagiosas serviu para um
isolamento social dessas mulheres tidas como “públicas”, uma vez que esse registro policial tinha
como uma das principais funções estigmatizá-las e envergonhá-las, reforçando, assim, o padrão
moral de domesticidade, atrelado ao casamento, como o apropriado às mulheres.

Assim, no mesmo sentido, a partir da legislação sobre o casamento e o divórcio, podemos


observar o papel central do Estado na regulação moral das mulheres durante a era vitoriana.

Segundo Weeks (2014), o impacto do fim das oportunidades de emprego em uma Londres
superpopulosa gerou uma força de trabalho mal paga e empobrecida. Os trabalhadores atingiam o

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ápice de seus potenciais ganhos salariais cedo, causando um desincentivo ao impulso de casar
precocemente em caso de gravidez e um aumento das taxas de ilegitimidade. No entanto, Weeks
(2014) argumenta que, a partir da aprovação da alteração da Lei dos Pobres de 1834, que colocou
fim ao sistema de subsídio de salários e impôs severas penalidades para mulheres de filhos
ilegítimos, essa realidade de desestímulo ao casamento precoce mudou.

Rubenhold (2021) afirma que além do fim do subsídio, mães solteiras de filhos ilegítimos
não tinham direito a receber ajuda de paróquias destinadas a ajudar famílias pobres, uma vez que as
autoridades temiam que esse apoio financeiro a mulheres “imorais”, situadas fora do padrão de
respeitabilidade, fosse equivalente a um subsídio estatal à prostituição.

Na prática da legislação, as mães solteiras sempre eram mais propensas a serem mandadas
para as casas de trabalho do que receber outros formas de assistência social (RUBENHOLD, 2021,
p. 294), uma vez que não havia nenhuma dúvida sobre sua condição “vergonhosa”. Deste modo,
Weeks (2014) especula que a ilegitimidade e as uniões consensuais possivelmente diminuíram na
segunda metade do século, quando as mulheres da classe trabalhadora também passaram a buscar
refúgio na castidade e no casamento.

Além da alteração dessa lei, Weeks (2014) alega que, a partir de uma assunção gradual pelo
Estado de muitas das responsabilidades anteriormente detidas pela Igreja, especialmente no que diz
respeito ao matrimônio, as novas leis de casamento – destacando aqui a Lei de 1836 que introduziu
o casamento civil – tiveram o efeito de tornar nítido quem era casado e quem era solteiro, tornando
assim a diferença entre sexo lícito e ilícito mais evidente.

Também, fica claro o papel do Estado na idealização do casamento como porta de entrada e
principal requisito para a respeitabilidade feminina quando analisamos a dificuldade da separação e
do divórcio, mesmo após a Lei de Causas Matrimoniais de 1857 que, embora tenha estabelecido
pela primeira vez processos de divórcios seculares, continuou vinculando o divórcio a um forte
estigma social (WEEKS, 2014).

Outrossim, à maioria das pessoas da classe trabalhadora foi negada a facilidade de divórcio,
em grande parte por causa do alto custo. Em contrapartida, as separações informais eram
extremamente comuns, como observamos no caso de Polly, Annie e Elisabeth.

Weeks (2014) argumenta que, possivelmente, essa dificuldade de terminar o casamento por
vias legais foi uma das razões para uma maior preocupação com a violência doméstica nas décadas
de 1860 e 1870, culminando com a elaboração da nova Lei de Causas Matrimoniais de 1878. Esta

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possibilitou a separação e a destinação de alimentos a uma esposa cujo marido fosse condenado por
agressão, além da custódia de filhos menores de dez anos. A respeito da percepção dos vitorianos
em relação a violência doméstica, Rubenhold (2021, p. 298 e 299) documenta que, um ano antes da
elaboração dessa nova lei:

Em 1877, no mesmo ano em que a união de Kate e Thomas Conway começou a se


fragmentar em circunstâncias semelhantes, um livro jurídico, Principles of Punishment,
descreveu a surra de uma esposa como um crime que “varia infinitamente em grau de
criminalidade”. Embora alguns casos graves pudessem justificar a prisão, a maioria dos
incidentes de abuso físico foram, de acordo com o autor, tão “insignificantes que quase
permitem uma justificativa”.

No que pese Catherine e Thomas nunca terem de fato se casado, viver fora dessa união
estável traria um grande estigma para Kate. Dessa maneira, mesmo depois de separar-se de Thomas
e de iniciar um novo relacionamento com John Kelly, que a chamava declaradamente de esposa,
Kate teria continuado a usar o sobrenome de Conway, com quem insistia ser legalmente casada
(RUBENHOLD, 2021).

Segundo Weeks (2014), o estigma da separação era tanto que teria levado a uma onda de
interesse por histórias de adultério e bigamia. Na década seguinte da lei de 1857, foi fundado o
jornal “The Divorce News and Police Reporter”, gerando uma explosão de comentários, artigos
moralizantes e fofocas a partir de casos de divórcio, separações e outros escândalos sexuais. Ainda
segundo o autor, essa exposição da vida sexual de outras pessoas foi responsável por uma
redefinição mais estrita do comportamento considerado aceitável, aumentando cada vez mais o
estigma da separação e incentivando um isolamento social das mulheres divorciadas legalmente ou
informalmente separadas.

4.4. A diferença entre mulher virtuosa e mulher decaída

Uma vez que a ordem sexual vitoriana foi moldada a partir de ênfases na propriedade e na
sobrevivência do duplo padrão moral para homens e mulheres, além do fortalecimento da ideologia
doméstica, fundamento da respeitabilidade feminina, podemos perceber que a diferenciação e
separação entre mulheres virtuosas e mulheres decaídas por meio do acesso ao casamento já estava
bem delimitada.

Isso valia para mulheres de todas as classes sociais. No entanto, o casamento era quase
essencial para as mulheres da classe trabalhadora, pois era difícil sobreviver sem estar casada.

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Primeiramente, devido ao fato de que, como salientam Federici (2017) e Rubenhold (2021), as
mulheres foram alienadas da esfera produtiva e os trabalhos que podiam exercer fora do ambiente
doméstico eram mal remunerados. Assim, uma mulher da classe trabalhadora que não fosse casada
dificilmente conseguia sobreviver dignamente. Mas também, porque o casamento era a principal
porta de entrada para a respeitabilidade e estabilidade feminina na era vitoriana.

Ainda, sobre a ênfase na propriedade, Weeks (2014) argumenta que a preocupação sobre a
castidade das mulheres virtuosas tinha conotações econômicas evidentes, pois garantia a
legitimidade das crianças, como teria defendido o Dr. Johnson – como era conhecido o escritor
Samuel Johnson – ao afirmar que todas as propriedades do mundo dependiam da castidade das
mulheres (PRUITT, 2003).

Assim, essa ideologia foi marcada pela separação das esferas sociais, delimitando o que as
mulheres podiam fazer sem violar as normas de decência e transformando a esfera privada no
domínio das mulheres, inevitavelmente restringindo suas vidas públicas. Federici (2017, p. 195)
argumenta que a família foi “a instituição mais importante para a apropriação e para o ocultamento
do trabalho das mulheres”.

Para as mulheres da era vitoriana, o privado era o abrigo das virtudes domésticas e o público
era a arena da prostituição e do vício. Jonathan Ned Kats, em “A Origem da Heterossexualidade”
(1996), afirma que o lar era constantemente ameaçado pela prostituta. Essa crescente preocupação
com o comportamento sexual fora do ambiente privado acabou servindo apenas para realçar a
importância do lar doméstico, uma vez que, como Weeks (2014, p. 39) afirma, essa “ideologia foi
acompanhada, e muitas vezes amparada, por um vasto submundo da prostituição, que se alimentava
do duplo padrão e de um código moral autoritário”.

Mesmo que a ausência do marido traria à mulher, principalmente com dependentes, a quase
certeza da impossibilidade de sobreviver, a maioria das mulheres em posições socioeconômicas
“difíceis” resistia à prostituição da forma como a entendemos atualmente, mas isso não significa
que deixasse de ser atreladas a essa oupação. Ocorre que as definições de prostituta da época
incluíam quaisquer mulheres consideradas decaídas, ou seja, aquelas que não se encaixavam
prontamente nas definições de comportamento sexual feminino apropriado (WEEKS, 2014).

Então, como a maioria do público alfabetizado aprendera tudo o que sabia sobre os
habitantes do East End nos jornais, qualquer lacuna a respeito da vida dessas mulheres que foram
encontradas mortas nesses bairros pobres de Londres teriam sido preenchidas pelo imaginário
comum de que todas eram mulheres decaídas e, enquanto tais, prostitutas.

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Deste modo, é possível entender como a preocupação com a “imoralidade” da classe
trabalhadora diz mais sobre a moralidade burguesa da época do que propriamente sobre as
complexas realidades da vida dos trabalhadores (WEEKS, 2014). A intervenção direta em suas
vidas, por meio de “missões filantrópicas” ou “evangelizadoras”, gerou um consenso nos círculos
burgueses de que a moral da classe trabalhadora era uma questão pública, tanto porque a força e a
prosperidade geral da nação dependiam diretamente dela, quanto porque os nascimentos de
ilegítimos entre os pobres eram compreendidos como um fardo para o Estado e as paróquias.

Deste modo, Weeks (2014) argumenta que a principal função dessa ideologia doméstica era
articular as experiências da família burguesa, criando uma identidade de classe diferenciada. Isso
porque o estilo de vida da senhora de classe média era frequentemente adquirido às custas de uma
grande quantidade de servas – e disso teria surgido o crescimento do fenômeno da ociosidade da
mulher burguesa juntamente com a educação e profissionalização das mulheres da classe
trabalhadora para as obrigações domésticas. Aquelas empregadas nos serviços domésticos muitas
vezes estavam propensas ao assédio sexual, pois a esposa casta e virtuosa dependia da degradação
da mulher decaída e da prostituta para atestar sua pureza e delas se diferenciar.

5. Conclusões: Jack, o Feminicida

No que diz respeito aos recentes assassinatos diabólicos, gostaríamos de lembrar aos nossos
leitores que em cada caso eles foram cometidos em circunstâncias que não representam
perigo para as respectivas classes respeitáveis. O assassino encontrou suas vítimas no meio
da noite e as induziu a acompanhá-lo a cantos onde ninguém, exceto os depravados,
poderiam recorrer. As miseráveis vítimas da aparente mania são selecionadas com
maravilhosa definição da classe mais baixa de prostitutas; e essas agora deveriam estar tão
bem em guarda que novas tentativas por parte do assassino resultariam em sua captura. Em
todo caso, esperamos que todos os que lêem nossas colunas concordem conosco que os
membros comuns da sociedade não correm nenhum perigo e que as vias de Whitechapel
estão tão seguras para o público em geral como sempre (EAST LONDON OBSERVER;
TOWER HAMLETS AND BOROUGH OF HACKNEY CHRONICLE, 1888, p. 4).

A formação do consenso de que Jack era um assassino de prostitutas serviu, à época dos
assassinatos, para reforçar esse código moral de diferenciação entre mulheres virtuosas – que, além
de estarem longe dos bairros de má-fama, jamais poderiam ser vítimas de um assassino de
prostitutas, pois eram respeitáveis –, e as mulheres decaídas – que não seguiam o padrão de
moralidade feminina e por isso estavam sujeitas de se tornar a próxima vítima.

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Não existia qualquer evidencia de que Polly, Annie ou Kate haviam se envolvido com a
prostituição e assim, foram culpadas por contaminação, uma porque estava em situação de rua,
outra pois era pobre e alcoólatra, e a outra porque teve filhos fora do casamento. Em suma, porque
quebraram as regras do que era permitido ser quando se era mulher naquela sociedade.

Dessa forma, não parece insensato propor que Jack era um feminicida e que matava
mulheres devido a sua condição degradada. Ganhou notoriedade, tornou-se uma figura mitificada,
enquanto suas vítimas permaneceram desconhecidas. Salvo a informação de que seriam prostituas,
pouco se sabia até muito recentemente sobre suas vidas e experiências de degradação social e
decaimento moral. Assim, a figura de Jack segue sendo uma das mais conhecidas da era vitoriana
inglesa.

Tanto a imprensa sensacionalista do século XIX quanto a indústria cultural atual seguem
relembrando e contando essa história da mesma maneira que outrora. Para mantê-la viva,
esqueceram suas vítimas e ignoraram que sua narrativa é marcada pela misoginia e ódio profundo
às mulheres de uma classe. A história desses feminicídios se transformou em um produto de uma
indústria em que livros, filmes, documentários e até mesmo passeios que prometem transportar os
turistas para a Londres de Jack reiteram a construção do “genial” assassino em série que enganou
toda a polícia e a população de Londres, com sua capa e cartola. Seja investigando sua história, seja
prometendo descobrir sua verdadeira identidade, seja homenageando-o com bares temáticos e
coquetéis que levam seu nome, esses produtos são consumidos diariamente por turistas interessados
por essa narrativa macabra, apontando para como a sociedade atual segue homenageando assassinos
e esquecendo das mulheres que foram mortas devido a sua condição.

Esta pesquisa, no entanto, buscou olhar para essa narrativa justamente por esse ângulo. Ao
nos voltarmos para a condição social das mulheres vitorianas e os efeitos das leis então vigentes
sobre essa condição, procuramos desvelar se a “imoralidade” associada a ocupação atribuída às
vítimas, a prostituição, poderia ter motivado os assassinatos e afetado a opinião pública da época.
Assim, concluiu-se que o que se entendia por prostituição englobava uma variedade de situações de
degradação social a que estavam submetidas as mulheres não-casadas naquela sociedade. Tal
degradação social era reelaborada simbolicamente como um decaimento moral, profundamente
atrelado a sexualidade das mulheres. Dessa forma, os feminicídios cometidos por Jack foram
justificados perante a opinião pública, podendo ter servido de motivação misógina para os crimes,
assim como de reforço dos padrões morais da época, a partir dos quais não só homens e mulheres
eram tratados de forma desigual, mas também as mulheres virtuosas eram diferenciadas das
mulheres decaídas.

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