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– Por hoje, chega. Preciso me deitar.

– Você está bem?

Korin tentou sorrir, mas faltava-lhe convicção. – Estou só cansada – respondeu.

Nobambo sentou no topo das montanhas que se debruçavam sobre o Pântano


Zíngaro e fechou os olhos. Sentia-se extremamente cansado, e estava ali para
ficar só. Fazia dias que não via Korin. Ela, Estes e Herac haviam se enfiado em
uma caverna. Nobambo perguntou aos demais membros do acampamento como
estavam os amigos, mas deram-lhe de ombros, ignorantes da situação. Quanto ao
draenei chamado Akama, ele permanecia sem reação, quase morto apesar dos
esforços de Rolc.

Algo estava muito errado. Nobambo sabia: ele havia percebera as mudanças em
si próprio e nos outros sobreviventes, inclusive em Akama. O restante do
acampamento também sabia. Os companheiros pareciam se dirigir a ele cada vez
menos, inclusive o Rolc. E, noutro dia, quando Nobambo havia retornado ao
acampamento com alguns peixes pequenos, disseram-lhe que já tinham o
bastante e que ele próprio deveria comê-los... como se o mal que afetava ele e os
outros, qualquer que fosse, pudesse ser transmitido pela comida manipulada por
ele.

Nobambo estava enojado. Tudo que fez pela raça não significara nada? Ele
passou a gastar horas e horas no alto das montanhas, contemplando quietamente,
forçando a mente a se concentrar, tentando desesperadamente conseguir o que
permanecia inatingível: acessar a Luz. Era como se uma porta lhe tivesse sido
fechada, como se a parte da mente dele que era capaz de contactá-la tão
facilmente não mais funcionasse ou, pior ainda, não existisse mais.

Até atividades simples como essas faziam a cabeça dele doer. Ultimamente,
estava ficando cada vez mais difícil articular os pensamentos. Os braços
continuaram a inchar, um inchaço que não ia embora, e os cascos começaram a
se estilhaçar. De fato, pedaços deles haviam caído e não tornaram a crescer. E,
enquanto isso, os pesadelos... os pesadelos persistiam.

Ao menos, as patrulhas órquicas haviam se tornado menos frequentes. Os


relatórios dos batedores davam conta de que, seja lá o que fosse que os orcs
estavam construindo, estava quase tudo completo. E parecia se tratar de alguma
espécie de portal, exatamente como Velen previra.

“Bom”, pensou Nobambo. “Espero que os orcs passem por aquilo e apareçam no
inferno.”
O combalido draenei se ergueu e, lenta e deliberadamente, tomou o caminho de
volta ao acampamento, grato por poder apoiar-se no martelo, o qual havia se
tornado tão pesado ao longo das últimas semanas que era preciso carregá-lo de
cabeça para baixo, usando-o, sobretudo, como bengala.

Horas depois, Nobambo chegou ao destino e decidiu falar com Rolc. Juntos, eles
poderiam convocar uma reunião para tratar da questão da intolerância crescente
exibida por...

Nobambo parou na entrada da caverna de Rolc. Korin estava lá, deitada sobre um
cobertor. Estava tão transformada que já não se parecia como uma draenaia, mas
como um arremedo da raça. Ela estava adoecida e esquálida. Seus olhos estavam
amarelados, e seus antebraços estavam muitíssimo inchados. Os cascos estavam
destruídos a ponto de não restar nada além de duas protuberâncias ósseas, e a
cauda não passava de um cotoco diminuto. Apesar da aparência frágil, ela se
debatia nos braços de Rolc.

– Eu quero morrer! Eu só quero morrer! Não aguento mais essa dor!

Rolc a segurava com firmeza. Rapidamente, Nobambo inclinou-se para perto dela.

– Não sejas tola! – Nobambo olhou para Rolc. – Não podes curá-la?

O sacerdote deu de ombros para o amigo. – Eu tentei!

– Solta-me! Deixa-me morrer!

Um brilho emanou das mãos de Rolc, o que acalmou Korin, subjugando-a


gentilmente até apaziguar a agitação e, finalmente, cessá-la por completo. A
draenaia começou a chorar copiosamente e se encolheu em posição fetal. Rolc
fez um movimento com a cabeça, indicando que eles deveriam sair da caverna.

Uma vez lá fora, Rolc olhou fixamente para Nobambo. – Fiz tudo que eu sabia. É
como se o corpo dela, assim como sua vontade, tivessem sido degradados.

– Deve haver algo que possa... Alguma forma de... – Nobambo lutava para
comunicar seus pensamentos adequadamente. – Temos de fazer alguma coisa! –
afirmou, finalmente.

Rolc ficou em silêncio por um momento. – Estou preocupado com eles e contigo.
Temos recebido relatórios a respeito de sobreviventes de Shattrath em outros
acampamentos que estão passando pela mesma situação. Seja lá o que isso for,
não está respondendo a qualquer tipo de tratamento e não está melhorando. O
nosso povo teme que, se providências não forem tomadas, estaremos todos
perdidos.
– O que estás dizendo? O que aconteceu?

– É só conversa – Rolc suspirou – por enquanto. Tentei ser a voz da razão, mas
nem mesmo eu sou capaz de defende-te e os demais por muito tempo. E, com
toda franqueza, nem sei se eu deveria.

Nobambo estava amargamente decepcionado com o amigo, a única pessoa em


quem ele podia confiar, e que agora sucumbia à mesma mentalidade limitada e
paranoica dos outros.

Sem palavras, Nobambo deu-lhe as costas e foi embora.

O estado de Korin piorou, e a decisão que Nobambo temia, aquela mencionada


por Rolc, foi finalmente tomada alguns dias depois.

Nobambo, Korin, Estes e Herac foram reunidos perante os membros do


acampamento. Alguns estavam com expressões sombrias; uns pareciam tristes;
outros, impassíveis. Quanto a Rolc, ele parecia resoluto apesar do conflito, tal
como um caçador que prefere não matar, mas sabe que precisa comer e está se
preparando para desferir um golpe fatal na presa.

No final das contas, Rolc havia sido escolhido pelo acampamento como porta-voz:

– Isso não é fácil para mim, tampouco para qualquer outro aqui... – Apontou para
a assembleia estoica atrás de si. – Mas conversamos com representantes dos
outros acampamentos e, juntos, chegamos a uma decisão. Acreditamos que será
melhor para todos os envolvidos se os... afligidos... se juntarem, mas... separados
dos demais, que estão saudáveis.

Korin, que parecia particularmente devastada, indagou rispidamente:

– Estamos sendo banidos?

Antes que Rolc pudesse responder, Nobambo interrompeu:

– É exatamente isso! Não conseguem resolver os nossos problemas, então eles...


eles acham que podem nos ignorar! Eles nos querem longe!

– Não temos como ajudar-vos! – exclamou Rolc. – Não sabemos se essa doença
é contagiosa, e a capacidade física reduzida, as faculdades mentais debilitadas
são um risco que não podemos assumir. Somos muito poucos para nos
permitirmos correr riscos!

– E quanto ao outro, o Akama? – Korin perguntou.

– Ficará aqui, sob meus cuidados, até acordar – respondeu Rolc – se ele acordar.
– Quanta gentileza a tua – Nobambo resmungou, sarcástico.

Rolc se pôs de pé, desafiadoramente, perante Nobambo. Apesar da saúde


precária, Nobambo se empertigou e encarou Rolc.

– Tu próprio disseste se perguntar se a Luz silenciou-se para punir-te pelo


fracasso em Shattrath – disparou Rolc.

– Dei tudo de mim em Shattrath! Eu estava preparado para morrer para que tu,
para que todos pudessem viver!

– Sim, mas tu não morreste.

– Mas o que estás... Estás dizendo que desertei?

– Acho que, se a Luz abandonou-te, ela o fez com razão. Quem somos nós para
questionar a Luz? – Rolc olhou para trás em busca de apoio dos demais. Alguns
desviaram o olhar, mas muitos não. – Qualquer que seja o caso, acho que é hora
de aceitares tua nova posição na ordem das coisas. Acho que é hora de levar o
bem-estar dos demais em consideração...

Rolc se abaixou e arrancou o martelo das mãos de Nobambo.

– E acho que está na hora de parares de tentar ser algo que não és.

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“Foi um erro vir aqui. Nada mudou. Você ainda é krokul? Você permanece
degradado.”

Não. Eles iriam ouvir. Ele os faria ouvir. Havia, afinal de contas, a epifania.
Nobambo desviou os olhos do grupo para a fonte no centro da pequena praça.
Daquela água, ele pediu clareza.

O degradado sentiu os pensamentos ganhando foco. Agradeceu à água e,


apoiando-se fortemente em sua bengala, forçou-se a confrontar o mar de olhares
de desaprovação. Houve um momento de silêncio desconfortável.

– Isso é uma tolice – alguém sussurrou.

De início, ao tentar falar, a voz de Nobambo soou pequena e rouca, distante até
mesmo para os seus próprios ouvidos. O degradado limpou a garganta e
recomeçou, com mais potência:

– Eu vim aqui para... falar com vocês sobre...


– Estamos desperdiçando nosso tempo. O que um krokul tem a dizer para nós?

Mais vozes de discordância engrossaram o coro. Nobambo fraquejou. Seus lábios


se moviam, mas a voz não saía.

“Eu estava certo. Isso foi um erro.”

Nobambo virou de costas para ir embora e olhou dentro dos olhos plácidos do
profeta, o líder dos draeneis, Velen.

– Vais a algum lugar? – O vidente olhou para Nobambo, criticando-o.

***************

Nobambo sentou no alto de uma montanha de onde se podia avistar as terras


calcinadas. Elas não haviam mudado muito nos últimos... Quanto tempo fazia
desde a primeira vez que ele se aventurara aqui? Cinco anos? Seis?

Quando ele e os demais foram exilados para o novo acampamento dos krokul,
como eles finalmente começaram a ser chamados, Nobambo estava frustrado e
deprimido. Foi ao ponto mais distante possível na única direção que lhe foi
permitida. Sempre quisera investigar os picos na fronteira do Pântano Zíngaro,
mas na base dessas montanhas ficavam os acampamentos dos que não foram
“afetados”, uma região agora proibida para a “espécie” dele.

E assim, ele se aventurou em meio ao calor escaldante até os picos muito acima
dos desertos mais desolados de Draenor; desertos que um dia foram clareiras
verdejantes, antes da política de ódio e genocídio dos orcs; desertos criados por
bruxos e suas magias perversas.

Ao menos os orcs eram um problema menor nessa época. Alguns grupos errantes
ainda patrulhavam, e eles ainda matavam draeneis assim que os avistavam.
Contudo, os selvagens de pele verde estavam em menor número. Muitos deles
partiram através do portal havia anos e não voltaram.

Como resultado, os draeneis começaram a construir uma nova cidade em algum


lugar do pântano, como soube Nobambo. “Mas isso não importa”, ele pensou. “É
uma cidade à qual nunca serei bem-vindo”.

As mudanças em Nobambo e nos demais continuaram. Apêndices surgiam onde,


antes, havia pele lisa. Manchas e verrugas e estranhas protuberâncias cresciam
pelo corpo todo. Os cascos, uma das características mais particulares dos
draeneis, já não existiam, substituídos por coisas que, agora, lembravam pés
malformados. E tais alterações não se restringiam ao físico. Seus cérebros
lutavam mais e mais para manter as funções superiores. E alguns, alguns se
perderam por completo, tornando-se cascas ocas que perambulavam sem rumo,
conversando com plateias que só existiam em suas mentes. Alguns desses
Perdidos simplesmente acordavam um dia e partiam para nunca retornar. Um dos
primeiros a fazer isso foi Estes. Agora, restava a Korin apenas um dos
companheiros com os quais ela viveu aqueles momentos sombrios em Shattrath.

“Basta”, pensou Nobambo. “Pare de enrolar. Faça o que você veio fazer”.

O krokul procrastinava porque parte dele sabia que esta vez não seria diferente
das outras. Mas, ainda assim, ele o faria, assim como ele havia feito todo dia ao
longo das últimas semanas... porque, de alguma forma, uma parte dele ainda tinha
esperança.

Ele fechou os olhos, expulsou todos os pensamentos externos da mente e tentou


alcançar a Luz. “Por favor, só esta vez... permita-me saciar a minha sede da sua
radiante glória”.

Nada.

“Insista.”

Nobambo se concentrou com cada grama de foco que lhe restava.

“Nobambo.”

O krokul quase saltou para fora da própria pele, seus olhos arregalando-se
enquanto ele se apoiava com a mão. Olhou em volta e, então, mirou o céu.

“Encontrei você!”

Nobambo viu Korin e suspirou profundamente, balançando a cabeça. Korin


chamou-lhe a atenção:

– Você já deveria saber que a Luz não voltará a lhe favorecer.

Ela se aproximou e sentou ao lado de Nobambo, parecendo esgotada e algo


confusa.

– Como você está? – perguntou o krokul.

– Não pior que o normal.

Nobambo esperava mais palavras, contudo Korin simplesmente observava a


paisagem hostil.

Despercebida pelos dois, uma figura os espiava de uma pilha de pedras,


observando. Ouvindo.
– Você queria me contar alguma coisa?

Korin ponderou por um momento e finalmente disse:

– Ah, sim! Um novo membro chegou ao acampamento hoje. Disse que os orcs
estavam... se reagrupando. Preparando-se para alguma coisa. Eles estão sendo
comandados por um novo... como eles chamam? Aqueles que fazem magia
negra?

– Bruxo?

– Sim, acho que era isso. Korin se levantou e deu um passo à frente, parando a
poucos centímetros da beirada do penhasco. Ficou em silêncio por um longo
momento.

Não longe dali, a figura atrás das pedras partiu tão silenciosamente quanto
chegara.

Os olhos de Korin estavam distantes, e da mesma forma soava a voz rouca, como
se ela não estivesse inteiramente presente. – O que você acha que aconteceria se
eu desse mais alguns passos?

Nobambo hesitou, sem saber ao certo se ela estava ou não brincando:

– Acho que você cairia.

– Sim, o meu corpo cairia. Mas, por vezes, acho que espírito... voaria? Não, não é
essa a palavra. Qual é a palavra?... Subir e subir, como se eu estivesse voando?

Nobambo pensou e respondeu:

– Flutuar?

– Sim! O meu corpo cairia, mas o meu espírito flutuaria.

Dias depois, Nobambo acordou com a cabeça doendo e o estômago vazio.


Decidiu sair e ver se restava algum peixe da refeição da noite anterior.

Enquanto saía da caverna, ele notou que os demais estavam reunidos, olhando
para cima, protegendo os olhos. Ele saiu debaixo de um cogumelo gigante, ergueu
os olhos e também foi forçado a protegê-los, boquiaberto.

Uma fenda aparecera ao longo do céu avermelhado da aurora. Era como se um


rasgo tivesse sido aberto na malha do mundo, permitindo a intrusão de luzes
estonteantes e de alguma espécie de energia crua e inacreditavelmente poderosa.
A fenda ondulava e dançava tal como uma imensa serpente de pura luz.

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