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QUIXADÁ - CEARÁ
2020
ERIKA GONÇALVES DE MENDONÇA
QUIXADÁ - CEARÁ
2020
ERIKA GONÇALVES DE MENDONÇA
A Deus, por ter me dado coragem em todos os momentos, principalmente quando, na solidão
da escrita, parecia que a ansiedade iria me devorar.
À minha família, por ser refúgio e amor, por sempre se preocupar com o meu bem-estar e por
ser a mais interessada nas minhas conquistas.
Ao meu querido orientador, Manoel Carlos, pessoa fabulosa que trouxe leveza e clareza ao
processo de escrita. Agradeço pelo entusiasmo de cada orientação, por sempre me encorajar e
acreditar nessa pesquisa. Agradeço pela paciência, pelas observações perspicazes e,
principalmente, por respeitar o meu tempo de escrita e me dar autonomia para produzir.
Aos professores do Mestrado Interdisciplinar em História e Letras (MIHL) que,
corajosamente, conseguiram tornar possível que mais alunos do interior tenham acesso à pós-
graduação. E pelas frutíferas discussões realizadas em cada disciplina.
Aos professores da banca de qualificação, Carlos Jacinto e Rodrigo Marques, pelas
importantes contribuições ao desenvolvimento dessa pesquisa.
Aos professores da banca de defesa, Irenísia Oliveira e Tyrone Cândido, pelo olhar minucioso
e sensível ao avaliar esse trabalho e pelo incentivo ao prosseguimento da pesquisa.
À minha querida turma de mestrado que, mesmo com toda competitividade estimulada pelo
academicismo, se manteve muito unida e solidária. Agradeço pelos lindos momentos de
convivência, nos quais compartilhamos as angústias da pesquisa, mas também risos e muita
afetividade.
À diretora da escola onde trabalho, Cícera Oliveira, uma grande profissional, justa e
competente, por ter me ajudado tanto na difícil empreitada de ser professora e fazer mestrado
em outra cidade. Obrigada por compreender as minhas ausências da escola e, principalmente,
por flexibilizar o meu horário de trabalho, de modo que eu pudesse participar das aulas no
mestrado.
“Presentemente eu posso me considerar um
sujeito de sorte
Porque apesar de muito moço me sinto são e
salvo e forte
E tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e
anda do meu lado
E assim já não posso sofrer no ano passado”.
Este trabalho tem por objetivo analisar o modo como Rodolfo Teófilo, um literato cearense,
se apropriou das teorias cientificistas europeias do século XIX para elaborar uma visão sobre
o sertão cearense, através de sua literatura naturalista. Analisamos quatro romances
publicados na década de 1890, momento de maior produção romanesca desse autor, nos quais
ele se dedicou a produzir uma literatura sobre o povo cearense. As obras analisadas são A
Fome (1890), Os Brilhantes (1895), Maria Rita (1897) e O Paroara (1899). Embora sejam
obras publicadas na década de 1890, nosso recorte se estende desde a década de 1870,
momento em que as ideias racialistas passaram a ser difundidas no campo intelectual
brasileiro e momento de formação acadêmica desse intelectual na Faculdade de Medicina da
Bahia, onde ele teve acesso a esse aporte teórico. A análise do texto parte de uma perspectiva
diacrônica em relação ao momento de sua produção (REUTER, 2016), articulando o
intrínseco da obra (conteúdo) ao extrínseco (condições de tempo e lugar). Buscamos tornar
clara a forma original como esse literato reinterpretou e arranjou certas teorias cientificistas
para escrever sobre os sertanejos cearenses, baseado em elementos culturais e sociais que
marcaram sua visão sobre aquele povo.
This work aims to analyze the way Rodolfo Teófilo, a cearense writer, utilized the European
scientific theories of the XIX century to elaborate an image about Ceará backwoods through
his naturalist literature. It was analyzed four novels published in the 1890s, moment of greater
novel production of the author. The works analyzed are A Fome (1890), Os Brilhantes (1895),
Maria Rita (1897) and O Paroara (1899). Although, they are works published in the 1890s,
the period analyzed extends to 1870’s, a moment in which racial ideas started to be spread in
the intellectual Brazilian field and a moment of that author’s own academic training in Bahia
Faculty of Medicine, where he found that theoretical basis. The analysis of this text is based
on a diachronic perspective in relation to the moment of its production (REUTER, 2016),
articulating the intrinsic elements of the work (content) to the extrinsic ones (conditions of
time and place). We aim to make clear the original way in which this writer reinterpreted and
arrenged some scientific theories to write about the cearense backwoodsmen, based on
cultural and social elements that marked his vision of that people.
1 INTRODUÇÃO................................................................................................... 11
2 “A CIÊNCIA SERVE DE RÓTULO AO LITERATO”: A RELAÇÃO DE
RODOLFO TEÓFILO COM A DISCUSSÃO CIENTIFICISTA ................ 18
2.1 RODOLFO TEÓFILO: UM HOMEM DE CIÊNCIA QUE SE TORNOU
LITERATO ............................................................................................................ 19
2.2 O DEBATE NATURALISTA NO CEARÁ E A CONTRIBUIÇÃO DE
RODOLFO TEÓFILO ÀS PRÁTICAS LETRADAS DE SUA PROVÍNCIA .... 31
2.3 “MENS SANA IN CORPORE SANO”: A DISCUSSÃO RACIAL NO BRASIL
E A FORMAÇÃO DE RODOLFO TEÓFILO NA FACULDADE DE
MEDICINA DA BAHIA........................................................................................ 40
3 “UMA VARIEDADE DE TIPOS DE COR”: MISCIGENAÇÃO E
CIVILIZAÇÃO NA COLONIZAÇÃO DO CEARÁ ....................................... 55
3.1 UM MISTO DE BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO”: A INSERÇÃO DA RAÇA
BRANCA NO SERTÃO CEARENSE E A PERSPECTIVA COLONIALISTA
SOBRE O “OUTRO” ............................................................................................ 55
3.2 UMA VISÃO AMBÍGUA SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DO INDÍGENA
PARA A FORMAÇÃO DO POVO CEARENSE ................................................. 27
3.3 A NEGATIVIDADE SOBRE A RAÇA NEGRA NO PROCESSO DE
COLONIZAÇÃO DO CEARÁ ............................................................................ 92
4 A ATUAÇÃO DE DIFERENTES RAÇAS EM MOMENTOS DE
INSTABILIDADE SOCIAL: SECA, MIGRAÇÃO E BANDITISMO ......... 104
4.1 “INDIVÍDUOS DE TODAS AS CASTAS SE CONFUNDIAM ALI”: SECA,
DEGENERESCÊNCIA E SUPERIORIDADE DA RAÇA BRANCA ................ 104
4.2 O NOMADISMO DA RAÇA VERMELHA: AS LEIS DO ATAVISMO
EXPLICANDO O PROCESSO DE MIGRAÇÃO DO POVO CEARENSE ....... 120
4.3 A RAÇA BRANCA EM DEFESA DO CÓDIGO DE ÉTICA SERTANEJA E
A DEGENERESCÊNCIA DOS BANDIDOS MISCIGENADOS ....................... 135
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 151
RERERÊNCIAS .................................................................................................. 157
11
1 INTRODUÇÃO
Academia Cearense de Letras, publicada em 1979, juntamente com Violação, e faz parte da
“Coleção Dolor Barreira”, foi organizada por Otacílio Colares, também responsável pela
atualização ortográfica, introdução crítica e notas explicativas.
De acordo com Yves Reuter, a análise do texto literário pode ocorrer em três
dimensões, de modo exclusivo ou não: a análise do texto em si; a análise da relação do texto
com sua produção e a análise da relação do texto com sua recepção (REUTER, 2016, p. 178).
Essa segunda dimensão - que se ocupa em investigar o texto literário relacionando-o às
condições de criação literária - é a que nos interessa. Assim, ao analisar as visões de mundo e
ideias transformadas em textos literários, tais como as teorias cientificistas na produção de
Rodolfo Teófilo, supõe investigar as condições de sua produção, situando seu autor histórica e
socialmente, numa perspectiva diacrônica.1 Ao longo de nossas leituras várias questões foram
emergindo como: Quem foi Rodolfo Teófilo e qual era o lugar social de fala? Por que o
cientificismo aparece de forma tão marcante em sua produção? Qual era a relação entre esse
intelectual e o fazer científico e qual era o papel atribuído à ciência naquele período? Como
esse literato realizou essa mediação entre o cientificismo e a escrita literária? Se havia um
conjunto de teorias científicas sendo discutidas no Brasil, quais eram os teóricos que,
possivelmente, ele lia, de acordo com sua formação e quais ele selecionou para elaborar
explicações sobre a vida local da província cearense e do povo sertanejo?
As obras aqui analisadas foram publicadas na década de 1890, período de maior
produção romanesca do autor. Porém, nosso recorte temporal se estende desde a década de
1870, momento em que Rodolfo Teófilo teve acesso a essas teorias científicas, por meio de
sua formação na Faculdade de Medicina da Bahia. Antonio Candido (1985) alerta que a
abordagem do texto literário deve articular tanto o intrínseco da obra, logo, seu conteúdo - que
engloba suas temáticas, tramas e dimensões formais e estéticas - quanto o extrínseco,
referindo-se ao contexto social e temporal em que foi escrita. É preciso ponderar as
características específicas da fonte literária, esclarecendo, por exemplo, de que literatura está
falando; quais suas características e como determinados autores concebem suas obras, com o
objetivo de inserir autores e obras literárias em processos históricos específicos.
No texto “Literatura: a fonte fecunda” de Antonio Celso Ferreira (2011), o autor
nos mostra que é função do historiador tomar a literatura sem reverências, sem reducionismos
estéticos, dessacralizá-la, submetê-la a um interrogatório sistemático. Assim, ao nos
1
Para Reuter (2016, p. 180), a história literária, ao analisar um texto, parte de um ponto de vista diacrônico, isto
é, de uma perspectiva histórica. Em outras palavras, relaciona o texto e o autor ao contexto histórico específico
em que foi produzido.
14
depararmos com uma obra literária devemos tirar a poeira da superfície e investigar o que está
para além de rotulações e classificações genéricas. No entanto, embora tenhamos clareza que
muitas obras não cabem em determinados rótulos, em alguns casos pode ser um interessante
recurso metodológico considerar diferentes formas de classificação, tais como o gênero em
que a obra foi escrita e o movimento literário no qual ela se insere. No contexto do tempo e do
lugar, no emaranhado das relações históricas, sociais e culturais, no qual o texto foi elaborado,
ele revela sua estética, seu estilo, sua linguagem e seus significados, os quais são criações
coletivas e possuem sentido, aceitação ou rejeição, nesse ambiente e tempo. Partindo dessa
análise, nos parece ser de grande importância considerar o respaldo que teve o movimento
naturalista nas últimas décadas do século XIX e o interesse de Rodolfo Teófilo em se inserir
nesse movimento literário que se constituía em uma das principais formas de divulgação do
pensamento científico naquele período. Porém, o nosso objetivo não é tentar engessar as obras
a tal modelo, o que poderia representar uma perda para o entendimento da riqueza de
significados que cada uma possui. Como veremos a escrita literária de Rodolfo Teófilo se
particulariza pela presença de um tensionamento entre a estética romântica e a naturalista que
interferiu na criação de enredos e personagens e a torna ainda mais rica e complexa.
Considerando que Rodolfo Teófilo se apropriava um de aporte teórico e de
elementos estéticos compartilhados em um campo intelectual mais amplo, acreditamos
também que sua criação foi bem original. Ele se apropriou de forma bastante singular desses
referenciais para elaborar uma visão sobre o sertão cearense. Para Luciana Murari (2009), tão
significativo quanto “reconhecer a participação da literatura num ambiente intelectual mais
amplo que fornece a ela referências temáticas e estéticas fundamentais, é compreender como
os próprios recursos da narrativa respondem a grandes dramas humanos e sociais” (MURARI,
2009, p. 37). Através da forma como o literato vai costurando a trama desvendada em cada
obra é que ele transpõe suas visões sobre a realidade e seu modo de interpretar a vida. Através
de seus romances, Rodolfo Teófilo fez uma reinterpretação das teorias cientificistas, baseado
em elementos culturais e sociais que marcaram sua visão sobre os sertanejos cearenses. Era
nítido o seu interesse em registrar características que identificavam e diferenciavam esse
povo. E essa forma de registro possui a especificidade de uma linguagem própria, que é
simbólica.
Como prática intelectual, a literatura constrói certa história da cultura e do social,
institui uma memória em prejuízo de outras. Assim, é de suma importância esclarecer que as
obras aqui analisadas constituem um repertório que foi capaz de contribuir para criar um
imaginário sobre o Ceará e sobre o povo sertanejo no final do século XIX. Elas instituem a
15
memória de um homem letrado e citadino sobre os sertanejos. Desse modo, atentamos para a
forma como Rodolfo Teófilo dava vida às teorias que defendia, a partir de suas personagens e
dos dramas humanos por elas encarnadas. Ele realizou esse trabalho “através da manipulação
da própria linguagem literária, da fabulação das personagens, da imaginação de seus conflitos,
da concepção do enredo como encadeamento de fatos dotados de uma determinada lógica de
sentido” (MURARI, 2009, p. 37-38). Ele apresentou importantes elementos constitutivos de
uma cultura sertaneja, fortemente ancorada no patriarcalismo, e de uma sociedade atravessada
por desigualdades de gênero, raça e classe. Ele se encarregou de falar sobre os dramas e
problemas vividos por aquele povo, tais como as estiagens, as migrações e o banditismo rural.
Além de ser apropriado para a compreensão de diferentes realidades, como é o
caso do sertão cearense, o uso das teorias cientificistas no território brasileiro também foi
bastante original por combinar de forma inusitada diferentes concepções, por vezes, até
divergentes, como veremos ao longo de nossas análises. Nesse sentido, Luciana Murari alerta
que é inútil tentar ater-se a modelos fechados e atribuições rígidas ao analisar essas correntes
de pensamentos. Pois, essas se confluíam e se chocavam em um mesmo ambiente literário, no
conjunto da produção intelectual de um mesmo autor e, até no interior de uma mesma obra
(MURARI, 2009, p. 68). Assim, nossa problemática consiste em desvendar como diferentes
concepções e teorias cientificistas - tais como darwinismo social, evolucionismo,
determinismo biológico e climático, entre outros - se combinaram e até se chocaram no
conjunto da produção literária de Rodolfo Teófilo, ou mesmo dentro de cada obra aqui
analisada, para explicar o modo de vida do povo cearense e, mais especificamente, do sertão.
Nossa hipótese é que o determinismo racial se destaca, entre tantas outras teorias
cientificistas, na sua construção narrativa sobre a vida sertaneja do povo cearense. A
concepção de raça que permeia todo esse trabalho não é vista como uma definição acabada e
atemporal, mas, ao contrário, que foi construída política e socialmente e que ganhou
embasamento científico no século XIX.
Entendido que o nosso objetivo é compreender a forma como as teorias
cientificistas do século XIX foram reinterpretadas por Rodolfo Teófilo, para elaborar uma
visão sobre o povo sertanejo em sua produção romanesca, a estruturação do trabalho foi
pensada conforme a necessidade de deixar mais claro ao leitor o objetivo colocado. No
primeiro capítulo, intitulado “‘A ciência serve de rótulo ao literato’: a relação de Rodolfo
Teófilo com a discussão cientificista” buscou-se primeiro compreender a forma como esse
intelectual se relacionava com a ciência e o valor atribuído à mesma. Para, assim, destacarmos
a grande receptividade que esse tipo de conhecimento obteve, como um discurso portador de
16
através dos romances A Fome, Os Brilhantes e O Paroara. Ressalta-se que ao tratar desses
fenômenos, o autor estabeleceu diferentes comportamentos para os sertanejos figurados em
suas obras, tendo por base, principalmente, o pertencimento racial dessas personagens. Porém,
a questão racial foi mesclada a vários outros elementos, como a atuação do meio físico e
social, a degenerescência, o nível de instrução desses sujeitos e a presença de doenças
hereditárias, entre outros. O autor, ao tratar desses elementos que ele considerava como
definidores da índole dos sertanejos, também deixou transparecer elementos culturais e
sociais que atuavam intensamente no modo de viver daqueles sujeitos, tais como as
desigualdades sociais e de gênero, a cultura de valentia e os valores assentados na ideia de
honra sertaneja. Todas essas questões foram consideradas ao abordamos a forma singular
como esse literato figurou os sertanejos cearenses.
18
direto ou indireto na vida das pessoas e na organização das sociedades. Relacionado ao valor
atribuído à ciência, a partir da segunda metade desse mesmo século, a função desempenhada
pelo “homem de sciencia” passou a ganhar notoriedade. Ele passou a se especializar cada vez
mais e conquistar maior independência (SCHWARCZ, 1996, p. 39).
Pietra Diwan (2007) mostrou que a segunda metade do século XIX foi a era de
ouro da Biologia, a qual passou a exercer uma grande influência sobre o pensamento humano
e a elaborar explicações para os diferentes fenômenos e questões apresentadas por seu tempo,
sejam eles científicos ou não. Assim, os problemas de ordem social, econômica e política
ganharam explicações biológicas. O seu poderio originou-se das descobertas que atingiram
três campos dessa ciência: a fisiologia, a microbiologia e o evolucionismo (DIWAN, 2007, p.
27).
Na fisiologia, ciência que explica o funcionamento dos órgãos e sua relação com o
organismo, destacou-se o pensamento de Claude Bernard (1813-1878), o qual compreendia
que a vida poderia ser explicada pelo viés físico-químico. Nessa perspectiva, o organismo
vivo era visto como uma máquina que dependia do bom funcionamento de seus órgãos para
que o indivíduo se mantivesse saudável. Essa compreensão, mais restrita ao paradigma
médico, passou a influenciar fortemente o pensamento de Rodolfo Teófilo, desde que esse
começou a estudar na Faculdade de Medicina da Bahia. Destacamos que é muito comum
encontrar descrições e explicações fisiológicas para os fenômenos narrados nos romances aqui
analisados. A presença dessa perspectiva fisiológica aparece de forma muito intensa em seu
romance de estreia, A Fome:
Uma alimentação aquela que, embora copiosa, não dispensava o organismo de gastar
reservas, reparando as perdas dos tecidos. Assim, em breve estariam inanidos e
morreriam à míngua de alimentos plásticos.
Os conhecimentos de Freitas eram resumidos, não sabia de fisiologia. Para ele a
vida se mantinha à custa de qualquer alimentação. Pensando assim, a mucunã era a
mais útil de todas as plantas indígenas.
(...)
A luz vinha, mas não podia tonificar-lhes os músculos depauperados pela inanição,
relaxados pela atonia, pela fome! Nas fisionomias macilentas percebiam-se as
torturas impostas pela profunda discrasia do sangue. A miséria e os dias de jejum
gastaram as reservas nutritivas acumuladas, comeram os glóbulos vermelhos do
sangue, e, uma vez desaparecidos estes da circulação, o líquido nutritivo
desfibrado perdera uma das qualidades mecânicas, a densidade, e a vida
tornou-se penosa e aflitiva (TEÓFILO, 1979, p. 40 e 49. Grifo nosso).
um fator capaz de tornar o organismo doente e causar a morte, caso não fosse tratada. Ao
afirmar que aquele personagem, um sertanejo cearense, não possuía conhecimento de
fisiologia, Rodolfo Teófilo, através do narrador, procurou demonstrar o seu conhecimento
médico sobre o funcionamento do organismo. Essa característica se repetiu em vários
momentos da obra, tornando a leitura muitas vezes enfadonha. Talvez por uma mistura de
pedantismo com o desejo de instruir o seu público leitor, Rodolfo Teófilo deixou transparecer,
em seu romance, a forte influência da fisiologia sobre o pensamento médico do período. Esse
pensamento foi transposto para o âmbito social, de modo que a sociedade passou a ser vista
como um organismo. Diwan destaca que, segundo essa perspectiva, “é do equilíbrio da
sociedade em relação a seus grupos que dependerá a sobrevivência do Estado” (DIWAN,
2007, p. 28).
Outra ciência biológica que ganhou destaque no século XIX, após as descobertas
de Louis Pasteur (1822-1895), foi a microbiologia. A descoberta dos micróbios, causadores de
várias doenças, possibilitou a criação de vacinas e outras técnicas curativas para as doenças e
favoreceu ao desenvolvimento da saúde pública e da medicina social. Destaca-se que, no
século XIX, ainda coexistiam várias doutrinas médicas para explicar os fatores que
ocasionavam a disseminação de doenças. Essas teorias relacionavam a origem e a proliferação
da doença com o meio, seja ele natural ou socioeconômico.2
Rodolfo Teófilo não apenas tinha conhecimento de microbiologia, como também
teve uma importante atuação nesse campo, ao fabricar a vacina contra a varíola no Ceará.
Após o surto epidêmico dessa doença na província cearense, durante a seca de 1878, que
chegou a matar milhares de pessoas em um curto período de tempo, ela voltou a se manifestar
durante a seca 1900. Maria Célia Costa (2004) lembra que nesse período Rodolfo Teófilo
“montou um vacinogênio particular, que produzia vacina de qualidade, e organizou a Liga de
Vacinação do Ceará. Foi inestimável sua contribuição para extinção da varíola no estado, e,
desde 1905, são raríssimos os casos de varíola detectados em Fortaleza” (COSTA, 2004, p.
72).
2
Uma das teorias médicas mais correntes no período era a dos miasmas (doutrina miasmática), os quais
consistiam em emanações nocivas produzidas pelo ambiente, resultantes da decomposição de substâncias
orgânicas, e que eram transmitidas pelo ar. De acordo com a “doutrina telúrica”, as doenças eram produzidas por
emanações malignas provenientes do solo. Para os adeptos da “medicina das constituições”, as doenças
poderiam ser determinadas pelo clima ou por um conjunto de fenômenos naturais. Outra teoria, mais radical, era
a “teoria contagionista”, que defendia a existência de um princípio de transmissão mórbida, o qual se originava
no organismo humano e seria altamente contagioso, através do ar. Embora algumas dessas teorias se
confrontassem, muitas vezes, seus adeptos se apropriavam delas de diversas formas, fundindo-as e elaborando
explicações das mais diversas possíveis (COSTA, 2004).
22
biológicos, além de Charles Darwin, também contribuíram para a teoria da evolução dos seres
vivos, pela seleção natural, Alfred Wallace e Henry Bates.
O evolucionismo, nos estudos biológicos, partia da compreensão de que a luta
pela vida exigia um grande esforço por parte dos organismos vivos, sobrevivendo apenas os
que possuíam maior capacidade de se adaptar às mudanças do meio. Conforme Henrique
Barros (2003), “a evolução não leva a uma espécie mais desenvolvida, ela faz com que
espécies se adaptem a um mundo mutável não só pela ação de fatores distantes, como pela
própria presença de organismos que agem constantemente sobre o meio” (BARROS, 2003, p.
11). Essa teoria se tornou polêmica porque admitia a inconstância das espécies e a
descendência com modificação, o que se chocava com a versão do criacionismo. Nesse
sentido, reforçamos que essa teoria não teve impacto apenas científico, mas adentrou no
universo das mentalidades, desencadeou questões filosóficas e religiosas no debate científico
e reorganizou todo um quadro cultural do mundo ocidental.
Mas, a maior complexidade dessa teoria, elaborada no campo da Biologia, foi
aplicá-la aos estudos sociais e históricos, pois a teoria da evolução, proposta por Darwin e
Wallace, teve como referência o tempo da natureza, um tempo muito lento, que leva milhões
de anos para que as transformações biológicas aconteçam. Na história humana, os fenômenos
sociais acontecem em um ritmo muito mais acelerado que o tempo da natureza, ainda mais
com o advento da modernidade. A transferência de concepções evolucionistas para o campo
social fez surgir aquilo que Barros (2003, p. 13) denomina como uma anomalia no
pensamento ocidental, o darwinismo social. Anomalia porque associou a evolução das
espécies aos diferentes níveis de desenvolvimento técnico ocorrido nas sociedades humanas,
hierarquizando-as. Nesse sentido, o darwinismo social transformou uma teoria científica em
libelo ideológico para justificar o domínio de um povo sobre outros. Conceitos como
“competição”, “seleção do mais forte”, “evolução” e “hereditariedade” passaram a ser
largamente aplicados nas análises dos comportamentos humanos e sociais. O darwinismo foi
amplamente apropriado e até mesmo distorcido pelas diferentes disciplinas sociais –
antropologia, sociologia, história, teoria política e economia –, formando, assim, uma geração
social-darwinista.
Acreditava-se que o universo era uno e, portanto, todas as esferas – o homem, a
sociedade, a cultura, a arte, o mundo físico-natural – estariam submetidos às mesmas leis.
Sendo a ciência um saber universalista, com o seu notável poder de síntese sobre os
conhecimentos existentes, ela seria a única capaz de fornecer instrumentos para a
compreensão e descrição das leis que regem o universo. “Defendia-se, deste modo, que a
24
ciência era capaz de produzir um saber direto, objetivo e imediato do qual estaria
automaticamente excluída a presença subjetiva do estudioso, capaz de produzir um saber
positivo, colado à realidade” (MURARI, 2009, p. 67).
Foi em meio à euforia das descobertas do século XIX que as ciências naturais se
difundiram rapidamente, assim como também os seus métodos de observação e
experimentação da realidade. Esses métodos passaram a ter grande importância por serem
considerados eficazes para explicar o mundo físico. A ciência passou a se constituir não
apenas como a forma de saber superior às demais, mas também, como a única capaz de
promover a redenção da humanidade, rumo ao progresso.
De acordo com Melo e Aquino (2014), a “era da ciência” se colocou em
contraposição à “era dos mitos” e passou a criticar tudo o que pudesse se relacionar às
explicações tidas como fantasiosas e ilusórias do real, tais como as religiões3 e os mitos. Essa
tendência está ancorada na materialidade do seu objeto, ou seja, aquilo que pode ser
observado, controlado, manipulado e medido. Porém, esses autores nos mostram que “a era da
ciência além de conservar a consciência mítica – já que o mito é inerente ao homem – cria seu
próprio mito: o mito da ciência” (MELO, AQUINO, 2014, p. 94). Foi desse novo mito que se
construiu a base do cientificismo, tão marcante no século XIX e no pensamento de Rodolfo
Teófilo. Entendemos o cientificismo como algo que extrapola o fazer científico e se constitui
em uma ideologia que “cria um conjunto de ideias, princípios e valores que refletem sua visão
de mundo, onde por considerarem detentores do monopólio do saber objetivo e racional,
julgam-se detentores da única verdade possível” (MELO, AQUINO, 2014, p. 94).
É comum aos deterministas, assim como aos cientificistas, de um modo geral,
recorrer ao tradicional prestígio da ciência como um conhecimento objetivo, livre de qualquer
tipo de paixão ou interferência social e política. Stephen Gould (2014) mostrou que até as
pesquisas ditas exatas, que creditam grande confiabilidade nos números, podem ser
distorcidas ou manipuladas, mesmo que de forma inconsciente. Isso pode ocorrer desde o
estabelecimento de critérios de análise à forma como esses dados são expostos, organizados e
interpretados.
Por meio de uma perspectiva anacrônica, é fácil acusarmos os deterministas
biológicos de cometerem absurdos em nome da ciência. Porém, Stephen Gould afirma que
muitos deles não cometiam equívocos propositalmente e nem eram maus cientistas. Pelo
3
Isso não significa dizer que todos os cientistas se dispuseram de suas crenças religiosas. Muitos estudiosos
procuraram conciliar o conhecimento científico com o pensamento teológico e os dogmas religiosos, tornando,
por exemplo, o debate evolucionista cada vez mais complexo.
25
contrário, eles realizavam suas pesquisas com seriedade e ganharam grande respeito e
credibilidade entre seus pares. Entretanto, não convém acreditar que algum cientista consegue
se despir de suas crenças, paixões ou interesses e realizar um trabalho imparcial. “A ciência
deve ser entendida como um fenômeno social, como uma empresa corajosa, humana, e não
como o trabalho de robôs programados para recolher a informação pura” (GOULD, 2014, p.
5). Por se tratar de uma atividade realizada por seres humanos, a sua natureza é de cunho
social e não poderia ser diferente. Assim, a suposta neutralidade científica é uma quimera,
pois quando um cientista traça uma definição para seu objeto, a todo o momento ele faz
escolhas e pressupõe resultados, baseado em crenças preexistentes.
Uma forma clara de percebermos o quão ilusória é a ideia de imparcialidade das
pesquisas científicas, é que muitas delas partem de interesses particulares e satisfazem a
algum tipo de disputa pelo domínio do “poder”. Com a ideologia do cientificismo, o
conhecimento passou a ser, cada vez mais, instrumento de diferenciação social e de domínio
do poder. Melo e Aquino nos falam sobre essa forma de diferenciação:
Nas últimas décadas do século XIX, a literatura que não só possuía um status
privilegiado entre a intelectualidade brasileira – juristas, cientistas, médicos e
engenheiros eram também prosadores e poetas – como possuía uma inaudita
continuidade com os estudos científicos e técnicos e com a análise sociológica [...]
(MURARI, 2009, p. 34).
27
Ao afirmar que a criação literária esteve tão presa à epiderme da história, o que o
autor propõe não é uma relação de dependência, mas ressaltar o atuante papel da literatura
como registro, leitura e interpretação de aspectos múltiplos daquele complexo e diversificado
período histórico, apontando, assim, para a possibilidade de um frutífero diálogo entre Clio e
Calíope. A partir dessa perspectiva, a criação literária revela todo o seu potencial como fonte
histórica, não apenas pela referência a episódios e fatos históricos, mas como uma instância
multifacetada, repleta das mais variadas significações e sentidos.
E a forma literária por excelência da era do cientificismo é o romance naturalista.
“Minha crença é que o naturalismo, ou seja, o retorno à natureza, o espírito científico levado a
todo o conhecimento, é o agente mesmo do século XIX” escreveu Émile Zola, ideólogo e
realizador máximo do movimento (MURARI, 2009, p. 127). Sobre o projeto estético
naturalista, Charles Pinheiro (2011) destaca:
Como podemos ver, esse projeto estético literário tinha uma proposta de escrita
muito bem definida, que era a de representar fielmente a realidade, a partir do método
científico. Porém, diante da dificuldade – e hoje reconhecida impossibilidade – de alcançar
um objetivo tão audacioso, e diante do valor que era atribuído a essa objetividade, alguns
literatos disputavam, entre si, pela posse da verdade e pela filiação ao Naturalismo. Sem
propor uma explicação simplista para o fato, e evitando qualquer julgamento de valor,
destacamos a famosa disputa literária entre Adolfo Caminha e Rodolfo Teófilo.4
Charles Pinheiro (2011, p. 117) lembra que quando Zola, expoente do naturalismo
francês, estava elaborando um novo romance, ele fazia questão de vivenciar pessoalmente a
realidade que seria figurada. Registrava tudo que lhe chamasse atenção, por meio de
anotações, fotografias e entrevistas. Enfim, ele realizava um aprofundado estudo de campo e
coleta de dados. Nisso consistia o seu método experimental, em fotografar a realidade e
representá-la da forma mais fiel possível. Para Charles Pinheiro, Rodolfo Teófilo foi um
escritor que adotou de forma radicalizada esse método experimental de Zola. O autor d’A
Fome tinha esse anseio de que o seu primeiro romance fosse um retrato fiel das situações
vividas durante a seca de 1877. Desse modo, vejamos as declarações de Rodolfo Teófilo em
resposta a Adolfo Caminha às acusações de ter faltado com a verdade, ao escrever esse
romance:
De todas as injustiças que o Srº Caminha faz A fome a que mais me doeu e me
revoltou mesmo foi a falta de verdade nas scenas que descrevo. Tenho consciência
do contrario; percorri os abarracamentos, ouvi com grande attenção e piedade as
narrativas dos infelizes famintos e assim julguei ter photographado no meu livro,
não todos os episódios d‟essa angustiosa época, pois os que julguei mais
extraordinários sob o ponto de vista das mizerias humanas. Esse assumpto tratado
por Alencar, Aluisio ou Guerra Junqueiro daria paginas admiráveis de estylo e
verdade, diz o meu crítico. O meu amor próprio nunca cogitou de elevar-me às
grandes alturas onde pairam as águias. Não foi a ambição de glórias, de renome que
me fez escrever a historia da secca, mas a necessidade de deixar escriptas algumas
informações desse tempo aos nossos posteros. A minha envergadura é pequena para
alar-me as cumeadas onde estão Alencar, Aluísio e Junqueiro, e sei que descrevendo
a secca elles dariam paginas de melhor estylo, de mais arte, porem de mais verdade a
4
Para Charles Pinheiro, esses literatos, mesmo reivindicando uma escrita naturalista, trilhavam percursos
diferentes no fazer literário. Adolfo Caminha defendia o romance como documento social, mas as suas
influências mais profundas eram Eça de Queirós e Gustave Flaubert, enquanto Rodolfo Teófilo adotou o método
experimental de Zola, porém, de forma radicalizada. Pinheiro afirma ainda que em território brasileiro essas
influências se bifurcaram, havia os autores que acolhiam o modelo francês zolariano, outros o modelo português
queirosiano. “A diferença entre ambos foi que Eça de Queirós não adotou plenamente as ortodoxias das normas
naturalistas. Contudo, os dois autores faziam parte das leituras dos intelectuais brasileiros no final da década de
1870 e na década de 1880” (PINHEIRO, 2011, p. 113).
29
minha consciência diz que não [...] (TEÓFILO, O Pão, Nº 26, 15 de Outubro de
1895, p. 4).
Quando um romance tenta ocultar sua própria ficcionalidade em prol de uma maior
referencialidade, talvez os seus grandes modelos estejam efetivamente na ciência e
na informação jornalística, via de regra consideradas paradigmas da objetividade e
da veracidade. O leitor de uma obra científica ou de uma notícia de jornal pouco
observa a linguagem com que foram escritos, contanto que lhe transmitam uma
impressão de veracidade. Contanto que pareçam apontar para além de si mesmos,
para um mundo e uma linguagem extratextuais. Do mesmo modo, o leitor de um
texto “naturalista” é conduzido para fora da linguagem. Como se as emoções e a
sedução que a leitura porventura lhe possa provocar não adviessem de um texto, de
um modo próprio de narrar, de uma ficção internamente trabalhada. Oculta-se todo o
trabalho da linguagem, dissolve-se a ficcionalidade própria ao romance e obriga-se o
leitor a olhar o fato ficcional sempre em analogia a um referente extratextual ao qual
deve obrigatoriamente corresponder o mais possível (SÜSSEKIND, 1984, p. 37-38).
A physica tem também a sua história. (...) Não conheciam o methodo experimental,
contentavam-se com a observação dos factos, porém uma observação toda
incompleta. Nunca pediram à experiência a confirmação do que observavam. As
suas pesquizas não se bazeavam na analyse experimental, explicavam tudo conforme
as exigências de suas concepções puramente ideaes, e queriam assim penetrar nos
mysterios da natureza! De utopia em utopia pretendiam chegar ao descobrimento das
leis immutaveis que regem o mundo material. (...)
A base do estudo da physica foi então lançada e os laboratórios convertidos em
escolas do methodo experimental, cujas leis Bacon dictou em uma celebre obra o
Novum organum. O systema analytico alargava todos os dias o campo das
descobertas e cada século que passava registrava grandes inventos devidos ao
methodo experimental. É assim que Galileu escreve as leis do pendulo; Descartes
publica a sua Dioptrica; Pascal lança as bases da hydrostatica em um livro sobre o
equilíbrio dos liquidos; Newton publica um tratado de ótica e tão importante
n‟aquella época que illustrou o seu nome. Os limites da physica estavam traçados
(Teófilo, A quinzena, nº 15, 26 de Agosto de 1887. p. 118-119).
por exemplo, o próprio Adolfo Caminha, a quem ele respondeu, por meio do periódico
literário da Padaria Espiritual, O Pão:
Não duvido que a leitura quotidiana de obras de sciencia me tenha feito cahir
n‟essa falta, mas não a ponto de sacrificar em scenas que descrevo a esthetica dos
quadros que pinto. Quer o meu critico que eu chame passarinha em vez de baço,
dordólho em vez de conjunctivite, ar do vento, Ave Maria, em vez de hemiplegia?!
Não, Sr. Caminha, o modo de dizer deve estar de perfeito accordo com a cultura
intellectual do individuo (Teófilo, O Pão, Nº 27, 1 de Novembro de 1895. p. 3.
Grifo nosso).
5
Rodolfo Teófilo, em sua obra Scenas e typos, descreveu que sua descendência remonta aos senhores feudais da
região sul do Ceará, o Cariri. Registra-se que em sua linhagem havia parentesco com a poderosa família dos
“Feitosa”, o que o aproxima de Clóvis Bevilácqua e Juvenal Galeno. Porém, apesar dessa linhagem e embora
tenha sido filho e neto de médicos, Rodolfo Teófilo, através de seus relatos, revelou também que teve uma difícil
infância e adolescência. Aos nove anos, sendo o irmão mais velho de uma enorme família, a morte de seu pai
deixou todos na miséria. Sob a tutela do padrinho foi estudar o primário como aluno interno do Ateneu Cearense.
Após algum tempo, seu padrinho se eximiu dessa responsabilidade. Para continuar seus estudos no Ateneu,
Rodolfo Teófilo passou a dar aulas de reforços, durante dois anos, como forma de pagamento. Mesmo se
esforçando muito, diante da sobrecarga, não conseguiu dar conta e foi reprovado nos exames para tentar
ingressar no terceiro ano. Teve que sair do internato e se empregar no comércio como caixeiro-vassoura. Essa
fase de sua vida foi narrada em seu livro de reminiscências O Caixeiro (1927). Ele relatou com amargura que era
tratado quase como um “escravo branco” e compreendeu desde cedo que só o livro o libertaria. Os estudos eram
o único meio do qual ele dispunha para se inserir no campo do poder e conseguir realizar o sonho de ser médico,
tal como seu pai e seu avô. Embora não tenha conseguido fazer o curso de medicina, ele conseguiu, com muitas
dificuldades, cursar Farmácia na Faculdade de Medicina da Bahia. E para conseguir se sustentar, durante esse
período que esteve fora, precisou trabalhar no Hospital Militar da Bahia.
34
6
Ao estudar sobre a Geração de 1870, Ângela Alonso (2000) mostrou que esse foi um movimento político e de
reformismo que teve por base as teorias científicas europeias. Esse movimento contestava as instituições
brasileiras tidas como conservadoras – Império, Igreja e escravidão – e que dificultavam o avanço do progresso
no país. Entendendo que no século XIX não era possível falar em um campo intelectual autônomo do político, a
experiência da geração de 1870 foi diretamente política. Esses intelectuais buscavam se inserir e reformar as
instituições políticas, mas não propunham transformações na ordem social, pois, embora constituíssem uma nova
classe social urbana, muitos desses indivíduos descendiam dos grandes proprietários rurais. Assim, o movimento
é entendido por essa autora como um movimento de contestação, ou mesmo reformismo.
7
Cícero Costa Filho explica que a Mocidade Cearense se constituía em uma geração bacharelesca e urbana.
Muitos desses intelectuais descendiam dos grandes proprietários rurais, mas que, formados em instituições de
ensino superior e munidos do conhecimento científico do período, “irão defender no meio urbano os ideais da
‘geração moderna cearense’, clamando por ‘civilização’ e ‘progresso’, pregando uma espécie de ‘regeneração
social’” (COSTA FILHO, 2007, p. 62-63).
8
Na Europa, as formulações e estudos sobre o meio haviam sido tratadas, inicialmente, por Buffon, mas foi
Buckle o seu teórico que obteve maior adesão em território brasileiro.
36
apropriaram dela de diversas formas para explicar o atraso material da província. O meio
poderia abarcar tanto os elementos físicos (mesológicos) – como o clima quente, a falta de
chuvas (secas), o solo arenoso e pouco fértil – quanto o meio social, caracterizado por uma
economia fundada na criação de gado e uma sociedade, predominantemente, rural e
analfabeta. “Portanto, a pobreza material do Ceará, devido a sua economia de criação de gado
e assolada por suas secas subsequentes em função de sua posição geográfica, constitui o
apanágio de sua cultura ou de sua historiografia literária” (COSTA FILHO, 2007, p. 25).
Afirmar que essas concepções foram apropriadas pela intelectualidade cearense
para explicar o desenvolvimento social da província, se torna uma assertiva bastante ampla,
pois cada um daqueles indivíduos se apropriava delas de diferentes formas. Cada um elegia
diferentes fatores como determinantes para a composição daquela realidade. O objetivo nesse
tópico é exatamente apresentar, resumidamente, as principais bases do pensamento social
cearense do período, para, assim, compreendermos e nos aprofundarmos nas análises de
Rodolfo Teófilo, as quais, embora possuam elementos comuns a outros intelectuais, não se
igualam a elas, pois também possui suas especificidades.
Para Gleudson Cardoso, foram três as bases do pensamento intelectual cearense
nas últimas décadas do século XIX: as ideias eurocêntricas, que representavam o caminho
para alcançar o progresso das sociedades civilizadas; a seca, fator mesológico e específico que
favoreceu as interpretações deterministas sobre o povo sertanejo; e a campanha abolicionista,
que se configurava como a consolidação dos princípios liberais burgueses (CARDOSO, 2000,
p. 12). Ao longo desse trabalho, veremos como essas questões foram discutidas naquele
momento e o forte peso que elas possuem na literatura de Rodolfo Teófilo ao tratar da
realidade de sua província.
A Academia Francesa encerrou seus trabalhos em 1875 e logo depois veio a seca
de 1877-79, responsável por desestabilizar toda a sociedade do Ceará e também dar uma
pausa nas associações entre os letrados. Jamily Fonseca afirma que na década de 1880, os
letrados cearenses tiveram a oportunidade de combinar suas leituras cientificistas, apreendidas
desde a década anterior, na elaboração de explicações sobre essa seca e a abolição dos
escravos que culminou em 1884 (FONSECA, 2015, p. 56). Foi nesse período também que
Rodolfo Teófilo passou a interagir entre os grupos letrados fortalezenses.
Em 1883, quando Rodolfo Teófilo publicou seu primeiro livro, História da seca
do Ceará (1877-1880), já era um farmacêutico diplomado, com certa estabilidade financeira e
conhecido entre seus pares por sua atuação na campanha abolicionista. Para se consolidar
efetivamente no cenário intelectual e ganhar respeito naquele meio, era necessário publicar
37
um livro. Um livro que falasse sobre a história de sua gente e de seus males. Assim, o tema
escolhido não poderia ser outro, senão a seca que tanto o impressionara e que marcara toda
sua geração. Naquele momento, os intelectuais buscavam construir uma identificação do
Ceará perante a nação, para isso era interessante explicar o desenvolvimento de sua sociedade
e sintetizar uma história sobre a província.
Publicar um livro era, naquele período, mais do que nunca, fazer com que se
perpetuasse uma perspectiva sobre um processo histórico. Elevava-se uma memória ao status
de verdade em detrimento de várias outras. Consciente desse propósito, Rodolfo Teófilo se
autointitulava como o “cronista dos infortúnios do Ceará” (TEÓFILO, 1980) e reivindicava
para si esse papel por ter sido testemunha ocular daquele fenômeno. “Assim o vivido ganharia
estatuto de vivido relatado, e, portanto, com poder de contar e fazer história. Esse poder da
escrita era uma grande mitologia vivida por Rodolpho Theóphilo e muitos escritores de sua
época. Fazia parte do jogo” (LOPES, 2003. p. 11). Nesse sentido, esses intelectuais entendiam
que, para ser reconhecido no meio letrado, era fundamental escrever e publicar, mas não só
isso. Para uma obra ter credibilidade, ela deveria atender às exigências científicas da época.
Segundo Isac do Vale Neto (2006), com a publicação de seu primeiro livro,
Rodolfo Teófilo conseguiria não apenas demarcar o seu lugar no cenário intelectual cearense.
Ele também conseguiu estrear na vida literária nacional, o que lhe rendeu o reconhecimento e
admissão, como sócio correspondente, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Vale
lembrar que o IHGB era uma instituição de grande importância para a consagração simbólica
intelectual, pois, sendo responsável por “elaborar a história da nação, serviria especialmente
como uma importante forma de chancela para a ascensão intelectual, de que Rodolfo
posteriormente se valeria para legitimar o lugar social de sua escrita” (VALE NETO, 2006, p.
37).
A aproximação de Rodolfo Teófilo com os ideais abolicionistas o levou a se
integrar ao Clube Literário, primeira agremiação cearense propriamente literária, já que a
Academia Francesa tinha um caráter mais filosófico. O Clube literário se formou em 1886, a
partir da iniciativa de João Lopes, que anteriormente participou da Academia Francesa.
Surgiu em razão das afinidades científicas, políticas e ideológicas de alguns membros que já
haviam feito parte também da campanha abolicionista e que interagiam em torno da redação
do jornal Libertador.
Com o aumento do número de associações literárias em Fortaleza, na década de
1880, observa-se também um maior incentivo às publicações voltadas para as letras. Em
grande parte, tais publicações partiam de iniciativas vinculadas a essas agremiações, as quais
38
tinham por objetivo dar visibilidade às práticas letradas da província, diante de um cenário
nacional. Desse modo, surgiram várias revistas e jornais literários. Jean François Sirinelli
(2003), ao tratar das formas de sociabilidade criadas pelos intelectuais, afirma que as revistas
são “um observatório de primeiro plano da sociabilidade de microcosmos intelectuais, elas
são, aliás, um lugar precioso para a análise do movimento das ideias. Em suma, uma revista é
antes de tudo um lugar de fermentação intelectual e de relação afetiva” (SIRINELLI, 2003, p.
249).
O Clube Literário ganhou notoriedade no cenário das letras cearenses através da
sua revista literária A Quinzena. Essa revista congregava uma vasta produção de estudos
etnográficos, sociológicos, biológicos e historiográficos. Em termos literários, ela também era
bastante diversificada. Ao lado dos poemas românticos de Juvenal Galeno, Antônio Martins e
Justiniano de Serpa, o Realismo e o Naturalismo foram introduzidos no Ceará, com os contos
realistas de Oliveira Paiva e os contos científicos de Rodolfo Teófilo. Essa revista foi
apontada como a responsável por introduzir oficialmente a estética realista e naturalista na
província cearense (PINHEIRO, 2011, p. 99). Os contos científicos de Rodolfo Teófilo
apareciam nas colunas intituladas “História natural” e “Ciências naturais”. Com o propósito
de divulgar as novas concepções científicas, ele escrevia contos explicando diferentes
fenômenos da natureza.
Muitos dos intelectuais que colaboravam para essa revista compartilhavam das
concepções mesológicas e evolucionistas lançadas pela Mocidade Cearense, na década de
1870. Acreditava-se que a natureza não tinha sido favorável aos habitantes do Ceará, os quais,
devido ao clima árido e ao solo pouco fértil, empreendiam um esforço maior para sobreviver
em meio a tantas adversidades. Assim, as concepções mesológicas e o evolucionismo foram
mesclados para explicar que as adversidades do meio tornaram o homem cearense mais
adaptado às suas condições de vida, portanto, mais forte. Esse pensamento aparece de forma
muito nítida na revista A Quinzena através do artigo “A mulher cearense”, de Abel Garcia
(1864-1907): “No Ceará o homem é activo, arrojado e impressionavel. As fatalidades do meio
deram-lhe às formas de vida a mais forte organização. Educado na luta, energico pela
necessidade, tem mais de uma vez attestado brilhantemente o sentimento profundo de sua
força” (A Quinzena, Ano I, Nº 4). Percebe-se um esforço por parte de Abel Garcia, assim
como de outros intelectuais cearenses, em construir uma imagem do homem cearense perante
a nação, como um indivíduo forte e arrojado, capaz de superar as adversidades do meio.
Veremos que esse pensamento também estava muito presente na literatura de Rodolfo
39
9
Pequeno tratado científico sobre a mucunã, raiz venenosa que servia de alimento aos famintos da seca. Nessa
obra, Rodolfo Teófilo descreveu o processo de preparação da mucunã, de modo que ela se tornasse própria ao
consumo e evitasse a morte de tantas pessoas por intoxicação.
10
É um livro didático referente aos assuntos tratados na disciplina de Ciências Naturais que Rodolfo Teófilo
ministrou no Liceu do Ceará. Sua primeira edição foi adotada em escolas do Ceará e, posteriormente, foi
aprovada pelo Conselho Superior da Instrução Pública de São Paulo (SOMBRA, 1997, p. 247).
11
Nesse período, a Padaria Espiritual estava numa fase mais séria e mais produtiva, tinha Rodolfo Teófilo como
presidente (padeiro-mor). Além das obras do referido autor, lançou também Versos (1894), de Antônio de
Castro, Flocos (1894), de Sabino Batista, Contos do Ceará (1894), de Eduardo Sabóia, Cromos (1895), de X. de
Castro, Trovas do Norte (1895), de Antônio Sales, Vagas (1896), de Sabino Batista, Dolentes (1897), de Lívio
Barreto, Marinhas (1897), de Antônio de Castro, Perfis Sertanejos (1897), de José Carvalho.
12
Os Novos do Ceará são tratados pela historiografia literária como uma geração intelectual que possuía uma
maior inserção das classes médias e baixas do que a Mocidade Cearense, sendo essa bem mais elitista.
40
popular’ que os intelectuais padeiros iriam registrar, em parte, não condiz com a cultura da
maioria da população pobre e iletrada” (COSTA FILHO, 2007, p. 91). Afirma ainda que, em
parte, a Padaria rompeu com os outros movimentos literários, já que houve uma mudança de
proposta. Mas, essa mudança não foi efetiva, pois não houve uma ruptura social (COSTA
FILHO, 2007, p. 123). Além disso, em certo momento, ela chegou a se utilizar de uma
linguagem científica, o que se constata através dos artigos de Rodolfo Teófilo sobre a “As
manchas do sol e as seccas” e outros, como “Criminologia do Direito” do sócio-
correspondente Clóvis Bevilaqua.
O que inferimos é que durante esse período referente aos anos de 1890, no qual
participou da Padaria Espiritual, Rodolfo Teófilo conseguiu realizar uma maior produção de
romances naturalistas. Esses romances serviram de fonte principal para nossas análises sobre
suas concepções de meio e raça. Vimos que as condições climáticas do Ceará inspiraram a
elaboração de interpretações científicas sobre essa província e sobre o desenvolvimento de
seu povo, tomando como referencial o determinismo geográfico e os seus variados elementos
mesológicos. Como já dito anteriormente, essas concepções foram arranjadas e interpretadas
de diversas formas por diferentes pensadores. Nas nossas análises sobre a literatura de
Rodolfo Teófilo, percebemos que o meio, seja ele físico ou social, está muito presente em sua
escrita, o qual se mescla com a ideia de raça, tornando ainda mais complexo o seu
pensamento.
Embora Rodolfo Teófilo evidencie muito a questão climática para elaborar uma
visão sobre o povo cearense e sertanejo, em geral, acreditamos que a questão racial muitas
vezes se sobrepõe às demais. Desse modo, reservamos o próximo tópico para
compreendermos porque a concepção de raça esteve tão presente nas análises de muitos
intelectuais brasileiros daquele período e de forma especial na Faculdade de Medicina da
Bahia, onde Rodolfo Teófilo se formou e teve acesso a uma boa parte desse referencial
teórico.
Pelo contrário, eles se apropriavam apenas das teorias que tornassem possível uma
interpretação sobre a realidade brasileira e que fossem condizentes com seus interesses.
Assim, eles realizavam um trabalho de seleção e adaptação desses textos, baseados na
realidade nacional e/ou local (SCHWARCZ, 1993; MURARI, 2009). Desse modo, é
necessário compreender, não apenas quais eram as ideias que circulavam no campo intelectual
brasileiro e que chegaram a Rodolfo Teófilo, mas, também, por que algumas tiveram maior
aceitação e qual a sua lógica de inserção no país.
A situação do campo intelectual nacional, naquele momento, sinalizava para a
busca de um conhecimento legítimo sobre a realidade nacional – marcada pela acentuada
heterogeneidade social, pela herança escravista e a própria dificuldade de reconhecer-se como
povo –, cabendo aos intelectuais e cientistas a elaboração de uma linguagem e um
conhecimento legítimo para diagnosticar a situação do país (VALE NETO, 2006, p. 24). É
desse modo que os teóricos social-darwinistas e deterministas, por exemplo, encontraram no
Brasil notáveis seguidores para explicar a formação de nosso povo.
Ao analisar o impacto do darwinismo nos países colonizados e sua transformação
em um discurso ideológico, Heloise Domingues (2014) evidencia o fato de que esses países
estavam saindo de um complexo processo político colonial e estavam em busca da afirmação
da nação e da nacionalidade. Nesse processo, “eram marcantes as diferenças na composição
social de cada sociedade, as quais tinham, literalmente, cores visíveis, a cor da pele”
(DOMINGUES, 2014, p. 117). Nas últimas décadas do século XIX, o Brasil ainda enfrentava
a questão abolicionista. Para além da problemática referente à substituição da mão de obra
escrava, o que também preocupava a elite dominante era a conservação da hierarquia social.
Com o fim da escravização, era preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania que
justificassem a ordem social constituída. “É nesse sentido que o tema racial, apesar de suas
implicações negativas, se transforma em um novo argumento de sucesso para o
estabelecimento das diferenças sociais” (SCHWARCZ, 1993, p. 24).
O termo “raça” era usado pelas ciências biológicas para designar um grupo de
indivíduos portadores de certas características físicas e hereditárias comuns. Com a influência
da biologia na análise das sociedades, tornou-se recorrente a concepção de que a humanidade
estaria dividida em raças.13 Assim, o conceito de raça, que era restrito às ciências biológicas,
13
Essa questão possui raízes mais profundas e reverbera no embate entre duas vertentes diferentes sobre a
origem da humanidade: o monogenismo e o poligenismo. O monogenismo, que predominou até a primeira
metade do século XIX, tomando como referência as escrituras bíblicas, defendia que a humanidade possuía uma
origem única e os indivíduos espalhados pelo mundo descendiam da criação do Éden, mesmo que tenham se
modificado devido à ação de vários fatores, como o clima. Já o poligenismo, que ganhou fôlego na segunda
42
metade do mesmo século, devido à credibilidade conquistada pelas leis biológicas, em detrimento do
pensamento religioso, defendia a existência de vários centros de criação, o que corresponderia à existência de
diferentes raças humanas.
43
14
A antropometria consiste em técnicas de medição do corpo humano. No final do século XIX, ela foi muito
utilizada pela Antropologia física ou biológica para analisar os aspectos morfo-anatômicos dos seres humanos,
compará-los entre si e relacionar suas características físicas com o seu grau de desenvolvimento moral e
intelectual.
15
A frenologia consistia no estudo pormenorizado das características cranianas e das circunvoluções cerebrais
dos indivíduos. O seu fundador, Franz Joseph Gall (1758-1828), acreditava que as faculdades mentais dos
indivíduos são inatas e o desenvolvimento das mesmas depende da organização cerebral. Acreditava-se também
que a forma como o cérebro se desenvolvia interferiria na estrutura do crânio. Por isso, uma análise detalhada do
crânio seria capaz de revelar características da personalidade. A frenologia se destacou por estudar tanto os
cérebros de pessoas consideradas ‘geniais’, como de pessoas com comportamentos vistos como desviante
(assassinos, prostitutas, homossexuais etc.) (SÁ, 2008).
16
Herdeira da frenologia, a craniologia dedicava-se a medir crânios em seu volume, circunferência e os mais
diversos ângulos. Paul Broca, um de seus maiores expoentes, acreditava que aspectos como a capacidade
craniana e o peso do cérebro poderiam fornecer informações sobre as características morais e intelectuais dos
indivíduos. Embebida pelas discussões raciais, a craniologia dedicava-se com grande ardor ao estudo da
morfologia comparativa das raças humanas (GOULG, 1991).
44
1991, p. 66). Convencidos dessa suposta objetividade, eles não conseguiam perceber que a
ciência possuía raízes na interpretação criativa e que os dados, por si só, não eram condizentes
com as formulações de suas teorias, até que fossem selecionados e interpretados. Esses
estudiosos não se davam conta que esse trabalho de seleção e interpretação dos dados estava
imbuído de preconceitos vigentes. Tais análises apenas “confirmavam todos os preconceitos
habituais do homem branco acomodado: os negros, as mulheres e os pobres ocupam posições
inferiores graças aos rigorosos ditames da natureza” (GOULD, 1991, p. 66).
Gould afirma ainda que os racistas e sexistas científicos encontraram na ciência a
legitimidade para a inferiorização de determinados grupos raciais. Todavia, raça, gênero e
grupo social são categorias que andam juntas e o determinismo biológico atuava de forma a
naturalizar diferentes formas de exclusão. Assim, “a filosofia geral do determinismo biológico
é sempre a mesma: as hierarquias existentes entre os grupos mais ou menos favorecidos
obedeceriam aos ditames da natureza; a estratificação social constituiria um reflexo da
biologia” (GOULD, 1991, p. 74). “Era a partir da ciência que se reconhecia diferenças e se
determinavam inferioridades” (SCHWARCZ, 1993, p. 38). Desse modo, a ciência era
utilizada para se justificar algo, sendo dotada de um grande teor ideológico, social e político.
No caso do Brasil, ao tratar da repercussão que obtiveram as teorias raciais, Maria
Augusta Bolsanello (1996) lembra que a sua grande adesão, por parte dos intelectuais
brasileiros, está intimamente ligada à estrutura social do país em fins do século XIX. No topo
encontrava-se a elite branca, uma minoria que comandava a vida política, econômica e
intelectual do país. No extremo oposto estavam os negros escravizados. E entre esses dois
polos encontrava-se uma expressiva parcela da população, formada por mestiços, frutos do
longo processo de miscigenação – ocorrida, principalmente, entre indígenas, brancos e negros
– que remonta ao início da colonização. Esses mestiços eram considerados socialmente
indefinidos, compostos por grupos quilombolas, trabalhadores pobres, agregados e “vadios”.
Era uma população bem heterogênea e que vivia à margem da sociedade, sofrendo vários
tipos de privações. Essa configuração de extrema desigualdade era resultante de diversos
fatores, como a concentração de terras e riquezas, a escravidão, entre outros. Assim, no século
XIX, o povo brasileiro já era constituído, predominantemente, por mestiços. “A maioria
destes mestiços, bem como a totalidade de negros e índios, ocupavam as camadas pobres da
sociedade, vivendo em estado de miséria, doença e penúria” (BOLSANELLO, 1996, p. 156).
Muitos dos intelectuais brasileiros, ao se apropriarem das ideias deterministas em
vigor, passaram a explicar os problemas sociais e econômicos através de dois elementos: o
clima tropical e a construção étnica do povo. Argumentava-se que o povo brasileiro não havia
45
Observado com cuidado pelos viajantes estrangeiros, analisado com ceticismo pelos
cientistas americanos e europeus interessados na questão racial, temido por boa parte
das elites pensantes locais, o cruzamento de raças era entendido, com efeito, como
uma questão central para a compreensão dos destinos dessa nação (SCHWARCZ,
1993, p. 18).
17
Lembramos que o darwinismo social foi fundado por Herbert Spencer e, embora, seja compreendido como a
aplicação do darwinismo na análise das sociedades, em sua essência ele se distancia do pensamento de Darwin,
pois esse, mesmo propondo a mutabilidade das espécies, era monogenista, ou seja, acreditava que a humanidade
descendia de um ancestral comum.
47
mas, feitos certos rearranjos teóricos, não impedia pensar na viabilidade de uma nação
mestiça” (SCHWARCZ, 1993, p. 85). Porém, tal situação não gerava resultados simples,
imediatos, e, menos ainda, unânimes:
possibilidade de melhoria. “Porém, como se daria tal melhoria? Dentre os caminhos indicados
três acabaram se sobressaindo: 1) a regeneração pela educação (sinônimo, nesse caso, de
civilizar); 2) a regeneração pela imigração e 3) a regeneração pelo cruzamento” (COSTA,
2004, p. 72). No que se refere à literatura de Rodolfo Teófilo, através de nossas análises
veremos que a questão da regeneração pela educação é algo que aparece com muita
frequência em seus romances e sempre atrelada à concepção de civilização trazida pelos
europeus e em oposição ao que é concebido como bárbaro e degenerado. Já a imigração de
outros povos como um fator de regeneração da população mestiça, não ganhou muito
destaque na escrita desses romances, pelos menos aqueles produzidos na década de 1890 e
analisados nesse trabalho. No que se refere ao cruzamento das raças, veremos que esse autor
possuía uma visão bastante complexa. Se, por um lado, ele era bem otimista com o
cruzamento entre índios e brancos, desde que esse último elemento fosse predominante. Por
outro lado, ele era bastante pessimista em relação ao cruzamento das raças tidas como
inferiores, ou seja, entre o índio e o negro.
Diante da variedade de interpretações que a discussão racial suscitou entre os
intelectuais brasileiros, Lilia Schwarcz aponta para a importância de estudar sobre as
instituições de ensino superior, as quais eram, no período, a porta de acesso às novidades
filosóficas vindas da Europa. Assim, tentar compreender um pouco sobre o pensamento racial
e científico difundido pela Faculdade de Medicina da Bahia pode nos dar acesso a uma boa
parte das concepções adotadas por Rodolfo Teófilo. Sobre a importância que essas
instituições tiveram para a formação de muitos intelectuais, Lilia Schwarcz afirma que:
da vida social, através da elaboração e fiscalização das leis, da explicação sobre os males que
atingiam a sociedade e a aplicação de práticas de cura e prevenção das doenças. Muitos
estudos têm voltado as atenções para a Faculdade de Direito de Recife, inclusive na
historiografia cearense, devido à forte influência que ela exerceu sobre a Academia Francesa.
Porém, o pensamento intelectual brasileiro não partiu apenas dessa instituição. No Ceará,
destacamos que Rodolfo Teófilo, um atuante homem de ciência e de letras, em muitos
momentos se apropriou do paradigma médico, difundido pela faculdade baiana, para
expressar suas concepções científicas.
Ivana Stolze Lima entende que “o paradigma médico privilegiou uma atuação
mais analítica, empírica e experimental se comparado ao paradigma jurídico, que tendia a
produzir um saber mais sintético, generalizante” (LIMA, 1994, p. 29). Desse modo, se torna
compreensível o fato de Rodolfo Teófilo ter defendido que o único método válido para a
construção do conhecimento é o experimental, como já foi discutido anteriormente. Mariza
Corrêa lembra que até meados do século XIX, o saber médico no Brasil ainda estava mais
preocupado com o ensino teórico do que prático. Só depois de algumas viagens de estudiosos
brasileiros para a França e para a Alemanha, e após a influência de cientistas como Claude
Bernard e Pasteur, é que os cientistas brasileiros sentiram uma maior necessidade de
experimentação na medicina brasileira, a qual passou por algumas modernizações a partir da
década de 1850. “Na Bahia, graças ao trabalho de três médicos estrangeiros que lá se fixaram
por volta de 1860 (Patterson, Wucherer e Silva Lima), a medicina experimental recebeu
grande impulso” (CORRÊA, 2001, p. 76).
Também é pertinente lembrar que, apesar de suas especificidades, não havia uma
rígida divisão entre os saberes. Exemplo disso é que, até o final do século XIX, a etnografia, a
etnologia e a antropologia se confundiam no interior daquilo que era compreendido como
saber médico. Quando se busca conhecer o universo letrado brasileiro oitocentista, é notório
esse caráter mais amplo da formação acadêmica e a intersecção de muitos intelectuais por
diversas áreas, além do compartilhamento de um aporte teórico bastante próximo. Desse
modo, se torna compreensível o fato de que Nina Rodrigues, um dos fundadores da
antropologia brasileira, fosse um médico legista. Porém, isso não significa dizer que houve
uma compreensão homogênea. Cada sujeito se apropriou de forma singular, pois era inspirado
por diversas questões e escrevia com objetivos específicos.
A distinção entre o paradigma médico e o jurídico residia mais na forma de
compreender os problemas sociais do país e na elaboração de soluções para os mesmos. Os
profissionais de cada área reivindicavam para si a missão de gerir os rumos do país. Na
50
perspectiva médica, o país estava doente e precisava ser curado. Com base num projeto
médico-eugênico, esses profissionais entendiam que era preciso sanar os males que
ocasionavam a degeneração da sociedade. Para isso, o “homem de direito” atuaria como um
assessor que transformaria em lei o que o perito médico já havia diagnosticado. Na
perspectiva jurídica, invertia-se o protagonismo dessa ação. Assim, caberia ao jurista elaborar
as leis que promoveriam a redenção do país e o médico seria apenas um técnico auxiliar ao
bom desempenho dessas leis (SCHWARCZ, 1993, p. 249).
Ressalta-se que da intersecção entre o saber médico e o saber jurídico nasceu a
medicina legal, que se desenvolveu, prioritariamente, na Faculdade de Medicina da Bahia e
teve a figura de Nina Rodrigues como um dos seus principais representantes. Segundo Mariza
Corrêa, a medicina legal correspondia a uma ciência médica que se fortaleceu nas primeiras
décadas do século XX. Descrente com as promessas de igualdade propostas pela abolição e
pelo sistema republicano, essa ciência buscou estabelecer explicações para as desigualdades.
Acreditamos que a maior complexidade desse saber reside no fato de tirar o enfoque da
doença ou do crime para privilegiar o criminoso. Era preciso reconhecê-lo e contê-lo para
evitar a contaminação social. Assim, baseada nos métodos da antropologia criminal18, essa
ciência médica estabelecia critérios para caracterizar e distinguir fisicamente esses indivíduos.
Utilizando uma teoria que deslocava a ênfase da saúde, ou da doença, para o doente,
transformava-o em objeto individualizado de um saber autorizado e autoritário –
porque só individualmente se podiam aferir as minúcias de uma contaminação
social, mas proveniente do mundo da natureza. O modelo jurídico e o médico
deixavam também de ser heterogêneos entre si e, absorvendo um do outro seus
saberes específicos, juntavam-se ambos na produção de mecanismos técnicos para
diagnosticar e punir os danos que o individuo pudesse causar à sociedade
(CORRÊA, 2001, p. 73).
Lilia Schwarcz (1993, p. 248) ressalta que os estudos sobre medicina legal foram
os que mais caracterizaram a faculdade baiana nos anos de 1890 e a diferenciaram de outras
instituições de ensino.19 Lembramos que essa década também foi o período de maior
18
A antropologia criminal – tal como era definida pelos pensadores italianos Lombroso, Ferri, Garófalo – partia
das concepções de atavismo e hereditariedade para afirmar que certas pessoas eram portadoras de uma herança
genética que as tornavam predispostas ao crime. Acreditava-se que seria possível traçar o perfil desses
criminosos através de suas características físicas e mentais. Desse modo, os métodos antropométricos foram
largamente utilizados para traçar o perfil do “criminoso nato”. “A raça inferior determinaria o criminoso.
Conhecê-lo é conhecer suas características físicas, hereditárias. Esta seria a postura vista como efetivamente
científica, objetiva, em oposição à postura idealista do livre arbítrio” (LIMA, 1994, p. 30).
19
Lilia Schwarcz também pontua que havia diferenças de enfoques entre as principais faculdades de medicina do
Brasil. Enquanto os médicos da faculdade do Rio de Janeiro estavam preocupados com a higiene pública e em
sanar as doenças tropicais, como a febre amarela e o mal de Chagas, os médicos baianos estavam mais
preocupados em sanar os males ocasionados pelo cruzamento racial. “Ou seja, enquanto para os médicos
51
produção romanesca de Rodolfo Teófilo. Acreditamos que esse intelectual, mesmo não
estudando mais nessa faculdade – já que se formara ainda na década de 1870 –, possuía um
estreito contato com o conhecimento que ali era produzido.20 É desse modo que as concepções
elaboradas por Lombroso sobre o caráter genético do crime e a caracterização física e moral
do criminoso foram reinterpretadas por Rodolfo Teófilo ao caracterizar o cangaceiro Jesuíno
Brilhante, na obra Os Brilhantes (1895). Além disso, as concepções mais caras àquela
instituição como raça, hereditariedade e atavismo tiveram grande influência na construção de
todos os seus outros romances publicados nesse período.
Para compreendermos melhor a influência que as concepções divulgadas pela
faculdade baiana tiveram no pensamento de Rodolfo Teófilo, vejamos como o projeto
médico-eugênico, propagado pela mesma, se configurou na obra O Paroara. Neste romance,
o narrador critica o fato de o padre Mourão realizar o casamento de sua afilhada Chiquinha –
filha de tuberculosos – sem ao menos pensar na degeneração que isso ocasionaria:
Através de seu romance, podemos ver que Rodolfo Teófilo criticou o fato de a
Igreja decidir sobre assuntos cruciais relacionados à vida social e à saúde púbica, como a
cariocas tratava-se de combater doenças, para os profissionais baianos era o doente, a população doente que
estava em questão. Era a partir da miscigenação que se previa a loucura, se entendia a criminalidade”
(SCHWARCZ, 1993, p. 248-249).
20
Lilia Schwarcz (1993, p. 261-266) ressalta que desde julho de 1866 já circulava a Gazeta Medica da Bahia,
primeiro periódico médico brasileiro. Essa iniciativa partiu do Dr. Paterson, famoso médico da faculdade baiana,
que teve a ideia de reunir, quinzenalmente, em sua casa, alguns de seus colegas, para compartilharem duvidas e
experiências. A formulação da revista surgiu da necessidade de uma produção própria, mais autônoma e que
desse prestígio a profissão. Essa revista se destacou não apenas por sua longa duração, mas também pela enorme
difusão que alcançou. Desse modo, acreditamos que Rodolfo Teófilo – ávido leitor e amante da medicina - tenha
estabelecido um estreito contato com esse periódico.
52
romance, propôs que a união entre as pessoas deveria ser tratada como uma questão de saúde
pública, embora não use essa expressão:
O que se propôs nesse trecho para evitar a “degeneração da espécie humana” foi
que a união entre as pessoas não deveria ser um assunto resolvido pela igreja, já que ela não
possuía suporte científico para decidir sobre questões relacionadas à hereditariedade. Essa
questão deveria ser analisada pela ciência médica. Assim, os nubentes deveriam passar por
um “rigoroso exame sanitário”. E, se necessário, em caso de consanguinidade, o impedimento
da união deveria ser determinado pelos tribunais civis. Fica nítida a apropriação do paradigma
médico por parte desse autor, o qual entendia que as leis deveriam estar à disposição do
diagnóstico médico. A possibilidade de impedimento sobre determinadas uniões também
remete à concepção de eugenia.21
Lilia Schwarcz (1993, p. 79) aponta que a eugenia ganhou notoriedade, enquanto
movimento científico e social, a partir da década de 1880. No campo da ciência ela propôs
que seria possível alcançar um equilíbrio genético, através de uma compreensão radicalizada
sobre as leis da hereditariedade. Ao ser aplicada nas sociedades, ela visava alcançar “um
aprimoramento das populações”. Isso seria possível através da identificação dos elementos
indesejáveis e o desencorajamento das uniões consideradas nocivas, além de proibir os
casamentos inter-raciais. As propostas eugenistas tinham como lema a expressão latina “mens
sana in corpore sano”, a qual serviu de epígrafe ao romance de ficção científica de Rodolfo
Teófilo, o utópico Reino de Kiato, publicado em 1922. Apropriando-se desse discurso
médico, difundido pela faculdade baiana, Rodolfo Teófilo possuía uma visão bem radical
21
Fundada em 1883 pelo primo de Darwin, Francis Galton (1822-1911), era uma espécie de prática avançada do
darwinismo social que visava a intervenção do Estado na reprodução das populações para evitar a procriação
entre sujeitos inferiores e atingir o aperfeiçoamento da humanidade.
54
longo da história. Essa teoria tinha como pressuposto que as sociedades localizadas em
estágios mais “simples” (povos primitivos) evoluiriam naturalmente para estágios mais
complexos (sociedades ocidentais) (ORTIZ, 2006, p. 14-15). Assim, procurava-se estabelecer
as leis que definiriam o progresso das civilizações e, consequentemente, a suposta
superioridade europeia. Pois, o que o evolucionismo sugeria era um modelo universal, único e
obrigatório de evolução, em que as sociedades, em todas as partes do mundo, encontravam-se
em estágios diferentes e sucessivos; e a sociedade europeia, encontrando-se no estágio mais
elevado, deveria levar o desenvolvimento ao restante do mundo.
Entendendo que a difusão das ideias ocorre atrelada às condições históricas em
que elas são elaboradas e recepcionadas, compreende-se que a grande aceitação do
evolucionismo pelas nações europeias não pode ser vista de forma desvinculada às suas
políticas imperialistas. “Do ponto de vista político, tem-se que o evolucionismo vai
possibilitar à elite europeia uma tomada de consciência de seu poderio que se consolida com a
expansão mundial do capitalismo” (ORTIZ, 2006, p. 14-15). Essa consciência convergia para
a legitimação de sua posição ideológica de hegemonia e superioridade sobre os outros povos.
E quanto a estes outros povos, Edgardo Lander ressalta que muitos deles foram aniquilados
por essa política imperialista europeia, já outra parte acabou por assimilar os ideais
civilizatórios:
século XIX. Após o movimento de independência política de 1822, o Brasil começou a gestar
um projeto de construção do Estado-Nação. No entanto, como ressalta Heloisa Domingues, as
resistências internas e externas ao governo imperial dificultaram o projeto de implantação da
unidade política em torno da monarquia, o qual só se consolidou em meados do século XIX,
quando as lutas internas foram sufocadas. Só a partir da consolidação do governo imperial, na
figura de D. Pedro II, é que o Estado brasileiro conseguiu empreender uma política de
afirmação da sua identidade nacional (DOMINGUES, 1996, p. 42).
Manoel Carlos de Alencar afirma que, no Brasil, “o Estado veio antes da nação,
pois se consolidou primeiro politicamente, como unidade independente, e depois os letrados
trataram de pensá-lo ‘espiritualmente’” (ALENCAR, 2015, p. 36). Partindo do conceito
elaborado por Benedict Anderson, esse estudioso nos mostra que o Brasil no século XIX só
pode ser pensado, enquanto nação, como uma “comunidade imaginada”. Embora houvesse
conquistado sua independência política em 1822, esse país não possuía uma identidade
cultural unificadora. Ele se constituía em um vasto território, formado por diversos grupos
sociais e étnicos, muitas vezes isolados pela falta de comunicação e transporte, e que não se
reconhecia enquanto um povo ou uma nação (ALENCAR, 2015, p. 19-20). Desse modo, ao
destacarmos a tentativa de elaborar um projeto de identidade nacional, como uma forte
característica do século XIX, nos referimos a um projeto compartilhado por uma minoria. Um
projeto elaborado por um grupo de intelectuais e letrados, do qual não fazia parte a maioria da
população – analfabeta, excluída socialmente e habitando os diversos rincões do país.
Desde a década de 1820, com a independência política do país, a intelectualidade
brasileira tratou logo de negar a influência da metrópole portuguesa, visando construir a
imagem de uma nação autônoma, com características próprias. Porém, o que eram definidos
como os elementos constituintes de uma nação partiam do modelo europeu, tais como os
mitos e lendas sobre um povo fundador. Perrone-Moysés (1997) destaca que o nacionalismo
se constitui por diversas imagens e metáforas e que algumas dessas metáforas “utilizadas nos
discursos identitários da América Latina nos permitem captar as dificuldades da constituição
de sua auto-imagem, e verificar que essa imagem depende sempre do outro europeu, quer seja
para imitá-lo, quer para rejeitá-lo” (PERRONE-MOYSÉS, 1997, p. 247).
Segundo Heloisa Domingues, “a ideia de nação que se desenvolveu no Brasil
naquela época criou uma imagem da nação associada às suas riquezas naturais: as riquezas,
potencialmente econômicas que o país guardava em suas entranhas ainda inexploradas”
(DOMINGUES, 1996, p. 42). Buscava-se também impulsionar a economia do país através da
descoberta e exploração de suas riquezas naturais. Na historiografia, esse projeto tomou forma
59
buscavam inserir o país na marcha civilizatória, assim, a interpretação das diferenças raciais
mesclou-se às concepções evolucionistas. A partir de então, o arcabouço para a construção da
identidade nacional passou a se fundamentar na ideia de raça. 22 Nesse momento houve
também uma guinada na produção literária. O Realismo/Naturalismo, que tinha por princípio
a aproximação com a realidade, passou a questionar a ideia de nacionalismo proposta pelo
Romantismo e fundamentada em uma imagem idealizada e fantasiosa sobre o indígena. Para
muitos intelectuais e críticos literários dessa geração denominada Geração Modernista de
1870, tais como Sílvio Romero, os elementos indígenas haviam se dissolvido na miscigenação
com os brancos e os negros. Seria, portanto, o mestiço o tipo racial característico da nação
brasileira.
Essa rápida explanação sobre o cenário intelectual e literário brasileiro do século
XIX, marcado pelo desejo de construir uma identidade nacional para o Brasil, serve para
pensarmos sobre a produção literária de Rodolfo Teófilo na década de 1890 e como a mesma
se relacionava com essas questões. Já ressaltamos que a questão racial marcou intensamente a
escrita desse autor e que o cientificismo é a sua marca mais patente. Porém, isso não significa
que esse literato tenha se distanciado por completo do Romantismo e daquela forma de
representar os indígenas. Nesse sentido, a preocupação com a contribuição do indígena, tão
recorrente à produção historiográfica e literária brasileira do século XIX, também esteve
presente em uma das obras desse autor, o romance Maria Rita (1897).
Essa obra trata-se de um romance histórico e se reporta ao período colonial,
quando o território cearense estava sob a dominação portuguesa, representada pelo
governador Francisco Alberto Rubim. Fortemente ancorada às concepções deterministas e
raciais, a obra narra a história da protagonista Maria Rita, uma mestiça, filha de um
colonizador branco português com uma indígena de origem tapuia. As características raciais,
juntamente à influência do meio, aparecem nessa obra como os elementos responsáveis pela
constituição temperamental das personagens envolvidas na trama.
Por acreditar na hierarquização racial proposta pelo darwinismo social, Rodolfo
Teófilo apresentou os indígenas como uma raça inferior à raça branca. Porém, ao longo de
nossas análises sobre essa obra, pudemos constatar que, muitas vezes, esse autor também
lançava um olhar idealizado, aos moldes do Romantismo, sobre os indígenas do período
colonial, tratando-os como corajosos e insubmissos, em oposição aos portugueses. Essa
22
Já em 1840, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) havia realizado um concurso de propostas
para a escrita da História do Brasil. Destaca-se que a proposta vencedora foi de um estrangeiro, o naturalista
alemão Karl Friedrich P. Von Martius. O mesmo propunha um projeto que levasse em consideração a
contribuição das três raças formadoras do povo brasileiro.
61
aparente contradição demonstra uma miscelânea de referenciais teóricos e literários que esse
autor possuía e a riqueza de sua produção, sendo difícil associá-lo à apenas uma estética
literária.
Tomado isoladamente de um contexto mais amplo, tal romance parece ser
destoante ao conjunto de obras aqui analisado, o qual se caracteriza por seguir um fio
temático referente às secas que assolaram o Ceará no final do século XIX. Além de estar fora
da temática da seca, Maria Rita também não se refere a nenhum momento histórico
vivenciado por seu autor, o que a torna ainda mais peculiar, pois esse autor fazia questão de
enfatizar o seu papel de testemunha ocular na maioria dos fatos por ele vivenciado e
transformado em romance. Porém, essa obra reflete uma questão mais ampla, a preocupação
com a contribuição do indígena para a formação do povo brasileiro. E trazendo essa
preocupação para o âmbito local, através de seu romance, Rodolfo Teófilo elaborou uma
explicação para a formação do povo cearense.
Ao estudar sobre o romance histórico, Rogério Silva afirmou que na teoria
fundacional desse gênero “existe o princípio de que há uma história e que esta intervém
diretamente na vida do indivíduo e, para tanto, este a representa e ao fazê-lo representa
também uma coletividade” (SILVA, 2016, p. 50). Portanto, a história de Maria Rita trata da
história do processo de colonização do Ceará e da mistura racial que deu origem ao povo
cearense, na perspectiva daquele literato.
Em A Ascensão do Romance (1990), Ian Watt afirmou que o que diferencia o
romance das demais formas de produções literárias existentes até então é que esse gênero
apresenta uma percepção individual e específica da realidade e da experiência humana, assim
como uma detalhada apresentação do ambiente. O romance histórico, de forma mais
específica, “corresponde às narrativas, cujo objetivo explícito consiste em promover uma
apropriação dos fatos históricos de uma dada comunidade humana, em um determinado
momento” (SILVA, 2016, p. 88). Nesse tipo de produção literária há uma intencional
tentativa de aproximação da narrativa apresentada a um determinado momento histórico.
Utilizando-se do realismo como recurso literário (aqui não nos referimos à escola
literária), no romance histórico, o narrador constrói personagens que são fictícias, mas
inseridas em uma estrutura social e dotadas de um modo de ser que são próprios de uma
época. Os sujeitos são caracterizados, e não apenas descritos. Além disso, o narrador busca
realizar uma reconstrução temporal e espacial que proporcione ao leitor adentrar em uma
esfera reconhecível historicamente. A obra aqui analisada foi ambientada no início do século
XIX, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal. Ao longo de sua narrativa, percebemos
62
elementos que caracterizavam o modo de vida sertanejo no interior do Ceará daquele período,
como, por exemplo, o papel destinado à mulher naquela sociedade; a bravura do vaqueiro
cearense; e alguns costumes da época, considerados bárbaros por seu narrador, como as
práticas de cura baseadas no curandeirismo.
Para inserir o leitor àquele contexto histórico, a narrativa abordou, já nas suas
primeiras páginas, o atraso material e moral de Fortaleza: “Ao atrazo material da Fortaleza
juntava-se o atrazo moral de seus habitantes. As artes e as indústrias, ainda hoje, como o povo
em via de formação, estavam longe de nascer” (TEÓFILO, 1897, p. 6). A partir deste pequeno
trecho destacamos a percepção que o narrador transpôs sobre o processo histórico, numa
perspectiva evolucionista. Tal citação demonstra a necessidade de atentarmos para a estreita
relação que se estabelece entre o presente vivido pelo narrador e o passado por ele
apresentado. De modo que o passado só pode ser percebido enquanto tal a partir do presente.
Assim, o Ceará colonial apresentado na obra parte da perspectiva de um literato que vivia a
passagem do século XIX para o XX. E no romance histórico é primordial tentar compreender
essa relação que se estabelece entre o presente e o passado do narrador, “de forma que os dois
tempos não se pareçam alheios um ao outro, já que mutuamente se complementam e desse
imbricamento recíproco é que se pode aferir um sentido histórico válido” (SILVA, 2016, p.
109-110).
Para abordarmos sobre a perspectiva colonial apresentada na obra, ressaltamos
que, desde os primeiros contatos dos europeus com a América, foram múltiplas as
representações já construídas sobre esse continente, tanto pelos estrangeiros como por seus
habitantes. Perrone-Moysés lembra que “as primeiras descrições das terras americanas as
identificavam ao Paraíso; os europeus se espantavam com a grandiosidade e a exuberância da
natureza americana” (PERRONE-MOYSÉS, 1997, p. 252). Quanto às imagens construídas
sobre os nativos, houve uma enorme incongruência nas suas representações, as quais
variavam de um extremo a outro, revelando-os, por vezes, como canibais, incestuosos e
incivilizáveis, ou como seres naturais, ingênuos e livres. Roberto Ventura ressalta que a
filosofia iluminista contribuiu de forma intensa para uma visão negativa sobre o homem e a
natureza americana no século XVIII, embora essa visão não fosse única:
Essa visão exótica, lançada pelos próprios intelectuais brasileiros sobre o Brasil e
seus habitantes, revela o lado mais perverso da colonialidade, pois, partindo de uma visão
eurocêntrica, ao assimilar a ideologia civilizatória, aliada às teorias raciais e climáticas, esses
homens letrados adotaram uma espécie de imperialismo interno. Assim, não se identificavam
com o restante da população por eles representada e seus posicionamentos acabaram
contribuindo para fomentar uma visão preconceituosa e estereotipada sobre as culturas
populares. No campo literário, embora o nacionalismo do século XIX reivindicasse por uma
originalidade e autonomia da produção nacional, ele não conseguiu romper com a lógica da
colonialidade de inferiorização dos povos de origem africana e indígena, ou mesmo aqueles
23
Não só no Romantismo europeu, como na produção literária da América, de um modo geral, “o encontro (ou
enfrentamento) da Civilização com a Barbárie foi alegorizado por numerosos romancistas, como o argentino
José Mármol (Amalia, 1851) e o brasileiro José de Alencar (O Guarani, 1857 e Iracema, 1865). A questão seria
retomada por Euclides da Cunha em Os sertões (1902) e por muitos outros escritores latino-americanos, como o
venezuelano Rómulo Gallegos (Doña Bárbara, 1929)” (PERRONE-MOYSÉS, 1997, p. 248).
64
que se encontravam nos recantos mais distantes dos centros urbanos. Para Perrone-Moysés,
algumas metáforas utilizadas nos discursos identitários da América Latina “foram
autodepreciativas ou pelo menos conflituosas. Essas metáforas tomaram a forma de oposições
que mostram, claramente, o reconhecimento da inferioridade e da dependência com relação à
Europa” (PERRONE-MOYSÉS, 1997, p. 248).
Partimos dessa compreensão para problematizarmos o pensamento de Rodolfo
Teófilo e as representações por ele construídas sobre o sertão cearense no período de
colonização. Maria Rita é, talvez, o seu romance em que a ideologia civilizatória aparece de
forma mais intensa atrelada à teoria racial. Uma visão estereotipada sobre o que era
considerado como um universo de barbárie aparece de forma bem nítida nessa obra quando o
seu narrador descreve uma cabocla feiticeira que vivia nos recantos mais afastados do sertão:
repelentes e bestializadas. A visão sobre aquele universo tido como bárbaro se encerrou em
uma rede de negações. De modo que o mesmo apareceu vinculado à bruxaria, à ignorância, à
falta de higiene e a uma bestialização dos seus integrantes, os quais demonstravam
dificuldade até mesmo em comunicar-se com o mundo civilizado. Enfim, esses povos
estavam condenados àquilo que o narrador chamou de degenerescência.
Podemos dizer que o projeto nacionalista, elaborado por uma elite cultural,
entrava em tensão com a diversidade étnica e cultural do país. Além disso, não se interessava
em tornar visíveis as gigantescas desigualdades sociais. Com efeito, os interesses dessa elite
letrada não coincidiam com os interesses dos grupos pobres, analfabetos, negros e indígenas.
Rodolfo Teófilo, ao assimilar a ideologia civilizatória e as teorias raciais, se identificou com a
ideologia colonialista e adotou a visão exótica, através da qual fez uma releitura sobre o sertão
cearense, numa relação etnocêntrica. Através dessa observação, queremos atentar para o fato
de que a sua literatura apresenta a perspectiva de um intelectual, farmacêutico e citadino que
olhava para o sertão de fora, olhava a partir de seu lugar social e captava um sertão inculto.
Ao falar da multiplicidade de visões sobre o sertão presente na obra de Rodolfo Teófilo,
Manoel Alencar nos alerta que “são vários os sertões de Rodolfo Teófilo, mas nunca o sertão
que se nomeia, nunca visto de dentro, mas sempre de fora, pelo citadino, pelo intelectual na
procura de dar sentido a uma experiência do outro, na busca de sua própria experiência”
(ALENCAR, 2002, p. 107).
Esse “sertão”, muitas vezes, se encontrava numa esfera oposta a uma modernidade
que ditava os parâmetros do modo de vida urbano, desde o final do século XIX e, mais
intensamente, nas primeiras décadas do XX. É nesse sentido que Schwarcz atenta para a
existência de diferentes “brasis” e nos dá a dimensão de quão ilusória é a ideia de identidade
nacional:
Uma nação dividida por tantas diferenças regionais e raciais, eis aí novas
polarizações que se enraizavam no discurso local. De um lado, a cidade, definida
pela indústria, pelas oportunidades de trabalho, pelo mercado, mas também por uma
política de exclusão e distanciamentos. De outro, os “demais brasis”, perdidos nos
sertões longínquos na realidade e na imaginação, nas florestas fechadas. Aí estavam
“dois brasis” que eram na verdade um só, mas a conviver de maneira ambivalente e
conflituosa (SCHWARCZ, 2012, p. 24).
Hobsbawm (2008), ao falar do “longo século XIX”, por ele delineado de 1775 até
o ano de 1914, destaca que nunca antes existiu uma época em que a cultura e a vida
intelectual ocidental tenham sido direcionadas por uma minoria tão próspera e culta como a
burguesia industrial europeia. Ao mesmo tempo em que o mundo capitalista se tornava cada
66
vez mais interligado, as diferenças entre as economias capitalistas centrais (Europa e Estados
Unidos) e as regiões à sua margem tornavam-se cada vez maiores. Luciana Murari assinala
que essas discrepâncias refletiam de forma aguda dentro do próprio território nacional. E isso
era perceptível tanto pela “convivência de um mundo urbano modernizado e cosmopolita com
os vastos sertões pobres, primitivos e inexplorados” (MURARI, 2009, p. 19), como por meio
de “uma cisão considerável entre o intelectual e o povo, tantas vezes condenado por uma
inferioridade intrínseca que, se assumia mais frequentemente a máscara do estigma racial, era
nitidamente social e cultural” (MURARI, 2009, p. 37). Porém, essa autora ainda afirma que
tal distância não impediu que aquela intelectualidade revelasse um curioso interesse em
observar e descrever os “inquietantes e oblíquos domínios do inculto, demarcando com
nitidez sua perspectiva de distanciamento intelectual, histórico, temporal e social com relação
a eles” (MURARI, 2009, p. 37).
As representações feitas por Rodolfo Teófilo sobre esses sertões são múltiplas.
Por um lado, encontramos no romance Maria Rita significações que associam o sertão à
barbárie, à ignorância e à degenerescência. Por outro, foi possível perceber, ao longo de sua
narrativa, que ao comparar o modo de vida sertanejo com a vida na cidade, o primeiro é
tratado como um lugar puro e a segunda como um ambiente contaminado pela injustiça. Isso é
perceptível através da visão do velho Queiroz, um sertanejo muito honrado, que após saber da
prisão e degredo do filho para a capital (sede do governo português) foi socorrê-lo. Na capital
da província cearense, o velho Queiroz percebeu que aquele era um ambiente corrompido pela
hipocrisia: “Quiz voltar, correr até as florestas de seu sertão, lá onde mora a innocencia com
seu cortejo de erros, mas onde a hypocrisia ainda não armou tenda, e esconder-se por uma vez
nas suas mattas; porém o filho ficaria a mercê daquella súcia de canalhas” (TEÓFILO, 1897,
p. 293). Após usar de todos os recursos dignos e honestos para libertar o filho, o velho
Queiroz percebeu que naquele meio corrompido só dariam andamento à sua causa por meio
do suborno:
A ideia de suborno não podia aceitar, entretanto, o espírito recto do sertanejo. [...]
Era-lhe preciso subornar tudo até realisar os seus intentos. Desde o maltrapilho
meirinho com antipathica figura de coveiro, até o ouvidor, mais grave mais limpo,
porém tão patife ou mais ainda do que aquelle [...] (TEÓFILO, 1897, p. 294).
Pelo modo como os sertanejos foram figurados nessa obra, percebemos aquilo que
Roberto Ventura classificou como forma de tratamento “ambivalente pelo discurso europeu,
que oscila entre a imagem positiva da felicidade natural e inocente dos habitantes de clima
67
fértil, e a condenação dos seus costumes bárbaros” (VENTURA, 1991, p. 22). Se, por um
lado, houve uma esteriotipação de indivíduos considerados bárbaros e degenerados, por
estarem muito distantes do alcance civilizatório, por outro, houve uma valorização do modo
de vida do sertanejo cearense, em especial por sua honra e sede de justiça. Isso demonstra que
na visão desse intelectual, nem sempre, a civilização trazida pelos portugueses estava atrelada
a aspectos positivos. Nesse ponto, chamamos atenção para aquilo que Manoel Alencar
chamou de paradoxo da civilização e esteve presente na escrita de muitos autores
oitocentistas:
Tal concepção percorre toda a obra de Rodolfo Teófilo. Assim, o sertão aparece
como a antítese da cidade. Não menos paradoxo, algumas vezes ele foi apresentado como um
lugar onde reinava a ignorância e a barbárie, outras vezes, como o lugar que conseguiu se
preservar intacto da depravação trazida pelas relações mundanas presentes naquela sociedade
de aparências.
Nesse contexto de assimilação da ideologia civilizatória atrelada à teoria racial,
enfatiza-se que a raça branca aparece como a responsável por trazer a civilização europeia aos
trópicos. No entanto, entendemos que a análise de Maria Rita não deve se reduzir a essa
premissa. A narrativa e a forma como as personagens estão dispostas se apresentam numa
configuração ambígua. Isso significa que a adesão desse autor às teorias raciais e sua forma
de interpretá-las e aplicá-las à construção de seus sujeitos não enveredaram por um caminho
único. Embora Rodolfo Teófilo, de um modo geral, fosse favorável ao modelo civilizatório e
colocasse a raça branca no topo da hierarquia racial, ele mostrou em sua obra que os
colonizadores portugueses não eram dotados apenas de qualidades positivas. Exemplo disso é
a personagem José Maria da Purificação, pai de Maria Rita. Esse português foi caracterizado
como um homem bem apessoado, novo, com inteligência e músculos e que sabia ler, mas que
saiu de Portugal na condição de condenado, por praticar gatunagem e vagabundear nas ruas de
Lisboa. José Maria da Purificação era uma pessoa egoísta e incapaz de demonstrar afeto ou
interesse por alguém que não fosse ele próprio.
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Purificação também nenhum caso fez daquela falta de affecto dos seus; não deu por
ella porque pouco caso fazia do bem querer da família. Tinha elle outros gosos mais
apropriados ao seu eu, mais de accordo com sua psycologia. Viver em liberdade em
uma terra que a natureza dotou de todos os bens, tendo escravos para tirar della com
largueza o pão quotidiano e o pão do futuro, elle, que conhecia a vida dos prezidios,
o peso da grilheta, a uzura do rancho, enfim os sofrimentos dos forçados era o seu
ideal. A liberdade em tão rico paiz, mesmo com a condição de viver do suor do
rosto, seria a mais alta aspiração de um espírito opprimido e recluso no fundo de
uma prisão immunda e escura. (...)
África foi o seu pezadelo e o delles até o dia em que o navio largou e com grande
surpreza souberam que iam caminho do Brasil, que não eram mais réos e sim
colonos, que iam lavrar aquellas longuiquas e incultas terras.
José Maria era bem apessoado; novo, com intelligencia e musculos. Lia e escrevia
soffrivelmente e trazia do Reino, ainda em começo da vida, grande somma de
astucia e velhacaria. Desembarcando em Fortaleza e confiando pouco em tão
prompto habeas corpus, embrenhou-se pelo norte do Ceará e foi ter a fazenda de
Oiticica. Encontrou ahi afazendado um patrício e que veio a ser seu sogro. Em falta
de cousa melhor para o moço portuguez, o fazendeiro fel-o professor de suas duas
filhas, ambas quasi moças (TEÓFILO, 1897, p. 40-41).
Uma questão importante trazida nesse trecho sobre a colonização portuguesa diz
respeito aos degredados do reino, que encontraram no exílio para a colônia uma forma de
conseguir a liberdade. Pieroni (1991) ao estudar sobre os degredados portugueses no Brasil
Colônia mostrou que esse território ainda pouco povoado serviu de “degredo para os
elementos indesejáveis e perturbadores da ordem social metropolitana” (PIERONI, 1991, p.
16). Essa forma de condenação, que já era uma prática antiga e se tornou muito comum
durante o período moderno, para a metrópole portuguesa tinha um propósito muito
proveitoso, pois ensejava “a exclusão dos elementos indesejáveis do âmbito metropolitano;
uma espécie de limpeza do Reino, expulsando ‘os tipos abomináveis e sórdidos’” (PIERONI,
1991, p. 38), ao mesmo tempo em que possibilitava aumentar a população branca em suas
colônias. Para Emilia Viotti Costa (1956), era de grande interesse por parte da coroa “o
povoamento das novas terras e essa a maneira mais simples de o fazer”. Várias eram as
situações consideradas criminosas cuja penalidade resultava em degredo. Além dos casos
claramente previstos em lei, ainda havia aqueles que “davam margem à interpretação,
contribuindo para ampliação do número de degredados para o Brasil” (COSTA, 1956, p. 10).
Na perspectiva do trecho citada acima, diferentemente do destino reservado
àqueles que eram degredados para a África, no Brasil, esses condenados saíam da condição
réus para se tornarem colonos. A chegada a terras tão longínquas representava o pronto
recebimento de habeas corpus. A partir de então, em liberdade, esses degredados poderiam
começar uma nova vida na condição de colonos. Desse modo, o degredo foi colocado como
uma escapatória em relação às condições de exclusão social que esses sujeitos viviam na
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metrópole. Tratando a questão dessa forma, essa narrativa idealizou uma situação que, muitas
vezes, representava uma das piores punições para aquelas pessoas que foram viver em terras
tão distantes e em meio a uma natureza considerada hostil. Ao afirmar que, para aqueles
condenados, viver em tão rico país, seria a mais alta aspiração de um espírito oprimido, o
narrador ocultou uma realidade de degredo forçado, ao mesmo tempo em que fez uma
apologia ao processo de colonização.
No caso de José Maria da Purificação, logo que chegou, embrenhou-se no sertão
pelo norte do Ceará, e, servindo de professor para as filhas de um fazendeiro nativo, tratou
logo de contrair casamento com uma delas para assegurar a herança da fazenda. Em posse das
terras, esse colono passou a trabalhar arduamente para vencer aquela natureza bravia. E assim,
expressando uma visão positivada sobre o degredo, como forma de regeneração, o narrador
afirma que José Maria da Purificação, “de vadio tornou-se trabalhador, transformação esta
devido talvez a ambição que despertaram os bens da fortuna. Nos primeiros tempos
trabalhava de sol a sol ao lado dos fâmulos e escravos com um valor e esthusiasmo sempre
crescentes” (TEÓFILO, 1897, p. 43).
José Maria da Purificação é o exemplo de homem branco colonizador que
conseguiu superar as adversidades do meio e implantar a colonização no interior do Ceará.
Porém, a sua adaptação ao meio não teria ocorrido de forma fácil: “A vida de José Maria era
de suprezas, umas agradaveis, e outras dolorosas. Entre estas o abraço de um tamanduá
bandeira que o deixou de cama mais de uma semana” (TEÓFILO, 1897, p. 45). Com esses
exemplos, o narrador mostrou que foram precisos muitos esforços, por parte desses colonos,
para vencer uma natureza tão hostil e implantar a colonização. Fica implícita a apropriação da
concepção do darwinismo social de adaptação ao meio por parte da raça branca,
demonstrando sua superioridade. É nesse sentido que o narrador afirmou que “José Maria
custou a se adaptar ao meio, mas afinal ficou brazileiro nos costumes, na alimentação,
conquanto odiando sempre os naturaes” (TEÓFILO, 1897, p. 46).
Apesar da nítida crença na superioridade da raça branca, ao trazer à tona a questão
do degredo, esse romance histórico deixou subtendido uma visão bastante reducionista que se
tem até hoje sobre a colonização do Brasil, segundo a qual esse país teria sido colonizado pela
escória da sociedade de Portugal. Conforme essa visão, a colonização portuguesa não teria
sido feita por pessoas honestas ou gente da melhor estipe, pertencente à elite branca europeia,
mas, em boa parte, por criminosos degredados do reino. Porém, alertamos que é preciso
ponderar e desmitificar essas concepções já tão cristalizadas sobre a formação do povo
brasileiro e os colonizadores vindos de Portugal. A primeira questão a ser observadas é que
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nem todos os colonizadores eram criminosos condenados ao degredo, junto a eles veio uma
variedade de sujeitos sociais, trazidos por diferentes motivações:
O rapto da filha Maria Rita em nada o comoveu, pois pouco se interessava pela
família. O que o amedrontava era a possibilidade de sua cunhada Vicencia da Gloria realizar
alguma vingança contra Queiroz, o rapaz responsável pelo rapto, e isso resultar em uma série
de vinganças capazes de alterar a sua tranquilidade. A sua covardia e hipocrisia também
foram demonstradas quando, na frente dos representantes da corte, ele se apresentou como um
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fiel servidor no combate aos “naturais da terra” e, ao lado desses, afirmava lutar em seu favor.
Assim, na perspectiva do narrador, José Maria da Purificação, na condição de degredado, não
seria um digno representante dos mais elevados valores atribuídos à raça superior.
Os outros dois personagens que foram apresentados na obra como representantes
da raça branca se assemelhavam muito a esse perfil de caráter presente em José Maria da
Purificação. Um deles é o português Prazeres, “um marinheiro, que além do mais era sujo e
ladrão” (TEÓFILO, 1897, p. 263). Ele havia roubado de seu bem-feitor o mapa de um tesouro
enterrado naquela região do sertão cearense. Sobre o seu caráter, o narrador afirma que “para
obter aquelle documento, que o faria o mais rico dos homens, não trepidara em profanar o
cadáver de seu bem-feitor” (TEÓFILO, 1897, p. 261). Ao acolhê-lo em sua casa e saber da
existência desse tesouro, José Maria cuidou logo em oferecer a filha em casamento para
Prazeres. Para concretizar seus planos, José Maria não hesitou em tramar um casamento
forçado. Tal atentado seria realizado pelo padre Bulhão, que também era um homem branco,
mas que possuía uma debilidade de caráter maior que os outros dois, pois usava a máscara de
servo de Cristo para extorquir as pessoas e cometer todo tipo de atrocidades. “A elle não
faltava manha, escrupulos de consciencia, embora fosse padre eram cousas que não tinha. A
sua divisa era enriquecer fossem quaes fossem os meios” (TEÓFILO, 1897, p. 109). Sobre
este personagem, o narrador destacou ainda mais:
O seu pensamento unico era ter com que passar a vida o mais commodamente
possível. A missão de ministro de christo tão espinhosa e tão delicada para aquelles
que procuram imitar o Mestre elle a cumpria ao inverso do que está escripto neste
poema de amor e de fraternidade – a religião do Crucificado. Nunca chamou a si os
pequeninos e nem teve consolações para os desgraçados. De um egoísmo feroz a
humanidade se resumia a sua pessoa. A nota predominante de caracter era a
falsidade (TEÓFILO, 1897, p. 87).
Esse trecho da obra Maria Rita faz referência ao funcionamento das trocas
comerciais nas vilas do Ceará durante o período colonial e é bem emblemático ao destacar
que, mesmo nesse período, a miscigenação já era grande. De um modo geral, seu autor
defendia a ideia de que a maior parte daquela população era formada por caboclos, isto é, o
mestiço fruto da mistura entre o índio e o branco, seja esse português ou holandês. E essa
percepção de que o caboclo possuía maior representatividade na população cearense se
repetiu em outras obras, como O Paroara, na qual ele afirmou que esse tipo de mestiçagem
“constitui talvez quatro quintos dos habitantes do Ceará” (TEÓFILO, 1974, p. 100). Porém,
podemos ver no trecho acima que não há interesse, por parte do narrador, em estabelecer uma
tonalidade de pele padrão para esses caboclos sertanejos do Ceará, pois o resultado dessa
miscigenação foi uma variedade de tipos de cor. Exemplo disso é a personagem Vicencia da
Gloria, tratada ao longo da obra como uma índia tapuia, mas, ao relatar sua ascendência, o
narrador destaca que Vicencia era filha de uma mãe índia com um pai português. Nela se
sobressaíam fortes características indígenas, enquanto que em sua irmã essas características
apareciam de forma mais branda:
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colonial. Através de seus conhecimentos antropométricos, ele estabeleceu uma relação entre
as características fisionômicas e faciais de suas personagens com a ideia de pertencimento
racial e, assim, procurou explicar como os elementos físicos e psíquicos que remetiam a
determinadas raças se manifestavam em indivíduos tão miscigenados.
No trecho citado acima, assim como no anterior, também ocorreu uma exaltação
dos “caprichos e mistérios da natureza” ao criar tão grande variedade de misturas e tipos
raciais, pois mesmo Vicencia e sua irmã, possuindo a mesma ascendência, em cada uma delas
se sobressaíram elementos de raças diferentes. Foi ressaltado também que por meio dessa
mistura de raças é que se definiam as qualidades físicas e psíquicas do país. Nesse sentido, as
características psicológicas apresentadas pelas personagens não remetiam a aspectos
individuais e subjetivos do ser, mas resultavam de sua constituição racial. Assim, esse trecho
confirmava a premissa do darwinismo social de que haveria continuidade entre caracteres
físicos e morais, os quais seriam transmitidos hereditariamente pela “fatal lei do atavismo”.
Embora fique nítido o interesse desse literato em mostrar que o povo cearense era
resultado da miscigenação entre indígenas e europeus, isso não significa que ele igualasse
essas duas raças. Através da descrição de Vicencia da Gloria, percebe-se um olhar de
hierarquização entre as mesmas. O pertencimento da personagem à raça indígena foi
qualificado depreciativamente por meio de características como “feições feias” e “um par de
ventas, chatas como a dos macacos”. Percebe-se uma associação entre o que era considerado
feio com a raça indígena, assim como em outras obras foi feito com a raça negra, mas nunca
com a raça branca. Além das características negativas sobre os traços físicos, o narrador
ressalta que Vicencia da Gloria já manifestava uma índole sanguinária desde criança, ao se
regozijar em ver pequenos filhotes de sanhassús serem devorados por uma cobra. E ainda na
infância, ela tinha por entretenimento predileto fazer maldade com os animais indefesos:
Vicencia era uma mulher activa, petulante e má. Estava quasi velha, e como a
mocidade não lhe trouxera arroubos na velhice não lhe esperavam desillusões.
Os encantos da natureza dos tropicos no seio da qual nascera e brincara nunca os
sentira aquelle espírito tíbio. O entretenimento predilecto de sua alma era a maldade
dos seus folguedos. Aos implumes passarinhos furava os olhos quando encontrava
um ninho. Menina estouvada e perversa corria de várzea a fora perseguindo o
insecto cujo colorido mais a impressionava e apanhando-o atirava-o mutilado ao
chão para sentir o goso de vel-o arrastar-se privado das azas com que volitava pelos
ares. Nunca o arrulho da jurity, gemido mafioso, que se ouve na solidão dos
bosques, terno como um soluço nostalgico, despertou em sua alma um instante de
recolhimento.
Aos beija-flores que se osculavam adejando sobre as corollas multicores dos
manacás e das outras flores silvestres apedrejava, porque não podia apanhal-os e
estrangular. Era sanguinaria por indole (TEÓFILO, 1897, p. 34-35. Grifo nosso).
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Além do fator racial, vários outros elementos foram elencados para a constituição
temperamental dessa personagem. De acordo com a narrativa, Vicencia morava na casa do
cunhado desde o casamento da irmã e, com a morte dessa, ela se encarregou da criação dos
sobrinhos e dos assuntos domésticos. José Maria, poucos meses depois de viúvo, procurou
casar-se com a irmã da finada, não só por ela já estar em sua casa, mas também para aumentar
os seus bens, com mais algumas dúzias de vacas e escravos. Mas Vicencia repreendeu com
severidade e rispidez aos seus galanteios, pois, “arisca e casta por temperamento não se
deixaria abordar por seductor algum” (TEÓFILO, 1897, p. 42). Esse temperamento arisco se
explicava devido ao desenvolvimento de uma nevrose, a histeria.
Não foi de certo a physionomia do estrangeiro, muito vulgar e sem attrativos, o seu
corpo de formas pesadas e o seu todo chaboqueiro que inspiraram sympathias à
sertaneja; mas alguma coisa apprehendeu naquelle homem o espírito da
nevropatha, que o acolheu e o não repelliu. Por um desses caprichos tão communs
as hytericas, o forasteiro, cujo nome era João dos Prazeres Furtado, cahiu nas graças
de Vicencia da Gloria. A sua qualidade de quarentona podia tornar suspeita aquella
sympathia; mas podia-se-lhe fazer inteira justiça; ella era refractaria ao matrimonio.
Quando nova nunca sonhou com as perfumadas flores da laranjeira e agora tinha a
felicidade de conservar o seu antagonismo ao casamento, o qual lhe evitaria o
desfructe de se apresentar quarentona em publico, florida e coberta por um véu
branco (TEÓFILO, 1897, p. 238-239. Grifo nosso).
É esse mesmo “espírito nevropata” que a fez sentir simpatia pelo português
Prazeres Furtado, mesmo odiando “tudo o que vinha da outra banda”. Aqui, chamamos
atenção para um elemento muito forte na literatura naturalista que é essa tendência
biologizante de atribuir explicações patológicas aos diferentes fenômenos. Conforme Flora
Süssekind (1984, p.85), “tudo se explica no terreno da patologia e dentro dos limites de uma
concepção organológica da sociedade brasileira”. A presença de personagens portadoras de
diferentes tipos de nevroses é muito frequente nos romances de Rodolfo Teófilo. Teoberto
Landim (1992, p. 52) afirma que a histeria foi uma das doenças que se tornaram moda nos
romances naturalistas do Brasil. Embora a mesma não tenha ganhado muita visibilidade na
literatura do Rodolfo Teófilo, ela foi utilizada, em alguns momentos, para explicar o
comportamento de Vicencia da Gloria, associando-se o desenvolvimento de tal nevrose à sua
índole sanguinária e ao ambiente físico e social ao qual ela estava inserida.
Após ressaltarmos o conjunto de adjetivações negativas atribuído à Vicencia –
uma personagem na qual prevaleciam os caracteres da raça indígena –, agora destacamos o
contraste entre essa personagem e sua sobrinha Maria Rita, a protagonista do romance.
Enquanto a primeira é caracterizada fisicamente como uma mulher de feições feias, resultado
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da predominância indígena e sem quase apresentar elementos da raça branca, sua sobrinha
simbolizava o ideal de beleza e branqueamento resultante dessa mistura:
Maria Ritta fazia um contraste perfeito com a parenta. Nem parecia que na
ascendência de ambas haviam troncos communs.
A tia era escura enquanto a sobrinha tinha a pelle tão branca como o algodão. E que
traços e que feições deu a natureza tropical àquella moça, fundindo as duas
raças, cobinando-as mesmo n’aquelle perfeito typo de mulher formosa. O seu
rosto oval não mostrava ter parentesco algum com a cara chata do indio.
Os olhos rasgados e com o iris azul eram velados por compridas pestanas louras e
protegidos ainda por supercílios, que se arqueavam finos e correctos e da mesma cor
dos cílios. O nariz, órgão no qual a natureza raramente se esmera, era digno de uma
estatua grega: aquillino, mas sem saliencia alguma de cavallete.
A bocca, pequena, vermelha como o fructo do cardeiro, era de uma perfeição
adorável [...] (TEÓFILO, 1897, p. 50-51. Grifo nosso).
Embora Maria Rita fosse fruto do casamento entre uma descendente de indígenas
e um português, o “seu rosto oval não mostrava ter parentesco algum com a cara chata do
índio”. Ela era o tipo perfeito de mulher formosa, fruto da natureza tropical brasileira.
Representava o que, para o narrador, seria o melhor resultado da miscigenação ocorrida no
Brasil. Ela era a comprovação de que essa natureza podia gerar bons frutos e não estava
fadado a sucumbir pela miscigenação. De acordo com essa narrativa, o melhoramento racial,
resultante da mistura entre portugueses e indígenas, já era visível através da irmã de Vicencia,
a mãe de Maria Rita, pois, como fora citado anteriormente, ela herdara as formas e as feições
semelhantes aos seus ascendentes paternos que eram portugueses. Desse modo, o casamento
entre a irmã de Vicencia e o português José Maria da Purificação favoreceu ainda mais ao
processo de branqueamento.
Ao afirmar que Vicencia e Maria Rita se contrastavam em beleza, que a tia era
escura e a sobrinha possuía uma pele muito branca, o narrador estabeleceu critérios de beleza
baseados nos elementos raciais que cada uma expressava fisicamente. Além disso, a
classificação de Vicencia como uma índia e Maria Rita como uma mulher branca ocorreu,
inicialmente, baseada em critérios fenotípicos e não por uma análise aprofundada das suas
linhagens familiares. Mesmo possuindo ascendência indígena, da qual herdou alguns
comportamentos que foram se revelando ao longo da narrativa, em nenhum momento Maria
Rita foi referenciada como cabocla ou mestiça. Ela era tida no ambiente em que vivia como
uma mulher branca, mas também não era tratada como uma portuguesa. Radicalizando o
contraste entre Maria Rita e Vicencia, ambas foram simbolizadas, respectivamente, com um
anjo e uma serpente:
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Naquella espelunca de paredes escuras, mal iluminada pela luz de uma candêa, a
serpente e o anjo pernoitavam juntos.
Maria Ritta muito branca e muito loura dormia placidamente. A tia vendo-a em sua
belleza de mulher adormecida, mais se ufanava com a afronta que mandara fazer a
Queiroz. Troncho nunca mais elle olharia para a sobrinha e a brancura della ficaria
para sempre livre de se macular ao contacto da pelle morena delle (TEÓFILO,
1897, p. 159. Grifo nosso).
Além do contraste entre tia e sobrinha, o trecho faz referência à armadilha que
Vicencia planejara para Joaquim de Queiroz – protagonista do romance e par romântico de
Maria Rita – pela audácia de querer se casar com sua sobrinha. Ressaltamos que, para a tia, o
impasse a essa união consistia apenas na diferença da cor da pele dos amantes – sendo Maria
Rita considerada uma mulher branca e Joaquim de Queiroz caracterizado como moreno claro,
como veremos mais adiante –, pois Queiroz também era descendente da mistura de
portugueses com indígenas. Para Vicencia, era uma grande afronta um homem de pele morena
querer se misturar com uma mulher branca. A cilada serviria de lição para que Queiroz nunca
mais olhasse para Maria Rita e aprendesse a respeitar a hierarquia racial.
A perspectiva da personagem Vicencia da Gloria sobre essa suposta hierarquia
racial nos faz refletir sobre uma questão que ainda é muito característica do racismo praticado
no Brasil e que possui raízes bem profundas. Peter Fry (1996) afirma que o racismo no Brasil
se relaciona a uma hierarquia racial baseada em um “mercado de cores”, diferentemente dos
EUA, onde que a classificação racial se dá por meio da ascendência. Segundo Hilton Costa,
no pensamento racial brasileiro existem dois indicativos básicos utilizados na caracterização
racial do mestiço, a ascendência (sangue) e o fenótipo (características físicas). Esse último é o
tipo de distinção adotado com maior frequência. Porém, essas características físicas, como a
cor da pele, já no final do século XIX, eram vistas, por alguns pensadores, como dados pouco
confiáveis para a distinção racial (COSTA, 2004, p. 91-93). Como veremos, Rodolfo Teófilo
foi além desse mercado de cores, ao tentar estabelecer uma relação entre diferentes
comportamentos de suas personagens e a ascendência racial de cada uma delas.
Mesmo Joaquim de Queiroz também sendo fruto da miscigenação entre brancos e
indígenas, ele possuía uma pele morena. Assim, na perspectiva de Vicencia, isso o colocava
numa situação de inferioridade em relação à Maria Rita. Fica implícito que, para aquela
sociedade, a miscigenação era aceitável quando envolvia o homem branco colonizador e a
mulher indígena. Porém, à mulher branca não era concedido o direito de se unir a um homem
considerado inferior racialmente, situação que nos faz perceber a estreita relação que se
estabelecia entre os preconceitos de raça e gênero.
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Para entender melhor porque essa personagem se via tão atormentada diante da
iminência de ser raptada – mesmo se tratando de um rapto consentido e realizado pelo homem
com quem queria se casar, livrando-a da situação de cárcere em que a tia a mantivera –, se faz
necessário compreender a questão do rapto e do valor atribuído à honra feminina na cultura
sertaneja daquele período. Vale lembrar que no sertão nordestino ergueu-se uma sociedade
fortemente ancorada no patriarcalismo, em que a honra masculina se baseava no ideal de
valentia e a honra feminina estava associada ao pudor e à castidade. Refere-se a uma
sociedade atravessada por desigualdades de gênero, raça e classe, o que facilmente torna
compreensível que a posição mais alta estava ocupada pelo homem branco e fazendeiro. E nos
estratos mais baixo encontram-se as mulheres empobrecidas, negras, mestiças e escravizadas.
A situação vivida por Maria Rita talvez não fosse das piores, pois, como nos
mostra Miridan Falci (2018, p. 242), ser uma mulher branca filha de fazendeiro, era o ideal de
mulher naquele sertão. Porém, mesmo essa condição não trazia grandes regalias. Isso porque
essas mulheres, em sua maioria, até o século XIX, ficavam reclusas ao espaço privado, lhes
eram negados os direitos à cidadania, à instrução e até mesmo o poder de decisão sobre suas
vidas e seus corpos (FALCI, 2018, p. 251). Elas não eram vistas como sujeitos autônomos,
eram, frequentemente, mantidas sob a tutela de um homem, seja ele o pai, o marido, ou outro
parente próximo. Como esposa, o seu valor estava assentado no ideal de honestidade,
expresso pelo seu recato e pelo exercício de suas funções dentro do lar. Quando ainda solteira,
o valor dessa mulher era associado à sua virgindade e ao seu pudor. Portanto, a mulher que
perdia a virgindade antes do casamento era considerada perdida e para a família era motivo de
vergonha e desonra. O que restava a essas moças brancas e de família rica era se casar “pura”
e com quem o pai considerasse em conformidade com a situação social e racial da família. Do
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mesmo modo, aquelas que se casavam sem o consentimento do pai ficavam excluídas da
solidariedade familiar, pois essa atitude significava uma grande ofensa ao poder patriarcal
(FALCI, 2018, p. 258-259).
Como na vida cotidiana nem sempre as regras sociais foram estritamente
respeitadas, eram frequentes os casos de raptos, os quais se revelavam como uma escapatória
para os namoros proibidos e para aquelas convenções sociais. Uma vez que uma moça fosse
raptada, ou seduzida, ela estaria irreversivelmente desonrada, pois ninguém mais acreditaria
na sua pureza, mesmo que ela não fosse tocada durante o rapto. Assim, o que restava à família
era providenciar o casamento para remediar uma situação vexatória. Moça raptada que não se
casava virava mulher perdida, e, caso o rapaz se negasse a casar, estaria sujeito a duras
punições, como ser “capado” ou morto, por ter cometido o crime da desonra, considerado um
dos piores para aquela cultura patriarcal e vingativa (FALCI, 2018, p. 267).
Diante de toda essa circunstância, torna-se compreensível a hesitação de Maria
Rita ao chegar o momento decisivo da fuga. Para ela, seria incerto o seu futuro de moça
desonrada. Através de uma concepção racial e moralista, percebemos nessa obra que à mulher
branca e de “boa família” eram reservados os sentimentos mais puros e a castidade. Os
desejos da carne e a luxúria eram considerados comportamentos temperamentais
inapropriados a essa mulher, pois não pertenciam a sua raça. Ao mesmo tempo, ela era
colocada numa situação de grande vulnerabilidade que, por si só, não tinha forças para
resistir. Quando ocorria a transgressão racial e sexual, essa mulher passava a ser vista como
perdida, e tal imposição fez com que Maria Rita se sentisse como uma porca vadia atrás do
amante.
Na dúvida entre a paixão e a castidade, Maria Rita optou pela primeira. Para
explicar essa situação, o narrador propôs que a herança temperamental da raça indígena foi
um elemento decisivo. Essa personagem, até então, havia apresentado apenas características
atribuídas à raça branca, como a fisionomia e a passividade diante da autoridade da tia.
Quando percebeu que a sua paixão estava ameaçada, o temperamento insubmisso, que herdara
da raça indígena, passou a se manifestar com toda força:
Maria Ritta revoltou-se com o castigo, com tão estupido aviltamento. Havia até
então suportado com resignação a palavra injuriosa, a humilhante pancada; mas
agora uma onda insubmissa revolucionava todo seu sangue tupy e ella com a
coragem selvatica de seus ascendentes maternos, com o semblante portuguez
crispado pelo ódio do indio, repeliu a tia com um valor que mettia medo.
Aquellas duas mulheres tão differentes na côr e nas feições tinham herdado
muitas das qualidades de seus antepassados. Odiavam-se.
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A docilidade de Maria, a paciencia com que sofria todos os castigos da tia, não
fariam suspeitar que seu espírito se revoltasse um dia, que em um momento
explodissem sentimentos que jaziam em estado latente, e a delicada donzella,
cujos musculos pareciam não terem sido creados para o pugilato se atirasse a luta
com energia e valor.
Vivencia vendo-se desrespeitada pela sobrinha rugiu de raiva como uma onça, e
lançou-se sobre ella para estrangulal-a. A sua frente, entretanto, não encontrou a
creatura dócil, que acceitava com paciência, as penas que lhe impunham, mas a
índia altiva e destemida, que pelejaria até a morte, não para se desaffrontar do
ultraje cortando a mão que lhe esbofeteava, porem para abrir caminho até o
homem, por quem suas carnes sem quizesse palpitavam de desejos (TEÓFILO,
1897, p. 67-68. Grifo nosso).
coração della num anceio mortificante, num desejo ardente de deleites [...]” (TEÓFILO, 1897,
p. 335).
Maria Rita, ao demonstrar um temperamento inconstante, ao longo da trama se
desfez do pudor que lhe era reservado e se mostrou como uma mulher incapaz de resistir aos
desejos carnais, apesar do peso que os princípios morais lhe impunham à consciência.
Dialogando com Santos e Salles, ressaltamos que o Naturalismo trouxe à tona a questão da
sexualidade feminina de um modo que até então não era enfatizado: “ora evidenciando os
efeitos da repressão que recaía sobre o corpo feminino, ora destacando a ruína das
personagens que ousassem transgredir ou se opor a tais barreiras” (SANTOS, SALLES, 2016,
p. 133). Nessa perspectiva, a protagonista de Maria Rita não chegou a cair em completa ruína
porque não ficou desamparada, conseguindo se unir a Queiroz. Mas, sua união não foi selada
pelos votos matrimoniais da igreja e nem obteve a bênção da família. Rituais estes, bastante
simbólicos para a cultura sertaneja daquele período.
Destaca-se ainda que o enfoque naturalista sobre a sexualidade não teve por
propósito libertar o corpo feminino de todas as suas amarras. Pelo contrário, impôs-lhes novos
limites e significações para as suas transgressões, através da coerção social, religiosa e
familiar. Diante disso, o que podemos perceber, através da literatura, é que houve “uma
ruptura em relação ao silêncio que recaía sobre o corpo e a sexualidade feminina, dando maior
visibilidade e dizibilidade à questão” (SANTOS E SALLES, 2016, p. 111).
Embora essa forma de representar a sexualidade feminina estivesse atrelada a uma
tendência mais geral da produção naturalista, Rodolfo Teófilo referia-se a sujeitos sociais
específicos. Neste caso, as mulheres sertanejas do sertão cearense, no período colonial.
Partindo de um lugar bem delimitado, ele apresentou elementos culturais que nos fazem
refletir sobre aquela realidade e sobre sua forma de observá-la. Ao tratar da questão do rapto
de uma moça, ele destacou que eram muito comuns na cultura sertaneja, daquele período, os
casamentos arranjados pelos pais:
O portuguez entre o enleio e a manha acceitou a mão de Maria Ritta que ainda não
tinha visto, mas isso não vinha ao caso. Era costume entre os sertanejos casamentos
assim. Raros entre elles eram os casados que se tinham visto antes de celebrado o
sacramento do matrimonio. O contracto de núpcias corria por conta dos pais e isso
quer se tratasse de rapaz ou de raparigas. Chegando a moça a edade de tomar estado
o pai sem ouvil-a, sem consultal-a procurava marido para ella derigindo-se ao pai do
homem, que escolhera para genro.[...]
Uniões feitas assim perfeitamente felizes para educação delles e para a
sensibilidade moral. Rara era a mulher que se revoltava contra a escolha do
homem, que lhe deram para marido; influenciadas pelo meio, mordidas de desejos
sensuaes, que picavam a carne, e que o clima fazia mais ardentes e o
82
mestiço. Porém, ao contrário do que foi colocado como algo muito comum entre as sertanejas,
Maria Rita não se submeteu a um casamento forçado:
Um padre lhe havia dado um marido que ella repudiou, porque jamais se poderiam
homogeneisar; porque o matrimonio seria para ella, não o deleite dos sentidos, mas
um attentado ao seu pudor. Teve a rara ventura de lutar e de vencer. Não foi
immolada como inerme victima, e nem encontrou no casamento o holocausto, como
tantas outras que sobem o altar nupcial do mesmo modo que subiriam os degráos do
cadafalso, porque em suas veias corria sangue indígena. Ella comprehendeu,
graças somente ao seu apurado instincto de mulher apaixonada, os desgostos e as
angustias que a esperava se ella vivesse com o marido (TEÓFILO, 1897, p. 383.
Grifo nosso).
De acordo com esse trecho, diferente de outras sertanejas, Maria Rita não se
submeteu a um casamento forçado porque em suas veias corria sangue indígena. Tal
afirmativa favoreceu a positivação do elemento indígena, pois era dele que insurgia a coragem
presente em Maria Rita e que a diferenciava de outras sertanejas. Recusando-se a consumar
um casamento forçado, ela lutou como uma selvagem e mais uma vez fugiu da casa paterna e
do marido arranjado. Após a fuga, ela passou a viver em meio à mata fechada, enfrentando
vários perigos. Durante esse tempo, houve uma inserção da personagem à natureza, como se
ela sempre fizesse parte daquele meio. Ao se incorporar na floresta, cada vez mais lhe
sobressaia um temperamento selvagem:
A religião, que podia fortalecel-a armal-a mesmo um pouco contra o peccado, isto é,
dar-lhe força para fugir a tentação, não tinha, quasi não conhecia Deus. Coitada não
sabia resar! O feitichismo professado no meio em que ella se creara quasi havia
destruído em sua alma as ideas incompletas que tinha do catholicismo e as crenças
da religião de Christo.
Maria Ritta, em seus dias de desespero, em suas horas penosas de tribulação e de
abandono, desilludida de todo qualquer socorro humano nunca tentou o recurso da
prece, da oração. Não blasphemava e nem também supplicava. Procurava conjurar
os males que a afflingia pelo sortilegio. Assim chamava em seu auxilio a mais
afamada feiticeira da fazenda e crente em seu poder sobrenatural pedia-lhe com toda
a confiança a graça de aplacar a colera de Vicencia da Gloria. As mandingas da
negra, entretanto, não faziam arrefecer o máo humor da tia e muito menos
curava-lhe a histeria.
Maria Ritta, altiva por temperamento, com certas qualidades nobres e nativas,
pois eram desconhecidas no meio em que se formara o seu carater, seria o
exemplo da mulher forte se outra tivesse sido a sua educação. O seu espírito
inculto, tinha entretanto as vezes rasgos de polidez, que podiam ser considerados
como verdadeiros casos de subjectividade. A sua energia e coragem tão
exuberantemente aproveitadas por um desciplinamento são, desenvolveram naquelle
espírito dotes de subido valor. Ella tinha alguma coisa mais do que as mulheres com
quem convivia em seus annos era um phenomeno digno de observação. Estes dotes
intellectuaes naquelle meio serviam unicamente para fazel-a mais infeliz. Com um
entendimento bronco, uma percepção romba teria soffrido menos, sentiria só as
85
Casava bem aquellas vestes com tão puro typo de sertanejo. Não se podia desejar
exemplar mais perfeito do mestiço, da fusão das raças portugueza e brazileira.
Todo elle era rijo, masculo emfim. O rosto moreno, mais de um moreno claro, era
illuminado por um olhar vivo e intelligente gerado em uns olhos grandes e negros.
Mal apontava-lhe o buço e os primeiros pellos finos e sedosos da barba, que mui
rudimentar ainda, mostrava contudo que seria cerrada e preta. Não parecia ter elle
mais de vinte annos (TEÓFILO, 1897, p. 57. Grifo nosso).
possível constatar por meio de elementos faciais, como a presença de uma barba cerrada e
preta e olhos grandes. Porém, diferentemente de Maria Rita, esse sertanejo não era de todo
branco. Ele possuía um rosto moreno, mas de um moreno claro, representando as diferentes
gradações de mestiçagem que já existia no período colonial, o que remete à grande variedade
de “tipos de cor”. Destacar que o protagonista do romance tinha uma pele clara, significa
enfatizar que ele estava em uma situação melhor que aqueles que possuíam a pele escura. Mas
isso não o impedia de sofrer o preconceito de raça por parte da tia de Maria Rita, que, embora
fosse uma tapuia, não admitia que a “brancura” da sobrinha fosse maculada pela pele morena
de Queiroz.
Ressaltamos também a descrição desse sertanejo como um tipo rijo e másculo.
Sua conformação física aparece atrelada à vida sertaneja e à sua lida como vaqueiro:
O primeiro aspecto que queremos destacar sobre esse puro tipo de sertanejo é a
relação entre o seu pertencimento racial e a sua condição social. Queiroz não era um caboclo
qualquer, ele desempenhava a função de vaqueiro, uma das mais valorizadas na cultura
sertaneja. Ivone Cordeiro Barbosa (2000), ao estudar sobre a forma como o sertão se
configurava na literatura cearense do século XIX, mostrou que desde meados do século XVIII
foi dada uma centralidade à figura do vaqueiro. Isso nos permite dimensionar “a sua
importância na experiência histórica do sertão cearense” (BARBOSA, 2000, p. 103). Ela
também destaca que no século XIX a relação de trabalho entre vaqueiro e proprietário de terra
se dava por meio da “quarteação” (uma forma de pagamento em que a cada quatro crias, uma
era reservada ao vaqueiro). Essa relação abria a possibilidade de ascensão social ao vaqueiro,
pois, assim, ele poderia também possuir seu próprio rebanho. Portanto, podemos afirmar que
ser vaqueiro era uma atividade relativamente valorizada na sociedade sertaneja do período em
que a obra foi escrita. E, tratando-se do período colonial, ao qual o romance fez referência,
destaca-se que a pecuária foi a principal responsável pela ocupação portuguesa do sertão
cearense (PINHEIRO, 2007), possuindo grande relevância para aquela sociedade. É nesse
87
sentido que o protagonista Queiroz foi tratado como um herói, um caboclo destemido que
demonstrava força, coragem e destreza ao se emaranhar na mata, em busca dos touros bravios.
Entretanto, o que tornava Queiroz um sertanejo de qualidades elevadas não era
apenas a sua atividade de vaqueiro. Como mostra a citação, esse personagem possuía uma
grande cultura intelectual para o tempo e o meio em que vivia e possuía grande paixão pela
poesia. Ao fazer essa distinção, Rodolfo Teófilo deixou transparecer sua visão de homem
letrado e citadino sobre o sertão, um olhar que qualificava esse local como inculto e bárbaro.
Mas, numa perspectiva regeneradora, propôs que, por meio das letras, os sertanejos poderiam
se tornar civilizados. Destacamos que essa era uma visão muito difundida no meio intelectual
em que Rodolfo Teófilo circulava.
Manoel Alencar (2009) aponta que na passagem do século XIX para o XX,
período em que a maioria da população brasileira era completamente analfabeta, e, portanto,
considerada inculta, havia uma forte crença, por parte da elite letrada brasileira, no poder
transformador da educação. Para essa elite letrada, apenas uma ampla difusão do saber seria
capaz de resgatar o povo da ignorância. Esse pensamento estava presente nos diversos meios
letrados, com destaque à imprensa e à literatura. Na imprensa cearense era frequente um
determinado tipo de conteúdo que associava instrução à civilização: “A instrução é tão
necessária para ilustrar nosso espírito, como o alimento é indispensável para o sustentáculo do
corpo. Onde não há instrução é morta a civilização; não tem possibilidade de progresso
algum, quer moral, quer material” (O Colossal Apud GONÇALVES, 2006, p. 61). Rodolfo
Teófilo constantemente expressava em seus escritos esse forte poder que creditava à
instrução. Se referindo ao período colonial, ele destacou que a atuação dos jesuítas24 foi
fundamental para salvar os nativos da barbárie. Assim, esse literato reproduzia o discurso dos
dominadores e mais uma vez relacionava a questão racial com a ideia de civilização trazida
pela raça branca.
Ressaltamos que Queiroz, sendo o protagonista do romance, tratado em termos
raciais como um puro tipo de sertanejo, nos possibilitou perceber através de sua
caracterização a construção de um sertanejo idealizado aos moldes do Romantismo. Embora
Rodolfo Teófilo tenha empreendido um grande esforço para escrever esses romances em
conformidade aos ditames naturalistas, através da construção de muitas de suas personagens
fica visível que esse autor não conseguiu romper completamente com a estética do
Romantismo. Exemplo disso é a construção desse protagonista, que muito se assemelhava aos
24
“Até 1759, a educação foi deixada a cargo dos jesuítas, que foram certamente os primeiros responsáveis pela
instrução no período colonial” (ALENCAR, 2009, p. 153).
88
heróis sertanejos do Romantismo. Esses heróis se caracterizavam por levarem uma vida
simples no campo, cujos grandes feitos apareciam relacionados à vida de vaqueiro, na lida
com touros bravios. Queiroz também foi idealizado ao apresentar uma pureza de sentimentos
que não era comum às personagens naturalistas:
A alma do poeta estava embebida do mais puro platonismo. Nem uma scena de
sensualidade, nem um desejo carnal ateou-se-lhe no espírito, quando os seus
sentidos perceberam as formas nuas da sertaneja. Extasiou-se somente deante da
belleza da estatua viva, e como artista que adorou a esthetica daquelle pedaço de
carne (TEÓFILO, 1897, p. 96).
Esse amor platônico que o poeta sentiu por Maria Rita, desde que a viu pela
primeira vez – saindo de um banho, com a roupa ainda molhada –, revela a ideia de pureza
atrelada ao homem do campo, a qual perdurou por muito tempo na literatura sobre o sertão
(BARBOSA, 2000). Ao mesmo tempo, Queiroz foi apresentado como um homem que possuía
uma sensibilidade aguçada, um sertanejo que teve acesso a uma cultura intelectual, capaz de
admirar o belo e transformá-lo em poesia. Essa pureza, relacionada ao amor romântico e
idealizado, presente em Queiroz, se contrastava com os sentimentos de seu amigo Belmonte:
O amor de Belmonte não era casto como o de Queiroz. Enquanto este idealisava
mundos de gosos para Maria, tecia de nuvens as vestes della e depois a punha num
thrôno e a adorava prostrado, aquelle obedecendo ao seu temperamento libidinoso
de mestiço deixava-se espicaçar de desejos sensuaes. O meio actuava de modo
diverso sobre o espírito dos dous moços sertanejos. Um via somente a Natureza
pelo prisma do seu platonismo: as flôres, as aves, as borboletas, os astros se amando
castamente, desse amor puro d’alma e não do corpo. O outro vivia da volupia dos
animaes, cuja sensualidade expunham sem rebuço, e elle gosava do goso delles,
porque todo o seu ser se embebia de um deleite carnal como elle fosse um dos
protagonistas daquelle acto. Amava a noiva como um touro ama a novilha
sentindo por ella somente os fremitos da carne em ancias pela realisação do sonho
que sua mente creava quando seus olhos viam os idyllios dos beija-flôres e lhe
chegavam aos ouvidos o arrulho das rôlas em amoraveis nupcias. Que de desejos
não lhe sacudiam os nervos quando os brutos em toda a sua animalidade amavam-se
à sua vista, sem acanhamento, com toda a volupia de uma carnação nova, vigorosa e
sadia! (TEÓFILO, 1897, p. 96-97. Grifo nosso).
Até aquelle instante, até ouvir a narrativa q’aquelle episodio carnal o seu amor tinha
sido todo contemplativo, todo platonico. A besta existia, mas hibernava em seu
miseravel carcere. Agora ella acordava e Queiroz sentindo-a dentro de si, procurava
contel-a, por-lhe peias aos botes que ella atirava a sua castidade, mas embalde, o
episodio que ouvira havia ateado o fogo da concupicencia em sua animalidade
inteira. Em seu sangue de mestiço o fluido sensual não ficaria em extase, e elle o
casto e sonhador amante, mal grado uns restos de pudor que se escondiam em si
deixaria a besta o seu livre arbitrio (TEÓFILO, 1897, p. 369).
de um homem disputando a posse da mulher que dizia ser sua”, Queiroz foi tomado pelo
ciúme e pelo desejo carnal. A partir desse momento, a sensualidade, que herdara das raças
selvagens e que se mantivera em estado latente, passou a se manifestar de forma violenta.
As personagens analisadas nessa seção foram caracterizadas racialmente como
mestiças, frutos do cruzamento entre brancos e índios. O que pudemos constatar é que, de
acordo com essa narrativa, a miscigenação ocorrida durante o período colonial não foi capaz
de apagar traços que revelavam a forte presença da raça selvagem na formação do povo
cearense, mesmo que, em alguns casos, a mistura com a raça branca, atrelada à civilização
trazida por essa, tenha amenizado o temperamento selvagem. Essa presença do elemento
indígena tomou diferentes proporções, variando de acordo com cada personagem
representada. Isso demonstra que, para o narrador, houve uma grande variedade de
miscigenação. Como vimos, em Vicencia da Gloria prevaleceu a fisionomia e o
temperamento dos indígenas. Já Maria Rita, mesmo se assemelhando fisicamente à raça
branca, aos poucos foi demonstrando um temperamento selvagem que se manifestava ao
estímulo de agentes externos, como a paixão que sentira por Queiroz e ao entrar em contato
com a natureza bravia, ou seja, com o meio. Em Joaquim de Queiroz prevaleceram os valores
e temperamento considerados pertencentes à raça branca. Mas, ao final do romance, nele
também se manifestaram aspectos temperamentais que o caracterizavam como mestiço, além
de possuir uma pele morena.
O que podemos concluir a respeito da visão que essa obra passa sobre a
miscigenação que deu origem ao povo cearense, é que o seu autor não condenava a
miscigenação entre brancos e índios. Pelo contrário, ele até construiu uma visão otimista
dessa mestiçagem, através dos protagonistas, Joaquim de Queiroz e Maria Rita. E, embora
determinadas características negativas fossem de herança indígena – como a índole
sanguinária, a concupiscência, a fúria e a altivez –, também eram a coragem e a insubmissão.
Tais características se manifestavam por meio de diferentes estímulos externos. E é nisso que
consiste a lei do atavismo.
Ainda que na perspectiva do narrador prevaleça uma visão positivada sobre a
miscigenação (desde que o elemento branco seja predominante), também foi possível
constatar vozes dissonantes dentro de uma mesma obra, através das falas de diferentes
personagens. Exemplo disso é a fala do padre Botelho, a partir da qual não se cogitava nem a
possibilidade de melhoramento racial para os descendentes de indígena e nem que esses
fossem civilizáveis:
91
Esse trecho mostra uma visão sobre a catequese dos indígenas, a partir do ponto
de vista do antagonista do romance, para o qual essa catequese seria inviável, pois, os nativos
se tratavam de brutos irredutíveis à civilidade e aos preceitos cristãos. Assim, nessa
perspectiva, a melhor solução que a coroa portuguesa poderia tomar seria exterminar os
nativos e colonizar essas terras apenas com a raça branca, tida por Botelho como “uma raça
mais pura, mais inteligente”. Esse pensamento mais radical de extermínio apareceu como uma
alternativa para aqueles que estariam interessados em civilizar de forma rápida as terras
brasileiras. Para isso seria necessário eliminar os elementos raciais considerados inferiores.
Foi a partir da perspectiva do vigário, assim como do português José Maria da Purificação,
outra personagem que não tinha a simpatia do narrador, que esse apresentou uma visão
contrária à miscigenação. Tal visão referia-se a uma perspectiva dos colonizadores
portugueses sobre os indígenas e sobre a miscigenação, a qual não coincidia com a concepção
do próprio narrador:
A conferencia de José Maria com o vigario acabou por uma palestra, na qual
tomaram parte Prazeres e Bernardo. Dominando alli o ellemento portuguez, a
conversação cahiu fatalmente em negocios do Brazil, e, por associações de idéas,
nos naturaes, cuja preguiça e índole sanguinária foram ainda uma vez
celebradas e exageradas pelo odio estrangeiro. Um paiz de cabras nunca poderá
prosperar, diziam convencidos. Sutentavam sem discrepância ser a matança dos
indios e das gentes de côr, o único meio de civilisar depressa as terras brazileiras,
como se desapparecido o elemento indígena e o mestiço ficasse outro a não ser o
civilisado calceta portuguez (TEÓFILO, 1897, p. 253. Grifo nosso).
Na afirmação que “um país de cabras nunca poderá prosperar”, atentamos para o
fato de que o termo “cabra” é uma expressão que se tornou muito popular no linguajar
sertanejo, mas, em termos raciais, Rodolfo Teófilo utilizava para se referir à mestiçagem
resultante da mistura entre o negro e o índio. Considerada por ele a pior mistura entre as
92
raças25, pois não envolvia o elemento o branco. Nesse trecho, os grupos raciais considerados
inferiores e que deveriam ser mortos eram os índios e a gente de cor.26
De uma forma geral, essa perspectiva contrária à miscigenação representava a
visão de colonizadores portugueses. Assim, ressalta-se o papel desempenhado por essas
personagens dentro daquela narrativa. Na seção anterior vimos que todos esses portugueses
foram caracterizados como pessoas desonestas, mau-caráter, interesseiras e egoístas. Portanto,
suas ações e opiniões eram condenáveis. Entendemos que Rodolfo Teófilo, situado
temporalmente no final do século XIX, não trabalhava nessa mesma perspectiva. Pois, na
temporalidade em que a obra foi produzida, a colonização e a miscigenação já eram fatos
consumados. Para esse autor, era mais interessante pensar no que fazer com essa
miscigenação, já tão avançada. Dessa forma, ao trabalharmos com a fonte literária, é preciso
atentar para a forma como as diferentes falas e concepções das personagens e do narrador
foram arranjadas e hierarquizadas no interior de uma mesma obra.
25
Essa concepção negativa que Rodolfo Teófilo possuía sobre a mestiçagem entre índios e negros é evidenciada
de forma explícita na sua obra Os Brilhantes, ao tratar dos Calangros, grupo de bandidos inimigos do
protagonista Jesuíno Brilhante.
26
Essa expressão nos leva a refletir sobre o fato de que até para apresentar o negro como um grupo racial
indesejável há uma negação do mesmo. Pois tratar alguém como “gente de cor” é atribuir uma imediata distinção
por uma marca mais visível, como a cor da pele, destituindo aquele sujeito de seu pertencimento a um grupo
étnico específico.
93
O contraste mais claro, dentro da própria obra, à afirmativa de que “aqui não se
conhece o julgo da escravidão” é o personagem Banda-Fora, um escravo que servia à família
de José Maria da Purificação. Esse escravo foi encarregado, por Vicencia da Gloria, de efetuar
uma desforra contra Queiroz, pois a mesma não aceitava o romance entre o sertanejo e sua
sobrinha Maria Rita. O plano era Banda-Fora pegar Joaquim de Queiroz em uma emboscada
durante a noite, dar-lhe uma surra e depois marcar seu rosto com as iniciais da fazenda
pertencente ao pai de Maria Rita. Porém, esse plano não se realizou, pois, ao tentar acatar o
vaqueiro, Banda-Fora acabou sendo atingido pelo cavalo de Queiroz. Após ter a perna
quebrada no atrito com o cavalo, no dia seguinte à emboscada, Banda-Fora foi encontrado,
quase desfalecido, por Queiroz e Belmonte. Conforme a narrativa: “Queiroz estava com pena
do cabra. A angustia que desfigurava o mestiço, que prostrava e que lhe tolhia todos os meios
physicos de acção não podia deixar de commover a alma generosa do poeta” (TEÓFILO,
1897, p. 146). Como podemos ver, mesmo se tratando de um escravo, Banda-Fora não foi
categorizado como negro. Algumas vezes foi citado pelo narrador como mestiço e na maior
parte do tempo foi tratado por cabra, inclusive por outras personagens.
O historiador Eurípedes Funes (2007), ao pesquisar sobre a presença do negro no
Ceará, problematizou essa ideia, muito frequente, de que no Ceará não há negro porque a
escravidão foi pouco expressiva. Através de um romance de Rodolfo Teófilo, produzido no
final do século XIX, podemos ver que essa ideia é remota e se perpetuou por muito tempo na
historiografia cearense. Esse pesquisador nos mostra que uma forma de justificar essa quase
ausência do elemento negro na formação do povo cearense é contrapondo-a a forte presença
do indígena:
Uma forma recorrente para acentuar a essas considerações é afirmar que entre os
pardos estavam, e estão, os mestiços fruto do cruzamento das demais etnias com o
nativo, o índio. Pode até ser, mas não se deve deixar de considerar a presença do
cafuzo, do mulato, do cabra, que nada mais são do que fruto de uma miscigenação
com forte predominância do negro. Basta estar atento para as formas de
identificação nos censos dos cativos que não são “pretos”, não só no Ceará, e
perceber que essas são as categorias usualmente empregadas (FUNES, 2007, p.
103).
Nesse sentido, destacamos que a forte presença do índio não anula a do negro. É
preciso estar atento às formas sutis de denúncia à presença do negro, diluída através de
categorias como mestiço, mulato, cafuzo e cabra. Eurípides Funes ainda afirma que essa
tentativa de negar a presença do negro no Ceará relaciona-se a uma lógica perversa de
associar o negro à escravidão. Embora a escravidão no sertão nordestino não tenha ocorrido
94
de forma tão intensa como no Nordeste açucareiro, isso não impede que os negros também
tenham ocupado aquele espaço. Não só como cativos, mas também como trabalhadores livres
e agregados das fazendas de criar, durante a colonização. Conforme a atividade pecuária foi
se efetivando, “consolidou-se um espaço de trabalho que atraiu um contingente de homens
livres, em sua maioria pobres, negros e pardos, vindos de províncias vizinhas” (FUNES,
2007, p. 105). E mesmo com o tráfico interprovincial no século XIX, em que muitos cativos
cearenses foram exportados para outras províncias, constatou-se um aumento significativo de
uma população livre negra e miscigenada, fruto de um crescimento vegetativo (FUNES, 2007,
p. 106).
Sendo a presença do negro quase apagada nesse romance histórico sobre a
colonização, quando ele aparecia, eram-lhe atribuídas as piores qualificações. Diferentemente
dos indígenas que se destacavam pela altivez e coragem, o negro Banda-Fora foi qualificado
como uma pessoa covarde e sem muitos valores morais. Após o fracasso na emboscada, esse
cativo teve a vida poupada por Queiroz, que o perdoou com a condição de avisar a Maria Rita
sobre seus planos de raptá-la. Porém, temendo os castigos de Vicencia, Banda-Fora “lembrou-
se então de obter as graças da senhora de outro modo, revelando o segredo de Queiroz” e,
assim, cogitou a possibilidade de “expor a vida do homem que tão generosamente havia
poupado a sua vida” (TEÓFILO, 1897, p. 160).
Ao relatar sobre os sentimentos desse homem negro, o narrador tratava-o como
um homem embrutecido pelo cativeiro e incapaz de cultivar bons sentimentos por qualquer
pessoa, nem mesmo por aquele que havia lhe poupado a vida. Mas, ao lembrar-se das afrontas
descarregadas por seus inimigos, Banda-Fora desejava vingar-se “desapiedosamente”. Para
conseguir tais propósitos recorria ao sortilégio, uma prática tratada como comum naquela
cultura, e de modo específico, para aquele tipo racial:
potestades demoníacas. Assim, mais uma vez, atentamos para aquilo de Roberto Ventura
ressalta como uma identificação, por parte dos homens letrados, com o pensamento
colonialista, o que favorecia a uma relação etnocêntrica com os grupos populares, entre eles,
indígenas, africanos e mestiços, “cujas formas de cultura e religião eram depreciadas como
atávicas, atrasadas ou degeneradas” (VENTURA, 1991, p. 59).
Ao tratar as crenças desses povos de forma estereotipada e carregada de valores
negativos, buscou-se justificar a sua inferioridade racial. Pudemos verificar que essa forma de
tratamento sobre as crenças dos povos negros apareceu de forma bem recorrente na produção
literária de Rodolfo Teófilo. Assim como em Maria Rita, podemos citar também a cena de um
ritual de fechamento do corpo na obra Os Brilhantes. Através das descrições do narrador,
percebemos um olhar de descrença e preconceito sobre aquilo que era tratado como mandinga
ou bruxaria. Destacamos os tipos raciais dos dois personagens envolvidos. Um desses
personagens era um negro feiticeiro que realizou o ritual, descrito como “um prêto bastante
velho, nojento e maltrapilho” (TEÓFILO, 1972, p. 126), o africano Manoel do Congo. E o
outro era Francisco Calangro, um mestiço criminoso que procurou fechar o corpo para se
proteger da morte: “O matuto quase tão rombo como o africano, e tão crente como êle
naquelas bruxarias, tirou a roupa, muito convencido de que era necessário expor tôda a pele
ao fetichista a fim de ser preservada de todo mal” (TEÓFILO, 1972, p. 128). Posteriormente,
a narrativa relatou seu violento assassinato, comprovando a ineficiência daquele ritual.
O curandeirismo era praticado no Brasil desde o período colonial e envolvia
práticas de cura informal. Muitas vezes, essas práticas envolviam rituais mágicos vindo da
África, baseados no emprego de talismãs, amuletos e fetiches. Rodolfo Teófilo, ao descrever
esses rituais, não escondeu o seu olhar preconceituoso. Nesse trecho da obra Os Brilhantes,
além de tratar tal ritual de forma grotesca, o narrador também atribuiu descrições bastante
repugnantes sobre o velho feiticeiro e o ambiente em que ele vivia: “Aquêle ar, tão puro lá
fora, estava impregnado no casebre de um fedor de anum, que embebedava. Quanto mais se
movia o negro mais fétido se tornava o ambiente” (TEÓFILO, 1972, p. 127). Mais uma vez,
Rodolfo Teófilo associou o ambiente vivido por grupos populares à falta de higiene.
Retomando a discussão sobre a construção do personagem Banda-Fora, no
decorrer da obra Maria Rita, o narrador explicou que o seu espírito acovardado e a sua falta
de sensibilidade moral revelavam um temperamento moldado pela condição de cativo, a qual
embrutecia e desumanizava o indivíduo.
96
A sua sensibilidade moral estava de perfeito accordo com a cultura de seu espírito,
com o seu carater formado na senzala, aviltado pelo chicote desde que teve uso da
rasão. Aquella prisão, a deshumanidade da senhora não podia affligil-o muito
moralmente.
A infelicidade delles captivos era tamanha que lhes negava o direito de uma
esperança, quanto mais o allivio de um consolo! Escravos, a lei dos homens os havia
banido da communhão humana, arrancando-lhes do coração todas as affeições,
negando até as prerrogativas de ser racional e concedendo somente os foros e os
privilégios de besta, mas de besta de carga (TEÓFILO, 1897, p. 167-168).
27
Não é novidade que o Estado do Ceará vangloria-se por ter sido a primeira província na nação a abolir a
escravidão, em 25 de março de 1884. Tal feito redeu-lhe os epítetos de Terra da Luz e Berço da Liberdade,
alcunhas atribuídas pelo famoso abolicionista e jornalista da Corte, José do Patrocínio. As marcas simbólicas
desse legado são ostentadas através de logradouros e prédios públicos na capital cearense, como, por exemplo, o
Palácio da Abolição, sede do governo do Estado. Além disso, recentemente, o dia 25 de março passou a ser
instituído como a Data Magna do Ceará.
28
À medida que a campanha abolicionista ia se difundindo, também surgiram várias outras sociedades na capital
cearense, como a Perseverança e Porvir, Centro Abolicionista, Democracia e Extermínio, Cavalheiros do Prazer,
Cearenses Libertadoras, Clube Abolicionista Caixeiral, Clube dos Libertos e Clube Abolicionista Militar.
Gleudson Cardoso atenta para o fato de que “muitas vezes elas trabalhavam juntas, ou isoladas, conforme a
afinidade do seu espírito de facção, segundo a sua postura, ou de acordo com os meios de ação em que se
distinguiram os moderados, fervorosos e carbonários” (CARDOSO, 2000, p. 85-86).
97
da criação do jornal Libertador que essa sociedade passou a divulgar suas ideias, além de
estabelecer contato com os abolicionistas de outras províncias, principalmente da Corte.
Inclusive, José do Patrocínio participou de alguns eventos da campanha abolicionista, durante
alguns meses que esteve no Ceará, em 1882.
Rodolfo Teófilo, como destacou seu biógrafo Waldy Sombra, participou
ativamente da campanha abolicionista cearense, já que “não era de seu temperamento
presenciar acontecimentos e sim, deles participar, desencadeá-los” (SOMBRA, 1997, p. 63).
Por isso, se destacou como um dos membros ativos fundadores da Sociedade Libertadora
Cearense e também como um dos colaboradores do jornal Libertador. Além disso, ao lado de
sua esposa Raimundinha, esteve à frente da campanha abolicionista de sua saudosa Pacatuba,
que se tornou o segundo município cearense a libertar os escravos, em dois de fevereiro de
1883, sucedendo a Vila Acarape (Redenção), em 1º de janeiro do mesmo ano.
Diante do forte engajamento desse intelectual na causa abolicionista,
questionamos por que uma obra como Maria Rita, escrita logo após o processo de libertação
dos escravos, buscou apagar a presença do negro em sua narrativa, num momento em que se
construía a narrativa heroica do Ceará como um Estado libertador? Como vimos, o
apagamento do negro nessa narrativa foi marcado tanto pela tentativa de negar a sua presença,
como pelo discurso negativo que o apresentava como um sujeito covarde, sem direito à
cidadania e estereotipado. Ressaltamos ainda que essa esteriotipação e apagamento do negro,
por Rodolfo Teófilo, não se distanciava muito da forma como a imagem do negro era
construída em outras obras literárias cearenses, também escritas no final do século XIX, por
membros dessa intelectualidade branca. Exemplo disso é a forma como o negro Romão foi
apresentado na obra A Normalista, de Adolfo Caminha (SILVA, 2017). Acreditamos que esse
apagamento do negro na literatura cearense ocultou um conjunto de interesses da elite letrada
da província.
Sobre a questão abolicionista, em Escravidão e Razão Nacional, José Murilo de
Carvalho destacou que, diferentemente dos abolicionismos europeu e norte-americano, para
os quais a abolição era fundamentada em argumentos de natureza filosófica e religiosa – já
que a escravidão violava o princípio da liberdade individual, garantido pelo direito natural e
pelo cristianismo –, na tradição luso-brasileira prevaleciam razões políticas. Esse estudioso
nos mostrou que, na tradição luso-brasileira, o movimento abolicionista não possuía raízes
profundas e só passou a ser conhecido nos últimos anos da escravidão. Durante a colonização,
enquanto que nos Estados Unidos, o cristianismo, em sua versão reformada, teve forte atuação
no combate à escravidão, na Colônia Portuguesa, o catolicismo ibérico atuava de forma
98
O tráfico e a escravidão impedem a formação nacional por três motivos: por serem
incompatíveis com a liberdade individual e, portanto, com o governo liberal; por
introduzirem um inimigo interno e porem a risco a segurança interna, como mostrou
a revolta de São Domingos; finalmente, por ameaçarem a segurança externa do País,
na medida em que inviabilizam a formação de um exército e de uma marinha
poderosos (CARVALHO, 1998, p. 49).
29
Exemplo disso foi a famosa greve que aconteceu no porto de Fortaleza em 1881, conhecida como “greve dos
jangadeiros”, os quais se recusaram a embarcar escravos, afetando diretamente o tráfico interprovincial.
100
sobre aquele movimento, de modo que esse ocorresse de forma ordeira, gradual e pacífica e
sem dar visibilidade ao protagonismo dos cativos.
Da mesma forma, a atuação de Rodolfo Teófilo na campanha abolicionista
ocorreu de forma pacífica. Conforme ressalta Lira Neto (1999, p. 114), Teófilo tivera uma
participação discreta, sem alarde, que consistia em comprar alforrias, através da arrecadação
de fundos ou com seus próprios recursos. Em razão da sua luta pela abolição da escravatura
no Ceará e pelos serviços prestados ao povo cearense, em 1884, Rodolfo Teófilo recebeu de
D. Pedro II a comenda de Oficialato da Rosa, concedida aos que se destacavam por prestar
serviços à humanidade. Nesse sentido, podemos deduzir que a sua atuação ocorreu da forma
mais ordeira e pacífica possível, sem questionar a estrutura social ou mesmo a ordem
imperial, de quem recebeu homenagem.
De acordo ainda com as leituras realizadas por Janote Marques (2013) sobre o
movimento abolicionista do Ceará, aqueles abolicionistas estavam mais preocupados com a
promoção do movimento libertador em si, do que mesmo resgatar os negros escravizados das
condições subumanas em que se encontravam. Para eles era necessário acabar com a forma de
trabalho escravo, responsável, em grande parte, pelo atraso da nação. Porém, não interessava
restituir a dignidade daquelas populações consideradas inferiores e nem lhes dar o direito de
gozar dos direitos plenos à cidadania. Todo aquele alvoroço da campanha abolicionista tinha
como principal propósito a glorificação da abolição e dos sujeitos esclarecidos que a
promoviam. Assim, a libertação dos cativos era colocada como um presente ou um ato de
caridade exercido pelos libertadores, enquanto os escravos eram relegados a uma condição de
passividade, carentes de liderança.
Nesse sentido, colocamos em pauta uma questão presente na escrita desse autor e
que foi problemática para uma boa parte da intelectualidade brasileira, que diz respeito à
confluência de diferentes ideias europeias na construção do pensamento nacional brasileiro, e
se refere à tensão entre o pensamento abolicionista de emancipação dos cativos e a
demarcação de limites ao exercício da cidadania para os negros libertos. Rodolfo Teófilo,
assim como outros intelectuais brasileiros adeptos às teorias raciais, se via na situação de
mediar concepções antípodas como o racismo científico e o liberalismo. Essas contradições
foram analisadas por Lilia Schwarcz:
Destacamos aqui que as ideias liberais e esse tipo de abolicionismo, realizado por
Rodolfo Teófilo e seus pares, se ligavam aos interesses de grupos letrados e que em nada
coincidiam com os interesses e necessidades dos grupos pobres e marginalizados, os quais
foram ainda mais excluídos e silenciados. Assim, as teorias raciais ganharam forte adesão
entre essa elite letrada, como argumento científico para manter as massas populares afastadas
das instituições de poder. “A teoria racista não exprimiu, portanto, apenas, interesses coloniais
e imperialistas, já que se articulava aos interesses de grupos nacionais identificados à
modernidade ocidental” (VENTURA, 1991, p. 59). É desse modo que liberalismo e racismo –
em essência, contraditórios – foram arranjados de modo singular e original para explicar a
situação da sociedade local. Essa explicação nos ajuda a compreender o fato de Rodolfo
Teófilo ter sido adepto às teorias raciais e defender a inferioridade da raça negra, ao mesmo
tempo em que atuava como um abolicionista.
102
e o banditismo. Para esse intelectual foram os estímulos do meio que fizeram despertar, no
cearense, características temperamentais e comportamentos pertencentes às raças que lhe
deram origem e que estavam em estado latente. Assim, a forma como as diferentes
personagens da literatura de Rodolfo Teófilo reagiu diante dessas situações revela a forte
presença da lei do atavismo em sua escrita. Essas e outras questões, relacionadas ao meio e à
raça, analisaremos ainda mais no próximo capítulo.
104
Sua primeira obra História da seca do Ceará (1877 a 1880), publicada em 1883,
trata-se de um estudo de cunho histórico sobre a seca de 1877-79 e foi escrita durante essa
estiagem e nos anos que a seguem. Foi a partir dessa obra que ele começou a construir uma
imagem de si para seus leitores: a de “cronista dos infortúnios do Ceará” (TEÓFILO, 1980).
Onze anos após o episódio dessa seca, ele publicou seu primeiro romance, A Fome, tomando
por base as informações colhidas em seu estudo histórico. Uma forma que esse literato
encontrou de reivindicar o status de veracidade para essa obra foi se proclamando como
testemunha ocular da seca. Isso porque ele vivenciou de perto os acontecimentos desse
fenômeno e esteve profundamente engajado com seus problemas.
Essa seca foi um dos acontecimentos mais marcantes na história da província
cearense no século XIX, ocorrendo depois de 32 anos de quadras invernosas e relativa riqueza
na província. Durval Albuquerque Junior (1988) destaca que foi a partir dessa estiagem que se
construiu a concepção da seca como um problema e a sua vinculação ao “Norte”.30 Ao
apresentar dados comparativos da seca de 1877-79 com outras anteriores, esse autor propôs
que tal seca não se diferenciava tanto em termos de intensidade, duração, extensão e nem
consequências negativas sociais e econômicas. Não são, portanto, as características do
fenômeno climático em si que transformaram essa estiagem em um marco histórico. “Ora, a
seca não existe enquanto puro fenômeno, mas como um fato histórico e social e por isso
possui imagens e significações que vão variar ao longo do tempo e conforme o contexto social
em que se insere” (ALBUQUERQUE JR, 1988, p. 2). Nesse sentido, ele propõe que tal
fenômeno se revelou como uma síntese de toda a desorganização das relações tradicionais
abaladas pelas mudanças em curso. Essas mudanças correspondem ao momento de crise
econômica, política e social, pelo qual estava passando a região no final do século XIX.
Em termos econômicos, a seca ocorreu quando uma crise de mercado atingia o
principal produto de exportação do Ceará, o algodão. Esse produto havia passado por uma
fase de esplendor na década de sessenta, denominada como o “boom do algodão”, fruto da
retirada do algodão norte-americano do mercado, por causa da Guerra de Secessão. No
entanto, com a recuperação desse concorrente, o algodão cearense sofreu um golpe em suas
vendas, e com ele toda a economia da Província. Isso porque a economia local havia se
incorporado ao mercado internacional, sujeitando-se, dessa forma, às suas alterações e crises
periódicas, o que não acontecia com tanta intensidade quando a economia local se
30
O Norte do país correspondia ao território que atualmente compreende o Norte e o Nordeste. O termo
Nordeste só vem surgir em 1919, para designar a parte do Norte sujeita às estiagens e que passou a fazer parte da
atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) (ALBUQUERQUE JR., 2011, p. 81).
106
31
Frederico de Castro Neves destaca que esse modelo de organização tradicional era baseado na relação
paternalista de “reciprocidade desigual”, na qual o sertanejo oferecia submissão e em troca recebia proteção do
proprietário rural. Esse sistema paternalista assegurava, através de frágeis suportes, a estabilidade da vida
sertaneja (NEVES, 2000, p. 44-47).
32
O Quebra Quilos foi um movimento de revolta das camadas populares contra a cobrança de impostos sobre o
consumo e contra a substituição do sistema de pesos e medidas por outro que não conheciam e que beneficiava
ao comerciante na negociação. Esse movimento destacou-se por seu caráter coletivo. Teve importante atuação
em algumas áreas do Norte, mas, não chegou a ter força no Ceará. Porém, é importante para se compreender de
forma panorâmica o que estava acontecendo naquela região.
107
espaço público da cidade, pelo poder público” (NEVES, 2000, p. 45-46). Se antes a fome
atemorizava apenas os sertanejos pobres, sendo desconhecida pelos ricos, ao atingir a elite
rural, num momento de muitas dificuldades, a seca fez com que alguns de seus membros
fossem jogados na miséria. Para representar essa situação, em A Fome, Rodolfo Teófilo narra
a saga de Manuel de Freitas, um fazendeiro abastado que perdeu tudo com a estiagem e saiu
em retirada com a família para a capital cearense, em busca de socorro. A chegada de um
avolumado número de retirantes na capital cearense despertou grande medo e preocupação na
elite urbana, pois atrelado ao préstito de famintos desassistidos surgiram vários problemas
urbanos como a mendicância, a criminalidade, a prostituição e as doenças. Desse modo, a
seca passou a ser um problema que afetava diretamente a população urbana.
Em síntese, a consciência da crise passou a ser tomada quando alguns membros da
elite rural foram atingidos pela miséria e quando os problemas ocasionados pela seca
atingiram a população urbana. Foi a partir dessa situação, tão alarmante nos meios abastados,
que os literatos a tomaram como tema principal para construção de seus romances. Sobre a
experiência vivenciada por esses homens letrados em relação a tal fenômeno, Durval
Albuquerque destaca que “quase sempre de famílias abastadas, estes autores se sentiam um
pouco responsável pela situação que vivenciavam e buscavam aliviar suas consciências ao
deixar que todo o drama da miséria nortista eclodisse nas páginas de seus livros”
(ALBUQUERQUE JR, 1988, p. 223). Esse fenômeno que nunca havia sido vivenciado por
muitos intelectuais daquele período, marcou decisivamente a produção escrita, e, mais
especificamente, a produção literária sobre o Ceará. Ele “definiu com grande intensidade o
pensamento social do período” (ALENCAR, 2002, p. 120) e serviu de referência para que
muitos intelectuais pudessem explicar a realidade local utilizando-se dos referenciais teóricos
em vigor.
Em relação à literatura, a temática da seca foi um elemento tão presente, em quase
todos os romances, que o Naturalismo é comumente relacionado à “literatura da seca”33:
33
A referência à “literatura da seca” se faz pela sua escrita particular voltada aos problemas desses momentos
específicos da estiagem que afligem o sertão nordestino. Constitui uma significativa parcela da ficção dita
regionalista nordestina. Começou sob a égide do Romantismo, mas foram nas fases do Realismo/Naturalismo e
Modernismo que ela ganhou maior expressão e um forte teor sociopolítico (LANDIM, 1992; SCOVILLE, 2011).
108
É dessa forma que a estiagem de 1877-79 veio marcar o início de um novo tipo de
produção literária sobre o Ceará, e, mais especificamente, sobre o universo sertanejo. Até
então, a literatura dedicava-se a “resgatar a experiência de conquista e colonização do
território cearense pelos portugueses, às lutas contra os índios que aqui habitavam”
(BARBOSA, 2000, p. 45). Essa literatura que produzia uma imagem bucólica e idílica do
sertão deu espaço às imagens trágicas e impactantes da seca.
A literatura da seca, por seus temas em si chocantes, mostrou-se em perfeita
consonância com as novas tendências literárias. De modo geral, o Naturalismo na literatura
das secas acabou mesmo enfatizando o aspecto aterrador do tema. Ao destacarmos a
abordagem específica da seca na literatura naturalista, não desconsideramos que essa temática
tenha recebido um tratamento pelo Romantismo. Entretanto, o que pode ser visto como uma
“literatura das secas” do Romantismo tivera uma configuração totalmente diferente. Até a
seca de 1877-79, essa temática era tratada pela literatura apenas de forma ilustrativa,
“interferindo pouco no desenvolvimento do enredo e na caracterização dos personagens”
(SCOVILLE, 2011, p. 109). A partir da abordagem naturalista, o próprio fenômeno da seca
passou a ter uma atuação preponderante na caracterização desses enredos e personagens. As
obras literárias de Rodolfo Teófilo sobre essa temática apresentam a seca como o fator
climático que, juntamente ao fator racial, foi determinante na constituição do modo de ser do
povo sertanejo e que o distinguiria dos demais povos.
Podemos afirmar que A Fome é a obra de Rodolfo Teófilo que ficou mais
conhecida e que o consagrou como cronista da seca, sendo uma das pioneiras na produção
naturalista sobre essa temática. Desde a sua primeira página, o narrador já apresenta aquele
momento específico em que a “grande seca” atingiu o sertão, “após trinta e um anos de
estações regulares”. E assim, narra a saga de Manuel de Freitas, um rico fazendeiro branco,
que travou uma luta ferrenha contra a estiagem, tentando salvar seu rebanho. Porém, esse
fazendeiro foi vencido e se viu obrigado a se juntar, com a família, ao préstito de retirantes
que migrava para a capital cearense, em busca de meios de sobrevivência. Essa trajetória foi
marcada por cenas sinistras de dissolução do meio que beiravam o irreal. Mas, no entanto, ele
conseguiu manter a integridade física e moral de sua família.
O segundo romance de Rodolfo Teófilo, Os Brilhantes, narra as aventuras de
Jesuíno Brilhante, um homem também branco e fazendeiro, que se tornou assassino por ser
109
portador de uma doença hereditária, a “nevrose do homicídio”. Por carregar essa patologia,
Jesuíno se mostrava um assassino frio e impiedoso com seus inimigos. Porém, a ocorrência da
seca de 1877, com toda a miséria a ela atrelada, veio suspender até mesmo os sintomas da
nevrose de Jesuíno e provocar uma trégua à sua vida de criminalidade. Nesse sentido, a seca,
em sua ação devastadora, foi capaz de ocasionar transformações até nos mais íntimos
sentimentos humanos, fazendo arrefecer o caráter sanguinário do espírito de Jesuíno e
imprimindo nele novos sentimentos como piedade, generosidade e beneficência aos famintos.
O último romance do “ciclo das secas” publicado por Rodolfo Teófilo, O
Paroara, diferentemente dos dois anteriores – que têm como protagonista um fazendeiro
branco – apresenta como personagem central um sertanejo pobre e mestiço, João das Neves,
que sofreu as perdas provocadas pela seca e pela migração. Quando ainda era criança, João
das Neves teve que passar pelo martírio da retirada, ocasionada pela seca de 1877-79.
Sobrevivendo à “Grande seca”, foi o único de sua família que conseguiu retornar à sua terra
natal. Ao chegar à maturidade, esse personagem se casou e tentou reconstruir sua vida no
lugar onde nasceu. Mas, em 1898, foi surpreendido por outra seca que devastou sua plantação.
Sem alternativas de sobrevivência, ele se viu tentado a buscar um meio de vida com a
extração de borrada nos seringais da Amazônia.
Além de interferir de forma incisiva no enredo dessas obras, a seca aparece como
um fator climático desagregador capaz de submeter os sujeitos às piores condições na luta
pela sobrevivência.
Nesse trecho da obra A Fome fica nítida a adoção do darwinismo social para
representar e hierarquizar os sertanejos atingidos pela seca, através das concepções de luta
pela sobrevivência e sobrevivência dos mais aptos. Segundo Maria Augusta Bolsanello, o
110
darwinismo social “considera que os seres humanos são por natureza, desiguais, ou seja,
dotados de diversas aptidões inatas, algumas superiores, outras inferiores. A sociedade
humana é uma luta ‘natural’ pela vida, portanto é normal que os mais aptos vençam”
(BOLSANELLO, 1996, p. 154). Inclusive, foi Herbert Spencer, o mentor do darwinismo
social, que criou a expressão “sobrevivência dos mais aptos”, a qual muitas vezes é atribuída a
Darwin, pois este também se utilizara dela um tempo depois.
Verifica-se nesse trecho uma incisiva descaracterização dos sujeitos sociais ali
representados, os quais foram destituídos de seus atributos individuais e passaram a ser vistos
como parte de uma massa, uma “multidão que se revolucionava”. E ao serem submetidos a
condições críticas que colocava em risco a sua existência biológica – nesse caso, a de carência
alimentar – esses indivíduos passaram a agir guiados apenas pelo “instinto de conservação”.
Ressaltamos que a própria atribuição do termo “instinto” traz consigo o peso da expressão, já
que remete aquilo que é inato e impulsionado naturalmente, ou seja, ao que está acima das
regras sociais e culturais. E mais do que isso, aqueles sujeitos foram assemelhados a porcos
esfomeados. Nesse sentido, o ser humano não foi destituído apenas de sua identidade, mas
também de sua condição humana.
A figuração da luta travada entre os retirantes pelos viveres revela não apenas a
adesão de Rodolfo Teófilo ao darwinismo social, mas também uma estrutura de sentimentos
que se construía na capital fortalezense sobre as vítimas da seca a partir de 1877 e que se
perpetuou no modo de compreender as atividades coletivas desses sujeitos. Frederico Neves,
ao analisar as imagens elaboradas pela elite letrada e urbana sobre essa multidão de retirantes
famintos, destaca que, geralmente, suas ações são apresentadas como espasmos biológicos ou
impulsos involuntários de preservação da vida, mas nunca como uma ação consciente ou um
ato de revolta a toda aquela situação (NEVES, 2000, p. 15-16). Nesse sentido, reforçam a
natureza subumana desses retirantes, associados ao que é bárbaro e contrário às modernas e
civilizadas formas de manifestações coletivas.
Se o darwinismo social define que os seres humanos são, por natureza, desiguais,
a teoria das raças (ou determinismo racial), que se desenvolveu no bojo do darwinismo social,
considera que essa desigualdade se manifesta através de uma hierarquia entre as raças, onde a
“raça branca” se impõe sobre as demais. Esse é o caso do fazendeiro Manuel de Freitas, figura
singular na obra de Rodolfo Teófilo, que se diferenciava daquela multidão ao observar
“compungido aquela luta pela existência” e que “lembrou-se ainda de pôr termo” a tal
conflito. Esse personagem revela-se como aquele indivíduo que a fome não foi capaz de
111
reduzir à condição de animal. A explicação para tal diferenciação está assentada em sua
origem social e racial:
Manuel de Freitas é o seu nome. Descendente de uma das mais antigas e importantes
famílias do alto sertão, herdara do pai modesta fortuna e influência eleitoral na
localidade. Sua educação havia sido completa para o tempo e estado do interior da
província. Sabia as primeiras letras e um pouco de latim, língua esta com que os
sertanejos ricos costumavam prendar os filhos. [...] Emancipado ainda em vida de
seu pai, fez criador como todos os seus ascendentes (TEÓFILO, 1979, p. 5).
O narrador deixa claro que Manuel de Freitas não era um retirante qualquer. Mas,
um rico fazendeiro, pertencente a uma das mais antigas e importantes famílias do alto sertão.
Na sua linhagem não se constata nem um ascendente pobre. Assim como ele, todos os seus
ascendentes eram criadores. Nesse sentido, cabe inferirmos que os donos de fazenda de criar
constituíam o grupo social com maior poder aquisitivo do sertão naquele período. Conforme
Ivone Barbosa (2000, p. 90), apresentar a linhagem da personagem é um dos recursos
utilizados por alguns romancistas para afirmar a nobreza da elite no sertão cearense. Nobreza
essa que se manifestava tanto pela posse de terras como pelo pertencimento à raça branca, tida
como responsável por trazer a civilização ao sertão.
Outro recurso utilizado pelo autor foi demonstrar que aquela personagem se
diferenciava, em meio a um contingente de analfabetos, pelo grau de instrução atingida.
Afinal, “sua educação havia sido completa para o tempo e estado do interior da província”. A
intelectualidade letrada, da qual Rodolfo Teófilo fazia parte, via as letras como uma forma de
emancipação do ser humano e acreditava que através delas era possível tornar civilizável o
sertão inculto e bárbaro. Assim como em Joaquim de Queiroz, protagonista de Maria Rita, em
Manuel de Freitas, o contato com as primeiras letras e um pouco de domínio sobre o latim o
tornavam portador de um espírito elevado, o que o distinguia do restante dos sertanejos de seu
convívio.
Para dar maior visibilidade ao problema da seca e à situação caótica por ela
gerada, Rodolfo Teófilo utilizou as mais grotescas cenas de degradação humana – patologias,
suicídio, assassinatos de membros da família, canibalismo e até autofagia. Na narrativa, todas
essas cenas são observadas pelo personagem central, a quem a fome extremada não atingia:
Freitas achava-se mal com sua caravana naquele meio. Indivíduos de todas as
castas se confundiam ali. Haviam perdido o senso íntimo e deixavam-se
dominar pelas necessidades de animalidade. Poucos eram os que não estavam
reduzidos a magreza extrema. No leito da estrada encontravam-se, a cada passo, os
ossos humanos, cuja pele seca e colada os conservava articulados. Freitas
112
diferentes alternativas de sobrevivência que não foram postas aos outros retirantes. Exemplo
disso é que, enquanto o fazendeiro demonstrava ter domínio na manipulação da mucunã –
uma raiz venenosa, muito consumida em períodos de escassez, que se não recebesse os
devidos preparos era capaz de matar por intoxicação –, os outros retirantes pareciam
desconhecer essa informação, embora pertencessem ao mesmo meio sertanejo, marcado pelas
constantes estiagens. A fome, que se manifestava nas formas extremas de desnutrição e
padecimento dos corpos degenerados, parecia não ter atingido a Manuel de Freitas. Esse foi
caracterizado como um sujeito distinto, capaz de resistir aos infortúnios da seca e apresentar
uma força que o tornava superior às adversidades que estava passando:
A fome com o cortejo de dores não pudera apagar os traços daquela carnação. A
musculatura estava reduzida, mesmo assim ninguém duvidava que os braços daquele
homem pudessem suster um touro pelos cornos. A caixa toráxica bastante larga e
bem conformada guardava os órgãos mais importantes da vida sãos e vigorosos.
Naquelas formas não havia um traço que não denotasse virilidade (TEÓFILO, 1979,
p. 4).
A essa descrição o autor não mais acrescentou características físicas tais como a
magreza extrema ou mesmo o aspecto de fera, tão comuns aos retirantes por ele
representados. Pelo contrário, apresenta a existência de uma força hercúlea que supera as
objeções do meio. Desse modo, o que pudemos constatar é a conformação de um
determinismo geográfico (atuação da seca) à teoria racial. Nessa obra, a seca aparece como
um condicionante climático capaz de despertar no sertanejo um tipo ideal forte e resistente
àquela natureza. Mas, como já ressaltamos, esses seriam selecionados naturalmente,
sobrevivendo apenas os mais aptos, ou seja, a raça branca, constituída por essas famílias de
fazendeiros ricos que haviam se tornado retirantes. Assim, Manuel de Freitas seria aquele
sertanejo capaz de se adaptar ao meio e vencê-lo. Através de sua resistência física e de seus
valores morais, ele conseguiu resguardar sua família de todo tipo de ameaça e
degenerescência. Apesar dos infortúnios da seca, sua filha Carolina conseguia manter a beleza
da raça selecionada:
Tinha quinze anos e o vigor das naturezas completamente sadias. O seu todo
denotava a saúde dos organismos desenvolvidos ao ar do campo. Havia em seu
corpo uma perfeita harmonia de formas, todas obedecendo às leis de uma rigorosa
estética. Tinha um ar nobre que se percebia logo à primeira vista. Os olhos grandes e
de um azul-celeste tinham a suavidade das almas puras e castíssimas, e davam uma
expressão de vontade à fisionomia expandida em um rosto do mais correto oval,
emoldurado por uma saneta de cabelos louros. O nariz era aquilino. A boca formada
por lábios rosados, conservava a castidade dos primeiros anos [...] (TEÓFILO, 1879,
p. 12).
114
Tal descrição revela mais do que a saúde de um corpo que não havia sido
modificado pela fome, evidencia também que “havia em seu corpo uma perfeita harmonia de
formas, todas obedecendo às leis de uma rigorosa estética”. A apropriação das teorias raciais
pelo pensamento social brasileiro, não apenas buscava uma explicação para a mestiçagem,
mas, também, exaltava os caracteres da raça branca. Padrões de diferenciação passaram a ser
utilizados na classificação racial, cujos critérios de análise se encontravam em características
fisionômicas como a cor da pele e do cabelo, formato do rosto, tamanho dos crânios, entre
outros. Desse modo, vejamos que o pertencimento de Carolina à raça branca evidenciava-se
pelas mesmas características físicas que o autor usou para construir a imagem de Maria Rita.
Tais características consistem no formato de seu rosto, no mais correto oval, o nariz aquilino,
os olhos grandes e azuis e o cabelo loiro. Além disso, um “ar nobre que se percebia logo à
primeira vista”. Assim, em meio à seca e todo o flagelo por ela ocasionado, nessa obra
destaca-se um organismo saudável, belo e nobre, que configura a idealização da mulher
branca.
Para além das características fisionômicas, atribuíram-se valores morais a esse
organismo. Carolina “conservava a castidade dos primeiros anos” e os seus olhos “tinham a
suavidade das almas puras e castíssimas”. A sua pureza e castidade – principais valores
atribuídos às moças de “boa família” do sertão nordestino – conservam-se intactas, mesmo
tendo que se juntar, com sua família, ao préstito de retirantes. A esses outros foi destinado um
tratamento completamente diferente. Essas personagens secundárias, no último estágio da
fome, perdiam o pudor e ficavam entregues a todo tipo de perversão moral que a
degenerescência proporcionava.
Freitas, por mais atenção que prestasse ao vulto, não lhe divulgava as formas e
muito menos as feições; não sabia que espécie de animal era. Parecia-lhe onça,
raposa ou cão de monturo. O fato é que o bicho ou farejava ou espreitava. O
fazendeiro apercebendo melhor o animal, se lembrou dos famintos. Um homem a
andar de gatinhas no último período da fome, a farejar migalhas, seria possível. (...)
Manuel de Freitas, temendo o pudor da filha, cuja virgindade moral se macularia
percebendo as formas de um homem todo nu, levantou-se e pôs-se à frente do
faminto. Aquela nudez obscena que o delírio famélico expunha sem rebuço, sem
consciência, mas também sem sensualidade; à vista de um esqueleto, mas de um
esqueleto com sexo o aterrava, porque iria violentar a castidade dos sentidos de
Carolina (TEÓFILO, 1979, p. 33-34).
O que Rodolfo Teófilo propôs, com todo o moralismo presente em seu primeiro
romance, é que a integridade física e moral de Carolina só foi preservada graças à proteção
115
paterna. Com uma enorme força física e moral, Manuel de Freitas conseguiu proteger a honra
e a pureza da filha de todas as ameaças apresentadas. Essas ameaças surgiram tanto na
trajetória de retirada, no perigoso contato com sujeitos degenerados, como é o caso citado
acima, como também durante a estadia da família na capital da província, através das
investidas de Simeão Arruda, um comissário de socorros públicos que se aproveitava de sua
condição para seduzir as jovens retirantes necessitadas de assistência.
Admirado com a beleza de Carolina, Simeão Arruda decidiu que iria seduzi-la
“custasse o que custasse”. Para isso contava com duas armas, primeiro o dinheiro e os favores
que iria prestar à família da vítima, para ganhar-lhes a gratidão e a simpatia. “Se esses meios
falhassem, lançaria mão de uma arma poderosa e terrível – a miséria. Haveria de rendê-los
pelo dinheiro ou pela fome” (TEÓFILO, 1979, p. 102). Os planos do comissário em render
Carolina por meio de agrados se veem frustrados desde a sua primeira tentativa. Ao presenteá-
la com um romance, Carolina se recusou prontamente em recebê-lo: “– Permita que peça o
favor de dá-lo a meu pai; nada leio sem que ele autorize” (TEÓFILO, 1979, p. 107). Essa fala
demonstra o peso que a autoridade paterna exercia, ou deveria exercer, na perspectiva
moralista, sobre as ações de uma jovem pertencente a uma exemplar família sertaneja, que
guardava os valores morais do sertão e da classe proprietária de terras.
Quanto à leitura do livro, a mesma não foi permitida pelo sertanejo por se tratar de
um “romance de época”, uma obra descrita como “realista, por certo, uma fotografia de
costumes e atos reprovados”. Uma leitura nada indicada para uma jovem que “conservava a
castidade dos primeiros anos” sendo, portanto, mais indicada para “espíritos cultos e
amadurecidos” (TEÓFILO, 1979, p. 113). Aqui se revela uma concepção excludente e
misógina sobre quem teria autorização moral à literatura do período. Essa cena também é
reveladora no sentido de mostrar a importância que o domínio das letras exercia na vida de
um homem distinto como Manuel de Freitas. O que a narrativa nos mostra é que esse domínio
o livrava de situações vexatórias e de ser manipulado ou ter a honra da sua família corrompida
pelos aproveitadores das misérias alheias.
Segundo José Olivenor, “a família camponesa, ao chegar à cidade, passa a viver
em um grande impasse, pois, deixando para trás os valores do campo, não consegue criar
espaços significativos em que pudesse praticá-los” (OLIVENOR, 2002, p. 56). Frederico
Neves (2002, p. 91-93) também pontua que a presença massiva desses retirantes pelas ruas de
Fortaleza, a reclamar por assistência pública, interferiu profundamente na estrutura de
sentimentos que delinearam a percepção da elite urbana sobre tal fenômeno. A desordem
provocada pela presença indesejada dessa multidão na capital passou a ser associada à
116
inteligente e tinha uma boa fisionomia. Assim, para Carolina, uma sertaneja branca e filha de
fazendeiro, o autor reservou o melhor destino que uma retirante poderia obter naquelas
condições, a preservação de sua castidade e um casamento abençoado pelo pai. Através dessa
personagem, pudemos constatar o ideal de beleza feminina que se expressa na literatura de
Rodolfo Teófilo. Esse ideal carrega a marca racial e a essa marca foram agregados vários
valores morais.
Observamos que essa raça branca do sertão nordestino no final do século XIX,
idealizada por Rodolfo Teófilo, ganhou um tratamento diferenciado dos colonizadores
portugueses apresentados em Maria Rita que, por sua vez, foram tratados como pessoas
desonestas, egoístas e interesseiras. Nesse ponto, podemos questionar quem seriam esses
sertanejos brancos se não, em grande parte, os descendentes dos colonizadores portugueses?
Ou mesmo, qual seria o fator, na perspectiva de Teófilo, responsável por provocar uma
modificação no caráter desses sujeitos? Diante da grande valorização que esse autor também
atribuía ao meio social, podemos deduzir, a respeito da sua perspectiva, que o convívio social
no sertão nordestino, longe da degeneração propiciada pela cidade, poderia ter sido um fator
importante para a formação de uma elite branca sertaneja, ancorada nos valores morais e na
ética sertaneja (a qual será discutida posteriormente).
Embora esse intelectual acreditasse que os caboclos constituíam a maior parte da
população cearense, em seu primeiro romance, esses mestiços não receberam um tratamento
tão pormenorizado quanto à raça branca. Assim, o restante das personagens, pobres e
mestiças, aparece apenas como uma massa amorfa, sem expressão individual e reduzida à
condição de animal. Diferentemente do que é apresentado em A Fome, a obra O Paroara
narra a trajetória de um mestiço pobre, o caboclo João das Neves. Em termos estilísticos, essa
obra é considerada pela crítica o mais bem elaborado romance de Rodolfo Teófilo. 34 Mesmo
abordando uma temática espinhosa, a sua escrita não fez apelo a cenas grotescas e de
animalização dos famintos das secas, diferentemente do que ocorreu em A Fome e Os
Brilhantes.
Na obra O Paroara, ao tratar do drama das secas e das migrações, seu autor
destacou o modo de ser do povo cearense e o modo como esse povo lidava com esses
fenômenos. Dessa forma, em sua perspectiva, sendo a maior parte do povo cearense formada
por caboclos (resultado da mistura do branco com o indígena), para sobreviver à escassez de
34
Charles Pinheiro entende que o aprimoramento estético dessa obra consiste no abandono dos termos e
descrições excessivamente cientificistas, para a escrita de uma narrativa com uma linguagem mais simples e
objetiva, tendendo mais para o que esse pesquisador chama de regionalismo (PINHEIRO, 2011).
118
enfatizou que a mucunã era um recurso alimentar altamente venenoso e abundante, para o
qual os retirantes famintos recorriam sem a menor prudência:
Freitas via a mucunã por um prisma diferente. Tinha certeza de ser muito venenosa
e, como tal, a maior assassina que o Ceará tem tido, durantes as secas; mas também
sabia que a ação tóxica podia ser modificada ou mesmo destruída, segundo o
processo empregado na extração da fécula. Preparada por mãos ignorantes, é sempre
um veneno e nunca um alimento. Convencido disso, dispõe-se a prepará-la com o
máximo de escrúpulos (TEÓFILO, 1979, p. 39).
Mais uma vez, Freitas representa a sobrevivência dos mais aptos e a vitória da
civilização trazida pela raça branca sobre a barbárie. Enquanto os outros sertanejos morriam
intoxicados por ignorarem o processo de extração da fécula, Freitas transformava aquela
planta venenosa em uma fonte de alimento. Destacamos também o interesse por parte do autor
em instruir sobre as devidas providências que deveriam ser tomadas em períodos de estiagem.
Nesse sentido, A Fome se apresentou como uma espécie de manual de sobrevivência para que
os sertanejos pudessem se precaver diante de um mal que afligia o sertão cearense, a fome
ocasionada pela seca. Isso revela a visão que Rodolfo Teófilo tinha sobre sua escrita,
enxergando-a em sua função prática.
De um modo geral, ao tratar sobre a seca, Rodolfo Teófilo estava mais
preocupado em mostrar como esse fator climático era capaz de interferir no modo como os
120
João das Neves crescera ouvindo relatar as migrações de seus antepassados. Criança
ainda, acompanhara o pai à Fortaleza na seca de 1877. O avô e o bisavô sabia que
também tinham feito parte do êxodo de famintos nos tempos de fome, que vêm de
anos em anos deslocar a população sertaneja. Contavam até que um de seus
ascendentes, em uma destas migrações, embarcara para a Amazônia e que vivia lá
muito rico e feliz, dono de grandes seringais (TEÓFILO, 1974, p. 100-101).
primeiras chuvas, depois dessa estiagem, juntou-se aos que retornavam à sua terra e passou a
trabalhar para um fazendeiro abastado. Já era homem feito quando resolveu tomar conta da
pequena propriedade de sua família e da casa que havia sido de seus avós. Mas, para isso, era
preciso primeiro arranjar um casamento, ter uma companheira saudável e bem disposta que
pudesse ajudá-lo na lida com o roçado. “A moça não sendo torta nem aleijada, tendo corpo
para o trabalho35 e de dote um ou dois bichinhos, era bom partido”, João das Neves entendia
que “a mulher do pobre devia ser como o quartau dele, forte e manteúda” (TEÓFILO, 1974,
p. 45-46). Assim, usando como critério a robustez física, ao invés da beleza, João das Neves
escolheu Chiquinha para ser sua companheira.
“Os noivos fortes e sadios em plena juventude, obedeciam ao seu temperamento
excitado pelo clima e sozinhos naquele casarão como o primeiro par no Éden gozaram à farta
todas as delicias do amor” (TEÓFILO, 1974, p. 66). Vejamos que essa citação revela uma
visão idílica sobre a vida no campo, mas também impregnada pelo determinismo climático. E
baseado nesse mesmo determinismo, o narrador afirmou que as mulheres cearenses eram mais
prolíferas36. Desse modo, Chiquinha, “prolífera como toda mulher cearense tinha um filho
todos os anos” (TEÓFILO, 1974, p. 67). Porém, a vida dessa família pobre não se encerrava a
uma visão bucólica sobre o sertão:
A família crescia anualmente e ela e o marido, cada qual mais trabalhador, não
conseguiam fazer economia, acumular reservas para o futuro.
A pequena lavoura lhes dava para viver sem grande abastança. Tinham quatro filhos
e duzentos passos de roçado, embora as plantas vingassem bem quase não chegava
para comer de um ano para outro. A fartura era só enquanto havia legume verde,
logo que se fazia a colheita ficavam à ração (TEÓFILO, 1974, p. 68).
Como podemos ver, para o sertanejo pobre que vivia da agricultura, mesmo em
períodos de regularidade climática e trabalhando em sua própria terra, a colheita não era
suficiente para viver bem o ano todo, e menos ainda que chegasse a fazer reservas para os
períodos de estiagem. Esse trecho se esbarra com a concepção, apresentada também nessa
obra, de que o cearense não se preparava para as secas porque era imprevidente. Pelo
contrário, “João das Neves não media sacrifícios para obter um fundo de reserva que o
35
Podemos compreender, a partir desse trecho, tanto sobre a necessidade que havia entre os sertanejos pobres, do
trabalho familiar para prover o alimento, através da agricultura de subsistência, como também a concepção
higienista que perpassa o pensamento do autor sobre o ideal de corpo saudável e propício ao trabalho. Desse
modo, coloca-se que o principal critério para escolha de uma noiva, por um sertanejo pobre, não seria a beleza,
mas as suas qualidades físicas, propícias ao trabalho e à reprodução.
36
Nesse ponto, atentamos para o fato de que, enquanto alguns teóricos europeus, como Paul Broca, defendiam
que a mistura entre diferentes raças produziria sujeitos estéreis, para Rodolfo Teófilo as mulheres cearenses, em
sua maioria cabocla, eram bastante férteis.
122
garantisse de um ano crítico”. A solução encontrada era abrir “uma lavra de quinhentos
passos”. “Se pegassem um ano bom estariam felizes” (TEÓFILO, 1974, p. 68). A partir dessa
frase tomamos consciência da vulnerabilidade em que vivia o pequeno agricultor do sertão
nordestino. Após o preparo do solo e o plantio, a vida de João das Neves é tomada por
momentos de angústias e expectativas em relação à plantação, a qual é dizimada, primeiro
pela peste de lagartas e, após o replantio, pela falta de chuvas. Quando a seca de 1898 foi
decretada, sem recursos materiais e sem crédito na praça, a alternativa de sobrevivência
apresentada aquele sertanejo foi a migração para a Amazônia.
Momento definitivo no romance foi quando o protagonista se dirigiu a um pagode
propiciado por um conterrâneo, José Simão, que havia se tornado paroara.37 Destacamos que,
ao descrever aquele samba, o autor deixou transparecer o seu olhar de superioridade, de
homem letrado e citadino, sobre aquele grupo de matutos: “Um cheiro picante de suor de
gente mal asseada, e mestiça, misturado à catinga de gordura rançosa e levemente
aromatizada de patchouly fundia-se num fartum nauseante, que enjoaria a qualquer criatura
mediamente educada” (TEÓFILO, 1974, p. 105).
Quanto ao retorno daquele paroara ao Ceará, o narrador afirmou que o único
negócio que o havia trazido ao torrão natal era agenciar seringueiros. Ao destacar a atuação
desse agenciador no convencimento de João das Neves, essa narrativa colocou em evidência a
construção de uma imagem sobre Amazônia que se espalhou pelo Ceará e que, sem dúvida,
influenciou na decisão de muitos cearenses. Tal imagem foi construída a partir da associação
da Amazônia ao Eldorado, um lugar abençoado por riquezas naturais, onde não era preciso
trabalhar para conseguir alimento. Difundiu-se também a ideia de fácil enriquecimento com o
negócio da borracha. Para Rodolfo Teófilo, essa era uma propaganda ilusória usada para
aliciar aqueles que fossem mais ingênuos ou ambiciosos. Utilizando-se da perspectiva do
narrador, o romance apresentou uma realidade vivenciada pelos paroaras na Amazônia que
era bem diferente daquela relatada por José Simão:
37
O termo paroara, que deu título à obra, refere-se ao cearense que deixava sua terra natal para trabalhar como
seringueiro na Amazônia e retornava posteriormente.
123
governo cearense, sem tomar medidas mais eficazes para o problema, ficava em um impasse.
Ao mesmo tempo em que percebia a necessidade de desafogar os equipamentos urbanos das
aglomerações de famintos que se avolumavam, também sofria pressão por parte dos
produtores locais para evitar que aquela mão de obra saísse da província (LACERDA, 2006,
p. 138). Ao expressar posicionamento contrário à migração, Rodolfo Teófilo teceu ferrenhas
críticas ao governo, por esse não conseguir criar medidas que fossem capazes de sanar os
problemas da seca e evitar a perda de um enorme contingente de mão de obra para outras
províncias. Para ele, parte da solução consistia na construção de reservatórios de água,
utilizando-se dessa mão de obra disponível. Através de seu romance, esse literato buscou
alertar as pessoas sobre o caráter enganoso da propaganda do “eldorado amazônico” e sobre
os perigos e sofrimentos que iriam enfrentar.
Através do personagem José Simão, o narrador deu visibilidade à decisiva atuação
que tiveram os agenciadores no processo de migração para a Amazônia, tanto na construção
do imaginário sobre o “eldorado amazônico”, como no financiamento das passagens.
Franciane Lacerda mostra que os migrantes poderiam adquirir as passagens por meios
próprios, mas as mesmas também poderiam ser financiadas pela União, pelo governo do
Ceará, ou pelos donos dos lugares para onde os migrantes pretendiam seguir, como é o caso
dos donos dos seringais que enviavam os agenciadores para fazer esse translado (LACERDA,
2006, p. 159). Na narrativa de Rodolfo Teófilo, isso sugere que o financiamento por
particulares submetia o migrante a uma situação de maior exploração, pois já chegavam
endividados em seus destinos. A denúncia à situação vivida pelos migrantes foi feita desde o
momento do embarque na capital cearense. O momento de partida, que já era muito difícil
devido à sua natureza, tornava-se ainda mais agravante pela forma como era feita. Em
embarcações superlotadas, os sertanejos pobres eram amontoados na proa do navio, onde não
tinham espaço nem para se deitar. Além desses inconvenientes, sofriam de fome e enjoo.
De acordo com Lacerda, ao chegar a Belém, os migrantes poderiam ser
encaminhados aos seringais e às colônias agrícolas ou permanecer na capital paraense e servir
como força de trabalho em obras e funções públicas. Mas, a imagem do sertanejo cearense
recluso nos seringais é a que se cristalizou como explicação clássica sobre sua presença na
região (LACERDA, 2006, p. 198). E é essa a única apresentada em O Paroara. Embora
tenham sido muitos os migrantes cearenses que foram viver na condição de colonos, essa
informação foi ocultada no romance. E a ideia que ele passa é que aquela região não era
cultivada: “pela variedade e quantidade dos gêneros importados via-se que aquela grande e
ubérrima região não era cultivada” (TEÓFILO, 1974, p. 144). Com esse relato, o narrador
125
contrariou a propaganda feita por José Simão aos cearenses, de que naquelas terras se
produzia o ano todo. Também negou a informação de que dava para viver bem sem trabalhar,
só com os recursos da terra. Ao conhecer a fauna e flora da Amazônia, João das Neves
percebeu que tudo ali era diferente. “O que era da terra, era selvagem como ela” (TEÓFILO,
1974, p. 175).
Segundo o relato da obra, ao invés de uma vida próspera como fora prometida por
José Simão, os paroaras se depararam com uma enorme dívida contraída desde que saíram do
Ceará, a qual não conseguiriam liquidar, pois tudo era vendido a preços exorbitantes. Do
barracão (centro administrativo do seringal), eles foram encaminhados para o interior da
floresta, onde viveriam isolados, correndo vários riscos, como ser atacados por tribos
selvagens ou contrair várias doenças, como o paludismo. Tudo o que recebiam eram os
instrumentos de trabalho, espingardas para se defenderem e os viveres, compostos apenas por
charque, feijão, café, farinha, açúcar e sal. Para mostrar como era a vida nos seringais, o
narrador apresenta de forma dramática a história de Joaquim dos Cocos, um cearense que já
vivia há dezoito anos naquela situação:
Se ele fosse um homem de bem, os seus súditos viveriam felizes, mas era mau por
índole. Os sofrimentos em mais de trinta anos naquelas regiões pestilentas,
empenhado sempre numa luta de morte com o índio traiçoeiro e com a não menos
traiçoeira endemia palustre, acabaram de empederni-lo de todo. Sem cultura de
ordem alguma, completamente analfabeto e bastante rico para o lugar, entregava-
se cegamente a sua vaidade de mandão. A vida em família, a ligação com uma
mulher boa teria modificado muito os seus instintos perversos e refreado as
suas más paixões.
Muito custoso seria encontrar naquela população verminada de vícios uma
companheira que fosse indigna de seus dotes morais (TEÓFILO, 1974, p. 145. Grifo
nosso).
Bernardo das Ipueiras foi apresentado como um homem “mau por índole”, assim,
a perversidade já era algo intrínseco ao seu temperamento, mas o convívio em um ambiente
degenerado o teria tornado ainda pior. O narrador enfatiza que ele era um homem sem cultura
alguma. Aqui, cultura foi tratada como sinônimo de instrução, e a ausência da mesma foi vista
como um fator capaz de tornar o indivíduo ainda mais degenerado. Pois, para o autor, a
educação seria um dos principais elementos capazes de contornar o temperamento do
indivíduo. Verifica-se também algo muito comum naquele período, e que ainda persiste na
cultura machista, que é atribuir à figura feminina o papel de refrear os maus hábitos
masculinos. Desse modo, Bernardo das Ipueiras não tivera a sua índole modificada porque o
ambiente em que vivia há mais de trinta anos era degenerado e convivendo com uma
“população verminada de vícios” era impossível encontrar uma esposa virtuosa.
Um dos fatores apontados como responsáveis pela degeneração social daquele
ambiente seria a mistura entre diferentes povos. A sociedade que se formara em torno do
127
Embora não cite a palavra miscigenação, esse trecho trata, em termos mais
literários, do “amálgama de elementos heterogêneos”. A partir dessa perspectiva,
compreende-se que aquela sociedade viciada era resultante da mistura de povos de diferentes
nações. Vale ressaltar que, no século XIX, a concepção de raça muitas vezes ainda se
confundia a concepção de povo ou nação. E, apesar de Vasconcelos ser considerado um
homem dotado de valores, para sobreviver em um meio tão degenerado, só lhe restaria se
adaptar ao mesmo: “Ficaria chafurdado naquela vérmina moral esperando que se operasse
nele o contágio e se cumprisse a lei fatal da adaptação ao meio” (TEÓFILO, 1974, p. 143).
Como visto anteriormente, ao apresentar a trajetória de sofrimentos vividos na
Amazônia por Joaquim dos Cocos, essa narrativa mostrou que, além de ser submetido a
péssimas condições trabalho, esse cearense ainda presenciou a morte dos filhos e dos
companheiros por febre e o rapto à força de sua esposa por um boliviano. Segundo o relato,
essa talvez tenha sido a situação mais constrangedora para aquele sujeito, pois o mesmo
estava impedido de vingar a sua desonra ou mesmo de fugir. Tal situação nos faz refletir sobre
o que o autor considerava como valores sertanejos, e como esses foram infringidos em outro
meio diferente do sertão nordestino. A honra sertaneja é um dos elementos frequentes nos
romances de Rodolfo Teófilo e aparece como um fator caracterizador de um povo. De acordo
com esses ideais de honra, numa perspectiva extremamente patriarcal, a sexualidade feminina
deveria ser preservada. Caso ela fosse desrespeitada, caberia ao seu protetor vingá-la, fosse
ele o pai ou o marido da vítima. Quando uma desonra não era vingada, a vergonha caía sobre
o homem encarregado de protegê-la e, como afirmou Gustavo Barroso (1917, p. 59), “no
sertão, quem não se vinga está moralmente morto”. Essa frase nos dá dimensão do tamanho
da humilhação sofrida por aquele sujeito que foi “obrigado a ser testemunha das poucas
vergonhas da mulher sem poder vingar ou fugir para evitar a presença daquele escândalo”.
128
Nesse sentido, a Amazônia foi apresentada como um cenário de desagregação dos valores
sertanejos e de degenerescência social.
As descrições sobre a Amazônia foram feitas de forma a ressaltar as diferenças em
relação ao cenário cearense, de modo que a visão sobre a primeira causasse estranhamento e
até horror aos leitores. A apresentação daquela natureza perpassava pelo universo do exotismo
e do fantasioso. Os nativos foram descritos como sujeitos incivilizáveis e uma ameaça à
integridade física dos migrantes. Até a chuva era assustadora para os paroaras: “Acostumados
com as trovoadas mansas de sua terra, com os invernos que começam sem destempero,
estranhavam aqueles exageros da natureza. Tudo ali era descomunal! Para nutrir árvores tão
colossais só chuvas diluvianas” (TEÓFILO, 1974, p. 195).
Bruno Damasceno destaca que “Teófilo, herdeiro da tradição romântica e adepto
do determinismo biológico, compôs uma visão da natureza poderosa, capaz de moldar e
transformar os comportamentos” (DAMASCENO, 2018, p. 7). Na perspectiva do literato, a
vida do cearense era uma constante luta contra a natureza. No Ceará, o sertanejo sofria com os
danos causados pela falta de chuva, na Amazônia ele vivia em iminente perigo, provocado
pelos animais selvagens, os indígenas e as doenças. De um modo geral, os relatos
apresentados em O Paroara sobre a vida na Amazônia concorrem para a comprovação de que
os migrantes cearenses, por mais corajosos que se mostrassem, saíam vencidos por aquele
meio hostil e degenerado. O narrador afirma que esses paroaras, por mais “que quisessem
reagir, ser fortes, não podiam. O meio e sobretudo as pavorosas histórias de Joaquim dos
Cocos lhes haviam amedrontado tanto o espírito, que lhes era impossível qualquer ato de
coragem, de energia” (TEÓFILO, 1974, p. 166). Damasceno compreende que Rodolfo
Teófilo, numa visão moralista, através dessa obra, tem por objetivo “confirmar sua tese de que
por quaisquer motivos que existissem para a evasão, permanecer no Ceará, fosse no aspecto
material, fosse no aspecto das afetividades, era a melhor alternativa” (DAMASCENO, 2018,
p. 98).
Esse pesquisador ainda destaca que o posicionamento de tomar a tutela dos mais
pobres e despossuídos, por parte da elite intelectual, faz parte de um projeto maior de
129
disciplinamento dos corpos ancorado nas teorias científicas (DAMASCENO, 2018, p. 49-50).
Rodolfo Teófilo, assim como boa parte da intelectualidade daquele período, considerava que a
mestiçagem era um problema a ser superados e que a grande população pobre e mestiça, sem
capacidade moral e intelectual de tomar decisões coerentes, deveria ter seus destinos guiados
pelas luzes da ciência, da educação e do progresso. Nesse sentido, os sertanejos que optavam
pela migração não possuíam consciência dos seus danos físicos, morais e econômicos, por
isso deveriam ser educados e informados sobre os problemas que a envolviam. Para realçar
esse pensamento, a obra procurou mostrar os motivos que levavam aqueles sujeitos a decidir
pela migração.
Ao compartilhar o olhar disciplinador e higienista, tão presente entre a elite
letrada do final do século XIX, Rodolfo Teófilo construiu duas imagens sobre os sujeitos que
migravam. Em uma dessas imagens os migrantes foram apresentados como vítimas das
condições climáticas e na outra como aventureiros ambiciosos que largavam suas terras e
famílias para tentar enriquecer em um lugar hostil: “Assim ia até Manaus onde lhe diziam
haver lugar para todos. Uma cidade de aventureiros para onde se encaminham os que se viam
sem pão e os ambiciosos” (TEÓFILO, 1974, p. 126). Por meio desse discurso moralizador, o
narrador propôs que os ambiciosos eram aqueles que se deslumbravam com as promessas de
fortuna fácil. Estes eram acometidos pela “febre de migrar”, uma das “endemias do Ceará”
(TEÓFILO, 1974, p. 131). Tais termos passam a impressão de que a migração era algo que
estava fora do controle dos sujeitos envolvidos e também fazem referência ao campo da
patologia, algo muito presente na escrita desse autor.
Nessa perspectiva, a “febre de migrar” para a Amazônia era tão avassaladora que
atingia os diferentes grupos sociais, até mesmo os homens cultos, os quais faziam de suas
profissões um meio de enriquecer, o que é visto pelo narrador como um grande absurdo:
“Pasmava ver em tão inóspitas e esquisitas paragens homens de uma certa cultura. A
necessidade ou a ambição os arrastara até ali. Todos os ramos de conhecimentos humanos
estavam mais ou menos representados [...]” (TEÓFILO, 1974, p. 174). Entre os diferentes
mercenários, que se arriscavam aos vários perigos (doenças, ataques de índios e animais
selvagens etc.), estavam mascates, homeopatas, médicos, dentistas, rábulas e engenheiros,
entre outros. Todos interessados em beneficiar-se da exploração dos seringueiros. Até mesmo
o padre, representado por Bibiano, “não andava por aquelas brenhas por amor de Deus e do
próximo. Era um mercador como os outros. Como os demais aventureiros expunha a vida
atravessando aqueles ermos em risco de ser flechado por um índio ou comido por uma fera”
(TEÓFILO, 1974, p. 174). Em convívio com os aventureiros e mercenários e sendo
130
explorados por esses, também são representados os seringueiros cearenses, que em grande
parte foram parar ali, não em busca de aventuras e rápido enriquecimento, mas expatriados
pela seca, em busca de sobrevivência. Esse é o caso de João das Neves, assim como
Vasconcelos:
Não era a febre de emigrar, esta endemia do Ceará, que o havia atacado, mas a
necessidade imperiosa de sair para não morrer de fome. O navio que o conduzia ia
cheio de aventureiros que seguiam caminho do eldorado, mas também levava
vítimas, com ele, que a miséria expatriava (TEÓFILO, 1974, p. 131).
Os casados estavam todos nas mesmas condições de Neves, com igual fortuna e os
encargos da família; nem pensavam na miséria que em sua ausência lhe entraria em
casa.
Os solteiros, muitos deles de casamento justo, pensavam na viagem com muita
satisfação, com grande desamor à terra e às noivas, que ficavam.
Na loucura de emigrar, de chegar depressa ao eldorado, de enriquecer sem trabalho,
seguiam completamente indiferentes a todas as belezas do torrão do berço, a todos
os afetos d’alma (TEÓFILO, 1974, p. 111).
Ao tratar os paroaras como sujeitos sem amor à família e à terra natal, esse trecho
concorre para uma desumanização daqueles indivíduos, como se houvesse um desejo cego de
migrar e como se esse desejo aniquilasse suas afetividades. Lembramos que a migração é um
processo social complexo e que é movido por diversos interesses e propósitos. E pelo fato
envolver pessoas, esse processo está repleto de sentimentos e sensibilidades, tanto para os que
partem, como para os que ficam. Sem considerar outros fatores, Rodolfo Teófilo reduziu um
diversificado grupo social a duas categorias: os aventureiros ambiciosos e os famintos
expulsos pela seca. Ao juntar o componente climático e determinista à propaganda realizada
pelo paroara sobre o eldorado amazônico, estava justificada, para esse intelectual, a motivação
para aqueles sertanejos abandonarem suas terras e famílias.
De um modo geral, podemos inferir que o romance de Rodolfo Teófilo contribuiu
para a construção de uma imagem que se cristalizou, até mesmo na historiografia, sobre os
131
motivos que ocasionavam a migração dos cearenses para a Amazônia. Tal perspectiva coloca
os migrantes cearenses numa situação de passividade, como se eles fossem apenas vítimas do
fatalismo e das forças deterministas, enxotados pela seca ou ludibriados pela imagem de um
eldorado amazônico. Sem negar a importância da seca ou da demanda dos seringais para o
processo de migrações, é preciso considerar que as questões que envolvem esse fenômeno
social são bem mais complexas. Algumas pesquisas mais recentes, ao sair desse lugar comum,
têm apresentado outras dimensões do processo (BARBOZA, 2015; CARDOSO, 2014;
LACERDA, 2006). Essas pesquisas nos levam a perceber as diferentes faces da migração e
que foram múltiplas as experiências compartilhadas por aqueles sujeitos sociais. Uma dessas
faces são as redes de solidariedade e informações compartilhadas por parentes e conhecidos,
que fizeram com que muitos migrantes escolhessem aquele trajeto e não outro. Novas análises
têm retirado esses sujeitos da condição de passividade, colocando-os também como
protagonistas de suas próprias vidas. “Entende-se que os migrantes não tiveram que cumprir
uma sina predestinada por fatores externos a sua vontade, e nem seus caminhos foram feitos
ao acaso, sem nenhuma reflexão sobre as possibilidades da travessia” (CARDOSO, 2014, p.
40).
Ao longo do romance percebemos um conjunto de caracterizações atribuídas aos
paroaras, que os definem como miseráveis, ignorantes, imprevidentes, fúteis e egoístas, como
se os mesmos possuíssem um temperamento específico. E tal temperamento estaria ancorado
ao pertencimento racial daqueles sujeitos, em sua maioria caboclos. Assim, para explicar
aquela onda migratória e a falta de amor à terra natal, que fazia com que tantos cearenses
migrassem para a Amazônia, sem pensar em suas consequências, o autor atribuiu ao que ele
chamou de “nomadismo da raça vermelha”:
Sujeito às contingências da vida, como povo algum do mundo, o cearense não pode
contar com o dia de amanhã; e raro é o solar que tem habitado a mesma família em
algumas gerações. O nomadismo da raça vermelha, transmitido por ativismo à
população mestiça, a qual constitui talvez quatro quintos dos habitantes do Ceará, é
o fator principal do despovoamento da terra cearense. Este instinto de
vagabundagem inato no mestiço é alimentado por causas secundárias, entre as
quais as secas e as irregularidades das estações ocupam o primeiro lugar (TEÓFILO,
1974, p. 100. Grifo nosso).
As qualidades afetivas que o faziam entristecer perante as ruínas dos lugares onde
passara a infância eram completamente desconhecidas na raça vermelha da qual ele
quase exclusivamente descendia. Um caboclo com tão apurada sensibilidade
moral, com nervos para sentir uma saudade, para chorar a separação de um amigo,
seria um salto da natureza, que jamais viola as suas leis. Quem com alguns
conhecimentos de antropologia observasse detidamente o tipo de João das Neves
havia de descobrir nele, embora meio apagadas, vestígios de uma outra raça que não
era a que predominava em suas formas e feições. A adolescência em plena
maturidade havia completado o desenvolvimento de sua carnação em todo vigor de
vida e de saúde. A musculatura de seus ascendentes índios salientava-se na pujança
de todas as suas linhas.
A natureza havia sido grandemente pródiga e tão pródiga que não esquecera de
dar a sua criação além de todas as qualidades hereditárias algumas atávicas,
físico-psíquicas. Assim, naquele caboclo entroncado, havia alguns traços que não
eram do indígena brasileiro, era da raça branca. O seu todo era de índio; mas
descendo-se a um exame apurado, aos detalhes, via-se que a cor-de-cobre de sua
pele era um pouco mais desmaiada do que a do caboclo verdadeiro; os seus olhos
mais rasgados, menos oblíquos e com o íris de um castanho quase negro; os cabelos,
embora de um preto intenso, corridos, não eram tão duros como os tapuia e no rosto
havia barba, falhada é verdade, mas ocupando todo o sítio peloso das faces.
O elemento branco se denunciava nestes pequenos detalhes, porém mais se
acentuava na forma e tamanho das mãos e na desigualdade dos dedos.
A estas manifestações da raça branca comprovado a lei do atavismo, se juntavam
outras psíquicas de não menos valor: João das Neves tinha alma afetiva, era capaz de
amar.
Tinha outros nervos que não tem o selvagem, que ama os pais somente enquanto
precisam deles.
Este modo de sentir da raça vermelha, perfeitamente animal, a sua psicologia
fazem com grande eloqüência e verdade estes dois versos populares:
Pai e mãe é muito bom,
Barriga cheia é melhor (TEÓFILO, 1974, p. 27-28. Grifo nosso).
133
João das Neves ficara derribado num acesso de maleitas, num apavorante abandono,
naquela vivenda solitária, em companhia dos fantasmas que o remorso criava para
castigá-lo. O paludismo foi o único provento que tirara do Amazonas e que o
flagelaria o resto da vida, de parceria com a pungente mágoa que nele havia
produzido as últimas palavras da esposa, grande mártir do amor e do dever. Nunca
mais deixaria de ouvir estas inolvidáveis e terríveis palavras – morreram todos de
fome (TEÓFILO, 1974, p. 236. Grifo do autor).
Sob um viés moralista, Rodolfo Teófilo caracterizou Chiquinha como uma grande
mártir do amor e do dever que, durante a ausência do esposo, resistiu às investidas de outro
135
homem e, mesmo definhando com os sintomas da fome e da tuberculose, lutou até fim para
conseguir algum alimento para os filhos. “Nunca a miséria fez Chiquinha abrir a porta de sua
alcova ao pertinaz sedutor. Já muito tísica, quase desprezível múmia, a se desmanchar em pus
e a curtir febre todas as tardes, andava como uma alma penada pela floresta procurando com
que alimentar os filhos” (TEÓFILO, 1974, p. 237). Pelo mesmo viés moralista, o autor
reservou um desfecho de dor e remorso para João das Neves, como forma de punição pelo ato
imprudente de ter migrado e abandonado a família. Aliado a esse viés moralista e de
denúncia, o desenlace desse romance, totalmente diferente daquele apresentado na obra A
Fome, foi a comprovação de que as adversidades do meio levavam à sobrevivência apenas
dos mais aptos – ou seja, a raça branca.
Já tendo dito anteriormente que a seca foi a principal temática abordada por
Rodolfo Teófilo, e que o seu segundo romance, Os Brilhantes (1895), se insere na produção
categorizada como o primeiro “ciclo da seca”, ressaltamos que essa obra se dedicou a falar
sobre o banditismo rural, um dos temas que aparecem relacionados a essa “literatura da seca”.
Esse romance é um pretenso “estudo de psicologia” de um bandido, o protagonista Jesuíno
Brilhante, e faz referência àquele que é considerado um dos mais famosos bandidos do século
XIX, Jesuíno Alves de Mello Calado, nascido em 1844, no Patu, Rio Grande do Norte.
Embora Rodolfo Teófilo faça alusão à atuação desses bandos em outras obras, como A Fome
e Historia da seca do Ceará (1877 a 1880), foi em Os Brilhantes que ele se dedicou,
prioritariamente, ao tema. Por percebemos que o autor estabeleceu uma estreita relação entre
as causas desse fenômeno e as teorias deterministas, instigou-nos discutir como se deu essa
relação e como foram inseridos outros elementos nela.
Ainda que o banditismo não tenha sido uma experiência exclusiva do sertão
nordestino, aquilo que Pernambucano de Mello (2011, p. 104) chamou de “banditismo rural”
apresentava nuanças bem específicas e afincadas na cultura da valentia e da honra sertaneja
do Nordeste pecuário. O panorama de insegurança e instabilidade política, que marcou a
conquista do sertão e a instalação da atividade pecuária nessa região, se estendeu ao longo da
colonização e contribuiu para a efetivação de uma cultura de violência e o fortalecimento do
banditismo no século XIX, que posteriormente passou a ser chamado de cangaço:
136
perfeitamente aceitável, e até exaltada, dentro daquela cultura, criando assim um escudo que o
isentava da culpabilidade sobre suas ações. Esse papel desempenhado pela vingança acabou
ganhando uma grande dimensão na explicação como principal fator para a inserção no
banditismo rural. E essa tendência ocorre “praticamente na totalidade de nossa literatura de
ficção sobre o tema” (MELLO, 2011, p. 20). Entendemos que foi através desse “escudo ético”
que a imagem de Jesuíno Brilhante se consagrou como representante do código de honra
sertaneja.
Para apresentar a personagem principal da obra e inseri-la na vida criminosa, o
narrador inicialmente fez uma longa descrição sobre o meio onde aquele modo de viver seria
encenado. Sendo esse um recurso comum em muitos romances de tese, ele pode ser utilizado
para diferentes fins, que tanto pode ser devido ao caráter descritivo e científico desse tipo de
produção, como também pode ser um recurso utilizado para antecipar e expor as condições
que foram determinantes para que as cenas posteriores se desenrolassem de uma determinada
forma e não de outra. Desse modo, o determinismo aparece influenciando não apenas o
conteúdo, mas também a forma de se construir um romance naturalista.
Dito isto, ressaltamos que, antes de Jesuíno se tornar criminoso, o narrador
apresenta o modo de vida tranquilo que ele levava com sua esposa, na lida de fazendeiro,
cuidando de suas terras e rebanhos. Viviam assim, tranquilos, sem ódios e nem aspirações,
quando um acontecimento veio desestruturar aquele modo de vida – o assassinato, em sua
presença, de seu primo Francisco Botelho por Francisco Calangro. De imediato, Jesuíno pôde
conhecer o assassino, mas não teve coragem de persegui-lo, pois ficou extasiado diante de
tamanha brutalidade. Foi nesse momento que, ao tratar da família de Jesuíno, o narrador fez
referência a algo considerado comum no sertão nordestino, as rixas entre as famílias e o
grande número de mortes que isso resultava devido à cultura da vingança: “a sua família,
como tôdas as famílias sertanejas, não deixava de ter suas rixas, intrigas motivadas em sua
maioria pela política” (TEÓFILO, 1972, p. 75). No entanto, mesmo com esse meio social
propício ao crime, Jesuíno, até então se mantinha distante dessas questões “porque o seu
gênio, como ele dizia, não dava para brigar. Assim era e continuaria a ser, se um estranho
acidente não viesse acordar inclinações latentes” (TEÓFILO, 1972, p. 76).
De acordo com o código de honra sertaneja, era dever de Jesuíno vingar a morte
do primo, pois sendo ele o parente próximo que presenciara o assassinato, era também seu o
dever moral de vingar aquela morte. Mesmo assim, a pedido de seu pai, Jesuíno ainda
conseguiu passar três meses sem tentar nenhum tipo de vingança. Porém, essa vingança foi
colocada pela narrativa como algo inevitável, após o protagonista receber um insulto do
138
assassino, Francisco Calangro: “– Faz hoje um ano que morreu teu primo, e sua morte não foi
vingada. Os calangros são cabras, mas cumprem o que dizem e morrem, não correm como os
teus irmãos fizeram na noite de festa no Catolé!” (TEÓFILO, 1972, p. 91). Ao afirmar que os
calangros são cabras, esse assassino ressaltava a condição de mestiçagem de sua família.
Mesmo pertencendo a uma condição racial inferior, Francisco Calangro recorreu ao princípio
básico da honra sertaneja, segundo a qual um homem nunca deve descumprir o que fala e nem
se amedrontar diante de um insulto. Além desse insulto, o Brilhante foi outra uma vez
ferozmente ofendido pelo irmão de Francisco. No meio do rebuliço do dia de “ano-bom”,
Honorato Calangro, após perceber a presença de Jesuíno na vila sertaneja, ficou esperando a
oportunidade para lhe proferir todo tipo de provocação: “já havia infligido ao Brilhante toda
casta de aviltamentos” e por fim levantou “o chicote para descarregar nas faces do inimigo”
(TEÓFILO, 1972, p. 102-103). Jesuíno não pôde suportar tamanha afronta, pois nada seria
mais ofensivo para um sertanejo, segundo esse código de honra, do que ter o rosto maculado.
E, assim, ele se tornou assassino, reascendendo a rixa e a matança entre as duas famílias e
fazendo cumprir aquilo que essa narrativa colocou como já determinado desde o seu início.
Após iniciarmos essa discussão sobre a relação que se estabeleceu, no romance de
Rodolfo Teófilo, entre a vida criminosa de Jesuíno e o dever de vingança, destacamos
também que esse autor atribuiu uma explicação baseada no determinismo genético para tal
acontecimento. Segundo essa narrativa, um fator crucial e determinante para Jesuíno se tornar
um criminoso foi o desencadeamento da “nevrose do homicídio”, após presenciar o
assassinato de seu primo Botelho.
A nevrose do homicídio foi apresentada como uma doença hereditária que Jesuíno
havia herdado, por atavismo, de seu tio materno, Cazuza. Nesse sentido, a atuação daquele
meio social violento apareceu como um fator indissociável ao hereditário e fundamental para
que a nevrose se manifestasse e Jesuíno se tornasse um criminoso. A partir dessa explicação,
o crime foi colocado como um fator patológico, determinado geneticamente. E aqui, mais
uma vez, se sobressai um elemento muito forte na literatura naturalista de Rodolfo Teófilo,
139
que era essa tendência biologizante de atribuir explicações patológicas aos diferentes
fenômenos. É nesse contexto que ressaltamos a forte influência da escola positivista de
criminologia, fundada no pensamento do italiano Césare Lombroso, que via o crime na
perspectiva patológica. De certo modo, acreditava-se que seria possível reconhecer e deter o
criminoso, numa perspectiva organicista semelhante ao infectologista que busca defender o
corpo saudável da atuação de um vírus. Assim, o principal objeto de estudo não era o crime
em si, mas o criminoso.
É possível perceber no segundo romance de Rodolfo Teófilo como essas
concepções estavam presentes na construção de seu personagem principal. Como a narrativa
mostra, a nevrose do homicídio causava reações físicas e psíquicas em Jesuíno que o
diferenciava dos criminosos comuns. Ao presenciar o assassinato, Jesuíno sofreu uma crise
que lhe provocou alterações na fisionomia e que foi facilmente identificada por seu pai, o
velho Soares, que também havia presenciado as transformações ocorridas com seu cunhado
Cazuzinha:
O narrador deixa claro que essa era uma doença facilmente detectável através das
expressões faciais do indivíduo. Além da fisionomia de ferocidade e dos espasmos que lhe
transformavam o rosto, numa visão organicista, ele apontou que tal patologia havia
desenvolvido “naquele organismo uma desordem profunda” (TEÓFILO, 1972, p. 86). As
manifestações da nevrose também provocaram em Jesuíno um forte desequilíbrio psíquico e
grande abatimento do espírito. O nevropata sentia-se devorado por um desejo insaciável de
vingança, até que esse fosse consumado. Durante a realização do crime, esse sujeito enfermo
era tomado por um acesso de loucura, fazendo-o perder a consciência dos seus atos. E ao
retornar sua consciência, momentos depois do crime, também não sentia qualquer sentimento
de arrependimento ou remorso. Pelo contrário, para Jesuíno era um deleite observar os corpos
140
Para o narrador, toda essa crueldade com que Jesuíno assassinava seus inimigos se
explicava pelo fato de ele ser portador de uma doença. No entanto, a construção desse
personagem não se limitava à sua condição de nevropata. Apesar de se mostrar um assassino
altamente violento e impetuoso com aqueles que lhe fizeram algum mal, Jesuíno também era
capaz de ter sentimentos elevados e sentir piedade. Isso foi demonstrado na cena que seguiu
ao assassinato de Francisco Calangro. Ao observar a tristeza do bando de seu inimigo, Jesuíno
se condoeu com o sofrimento daqueles rapazes: “Jesuíno viu-os chorar e se doeu deles. [...] O
coração do Brilhante nutria certos sentimentos de piedade, que faziam um contraste perfeito
com a crueza que ostentava nos momentos de vingança” (TEÓFILO, 1972, p. 168-169).
Nesse trecho o narrador deixou claro que o Brilhante só matava por vingança ou para se
defender. Como não possuía nenhuma desavença pessoal com os rapazes que compunham o
bando de Francisco Calangro, não tentou contra a vida deles, embora tenha tido a
oportunidade. Ressaltamos também que, de acordo com essa narrativa, a crueldade se Jesuíno
se limitava ao momento de vingança e era ocasionada pela nevrose. Totalmente contrastante a
essa crueldade era o sentimento de piedade que ele nutria ao presenciar o sofrimento dos
outros. Esse é o caso dos rapazes citados, mas também dos famintos da seca, a quem o
Brilhante se dedicou com total empenho para socorrê-los.
Através da construção ficcional de Jesuíno Brilhante, percebemos que o autor não
estava interessado em apresentar apenas uma face sobre a vida desse assassino. Se por um
lado, Jesuíno era violento e impetuoso na vingança contra seus inimigos. Por outro lado, ele
era capaz de demonstrar bons sentimentos e ajudar aos mais necessitados. Acreditamos que
141
cada modalidade, como diversa se mostraria sempre a medida da conduta no respeito a certos
valores, no comedimento das ações e na própria violência empregada” (MELLO, 2011, p. 89).
Representando o “cangaço de vingança”, já consagrado na literatura, a fala do personagem é
bem esclarecedora ao afirmar que só derramava sangue em sua própria defesa. Ao enfatizar
que Jesuíno não pegava no alheio, a narrativa reafirma a sua adequação àquilo que era tão
valorizado na cultura sertaneja, o respeito à propriedade. Sobre esse código de ética sertaneja
que julgava normal o assassinato em nome da honra, mas não perdoava o crime contra a
propriedade, esse pesquisador o compreende como um aspecto bem enraizado na cultura
sertaneja do Nordeste pecuário:
Muito se tem falado nos paradoxos da chamada moral sertaneja. No Nordeste, talvez
melhor que em qualquer outra região, sente-se a existência desse quadro de valores –
segundo já comentamos – inconfundível em muitos de seus aspectos. Chega a ser
quase impossível, por exemplo, explicar ao homem do sertão do Nordeste as razões
por que a lei penal do país – informada por valores urbanos e litorâneos que não são
os seus – atribui penas mais graves à criminalidade de sangue, em paralelo com as
que comina punitivamente para os crimes contra o patrimônio. Não se perdoa o
roubo no sertão, havendo, em contraste, grande compreensão para com o homicídio
(MELLO, 2011, p. 126-127).
Embora tenha se tornado assassino para vingar uma morte, o que era
perfeitamente aceitável dentro daquela cultura, Jesuíno era implacável com os crimes contra a
propriedade e contra a honra. Desse modo, ele criou para si um escudo ético que o fazia ser
temido e louvado. Ao longo da narrativa percebemos que a proibição aos dois crimes deixou
de se restringir ao bando e foi implantada em toda a sua área de atuação. Esse bandido
utilizou o poder que possuía pelas armas e se tornou senhor absoluto sobre o bem e o mal
naquele sertão. Isso também reforça a visão do leitor sobre a ineficácia da justiça estatal do
período e o grande valor atribuído à figura do valentão.
Jesuíno havia conquistado pelo seu valor e crueza uma celebridade, que cada vez
maior se tornava entre os seus conterrâneos. Todos temiam o seu ódio e louvavam as
ações generosas. Não era um assassino comum, um homem torpe, abusando da fôrça
e temor, que havia incutido no ânimo de seus patrícios para cometer toda sorte de
crimes, toda a casta de misérias.
(...)
Nessa vida de tribulações, esperando a todo o instante a bala que o derribaria para
sempre, Jesuíno não deixava de tirar uma parcela desse tempo e empregá-la em
beneficiar os desgraçados, socorrer os oprimidos. Constituiu-se juiz e juiz absoluto
naquelas cercanias. A justiça que administrava, era tão reta que em breve foi grande
a sua fama. Só tomava conhecimento dos crimes praticados contra a honra e a
propriedade. E ai daquele que os tendo cometido, não os reparasse com o casamento
ou a restituição. Para os que se negavam só havia uma pena – a morte. Assim,
castigando com a maior severidade e justiça os delinqüentes, conseguiu quase acabar
143
com aquêles crimes dentro da área de sua jurisdição[...] (TEÓFILO, 1972, p. 227-
228).
Havia mais ou menos harmonia nas linhas do rosto, onde não se encontrava um traço
que destoasse, ou fosse extravagante. Os cabelos de um ruivo côr de fogo, casavam
bem com os olhos, que tinham a mesma côr e eram ligeiramente estrábicos. A pele
alva e mosqueada de sardas assentava com a cor da cabeleira e barba, que apontava,
ruiva como os pelos do croata. A estatura era mediana e o corpo franzino, porém
musculoso (TEÓFILO, 1972, p. 32).
“mulato”. Para estes, não foram reservadas qualificações tão generosas como aquelas
destinadas ao Brilhante:
Era êle um cabra quase negro, de bigodes retorcidos e nariz chato como tromba
de porco.
Mesmo dormindo via-se que o dono de tal cara não podia ter boas entranhas. O
cabra era musculoso, cheio do corpo e de mediana estatura.
O outro era um mulato alvadio e franzino. O rosto pequeno e malfeito era quase
todo ocupado pelo nariz, um nariz fenomenal, muito parecido com sobrecu de
peru e que esparramava as intumescidas asas pelas faces a fora. No queixo inferior e
vis a vis a ponta da venta, cava-se um buraco. O excesso do nariz fazia falta à
depressão da barba. As faces dividiam-se, das maçãs ao pescoço, em uma serie de
papadas mal feitas, balofas, que pareciam cheias d’água. O Brilhante gostou menos
deste tipo, tinha conhecido um sujeito muito parecido com êle, que, além de bêbado
por índole, tinha os sentimentos da víbora da Fábula (TEÓFILO, 1972, p. 187.
Grifo nosso).
sertaneja, sendo essa respeitada apenas por Jesuíno, o fazendeiro branco. Tal percepção se
revela bastante emblemática para pensarmos sobre os posicionamentos raciais de seu autor.
Diferentemente de Jesuíno, o guardião da moral sertaneja, que não cometia os crimes do furto
e nem de desonra, esses mestiços cometiam os crimes mais torpes. Isso fica bem nítido
quando o mestiço Pedro Jurema procurou o Brilhante para convidá-lo a participar e chefiar
seu bando e juntos levarem o cangaço como um meio de vida:
Como o narrador afirmou, para alguém com grande deficiência moral, como o
mestiço Pedro Jurema, era inacreditável que Jesuíno, sendo um famoso assassino, possuísse
tamanhos escrúpulos de consciência. Fica explícito como aquele modo de ganhar a vida
repudiava a Jesuíno. Atentemos também para um aspecto interessante a ser ressaltado na fala
do mestiço que, ao afirmar “eu também que tinha meus escrúpulos, mas o mundo e as
precisões acabaram com eles”, nos faz pensar sobre a questão das desigualdades sociais e da
grande concentração de renda presentes no universo sertanejo. Essas questões contribuíam
para o fenômeno social do banditismo rural, embora não fossem determinantes e nem as suas
únicas causas. Porém, na literatura de Rodolfo Teófilo, ainda que ele fizesse diversos tipos de
denúncia social, esse aspecto se tornava pequeno diante do peso esmagador da questão racial.
Essa aparece como predominante para explicar que era por sua condição de mestiço que
Pedro Jurema cometia os piores crimes. Assim como esse assassino ganhava a vida pegando
no alheio, ele também não se fartava de investir contra a honra das mulheres:
Jurema teria logrado por mais tempo ser o terror daqueles sertões, se à vida e
propriedade se limitasse a sua perversidade e cobiça.
Mestiço e concupiscente, como um bode, não pôs peias ao seu temperamento.
Sem educação, com o espírito embrutecido por quinze anos de cárcere, deixava-
se arrastar sòmente pelos instintos de bêsta.
(...)
146
Farto de cevar os seus maus instintos, derramando sangue pelo mais frívolo pretexto,
vivendo do suor alheio, que esperdiçava sem consciência de tão monstruoso
atentado, devorado de desejos, que lhe dariam à carne outros deleites, atentou contra
a honra das mulheres, que lhe despertavam apetites sensuais.
(...)
Pensava o caudilho que o marido, o pai lhe entregariam a mulher, a filha do mesmo
modo que lhe entregava os rebanhos, os celeiros; mas iludia-se.
O povo, em quem supunha embotados todos os sentimentos, completamente
bestificado, revoltou-se então contra Jurema. Dar-lhe a fortuna e a vida, e por
cúmulo de perversidade, querer êle a honra das donzelas! Era demais.
Revoltou-se e reviveu tudo que de nobre estava amortecido no coração daquela
infeliz gente. A submissão estúpida ao caudilho desapareceu desde o dia em que
uma filha do povo foi arrastada à casa de Jurema para êle satisfazer a sua lascívia. O
pai da donzela, um homem forte e valente, bateu-se como um herói contra os
sequazes de Jurema; bateu-se pela honra da filha até cair morto, até ser-lhe o coração
atravessado pelos punhais dos assassinos (TEÓFILO, 1972, p. 38-39. Grifo nosso).
Embora seja longo, esse trecho é bastante revelador para percebermos o valor
atribuído à honra feminina na cultura sertaneja. Se o crime contra a propriedade era algo
extremamente grave, de acordo com aquele código de ética, o crime contra a honra feminina
era o mais hediondo de todos. Naquela cultura patriarcal, os crimes de sedução e estupro não
eram colocados como ofensivos à própria vítima, mas à figura masculina a ela relacionada,
seja o pai ou o marido, os responsáveis pela defesa dessa honra e que, se preciso fosse,
morreriam em sua causa.
Desse modo, destacamos que esse trecho e o seu apelo ético foram construídos de
modo a enfatizar o quanto Pedro Jurema era um bandido de atitudes repugnante e sem
qualquer respeito à moral. Essa imagem se construiu atrelada ao seu pertencimento racial, o
qual “mestiço e concupiscente, como um bode, não pôs peias ao seu temperamento”. Através
dessa frase, de antemão, o narrador propôs que os crimes cometidos por aquele bandido se
explicavam por seu temperamento irrefreável de mestiço. Adjetivos como mestiço e
concupiscente foram colocados de forma interligada, como se tal condição racial fosse pré-
requisito para ser concupiscente. Como já vimos ao longo desse trabalho, essa característica
foi bastante recorrente no tratamento destinado por Rodolfo Teófilo às suas personagens
mestiças, as quais, frequentemente, também foram assemelhadas a besta ou receberam outra
forma animalização.
Além da predominância do fator racial na definição do temperamento de Pedro
Jurema, destaca-se também a influência do meio degenerado. A concepção de
degenerescência fica implícita na afirmação de que esse mestiço era um indivíduo “sem
educação, com o espírito embrutecido por quinze anos de cárcere” e incapaz de se regenerar,
pois “uma vez restituídos os seus meios de ação, mostrou-se que era – o mesmo malvado”
147
(TEÓFILO, 1972, p. 64). Aqui, mais uma vez, a educação, ou a ausência dela, foi decisiva
para moldar um temperamento, associando-se ao fator racial.
Enquanto que aos bandidos mestiços era atribuído um temperamento
concupiscente e o crime contra a honra, o Brilhante, sendo um homem branco, foi consagrado
como o herói daquelas cercanias por defender, em diferentes ocasiões, a honra de mulheres
que se encontravam em situação de risco. Uma dessas mulheres era a retirante Maria de Góis
que, após desfalecer de fome, “Jesuíno tinha conseguido salvar a faminta e, todo dedicação, a
tratava como filha. N’alma do criminoso não passava por um instante o desejo de seduzi-la”
(TEÓFILO, 1972, p. 303). O Brilhante repudiava os crimes de sedução e estupro. Na
perspectiva racial de Rodolfo Teófilo, Jesuíno, por não ser mestiço, não era um criminoso
concupiscente. Pelo contrário, “as lutas de tantos anos e a forçada continência tinham esfriado
de todo o temperamento do Brilhante; não parecia o mesmo homem do tempo da adolescência
a assistir horas inteiras o ato da procriação dos bodes e dos outros brutos” (TEÓFILO, 1972,
p. 303). Se o temperamento libidinoso dos mestiços era estimulado com a vida no crime,
vivendo como “bestas sexuais”, em Jesuíno esse estilo de vida havia lhe arrefecido o lado
sexual. Completamente diferente de seu amo, era José, o escravo liberto que seguia Jesuíno no
bando e que a vida de continência sexual só aumentava a sua libidinagem:
Vejamos que o negro liberto foi tratado com as mesmas características sexuais
que os mestiços desse romance, sem que houvesse uma nítida diferenciação entre esses tipos
raciais. Aliás, só nesse trecho, o narrador atribuiu várias expressões raciais para se referir a
José, tais como “liberto”, “homem de côr”, “mulato” e “ex-escravo”. Isso demonstra que no
pensamento racial desse autor, a concupiscência e a libidinagem, presentes nos mestiços, seria
148
O negro era asqueroso como um sapo. Para mais aterrar a senhora, havia tirado a
faca da bainha e dizia com o maior cinismo, limpando as unhas:
- Tinha de ver dormir eu misturado com bodes e porcos, podendo gozar da
companhia da dona.
(...)
Jesuíno custava conter-se. Lamentava a falta de sua faca, pois, para um negro tão
infame a morte à bala era nobre demais. Queria picá-lo, esfaqueá-lo, devagar,
fazendo-o sofrer as dores mais atrozes. Ocorreu-lhe uma idéia, que aplaudiu, e
depois de refletir um pouco, resolveu executá-la. Para isso necessitava do concurso
dos companheiros, pois tratava-se de agarrar o negro, amarrá-lo, castrá-lo e
depois queimá-lo vivo.
O Brilhante achava pouco todos êsses tormentos: não havia castigo que punisse o
Granjeiro. Um negro estuprar uma mulher branca e casada! Dizia consigo
Jesuíno, cego de raiva! (TEÓFILO, 1972, p. 351-352. Grifo nosso).
149
A partir dessa descrição, o autor quis mostrar sobre um tipo de cruzamento racial
diferente daquele que, na sua concepção, prevaleceu no processo de colonização do Ceará. Se,
150
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir de nossas análises foi possível perceber que a escrita de Rodolfo Teófilo
esteve intimamente relacionada ao cientificismo do século XIX. Mais do que uma prática
científica, o cientificismo se constituiu em uma visão de mundo, onde seus adeptos, por
considerarem a ciência como o único saber objetivo e racional, julgavam-se como os únicos
capazes de decidir sobre o caminho a ser seguido pela sociedade. Rodolfo Teófilo, assim
como boa parte da intelectualidade brasileira do final do século XIX, se via como um
representante dos novos ideais científicos, a indicar o caminho mais seguro para a
sobrevivência e o futuro do país. Esse pensamento esteve muito presente em sua literatura ao
tratar da vida dos sujeitos por ele representados, principalmente os sertanejos pobres, mestiços
e incultos. Ele, na condição de homem de ciência, acreditava que estava incumbido da missão
de guiar aqueles sujeitos pelo melhor caminho na superação de adversidades como a
ignorância, a pobreza, a seca, a migração e as doenças.
Rodolfo Teófilo não foi apenas mais um literato que se apoiava na ciência para
escrever suas obras, ele foi um cientista que se tornou literato. A sua escrita se destacou por
expressar intensamente o pensamento médico compartilhado na Faculdade de Medicina da
Bahia. A sua produção romanesca foi fortemente caracterizada por uma tendência naturalista
de apresentar personagens portadoras de diferentes patologias, tais como a fome que matou
muitos retirantes, a histeria de Vicencia da Gloria, a tuberculose de Chiquinha e a nevrose do
homicídio presente em Jesuíno. A partir do paradigma médico e da compreensão de
degenerescência social, a sociedade foi vista como um organismo doente que dependia da
intervenção médica para ser curada.
Nos romances analisados neste trabalho foi possível perceber o esforço do autor
em se adequar aos parâmetros da literatura naturalista, através do largo uso de termos
científicos, utilizados para descrever cenas naturais e humanas e conferir explicações
biológicas e mesológicas sobre os fenômenos sociais. Porém, ele não conseguiu romper
completamente com o Romantismo no modo de construir seus enredos e suas personagens.
Na obra Maria Rita, o discurso antilusitano, que marcou o Romantismo, teve ressonância no
tratamento destinado aos colonizadores portugueses e aos primeiros indígenas, sendo os
primeiros adjetivados como pessoas mesquinhas e covardes e os indígenas como altivos e
corajosos. O protagonista Joaquim de Queiroz, um vaqueiro destemido, que figurava o puro
tipo de sertanejo, também foi idealizado aos moldes do Romantismo. Tanto em A Fome,
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como em Os Brilhantes, seus protagonistas também receberam adjetivações bem comuns aos
protagonistas românticos, como a honra, a retidão, a benevolência, entre outros. Enquanto isso
as personagens secundárias foram reservadas as descrições naturalistas mais grotescas.
Ao analisarmos os usos das teorias cientificistas por Rodolfo Teófilo, vimos que,
como outros intelectuais brasileiros do período, ele foi capaz de combinar de forma inusitada
diferentes concepções, algumas delas até mesmo divergentes. A teoria das raças, que se
baseava na tese poligenista e na condenação à miscigenação, se combinou à perspectiva
evolucionista e monogenista para explicar o atraso da nação, mas sem condenar o futuro
daquela população, predominantemente mestiça. Do mesmo modo, na sua posição de
intelectual branco, abolicionista, preocupado com a superação da escravidão e com a ascensão
do país à condição de nação moderna e liberal, o escritor soube conciliar duas concepções
antípodas, o liberalismo e o racismo científico. Como abolicionista ele defendeu que a
escravidão deveria ser extinta, pois desumanizava aqueles sujeitos. Porém, adepto às teorias
raciais, ele também acreditava que as raças não-brancas eram inferiores e tentava omitir a
forte presença dos negros na formação do povo cearense. O que podemos concluir é que ao
conciliar concepções tão contraditórias, ele realizou um trabalho bem original de adaptação
dessas teorias à realidade por ele observada e condizente com o seu posicionamento de
homem branco pertencente à elite letrada cearense.
Entre os vários aspectos que foram emergindo nas análises dos romances de
Rodolfo Teófilo, a questão racial se sobressaiu com grande intensidade. Compreendemos o
propósito desse autor em destacar a especificidade racial do povo cearense, que seria
constituído, predominantemente, da mistura do branco com o índio. No entanto, diferentes
tratamentos foram destinados aos sujeitos pertencentes a essas raças e as suas variadas
miscigenações. Quanto à atuação do homem branco português no período colonial,
representado pelo personagem José Maria da Purificação, este foi apresentado como aquele
capaz superar as adversidades do meio e implantar a colonização no interior do Ceará. E
mesmo na condição de degredado do reino, ele conseguiu se regenerar através do trabalho.
Ainda que Teófilo tenha colocado a raça branca no topo da hierarquia racial, o discurso
antilusitano não deixou de ter ressonância na figuração dos colonizadores portugueses, os
quais foram adjetivados negativamente como pessoas egoístas, interesseiras e desonestas. Ao
contrário dos valores apregoados ao colonizador português, o fazendeiro branco, que vivia no
sertão no final do século XIX, apareceu nessa literatura como o representante do ideal de
honra sertaneja, como era caso de Manuel de Freitas e Jesuíno Brilhante. Assim, o sertão
nordestino também foi apresentado como um meio social que, distante da degeneração
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propiciada pela cidade, teria desenvolvido um conjunto de valores morais que compõem a
ética sertaneja e que foi muito exaltada pelo autor. O mesmo sertão, que algumas vezes foi
tratado como um lugar onde reinava a ignorância e a barbárie, por se manter distante do
alcance civilizatório, também foi valorizado como um lugar puro, onde a hipocrisia e a
desonestidade ainda não haviam feito morada.
Ressaltou-se que a miscigenação da população brasileira era uma das questões
mais discutidas no campo intelectual brasileiro no final do século XIX e que a aplicação direta
do darwinismo social implicaria na condenação dos grupos raciais miscigenados. Porém, a
ausência de um conceito unívoco e fechado sobre raça possibilitou que se fizessem diferentes
usos dessa concepção, ensejando a possibilidade de se planear um futuro ao país, sem
condenar o mestiço. Assim, a raça deixava de ser um elemento inviabilizador, para ser apenas
um fator limitador. As interpretações elaboradas pelos intelectuais brasileiros foram as mais
variadas possíveis. Alguns mais otimistas defendiam que a mestiçagem levaria à formação de
uma nova raça mestiça. Para Rodolfo Teófilo, a mestiçagem ocorrida no Ceará levou à
formação de uma população predominantemente cabocla.
Uma das questões que mais geraram divergências entre os intelectuais brasileiros
foi sobre a possibilidade de modificação da raça, seja pra melhor ou pra pior. Em relação a
Rodolfo Teófilo, percebemos que ele creditava uma importância muito grande ao poder de
regeneração social pela educação. Essa educação regeneradora estava atrelada à concepção de
civilização trazida pelos europeus e em oposição ao que era concebido como bárbaro e
degenerado. No que se refere ao melhoramento racial por meio do cruzamento, ele possuía
uma visão bastante complexa. Se, por um lado, era bem otimista com o cruzamento entre
índios e brancos - desde que esse último elemento fosse predominante -, por outro lado, era
bem pessimista em relação ao cruzamento das raças tidas como inferiores, ou seja, entre o
índio e o negro, ou mesmo quando esses elementos eram predominantes na mistura com a
raça branca.
Vimos na obra Maria Rita que os seus protagonistas, Maria Rita e Joaquim de
Queiroz, eram a comprovação de que essa natureza tropical podia gerar bons frutos e não
estava fadada a sucumbir pela miscigenação. Maria Rita figurou a possibilidade de
branqueamento e melhoramento racial resultante da mistura entre os indígenas e a raça
branca, sendo esta predominante. Queiroz representou o puro tipo de sertanejo, o exemplar
mais perfeito dessa fusão racial. E, por isso, carregava a força, a coragem e a honra sertaneja,
tão valorizada nesses romances. Porém, na perspectiva do autor, essa miscigenação ocorreu
em diferentes proporções. Exemplo disso é que Vicencia da Gloria se caracterizava
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fisicamente como uma índia tapuia e Maria Rita como uma mulher branca, mesmo possuindo
uma ascendência muito próxima. E a todo o momento os elementos herdados dessas duas
raças foram hierarquizados, de modo que os indígenas se encontrassem em uma posição
inferior à raça branca, principalmente, em aspectos físicos e critérios de beleza. Basta
lembrarmos a polarização entre as imagens de Vicencia e Maria Rita.
Ao tratar da contribuição do indígena para a miscigenação durante a colonização
do Ceará, Rodolfo Teófilo apresentou uma visão bem dúbia sobre essa raça. Embora os
sujeitos miscigenados herdassem características negativas da raça indígena, como a índole
sanguinária, a concupiscência, a fúria e a altivez, também herdaram características positivas
como a coragem e a insubmissão, as quais faltavam ao colonizador português. O autor
também propôs que mesmo quando o elemento branco era predominante, como no caso da
personagem Maria Rita, a miscigenação não foi capaz de apagar os traços temperamentais dos
nativos, os quais eram herdados por atavismos pelos cearenses e se manifestavam aos
estímulos dos meios físicos e sociais específicos daquele território.
Rodolfo Teófilo, ao propor que a população era predominantemente cabocla,
também estava interessado em mascarar a forte presença do negro no Ceará. Quando esse
elemento racial compunha um personagem, eram-lhe atribuídas as piores características
físicas e morais. Em Os Brilhantes, os bandidos mestiços e negros, invariavelmente,
representavam o descumprimento da ética sertaneja. Esses personagens cometiam os crimes
considerados mais ofensivos à moral sertaneja, contra a propriedade e a honra feminina. Na
perspectiva do autor, a propensão a alcoolismo e a concupiscência seriam herdadas das raças
inferiores. Essas características apareceram diretamente ligadas à condição de ser negro ou
mestiço. Aos cabras, cruzamento entre índios e negros, esse intelectual atribuiu uma forte
negatividade quanto à miscigenação, pois, formados por raças tidas como inferiores,
carregavam a marca da degenerescência social.
No Naturalismo brasileiro do século XIX prevaleceu o estudo do temperamento
humano. Esse temperamento obedecia às regras da hereditariedade. Era a herança genética
que explicava as variadas formas de manifestação de um organismo. Essa tendência
naturalista teve grande influência na caracterização das personagens construídas por Rodolfo
Teófilo. As características psicológicas apresentadas por essas personagens não remetiam a
aspectos individuais e subjetivos do ser, mas resultavam de sua constituição racial. Essa
caracterização confirmava a premissa do darwinismo social de que haveria uma continuidade
entre caracteres físicos e morais, os quais seriam transmitidos hereditariamente. Exemplo
disso foi o personagem João das Neves, do romance O Paroara. Assim como Maria Rita, esse
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sertanejo, por resultar da mistura de duas raças diferentes, possuía um temperamento muito
instável. Essa dualidade temperamental foi colocada como responsável pelos diferentes
comportamentos desses sujeitos miscigenados. No romance, apesar de toda a problemática
social envolvendo a migração, o que levou João das Neves a abandonar sua terra foi o
nomadismo da raça vermelha. Do mesmo modo, o que o levou a retornar foi a presença de
uma alma afetiva herdada da raça branca. Embora o autor considerasse que a mistura racial
entre o branco e o indígena fosse a melhor forma de miscigenação, para ele faltava uma série
de atributos ao cearense, como a previdência, a fixação no seu lugar de origem etc.
Destacamos também que para Rodolfo Teófilo foram os estímulos do meio, seja
ele físico ou social, que fizeram despertar no povo cearense características temperamentais e
comportamentos pertencentes às raças que lhe deram origem. Para explicar, por exemplo, a
falta de relutância das sertanejas aos casamentos arranjados pelos pais, esse autor utilizou-se
de elementos ancorados ao cruzamento das raças, mas também às influências do meio, como
o clima quente, que tornavam essas sertanejas sensuais e desejosas de serem desposadas.
Assim, um fenômeno que se situava dentro de uma sociedade altamente patriarcal foi
destituído de sua problemática social e cultural e atribuído à uma explicação forjada pelos
determinismos raciais e climáticos.
Rodolfo Teófilo não deixou de enfatizar que os sertanejos cearenses estavam
expostos às contingências do meio, como as secas, as migrações e o banditismo. Ao tratar de
temas tão espinhosos, os seus romances apresentaram um forte teor de denúncia social.
Porém, ele acabou superestimando o fator fisiológico e diferentes tipos de determinismos para
explicar esses fenômenos. No caso do banditismo, ele fez uma miscelânea de justificativas
baseadas tanto no determinismo genético, como no meio social e na degenerescência dos
grupos miscigenados. Quanto à seca, esta foi colocada como um fator climático capaz de
provocar atitudes irracionais das raças inferiores e miscigenadas, pois eram consideradas
degeneradas, ao mesmo tempo em que favorecia a formação do tipo ideal de sertanejo forte e
resistente. Os diferentes desfechos construídos para os protagonistas de A Fome (um
fazendeiro branco) e O Paroara (um mestiço pobre) buscava comprovar que as adversidades
do meio levavam à sobrevivência apenas dos mais aptos – ou seja, a raça branca. Assim, esta
raça seria um pequeno reduto de civilização diante da barbárie, conseguindo manter sua
integridade física e moral em um meio social degenerado. Ao explicar os fatores que
ocasionaram o fenômeno das migrações, Teófilo radicalizou em suas concepções raciais e
sobrepôs o determinismo racial a qualquer outra explicação. Até mesmo a seca, o problema
mais discutido em toda sua literatura, foi colocado como um fator secundário. Nesse sentido,
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concluímos que o determinismo racial foi a concepção que teve maior peso na escrita de
Rodolfo Teófilo, ao elaborar uma visão sobre os cearenses e o povo sertanejo.
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