Dissertacao

Você também pode gostar

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 163

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

FACULDADE DE EDUCAÇÃO CIÊNCIAS E LETRAS DO SERTÃO CENTRAL


MESTRADO INTERDISCIPLINAR EM HISTÓRIA E LETRAS

ERIKA GONÇALVES DE MENDONÇA

LITERATURA, HISTÓRIA E CIÊNCIA NO SÉCULO XIX:


A VISÃO NATURALISTA DE RODOLFO TEÓFILO SOBRE O POVO CEARENSE

QUIXADÁ - CEARÁ
2020
ERIKA GONÇALVES DE MENDONÇA

LITERATURA, HISTÓRIA E CIÊNCIA NO SÉCULO XIX:


A VISÃO NATURALISTA DE RODOLFO TEÓFILO SOBRE O POVO CEARENSE

Dissertação apresentada ao Mestrado


Interdisciplinar em História e Letras- MIHL da
Faculdade de Educação Ciências e Letras do
Sertão Central – FECLESC, unidade da
Universidade Estadual do Ceará- UECE como
requisito parcial para obtenção do título de
mestre em História e Letras. Área de
Concentração: Cultura, Memória, Ensino e
Linguagens.
Orientador: Profº. Dr. Manoel Carlos Fonseca
de Alencar

QUIXADÁ - CEARÁ
2020
ERIKA GONÇALVES DE MENDONÇA

LITERATURA, HISTÓRIA E CIÊNCIA NO SÉCULO XIX:


A VISÃO NATURALISTA DE RODOLFO TEÓFILO SOBRE O POVO
CEARENSE

Dissertação apresentada ao Mestrado


Interdisciplinar em História e Letras- MIHL
da Faculdade de Educação Ciências e Letras
do Sertão Central - FECLESC, unidade da
Universidade Estadual do Ceará - UECE
como requisito parcial para obtenção do
título de mestre em História e Letras. Área
de Concentração: Cultura, Memória, Ensino
e Linguagens.

Aprovado em: 27/02/2020

Prof. Dr. Manoel Carlos Fonseca de Alencar


(Orientador) Mestrado Interdisciplinar em História e
Letras Universidade Estadual do Ceará

Profa. Dra. Irenísia Torres de Oliveira


(Externo) Programa de Pós-Graduação em
História Universidade Federal do Ceará

Prof. Dr. Tyrone Apollo Pontes Cândido (Interno)


Mestrado Interdisciplinar em História e Letras
Universidade Estadual do Ceará

Prof. Dr. José Wellington Dias Soares (Suplente)


Mestrado Interdisciplinar em História e Letras
Universidade Estadual do Ceará
Aos meus pais, Maria e Isaltino.
AGRADECIMENTOS

A Deus, por ter me dado coragem em todos os momentos, principalmente quando, na solidão
da escrita, parecia que a ansiedade iria me devorar.
À minha família, por ser refúgio e amor, por sempre se preocupar com o meu bem-estar e por
ser a mais interessada nas minhas conquistas.
Ao meu querido orientador, Manoel Carlos, pessoa fabulosa que trouxe leveza e clareza ao
processo de escrita. Agradeço pelo entusiasmo de cada orientação, por sempre me encorajar e
acreditar nessa pesquisa. Agradeço pela paciência, pelas observações perspicazes e,
principalmente, por respeitar o meu tempo de escrita e me dar autonomia para produzir.
Aos professores do Mestrado Interdisciplinar em História e Letras (MIHL) que,
corajosamente, conseguiram tornar possível que mais alunos do interior tenham acesso à pós-
graduação. E pelas frutíferas discussões realizadas em cada disciplina.
Aos professores da banca de qualificação, Carlos Jacinto e Rodrigo Marques, pelas
importantes contribuições ao desenvolvimento dessa pesquisa.
Aos professores da banca de defesa, Irenísia Oliveira e Tyrone Cândido, pelo olhar minucioso
e sensível ao avaliar esse trabalho e pelo incentivo ao prosseguimento da pesquisa.
À minha querida turma de mestrado que, mesmo com toda competitividade estimulada pelo
academicismo, se manteve muito unida e solidária. Agradeço pelos lindos momentos de
convivência, nos quais compartilhamos as angústias da pesquisa, mas também risos e muita
afetividade.
À diretora da escola onde trabalho, Cícera Oliveira, uma grande profissional, justa e
competente, por ter me ajudado tanto na difícil empreitada de ser professora e fazer mestrado
em outra cidade. Obrigada por compreender as minhas ausências da escola e, principalmente,
por flexibilizar o meu horário de trabalho, de modo que eu pudesse participar das aulas no
mestrado.
“Presentemente eu posso me considerar um
sujeito de sorte
Porque apesar de muito moço me sinto são e
salvo e forte
E tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e
anda do meu lado
E assim já não posso sofrer no ano passado”.

(Belchior – Sujeito de Sorte)


RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar o modo como Rodolfo Teófilo, um literato cearense,
se apropriou das teorias cientificistas europeias do século XIX para elaborar uma visão sobre
o sertão cearense, através de sua literatura naturalista. Analisamos quatro romances
publicados na década de 1890, momento de maior produção romanesca desse autor, nos quais
ele se dedicou a produzir uma literatura sobre o povo cearense. As obras analisadas são A
Fome (1890), Os Brilhantes (1895), Maria Rita (1897) e O Paroara (1899). Embora sejam
obras publicadas na década de 1890, nosso recorte se estende desde a década de 1870,
momento em que as ideias racialistas passaram a ser difundidas no campo intelectual
brasileiro e momento de formação acadêmica desse intelectual na Faculdade de Medicina da
Bahia, onde ele teve acesso a esse aporte teórico. A análise do texto parte de uma perspectiva
diacrônica em relação ao momento de sua produção (REUTER, 2016), articulando o
intrínseco da obra (conteúdo) ao extrínseco (condições de tempo e lugar). Buscamos tornar
clara a forma original como esse literato reinterpretou e arranjou certas teorias cientificistas
para escrever sobre os sertanejos cearenses, baseado em elementos culturais e sociais que
marcaram sua visão sobre aquele povo.

Palavras-chave: Rodolfo Teófilo. Cientificismo. Literatura Naturalista.


ABSTRACT

This work aims to analyze the way Rodolfo Teófilo, a cearense writer, utilized the European
scientific theories of the XIX century to elaborate an image about Ceará backwoods through
his naturalist literature. It was analyzed four novels published in the 1890s, moment of greater
novel production of the author. The works analyzed are A Fome (1890), Os Brilhantes (1895),
Maria Rita (1897) and O Paroara (1899). Although, they are works published in the 1890s,
the period analyzed extends to 1870’s, a moment in which racial ideas started to be spread in
the intellectual Brazilian field and a moment of that author’s own academic training in Bahia
Faculty of Medicine, where he found that theoretical basis. The analysis of this text is based
on a diachronic perspective in relation to the moment of its production (REUTER, 2016),
articulating the intrinsic elements of the work (content) to the extrinsic ones (conditions of
time and place). We aim to make clear the original way in which this writer reinterpreted and
arrenged some scientific theories to write about the cearense backwoodsmen, based on
cultural and social elements that marked his vision of that people.

Keywords: Rodolfo Teófilo. Scientism. Naturalist literature.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................... 11
2 “A CIÊNCIA SERVE DE RÓTULO AO LITERATO”: A RELAÇÃO DE
RODOLFO TEÓFILO COM A DISCUSSÃO CIENTIFICISTA ................ 18
2.1 RODOLFO TEÓFILO: UM HOMEM DE CIÊNCIA QUE SE TORNOU
LITERATO ............................................................................................................ 19
2.2 O DEBATE NATURALISTA NO CEARÁ E A CONTRIBUIÇÃO DE
RODOLFO TEÓFILO ÀS PRÁTICAS LETRADAS DE SUA PROVÍNCIA .... 31
2.3 “MENS SANA IN CORPORE SANO”: A DISCUSSÃO RACIAL NO BRASIL
E A FORMAÇÃO DE RODOLFO TEÓFILO NA FACULDADE DE
MEDICINA DA BAHIA........................................................................................ 40
3 “UMA VARIEDADE DE TIPOS DE COR”: MISCIGENAÇÃO E
CIVILIZAÇÃO NA COLONIZAÇÃO DO CEARÁ ....................................... 55
3.1 UM MISTO DE BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO”: A INSERÇÃO DA RAÇA
BRANCA NO SERTÃO CEARENSE E A PERSPECTIVA COLONIALISTA
SOBRE O “OUTRO” ............................................................................................ 55
3.2 UMA VISÃO AMBÍGUA SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DO INDÍGENA
PARA A FORMAÇÃO DO POVO CEARENSE ................................................. 27
3.3 A NEGATIVIDADE SOBRE A RAÇA NEGRA NO PROCESSO DE
COLONIZAÇÃO DO CEARÁ ............................................................................ 92
4 A ATUAÇÃO DE DIFERENTES RAÇAS EM MOMENTOS DE
INSTABILIDADE SOCIAL: SECA, MIGRAÇÃO E BANDITISMO ......... 104
4.1 “INDIVÍDUOS DE TODAS AS CASTAS SE CONFUNDIAM ALI”: SECA,
DEGENERESCÊNCIA E SUPERIORIDADE DA RAÇA BRANCA ................ 104
4.2 O NOMADISMO DA RAÇA VERMELHA: AS LEIS DO ATAVISMO
EXPLICANDO O PROCESSO DE MIGRAÇÃO DO POVO CEARENSE ....... 120
4.3 A RAÇA BRANCA EM DEFESA DO CÓDIGO DE ÉTICA SERTANEJA E
A DEGENERESCÊNCIA DOS BANDIDOS MISCIGENADOS ....................... 135
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 151
RERERÊNCIAS .................................................................................................. 157
11

1 INTRODUÇÃO

Investigar sobre as teorias raciais e as diferentes formas de determinismo


biológico é adentrar por um caminho tortuoso e que ainda causa grande desconforto em
muitas pessoas. Isso devido aos absurdos já cometidos contra determinados grupos humanos,
como as diferentes formas de controle, segregação e violência. Também se trata de uma
temática, muitas vezes, menosprezada, devido ao descrédito de seus métodos científicos, hoje
tratados como pseudocientíficos. Porém, no século XIX, as teorias cientificistas alcançaram
grande notoriedade no pensamento ocidental e serviram de libelo para diferentes formas de
dominação. Stephen Gould (2014, p. 13) mostrou que essas teorias não estão completamente
mortas, em tempos de retrocesso político, o determinismo biológico cresce em popularidade.
Portanto, entendemos que essa temática deve ser incessantemente problematizada e
desnaturalizada. É preciso compreender que muitos dos preconceitos vigentes foram
consolidados devido ao embasamento científico que conquistaram ao longo do século XIX.
No Brasil, a década de 1870 correspondeu ao momento de abertura para diferentes
teorias cientificistas vindas da Europa, tais como o positivismo, o evolucionismo, o
darwinismo social e os diferentes tipos de determinismos, entre outras. Destaca-se a
existência de importantes pesquisas sobre esse momento e sobre os posicionamentos dos
intelectuais brasileiros, na tentativa de definir uma identidade para o povo brasileiro, baseados
nesses referenciais teóricos (ALONSO, 2000; MURARI, 2009; ORTIZ, 2006; VENTURA,
1991; SCHWARCZ, 1993). Essas pesquisas nos dão uma dimensão mais ampla sobre a
recepção dessas teorias no campo intelectual brasileiro e apontam para as diferentes
possibilidades de interpretações por intelectuais que se tornaram mais notáveis no âmbito
nacional, como Silvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e alguns outros. Porém,
ainda há uma variedade de possibilidades a serem exploradas. Principalmente, no que
concerne a pesquisas sobre muitos pensadores e obras que não ganharam tanto destaque na
historiografia nacional, mas que se apropriaram dessas teorias de forma bastante original. É
nesse sentido que o enfoque da nossa pesquisa recai sobre a forma como Rodolfo Teófilo, um
intelectual cearense, se apropriou dessas leituras cientificistas europeias para interpretar a
realidade de sua província, e, mais especificamente, do povo sertanejo, através de sua
literatura naturalista. Tal objetivo demonstra a necessidade de compreendermos sua
linguagem, sua forma de se expressar e suas visões de mundo, de modo a analisar as
condições de adaptação, mobilização e uso dessas teorias, segundo os dilemas próprios da
vida brasileira e, mais especificamente, da província cearense.
12

O que propomos é a compreensão do pensamento cientificista presente na


literatura de Rodolfo Teófilo. Nesse sentido, a História Intelectual, situada no
entrecruzamento de vários campos do saber histórico (entre eles a História das Ideias, História
Cultural, História Social e História Política) propõe a percepção dos autores e suas obras para
além das fronteiras disciplinares. Basicamente, o seu projeto está em elucidar a obra dos
pensadores em sua historicidade. Para Jean François Sirinelli (1996) a história dos intelectuais
necessariamente está vinculada à pesquisa e à exegese dos textos, sobretudo textos impressos,
“primeiro suporte dos fatos de opinião”, “em cuja gênese, circulação e transmissão os
intelectuais desempenham um papel decisivo” (SIRINELLI, 1996, p. 245). Tem sido repetido
o papel da literatura naturalista como um importantíssimo veículo de divulgação das teorias
cientificistas, “mas tem sido pouco analisado o ‘cientificismo’ contido nessa ideia e mesmo na
literatura” (DOMINGUES, 2014, p. 127). Desse modo, nos detemos a uma análise mais
delimitada e minuciosa sobre esse cientificismo presente em quatro romances de Rodolfo
Teófilo: A Fome (1890), Os Brilhantes (1895), Maria Rita (1897) e O Paroara (1899).
Destacamos alguns percursos que orientaram metodologicamente a definição do
nosso objeto de pesquisa, assim como o seu conjunto de fontes e o viés pelo qual os mesmos
foram analisados. Ao entrarmos em contato, inicialmente, com a obra A Fome e nos
inquietarmos com a forte presença das concepções de raça e meio na sua constituição, logo
em seguida, buscamos identificar se essas questões também apareciam em outras obras do
mesmo autor. Esse olhar direcionado sobre a produção naturalista de Rodolfo Teófilo foi o
procedimento que nos levou à definição do conjunto de fontes a serem trabalhadas. Tanto na
pesquisa bibliográfica, como na pesquisa documental, Toledo e Gonzaga (2011, p. 168)
destacam algumas etapas procedimentais que são fundamentais para o acesso e o trato dessas
fontes, tais como a identificação ou levantamento bibliográfico; localização, compilação e
fichamento. Tratando-se da produção literária de um só autor, foi fácil fazer o levantamento
de suas obras publicadas. Quanto aos processos de localização e compilação dessas obras,
estes foram bem extenuantes, pois alguns livros são obras raras ou com poucos exemplares
disponíveis. Das obras compiladas, apenas Maria Rita é da primeira edição e foi coletada no
setor de “Obras Raras” da Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel. A versão que
temos da obra Os Brilhantes é a 3ª edição, organizada por Afrânio Coutinho e publicada pelo
Instituto Nacional do Livro, do Rio de Janeiro, em 1972, faz parte da “Coleção de Literatura
Brasileira” e foi coletada no “Setor do Ceará” também da Biblioteca Pública Governador
Menezes Pimentel, juntamente com a obra O Paroara. Esta foi publicada pela Secretaria de
Cultura, Desporto e Promoção Social do Ceará, em 1974. A obra A Fome é uma edição da
13

Academia Cearense de Letras, publicada em 1979, juntamente com Violação, e faz parte da
“Coleção Dolor Barreira”, foi organizada por Otacílio Colares, também responsável pela
atualização ortográfica, introdução crítica e notas explicativas.
De acordo com Yves Reuter, a análise do texto literário pode ocorrer em três
dimensões, de modo exclusivo ou não: a análise do texto em si; a análise da relação do texto
com sua produção e a análise da relação do texto com sua recepção (REUTER, 2016, p. 178).
Essa segunda dimensão - que se ocupa em investigar o texto literário relacionando-o às
condições de criação literária - é a que nos interessa. Assim, ao analisar as visões de mundo e
ideias transformadas em textos literários, tais como as teorias cientificistas na produção de
Rodolfo Teófilo, supõe investigar as condições de sua produção, situando seu autor histórica e
socialmente, numa perspectiva diacrônica.1 Ao longo de nossas leituras várias questões foram
emergindo como: Quem foi Rodolfo Teófilo e qual era o lugar social de fala? Por que o
cientificismo aparece de forma tão marcante em sua produção? Qual era a relação entre esse
intelectual e o fazer científico e qual era o papel atribuído à ciência naquele período? Como
esse literato realizou essa mediação entre o cientificismo e a escrita literária? Se havia um
conjunto de teorias científicas sendo discutidas no Brasil, quais eram os teóricos que,
possivelmente, ele lia, de acordo com sua formação e quais ele selecionou para elaborar
explicações sobre a vida local da província cearense e do povo sertanejo?
As obras aqui analisadas foram publicadas na década de 1890, período de maior
produção romanesca do autor. Porém, nosso recorte temporal se estende desde a década de
1870, momento em que Rodolfo Teófilo teve acesso a essas teorias científicas, por meio de
sua formação na Faculdade de Medicina da Bahia. Antonio Candido (1985) alerta que a
abordagem do texto literário deve articular tanto o intrínseco da obra, logo, seu conteúdo - que
engloba suas temáticas, tramas e dimensões formais e estéticas - quanto o extrínseco,
referindo-se ao contexto social e temporal em que foi escrita. É preciso ponderar as
características específicas da fonte literária, esclarecendo, por exemplo, de que literatura está
falando; quais suas características e como determinados autores concebem suas obras, com o
objetivo de inserir autores e obras literárias em processos históricos específicos.
No texto “Literatura: a fonte fecunda” de Antonio Celso Ferreira (2011), o autor
nos mostra que é função do historiador tomar a literatura sem reverências, sem reducionismos
estéticos, dessacralizá-la, submetê-la a um interrogatório sistemático. Assim, ao nos

1
Para Reuter (2016, p. 180), a história literária, ao analisar um texto, parte de um ponto de vista diacrônico, isto
é, de uma perspectiva histórica. Em outras palavras, relaciona o texto e o autor ao contexto histórico específico
em que foi produzido.
14

depararmos com uma obra literária devemos tirar a poeira da superfície e investigar o que está
para além de rotulações e classificações genéricas. No entanto, embora tenhamos clareza que
muitas obras não cabem em determinados rótulos, em alguns casos pode ser um interessante
recurso metodológico considerar diferentes formas de classificação, tais como o gênero em
que a obra foi escrita e o movimento literário no qual ela se insere. No contexto do tempo e do
lugar, no emaranhado das relações históricas, sociais e culturais, no qual o texto foi elaborado,
ele revela sua estética, seu estilo, sua linguagem e seus significados, os quais são criações
coletivas e possuem sentido, aceitação ou rejeição, nesse ambiente e tempo. Partindo dessa
análise, nos parece ser de grande importância considerar o respaldo que teve o movimento
naturalista nas últimas décadas do século XIX e o interesse de Rodolfo Teófilo em se inserir
nesse movimento literário que se constituía em uma das principais formas de divulgação do
pensamento científico naquele período. Porém, o nosso objetivo não é tentar engessar as obras
a tal modelo, o que poderia representar uma perda para o entendimento da riqueza de
significados que cada uma possui. Como veremos a escrita literária de Rodolfo Teófilo se
particulariza pela presença de um tensionamento entre a estética romântica e a naturalista que
interferiu na criação de enredos e personagens e a torna ainda mais rica e complexa.
Considerando que Rodolfo Teófilo se apropriava um de aporte teórico e de
elementos estéticos compartilhados em um campo intelectual mais amplo, acreditamos
também que sua criação foi bem original. Ele se apropriou de forma bastante singular desses
referenciais para elaborar uma visão sobre o sertão cearense. Para Luciana Murari (2009), tão
significativo quanto “reconhecer a participação da literatura num ambiente intelectual mais
amplo que fornece a ela referências temáticas e estéticas fundamentais, é compreender como
os próprios recursos da narrativa respondem a grandes dramas humanos e sociais” (MURARI,
2009, p. 37). Através da forma como o literato vai costurando a trama desvendada em cada
obra é que ele transpõe suas visões sobre a realidade e seu modo de interpretar a vida. Através
de seus romances, Rodolfo Teófilo fez uma reinterpretação das teorias cientificistas, baseado
em elementos culturais e sociais que marcaram sua visão sobre os sertanejos cearenses. Era
nítido o seu interesse em registrar características que identificavam e diferenciavam esse
povo. E essa forma de registro possui a especificidade de uma linguagem própria, que é
simbólica.
Como prática intelectual, a literatura constrói certa história da cultura e do social,
institui uma memória em prejuízo de outras. Assim, é de suma importância esclarecer que as
obras aqui analisadas constituem um repertório que foi capaz de contribuir para criar um
imaginário sobre o Ceará e sobre o povo sertanejo no final do século XIX. Elas instituem a
15

memória de um homem letrado e citadino sobre os sertanejos. Desse modo, atentamos para a
forma como Rodolfo Teófilo dava vida às teorias que defendia, a partir de suas personagens e
dos dramas humanos por elas encarnadas. Ele realizou esse trabalho “através da manipulação
da própria linguagem literária, da fabulação das personagens, da imaginação de seus conflitos,
da concepção do enredo como encadeamento de fatos dotados de uma determinada lógica de
sentido” (MURARI, 2009, p. 37-38). Ele apresentou importantes elementos constitutivos de
uma cultura sertaneja, fortemente ancorada no patriarcalismo, e de uma sociedade atravessada
por desigualdades de gênero, raça e classe. Ele se encarregou de falar sobre os dramas e
problemas vividos por aquele povo, tais como as estiagens, as migrações e o banditismo rural.
Além de ser apropriado para a compreensão de diferentes realidades, como é o
caso do sertão cearense, o uso das teorias cientificistas no território brasileiro também foi
bastante original por combinar de forma inusitada diferentes concepções, por vezes, até
divergentes, como veremos ao longo de nossas análises. Nesse sentido, Luciana Murari alerta
que é inútil tentar ater-se a modelos fechados e atribuições rígidas ao analisar essas correntes
de pensamentos. Pois, essas se confluíam e se chocavam em um mesmo ambiente literário, no
conjunto da produção intelectual de um mesmo autor e, até no interior de uma mesma obra
(MURARI, 2009, p. 68). Assim, nossa problemática consiste em desvendar como diferentes
concepções e teorias cientificistas - tais como darwinismo social, evolucionismo,
determinismo biológico e climático, entre outros - se combinaram e até se chocaram no
conjunto da produção literária de Rodolfo Teófilo, ou mesmo dentro de cada obra aqui
analisada, para explicar o modo de vida do povo cearense e, mais especificamente, do sertão.
Nossa hipótese é que o determinismo racial se destaca, entre tantas outras teorias
cientificistas, na sua construção narrativa sobre a vida sertaneja do povo cearense. A
concepção de raça que permeia todo esse trabalho não é vista como uma definição acabada e
atemporal, mas, ao contrário, que foi construída política e socialmente e que ganhou
embasamento científico no século XIX.
Entendido que o nosso objetivo é compreender a forma como as teorias
cientificistas do século XIX foram reinterpretadas por Rodolfo Teófilo, para elaborar uma
visão sobre o povo sertanejo em sua produção romanesca, a estruturação do trabalho foi
pensada conforme a necessidade de deixar mais claro ao leitor o objetivo colocado. No
primeiro capítulo, intitulado “‘A ciência serve de rótulo ao literato’: a relação de Rodolfo
Teófilo com a discussão cientificista” buscou-se primeiro compreender a forma como esse
intelectual se relacionava com a ciência e o valor atribuído à mesma. Para, assim, destacarmos
a grande receptividade que esse tipo de conhecimento obteve, como um discurso portador de
16

verdade, em diferentes campos do saber, inclusive na literatura. O cientificismo não é


entendido apenas como uma prática científica, mas também como uma ideologia que delimita
determinadas posições sociais, raciais e de gênero. Essa concepção foi norteadora para nossas
análises sobre o tratamento destinado por Rodolfo Teófilo aos sujeitos por ele figurados.
Nesse capítulo buscamos ainda enfatizar que, assim como boa parte dos cientistas
do seu tempo, Rodolfo Teófilo interagia e participava das discussões estabelecidas em
diferentes centros intelectuais, dos quais fazia parte. A opção foi, dessa maneira, vinculá-lo às
diferentes instituições das quais participou. Entendemos que foi no campo letrado cearense,
com suas próprias problemáticas, que esse intelectual se manifestou enquanto cientista e
literato. Por isso, nos interessa investigar sobre a chegada e circulação dessas ideias científicas
europeias no campo intelectual cearense e ressaltar os fatores que fizeram com que algumas
teorias obtivessem maior adesão naquela província. Porém, compreende-se que mesmo
compartilhando um mesmo ambiente letrado, social e político que outros intelectuais
cearenses, Rodolfo Teófilo se distinguiu de seus pares. Desse modo, buscamos investigar
também sobre o período de formação desse intelectual na Faculdade de Medicina da Bahia,
onde ele teve acesso ao pensamento médico e as teorias raciais difundidas nessa instituição e
que marcaram tão intensamente a sua produção escrita.
No segundo capítulo, “‘Uma variedade de tipos de cor’: miscigenação e
civilização na colonização do Ceará” analisamos a forma como Rodolfo Teófilo construiu
uma narrativa sobre o passado colonial cearense, através de seu romance histórico Maria Rita
e tomando por base concepções próprias de seu momento de escrita, tais como raça, meio,
civilização, entre outras. Buscamos problematizar a visão colonialista desse intelectual, ao
assimilar a ideologia civilizatória, aliada às teorias raciais e climáticas, para qualificar o povo
sertanejo como bárbaro e inculto. Destaca-se que a questão racial, assim como a
miscigenação, as quais estavam no cerne das discussões entre os intelectuais brasileiros do
final do século XIX, também esteve fortemente imbricada à escrita desse romance histórico.
Assim, buscamos delinear os diferentes tipos raciais formadores do povo cearense, propostos
por esse autor, e a contribuição de cada um deles para a formação daquele povo. Ressalta-se a
grande importância atribuída à miscigenação entre os brancos e os indígenas e uma incisiva
negação sobre a presença do negro no Ceará.
No terceiro capítulo, intitulado “A atuação de diferentes raças em momentos de
instabilidade social: seca, migração e banditismo” analisamos como Rodolfo Teófilo se
apropriou das concepções cientificistas para elaborar explicações para alguns fenômenos
sociais que a afligiam o povo sertanejo, tais como a seca, a migração e o banditismo rural,
17

através dos romances A Fome, Os Brilhantes e O Paroara. Ressalta-se que ao tratar desses
fenômenos, o autor estabeleceu diferentes comportamentos para os sertanejos figurados em
suas obras, tendo por base, principalmente, o pertencimento racial dessas personagens. Porém,
a questão racial foi mesclada a vários outros elementos, como a atuação do meio físico e
social, a degenerescência, o nível de instrução desses sujeitos e a presença de doenças
hereditárias, entre outros. O autor, ao tratar desses elementos que ele considerava como
definidores da índole dos sertanejos, também deixou transparecer elementos culturais e
sociais que atuavam intensamente no modo de viver daqueles sujeitos, tais como as
desigualdades sociais e de gênero, a cultura de valentia e os valores assentados na ideia de
honra sertaneja. Todas essas questões foram consideradas ao abordamos a forma singular
como esse literato figurou os sertanejos cearenses.
18

2 “A CIÊNCIA SERVE DE RÓTULO AO LITERATO”: A RELAÇÃO DE RODOLFO


TEÓFILO COM A DISCUSSÃO CIENTIFICISTA

Partindo do objetivo geral de compreender o modo como Rodolfo Teófilo se


apropriou de teorias científicas europeias para interpretar a sua realidade local, achamos
necessário, antes de tudo, discutirmos um pouco sobre sua formação e o meio letrado por
onde ele circulava para, assim, localizarmos um conjunto de leituras às quais ele tinha acesso
e das quais se apropriava. Nessa perspectiva, buscamos compreender Rodolfo Teófilo não
apenas como um escritor naturalista, mas também como um homem de ciência, adepto ao
conhecimento científico do período e que, mediante as suas condições e em determinadas
circunstâncias, ressignificava as leituras às quais tinha acesso. Priorizamos por demonstrar
que o cientificismo do século XIX, tão presente no pensamento desse intelectual, não se
tratava de um tipo de conhecimento imparcial – assim como nunca chegou a ser –, pois os
seus usos correspondiam a interesses ideológicos.
Estudar a produção literária de Rodolfo Teófilo e sua relação com as teorias
raciais e mesológicas implica na compreensão do campo intelectual brasileiro no final do
século XIX e a posição tomada por esse intelectual. A concepção de campo intelectual
concorre para a constituição de um espaço social compartilhado por aqueles que detêm um
capital simbólico e cultural e produzem obras culturais. É nesse campo que circulam ideias,
códigos e valores que fazem sentido naquele âmbito e para os indivíduos que o compartilham
(BOURDIEU, 2002, p. 8-9). Isso significa dizer que escolhas teóricas ou artísticas de um
intelectual, sejam elas conscientes ou inconscientes, estão sempre orientadas pela sua cultura
e seu gosto, ou seja, trata-se de interiorizações dos valores de uma sociedade, de uma época e
de uma classe. Nesse sentido, buscamos entender como Rodolfo Teófilo se inseria em
diferentes campos intelectuais daquele período e como era influenciado por elementos desses
campos, tais como o valor atribuído à ciência e o paradigma médico difundidos na Faculdade
de Medicina da Bahia; a escrita naturalista; as discussões abolicionistas e climáticas que
circulavam nas agremiações literárias cearenses, entre outros elementos que contribuíram para
que ele selecionasse e ressignificasse certas ideias.
Porém, lembramos que, embora Rodolfo Teófilo fizesse parte de uma geração de
intelectuais, compartilhando de um mesmo aporte teórico, esse pertencimento não pode ser
entendido como algo reducionista à construção de suas interpretações e visões de mundo. Isso
porque a própria diversidade de letrados, que envolve desde a diversidade social e regional,
passando pela formação, ofício, posições político-partidárias e trajetória de vida, sugere a
19

dimensão do fervilhar de ideias e indivíduos que coabitavam na construção de um quadro


multifacetado da inteligência nacional.

2.1 RODOLFO TEÓFILO: UM HOMEM DE CIÊNCIA QUE SE TORNOU LITERATO

Rodolfo Teófilo (1863-1932) foi um intelectual cearense que esteve envolvido em


importantes momentos da história do Ceará na passagem do século XIX para o XX: o
combate às epidemias que dizimaram centenas de pessoas, as grandes secas, o movimento
abolicionista e a luta contra a oligarquia Accioly, entre outras causas. Como literato, ele
participou de importantes agremiações literárias do Ceará e teve 28 livros publicados, o que
representa um número muito alto, levando em conta o incipiente mercado editorial do
período. Mas não se tratava de um homem dedicado exclusivamente às letras. Antes de
literato, era um homem de ciência, atuava profissionalmente como farmacêutico, atividade da
qual tirava o sustento para a família e recursos para empreender em projetos variados. Ficou
conhecido nesse meio por ter sido o responsável pela fabricação da vacina contra a varíola no
Ceará. Também atuou como sanitarista, distribuindo, gratuitamente, essa vacina entre a
população pobre dos bairros mais afastados de Fortaleza. Não bastando, para complementar
sua renda, também atuou como professor de História Natural no Liceu do Ceará e como
industrial, fabricando a cajuína, famosa bebida cearense feita à base de caju.
Não é novidade que o cientificismo se fez moda nos romances naturalistas do final
do século XIX, porém, Rodolfo Teófilo não era um literato comum, ou alguém que se
dedicava exclusivamente às letras, ele era um homem envolvido com o fazer científico.
Portanto, mais do que uma influência literária, a ciência fazia parte de sua atuação
profissional e relacionava-se ao modo como ele percebia os fenômenos a sua volta. Essa
característica estava presente de forma singular e bem marcante na sua escrita. A ciência
permeava as suas visões de mundo e refletia na sua forma de representá-lo. Como afirma
Charles Pinheiro (2011, p. 137), “o estilo de Rodolfo Teófilo é o cientificismo”. Desse modo,
para adentrarmos na literatura desse autor e compreendermos as ideias nela veiculadas,
acreditamos ser fundamental destacar, mesmo que de forma breve, o valor atribuído à ciência
no século XIX para compreendermos essa produção escrita numa perspectiva mais ampla,
mas sem deixar de pontuar as especificidades inerentes a tal autor.
O século XIX é considerado o século da ciência, caracterizado por grandes
descobertas, como as leis da termodinâmica e a teoria evolucionista, as quais tiveram impacto
20

direto ou indireto na vida das pessoas e na organização das sociedades. Relacionado ao valor
atribuído à ciência, a partir da segunda metade desse mesmo século, a função desempenhada
pelo “homem de sciencia” passou a ganhar notoriedade. Ele passou a se especializar cada vez
mais e conquistar maior independência (SCHWARCZ, 1996, p. 39).
Pietra Diwan (2007) mostrou que a segunda metade do século XIX foi a era de
ouro da Biologia, a qual passou a exercer uma grande influência sobre o pensamento humano
e a elaborar explicações para os diferentes fenômenos e questões apresentadas por seu tempo,
sejam eles científicos ou não. Assim, os problemas de ordem social, econômica e política
ganharam explicações biológicas. O seu poderio originou-se das descobertas que atingiram
três campos dessa ciência: a fisiologia, a microbiologia e o evolucionismo (DIWAN, 2007, p.
27).
Na fisiologia, ciência que explica o funcionamento dos órgãos e sua relação com o
organismo, destacou-se o pensamento de Claude Bernard (1813-1878), o qual compreendia
que a vida poderia ser explicada pelo viés físico-químico. Nessa perspectiva, o organismo
vivo era visto como uma máquina que dependia do bom funcionamento de seus órgãos para
que o indivíduo se mantivesse saudável. Essa compreensão, mais restrita ao paradigma
médico, passou a influenciar fortemente o pensamento de Rodolfo Teófilo, desde que esse
começou a estudar na Faculdade de Medicina da Bahia. Destacamos que é muito comum
encontrar descrições e explicações fisiológicas para os fenômenos narrados nos romances aqui
analisados. A presença dessa perspectiva fisiológica aparece de forma muito intensa em seu
romance de estreia, A Fome:

Uma alimentação aquela que, embora copiosa, não dispensava o organismo de gastar
reservas, reparando as perdas dos tecidos. Assim, em breve estariam inanidos e
morreriam à míngua de alimentos plásticos.
Os conhecimentos de Freitas eram resumidos, não sabia de fisiologia. Para ele a
vida se mantinha à custa de qualquer alimentação. Pensando assim, a mucunã era a
mais útil de todas as plantas indígenas.
(...)
A luz vinha, mas não podia tonificar-lhes os músculos depauperados pela inanição,
relaxados pela atonia, pela fome! Nas fisionomias macilentas percebiam-se as
torturas impostas pela profunda discrasia do sangue. A miséria e os dias de jejum
gastaram as reservas nutritivas acumuladas, comeram os glóbulos vermelhos do
sangue, e, uma vez desaparecidos estes da circulação, o líquido nutritivo
desfibrado perdera uma das qualidades mecânicas, a densidade, e a vida
tornou-se penosa e aflitiva (TEÓFILO, 1979, p. 40 e 49. Grifo nosso).

Esses trechos apresentam descrições sobre as reações fisiológicas nos organismos


dos retirantes da seca, ocasionadas pelo jejum e pela alimentação pobre em nutrientes. Desse
modo, a fome, além de um grave problema social, foi pensada no âmbito patológico, como
21

um fator capaz de tornar o organismo doente e causar a morte, caso não fosse tratada. Ao
afirmar que aquele personagem, um sertanejo cearense, não possuía conhecimento de
fisiologia, Rodolfo Teófilo, através do narrador, procurou demonstrar o seu conhecimento
médico sobre o funcionamento do organismo. Essa característica se repetiu em vários
momentos da obra, tornando a leitura muitas vezes enfadonha. Talvez por uma mistura de
pedantismo com o desejo de instruir o seu público leitor, Rodolfo Teófilo deixou transparecer,
em seu romance, a forte influência da fisiologia sobre o pensamento médico do período. Esse
pensamento foi transposto para o âmbito social, de modo que a sociedade passou a ser vista
como um organismo. Diwan destaca que, segundo essa perspectiva, “é do equilíbrio da
sociedade em relação a seus grupos que dependerá a sobrevivência do Estado” (DIWAN,
2007, p. 28).
Outra ciência biológica que ganhou destaque no século XIX, após as descobertas
de Louis Pasteur (1822-1895), foi a microbiologia. A descoberta dos micróbios, causadores de
várias doenças, possibilitou a criação de vacinas e outras técnicas curativas para as doenças e
favoreceu ao desenvolvimento da saúde pública e da medicina social. Destaca-se que, no
século XIX, ainda coexistiam várias doutrinas médicas para explicar os fatores que
ocasionavam a disseminação de doenças. Essas teorias relacionavam a origem e a proliferação
da doença com o meio, seja ele natural ou socioeconômico.2
Rodolfo Teófilo não apenas tinha conhecimento de microbiologia, como também
teve uma importante atuação nesse campo, ao fabricar a vacina contra a varíola no Ceará.
Após o surto epidêmico dessa doença na província cearense, durante a seca de 1878, que
chegou a matar milhares de pessoas em um curto período de tempo, ela voltou a se manifestar
durante a seca 1900. Maria Célia Costa (2004) lembra que nesse período Rodolfo Teófilo
“montou um vacinogênio particular, que produzia vacina de qualidade, e organizou a Liga de
Vacinação do Ceará. Foi inestimável sua contribuição para extinção da varíola no estado, e,
desde 1905, são raríssimos os casos de varíola detectados em Fortaleza” (COSTA, 2004, p.
72).

2
Uma das teorias médicas mais correntes no período era a dos miasmas (doutrina miasmática), os quais
consistiam em emanações nocivas produzidas pelo ambiente, resultantes da decomposição de substâncias
orgânicas, e que eram transmitidas pelo ar. De acordo com a “doutrina telúrica”, as doenças eram produzidas por
emanações malignas provenientes do solo. Para os adeptos da “medicina das constituições”, as doenças
poderiam ser determinadas pelo clima ou por um conjunto de fenômenos naturais. Outra teoria, mais radical, era
a “teoria contagionista”, que defendia a existência de um princípio de transmissão mórbida, o qual se originava
no organismo humano e seria altamente contagioso, através do ar. Embora algumas dessas teorias se
confrontassem, muitas vezes, seus adeptos se apropriavam delas de diversas formas, fundindo-as e elaborando
explicações das mais diversas possíveis (COSTA, 2004).
22

Rodolfo Teófilo também expressou suas concepções sobre microbiologia em seu


primeiro romance. O narrador de A Fome expôs que o surto de varíola teria ocorrido devido à
elevação da temperatura, a falta de asseio entre os retirantes que viviam nos abarracamentos, a
insuficiência de vacina e a relutância da população em recebê-la (TEÓFILO, 1979, p. 155). E
continua dizendo que, nessas condições, “o contágio era inevitável! O indivíduo não vacinado
escondia-se no lugar mais recôndito de sua habitação e lá mesmo o ar leva-lhe a peste e o
micróbio se inoculava” (TEÓFILO, 1979, p. 157). Ao propor que a falta de asseio dos
retirantes pobres foi um dos fatores que favoreceu a disseminação da varíola, esse autor
deixou transparecer o seu posicionamento de homem de ciência, pertencente à elite intelectual
e adepto ao higienismo.
Ressaltamos que com a emergência da microbiologia passou a ser construída uma
concepção de higiene fundamentada na ciência, cujas medidas foram consideradas eficazes no
combate aos males que afligiam a sociedade. No entanto, o discurso higienista não se
restringia à aplicação de medidas técnicas, ele estava permeado por apreciações morais. Os
higienistas desse período não se preocupavam apenas com as formas de contágio, mas
também com outras questões, tais como as condições de vida precárias da população pobre, a
prostituição, o alcoolismo, a mendicância, entre outras. Nesse sentido, a descoberta da
microbiologia teve um forte teor ideológico, pois contribuiu para o controle social, por parte
dos detentores do poder, sobre os grupos mais pobres e desfavorecidos. Maria Clélia Costa
afirma que, devido a esse controle social exercido pelas doutrinas higienistas, “no século XIX,
o pobre perde a sua função social e torna-se perigoso, quer por ser considerado foco
disseminador de doenças ou por consistir em força política potencialmente rebelde” (COSTA,
2004, p. 61). Os médicos higienistas tiveram importante contribuição para essa forma de
poder e controle social que se estabelecia, pois eram eles que instituíam normas de
comportamento e organização do espaço urbano. “A propósito, a partir do século XIX
nenhuma intervenção urbana na sociedade ocidental foi feita sem o aparato ideológico das
doutrinas higienistas” (COSTA, 2004, p. 61).
Por último, queremos destacar a terceira grande descoberta do século XIX no
campo da biologia, o evolucionismo. Das três citadas, essa foi a que teve menor aplicação
técnica ou embasamento empírico, mas foi a que obteve maior impacto, não só no meio
científico, mas em toda a sociedade ocidental. Antes de tudo, destaca-se que o quadro teórico
evolucionista não é único e nem homogêneo. Embora, muitas vezes, o termo evolucionismo
seja confundido, equivocadamente, com darwinismo, ele foi construído por diferentes teorias,
sendo a teoria de Darwin apenas uma delas, mesmo que a mais conhecida. Nos estudos
23

biológicos, além de Charles Darwin, também contribuíram para a teoria da evolução dos seres
vivos, pela seleção natural, Alfred Wallace e Henry Bates.
O evolucionismo, nos estudos biológicos, partia da compreensão de que a luta
pela vida exigia um grande esforço por parte dos organismos vivos, sobrevivendo apenas os
que possuíam maior capacidade de se adaptar às mudanças do meio. Conforme Henrique
Barros (2003), “a evolução não leva a uma espécie mais desenvolvida, ela faz com que
espécies se adaptem a um mundo mutável não só pela ação de fatores distantes, como pela
própria presença de organismos que agem constantemente sobre o meio” (BARROS, 2003, p.
11). Essa teoria se tornou polêmica porque admitia a inconstância das espécies e a
descendência com modificação, o que se chocava com a versão do criacionismo. Nesse
sentido, reforçamos que essa teoria não teve impacto apenas científico, mas adentrou no
universo das mentalidades, desencadeou questões filosóficas e religiosas no debate científico
e reorganizou todo um quadro cultural do mundo ocidental.
Mas, a maior complexidade dessa teoria, elaborada no campo da Biologia, foi
aplicá-la aos estudos sociais e históricos, pois a teoria da evolução, proposta por Darwin e
Wallace, teve como referência o tempo da natureza, um tempo muito lento, que leva milhões
de anos para que as transformações biológicas aconteçam. Na história humana, os fenômenos
sociais acontecem em um ritmo muito mais acelerado que o tempo da natureza, ainda mais
com o advento da modernidade. A transferência de concepções evolucionistas para o campo
social fez surgir aquilo que Barros (2003, p. 13) denomina como uma anomalia no
pensamento ocidental, o darwinismo social. Anomalia porque associou a evolução das
espécies aos diferentes níveis de desenvolvimento técnico ocorrido nas sociedades humanas,
hierarquizando-as. Nesse sentido, o darwinismo social transformou uma teoria científica em
libelo ideológico para justificar o domínio de um povo sobre outros. Conceitos como
“competição”, “seleção do mais forte”, “evolução” e “hereditariedade” passaram a ser
largamente aplicados nas análises dos comportamentos humanos e sociais. O darwinismo foi
amplamente apropriado e até mesmo distorcido pelas diferentes disciplinas sociais –
antropologia, sociologia, história, teoria política e economia –, formando, assim, uma geração
social-darwinista.
Acreditava-se que o universo era uno e, portanto, todas as esferas – o homem, a
sociedade, a cultura, a arte, o mundo físico-natural – estariam submetidos às mesmas leis.
Sendo a ciência um saber universalista, com o seu notável poder de síntese sobre os
conhecimentos existentes, ela seria a única capaz de fornecer instrumentos para a
compreensão e descrição das leis que regem o universo. “Defendia-se, deste modo, que a
24

ciência era capaz de produzir um saber direto, objetivo e imediato do qual estaria
automaticamente excluída a presença subjetiva do estudioso, capaz de produzir um saber
positivo, colado à realidade” (MURARI, 2009, p. 67).
Foi em meio à euforia das descobertas do século XIX que as ciências naturais se
difundiram rapidamente, assim como também os seus métodos de observação e
experimentação da realidade. Esses métodos passaram a ter grande importância por serem
considerados eficazes para explicar o mundo físico. A ciência passou a se constituir não
apenas como a forma de saber superior às demais, mas também, como a única capaz de
promover a redenção da humanidade, rumo ao progresso.
De acordo com Melo e Aquino (2014), a “era da ciência” se colocou em
contraposição à “era dos mitos” e passou a criticar tudo o que pudesse se relacionar às
explicações tidas como fantasiosas e ilusórias do real, tais como as religiões3 e os mitos. Essa
tendência está ancorada na materialidade do seu objeto, ou seja, aquilo que pode ser
observado, controlado, manipulado e medido. Porém, esses autores nos mostram que “a era da
ciência além de conservar a consciência mítica – já que o mito é inerente ao homem – cria seu
próprio mito: o mito da ciência” (MELO, AQUINO, 2014, p. 94). Foi desse novo mito que se
construiu a base do cientificismo, tão marcante no século XIX e no pensamento de Rodolfo
Teófilo. Entendemos o cientificismo como algo que extrapola o fazer científico e se constitui
em uma ideologia que “cria um conjunto de ideias, princípios e valores que refletem sua visão
de mundo, onde por considerarem detentores do monopólio do saber objetivo e racional,
julgam-se detentores da única verdade possível” (MELO, AQUINO, 2014, p. 94).
É comum aos deterministas, assim como aos cientificistas, de um modo geral,
recorrer ao tradicional prestígio da ciência como um conhecimento objetivo, livre de qualquer
tipo de paixão ou interferência social e política. Stephen Gould (2014) mostrou que até as
pesquisas ditas exatas, que creditam grande confiabilidade nos números, podem ser
distorcidas ou manipuladas, mesmo que de forma inconsciente. Isso pode ocorrer desde o
estabelecimento de critérios de análise à forma como esses dados são expostos, organizados e
interpretados.
Por meio de uma perspectiva anacrônica, é fácil acusarmos os deterministas
biológicos de cometerem absurdos em nome da ciência. Porém, Stephen Gould afirma que
muitos deles não cometiam equívocos propositalmente e nem eram maus cientistas. Pelo

3
Isso não significa dizer que todos os cientistas se dispuseram de suas crenças religiosas. Muitos estudiosos
procuraram conciliar o conhecimento científico com o pensamento teológico e os dogmas religiosos, tornando,
por exemplo, o debate evolucionista cada vez mais complexo.
25

contrário, eles realizavam suas pesquisas com seriedade e ganharam grande respeito e
credibilidade entre seus pares. Entretanto, não convém acreditar que algum cientista consegue
se despir de suas crenças, paixões ou interesses e realizar um trabalho imparcial. “A ciência
deve ser entendida como um fenômeno social, como uma empresa corajosa, humana, e não
como o trabalho de robôs programados para recolher a informação pura” (GOULD, 2014, p.
5). Por se tratar de uma atividade realizada por seres humanos, a sua natureza é de cunho
social e não poderia ser diferente. Assim, a suposta neutralidade científica é uma quimera,
pois quando um cientista traça uma definição para seu objeto, a todo o momento ele faz
escolhas e pressupõe resultados, baseado em crenças preexistentes.
Uma forma clara de percebermos o quão ilusória é a ideia de imparcialidade das
pesquisas científicas, é que muitas delas partem de interesses particulares e satisfazem a
algum tipo de disputa pelo domínio do “poder”. Com a ideologia do cientificismo, o
conhecimento passou a ser, cada vez mais, instrumento de diferenciação social e de domínio
do poder. Melo e Aquino nos falam sobre essa forma de diferenciação:

O cientificismo tem a ciência não só como base de trabalho, conhecimento e


progresso para uso exclusivo do bem estar da humanidade. Tem em suas verdades a
expectativa de resultados sensacionalistas, de modo a mostrar todo um “poder”
social, político e econômico. Mas o principal problema na exposição destes
resultados está no controle exercido sobre o pensamento humano. Porque surge a
ideia de que existem aqueles que sabem e dominam o conhecimento, e os que não
sabem e são submetidos aos que detém o conhecimento. Os primeiros são
competentes e têm o direito de mandar e exercer poderes, enquanto os segundos são
incompetentes, devendo sempre obedecer ao que é definido. Enfim a sociedade
acaba por se dividir em dois blocos, os que mandam e sabem por que mandam e os
que obedecem e nem sempre sabem porque obedecem. O que acontece é que a
ideologia é um autêntico mecanismo de defesa dos interesses de determinado grupo.
O objetivo da ideia é justificar este domínio exercido sobre a sociedade,
apresentando o real como homogêneo e criando o mito da neutralidade científica,
que foi produzido por uma elite pensante da ciência (MELO, AQUINO, 2014, p.
96).

Para os adeptos do cientificismo, sendo a ciência o único conhecimento objetivo,


racional e verdadeiro sobre a realidade, apenas os detentores desse conhecimento teriam
capacidade para decidir sobre o caminho a ser seguido pela sociedade. É desse modo que
muitos dos homens de ciência do século XIX fizeram da mesma uma espécie de sacerdócio, a
qual conduziria a humanidade rumo ao progresso e à evolução. No Brasil, de acordo com
Nicolau Sevcenko (1989), essa crença na ciência constituía-se numa visão otimista sobre a
organização do processo histórico:
26

A crença no mito novecentista da ciência – intensificado na Belle Époque –


consagrava-se como o único meio prático e seguro de reduzir a realidade a leis,
conceitos e informações objetivas, as quais, instrumentalizadas pelo cientista,
permitiram o seu perfeito domínio. Uma ciência sobre o Brasil seria a única maneira
de garantir uma gestão lúcida e eficiente de seu destino (SEVCENKO, 1989, p. 85).

O pesquisador mostra que os intelectuais brasileiros, no final do século XIX –


momento em que o país passava por transformações, principalmente com a crise do sistema
escravista e do governo monárquico –, creditavam muita esperança no futuro do país. Mais do
que isso, eles se viam como o lume do progresso, os representantes dos novos ideais de
acordo com o espírito da época, a indicar o único caminho seguro para a sobrevivência e o
futuro do país. E esse caminho seria indicado pela ciência. Como veremos, esse pensamento
estava muito presente na literatura de Rodolfo Teófilo, ao tratar sobre a vida dos sujeitos por
ele representados, principalmente, os sertanejos pobres, mestiços e incultos. Ele, na condição
de homem de ciência, acreditava que estava incumbido da missão de guiar aqueles sujeitos
pelo melhor caminho na superação de adversidades como a ignorância, a pobreza, a seca, a
migração e as doenças. E mais do que isso, no seu papel de cientista, esse literato acreditava
que sua escrita tinha uma função quase que missionária de instruir e educar a população
ignorante, para evitar a repetição de alguns erros ocasionados pela falta de conhecimento,
como, por exemplo, a morte de muitos retirantes por envenenamento da mucunã nos períodos
de estiagem. Por meio dos seus escritos, “Rodolfo Teófilo pretendia educar. Sendo a atividade
letrada o principal meio de comunicação da época, o escritor usou-se largamente dela como
meio informativo e educativo” (ALENCAR, 2002, p. 103).
O discurso científico foi, assim, transformado em uma visão de mundo, que se
instalou nas diversas áreas do conhecimento e da produção escrita. Estava presente na
historiografia, na crítica, nos estudos sociais, no direito e mesmo na poesia. Como observou
Machado de Assis em 1879, “a nova geração frequenta os escritores da ciência; não há poeta
digno deste nome que não converse um pouco, ao menos, com os naturalistas e filósofos
modernos” (MURARI, 2009, p. 69). Para compreendermos como a literatura de Rodolfo
Teófilo se inseria nos ditames científicos da época e o valor por ele atribuído a esse tipo de
produção, destaca-se também como a literatura era concebida pela intelectualidade brasileira
na passagem do século XIX para o XX e sua relação com a ciência.

Nas últimas décadas do século XIX, a literatura que não só possuía um status
privilegiado entre a intelectualidade brasileira – juristas, cientistas, médicos e
engenheiros eram também prosadores e poetas – como possuía uma inaudita
continuidade com os estudos científicos e técnicos e com a análise sociológica [...]
(MURARI, 2009, p. 34).
27

O século XIX é a época em que “a ciência serve de rótulo ao literato”


(SCHWARCZ, 1993, p. 43). E esse perseguiu um desejo de, por meio de seus escritos,
repercutir o pensamento científico ao máximo possível, a fim de garantir uma suposta
objetividade literária. Com efeito, a moda cientificista entrou no país por meio da literatura e
não da ciência mais diretamente. “O século XIX chegou até nós através da literatura”,
escreveu a historiadora Maria Stella Brescianni (1986). Tal afirmação é crucial para
compreendermos o lugar ocupado pela literatura naquele período. Para além do papel de
representar uma sociedade, a literatura, sendo um dos principais veículos de divulgação do
pensamento, produzia a própria definição do ser social. Sobre essa “missão” desempenhada
pela literatura no século XIX, Sevcenko afirmou que:

As décadas situadas em torno da transição dos séculos XIX e XX assinalaram


mudanças drásticas em todos os setores da vida brasileira. Mudanças que foram
registradas pela literatura, mas, sobretudo mudanças que se transformaram em
literatura. Os fenômenos históricos se reproduziram no campo das letras, insinuando
modos originais de observar, sentir, compreender, nomear e exprimir. [...] Fruto das
transformações, dedicada a refletir sobre elas e exprimi-las de todo modo, essa
literatura pretendia ainda mais alcançar o seu controle, fosse racional, artística ou
politicamente. Poucas vezes a criação literária esteve tão presa à própria epiderme da
história tout court (SEVCENKO, 1983, p. 237).

Ao afirmar que a criação literária esteve tão presa à epiderme da história, o que o
autor propõe não é uma relação de dependência, mas ressaltar o atuante papel da literatura
como registro, leitura e interpretação de aspectos múltiplos daquele complexo e diversificado
período histórico, apontando, assim, para a possibilidade de um frutífero diálogo entre Clio e
Calíope. A partir dessa perspectiva, a criação literária revela todo o seu potencial como fonte
histórica, não apenas pela referência a episódios e fatos históricos, mas como uma instância
multifacetada, repleta das mais variadas significações e sentidos.
E a forma literária por excelência da era do cientificismo é o romance naturalista.
“Minha crença é que o naturalismo, ou seja, o retorno à natureza, o espírito científico levado a
todo o conhecimento, é o agente mesmo do século XIX” escreveu Émile Zola, ideólogo e
realizador máximo do movimento (MURARI, 2009, p. 127). Sobre o projeto estético
naturalista, Charles Pinheiro (2011) destaca:

O projeto estético do Naturalismo foi assaz ambicioso. Os escritores visavam


representar fidedignamente a realidade em seus romances, tomando a ciência como
único método válido para o processo de feitura literária. Para expor as contradições e
as chagas da sociedade moderna, recortavam um fato e o trataram como um caso
28

patológico a ser investigado à luz da ciência experimental (PINHEIRO, 2011, p.


121).

Como podemos ver, esse projeto estético literário tinha uma proposta de escrita
muito bem definida, que era a de representar fielmente a realidade, a partir do método
científico. Porém, diante da dificuldade – e hoje reconhecida impossibilidade – de alcançar
um objetivo tão audacioso, e diante do valor que era atribuído a essa objetividade, alguns
literatos disputavam, entre si, pela posse da verdade e pela filiação ao Naturalismo. Sem
propor uma explicação simplista para o fato, e evitando qualquer julgamento de valor,
destacamos a famosa disputa literária entre Adolfo Caminha e Rodolfo Teófilo.4
Charles Pinheiro (2011, p. 117) lembra que quando Zola, expoente do naturalismo
francês, estava elaborando um novo romance, ele fazia questão de vivenciar pessoalmente a
realidade que seria figurada. Registrava tudo que lhe chamasse atenção, por meio de
anotações, fotografias e entrevistas. Enfim, ele realizava um aprofundado estudo de campo e
coleta de dados. Nisso consistia o seu método experimental, em fotografar a realidade e
representá-la da forma mais fiel possível. Para Charles Pinheiro, Rodolfo Teófilo foi um
escritor que adotou de forma radicalizada esse método experimental de Zola. O autor d’A
Fome tinha esse anseio de que o seu primeiro romance fosse um retrato fiel das situações
vividas durante a seca de 1877. Desse modo, vejamos as declarações de Rodolfo Teófilo em
resposta a Adolfo Caminha às acusações de ter faltado com a verdade, ao escrever esse
romance:

De todas as injustiças que o Srº Caminha faz A fome a que mais me doeu e me
revoltou mesmo foi a falta de verdade nas scenas que descrevo. Tenho consciência
do contrario; percorri os abarracamentos, ouvi com grande attenção e piedade as
narrativas dos infelizes famintos e assim julguei ter photographado no meu livro,
não todos os episódios d‟essa angustiosa época, pois os que julguei mais
extraordinários sob o ponto de vista das mizerias humanas. Esse assumpto tratado
por Alencar, Aluisio ou Guerra Junqueiro daria paginas admiráveis de estylo e
verdade, diz o meu crítico. O meu amor próprio nunca cogitou de elevar-me às
grandes alturas onde pairam as águias. Não foi a ambição de glórias, de renome que
me fez escrever a historia da secca, mas a necessidade de deixar escriptas algumas
informações desse tempo aos nossos posteros. A minha envergadura é pequena para
alar-me as cumeadas onde estão Alencar, Aluísio e Junqueiro, e sei que descrevendo
a secca elles dariam paginas de melhor estylo, de mais arte, porem de mais verdade a

4
Para Charles Pinheiro, esses literatos, mesmo reivindicando uma escrita naturalista, trilhavam percursos
diferentes no fazer literário. Adolfo Caminha defendia o romance como documento social, mas as suas
influências mais profundas eram Eça de Queirós e Gustave Flaubert, enquanto Rodolfo Teófilo adotou o método
experimental de Zola, porém, de forma radicalizada. Pinheiro afirma ainda que em território brasileiro essas
influências se bifurcaram, havia os autores que acolhiam o modelo francês zolariano, outros o modelo português
queirosiano. “A diferença entre ambos foi que Eça de Queirós não adotou plenamente as ortodoxias das normas
naturalistas. Contudo, os dois autores faziam parte das leituras dos intelectuais brasileiros no final da década de
1870 e na década de 1880” (PINHEIRO, 2011, p. 113).
29

minha consciência diz que não [...] (TEÓFILO, O Pão, Nº 26, 15 de Outubro de
1895, p. 4).

O que podemos perceber é que Rodolfo Teófilo, ao reivindicar o status de verdade


em sua obra, se ancorou nos mesmos procedimentos utilizados por Zola. Tais procedimentos
foram demonstrados e justificados no fato de ter percorrido os abarracamentos e ter ouvido as
narrativas dos famintos. Para enfatizar ainda mais a sua observação rigorosa, ele utilizou a
metáfora “fotografar” em referência ao seu fazer literário. Desse modo, o que esse autor
naturalista tentou demonstrar é que seguiu a risca o método experimental de apuração dos
fatos para a escrita de seu romance. Rodolfo Teófilo tinha esse anseio de que o seu romance
fosse uma representação fiel da realidade, de tal modo que a obra literária só teria valor se
fornecesse um espelho fiel da realidade, uma fotografia. Para ele, nisso consistia o valor maior
de sua obra, aspecto esse que se sobrepôs até mesmo à arte de escrita. Sobre a forma como um
texto naturalista é trabalhado, Flora Süssekind (1984) vem dizer que:

Quando um romance tenta ocultar sua própria ficcionalidade em prol de uma maior
referencialidade, talvez os seus grandes modelos estejam efetivamente na ciência e
na informação jornalística, via de regra consideradas paradigmas da objetividade e
da veracidade. O leitor de uma obra científica ou de uma notícia de jornal pouco
observa a linguagem com que foram escritos, contanto que lhe transmitam uma
impressão de veracidade. Contanto que pareçam apontar para além de si mesmos,
para um mundo e uma linguagem extratextuais. Do mesmo modo, o leitor de um
texto “naturalista” é conduzido para fora da linguagem. Como se as emoções e a
sedução que a leitura porventura lhe possa provocar não adviessem de um texto, de
um modo próprio de narrar, de uma ficção internamente trabalhada. Oculta-se todo o
trabalho da linguagem, dissolve-se a ficcionalidade própria ao romance e obriga-se o
leitor a olhar o fato ficcional sempre em analogia a um referente extratextual ao qual
deve obrigatoriamente corresponder o mais possível (SÜSSEKIND, 1984, p. 37-38).

Ao ocultar todo o trabalho de linguagem em prol de uma suposta objetividade, a


literatura naturalista pode convencer o leitor que aquela obra literária consegue se despir da
ficcionalidade. Contudo, a Literatura jamais poderia ser uma fotografia da realidade, pois sua
natureza é linguística, simbólica e metafórica. O que prende o leitor àquela leitura e a torna
tão sedutora não é apenas o referente extratextual, mas a forma como a narrativa é construída,
um modo próprio de narrar, de uma ficção internamente trabalhada. Logo, nem mesmo a
literatura naturalista consegue refletir uma imagem fiel da realidade, pois consiste em uma
recriação da mesma e nela se apoia para deformá-la.
O uso acentuado do método experimental por Rodolfo Teófilo, na construção de
seu primeiro romance, reflete uma concepção mais ampla por ele defendida enquanto
cientista. Tal concepção é a de que o único método válido para a construção do conhecimento
30

é o experimental. No tratado a seguir, retirado da revista A Quinzena, sobre a história da


Física, Teófilo destaca o método experimental como um divisor de águas para o avanço do
conhecimento científico:

A physica tem também a sua história. (...) Não conheciam o methodo experimental,
contentavam-se com a observação dos factos, porém uma observação toda
incompleta. Nunca pediram à experiência a confirmação do que observavam. As
suas pesquizas não se bazeavam na analyse experimental, explicavam tudo conforme
as exigências de suas concepções puramente ideaes, e queriam assim penetrar nos
mysterios da natureza! De utopia em utopia pretendiam chegar ao descobrimento das
leis immutaveis que regem o mundo material. (...)
A base do estudo da physica foi então lançada e os laboratórios convertidos em
escolas do methodo experimental, cujas leis Bacon dictou em uma celebre obra o
Novum organum. O systema analytico alargava todos os dias o campo das
descobertas e cada século que passava registrava grandes inventos devidos ao
methodo experimental. É assim que Galileu escreve as leis do pendulo; Descartes
publica a sua Dioptrica; Pascal lança as bases da hydrostatica em um livro sobre o
equilíbrio dos liquidos; Newton publica um tratado de ótica e tão importante
n‟aquella época que illustrou o seu nome. Os limites da physica estavam traçados
(Teófilo, A quinzena, nº 15, 26 de Agosto de 1887. p. 118-119).

Segundo Teófilo, os cientistas antigos não conheciam o método experimental e,


por isso, produziam uma forma de conhecimento inferior, cujas concepções eram puramente
ideais. Os resultados foram formulações utópicas sobre as leis que regem o mundo material.
Com isso, ele sustentou que o único método válido para a construção do conhecimento era o
experimental. A partir desse método, os campos das descobertas alargaram-se e grandes
inventos passaram a ser registrados ao logo dos séculos. Teófilo também ressaltou os nomes
dos cientistas que formaram a base do avanço científico: Bacon, Galilei, Descartes, Pascal e
Newton, cada qual, em seu ramo de pesquisa. E, por fim, ao declarar que “os limites da
physica estavam traçados”, esse intelectual transpôs a sua radical crença na ciência como
revelação de todos os mistérios da natureza. Guardadas as especificidades de cada disciplina,
o que se pode afirmar é que em todos os lados reformulavam-se concepções científicas
arraigadas e faziam-se das pesquisas e experimentações procedimentos de contestação às
antigas concepções.
O que se buscou demonstrar até aqui foi a forte presença do cientificismo na
escrita de Rodolfo Teófilo. Ressalta-se que, muitas vezes, ele recorreu a um largo uso de
termos científicos para expressar seus conhecimentos acerca de determinado assunto. Essa
prática de escrita não se restringia aos seus artigos científicos. O uso de termos científicos
estava disseminado também em suas obras literárias, o que favorecia a uma escrita, muitas
vezes, difícil e comprometida esteticamente, segundo afirma alguns de seus críticos. Como,
31

por exemplo, o próprio Adolfo Caminha, a quem ele respondeu, por meio do periódico
literário da Padaria Espiritual, O Pão:

Não duvido que a leitura quotidiana de obras de sciencia me tenha feito cahir
n‟essa falta, mas não a ponto de sacrificar em scenas que descrevo a esthetica dos
quadros que pinto. Quer o meu critico que eu chame passarinha em vez de baço,
dordólho em vez de conjunctivite, ar do vento, Ave Maria, em vez de hemiplegia?!
Não, Sr. Caminha, o modo de dizer deve estar de perfeito accordo com a cultura
intellectual do individuo (Teófilo, O Pão, Nº 27, 1 de Novembro de 1895. p. 3.
Grifo nosso).

Nesse trecho, Rodolfo Teófilo se declarou um leitor constante de obras científicas,


revelando, assim, a sua principal influência estética. Ao afirmar que o modo de dizer deve
estar de acordo com a cultura intelectual do indivíduo, esse literato atentou para o fato de que,
sendo ele um cientista, o seu modo de dizer seria de um cientista. Sobre o rigor científico
aplicado por Rodolfo Teófilo na sua produção literária, Charles Pinheiro estabeleceu um
paralelo entre ele e Zola: “Zola foi um romancista que se apoiou na ciência e Rodolfo Teófilo
foi um cientista que se tornou romancista. Rodolfo Teófilo era verdadeiramente aquilo que
Zola pretendia ser: um cientista” (PINHEIRO, 2011, p. 120).
Rodolfo Teófilo foi um escritor que reivindicou de forma intensa e particular essa
escrita ancorada nas leituras científicas. Mais do que uma influência literária, a ciência
relacionava-se ao modo como ele analisava a realidade. E como mostra Lilia Schwarcz,
“havia uma tendência no século XIX que via a ciência não apenas como profissão, mas como
uma espécie de sacerdócio” (SCHWARCZ, 1993, p. 39). É nítido o propósito de Rodolfo
Teófilo em se autorrepresentar como um homem de ciência, ou como aquele que detém o
mais amplo conhecimento científico. Essa foi uma forte tendência em todo meio intelectual
brasileiro de finais do século XIX, e não apenas por parte dos homens de ciência. “Nos
institutos, nos jornais, nos romances, era como uma sociedade científica e moderna que no
Brasil de finais do século XIX pretendia se autorrepresentar” (SCHWARCZ, 1993, p. 41).

2.2 O DEBATE NATURALISTA NO CEARÁ E A CONTRIBUIÇÃO DE RODOLFO


TEÓFILO ÀS PRÁTICAS LETRADAS DE SUA PROVÍNCIA

O período oitocentista foi marcado por um conjunto de teorias formuladas por


pensadores europeus, tais como o positivismo, o evolucionismo, o darwinismo, os diferentes
tipos de determinismos, entre outras. Essas teorias encontravam na ciência o lugar de
32

enunciação de um discurso portador de verdade. A década de 1870 foi um momento crucial


para o meio intelectual brasileiro, pois correspondeu ao momento de abertura para essas novas
ideias cientificistas. Destaca-se que a entrada desse novo ideário no Brasil não se deu de
forma isolada, ela fez parte de uma onda modernizadora alavancada pelo Imperialismo e pela
expansão do capitalismo internacional.
Fortaleza, assim como uma boa parte das capitais brasileiras, integrava-se ao
sistema de mundialização do capitalismo e já realizava um intenso comércio com as nações
industrializadas, principalmente, com a expansão da economia algodoeira na década de 1860.
Mas, desde a década de 1850, algumas firmas comerciais que estabeleciam comércio direto
com a Europa já haviam se instalado em Fortaleza. Primeiro, por meio dos vapores ingleses e
depois de outras nações como Estados Unidos e França. Destaca-se que foram os franceses os
que mais investiram nessas casas comerciais (TAKEIA, 1995). Nos portos da capital cearense
circulavam variados produtos estrangeiros, assim como ideias.

Certamente, dentre outros gêneros podemos destacar os livros, revistas e jornais e


podemos imaginar, entre os transeuntes na beira do porto, Joaquim José de Oliveira
e seus funcionários identificando, dentre os caixotes recém desembarcados, aqueles
que traziam as encomendas de seus clientes: a última edição da Revue de Deux
Mondes (...). Pelos malotes do correio marítimo que eram desembarcados na
Alfândega da cidade chegavam os livros de Taine, Spencer, Darwim, Burkle e
outros (OLIVEIRA, 2002, p. 17).

Gleudson Cardoso (2000) afirma que “indiscutivelmente, o intercâmbio comercial


com as ‘nações civilizadas’ possibilitou um fluxo mais intenso de leituras que chegavam ao
Ceará” (CARDOSO, 2000, p. 56). Porém, diante da efervescência de novas ideias e padrões
de comportamentos ditados pela modernidade, ressaltamos que a recepção dos textos
produzidos na Europa não se dava de forma aleatória. Esse aporte teórico era, criteriosamente,
selecionado e condizente com os interesses de determinadas camadas sociais, representadas
pela intelectualidade brasileira. Como afirmou Nélson Werneck Sodré, em O Naturalismo no
Brasil, o Naturalismo não ocorreu por simples acidente. Esse novo movimento literário – e as
concepções científicas, filosóficas e políticas ligadas a ele – chegaram ao país em um
momento muito oportuno, “numa fase de mudança, quando as velhas estruturas,
profundamente ancoradas no passado colonial, sofriam forte abalo” com a crise do sistema
escravista e as alterações ocasionadas pelo “avultamento da pequena burguesia” (SODRÉ,
1998, p. 168).
33

Sevcenko contribuiu com esse pensamento ao afirmar que o Realismo e o


Naturalismo no Brasil representavam uma sociedade multifragmentada, resultante desse
rompimento com o sistema de hegemonia de uma elite uniforme (SEVCENKO, 1983, p. 227).
Os intelectuais brasileiros das últimas décadas do século XIX representavam bem os anseios
dessa sociedade multifragmentada. Se, por um lado, eles ainda não haviam cortado
completamente o cordão umbilical que os ligavam à elite rural, por outro, eles já não eram
mais totalmente dependentes desse grupo. Eles transitavam no espaço urbano, viam-se como
os representantes dos novos ideais científicos e os responsáveis por guiar a sociedade rumo ao
progresso, procurando intervir socialmente e homogeneizar um discurso científico e literário.
Desse modo, em Fortaleza, assim como em outras capitais, o desenvolvimento
econômico foi acompanhado por um desenvolvimento intelectual e se deu à luz de um novo
grupo social, a classe média urbana. Essa nova classe era bem heterogênea e composta por
diversos segmentos, como os profissionais liberais, bacharéis, estudantes, militares,
empregados de escritórios, amanuenses e pequenos comerciantes, os quais viviam informados
sobre as novidades do pensamento europeu. Muitos intelectuais cearenses eram advindos das
camadas mais privilegiadas. Mas, nesse período, houve um aumento significativo do número
de jovens oriundos das classes médias que conseguiam se inserir nesse meio intelectual.
Exemplo disso é o caso de Rodolfo Teófilo5 que, de simples caixeiro, conseguiu se tornar
farmacêutico, professor no Liceu do Ceará e publicar vários livros. Esse intelectual fez parte
de uma geração que via nos estudos uma forma de ascender social e intelectualmente. Mais do
que isso, entendia que apenas aqueles que fossem portadores de uma cultura letrada
alcançariam a mais autêntica forma de emancipação humana.
Como lembra Lilia Schwarcz, a década de 1870 também foi o período de
fortalecimento das instituições responsáveis pela produção e difusão do saber no Brasil –

5
Rodolfo Teófilo, em sua obra Scenas e typos, descreveu que sua descendência remonta aos senhores feudais da
região sul do Ceará, o Cariri. Registra-se que em sua linhagem havia parentesco com a poderosa família dos
“Feitosa”, o que o aproxima de Clóvis Bevilácqua e Juvenal Galeno. Porém, apesar dessa linhagem e embora
tenha sido filho e neto de médicos, Rodolfo Teófilo, através de seus relatos, revelou também que teve uma difícil
infância e adolescência. Aos nove anos, sendo o irmão mais velho de uma enorme família, a morte de seu pai
deixou todos na miséria. Sob a tutela do padrinho foi estudar o primário como aluno interno do Ateneu Cearense.
Após algum tempo, seu padrinho se eximiu dessa responsabilidade. Para continuar seus estudos no Ateneu,
Rodolfo Teófilo passou a dar aulas de reforços, durante dois anos, como forma de pagamento. Mesmo se
esforçando muito, diante da sobrecarga, não conseguiu dar conta e foi reprovado nos exames para tentar
ingressar no terceiro ano. Teve que sair do internato e se empregar no comércio como caixeiro-vassoura. Essa
fase de sua vida foi narrada em seu livro de reminiscências O Caixeiro (1927). Ele relatou com amargura que era
tratado quase como um “escravo branco” e compreendeu desde cedo que só o livro o libertaria. Os estudos eram
o único meio do qual ele dispunha para se inserir no campo do poder e conseguir realizar o sonho de ser médico,
tal como seu pai e seu avô. Embora não tenha conseguido fazer o curso de medicina, ele conseguiu, com muitas
dificuldades, cursar Farmácia na Faculdade de Medicina da Bahia. E para conseguir se sustentar, durante esse
período que esteve fora, precisou trabalhar no Hospital Militar da Bahia.
34

como os museus etnográficos, as faculdades de direito e medicina, e dos institutos históricos e


geográficos – as quais tiveram grande contribuição para a discussão das teorias cientificistas
entre os intelectuais brasileiros (SCHWARCZ, 1993, p. 19). Grande parte dessa jovem
geração de intelectuais cearenses realizava seus cursos superiores em uma das faculdades de
direito ou medicina das províncias vizinhas, principalmente em Recife e Bahia, mas também
no Rio de Janeiro e em São Paulo. Foi em uma dessas instituições que muitos deles tiveram
seus primeiros contatos com as leituras de sabor cientificista, o que possibilitou que os
mesmos pudessem elaborar análises sobre a realidade de sua terra com base nessas leituras.
Havia um grande movimento daqueles jovens intelectuais que realizavam seus cursos
superiores em outras províncias e depois retornavam ao Ceará. Também era “bastante comum
que os intelectuais que elaboravam seus estudos em outras províncias enviassem seus
trabalhos para sua terra natal, dessa forma havia uma circulação de diversos trabalhos”
(MONTEIRO, 2014, p. 130).
Destacamos que foi nessa mesma década que Rodolfo Teófilo se formou em
Farmácia na Faculdade de Medicina da Bahia. Segundo o seu biógrafo Waldy Sombra (1997),
o ingresso ao ensino superior exigia que se fizessem os exames preparatórios em Recife, São
Paulo ou Rio de Janeiro. Rodolfo Teófilo teria cursado esses preparatórios em Recife, durante
o período de quatro meses (de dezembro de 1872 a março do ano seguinte) e não se sabe em
que medida ele teve contato ou não com as ideias cientificistas debatidas naquela intuição. O
que podemos afirmar é que na faculdade baiana, onde cursou Farmácia por três anos (de 1873
a 1875), ele teve acesso a um conjunto de leituras que serviram de base ao seu pensamento
cientificista. Isso não significa dizer que suas concepções tenham se limitado apenas ao que
era difundido nessa instituição ou, menos ainda, que as suas leituras científicas tenham se
limitado a esse período. Como afirmado antes, o cientificismo esteve muito presente na vida
desse literato. Os seus relatos autobiográficos demonstram que ele era um ávido leitor, mas
nem sempre há tanta clareza sobre quais eram os teóricos que ele lia, por isso, a dificuldade
em delinearmos o seu pensamento.
Foi dentro dessas instituições de ensino superior que a nova geração de
intelectuais encontrou um ambiente propício a uma discussão mais científica e um pouco
desvinculada dos interesses das elites agrárias. Longe de se constituírem um grupo
homogêneo, esses intelectuais representavam diferentes setores sociais, econômicos e
regionais, mas compartilhavam das mesmas matrizes teóricas, em um mesmo ambiente
científico, embora as interpretações e apropriações fossem múltiplas. Guiados pelo ideal de
progresso que a ciência seria capaz de promover, ao regressarem à província cearense, muitos
35

desses bacharéis e homens de ciência retornavam instigados pelo desejo de transformações


sociais, políticas, filosóficas e literárias.
Um importante espaço intelectual propício a essas discussões, na capital cearense,
foram as agremiações e associações literárias que surgiram nessas últimas décadas do século
XIX. Ainda nos anos de 1870, a Academia Francesa surgiu em defesa do conhecimento
científico – como o único capaz de promover o progresso da sociedade – e em combate às
estruturas tradicionais, representadas pela igreja e pela monarquia. Ela era composta,
principalmente, por intelectuais formados em Recife. Embora Rodolfo Teófilo não tenha
participado dessa agremiação, ela serviu de paradigma para muitos intelectuais cearenses e
para as futuras agremiações cearenses. Esse movimento, que era mais filosófico do que
literário, propriamente dito, foi responsável por introduzir as bases do pensamento
cientificista e naturalista no Ceará.
Segundo Cícero Costa Filho (2007), a diferenças entre a Escola de Recife e a
Academia Francesa consistia no fato de que a primeira prezava mais por uma compreensão
em termos raciais sobre a sociedade, a raça era o elemento basilar de suas análises, já a
segunda partia dos elementos mesológicos para explicar a sociedade cearense (COSTA
FILHO, 2007, p. 70-71). Entretanto, ambas compunham uma geração de intelectuais que
alguns autores denominam como Geração de 18706 ou Geração Modernista de 1870
(ALONSO, 2000; MURARI, 2009; SEVCENKO, 1983; VENTURA, 1991). No Ceará, ela
ficou mais conhecida como Mocidade Cearense7 (CARDOSO, 2000; COSTA FILHO, 2007).
O determinismo geográfico de Friedrisch Ratzel (1844-1904) e Henry Thomas
Buckle (1821-1862) foi uma vertente determinista que influenciou de forma muito
significativa a Geração de 1870 e estabelecia que o desenvolvimento de um povo fosse
condicionado pelo meio.8 Ressalta-se que essa concepção ensejava um leque de possibilidades
para analisar as condições de desenvolvimento de um lugar. No Ceará, os intelectuais se

6
Ao estudar sobre a Geração de 1870, Ângela Alonso (2000) mostrou que esse foi um movimento político e de
reformismo que teve por base as teorias científicas europeias. Esse movimento contestava as instituições
brasileiras tidas como conservadoras – Império, Igreja e escravidão – e que dificultavam o avanço do progresso
no país. Entendendo que no século XIX não era possível falar em um campo intelectual autônomo do político, a
experiência da geração de 1870 foi diretamente política. Esses intelectuais buscavam se inserir e reformar as
instituições políticas, mas não propunham transformações na ordem social, pois, embora constituíssem uma nova
classe social urbana, muitos desses indivíduos descendiam dos grandes proprietários rurais. Assim, o movimento
é entendido por essa autora como um movimento de contestação, ou mesmo reformismo.
7
Cícero Costa Filho explica que a Mocidade Cearense se constituía em uma geração bacharelesca e urbana.
Muitos desses intelectuais descendiam dos grandes proprietários rurais, mas que, formados em instituições de
ensino superior e munidos do conhecimento científico do período, “irão defender no meio urbano os ideais da
‘geração moderna cearense’, clamando por ‘civilização’ e ‘progresso’, pregando uma espécie de ‘regeneração
social’” (COSTA FILHO, 2007, p. 62-63).
8
Na Europa, as formulações e estudos sobre o meio haviam sido tratadas, inicialmente, por Buffon, mas foi
Buckle o seu teórico que obteve maior adesão em território brasileiro.
36

apropriaram dela de diversas formas para explicar o atraso material da província. O meio
poderia abarcar tanto os elementos físicos (mesológicos) – como o clima quente, a falta de
chuvas (secas), o solo arenoso e pouco fértil – quanto o meio social, caracterizado por uma
economia fundada na criação de gado e uma sociedade, predominantemente, rural e
analfabeta. “Portanto, a pobreza material do Ceará, devido a sua economia de criação de gado
e assolada por suas secas subsequentes em função de sua posição geográfica, constitui o
apanágio de sua cultura ou de sua historiografia literária” (COSTA FILHO, 2007, p. 25).
Afirmar que essas concepções foram apropriadas pela intelectualidade cearense
para explicar o desenvolvimento social da província, se torna uma assertiva bastante ampla,
pois cada um daqueles indivíduos se apropriava delas de diferentes formas. Cada um elegia
diferentes fatores como determinantes para a composição daquela realidade. O objetivo nesse
tópico é exatamente apresentar, resumidamente, as principais bases do pensamento social
cearense do período, para, assim, compreendermos e nos aprofundarmos nas análises de
Rodolfo Teófilo, as quais, embora possuam elementos comuns a outros intelectuais, não se
igualam a elas, pois também possui suas especificidades.
Para Gleudson Cardoso, foram três as bases do pensamento intelectual cearense
nas últimas décadas do século XIX: as ideias eurocêntricas, que representavam o caminho
para alcançar o progresso das sociedades civilizadas; a seca, fator mesológico e específico que
favoreceu as interpretações deterministas sobre o povo sertanejo; e a campanha abolicionista,
que se configurava como a consolidação dos princípios liberais burgueses (CARDOSO, 2000,
p. 12). Ao longo desse trabalho, veremos como essas questões foram discutidas naquele
momento e o forte peso que elas possuem na literatura de Rodolfo Teófilo ao tratar da
realidade de sua província.
A Academia Francesa encerrou seus trabalhos em 1875 e logo depois veio a seca
de 1877-79, responsável por desestabilizar toda a sociedade do Ceará e também dar uma
pausa nas associações entre os letrados. Jamily Fonseca afirma que na década de 1880, os
letrados cearenses tiveram a oportunidade de combinar suas leituras cientificistas, apreendidas
desde a década anterior, na elaboração de explicações sobre essa seca e a abolição dos
escravos que culminou em 1884 (FONSECA, 2015, p. 56). Foi nesse período também que
Rodolfo Teófilo passou a interagir entre os grupos letrados fortalezenses.
Em 1883, quando Rodolfo Teófilo publicou seu primeiro livro, História da seca
do Ceará (1877-1880), já era um farmacêutico diplomado, com certa estabilidade financeira e
conhecido entre seus pares por sua atuação na campanha abolicionista. Para se consolidar
efetivamente no cenário intelectual e ganhar respeito naquele meio, era necessário publicar
37

um livro. Um livro que falasse sobre a história de sua gente e de seus males. Assim, o tema
escolhido não poderia ser outro, senão a seca que tanto o impressionara e que marcara toda
sua geração. Naquele momento, os intelectuais buscavam construir uma identificação do
Ceará perante a nação, para isso era interessante explicar o desenvolvimento de sua sociedade
e sintetizar uma história sobre a província.
Publicar um livro era, naquele período, mais do que nunca, fazer com que se
perpetuasse uma perspectiva sobre um processo histórico. Elevava-se uma memória ao status
de verdade em detrimento de várias outras. Consciente desse propósito, Rodolfo Teófilo se
autointitulava como o “cronista dos infortúnios do Ceará” (TEÓFILO, 1980) e reivindicava
para si esse papel por ter sido testemunha ocular daquele fenômeno. “Assim o vivido ganharia
estatuto de vivido relatado, e, portanto, com poder de contar e fazer história. Esse poder da
escrita era uma grande mitologia vivida por Rodolpho Theóphilo e muitos escritores de sua
época. Fazia parte do jogo” (LOPES, 2003. p. 11). Nesse sentido, esses intelectuais entendiam
que, para ser reconhecido no meio letrado, era fundamental escrever e publicar, mas não só
isso. Para uma obra ter credibilidade, ela deveria atender às exigências científicas da época.
Segundo Isac do Vale Neto (2006), com a publicação de seu primeiro livro,
Rodolfo Teófilo conseguiria não apenas demarcar o seu lugar no cenário intelectual cearense.
Ele também conseguiu estrear na vida literária nacional, o que lhe rendeu o reconhecimento e
admissão, como sócio correspondente, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Vale
lembrar que o IHGB era uma instituição de grande importância para a consagração simbólica
intelectual, pois, sendo responsável por “elaborar a história da nação, serviria especialmente
como uma importante forma de chancela para a ascensão intelectual, de que Rodolfo
posteriormente se valeria para legitimar o lugar social de sua escrita” (VALE NETO, 2006, p.
37).
A aproximação de Rodolfo Teófilo com os ideais abolicionistas o levou a se
integrar ao Clube Literário, primeira agremiação cearense propriamente literária, já que a
Academia Francesa tinha um caráter mais filosófico. O Clube literário se formou em 1886, a
partir da iniciativa de João Lopes, que anteriormente participou da Academia Francesa.
Surgiu em razão das afinidades científicas, políticas e ideológicas de alguns membros que já
haviam feito parte também da campanha abolicionista e que interagiam em torno da redação
do jornal Libertador.
Com o aumento do número de associações literárias em Fortaleza, na década de
1880, observa-se também um maior incentivo às publicações voltadas para as letras. Em
grande parte, tais publicações partiam de iniciativas vinculadas a essas agremiações, as quais
38

tinham por objetivo dar visibilidade às práticas letradas da província, diante de um cenário
nacional. Desse modo, surgiram várias revistas e jornais literários. Jean François Sirinelli
(2003), ao tratar das formas de sociabilidade criadas pelos intelectuais, afirma que as revistas
são “um observatório de primeiro plano da sociabilidade de microcosmos intelectuais, elas
são, aliás, um lugar precioso para a análise do movimento das ideias. Em suma, uma revista é
antes de tudo um lugar de fermentação intelectual e de relação afetiva” (SIRINELLI, 2003, p.
249).
O Clube Literário ganhou notoriedade no cenário das letras cearenses através da
sua revista literária A Quinzena. Essa revista congregava uma vasta produção de estudos
etnográficos, sociológicos, biológicos e historiográficos. Em termos literários, ela também era
bastante diversificada. Ao lado dos poemas românticos de Juvenal Galeno, Antônio Martins e
Justiniano de Serpa, o Realismo e o Naturalismo foram introduzidos no Ceará, com os contos
realistas de Oliveira Paiva e os contos científicos de Rodolfo Teófilo. Essa revista foi
apontada como a responsável por introduzir oficialmente a estética realista e naturalista na
província cearense (PINHEIRO, 2011, p. 99). Os contos científicos de Rodolfo Teófilo
apareciam nas colunas intituladas “História natural” e “Ciências naturais”. Com o propósito
de divulgar as novas concepções científicas, ele escrevia contos explicando diferentes
fenômenos da natureza.
Muitos dos intelectuais que colaboravam para essa revista compartilhavam das
concepções mesológicas e evolucionistas lançadas pela Mocidade Cearense, na década de
1870. Acreditava-se que a natureza não tinha sido favorável aos habitantes do Ceará, os quais,
devido ao clima árido e ao solo pouco fértil, empreendiam um esforço maior para sobreviver
em meio a tantas adversidades. Assim, as concepções mesológicas e o evolucionismo foram
mesclados para explicar que as adversidades do meio tornaram o homem cearense mais
adaptado às suas condições de vida, portanto, mais forte. Esse pensamento aparece de forma
muito nítida na revista A Quinzena através do artigo “A mulher cearense”, de Abel Garcia
(1864-1907): “No Ceará o homem é activo, arrojado e impressionavel. As fatalidades do meio
deram-lhe às formas de vida a mais forte organização. Educado na luta, energico pela
necessidade, tem mais de uma vez attestado brilhantemente o sentimento profundo de sua
força” (A Quinzena, Ano I, Nº 4). Percebe-se um esforço por parte de Abel Garcia, assim
como de outros intelectuais cearenses, em construir uma imagem do homem cearense perante
a nação, como um indivíduo forte e arrojado, capaz de superar as adversidades do meio.
Veremos que esse pensamento também estava muito presente na literatura de Rodolfo
39

Teófilo, porém, essas concepções aparecem fortemente atreladas a outro condicionante, o


determinismo racial.
Ainda na década de 1880, Rodolfo Teófilo publicou mais quatro obras, três obras
de cunho científico: em 1888, Monografia da Mucunã9; em 1889, Ciências Naturais em
Contos10; e em 1890, Botânica Elementar, em colaboração com Garcia Redondo. E,
finalmente, nesse mesmo ano, seu primeiro romance, A Fome. Contudo, foi no decorrer da
década de 1890, e com sua inserção na Padaria Espiritual, em 1894, que Rodolfo Teófilo
publicou boa parte de sua produção romanesca e de orientação realista-naturalista, as quais
serão analisadas nos capítulos seguintes. Entre as treze obras publicadas pela Padaria
Espiritual11, pertenciam a Rodolfo Teófilo os romances Os Brilhantes (1895) e Maria Rita
(1897) e a novela Violação (1898). E ainda foi lançada pela “Bibliotheca da Padaria
Espiritual”, a obra O Paroara (1899), quando não mais existia a agremiação.
A Padaria Espiritual é considerada a agremiação literária mais marcante do século
XIX, destacou-se por sua irreverência e seu estatuto que ficou conhecido nacionalmente
(MARQUES, 2018). Ela herdou d’A Quinzena o veio literário, produzindo seu próprio
periódico, O Pão. Também era bastante heterogênea quanto à sua composição. A constituição
dessa agremiação foi fruto das discussões e interesses dos “Novos do Ceará”12, um novo
grupo de intelectuais oriundos, em sua maioria, dos interiores, interessados nas atividades
literárias e artísticas da província.
Ressalta-se que a Padaria foi uma agremiação literária que surgiu em um novo
contexto político de República e que se distinguia das anteriores por demonstrar mais
interesse pela cultura popular, do que mesmo se apropriar de teorias científicas e das
concepções de civilização e progresso (CARDOSO, 2000). Porém, em uma análise
aprofundada, Cícero Costa Filho afirmou que a Padaria não conseguiu atingir seu maior
objetivo, que era romper com o cientificismo e se aproximar das culturas populares. “A
Padaria foi um movimento cultural tipicamente científico, no sentido em que a ‘cultura

9
Pequeno tratado científico sobre a mucunã, raiz venenosa que servia de alimento aos famintos da seca. Nessa
obra, Rodolfo Teófilo descreveu o processo de preparação da mucunã, de modo que ela se tornasse própria ao
consumo e evitasse a morte de tantas pessoas por intoxicação.
10
É um livro didático referente aos assuntos tratados na disciplina de Ciências Naturais que Rodolfo Teófilo
ministrou no Liceu do Ceará. Sua primeira edição foi adotada em escolas do Ceará e, posteriormente, foi
aprovada pelo Conselho Superior da Instrução Pública de São Paulo (SOMBRA, 1997, p. 247).
11
Nesse período, a Padaria Espiritual estava numa fase mais séria e mais produtiva, tinha Rodolfo Teófilo como
presidente (padeiro-mor). Além das obras do referido autor, lançou também Versos (1894), de Antônio de
Castro, Flocos (1894), de Sabino Batista, Contos do Ceará (1894), de Eduardo Sabóia, Cromos (1895), de X. de
Castro, Trovas do Norte (1895), de Antônio Sales, Vagas (1896), de Sabino Batista, Dolentes (1897), de Lívio
Barreto, Marinhas (1897), de Antônio de Castro, Perfis Sertanejos (1897), de José Carvalho.
12
Os Novos do Ceará são tratados pela historiografia literária como uma geração intelectual que possuía uma
maior inserção das classes médias e baixas do que a Mocidade Cearense, sendo essa bem mais elitista.
40

popular’ que os intelectuais padeiros iriam registrar, em parte, não condiz com a cultura da
maioria da população pobre e iletrada” (COSTA FILHO, 2007, p. 91). Afirma ainda que, em
parte, a Padaria rompeu com os outros movimentos literários, já que houve uma mudança de
proposta. Mas, essa mudança não foi efetiva, pois não houve uma ruptura social (COSTA
FILHO, 2007, p. 123). Além disso, em certo momento, ela chegou a se utilizar de uma
linguagem científica, o que se constata através dos artigos de Rodolfo Teófilo sobre a “As
manchas do sol e as seccas” e outros, como “Criminologia do Direito” do sócio-
correspondente Clóvis Bevilaqua.
O que inferimos é que durante esse período referente aos anos de 1890, no qual
participou da Padaria Espiritual, Rodolfo Teófilo conseguiu realizar uma maior produção de
romances naturalistas. Esses romances serviram de fonte principal para nossas análises sobre
suas concepções de meio e raça. Vimos que as condições climáticas do Ceará inspiraram a
elaboração de interpretações científicas sobre essa província e sobre o desenvolvimento de
seu povo, tomando como referencial o determinismo geográfico e os seus variados elementos
mesológicos. Como já dito anteriormente, essas concepções foram arranjadas e interpretadas
de diversas formas por diferentes pensadores. Nas nossas análises sobre a literatura de
Rodolfo Teófilo, percebemos que o meio, seja ele físico ou social, está muito presente em sua
escrita, o qual se mescla com a ideia de raça, tornando ainda mais complexo o seu
pensamento.
Embora Rodolfo Teófilo evidencie muito a questão climática para elaborar uma
visão sobre o povo cearense e sertanejo, em geral, acreditamos que a questão racial muitas
vezes se sobrepõe às demais. Desse modo, reservamos o próximo tópico para
compreendermos porque a concepção de raça esteve tão presente nas análises de muitos
intelectuais brasileiros daquele período e de forma especial na Faculdade de Medicina da
Bahia, onde Rodolfo Teófilo se formou e teve acesso a uma boa parte desse referencial
teórico.

2.3 “MENS SANA IN CORPORE SANO”: A DISCUSSÃO RACIAL NO BRASIL E A


FORMAÇÃO DE RODOLFO TEÓFILO NA FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA

Como já destacado anteriormente, a década de 1870 foi um período bem marcante


para a história intelectual brasileira, pois foi o momento de abertura para as novas ideias
cientificistas. Embora essas teorias tenham sido elaboradas no contexto europeu, elas não
foram simplesmente importadas ou assimiladas, aleatoriamente, pelos intelectuais brasileiros.
41

Pelo contrário, eles se apropriavam apenas das teorias que tornassem possível uma
interpretação sobre a realidade brasileira e que fossem condizentes com seus interesses.
Assim, eles realizavam um trabalho de seleção e adaptação desses textos, baseados na
realidade nacional e/ou local (SCHWARCZ, 1993; MURARI, 2009). Desse modo, é
necessário compreender, não apenas quais eram as ideias que circulavam no campo intelectual
brasileiro e que chegaram a Rodolfo Teófilo, mas, também, por que algumas tiveram maior
aceitação e qual a sua lógica de inserção no país.
A situação do campo intelectual nacional, naquele momento, sinalizava para a
busca de um conhecimento legítimo sobre a realidade nacional – marcada pela acentuada
heterogeneidade social, pela herança escravista e a própria dificuldade de reconhecer-se como
povo –, cabendo aos intelectuais e cientistas a elaboração de uma linguagem e um
conhecimento legítimo para diagnosticar a situação do país (VALE NETO, 2006, p. 24). É
desse modo que os teóricos social-darwinistas e deterministas, por exemplo, encontraram no
Brasil notáveis seguidores para explicar a formação de nosso povo.
Ao analisar o impacto do darwinismo nos países colonizados e sua transformação
em um discurso ideológico, Heloise Domingues (2014) evidencia o fato de que esses países
estavam saindo de um complexo processo político colonial e estavam em busca da afirmação
da nação e da nacionalidade. Nesse processo, “eram marcantes as diferenças na composição
social de cada sociedade, as quais tinham, literalmente, cores visíveis, a cor da pele”
(DOMINGUES, 2014, p. 117). Nas últimas décadas do século XIX, o Brasil ainda enfrentava
a questão abolicionista. Para além da problemática referente à substituição da mão de obra
escrava, o que também preocupava a elite dominante era a conservação da hierarquia social.
Com o fim da escravização, era preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania que
justificassem a ordem social constituída. “É nesse sentido que o tema racial, apesar de suas
implicações negativas, se transforma em um novo argumento de sucesso para o
estabelecimento das diferenças sociais” (SCHWARCZ, 1993, p. 24).
O termo “raça” era usado pelas ciências biológicas para designar um grupo de
indivíduos portadores de certas características físicas e hereditárias comuns. Com a influência
da biologia na análise das sociedades, tornou-se recorrente a concepção de que a humanidade
estaria dividida em raças.13 Assim, o conceito de raça, que era restrito às ciências biológicas,

13
Essa questão possui raízes mais profundas e reverbera no embate entre duas vertentes diferentes sobre a
origem da humanidade: o monogenismo e o poligenismo. O monogenismo, que predominou até a primeira
metade do século XIX, tomando como referência as escrituras bíblicas, defendia que a humanidade possuía uma
origem única e os indivíduos espalhados pelo mundo descendiam da criação do Éden, mesmo que tenham se
modificado devido à ação de vários fatores, como o clima. Já o poligenismo, que ganhou fôlego na segunda
42

ganhou um sentido social, político e ideológico. De tal modo, é fundamental destacar a


historicidade do argumento racial e o seu embasamento científico no século XIX. Vale
destacar também que o conceito de raça não é uma definição acabada e atemporal. Ele foi
política e socialmente construído. “O termo raça, antes de aparecer como um conceito
fechado, fixo e natural, é entendido como um objeto de conhecimento, cujo significado estará
sendo constantemente renegociado e experimentado nesse contexto histórico específico”
(SCHWARCZ, 1993, p. 23-24). Assim, entendemos que só é possível compreender o sucesso
alcançado pelas teorias raciais no campo intelectual brasileiro, a partir da década de 1870, se
considerarmos a sua historicidade, o momento histórico vivido no país.
A partir do século XIX, o racismo passou a ser legitimado pela ciência e fomentou
a elaboração do pensamento racialista. Tzvetan Todorov (1993), ao diferenciar o racismo do
racialismo, ressalta que o racismo é bem mais antigo e corresponde a um comportamento de
ódio ou aversão a pessoas com características físicas diferentes. Já o racialismo possui uma
historicidade mais demarcada no século XIX e corresponde a uma ideologia ou doutrina
baseada na distinção das raças humanas. Sobre essa questão, Stephen Gould afirma que “o
preconceito racial pode ser tão antigo quanto o registro da história humana, mas a sua
justificação biológica impôs o fardo adicional da inferioridade intrínseca aos grupos menos
favorecidos”. Assim, o argumento científico tornou-se “uma arma de ataque de primeira linha
por mais de um século” (GOULD, 2014, p. 18).
O determinismo racial ou teoria das raças foi uma das vertentes mais prolíferas do
darwinismo social. De acordo com Lilia Schwarcz (1993, p. 78), esse determinismo partia de
três premissas básicas. A primeira era a realidade de que havia uma grande distância entre as
raças, tornando condenável a miscigenação. A segunda era a afirmação da continuidade entre
caracteres físicos e morais. Assim, acreditava-se que era possível definir o comportamento do
indivíduo por meio da análise de suas características físicas. A partir de então, alguns
fenômenos sociais, como o crime, ganharam explicações baseadas na correlação com
determinadas características físicas. E a terceira era o predomínio esmagador da raça sobre o
indivíduo. Desse modo, o sujeito era destituído de sua individualidade e passava a ser visto
apenas como pertencente a uma raça, com características definidas e determinantes. Foi
através dessas concepções que se tornou frequente o estudo dos temperamentos na literatura

metade do mesmo século, devido à credibilidade conquistada pelas leis biológicas, em detrimento do
pensamento religioso, defendia a existência de vários centros de criação, o que corresponderia à existência de
diferentes raças humanas.
43

naturalista, algo bem marcante na escrita de Rodolfo Teófilo e na construção de suas


personagens.
Ressaltamos que a noção de raça, como instrumento de análise, foi produzida por
pensadores europeus, através de uma perspectiva eurocêntrica, para estabelecer critérios de
hierarquização social. Nessa perspectiva, a raça branca era vista como superior às demais do
planeta, enquanto as raças não brancas eram vistas como imperfectíveis. Através de sua visão
organicista, a ciência europeia oitocentista compreendia o homem como parte da natureza.
Com a criação de métodos para classificar e categorizar o mundo natural, o ser humano, sendo
parte dessa natureza, passou a ser analisado sob a ótica das técnicas utilizadas nas ciências
naturais. A teoria das raças, por sua vez, se utilizou desses métodos para “naturalizar as
diferenças, o que representou, nesse momento, o estabelecimento de correlações rígidas entre
características físicas e atributos morais” (SCHWARCZ, 1993, p. 85).
No início do século XIX surgiram muitos métodos e critérios para definir e
classificar as diferentes raças humanas. Entre esses critérios, destacam-se a cor da pele, a
capacidade craniana, o índice cefálico, entre outras características físicas e morfológicas.
Todavia, foram os métodos antropométricos14 que ganharam destaque e influenciaram muitos
cientistas. A crença na existência de diferentes raças hierárquicas e na continuidade entre
caracteres físicos e morais se fortaleceu com o nascimento da frenologia 15 e da craniologia16,
práticas científicas que pretendiam explicar diferenças étnicas e de gênero em termos de
capacidade mental e aptidões dos indivíduos, tomando como referência o tamanho do cérebro
(Gould, 1991).
Ao realizar um estudo crítico sobre os ideólogos do cientificismo do século XIX,
Stephen Gould destaca que “os líderes da craniometria não eram ideólogos políticos
conscientes. Consideravam-se escravos dos números, apóstolos da objetividade” (GOULD,

14
A antropometria consiste em técnicas de medição do corpo humano. No final do século XIX, ela foi muito
utilizada pela Antropologia física ou biológica para analisar os aspectos morfo-anatômicos dos seres humanos,
compará-los entre si e relacionar suas características físicas com o seu grau de desenvolvimento moral e
intelectual.
15
A frenologia consistia no estudo pormenorizado das características cranianas e das circunvoluções cerebrais
dos indivíduos. O seu fundador, Franz Joseph Gall (1758-1828), acreditava que as faculdades mentais dos
indivíduos são inatas e o desenvolvimento das mesmas depende da organização cerebral. Acreditava-se também
que a forma como o cérebro se desenvolvia interferiria na estrutura do crânio. Por isso, uma análise detalhada do
crânio seria capaz de revelar características da personalidade. A frenologia se destacou por estudar tanto os
cérebros de pessoas consideradas ‘geniais’, como de pessoas com comportamentos vistos como desviante
(assassinos, prostitutas, homossexuais etc.) (SÁ, 2008).
16
Herdeira da frenologia, a craniologia dedicava-se a medir crânios em seu volume, circunferência e os mais
diversos ângulos. Paul Broca, um de seus maiores expoentes, acreditava que aspectos como a capacidade
craniana e o peso do cérebro poderiam fornecer informações sobre as características morais e intelectuais dos
indivíduos. Embebida pelas discussões raciais, a craniologia dedicava-se com grande ardor ao estudo da
morfologia comparativa das raças humanas (GOULG, 1991).
44

1991, p. 66). Convencidos dessa suposta objetividade, eles não conseguiam perceber que a
ciência possuía raízes na interpretação criativa e que os dados, por si só, não eram condizentes
com as formulações de suas teorias, até que fossem selecionados e interpretados. Esses
estudiosos não se davam conta que esse trabalho de seleção e interpretação dos dados estava
imbuído de preconceitos vigentes. Tais análises apenas “confirmavam todos os preconceitos
habituais do homem branco acomodado: os negros, as mulheres e os pobres ocupam posições
inferiores graças aos rigorosos ditames da natureza” (GOULD, 1991, p. 66).
Gould afirma ainda que os racistas e sexistas científicos encontraram na ciência a
legitimidade para a inferiorização de determinados grupos raciais. Todavia, raça, gênero e
grupo social são categorias que andam juntas e o determinismo biológico atuava de forma a
naturalizar diferentes formas de exclusão. Assim, “a filosofia geral do determinismo biológico
é sempre a mesma: as hierarquias existentes entre os grupos mais ou menos favorecidos
obedeceriam aos ditames da natureza; a estratificação social constituiria um reflexo da
biologia” (GOULD, 1991, p. 74). “Era a partir da ciência que se reconhecia diferenças e se
determinavam inferioridades” (SCHWARCZ, 1993, p. 38). Desse modo, a ciência era
utilizada para se justificar algo, sendo dotada de um grande teor ideológico, social e político.
No caso do Brasil, ao tratar da repercussão que obtiveram as teorias raciais, Maria
Augusta Bolsanello (1996) lembra que a sua grande adesão, por parte dos intelectuais
brasileiros, está intimamente ligada à estrutura social do país em fins do século XIX. No topo
encontrava-se a elite branca, uma minoria que comandava a vida política, econômica e
intelectual do país. No extremo oposto estavam os negros escravizados. E entre esses dois
polos encontrava-se uma expressiva parcela da população, formada por mestiços, frutos do
longo processo de miscigenação – ocorrida, principalmente, entre indígenas, brancos e negros
– que remonta ao início da colonização. Esses mestiços eram considerados socialmente
indefinidos, compostos por grupos quilombolas, trabalhadores pobres, agregados e “vadios”.
Era uma população bem heterogênea e que vivia à margem da sociedade, sofrendo vários
tipos de privações. Essa configuração de extrema desigualdade era resultante de diversos
fatores, como a concentração de terras e riquezas, a escravidão, entre outros. Assim, no século
XIX, o povo brasileiro já era constituído, predominantemente, por mestiços. “A maioria
destes mestiços, bem como a totalidade de negros e índios, ocupavam as camadas pobres da
sociedade, vivendo em estado de miséria, doença e penúria” (BOLSANELLO, 1996, p. 156).
Muitos dos intelectuais brasileiros, ao se apropriarem das ideias deterministas em
vigor, passaram a explicar os problemas sociais e econômicos através de dois elementos: o
clima tropical e a construção étnica do povo. Argumentava-se que o povo brasileiro não havia
45

conseguido engendrar o desenvolvimento do país, “por ter-se tornado preguiçoso, ocioso,


indisciplinado e pouco inteligente devido ao calor e à mistura com raças inferiores, era
necessário pelo menos resolver o problema racial, uma vez que contra o clima nada poderia
ser feito” (BOLSANELLO, 1996, p. 158). Bolsanello ainda afirma que “estas ideias se
caracterizavam por um discurso ideológico bastante cômodo, no sentido de mascarar a
realidade social, impedindo a percepção desta realidade e do modo de produção das relações
sociais, com fins únicos de domínio e expropriação” (BOLSANELLO, 1996, p. 162).
De acordo com uma das premissas do determinismo racial, a miscigenação entre
as raças era algo condenável, pois ocasionava a degeneração. Segundo Hilton Costa (2004, p.
13), essa ideia era praticamente unânime entre os pensadores europeus. Não cabe nesse
trabalho reconstruir o debate original formulado pelos teóricos estrangeiros, mas perceber
como se deu a sua inserção no campo intelectual brasileiro e de que modo, especificamente,
Rodolfo Teófilo se apropriou desse referencial. Porém, cabe destacar que, ao ser elaborada no
contexto europeu, a teoria racial não era muito flexível com relação à possibilidade de
cruzamento entre as diferentes raças. Georges-Louis Leclerc ou Conde de Buffon (1707-
1788), ainda no século XVIII, elaborou o conceito de degeneração, como efeito do
cruzamento entre raças diferentes. Esse naturalista francês construiu essa explicação com base
na análise do cruzamento entre o cavalo e o asno, que produz o mulo, um produto degenerado,
pois é incapaz de se reproduzir. Porém, Buffon restringia a degeneração ao mundo animal. Ele
era monogenista e, portanto, defendia que a espécie humana se constitui em uma única raça
(VENTURA, 1991, p. 57).
Com a ascensão da tese poligenistas – crença na existência de diferentes raças
humanas – no século XIX, o anatomista Paul Broca (1824-1880) passou a defender a tese da
“imutabilidade das raças”, a qual levaria a uma esterilidade das raças miscigenadas, assim
como a mula. Inclusive, o termo “mulato” deriva de mulo e se acreditava, por analogia, que a
mestiçagem entre brancos e negros levaria à esterilidade, após algumas gerações. Enquanto
Broca acreditava na esterilidade de indivíduos miscigenados, outros teóricos deterministas
que também tiveram suas ideias difundidas no Brasil, como Gobineau e Le Bon, lastimavam a
extrema fertilidade dos indivíduos miscigenados, os quais herdavam sempre as piores
características das raças em cruzamento. Apesar dessa divergência quanto à fertilidade dos
mestiços, todos esses teóricos advogavam que o cruzamento entre raças diferentes deveria ser
evitado por causar degeneração (SCHWARCZ, 1993, p. 74).
46

Observado com cuidado pelos viajantes estrangeiros, analisado com ceticismo pelos
cientistas americanos e europeus interessados na questão racial, temido por boa parte
das elites pensantes locais, o cruzamento de raças era entendido, com efeito, como
uma questão central para a compreensão dos destinos dessa nação (SCHWARCZ,
1993, p. 18).

No caso da sociedade brasileira, a aplicação direta do darwinismo social propunha


uma leitura bastante negativa sobre aquela população mestiça: a de que o país era
irremediavelmente degenerado. Porém, a ausência de um conceito unívoco e fechado sobre
raça possibilitou que se fizessem diferentes usos dessa concepção. A peculiaridade da
sociedade brasileira foi decisiva nesse processo de apropriação e adaptação teórica. Ela fazia
com que a adesão simples e direta aos postulados estrangeiros fosse prejudicial à
possibilidade de se planear um futuro para o país. Era preciso considerar a mestiçagem, mas
sem condenar o mestiço.
De um modo geral, a concepção de raça, entre os intelectuais brasileiros,
designava um conjunto de caracteres físicos, morais e intelectuais comuns e inatos a
determinados grupos. Assim, indivíduos de uma mesma raça já nasciam com certos atributos,
os quais eram transmitidos hereditariamente. Porém, algumas questões mais pontuais geraram
divergências, como, por exemplo, a questão da alteração da raça. Se a raça poderia ou não se
ser modificada – seja pra melhor, ou mesmo pra pior – por outros fatores foi uma questão que
gerou muito debate, ensejando diferentes posicionamentos. Formular explicações sobre
alteração racial no Brasil implicava em refletir sobre a situação do mestiço.
Em meio a um arsenal de teorias europeias, os intelectuais brasileiros propunham
arranjos teóricos bem originais, na medida em que conciliavam teorias, por vezes,
divergentes. Nesse sentido, Lilia Schwarcz destaca que “aqui se fez um uso inusitado de
teoria original, na medida em que a interpretação darwinista social se combinou com a
perspectiva evolucionista e monogenista” (SCHWARCZ, 1993, p. 85). O darwinismo social17,
que tem a teoria das raças (também chamada de determinismo racial) como uma de suas
vertentes mais prolíferas, possui suas bases na concepção poligenista, a qual admite que a
humanidade esteja dividida em raças distintas e que o cruzamento entre elas seja condenável.
Já o evolucionismo propunha um modelo universal de evolução para todas as sociedades.
Assim, mesmos as sociedades mais primitivas se encaminhariam para estágios mais
complexos. Desse modo, “o modelo racial servia para explicar as diferenças e hierarquias,

17
Lembramos que o darwinismo social foi fundado por Herbert Spencer e, embora, seja compreendido como a
aplicação do darwinismo na análise das sociedades, em sua essência ele se distancia do pensamento de Darwin,
pois esse, mesmo propondo a mutabilidade das espécies, era monogenista, ou seja, acreditava que a humanidade
descendia de um ancestral comum.
47

mas, feitos certos rearranjos teóricos, não impedia pensar na viabilidade de uma nação
mestiça” (SCHWARCZ, 1993, p. 85). Porém, tal situação não gerava resultados simples,
imediatos, e, menos ainda, unânimes:

A resposta não é tão imediata. Ou seja, se é certo que o conhecimento e a aceitação


desses modelos evolucionistas e darwinistas sociais por parte das elites intelectuais e
políticas brasileiras traziam a sensação de proximidade com o mundo europeu e de
confiança na inevitabilidade do progresso e da civilização, isso implicava, no
entanto, certo mal-estar quando se tratava de aplicar tais teorias em suas
considerações sobre as raças. Paradoxalmente, a introdução desse novo ideário
científico expunha, também, as fragilidades e especificidades de um país já tão
miscigenado (SCHWARCZ, 1993, p. 46).

Os intelectuais brasileiros realizavam verdadeiras manobras de adequação dessas


teorias, o que resultava nas mais diferentes e profícuas interpretações. Preocupados com o
futuro do país, muitos desses pensadores elaboraram explicações mais flexíveis, nas quais a
raça deixava de ser um elemento inviabilizador, para ser apenas um fator limitador. “As raças
consideradas inferiores e os mestiços poderiam evoluir até um determinado ponto, cerceando
daí em diante as capacidades de desenvolvimento. Mesmo assim, certos indivíduos poderiam
ultrapassar as possibilidades médias do grupo” (COSTA, 2004, p. 68).
Embora esse trabalho não consista em uma análise comparativa, achamos
interessante pontuar rapidamente a forma como outros intelectuais brasileiros –
contemporâneos a Rodolfo Teófilo e possivelmente também interlocutores – davam diferentes
interpretações à mestiçagem. Para alguns, mais otimistas, como Silvio Romero e Euclides da
Cunha, a mestiçagem levaria à formação de uma nova raça mestiça. Para outros, mais
pessimistas, como Nina Rodrigues, os cruzamentos entre raças seriam em maior ou menor
grau degenerativos, por isso deveriam ser evitados (COSTA, 2004, p. 134). Ao estudar a
forma como esses intelectuais entendiam a miscigenação, Hilton Costa destaca que mesmo
aqueles considerados mais ortodoxos, ou seja, que se aproximavam mais das doutrinas
racialistas estrangeiras, em algum momento acabavam por flexibilizar e adaptar essas teorias,
de modo que possibilitassem pensar em um futuro para o país. Exemplo disso é Nina
Rodrigues que, embora seja considerado um dos mais pessimistas com a relação à
miscigenação, em algum momento de sua obra propôs que “a miscigenação não seria um
bloqueador completo para o desenvolvimento nacional, mas apenas um limitador desse”
(COSTA, 2004, p. 87-88).
Hilton Costa analisou ainda as possibilidades de regeneração, para a sociedade
mestiça, formuladas por esses pensadores e chegou à conclusão de que, no geral, admitia-se a
48

possibilidade de melhoria. “Porém, como se daria tal melhoria? Dentre os caminhos indicados
três acabaram se sobressaindo: 1) a regeneração pela educação (sinônimo, nesse caso, de
civilizar); 2) a regeneração pela imigração e 3) a regeneração pelo cruzamento” (COSTA,
2004, p. 72). No que se refere à literatura de Rodolfo Teófilo, através de nossas análises
veremos que a questão da regeneração pela educação é algo que aparece com muita
frequência em seus romances e sempre atrelada à concepção de civilização trazida pelos
europeus e em oposição ao que é concebido como bárbaro e degenerado. Já a imigração de
outros povos como um fator de regeneração da população mestiça, não ganhou muito
destaque na escrita desses romances, pelos menos aqueles produzidos na década de 1890 e
analisados nesse trabalho. No que se refere ao cruzamento das raças, veremos que esse autor
possuía uma visão bastante complexa. Se, por um lado, ele era bem otimista com o
cruzamento entre índios e brancos, desde que esse último elemento fosse predominante. Por
outro lado, ele era bastante pessimista em relação ao cruzamento das raças tidas como
inferiores, ou seja, entre o índio e o negro.
Diante da variedade de interpretações que a discussão racial suscitou entre os
intelectuais brasileiros, Lilia Schwarcz aponta para a importância de estudar sobre as
instituições de ensino superior, as quais eram, no período, a porta de acesso às novidades
filosóficas vindas da Europa. Assim, tentar compreender um pouco sobre o pensamento racial
e científico difundido pela Faculdade de Medicina da Bahia pode nos dar acesso a uma boa
parte das concepções adotadas por Rodolfo Teófilo. Sobre a importância que essas
instituições tiveram para a formação de muitos intelectuais, Lilia Schwarcz afirma que:

Nesses locais de pesquisa é que esses “homens de sciencia” encontravam espaços


privilegiados para a produção de ideias e teorias, e para seu reconhecimento social.
Apesar de diversos em suas características internas, distintos em sua atuação, esses
estabelecimentos mostraram-se apropriados para a compreensão das diferentes
interpretações aqui produzidas e dos próprios pensadores que, no mais das vezes,
dialogavam entre si, reconhecendo e destacando seus pares. A análise de diferentes
instituições de saber de finais do século XIX, entendidas enquanto instâncias
específicas de seleção e consagração intelectual, propiciará um amplo panorama das
elites ilustradas nacionais da época, bem como a recuperação da lógica de recriação
desses modelos raciais (SCHWARCZ, 1993, p. 85-86).

Mariza Corrêa (2001) destaca que nessas instituições prevaleciam dois


paradigmas na forma de pensar sobre a nação, o paradigma médico e o paradigma jurídico.
Essa distinção é compreensível pelo fato de que no país só existiam as faculdades de medicina
e de direito, mas a interferência desses paradigmas na sociedade extrapolou os muros dessas
instituições. Eram essas faculdades que formavam os profissionais que iriam gerir os rumos
49

da vida social, através da elaboração e fiscalização das leis, da explicação sobre os males que
atingiam a sociedade e a aplicação de práticas de cura e prevenção das doenças. Muitos
estudos têm voltado as atenções para a Faculdade de Direito de Recife, inclusive na
historiografia cearense, devido à forte influência que ela exerceu sobre a Academia Francesa.
Porém, o pensamento intelectual brasileiro não partiu apenas dessa instituição. No Ceará,
destacamos que Rodolfo Teófilo, um atuante homem de ciência e de letras, em muitos
momentos se apropriou do paradigma médico, difundido pela faculdade baiana, para
expressar suas concepções científicas.
Ivana Stolze Lima entende que “o paradigma médico privilegiou uma atuação
mais analítica, empírica e experimental se comparado ao paradigma jurídico, que tendia a
produzir um saber mais sintético, generalizante” (LIMA, 1994, p. 29). Desse modo, se torna
compreensível o fato de Rodolfo Teófilo ter defendido que o único método válido para a
construção do conhecimento é o experimental, como já foi discutido anteriormente. Mariza
Corrêa lembra que até meados do século XIX, o saber médico no Brasil ainda estava mais
preocupado com o ensino teórico do que prático. Só depois de algumas viagens de estudiosos
brasileiros para a França e para a Alemanha, e após a influência de cientistas como Claude
Bernard e Pasteur, é que os cientistas brasileiros sentiram uma maior necessidade de
experimentação na medicina brasileira, a qual passou por algumas modernizações a partir da
década de 1850. “Na Bahia, graças ao trabalho de três médicos estrangeiros que lá se fixaram
por volta de 1860 (Patterson, Wucherer e Silva Lima), a medicina experimental recebeu
grande impulso” (CORRÊA, 2001, p. 76).
Também é pertinente lembrar que, apesar de suas especificidades, não havia uma
rígida divisão entre os saberes. Exemplo disso é que, até o final do século XIX, a etnografia, a
etnologia e a antropologia se confundiam no interior daquilo que era compreendido como
saber médico. Quando se busca conhecer o universo letrado brasileiro oitocentista, é notório
esse caráter mais amplo da formação acadêmica e a intersecção de muitos intelectuais por
diversas áreas, além do compartilhamento de um aporte teórico bastante próximo. Desse
modo, se torna compreensível o fato de que Nina Rodrigues, um dos fundadores da
antropologia brasileira, fosse um médico legista. Porém, isso não significa dizer que houve
uma compreensão homogênea. Cada sujeito se apropriou de forma singular, pois era inspirado
por diversas questões e escrevia com objetivos específicos.
A distinção entre o paradigma médico e o jurídico residia mais na forma de
compreender os problemas sociais do país e na elaboração de soluções para os mesmos. Os
profissionais de cada área reivindicavam para si a missão de gerir os rumos do país. Na
50

perspectiva médica, o país estava doente e precisava ser curado. Com base num projeto
médico-eugênico, esses profissionais entendiam que era preciso sanar os males que
ocasionavam a degeneração da sociedade. Para isso, o “homem de direito” atuaria como um
assessor que transformaria em lei o que o perito médico já havia diagnosticado. Na
perspectiva jurídica, invertia-se o protagonismo dessa ação. Assim, caberia ao jurista elaborar
as leis que promoveriam a redenção do país e o médico seria apenas um técnico auxiliar ao
bom desempenho dessas leis (SCHWARCZ, 1993, p. 249).
Ressalta-se que da intersecção entre o saber médico e o saber jurídico nasceu a
medicina legal, que se desenvolveu, prioritariamente, na Faculdade de Medicina da Bahia e
teve a figura de Nina Rodrigues como um dos seus principais representantes. Segundo Mariza
Corrêa, a medicina legal correspondia a uma ciência médica que se fortaleceu nas primeiras
décadas do século XX. Descrente com as promessas de igualdade propostas pela abolição e
pelo sistema republicano, essa ciência buscou estabelecer explicações para as desigualdades.
Acreditamos que a maior complexidade desse saber reside no fato de tirar o enfoque da
doença ou do crime para privilegiar o criminoso. Era preciso reconhecê-lo e contê-lo para
evitar a contaminação social. Assim, baseada nos métodos da antropologia criminal18, essa
ciência médica estabelecia critérios para caracterizar e distinguir fisicamente esses indivíduos.

Utilizando uma teoria que deslocava a ênfase da saúde, ou da doença, para o doente,
transformava-o em objeto individualizado de um saber autorizado e autoritário –
porque só individualmente se podiam aferir as minúcias de uma contaminação
social, mas proveniente do mundo da natureza. O modelo jurídico e o médico
deixavam também de ser heterogêneos entre si e, absorvendo um do outro seus
saberes específicos, juntavam-se ambos na produção de mecanismos técnicos para
diagnosticar e punir os danos que o individuo pudesse causar à sociedade
(CORRÊA, 2001, p. 73).

Lilia Schwarcz (1993, p. 248) ressalta que os estudos sobre medicina legal foram
os que mais caracterizaram a faculdade baiana nos anos de 1890 e a diferenciaram de outras
instituições de ensino.19 Lembramos que essa década também foi o período de maior

18
A antropologia criminal – tal como era definida pelos pensadores italianos Lombroso, Ferri, Garófalo – partia
das concepções de atavismo e hereditariedade para afirmar que certas pessoas eram portadoras de uma herança
genética que as tornavam predispostas ao crime. Acreditava-se que seria possível traçar o perfil desses
criminosos através de suas características físicas e mentais. Desse modo, os métodos antropométricos foram
largamente utilizados para traçar o perfil do “criminoso nato”. “A raça inferior determinaria o criminoso.
Conhecê-lo é conhecer suas características físicas, hereditárias. Esta seria a postura vista como efetivamente
científica, objetiva, em oposição à postura idealista do livre arbítrio” (LIMA, 1994, p. 30).
19
Lilia Schwarcz também pontua que havia diferenças de enfoques entre as principais faculdades de medicina do
Brasil. Enquanto os médicos da faculdade do Rio de Janeiro estavam preocupados com a higiene pública e em
sanar as doenças tropicais, como a febre amarela e o mal de Chagas, os médicos baianos estavam mais
preocupados em sanar os males ocasionados pelo cruzamento racial. “Ou seja, enquanto para os médicos
51

produção romanesca de Rodolfo Teófilo. Acreditamos que esse intelectual, mesmo não
estudando mais nessa faculdade – já que se formara ainda na década de 1870 –, possuía um
estreito contato com o conhecimento que ali era produzido.20 É desse modo que as concepções
elaboradas por Lombroso sobre o caráter genético do crime e a caracterização física e moral
do criminoso foram reinterpretadas por Rodolfo Teófilo ao caracterizar o cangaceiro Jesuíno
Brilhante, na obra Os Brilhantes (1895). Além disso, as concepções mais caras àquela
instituição como raça, hereditariedade e atavismo tiveram grande influência na construção de
todos os seus outros romances publicados nesse período.
Para compreendermos melhor a influência que as concepções divulgadas pela
faculdade baiana tiveram no pensamento de Rodolfo Teófilo, vejamos como o projeto
médico-eugênico, propagado pela mesma, se configurou na obra O Paroara. Neste romance,
o narrador critica o fato de o padre Mourão realizar o casamento de sua afilhada Chiquinha –
filha de tuberculosos – sem ao menos pensar na degeneração que isso ocasionaria:

Ignorando as leis fatais da hereditariedade e do atavismo não cuidou dos ascendentes


da afilhada, nem mesmo pensou que ela nascera de um tísico e de uma mulher que
morrera tísica também.
A igreja não entrava nessas indagações. Unia os alcoólicos, os leprosos, os
epiléticos, os tuberculosos sem atentar no mal que fazia à semente humana. Nem
cogitava que dessas uniões condenadas saíam os miseráveis de todas as espécies que
se arrastavam no mundo numa existência de abjeções, que passam na vida de
infortúnios que levam por todas as etapas do sofrimento e depois vão apodrecer nos
hospitais, vegetar nos asilos de alienados, morrer nas penitenciárias ou vagabundar
nas ruas como verdadeiros cães de monturo.
Mourão desconhecia o valor do atavismo e da hereditariedade não obstante os livros
santos falarem da punição dos vícios do homem até a quinta geração.
Não sabia interpretar este castigo tremendo, esta pena cruel, que persegue o
delinquente até em sua afastada descendência. Pensava como os doutores da igreja
que o delito punido é o moral, é o pecado, e se assim não interpretasse, o sacramento
do matrimônio não seria administrado aos bêbados que produzem filhos epiléticos,
aos epiléticos que geram criminosos natos, a parentes em muito próximo grau de
consaguinidade que procriam idiotas, degenerados, aleijões (TEÓFILO, 1974, p. 59-
60).

Através de seu romance, podemos ver que Rodolfo Teófilo criticou o fato de a
Igreja decidir sobre assuntos cruciais relacionados à vida social e à saúde púbica, como a

cariocas tratava-se de combater doenças, para os profissionais baianos era o doente, a população doente que
estava em questão. Era a partir da miscigenação que se previa a loucura, se entendia a criminalidade”
(SCHWARCZ, 1993, p. 248-249).
20
Lilia Schwarcz (1993, p. 261-266) ressalta que desde julho de 1866 já circulava a Gazeta Medica da Bahia,
primeiro periódico médico brasileiro. Essa iniciativa partiu do Dr. Paterson, famoso médico da faculdade baiana,
que teve a ideia de reunir, quinzenalmente, em sua casa, alguns de seus colegas, para compartilharem duvidas e
experiências. A formulação da revista surgiu da necessidade de uma produção própria, mais autônoma e que
desse prestígio a profissão. Essa revista se destacou não apenas por sua longa duração, mas também pela enorme
difusão que alcançou. Desse modo, acreditamos que Rodolfo Teófilo – ávido leitor e amante da medicina - tenha
estabelecido um estreito contato com esse periódico.
52

união e a procriação de pessoas consideradas degeneradas, o que ocasionaria um grande mal à


humanidade. Ele enfatizou ainda que isso ocorria porque a Igreja não possuía conhecimentos
sobre as leis da hereditariedade e do atavismo. Na faculdade baiana, a hereditariedade era um
dos principais fatores na elaboração de explicações sobre os diferentes males que atingiam
sociedade. Esse fator aparece fortemente imbricado à escrita de Rodolfo Teófilo e na
caracterização de suas personagens. Algumas delas são portadoras de doenças tratadas como
hereditárias, tais como o crime, o alcoolismo e a tuberculose. Dito isso, uma das questões que
mais preocupavam os médicos baianos era a degenerescência social provocada por
cruzamentos malsucedidos, frequentemente, entre raças inferiores. Além dos problemas
tratados por Rodolfo Teófilo, acreditavam que várias outras doenças também seriam
hereditárias, como a sífilis, a epilepsia e a loucura, entre outras.
A concepção de degenerescência social foi uma vertente bem pessimista, oriunda
da crença na imposição da raça e do meio sobre a vida dos indivíduos. O otimismo presente
na compreensão do darwinismo social de que a competição levaria a um estado superior de
equilíbrio, foi sendo substituído por uma progressiva descrença no futuro da humanidade. Nos
últimos anos do século XIX, na Europa, a noção de decadência do mundo ocidental ganhou
muita popularidade, em decorrência das experiências negativas com a modernidade industrial.
Foi em meio a esse cenário que surgiu a concepção de degenerescência como uma denúncia
ao momento de crise. “De formação darwinista, essa corrente voltava-se para as questões da
raça, da sexualidade e do gênero, as quais definiriam as condições de inferioridade humana e
os desvios patológicos” (MURARI, 2009, p. 219-220). As multidões e os grupos raciais
ganharam destaque e temas como a violência, o crime e a loucura tornaram-se recorrentes.
“Era a população pobre e doente que, exposta como se fosse um grande laboratório humano,
exemplificava teorias, demonstrava os desvios” (SCHWARCZ, 1993, p. 263).
A partir da compreensão de degenerescência social surgiu uma nova forma de
compreender e representar a sociedade, segundo o paradigma médico. A sociedade passou a
ser vista como um corpo doente, cabendo ao médico, sanitarista, higienistas e outros
profissionais da área, a missão de diagnosticá-la, curá-la e preveni-la dos diferentes males.
“Não se trata de pensar no indivíduo, mas na “coletividade”, na nação enfraquecida e carente
de intervenção” (SCHWARCZ, 1993, p. 262). Para conter a degenerescência, a medicina,
muito otimista quanto ao seu progresso e à sua atuação, tomou para si a tutela do povo e,
pretensiosamente, acreditou que poderia decidir sobre o modo como as pessoas deveriam
viver, se relacionar e se organizar socialmente. É desse modo que Rodolfo Teófilo, em seu
53

romance, propôs que a união entre as pessoas deveria ser tratada como uma questão de saúde
pública, embora não use essa expressão:

Mourão nunca refletiu sobre estes casos da degeneração da espécie humana.


Considerava o casamento de consanguíneos como um pecado que a igreja por um
punhado de dinheiro perdoa e autoriza, mas nunca como um crime de lesa-
humanidade, que deveria ser impedido pelos tribunais civis e punido como o roubo,
o assassinato e todos os demais atentados à boa moral, à paz e prosperidade do
gênero humano. [...]
Em vez dos proclamas que o cura de tão boa vontade preparava para apregoar na
primeira missa conventual, em vez de pregão feito três vezes no templo, mais
proveitoso e útil seria para a humanidade que os nubentes, dos quais se anunciava a
união, fossem submetidos a uma rigorosa inspecção de saúde.
Em vez dessa folha corrida em público indagando dos impedimentos que porventura
os noivos pudessem ter, não seria mais producente um atestado de validade dos
nubentes e um rigoroso exame sanitário nos mais próximos ascendentes, a começar
dos trisavôs? Este processo, que será o futuro, evitaria a união de enfermos e a
propagação de diáteses que tanto acabrunham, dizimam e degeneram a espécie
humana já por si tão fraca, tão miserável (TEÓFILO, 1974, p. 60).

O que se propôs nesse trecho para evitar a “degeneração da espécie humana” foi
que a união entre as pessoas não deveria ser um assunto resolvido pela igreja, já que ela não
possuía suporte científico para decidir sobre questões relacionadas à hereditariedade. Essa
questão deveria ser analisada pela ciência médica. Assim, os nubentes deveriam passar por
um “rigoroso exame sanitário”. E, se necessário, em caso de consanguinidade, o impedimento
da união deveria ser determinado pelos tribunais civis. Fica nítida a apropriação do paradigma
médico por parte desse autor, o qual entendia que as leis deveriam estar à disposição do
diagnóstico médico. A possibilidade de impedimento sobre determinadas uniões também
remete à concepção de eugenia.21
Lilia Schwarcz (1993, p. 79) aponta que a eugenia ganhou notoriedade, enquanto
movimento científico e social, a partir da década de 1880. No campo da ciência ela propôs
que seria possível alcançar um equilíbrio genético, através de uma compreensão radicalizada
sobre as leis da hereditariedade. Ao ser aplicada nas sociedades, ela visava alcançar “um
aprimoramento das populações”. Isso seria possível através da identificação dos elementos
indesejáveis e o desencorajamento das uniões consideradas nocivas, além de proibir os
casamentos inter-raciais. As propostas eugenistas tinham como lema a expressão latina “mens
sana in corpore sano”, a qual serviu de epígrafe ao romance de ficção científica de Rodolfo
Teófilo, o utópico Reino de Kiato, publicado em 1922. Apropriando-se desse discurso
médico, difundido pela faculdade baiana, Rodolfo Teófilo possuía uma visão bem radical
21
Fundada em 1883 pelo primo de Darwin, Francis Galton (1822-1911), era uma espécie de prática avançada do
darwinismo social que visava a intervenção do Estado na reprodução das populações para evitar a procriação
entre sujeitos inferiores e atingir o aperfeiçoamento da humanidade.
54

sobre a necessidade de impedir a procriação entre pessoas portadoras de doenças consideradas


degenerativas. Por outro lado, quanto às uniões inter-raciais, ele demonstrou uma visão mais
flexível, o que se torna compreensível diante da grande miscigenação que já havia ocorrido no
sertão cearense, desde o período colonial, como veremos no capítulo a seguir.
55

3 “UMA VARIEDADE DE TIPOS DE COR”: MISCIGENAÇÃO E CIVILIZAÇÃO


NA COLONIZAÇÃO DO CEARÁ

Podemos afirmar que a escrita literária de Rodolfo Teófilo se revela como um


verdadeiro laboratório racial, onde os diferentes tipos de miscigenação foram experimentados.
Já adiantamos que tentar delinear os diferentes tipos raciais formadores do povo cearense
propostos por esse autor foi um exercício analítico bastante escorregadio, já que, para ele, a
miscigenação ocorreu com muita intensidade, variedade e em diferentes proporções no
território cearense. Porém, ao tentar demonstrar um profundo conhecimento sobre
antropologia, craniologia e outras ciências em voga no período, ele trouxe especificações e
terminologias, no mínimo, peculiares sobre a constituição étnica e cultural do sertão cearense.
É nítido o seu interesse em registrar características que identificavam e diferenciavam esse
povo. Ao tratar da formação racial desse povo, Rodolfo Teófilo apresentou importantes
elementos constitutivos de uma cultura sertaneja fortemente ancorada no patriarcalismo, e de
uma sociedade atravessada por desigualdades de gênero, raça e classe.

3.1 “UM MISTO DE BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO”: A INSERÇÃO DA RAÇA BRANCA


NO SERTÃO CEARENSE E A PERSPECTIVA COLONIALISTA SOBRE O “OUTRO”

Para analisar a construção do pensamento racial de Rodolfo Teófilo sobre sua


província de atuação, convém situá-lo numa posição mais ampla de intelectual pertencente a
um país da América, que durante muito tempo esteve submetido à condição de país colonial.
Que essa condição não sirva como uma camisa de força para tolher a originalidade de sua
produção, mas que nos ajude a refletir sobre a necessidade de problematizar a constituição
colonial dos saberes e ter clareza que na América Latina o fim do colonialismo não significou
o fim da colonialidade. Edgardo Lander (2005) ressalta que a conquista ibérica do continente
americano deu início não apenas à organização colonial do mundo, mas iniciou-se também a
constituição colonial dos saberes, que culminou, nos séculos XVIII e XIX, na construção de
um modelo civilizatório único e universal. Esse modelo civilizatório posicionava a Europa
como ponto de referência e procurou submeter o restante da humanidade a percorrer os seus
estágios de evolução.
Elaborado no contexto europeu – marcado pela consolidação das conquistas
burguesas e expansão do capitalismo – o evolucionismo, do ponto de vista social, se propôs a
encontrar uma direção para a qual se encaminhariam as diferentes sociedades humanas ao
56

longo da história. Essa teoria tinha como pressuposto que as sociedades localizadas em
estágios mais “simples” (povos primitivos) evoluiriam naturalmente para estágios mais
complexos (sociedades ocidentais) (ORTIZ, 2006, p. 14-15). Assim, procurava-se estabelecer
as leis que definiriam o progresso das civilizações e, consequentemente, a suposta
superioridade europeia. Pois, o que o evolucionismo sugeria era um modelo universal, único e
obrigatório de evolução, em que as sociedades, em todas as partes do mundo, encontravam-se
em estágios diferentes e sucessivos; e a sociedade europeia, encontrando-se no estágio mais
elevado, deveria levar o desenvolvimento ao restante do mundo.
Entendendo que a difusão das ideias ocorre atrelada às condições históricas em
que elas são elaboradas e recepcionadas, compreende-se que a grande aceitação do
evolucionismo pelas nações europeias não pode ser vista de forma desvinculada às suas
políticas imperialistas. “Do ponto de vista político, tem-se que o evolucionismo vai
possibilitar à elite europeia uma tomada de consciência de seu poderio que se consolida com a
expansão mundial do capitalismo” (ORTIZ, 2006, p. 14-15). Essa consciência convergia para
a legitimação de sua posição ideológica de hegemonia e superioridade sobre os outros povos.
E quanto a estes outros povos, Edgardo Lander ressalta que muitos deles foram aniquilados
por essa política imperialista europeia, já outra parte acabou por assimilar os ideais
civilizatórios:

As outras formas de ser, as outras formas de organização da sociedade, as outras


formas de conhecimento, são transformadas não só em diferentes, mas em carentes,
arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-modernas. São colocadas num momento
anterior do desenvolvimento histórico da humanidade (Fabian, 1983), o que, no
imaginário do progresso, enfatiza sua inferioridade. Existindo uma forma “natural”
do ser da sociedade e do ser humano, as outras expressões culturais diferentes são
vistas como essencial ou ontologicamente inferiores e, por isso, impossibilitadas de
“se superarem” e de chegarem a ser modernas (devido principalmente à
inferioridade racial). Os mais otimistas vêem-nas demandando a ação civilizatória
ou modernizadora por parte daqueles que são portadores de uma cultura superior
para saírem de seu primitivismo ou atraso. Aniquilação ou civilização imposta
definem, destarte, os únicos destinos possíveis para os outros (LANDER, 2005, p.
13-14).

O Brasil, situado no seio do capitalismo internacional em expansão e otimista


quanto ao seu progresso comercial, buscava se inserir na marcha civilizatória. “A finalidade
do Estado e de seus intelectuais, era elevar a natureza do país da barbárie à civilização”
(DOMINGUES, 1996, p. 43). Recorrer a esse aporte teórico evolucionista colocava os
intelectuais brasileiros numa situação de impasse, pois implicava em aceitar que o Brasil, em
57

sua condição de país periférico, encontrava-se em um estágio inferior em relação à etapa


alcançada pelos países europeus.
O evolucionismo fornecia uma compreensão eurocêntrica para a problemática
situação nacional. Problemática porque o Brasil havia saído recentemente da condição política
de país colonizado, mas ainda possuía estruturas profundamente marcadas pelo peso da
colonialidade e vivia um processo de busca pela afirmação da sua nacionalidade. Isso
significa dizer que, ao mesmo tempo em que a elite intelectual brasileira buscava criar um
sentimento de pertencimento e união entre povos tão distintos que habitavam o território
nacional, as estruturas do país ainda estavam fincadas em elementos provenientes da antiga
condição colonial, tais como a mão de obra escrava, a enorme desigualdade social, a
propriedade fundiária e a forte influência da Igreja Católica nas instituições do Estado.
Frente a esse desafio, coube aos homens letrados do Brasil, tanto na historiografia,
como na literatura, construir uma explicação capaz de conferir inteligibilidade e dar suporte à
construção de uma identidade nacional. Segundo Renato Ortiz, tornava-se necessário àquela
intelectualidade “explicar o ‘atraso’ brasileiro e apontar para um futuro próximo, ou remoto, a
possibilidade de o Brasil se constituir como um povo, isto é, uma nação” (ORTIZ, 2006, p.
15). Na medida em que a realidade nacional se diferenciava da europeia, a interpretação
evolucionista adquiria, no Brasil, novos contornos e peculiaridades. Desse modo, apenas o
evolucionismo não foi capaz de explicar a especificidade nacional e o porquê do atraso do
país.

Se o evolucionismo torna possível a compreensão mais geral das sociedades


humanas, é necessário porém completá-lo com outros argumentos que possibilitem o
entendimento da especificidade social. O pensamento brasileiro da época vai
encontrar tais argumentos em duas noções particulares: o meio e a raça.
Os parâmetros de raça e meio fundamentam o solo epistemológico dos intelectuais
brasileiros de fins do século XIX e início do século XX (ORTIZ, 2006, p. 15).

Os conceitos de meio e raça, tão caros a Rodolfo Teófilo, de um modo geral,


ganharam um lugar de destaque nas explicações dos intelectuais brasileiros nas últimas
décadas do século XIX, na medida em que expressavam o que havia de específico em nossa
sociedade. Esses intelectuais buscavam demonstrar que o Brasil não poderia ser mais uma
cópia da metrópole, pois se tratava de “um país geograficamente diferente da Europa,
povoado por uma raça distinta da europeia” (ORTIZ, 2006, p. 16-17).
Porém, destaca-se que a tentativa de elaborar uma identidade nacional para o
Brasil é anterior ao argumento racial forjado pelo cientificismo e naturalismo do final do
58

século XIX. Após o movimento de independência política de 1822, o Brasil começou a gestar
um projeto de construção do Estado-Nação. No entanto, como ressalta Heloisa Domingues, as
resistências internas e externas ao governo imperial dificultaram o projeto de implantação da
unidade política em torno da monarquia, o qual só se consolidou em meados do século XIX,
quando as lutas internas foram sufocadas. Só a partir da consolidação do governo imperial, na
figura de D. Pedro II, é que o Estado brasileiro conseguiu empreender uma política de
afirmação da sua identidade nacional (DOMINGUES, 1996, p. 42).
Manoel Carlos de Alencar afirma que, no Brasil, “o Estado veio antes da nação,
pois se consolidou primeiro politicamente, como unidade independente, e depois os letrados
trataram de pensá-lo ‘espiritualmente’” (ALENCAR, 2015, p. 36). Partindo do conceito
elaborado por Benedict Anderson, esse estudioso nos mostra que o Brasil no século XIX só
pode ser pensado, enquanto nação, como uma “comunidade imaginada”. Embora houvesse
conquistado sua independência política em 1822, esse país não possuía uma identidade
cultural unificadora. Ele se constituía em um vasto território, formado por diversos grupos
sociais e étnicos, muitas vezes isolados pela falta de comunicação e transporte, e que não se
reconhecia enquanto um povo ou uma nação (ALENCAR, 2015, p. 19-20). Desse modo, ao
destacarmos a tentativa de elaborar um projeto de identidade nacional, como uma forte
característica do século XIX, nos referimos a um projeto compartilhado por uma minoria. Um
projeto elaborado por um grupo de intelectuais e letrados, do qual não fazia parte a maioria da
população – analfabeta, excluída socialmente e habitando os diversos rincões do país.
Desde a década de 1820, com a independência política do país, a intelectualidade
brasileira tratou logo de negar a influência da metrópole portuguesa, visando construir a
imagem de uma nação autônoma, com características próprias. Porém, o que eram definidos
como os elementos constituintes de uma nação partiam do modelo europeu, tais como os
mitos e lendas sobre um povo fundador. Perrone-Moysés (1997) destaca que o nacionalismo
se constitui por diversas imagens e metáforas e que algumas dessas metáforas “utilizadas nos
discursos identitários da América Latina nos permitem captar as dificuldades da constituição
de sua auto-imagem, e verificar que essa imagem depende sempre do outro europeu, quer seja
para imitá-lo, quer para rejeitá-lo” (PERRONE-MOYSÉS, 1997, p. 247).
Segundo Heloisa Domingues, “a ideia de nação que se desenvolveu no Brasil
naquela época criou uma imagem da nação associada às suas riquezas naturais: as riquezas,
potencialmente econômicas que o país guardava em suas entranhas ainda inexploradas”
(DOMINGUES, 1996, p. 42). Buscava-se também impulsionar a economia do país através da
descoberta e exploração de suas riquezas naturais. Na historiografia, esse projeto tomou forma
59

através da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, com a


finalidade de construir a História do Brasil e dar bases à sua nacionalidade. Tanto as viagens
ao interior do Brasil, quanto as publicações realizadas por essa instituição, em meados do
século XIX, tinham como propósito conhecer os aspectos físicos e geográficos do país e
entrar em contato com os grupos indígenas.
De acordo com Maria da Glória de Oliveira (2013), uma das principais questões
em pauta na historiografia brasileira do século XIX era definir o lugar do indígena na história
do país. Ao analisar a produção de um notável escritor como Capistrano de Abreu, essa autora
compreende que, ao ressaltar o papel desempenhado pelos indígenas, os historiadores e
intelectuais do período buscavam estabelecer uma “ascendência histórica” na narrativa sobre a
nação. Assim, diante da diversidade de povos e culturas que coexistiam nesse território,
elegeu-se o indígena como o povo fundador da nação brasileira. Os escravos não interessavam
porque eram considerados estrangeiros e estavam excluídos dos direitos de cidadania. Já os
nativos, numa visão ambígua, embora fossem considerados selvagens e representassem o
oposto à civilização, também eram considerados como símbolos da liberdade.
Esse projeto de nação também teve grande ressonância na produção literária do
período, com grande destaque ao Romantismo. Esse movimento literário, que predominou
durante uma boa parte do século XIX, foi responsável por eleger o indígena como símbolo da
nacionalidade. Manoel Alencar (2015, p. 80-82) nos lembra que o Romantismo no Brasil, em
sua primeira fase – logo após a independência política –, tratou de negar a influência lusitana,
mas acabou recorrendo aos teóricos de outras nações europeias, como a França, para pensar a
literatura nacional. Destaca que o escritor francês Ferdinand Denis, que teve grande influência
sobre os autores românticos brasileiros, sugeria que um ponto crucial para a literatura
brasileira reivindicar sua autonomia seria através da figuração do indígena como símbolo
nacional. Denis “foi o primeiro, no século XIX, a figurar o indígena brasileiro como uma raça
nobre e guerreira, em contraposição aos portugueses, movidos pela cobiça, vingança e sede de
glória” (ALENCAR, 2015, p. 82). Porém, essa visão positivada dos indígenas, da qual se
apropriaram muitos autores românticos, como José de Alencar, não se refere aos grupos
indígenas que habitavam o Brasil durante o século XIX. O indígena era figurado como “uma
essência espiritual, um modelo distante no tempo e no espaço, mediante o qual se poderia, no
caso do Brasil, positivar o país” (ALENCAR, 2015, p. 97).
De um modo geral, nas últimas décadas do século XIX, quando o darwinismo
social (ou teoria das raças) se difundiu entre os cientistas e homens letrados, no campo
intelectual brasileiro vivia-se um momento de afirmação da nacionalidade e os intelectuais
60

buscavam inserir o país na marcha civilizatória, assim, a interpretação das diferenças raciais
mesclou-se às concepções evolucionistas. A partir de então, o arcabouço para a construção da
identidade nacional passou a se fundamentar na ideia de raça. 22 Nesse momento houve
também uma guinada na produção literária. O Realismo/Naturalismo, que tinha por princípio
a aproximação com a realidade, passou a questionar a ideia de nacionalismo proposta pelo
Romantismo e fundamentada em uma imagem idealizada e fantasiosa sobre o indígena. Para
muitos intelectuais e críticos literários dessa geração denominada Geração Modernista de
1870, tais como Sílvio Romero, os elementos indígenas haviam se dissolvido na miscigenação
com os brancos e os negros. Seria, portanto, o mestiço o tipo racial característico da nação
brasileira.
Essa rápida explanação sobre o cenário intelectual e literário brasileiro do século
XIX, marcado pelo desejo de construir uma identidade nacional para o Brasil, serve para
pensarmos sobre a produção literária de Rodolfo Teófilo na década de 1890 e como a mesma
se relacionava com essas questões. Já ressaltamos que a questão racial marcou intensamente a
escrita desse autor e que o cientificismo é a sua marca mais patente. Porém, isso não significa
que esse literato tenha se distanciado por completo do Romantismo e daquela forma de
representar os indígenas. Nesse sentido, a preocupação com a contribuição do indígena, tão
recorrente à produção historiográfica e literária brasileira do século XIX, também esteve
presente em uma das obras desse autor, o romance Maria Rita (1897).
Essa obra trata-se de um romance histórico e se reporta ao período colonial,
quando o território cearense estava sob a dominação portuguesa, representada pelo
governador Francisco Alberto Rubim. Fortemente ancorada às concepções deterministas e
raciais, a obra narra a história da protagonista Maria Rita, uma mestiça, filha de um
colonizador branco português com uma indígena de origem tapuia. As características raciais,
juntamente à influência do meio, aparecem nessa obra como os elementos responsáveis pela
constituição temperamental das personagens envolvidas na trama.
Por acreditar na hierarquização racial proposta pelo darwinismo social, Rodolfo
Teófilo apresentou os indígenas como uma raça inferior à raça branca. Porém, ao longo de
nossas análises sobre essa obra, pudemos constatar que, muitas vezes, esse autor também
lançava um olhar idealizado, aos moldes do Romantismo, sobre os indígenas do período
colonial, tratando-os como corajosos e insubmissos, em oposição aos portugueses. Essa

22
Já em 1840, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) havia realizado um concurso de propostas
para a escrita da História do Brasil. Destaca-se que a proposta vencedora foi de um estrangeiro, o naturalista
alemão Karl Friedrich P. Von Martius. O mesmo propunha um projeto que levasse em consideração a
contribuição das três raças formadoras do povo brasileiro.
61

aparente contradição demonstra uma miscelânea de referenciais teóricos e literários que esse
autor possuía e a riqueza de sua produção, sendo difícil associá-lo à apenas uma estética
literária.
Tomado isoladamente de um contexto mais amplo, tal romance parece ser
destoante ao conjunto de obras aqui analisado, o qual se caracteriza por seguir um fio
temático referente às secas que assolaram o Ceará no final do século XIX. Além de estar fora
da temática da seca, Maria Rita também não se refere a nenhum momento histórico
vivenciado por seu autor, o que a torna ainda mais peculiar, pois esse autor fazia questão de
enfatizar o seu papel de testemunha ocular na maioria dos fatos por ele vivenciado e
transformado em romance. Porém, essa obra reflete uma questão mais ampla, a preocupação
com a contribuição do indígena para a formação do povo brasileiro. E trazendo essa
preocupação para o âmbito local, através de seu romance, Rodolfo Teófilo elaborou uma
explicação para a formação do povo cearense.
Ao estudar sobre o romance histórico, Rogério Silva afirmou que na teoria
fundacional desse gênero “existe o princípio de que há uma história e que esta intervém
diretamente na vida do indivíduo e, para tanto, este a representa e ao fazê-lo representa
também uma coletividade” (SILVA, 2016, p. 50). Portanto, a história de Maria Rita trata da
história do processo de colonização do Ceará e da mistura racial que deu origem ao povo
cearense, na perspectiva daquele literato.
Em A Ascensão do Romance (1990), Ian Watt afirmou que o que diferencia o
romance das demais formas de produções literárias existentes até então é que esse gênero
apresenta uma percepção individual e específica da realidade e da experiência humana, assim
como uma detalhada apresentação do ambiente. O romance histórico, de forma mais
específica, “corresponde às narrativas, cujo objetivo explícito consiste em promover uma
apropriação dos fatos históricos de uma dada comunidade humana, em um determinado
momento” (SILVA, 2016, p. 88). Nesse tipo de produção literária há uma intencional
tentativa de aproximação da narrativa apresentada a um determinado momento histórico.
Utilizando-se do realismo como recurso literário (aqui não nos referimos à escola
literária), no romance histórico, o narrador constrói personagens que são fictícias, mas
inseridas em uma estrutura social e dotadas de um modo de ser que são próprios de uma
época. Os sujeitos são caracterizados, e não apenas descritos. Além disso, o narrador busca
realizar uma reconstrução temporal e espacial que proporcione ao leitor adentrar em uma
esfera reconhecível historicamente. A obra aqui analisada foi ambientada no início do século
XIX, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal. Ao longo de sua narrativa, percebemos
62

elementos que caracterizavam o modo de vida sertanejo no interior do Ceará daquele período,
como, por exemplo, o papel destinado à mulher naquela sociedade; a bravura do vaqueiro
cearense; e alguns costumes da época, considerados bárbaros por seu narrador, como as
práticas de cura baseadas no curandeirismo.
Para inserir o leitor àquele contexto histórico, a narrativa abordou, já nas suas
primeiras páginas, o atraso material e moral de Fortaleza: “Ao atrazo material da Fortaleza
juntava-se o atrazo moral de seus habitantes. As artes e as indústrias, ainda hoje, como o povo
em via de formação, estavam longe de nascer” (TEÓFILO, 1897, p. 6). A partir deste pequeno
trecho destacamos a percepção que o narrador transpôs sobre o processo histórico, numa
perspectiva evolucionista. Tal citação demonstra a necessidade de atentarmos para a estreita
relação que se estabelece entre o presente vivido pelo narrador e o passado por ele
apresentado. De modo que o passado só pode ser percebido enquanto tal a partir do presente.
Assim, o Ceará colonial apresentado na obra parte da perspectiva de um literato que vivia a
passagem do século XIX para o XX. E no romance histórico é primordial tentar compreender
essa relação que se estabelece entre o presente e o passado do narrador, “de forma que os dois
tempos não se pareçam alheios um ao outro, já que mutuamente se complementam e desse
imbricamento recíproco é que se pode aferir um sentido histórico válido” (SILVA, 2016, p.
109-110).
Para abordarmos sobre a perspectiva colonial apresentada na obra, ressaltamos
que, desde os primeiros contatos dos europeus com a América, foram múltiplas as
representações já construídas sobre esse continente, tanto pelos estrangeiros como por seus
habitantes. Perrone-Moysés lembra que “as primeiras descrições das terras americanas as
identificavam ao Paraíso; os europeus se espantavam com a grandiosidade e a exuberância da
natureza americana” (PERRONE-MOYSÉS, 1997, p. 252). Quanto às imagens construídas
sobre os nativos, houve uma enorme incongruência nas suas representações, as quais
variavam de um extremo a outro, revelando-os, por vezes, como canibais, incestuosos e
incivilizáveis, ou como seres naturais, ingênuos e livres. Roberto Ventura ressalta que a
filosofia iluminista contribuiu de forma intensa para uma visão negativa sobre o homem e a
natureza americana no século XVIII, embora essa visão não fosse única:

A filosofia da Ilustração inverteu a visão paradisíaca da América, ao formar um


novo discurso sobre o homem e a natureza americana, marcado pela negatividade.
Esse discurso, que rompe com a projeção da imagem do Éden sobre o Novo Mundo,
legitima a expansão colonial europeia, encarregada de difundir as luzes da Europa
civilizada. A ideia da inferioridade do meio americano e da fraqueza de suas formas
63

de vida se difundiu no pensamento europeu o século XVIII, com Buffon, De Pauw e


Raynal (VENTURA, 1991, p. 22).

De um modo geral, a maior parte das representações que prevaleceram sobre a


América no pensamento europeu durante os séculos XVIII e XIX foram depreciativas, no
sentido de tratar a natureza e os habitantes dos tópicos como degenerados pelo clima (GERBI,
1996 apud ALENCAR, 2015, p. 49). O Romantismo europeu projetava nas sociedades
primitivas das América um contraponto ao modelo de civilização da Europa. Nesse sentido,
passou a ser recorrente a antípoda “civilização versus barbárie” no modo de representar essas
duas sociedades.23 Vejamos que tais formulações partiam de uma visão eurocêntrica sobre o
“outro”. É a partir dos parâmetros europeus que se determinava o que era civilizado e o que
era bárbaro. O outro, sendo diferente, era tratado como estranho e como exótico. Embora
muitos literatos brasileiros buscassem positivar a visão sobre a origem e o futuro da nação
brasileira, Ventura entende que esses literatos não conseguiram romper com a visão exótica
sobre os habitantes do Brasil:

Ferdinand Denis, o autor de Résumé de l’histoire littéraire Du Brésil, marcou os


românticos brasileiros. Sua influência foi responsável, como observou Antonio
Candido, pelo “persistente exotismo, que eivou a nossa visão de nós mesmos até
hoje”: passamos “a nos encarar como faziam os estrangeiros, propiciando, nas letras,
a exploração do pitoresco no sentido europeu, como se estivéssemos condenados a
exportar produtos tropicais também no terreno da cultura espiritual”. Tal exotismo
trouxe o interesse pelos aspectos pitorescos do meio tropical e de seus habitantes
“naturais”, os selvagens e indígenas (VENTURA, 1991, p. 36).

Essa visão exótica, lançada pelos próprios intelectuais brasileiros sobre o Brasil e
seus habitantes, revela o lado mais perverso da colonialidade, pois, partindo de uma visão
eurocêntrica, ao assimilar a ideologia civilizatória, aliada às teorias raciais e climáticas, esses
homens letrados adotaram uma espécie de imperialismo interno. Assim, não se identificavam
com o restante da população por eles representada e seus posicionamentos acabaram
contribuindo para fomentar uma visão preconceituosa e estereotipada sobre as culturas
populares. No campo literário, embora o nacionalismo do século XIX reivindicasse por uma
originalidade e autonomia da produção nacional, ele não conseguiu romper com a lógica da
colonialidade de inferiorização dos povos de origem africana e indígena, ou mesmo aqueles

23
Não só no Romantismo europeu, como na produção literária da América, de um modo geral, “o encontro (ou
enfrentamento) da Civilização com a Barbárie foi alegorizado por numerosos romancistas, como o argentino
José Mármol (Amalia, 1851) e o brasileiro José de Alencar (O Guarani, 1857 e Iracema, 1865). A questão seria
retomada por Euclides da Cunha em Os sertões (1902) e por muitos outros escritores latino-americanos, como o
venezuelano Rómulo Gallegos (Doña Bárbara, 1929)” (PERRONE-MOYSÉS, 1997, p. 248).
64

que se encontravam nos recantos mais distantes dos centros urbanos. Para Perrone-Moysés,
algumas metáforas utilizadas nos discursos identitários da América Latina “foram
autodepreciativas ou pelo menos conflituosas. Essas metáforas tomaram a forma de oposições
que mostram, claramente, o reconhecimento da inferioridade e da dependência com relação à
Europa” (PERRONE-MOYSÉS, 1997, p. 248).
Partimos dessa compreensão para problematizarmos o pensamento de Rodolfo
Teófilo e as representações por ele construídas sobre o sertão cearense no período de
colonização. Maria Rita é, talvez, o seu romance em que a ideologia civilizatória aparece de
forma mais intensa atrelada à teoria racial. Uma visão estereotipada sobre o que era
considerado como um universo de barbárie aparece de forma bem nítida nessa obra quando o
seu narrador descreve uma cabocla feiticeira que vivia nos recantos mais afastados do sertão:

De repente uma engelhada mão cabocla correu o frágil reposteiro e appareceu na


claridade crepuscular a figura de uma mulher bastante idosa.
Aquelle typo repellente de bruxa, quase bestificado pelo isolamento, pela
ignorância e curteza de intelligencia, visto aquella hora e em tão soturno logar,
vibrou nos nervos do proprio Belmonte uns ligeiros frêmitos de nojo.
A mulher sahiu ao terreiro a fazer mesuras e logo após appareceu uma outra figura
humana tão asquerosa ou mais ainda do que ella. Era o seu amasio, quasi velho,
meio nu, e em vez de venias, bodejava uma serie de sons graves e agudos, nasaes e
gutturaes, sem articular palavra tendo os olhos estrábicos a olhar um para o norte e
outro para o sul.
(...)
A fraca claridade do dia em seu adeus de despedida a terra deixava ver naquelle
antro figuras que impressionavam desagradavelmente os sentidos, que desalentavam
a alma. Um misto de barbaria e civilisação dava àquella estancia um tom
especial, que fazia arrepiar as carnes de todo o vivente humano que não fosse
um selvagem ou uma creatura bestialisada. Suspensas a um canto estavam duas
redes, verdadeiras tipóias, pretas de sujidade e sebentas, dignos leitos do casal de
bestas que nellas dormia e mais empestavam aquelle mephitico ambiente.
A venda impedia a Bulhões de avaliar a degenerescencia das creaturas que o iam
hospedar; mas o nariz sorvendo as partículas de porcaria suspensas na atmosphera o
avisava da immundice que por ali havia (TEÓFILO, 1897, p. 332-334. Grifo nosso).

Através da perspectiva do narrador evidencia-se o olhar de distanciamento e


repulsa que Rodolfo Teófilo lançou sobre aquele universo que considerava bárbaro. Aqui
destacamos aquilo que Roberto Ventura chama de exotismo cultural, o qual esteve tão
presente entre os homens letrados que assimilaram os ideais civilizatórios. Tal exotismo
favoreceu, por um lado, ao “distanciamento ante os costumes da própria sociedade, trazendo
um olhar antropológico. Por outro, introduz negatividade na sua auto-representação, que leva
à visão eurocêntrica das culturas populares de origem africana, indígena ou mista”
(VENTURA, 1991, p. 38-39). Na citação acima essa negatividade foi exposta através das
impressões desagradáveis que ocasionavam aquelas personagens, descritas como asquerosas,
65

repelentes e bestializadas. A visão sobre aquele universo tido como bárbaro se encerrou em
uma rede de negações. De modo que o mesmo apareceu vinculado à bruxaria, à ignorância, à
falta de higiene e a uma bestialização dos seus integrantes, os quais demonstravam
dificuldade até mesmo em comunicar-se com o mundo civilizado. Enfim, esses povos
estavam condenados àquilo que o narrador chamou de degenerescência.
Podemos dizer que o projeto nacionalista, elaborado por uma elite cultural,
entrava em tensão com a diversidade étnica e cultural do país. Além disso, não se interessava
em tornar visíveis as gigantescas desigualdades sociais. Com efeito, os interesses dessa elite
letrada não coincidiam com os interesses dos grupos pobres, analfabetos, negros e indígenas.
Rodolfo Teófilo, ao assimilar a ideologia civilizatória e as teorias raciais, se identificou com a
ideologia colonialista e adotou a visão exótica, através da qual fez uma releitura sobre o sertão
cearense, numa relação etnocêntrica. Através dessa observação, queremos atentar para o fato
de que a sua literatura apresenta a perspectiva de um intelectual, farmacêutico e citadino que
olhava para o sertão de fora, olhava a partir de seu lugar social e captava um sertão inculto.
Ao falar da multiplicidade de visões sobre o sertão presente na obra de Rodolfo Teófilo,
Manoel Alencar nos alerta que “são vários os sertões de Rodolfo Teófilo, mas nunca o sertão
que se nomeia, nunca visto de dentro, mas sempre de fora, pelo citadino, pelo intelectual na
procura de dar sentido a uma experiência do outro, na busca de sua própria experiência”
(ALENCAR, 2002, p. 107).
Esse “sertão”, muitas vezes, se encontrava numa esfera oposta a uma modernidade
que ditava os parâmetros do modo de vida urbano, desde o final do século XIX e, mais
intensamente, nas primeiras décadas do XX. É nesse sentido que Schwarcz atenta para a
existência de diferentes “brasis” e nos dá a dimensão de quão ilusória é a ideia de identidade
nacional:

Uma nação dividida por tantas diferenças regionais e raciais, eis aí novas
polarizações que se enraizavam no discurso local. De um lado, a cidade, definida
pela indústria, pelas oportunidades de trabalho, pelo mercado, mas também por uma
política de exclusão e distanciamentos. De outro, os “demais brasis”, perdidos nos
sertões longínquos na realidade e na imaginação, nas florestas fechadas. Aí estavam
“dois brasis” que eram na verdade um só, mas a conviver de maneira ambivalente e
conflituosa (SCHWARCZ, 2012, p. 24).

Hobsbawm (2008), ao falar do “longo século XIX”, por ele delineado de 1775 até
o ano de 1914, destaca que nunca antes existiu uma época em que a cultura e a vida
intelectual ocidental tenham sido direcionadas por uma minoria tão próspera e culta como a
burguesia industrial europeia. Ao mesmo tempo em que o mundo capitalista se tornava cada
66

vez mais interligado, as diferenças entre as economias capitalistas centrais (Europa e Estados
Unidos) e as regiões à sua margem tornavam-se cada vez maiores. Luciana Murari assinala
que essas discrepâncias refletiam de forma aguda dentro do próprio território nacional. E isso
era perceptível tanto pela “convivência de um mundo urbano modernizado e cosmopolita com
os vastos sertões pobres, primitivos e inexplorados” (MURARI, 2009, p. 19), como por meio
de “uma cisão considerável entre o intelectual e o povo, tantas vezes condenado por uma
inferioridade intrínseca que, se assumia mais frequentemente a máscara do estigma racial, era
nitidamente social e cultural” (MURARI, 2009, p. 37). Porém, essa autora ainda afirma que
tal distância não impediu que aquela intelectualidade revelasse um curioso interesse em
observar e descrever os “inquietantes e oblíquos domínios do inculto, demarcando com
nitidez sua perspectiva de distanciamento intelectual, histórico, temporal e social com relação
a eles” (MURARI, 2009, p. 37).
As representações feitas por Rodolfo Teófilo sobre esses sertões são múltiplas.
Por um lado, encontramos no romance Maria Rita significações que associam o sertão à
barbárie, à ignorância e à degenerescência. Por outro, foi possível perceber, ao longo de sua
narrativa, que ao comparar o modo de vida sertanejo com a vida na cidade, o primeiro é
tratado como um lugar puro e a segunda como um ambiente contaminado pela injustiça. Isso é
perceptível através da visão do velho Queiroz, um sertanejo muito honrado, que após saber da
prisão e degredo do filho para a capital (sede do governo português) foi socorrê-lo. Na capital
da província cearense, o velho Queiroz percebeu que aquele era um ambiente corrompido pela
hipocrisia: “Quiz voltar, correr até as florestas de seu sertão, lá onde mora a innocencia com
seu cortejo de erros, mas onde a hypocrisia ainda não armou tenda, e esconder-se por uma vez
nas suas mattas; porém o filho ficaria a mercê daquella súcia de canalhas” (TEÓFILO, 1897,
p. 293). Após usar de todos os recursos dignos e honestos para libertar o filho, o velho
Queiroz percebeu que naquele meio corrompido só dariam andamento à sua causa por meio
do suborno:

A ideia de suborno não podia aceitar, entretanto, o espírito recto do sertanejo. [...]
Era-lhe preciso subornar tudo até realisar os seus intentos. Desde o maltrapilho
meirinho com antipathica figura de coveiro, até o ouvidor, mais grave mais limpo,
porém tão patife ou mais ainda do que aquelle [...] (TEÓFILO, 1897, p. 294).

Pelo modo como os sertanejos foram figurados nessa obra, percebemos aquilo que
Roberto Ventura classificou como forma de tratamento “ambivalente pelo discurso europeu,
que oscila entre a imagem positiva da felicidade natural e inocente dos habitantes de clima
67

fértil, e a condenação dos seus costumes bárbaros” (VENTURA, 1991, p. 22). Se, por um
lado, houve uma esteriotipação de indivíduos considerados bárbaros e degenerados, por
estarem muito distantes do alcance civilizatório, por outro, houve uma valorização do modo
de vida do sertanejo cearense, em especial por sua honra e sede de justiça. Isso demonstra que
na visão desse intelectual, nem sempre, a civilização trazida pelos portugueses estava atrelada
a aspectos positivos. Nesse ponto, chamamos atenção para aquilo que Manoel Alencar
chamou de paradoxo da civilização e esteve presente na escrita de muitos autores
oitocentistas:

Encontra-se aí um paradoxo que atravessou o pensamento social brasileiro no século


XIX. O país deveria progredir a estádios mais avançados, tendo como reflexo os
países europeus, sobretudo a França. Deveria civilizar-se, mas a civilização era, na
maioria das vezes, identificada como sinal de decadência e superficialidade. O meio
urbano e civilizado, como desenhado por um sem-número de romances oitocentistas,
foi o lócus por excelência de relações mundanas e degeneradas, onde sobressaem
relações ditadas pelo interesse vil e comportamento dissimulado. A civilização era,
em síntese, uma sociedade de aparências (ALENCAR, 2015, p. 58).

Tal concepção percorre toda a obra de Rodolfo Teófilo. Assim, o sertão aparece
como a antítese da cidade. Não menos paradoxo, algumas vezes ele foi apresentado como um
lugar onde reinava a ignorância e a barbárie, outras vezes, como o lugar que conseguiu se
preservar intacto da depravação trazida pelas relações mundanas presentes naquela sociedade
de aparências.
Nesse contexto de assimilação da ideologia civilizatória atrelada à teoria racial,
enfatiza-se que a raça branca aparece como a responsável por trazer a civilização europeia aos
trópicos. No entanto, entendemos que a análise de Maria Rita não deve se reduzir a essa
premissa. A narrativa e a forma como as personagens estão dispostas se apresentam numa
configuração ambígua. Isso significa que a adesão desse autor às teorias raciais e sua forma
de interpretá-las e aplicá-las à construção de seus sujeitos não enveredaram por um caminho
único. Embora Rodolfo Teófilo, de um modo geral, fosse favorável ao modelo civilizatório e
colocasse a raça branca no topo da hierarquia racial, ele mostrou em sua obra que os
colonizadores portugueses não eram dotados apenas de qualidades positivas. Exemplo disso é
a personagem José Maria da Purificação, pai de Maria Rita. Esse português foi caracterizado
como um homem bem apessoado, novo, com inteligência e músculos e que sabia ler, mas que
saiu de Portugal na condição de condenado, por praticar gatunagem e vagabundear nas ruas de
Lisboa. José Maria da Purificação era uma pessoa egoísta e incapaz de demonstrar afeto ou
interesse por alguém que não fosse ele próprio.
68

Purificação também nenhum caso fez daquela falta de affecto dos seus; não deu por
ella porque pouco caso fazia do bem querer da família. Tinha elle outros gosos mais
apropriados ao seu eu, mais de accordo com sua psycologia. Viver em liberdade em
uma terra que a natureza dotou de todos os bens, tendo escravos para tirar della com
largueza o pão quotidiano e o pão do futuro, elle, que conhecia a vida dos prezidios,
o peso da grilheta, a uzura do rancho, enfim os sofrimentos dos forçados era o seu
ideal. A liberdade em tão rico paiz, mesmo com a condição de viver do suor do
rosto, seria a mais alta aspiração de um espírito opprimido e recluso no fundo de
uma prisão immunda e escura. (...)
África foi o seu pezadelo e o delles até o dia em que o navio largou e com grande
surpreza souberam que iam caminho do Brasil, que não eram mais réos e sim
colonos, que iam lavrar aquellas longuiquas e incultas terras.
José Maria era bem apessoado; novo, com intelligencia e musculos. Lia e escrevia
soffrivelmente e trazia do Reino, ainda em começo da vida, grande somma de
astucia e velhacaria. Desembarcando em Fortaleza e confiando pouco em tão
prompto habeas corpus, embrenhou-se pelo norte do Ceará e foi ter a fazenda de
Oiticica. Encontrou ahi afazendado um patrício e que veio a ser seu sogro. Em falta
de cousa melhor para o moço portuguez, o fazendeiro fel-o professor de suas duas
filhas, ambas quasi moças (TEÓFILO, 1897, p. 40-41).

Uma questão importante trazida nesse trecho sobre a colonização portuguesa diz
respeito aos degredados do reino, que encontraram no exílio para a colônia uma forma de
conseguir a liberdade. Pieroni (1991) ao estudar sobre os degredados portugueses no Brasil
Colônia mostrou que esse território ainda pouco povoado serviu de “degredo para os
elementos indesejáveis e perturbadores da ordem social metropolitana” (PIERONI, 1991, p.
16). Essa forma de condenação, que já era uma prática antiga e se tornou muito comum
durante o período moderno, para a metrópole portuguesa tinha um propósito muito
proveitoso, pois ensejava “a exclusão dos elementos indesejáveis do âmbito metropolitano;
uma espécie de limpeza do Reino, expulsando ‘os tipos abomináveis e sórdidos’” (PIERONI,
1991, p. 38), ao mesmo tempo em que possibilitava aumentar a população branca em suas
colônias. Para Emilia Viotti Costa (1956), era de grande interesse por parte da coroa “o
povoamento das novas terras e essa a maneira mais simples de o fazer”. Várias eram as
situações consideradas criminosas cuja penalidade resultava em degredo. Além dos casos
claramente previstos em lei, ainda havia aqueles que “davam margem à interpretação,
contribuindo para ampliação do número de degredados para o Brasil” (COSTA, 1956, p. 10).
Na perspectiva do trecho citada acima, diferentemente do destino reservado
àqueles que eram degredados para a África, no Brasil, esses condenados saíam da condição
réus para se tornarem colonos. A chegada a terras tão longínquas representava o pronto
recebimento de habeas corpus. A partir de então, em liberdade, esses degredados poderiam
começar uma nova vida na condição de colonos. Desse modo, o degredo foi colocado como
uma escapatória em relação às condições de exclusão social que esses sujeitos viviam na
69

metrópole. Tratando a questão dessa forma, essa narrativa idealizou uma situação que, muitas
vezes, representava uma das piores punições para aquelas pessoas que foram viver em terras
tão distantes e em meio a uma natureza considerada hostil. Ao afirmar que, para aqueles
condenados, viver em tão rico país, seria a mais alta aspiração de um espírito oprimido, o
narrador ocultou uma realidade de degredo forçado, ao mesmo tempo em que fez uma
apologia ao processo de colonização.
No caso de José Maria da Purificação, logo que chegou, embrenhou-se no sertão
pelo norte do Ceará, e, servindo de professor para as filhas de um fazendeiro nativo, tratou
logo de contrair casamento com uma delas para assegurar a herança da fazenda. Em posse das
terras, esse colono passou a trabalhar arduamente para vencer aquela natureza bravia. E assim,
expressando uma visão positivada sobre o degredo, como forma de regeneração, o narrador
afirma que José Maria da Purificação, “de vadio tornou-se trabalhador, transformação esta
devido talvez a ambição que despertaram os bens da fortuna. Nos primeiros tempos
trabalhava de sol a sol ao lado dos fâmulos e escravos com um valor e esthusiasmo sempre
crescentes” (TEÓFILO, 1897, p. 43).
José Maria da Purificação é o exemplo de homem branco colonizador que
conseguiu superar as adversidades do meio e implantar a colonização no interior do Ceará.
Porém, a sua adaptação ao meio não teria ocorrido de forma fácil: “A vida de José Maria era
de suprezas, umas agradaveis, e outras dolorosas. Entre estas o abraço de um tamanduá
bandeira que o deixou de cama mais de uma semana” (TEÓFILO, 1897, p. 45). Com esses
exemplos, o narrador mostrou que foram precisos muitos esforços, por parte desses colonos,
para vencer uma natureza tão hostil e implantar a colonização. Fica implícita a apropriação da
concepção do darwinismo social de adaptação ao meio por parte da raça branca,
demonstrando sua superioridade. É nesse sentido que o narrador afirmou que “José Maria
custou a se adaptar ao meio, mas afinal ficou brazileiro nos costumes, na alimentação,
conquanto odiando sempre os naturaes” (TEÓFILO, 1897, p. 46).
Apesar da nítida crença na superioridade da raça branca, ao trazer à tona a questão
do degredo, esse romance histórico deixou subtendido uma visão bastante reducionista que se
tem até hoje sobre a colonização do Brasil, segundo a qual esse país teria sido colonizado pela
escória da sociedade de Portugal. Conforme essa visão, a colonização portuguesa não teria
sido feita por pessoas honestas ou gente da melhor estipe, pertencente à elite branca europeia,
mas, em boa parte, por criminosos degredados do reino. Porém, alertamos que é preciso
ponderar e desmitificar essas concepções já tão cristalizadas sobre a formação do povo
brasileiro e os colonizadores vindos de Portugal. A primeira questão a ser observadas é que
70

nem todos os colonizadores eram criminosos condenados ao degredo, junto a eles veio uma
variedade de sujeitos sociais, trazidos por diferentes motivações:

Ao lado dos degredados quais teriam sido os primeiros colonizadores do Brasil? Há


os que se sentiram atraídos pela possibilidade de enriquecer, burgueses (artesãos ou
comerciantes) e até mesmo nobres empobrecidos que desde aquela época iam atrás
da miragem do ouro, vinham "fazer a América". Ou os que movidos pelo espírito de
aventura fugiram à severidade da vida em Portugal, ensaiaram-se em novas terras.
Há os oficiais reais, capitães, governadores, etc., empossados de uma missão da
corôa, exercendo cargo de funcionários, muitos dos quais ao que parece pertenciam
à pequena e média nobreza. Soldados; náufragos; aquêles que aqui aportavam em
virtude de atracações forçadas; desertores [...] (COSTA, 1956, p. 5).

Além de haver uma grande variedade social de colonizadores, no que concerne


aos degredados, não nos cabe fazer juízo de valor sobre a integridade moral desses indivíduos.
É interessante citar que as faltas que determinavam o degredo para o Brasil eram das mais
variadas ordens, desde aquelas que até hoje são consideradas graves como aquelas que nos
nossos dias perderam o caráter criminal (COSTA, 1956, p. 19). Portanto, o que a justiça
determina como crime também é variável ao longo do tempo e está sujeito às mudanças
históricas.
De um modo geral, a visão que nos foi apresentada sobre o colonizador José
Maria da Purificação é a de que, mesmo conseguindo se regenerar através do trabalho árduo
na colônia, ele era um homem interesseiro, egoísta e acovardado, que engolia todo tipo de
afronta, desde que nada perturbasse sua vida de “matuto abastado”:

Purificação estava de todo obcecado pelo egoísmo. No seu coração só o amor de si


mesmo conseguia viver. A mulher, os filhos, a patria, a humanidade tudo se resumia
em uma entidade única, que era a sua pessoa. Assim, não admirava que desse pouca
importância ao rapto. Entretanto, não estava calmo, tinha o espírito inquieto, o que
se percebia pelo rosto delle. Era a sua inquietação temores vagos que lhe assaltavam
a mente e faziam-no desconfiar da inalterabilidade de seu tranquilo viver. Nada
temia por si; sabia engolir as affrontas, sugeitar-se a toda casta de humilhação uma
vez que o deixassem gosar a sua vida de maturo abastado. Outro tanto não se devia
esperar de Vivencia da Gloria. Espírito enfermiço e chato servido por um sistema de
nervos mal equilibrado a cunhada de José Maria commetia os maiores desatinos sem
se importar com as consequências (TEÓFILO, 1897, p. 225).

O rapto da filha Maria Rita em nada o comoveu, pois pouco se interessava pela
família. O que o amedrontava era a possibilidade de sua cunhada Vicencia da Gloria realizar
alguma vingança contra Queiroz, o rapaz responsável pelo rapto, e isso resultar em uma série
de vinganças capazes de alterar a sua tranquilidade. A sua covardia e hipocrisia também
foram demonstradas quando, na frente dos representantes da corte, ele se apresentou como um
71

fiel servidor no combate aos “naturais da terra” e, ao lado desses, afirmava lutar em seu favor.
Assim, na perspectiva do narrador, José Maria da Purificação, na condição de degredado, não
seria um digno representante dos mais elevados valores atribuídos à raça superior.
Os outros dois personagens que foram apresentados na obra como representantes
da raça branca se assemelhavam muito a esse perfil de caráter presente em José Maria da
Purificação. Um deles é o português Prazeres, “um marinheiro, que além do mais era sujo e
ladrão” (TEÓFILO, 1897, p. 263). Ele havia roubado de seu bem-feitor o mapa de um tesouro
enterrado naquela região do sertão cearense. Sobre o seu caráter, o narrador afirma que “para
obter aquelle documento, que o faria o mais rico dos homens, não trepidara em profanar o
cadáver de seu bem-feitor” (TEÓFILO, 1897, p. 261). Ao acolhê-lo em sua casa e saber da
existência desse tesouro, José Maria cuidou logo em oferecer a filha em casamento para
Prazeres. Para concretizar seus planos, José Maria não hesitou em tramar um casamento
forçado. Tal atentado seria realizado pelo padre Bulhão, que também era um homem branco,
mas que possuía uma debilidade de caráter maior que os outros dois, pois usava a máscara de
servo de Cristo para extorquir as pessoas e cometer todo tipo de atrocidades. “A elle não
faltava manha, escrupulos de consciencia, embora fosse padre eram cousas que não tinha. A
sua divisa era enriquecer fossem quaes fossem os meios” (TEÓFILO, 1897, p. 109). Sobre
este personagem, o narrador destacou ainda mais:

O seu pensamento unico era ter com que passar a vida o mais commodamente
possível. A missão de ministro de christo tão espinhosa e tão delicada para aquelles
que procuram imitar o Mestre elle a cumpria ao inverso do que está escripto neste
poema de amor e de fraternidade – a religião do Crucificado. Nunca chamou a si os
pequeninos e nem teve consolações para os desgraçados. De um egoísmo feroz a
humanidade se resumia a sua pessoa. A nota predominante de caracter era a
falsidade (TEÓFILO, 1897, p. 87).

Como podemos ver esses personagens, que representavam a presença do


colonizador português no Ceará, portanto, da raça branca, não se caracterizavam apenas como
portadores da civilização europeia, mas também configuravam um conjunto de adjetivações
negativas sobre esses sujeitos sociais, eram egoístas, interesseiros, desonestos e de pouco
caráter. Não esqueçamos que a escrita desse literato ainda estava impregnada pelo discurso
nacionalista, tão propagado pelo Romantismo ao longo do século XIX. Lembramos que logo
após a independência política, a questão posta aos nossos escritores era elaborar um discurso
antilusitano, num momento histórico de certa hostilidade aos portugueses, os quais foram
tratados como sujeitos “movidos pela cobiça, vingança e sede de glória” (ALENCAR, 2015,
p. 82). Embora Maria Rita seja do final daquele século, esse discurso antilusitano não deixou
72

de ter ressonância na figuração sobre os colonizadores portugueses, o que revela a forte


influência do Romantismo na escrita de seu autor. Esses personagens eram o inverso daquilo
que representava o homem sertanejo e o ideal de honra sertaneja, tão exaltados na produção
de Rodolfo Teófilo. Desse modo, percebemos uma clara intenção, por parte desse literato, em
apresentar o sertão cearense do período colonial como um lugar inculto e incivilizado, mas
também como um lugar puro, onde a hipocrisia e a desonestidade ainda não haviam feito
moradia. Um lugar habitado por pessoas honradas e honestas, como é o caso do velho Queiroz
e seu filho Joaquim de Queiroz, que será analisado mais adiante.

3.2 UMA VISÃO AMBÍGUA SOBRE A CONTRIBUIÇÃO DO INDÍGENA PARA A


FORMAÇÃO DO POVO CEARENSE

Uma variedade de typos de cor e alguns interessantes sob o ponto de vista


ethonografico, machos e fêmeas, enchia a torta viella quasi até a praça. Poucos
eram os typos puros de índio que se descobriam naquelle ajuntamento; a
maioria eram mestiços e entre estes não era raro ver-se as feições chatas do
caboclo com pelle quasi branca e cabellos lisos e ruivos. Os olhos destes sararás
tinha o iris de cor clara, amarella ou esverdeada, porém, pequenos e oblíquos como
da raça vermelha, e o ângulo facial maior que o do tupy e menor que o do hollandez
(TEÓFILO, 1897, p. 14-15. Grifo nosso).

Esse trecho da obra Maria Rita faz referência ao funcionamento das trocas
comerciais nas vilas do Ceará durante o período colonial e é bem emblemático ao destacar
que, mesmo nesse período, a miscigenação já era grande. De um modo geral, seu autor
defendia a ideia de que a maior parte daquela população era formada por caboclos, isto é, o
mestiço fruto da mistura entre o índio e o branco, seja esse português ou holandês. E essa
percepção de que o caboclo possuía maior representatividade na população cearense se
repetiu em outras obras, como O Paroara, na qual ele afirmou que esse tipo de mestiçagem
“constitui talvez quatro quintos dos habitantes do Ceará” (TEÓFILO, 1974, p. 100). Porém,
podemos ver no trecho acima que não há interesse, por parte do narrador, em estabelecer uma
tonalidade de pele padrão para esses caboclos sertanejos do Ceará, pois o resultado dessa
miscigenação foi uma variedade de tipos de cor. Exemplo disso é a personagem Vicencia da
Gloria, tratada ao longo da obra como uma índia tapuia, mas, ao relatar sua ascendência, o
narrador destaca que Vicencia era filha de uma mãe índia com um pai português. Nela se
sobressaíam fortes características indígenas, enquanto que em sua irmã essas características
apareciam de forma mais branda:
73

A cunhada de Purificação, a senhora Vicencia da Gloria, era uma quarentona bem


conservada; cor de cobre, corpo ossudo e magro, feições feias, finalmente uma
tapuia de cara de poucos amigos, na qual os olhos pequenos e oblíquos brilhavam
accezos como dois onyxis negros, tendo de permeio um nariz em forma de bico de
gavião.
Não se via no rosto de Vicencia um traço siquer da raça de seu projenitor; um
anthropologista a tomaria por um exemplar de índio. Só o nariz é que fazia de
algum modo suspeitar a mistura do branco, isso no cavallete agudo, que depois
de se salientar um pouco, se esparrava em um par de ventas, chatas como a dos
macacos.
A natureza tem seus caprichos e mysterios. A semente da vida, esse argueiro tão
pequeno, que olhos nus não o enxergam, é a mais estupenda maravilha da creação. E
neste átomo vivo vão não só as qualidades physicas do pais, como também as
suas qualidades psychicas.
(...)
Em Vicencia da Gloria observava-se um destes caprichos da natureza; Ella tinha o
corpo da índia, sua mãi, e a alma do portuguez seu pai. Já não era assim a finada
mulher de José Maria, a qual tinha as formas e feições semelhantes aos seus
ascendentes paternos, o retrato fiel, de uma de suas avós – uma confirmação da
fatal lei do atavismo. Quanto a sua psychologia, a mesma de seus ascendentes
maternos, modificada um pouco pela civilisação (TEÓFILO, 1897, p. 32-33. Grifo
nosso).

Embora a personagem Vicência da Gloria fosse fruto da miscigenação de uma


índia com um português, quem a visse, de imediato, não perceberia em seu rosto nem um
traço que denunciasse sua ascendência portuguesa. Revelavam-se nela apenas aspectos que a
caracterizam como uma nativa, tais como a cor de cobre, os olhos pequenos e oblíquos.
Porém, o que chamamos atenção é para o fato de que na descrição dessa personagem há uma
precisão muito grande, por parte do narrador, ao detectar resquícios fisionômicos bem
discretos do elemento branco. De acordo com o narrador, essa herança da raça branca só se
tornava visível através de um olhar clínico sobre a constituição dos traços faciais de Vicencia,
a qual, segundo ele, facilmente seria classificada por um antropologista como um “exemplar
de índio”. Rodolfo Teófilo, com todo o seu referencial de leituras sobre os teóricos raciais e
utilizando-se da fala do narrador, procurou demonstrar que possuía um conhecimento maior
que qualquer antropologista pois, através de seu domínio sobre craniologia, ele seria capaz de
detectar, através das medidas faciais, os diferentes elementos raciais, mesmo os mais sutis,
presentes em um indivíduo miscigenado. Assim, destacamos, mais uma vez, que a sua escrita
não era feita de maneira despretensiosa. Destaca-se o nítido desejo de expressar os seus
conhecimentos científicos através de sua produção literária.
No início do século XIX surgiram muitos métodos e critérios para delimitar e
definir as diferentes raças humanas, mas foram os métodos antropométricos que se
destacaram e ganharam muitos adeptos. Foi inspirado por essas leituras que Rodolfo Teófilo
procurou explicar os elementos constitutivos que deram origem ao povo cearense no período
74

colonial. Através de seus conhecimentos antropométricos, ele estabeleceu uma relação entre
as características fisionômicas e faciais de suas personagens com a ideia de pertencimento
racial e, assim, procurou explicar como os elementos físicos e psíquicos que remetiam a
determinadas raças se manifestavam em indivíduos tão miscigenados.
No trecho citado acima, assim como no anterior, também ocorreu uma exaltação
dos “caprichos e mistérios da natureza” ao criar tão grande variedade de misturas e tipos
raciais, pois mesmo Vicencia e sua irmã, possuindo a mesma ascendência, em cada uma delas
se sobressaíram elementos de raças diferentes. Foi ressaltado também que por meio dessa
mistura de raças é que se definiam as qualidades físicas e psíquicas do país. Nesse sentido, as
características psicológicas apresentadas pelas personagens não remetiam a aspectos
individuais e subjetivos do ser, mas resultavam de sua constituição racial. Assim, esse trecho
confirmava a premissa do darwinismo social de que haveria continuidade entre caracteres
físicos e morais, os quais seriam transmitidos hereditariamente pela “fatal lei do atavismo”.
Embora fique nítido o interesse desse literato em mostrar que o povo cearense era
resultado da miscigenação entre indígenas e europeus, isso não significa que ele igualasse
essas duas raças. Através da descrição de Vicencia da Gloria, percebe-se um olhar de
hierarquização entre as mesmas. O pertencimento da personagem à raça indígena foi
qualificado depreciativamente por meio de características como “feições feias” e “um par de
ventas, chatas como a dos macacos”. Percebe-se uma associação entre o que era considerado
feio com a raça indígena, assim como em outras obras foi feito com a raça negra, mas nunca
com a raça branca. Além das características negativas sobre os traços físicos, o narrador
ressalta que Vicencia da Gloria já manifestava uma índole sanguinária desde criança, ao se
regozijar em ver pequenos filhotes de sanhassús serem devorados por uma cobra. E ainda na
infância, ela tinha por entretenimento predileto fazer maldade com os animais indefesos:

Vicencia era uma mulher activa, petulante e má. Estava quasi velha, e como a
mocidade não lhe trouxera arroubos na velhice não lhe esperavam desillusões.
Os encantos da natureza dos tropicos no seio da qual nascera e brincara nunca os
sentira aquelle espírito tíbio. O entretenimento predilecto de sua alma era a maldade
dos seus folguedos. Aos implumes passarinhos furava os olhos quando encontrava
um ninho. Menina estouvada e perversa corria de várzea a fora perseguindo o
insecto cujo colorido mais a impressionava e apanhando-o atirava-o mutilado ao
chão para sentir o goso de vel-o arrastar-se privado das azas com que volitava pelos
ares. Nunca o arrulho da jurity, gemido mafioso, que se ouve na solidão dos
bosques, terno como um soluço nostalgico, despertou em sua alma um instante de
recolhimento.
Aos beija-flores que se osculavam adejando sobre as corollas multicores dos
manacás e das outras flores silvestres apedrejava, porque não podia apanhal-os e
estrangular. Era sanguinaria por indole (TEÓFILO, 1897, p. 34-35. Grifo nosso).
75

Além do fator racial, vários outros elementos foram elencados para a constituição
temperamental dessa personagem. De acordo com a narrativa, Vicencia morava na casa do
cunhado desde o casamento da irmã e, com a morte dessa, ela se encarregou da criação dos
sobrinhos e dos assuntos domésticos. José Maria, poucos meses depois de viúvo, procurou
casar-se com a irmã da finada, não só por ela já estar em sua casa, mas também para aumentar
os seus bens, com mais algumas dúzias de vacas e escravos. Mas Vicencia repreendeu com
severidade e rispidez aos seus galanteios, pois, “arisca e casta por temperamento não se
deixaria abordar por seductor algum” (TEÓFILO, 1897, p. 42). Esse temperamento arisco se
explicava devido ao desenvolvimento de uma nevrose, a histeria.

Não foi de certo a physionomia do estrangeiro, muito vulgar e sem attrativos, o seu
corpo de formas pesadas e o seu todo chaboqueiro que inspiraram sympathias à
sertaneja; mas alguma coisa apprehendeu naquelle homem o espírito da
nevropatha, que o acolheu e o não repelliu. Por um desses caprichos tão communs
as hytericas, o forasteiro, cujo nome era João dos Prazeres Furtado, cahiu nas graças
de Vicencia da Gloria. A sua qualidade de quarentona podia tornar suspeita aquella
sympathia; mas podia-se-lhe fazer inteira justiça; ella era refractaria ao matrimonio.
Quando nova nunca sonhou com as perfumadas flores da laranjeira e agora tinha a
felicidade de conservar o seu antagonismo ao casamento, o qual lhe evitaria o
desfructe de se apresentar quarentona em publico, florida e coberta por um véu
branco (TEÓFILO, 1897, p. 238-239. Grifo nosso).

É esse mesmo “espírito nevropata” que a fez sentir simpatia pelo português
Prazeres Furtado, mesmo odiando “tudo o que vinha da outra banda”. Aqui, chamamos
atenção para um elemento muito forte na literatura naturalista que é essa tendência
biologizante de atribuir explicações patológicas aos diferentes fenômenos. Conforme Flora
Süssekind (1984, p.85), “tudo se explica no terreno da patologia e dentro dos limites de uma
concepção organológica da sociedade brasileira”. A presença de personagens portadoras de
diferentes tipos de nevroses é muito frequente nos romances de Rodolfo Teófilo. Teoberto
Landim (1992, p. 52) afirma que a histeria foi uma das doenças que se tornaram moda nos
romances naturalistas do Brasil. Embora a mesma não tenha ganhado muita visibilidade na
literatura do Rodolfo Teófilo, ela foi utilizada, em alguns momentos, para explicar o
comportamento de Vicencia da Gloria, associando-se o desenvolvimento de tal nevrose à sua
índole sanguinária e ao ambiente físico e social ao qual ela estava inserida.
Após ressaltarmos o conjunto de adjetivações negativas atribuído à Vicencia –
uma personagem na qual prevaleciam os caracteres da raça indígena –, agora destacamos o
contraste entre essa personagem e sua sobrinha Maria Rita, a protagonista do romance.
Enquanto a primeira é caracterizada fisicamente como uma mulher de feições feias, resultado
76

da predominância indígena e sem quase apresentar elementos da raça branca, sua sobrinha
simbolizava o ideal de beleza e branqueamento resultante dessa mistura:

Maria Ritta fazia um contraste perfeito com a parenta. Nem parecia que na
ascendência de ambas haviam troncos communs.
A tia era escura enquanto a sobrinha tinha a pelle tão branca como o algodão. E que
traços e que feições deu a natureza tropical àquella moça, fundindo as duas
raças, cobinando-as mesmo n’aquelle perfeito typo de mulher formosa. O seu
rosto oval não mostrava ter parentesco algum com a cara chata do indio.
Os olhos rasgados e com o iris azul eram velados por compridas pestanas louras e
protegidos ainda por supercílios, que se arqueavam finos e correctos e da mesma cor
dos cílios. O nariz, órgão no qual a natureza raramente se esmera, era digno de uma
estatua grega: aquillino, mas sem saliencia alguma de cavallete.
A bocca, pequena, vermelha como o fructo do cardeiro, era de uma perfeição
adorável [...] (TEÓFILO, 1897, p. 50-51. Grifo nosso).

Embora Maria Rita fosse fruto do casamento entre uma descendente de indígenas
e um português, o “seu rosto oval não mostrava ter parentesco algum com a cara chata do
índio”. Ela era o tipo perfeito de mulher formosa, fruto da natureza tropical brasileira.
Representava o que, para o narrador, seria o melhor resultado da miscigenação ocorrida no
Brasil. Ela era a comprovação de que essa natureza podia gerar bons frutos e não estava
fadado a sucumbir pela miscigenação. De acordo com essa narrativa, o melhoramento racial,
resultante da mistura entre portugueses e indígenas, já era visível através da irmã de Vicencia,
a mãe de Maria Rita, pois, como fora citado anteriormente, ela herdara as formas e as feições
semelhantes aos seus ascendentes paternos que eram portugueses. Desse modo, o casamento
entre a irmã de Vicencia e o português José Maria da Purificação favoreceu ainda mais ao
processo de branqueamento.
Ao afirmar que Vicencia e Maria Rita se contrastavam em beleza, que a tia era
escura e a sobrinha possuía uma pele muito branca, o narrador estabeleceu critérios de beleza
baseados nos elementos raciais que cada uma expressava fisicamente. Além disso, a
classificação de Vicencia como uma índia e Maria Rita como uma mulher branca ocorreu,
inicialmente, baseada em critérios fenotípicos e não por uma análise aprofundada das suas
linhagens familiares. Mesmo possuindo ascendência indígena, da qual herdou alguns
comportamentos que foram se revelando ao longo da narrativa, em nenhum momento Maria
Rita foi referenciada como cabocla ou mestiça. Ela era tida no ambiente em que vivia como
uma mulher branca, mas também não era tratada como uma portuguesa. Radicalizando o
contraste entre Maria Rita e Vicencia, ambas foram simbolizadas, respectivamente, com um
anjo e uma serpente:
77

Naquella espelunca de paredes escuras, mal iluminada pela luz de uma candêa, a
serpente e o anjo pernoitavam juntos.
Maria Ritta muito branca e muito loura dormia placidamente. A tia vendo-a em sua
belleza de mulher adormecida, mais se ufanava com a afronta que mandara fazer a
Queiroz. Troncho nunca mais elle olharia para a sobrinha e a brancura della ficaria
para sempre livre de se macular ao contacto da pelle morena delle (TEÓFILO,
1897, p. 159. Grifo nosso).

Além do contraste entre tia e sobrinha, o trecho faz referência à armadilha que
Vicencia planejara para Joaquim de Queiroz – protagonista do romance e par romântico de
Maria Rita – pela audácia de querer se casar com sua sobrinha. Ressaltamos que, para a tia, o
impasse a essa união consistia apenas na diferença da cor da pele dos amantes – sendo Maria
Rita considerada uma mulher branca e Joaquim de Queiroz caracterizado como moreno claro,
como veremos mais adiante –, pois Queiroz também era descendente da mistura de
portugueses com indígenas. Para Vicencia, era uma grande afronta um homem de pele morena
querer se misturar com uma mulher branca. A cilada serviria de lição para que Queiroz nunca
mais olhasse para Maria Rita e aprendesse a respeitar a hierarquia racial.
A perspectiva da personagem Vicencia da Gloria sobre essa suposta hierarquia
racial nos faz refletir sobre uma questão que ainda é muito característica do racismo praticado
no Brasil e que possui raízes bem profundas. Peter Fry (1996) afirma que o racismo no Brasil
se relaciona a uma hierarquia racial baseada em um “mercado de cores”, diferentemente dos
EUA, onde que a classificação racial se dá por meio da ascendência. Segundo Hilton Costa,
no pensamento racial brasileiro existem dois indicativos básicos utilizados na caracterização
racial do mestiço, a ascendência (sangue) e o fenótipo (características físicas). Esse último é o
tipo de distinção adotado com maior frequência. Porém, essas características físicas, como a
cor da pele, já no final do século XIX, eram vistas, por alguns pensadores, como dados pouco
confiáveis para a distinção racial (COSTA, 2004, p. 91-93). Como veremos, Rodolfo Teófilo
foi além desse mercado de cores, ao tentar estabelecer uma relação entre diferentes
comportamentos de suas personagens e a ascendência racial de cada uma delas.
Mesmo Joaquim de Queiroz também sendo fruto da miscigenação entre brancos e
indígenas, ele possuía uma pele morena. Assim, na perspectiva de Vicencia, isso o colocava
numa situação de inferioridade em relação à Maria Rita. Fica implícito que, para aquela
sociedade, a miscigenação era aceitável quando envolvia o homem branco colonizador e a
mulher indígena. Porém, à mulher branca não era concedido o direito de se unir a um homem
considerado inferior racialmente, situação que nos faz perceber a estreita relação que se
estabelecia entre os preconceitos de raça e gênero.
78

A possibilidade de ser raptada por Joaquim de Queiroz gerou um conflito interno


nos sentimentos de Maria Rita, deixando-a no impasse entre a paixão e o preconceito. Ir à
busca de seu amado para ser raptada implicava também em sua desonra, algo considerado
reprovável por aquela cultura sertaneja:

Desde que ouvira as palavras de Banda-Fora, tivera certeza de ser correspondido o


seu amor e se travou nella uma lucta renhida de seu pudor, de sua castidade com os
desejos que creava a sua imaginação de mulher apaixonada. O coração não ouvia os
ditames da razão; a mulher ia perdendo aos poucos a sua autonomia e a carne
dominando indifferente a voz dos preconceitos. Maria luctou desesperadamente,
mas foi vencida. Agora estava quasi a mercê da sua paixão! E assim tão nova e tão
pudica ainda, deixaria a casa do pai e iria a deshoras de tão escura noite, sosinha,
como uma porca vadia atraz do amante, do homem a quem se desejava unir.
Estava decidida a affrontar tudo e fugir (TEÓFILO, 1897, p. 193-194. Grifo nosso).

Para entender melhor porque essa personagem se via tão atormentada diante da
iminência de ser raptada – mesmo se tratando de um rapto consentido e realizado pelo homem
com quem queria se casar, livrando-a da situação de cárcere em que a tia a mantivera –, se faz
necessário compreender a questão do rapto e do valor atribuído à honra feminina na cultura
sertaneja daquele período. Vale lembrar que no sertão nordestino ergueu-se uma sociedade
fortemente ancorada no patriarcalismo, em que a honra masculina se baseava no ideal de
valentia e a honra feminina estava associada ao pudor e à castidade. Refere-se a uma
sociedade atravessada por desigualdades de gênero, raça e classe, o que facilmente torna
compreensível que a posição mais alta estava ocupada pelo homem branco e fazendeiro. E nos
estratos mais baixo encontram-se as mulheres empobrecidas, negras, mestiças e escravizadas.
A situação vivida por Maria Rita talvez não fosse das piores, pois, como nos
mostra Miridan Falci (2018, p. 242), ser uma mulher branca filha de fazendeiro, era o ideal de
mulher naquele sertão. Porém, mesmo essa condição não trazia grandes regalias. Isso porque
essas mulheres, em sua maioria, até o século XIX, ficavam reclusas ao espaço privado, lhes
eram negados os direitos à cidadania, à instrução e até mesmo o poder de decisão sobre suas
vidas e seus corpos (FALCI, 2018, p. 251). Elas não eram vistas como sujeitos autônomos,
eram, frequentemente, mantidas sob a tutela de um homem, seja ele o pai, o marido, ou outro
parente próximo. Como esposa, o seu valor estava assentado no ideal de honestidade,
expresso pelo seu recato e pelo exercício de suas funções dentro do lar. Quando ainda solteira,
o valor dessa mulher era associado à sua virgindade e ao seu pudor. Portanto, a mulher que
perdia a virgindade antes do casamento era considerada perdida e para a família era motivo de
vergonha e desonra. O que restava a essas moças brancas e de família rica era se casar “pura”
e com quem o pai considerasse em conformidade com a situação social e racial da família. Do
79

mesmo modo, aquelas que se casavam sem o consentimento do pai ficavam excluídas da
solidariedade familiar, pois essa atitude significava uma grande ofensa ao poder patriarcal
(FALCI, 2018, p. 258-259).
Como na vida cotidiana nem sempre as regras sociais foram estritamente
respeitadas, eram frequentes os casos de raptos, os quais se revelavam como uma escapatória
para os namoros proibidos e para aquelas convenções sociais. Uma vez que uma moça fosse
raptada, ou seduzida, ela estaria irreversivelmente desonrada, pois ninguém mais acreditaria
na sua pureza, mesmo que ela não fosse tocada durante o rapto. Assim, o que restava à família
era providenciar o casamento para remediar uma situação vexatória. Moça raptada que não se
casava virava mulher perdida, e, caso o rapaz se negasse a casar, estaria sujeito a duras
punições, como ser “capado” ou morto, por ter cometido o crime da desonra, considerado um
dos piores para aquela cultura patriarcal e vingativa (FALCI, 2018, p. 267).
Diante de toda essa circunstância, torna-se compreensível a hesitação de Maria
Rita ao chegar o momento decisivo da fuga. Para ela, seria incerto o seu futuro de moça
desonrada. Através de uma concepção racial e moralista, percebemos nessa obra que à mulher
branca e de “boa família” eram reservados os sentimentos mais puros e a castidade. Os
desejos da carne e a luxúria eram considerados comportamentos temperamentais
inapropriados a essa mulher, pois não pertenciam a sua raça. Ao mesmo tempo, ela era
colocada numa situação de grande vulnerabilidade que, por si só, não tinha forças para
resistir. Quando ocorria a transgressão racial e sexual, essa mulher passava a ser vista como
perdida, e tal imposição fez com que Maria Rita se sentisse como uma porca vadia atrás do
amante.
Na dúvida entre a paixão e a castidade, Maria Rita optou pela primeira. Para
explicar essa situação, o narrador propôs que a herança temperamental da raça indígena foi
um elemento decisivo. Essa personagem, até então, havia apresentado apenas características
atribuídas à raça branca, como a fisionomia e a passividade diante da autoridade da tia.
Quando percebeu que a sua paixão estava ameaçada, o temperamento insubmisso, que herdara
da raça indígena, passou a se manifestar com toda força:

Maria Ritta revoltou-se com o castigo, com tão estupido aviltamento. Havia até
então suportado com resignação a palavra injuriosa, a humilhante pancada; mas
agora uma onda insubmissa revolucionava todo seu sangue tupy e ella com a
coragem selvatica de seus ascendentes maternos, com o semblante portuguez
crispado pelo ódio do indio, repeliu a tia com um valor que mettia medo.
Aquellas duas mulheres tão differentes na côr e nas feições tinham herdado
muitas das qualidades de seus antepassados. Odiavam-se.
80

A docilidade de Maria, a paciencia com que sofria todos os castigos da tia, não
fariam suspeitar que seu espírito se revoltasse um dia, que em um momento
explodissem sentimentos que jaziam em estado latente, e a delicada donzella,
cujos musculos pareciam não terem sido creados para o pugilato se atirasse a luta
com energia e valor.
Vivencia vendo-se desrespeitada pela sobrinha rugiu de raiva como uma onça, e
lançou-se sobre ella para estrangulal-a. A sua frente, entretanto, não encontrou a
creatura dócil, que acceitava com paciência, as penas que lhe impunham, mas a
índia altiva e destemida, que pelejaria até a morte, não para se desaffrontar do
ultraje cortando a mão que lhe esbofeteava, porem para abrir caminho até o
homem, por quem suas carnes sem quizesse palpitavam de desejos (TEÓFILO,
1897, p. 67-68. Grifo nosso).

Mesmo apresentando a delicadeza e a docilidade de uma donzela, atributos que


faziam Maria Rita parecer incapacitada para uma luta corporal, a mesma herdara, por
atavismo, a coragem selvática de seus ascendentes maternos. De acordo com as leis do
atavismo, a fúria das raças incultas, que corria nas veias de Maria Rita, e que estava em estado
latente, permaneceria assim caso não fosse estimulada por uma paixão desenfreada.
Ao tratar da sexualidade feminina na literatura realista/naturalista europeia, Santos
e Salles (2016) destacam que Zola, em sua obra Thérèse Raquin, criou “personagens com
temperamentos inconstantes, capazes de revelar comportamentos e atitudes considerados, à
época, condenáveis e repulsivos à imagem feminina” (SANTOS, SALES, 2016, p. 120). Do
mesmo modo, Rodolfo Teófilo buscou seguir os passos do expoente naturalista francês,
através de suas personagens Maria Rita e Vicencia da Gloria. Embora o autor cearense tenha
construído inicialmente uma imagem angelical de Maria Rita, ao longo da narrativa esta
personagem passou a revelar grande inconstância temperamental.
Essas duas mulheres, que em outro momento foram colocadas em dois polos
opostos – como a serpente e o anjo –, no trecho acima são igualadas no ódio que sentiam uma
pela outra. Destaca-se que, mesmo tão diferentes, em certo momento essas personagens
deixaram de expressar características individuais e suas atitudes passaram a ser explicadas
pelo temperamento próprio de uma raça. A insubmissão, a altivez e o instinto selvagem de
ambas foram explicados pelo pertencimento à raça indígena.
Tratando-se de uma obra que buscou se adequar aos ditames naturalistas, o
romance Maria Rita, por meio de sua personagem principal, apresentou o ser humano sob
uma perspectiva que enfatizava o instinto humano, o fisiológico e o natural. Por pertencer à
raça selvagem, Maria Rita era dotada de uma concupiscência selvagem: “Em seu cerebro
desfilava um cortejo de idéas que lhe crispavam a carne num arrepio sensual. E o sangue
indigena, que lhe corria nas veias, ainda saturado de uma concupiscencia selvagem, trazia o
81

coração della num anceio mortificante, num desejo ardente de deleites [...]” (TEÓFILO, 1897,
p. 335).
Maria Rita, ao demonstrar um temperamento inconstante, ao longo da trama se
desfez do pudor que lhe era reservado e se mostrou como uma mulher incapaz de resistir aos
desejos carnais, apesar do peso que os princípios morais lhe impunham à consciência.
Dialogando com Santos e Salles, ressaltamos que o Naturalismo trouxe à tona a questão da
sexualidade feminina de um modo que até então não era enfatizado: “ora evidenciando os
efeitos da repressão que recaía sobre o corpo feminino, ora destacando a ruína das
personagens que ousassem transgredir ou se opor a tais barreiras” (SANTOS, SALLES, 2016,
p. 133). Nessa perspectiva, a protagonista de Maria Rita não chegou a cair em completa ruína
porque não ficou desamparada, conseguindo se unir a Queiroz. Mas, sua união não foi selada
pelos votos matrimoniais da igreja e nem obteve a bênção da família. Rituais estes, bastante
simbólicos para a cultura sertaneja daquele período.
Destaca-se ainda que o enfoque naturalista sobre a sexualidade não teve por
propósito libertar o corpo feminino de todas as suas amarras. Pelo contrário, impôs-lhes novos
limites e significações para as suas transgressões, através da coerção social, religiosa e
familiar. Diante disso, o que podemos perceber, através da literatura, é que houve “uma
ruptura em relação ao silêncio que recaía sobre o corpo e a sexualidade feminina, dando maior
visibilidade e dizibilidade à questão” (SANTOS E SALLES, 2016, p. 111).
Embora essa forma de representar a sexualidade feminina estivesse atrelada a uma
tendência mais geral da produção naturalista, Rodolfo Teófilo referia-se a sujeitos sociais
específicos. Neste caso, as mulheres sertanejas do sertão cearense, no período colonial.
Partindo de um lugar bem delimitado, ele apresentou elementos culturais que nos fazem
refletir sobre aquela realidade e sobre sua forma de observá-la. Ao tratar da questão do rapto
de uma moça, ele destacou que eram muito comuns na cultura sertaneja, daquele período, os
casamentos arranjados pelos pais:

O portuguez entre o enleio e a manha acceitou a mão de Maria Ritta que ainda não
tinha visto, mas isso não vinha ao caso. Era costume entre os sertanejos casamentos
assim. Raros entre elles eram os casados que se tinham visto antes de celebrado o
sacramento do matrimonio. O contracto de núpcias corria por conta dos pais e isso
quer se tratasse de rapaz ou de raparigas. Chegando a moça a edade de tomar estado
o pai sem ouvil-a, sem consultal-a procurava marido para ella derigindo-se ao pai do
homem, que escolhera para genro.[...]
Uniões feitas assim perfeitamente felizes para educação delles e para a
sensibilidade moral. Rara era a mulher que se revoltava contra a escolha do
homem, que lhe deram para marido; influenciadas pelo meio, mordidas de desejos
sensuaes, que picavam a carne, e que o clima fazia mais ardentes e o
82

crusamento das raças mais impetuosos, acceitavam sem relutancia o esposo,


uma vez que este satisfizesse o seu apetite carnal.
José Maria conhecia os costumes e indoles dos sertanejos e muito identificado com
aquelle meio, pensou que a filha não se revoltaria com a troca do noivo e que ella
não fosse uma excepção da regra. Em vez de Queiroz elle lhe daria Prazeres, um
homem tambem, e além do mais – branco e riquíssimo. Não pensou no amor de
que podia estar abrasado o coração de Maria Ritta; e nem podia elle pensar em tal, se
a existencia deste sentimento ignorava-a completamente (TEÓFILO, 1897, p. 242-
243. Grifo nosso).

O narrador afirma que eram comuns, entre os sertanejos, os casamentos arranjados


pelos pais. As noivas não eram consultadas e, muitas vezes, só eram avisadas momentos antes
de se realizar a cerimônia. Ainda é colocado que raríssimas eram às vezes em que as
sertanejas se revoltavam contra esse ato. Para explicar essa falta de relutância, ele utilizou-se
de elementos ancorados ao cruzamento das raças, mas também às influências do meio, como
o clima quente, que tornavam essas sertanejas sensuais e desejosas de serem desposadas.
Assim, um fenômeno que se situava dentro de uma sociedade altamente patriarcal foi
destituído de sua problemática social e cultural e atribuído à uma explicação forjada pelos
determinismos raciais e climáticos.
Eni de Mesquita Samara (1986) destacou que, entre as famílias proprietárias do
período colonial, o contrato matrimonial era tratado como um negócio e envolvia um conjunto
de interesses, tais como evitar a dispersão do patrimônio e manter a pureza do sangue.
Embora os sentimentos não possam ser desconsiderados nas análises sobre as escolhas
matrimoniais daquele período, eles não eram tratados como prioridade. A idealização do
amor, como um sentimento capaz de suportar tudo, como o que existia entre Maria Rita e
Joaquim de Queiroz, remete mais a uma característica da literatura romântica do século XIX –
a qual Rodolfo Teófilo não conseguiu romper – do que mesmo uma característica dos
relacionamentos do período representado.
De um modo geral, a escolha matrimonial era vista como uma decisão muito
importante para ser tomada individualmente, ainda mais pelas mulheres, tratadas como
indivíduos sem autonomia e submissas. Assim, os pais dos noivos, na condição de chefes de
família e responsáveis pela proteção da mesma, faziam essa escolha, de acordo com as suas
conveniências. Foi esse o caso do português José Maria. Na sua concepção, a filha, Maria
Rita, não se revoltaria com a troca do noivo porque, além de ela possuir a aflorada
sexualidade sertaneja inconteste ao casamento, o noivo que ele arranjara era branco e
riquíssimo. Portanto, era uma opção bem melhor do que Joaquim de Queiroz, um vaqueiro
83

mestiço. Porém, ao contrário do que foi colocado como algo muito comum entre as sertanejas,
Maria Rita não se submeteu a um casamento forçado:

Um padre lhe havia dado um marido que ella repudiou, porque jamais se poderiam
homogeneisar; porque o matrimonio seria para ella, não o deleite dos sentidos, mas
um attentado ao seu pudor. Teve a rara ventura de lutar e de vencer. Não foi
immolada como inerme victima, e nem encontrou no casamento o holocausto, como
tantas outras que sobem o altar nupcial do mesmo modo que subiriam os degráos do
cadafalso, porque em suas veias corria sangue indígena. Ella comprehendeu,
graças somente ao seu apurado instincto de mulher apaixonada, os desgostos e as
angustias que a esperava se ella vivesse com o marido (TEÓFILO, 1897, p. 383.
Grifo nosso).

De acordo com esse trecho, diferente de outras sertanejas, Maria Rita não se
submeteu a um casamento forçado porque em suas veias corria sangue indígena. Tal
afirmativa favoreceu a positivação do elemento indígena, pois era dele que insurgia a coragem
presente em Maria Rita e que a diferenciava de outras sertanejas. Recusando-se a consumar
um casamento forçado, ela lutou como uma selvagem e mais uma vez fugiu da casa paterna e
do marido arranjado. Após a fuga, ela passou a viver em meio à mata fechada, enfrentando
vários perigos. Durante esse tempo, houve uma inserção da personagem à natureza, como se
ela sempre fizesse parte daquele meio. Ao se incorporar na floresta, cada vez mais lhe
sobressaia um temperamento selvagem:

O contratempo havia resuscitado nella a coragem selvagem de seus avós índios.


Tinha ímpetos de correr de matta a fóra até topar com a morte ou com o amante; a
essas investidas de audácia succedia um temor que a esmorecia e em que se
observava bem o dualismo de sua pessoa. Era a mesma alternativa de valor e de
fraqueza que deixava perceber quando ouvia esturrar a onça no fundo do covil: tinha
um sobresalto, o sangue portuguez refluía medroso ao coração e findo o ligeiro
espasmo, dominava o elemento indígena e ella tinha desejos de procurar a fera e
esmagal-a com o seu tacape (TEÓFILO, 1897, p. 358).

Embora aquele meio fosse propício ao afloramento das características herdadas


por atavismo dos seus ancestrais indígenas, por também ser descendente de portugueses,
Maria Rita vivia um dualismo de temperamentos. Percebemos nesse trecho que aos diferentes
comportamentos da personagem foram atribuídas explicações raciais. Assim, os ímpetos de
coragem nela suscitados, diante dos perigos enfrentados, eram justificados pela
predominância do elemento indígena, já os momentos de temor eram atribuídos à herança
portuguesa. Como ressaltou Flora Süssekind (1984, p. 120), não é difícil perceber que no
Naturalismo brasileiro do século XIX prevaleceu o estudo do temperamento humano. E esse
temperamento, por sua vez, obedecia às regras da hereditariedade. Era a herança genética que
84

explicava as variadas formas de manifestação de um organismo. Atrelado ao estudo dos


temperamentos, típico do Naturalismo, ressaltamos ainda elementos de uma perspectiva
antilusitana, que foi uma tendência do Romantismo brasileiro. Conforme esta tendência, os
colonizadores portugueses eram tratados com adjetivações negativas, tais como a covardia. Já
os indígenas eram vistos como bravos guerreiros e como sujeitos naturais, que possuíam uma
forte ligação com a natureza, como se dela fizessem parte.
Por ser descendente de duas raças diferentes, Maria Rita herdara um
temperamento instável, que variava de acordo com os estímulos externos, ora se manifestando
de uma forma, ora de outra. Esses estímulos poderiam ser provenientes de um determinado
meio, como a natureza hostil que estimulava a altivez e a coragem de seus ascendentes
indígenas. Mas também, em uma determinada situação como essa, ela poderia ter ímpetos de
agir de diferentes formas, o que foi explicado pelo fato de que em suas veias corriam sangue
indígena e português. Foi essa miscigenação racial que contribuiu para a construção de
personagens portadoras de uma dualidade temperamental.
Sobre a formação do temperamento de Maria Rita, o narrador afirma que ela seria
o exemplo de mulher forte, caso sua educação tivesse sido outra, baseada nos princípios
cristãos, os quais a faria suportar com mais resignação os momentos de maiores tribulações e
os desejos da carne. Porém, como seu caráter havia sido formado em um meio inculto, ela
recorria a um fetichismo, que de nada valia:

A religião, que podia fortalecel-a armal-a mesmo um pouco contra o peccado, isto é,
dar-lhe força para fugir a tentação, não tinha, quasi não conhecia Deus. Coitada não
sabia resar! O feitichismo professado no meio em que ella se creara quasi havia
destruído em sua alma as ideas incompletas que tinha do catholicismo e as crenças
da religião de Christo.
Maria Ritta, em seus dias de desespero, em suas horas penosas de tribulação e de
abandono, desilludida de todo qualquer socorro humano nunca tentou o recurso da
prece, da oração. Não blasphemava e nem também supplicava. Procurava conjurar
os males que a afflingia pelo sortilegio. Assim chamava em seu auxilio a mais
afamada feiticeira da fazenda e crente em seu poder sobrenatural pedia-lhe com toda
a confiança a graça de aplacar a colera de Vicencia da Gloria. As mandingas da
negra, entretanto, não faziam arrefecer o máo humor da tia e muito menos
curava-lhe a histeria.
Maria Ritta, altiva por temperamento, com certas qualidades nobres e nativas,
pois eram desconhecidas no meio em que se formara o seu carater, seria o
exemplo da mulher forte se outra tivesse sido a sua educação. O seu espírito
inculto, tinha entretanto as vezes rasgos de polidez, que podiam ser considerados
como verdadeiros casos de subjectividade. A sua energia e coragem tão
exuberantemente aproveitadas por um desciplinamento são, desenvolveram naquelle
espírito dotes de subido valor. Ella tinha alguma coisa mais do que as mulheres com
quem convivia em seus annos era um phenomeno digno de observação. Estes dotes
intellectuaes naquelle meio serviam unicamente para fazel-a mais infeliz. Com um
entendimento bronco, uma percepção romba teria soffrido menos, sentiria só as
85

dores accessíveis a sensibilidade da matéria e não as torturas tangíveis sómente aos


seres intelligentes (TEÓFILO, 1897, p. 229-230. Grifo nosso).

Nesse trecho constatamos a valorização do disciplinamento operado pelo


catolicismo, em detrimento das crenças populares herdadas da cultura africana, as quais
impediam que o espírito dessa personagem se tornasse inteiramente culto. Nessa perspectiva,
o meio em que ela fora educada interferia diretamente na formação de seu temperamento, pois
determinados aspectos temperamentais poderiam ter sido moldados pela educação. Por outro
lado, Maria Rita era uma mulher que se destacava naquele meio inculto, devido ao fato de ter
herdado “qualidades nobres e nativas”, ou seja, de duas raças diferentes, ela se tornava mais
valorosa do que outras mulheres do seu meio. Enfim, o que se propôs é que os elementos
raciais poderiam ser contornados pela educação, isto é, pelo meio social.
Destaca-se ainda que, embora Rodolfo Teófilo não fosse considerado um homem
religioso (SOMBRA, 1997), ele era adepto à concepção de que a educação moral e religiosa
possuía grande importância na formação de um povo. Segundo Manoel Carlos de Alencar
(2009), a atenção dada à educação moral era um importante elemento que constituía o
pensamento social do final do século XIX. Apesar de aquela intelectualidade ter sido
contaminada pelos ideais modernos, positivos e laicos, vindos da Europa, ainda se recorria a
“uma compreensão generalizada de que não bastava o conhecimento intelectual ou
informativo para incutir no povo bons hábitos, costumes e disciplina” (ALENCAR, 2009, p.
153). Era o moralismo dialogando com os ideais modernos e liberais de uma forma bem
singular.
Agora nossa análise vai para a forma como foi construída a imagem de Joaquim
de Queiroz, par romântico de Maria Rita. Queiroz, resultado também da miscigenação do
português com o índio, ao contrário de sua amada, não foi tratado como uma pessoa branca,
mas como um caboclo. Ele representava o que o narrador chamou de “puro tipo de sertanejo”:

Casava bem aquellas vestes com tão puro typo de sertanejo. Não se podia desejar
exemplar mais perfeito do mestiço, da fusão das raças portugueza e brazileira.
Todo elle era rijo, masculo emfim. O rosto moreno, mais de um moreno claro, era
illuminado por um olhar vivo e intelligente gerado em uns olhos grandes e negros.
Mal apontava-lhe o buço e os primeiros pellos finos e sedosos da barba, que mui
rudimentar ainda, mostrava contudo que seria cerrada e preta. Não parecia ter elle
mais de vinte annos (TEÓFILO, 1897, p. 57. Grifo nosso).

Resultado da melhor mistura, entre o brasileiro (como foi chamado o indígena) e o


português, verifica-se que nele prevaleceram as características dessa última raça. Isso é
86

possível constatar por meio de elementos faciais, como a presença de uma barba cerrada e
preta e olhos grandes. Porém, diferentemente de Maria Rita, esse sertanejo não era de todo
branco. Ele possuía um rosto moreno, mas de um moreno claro, representando as diferentes
gradações de mestiçagem que já existia no período colonial, o que remete à grande variedade
de “tipos de cor”. Destacar que o protagonista do romance tinha uma pele clara, significa
enfatizar que ele estava em uma situação melhor que aqueles que possuíam a pele escura. Mas
isso não o impedia de sofrer o preconceito de raça por parte da tia de Maria Rita, que, embora
fosse uma tapuia, não admitia que a “brancura” da sobrinha fosse maculada pela pele morena
de Queiroz.
Ressaltamos também a descrição desse sertanejo como um tipo rijo e másculo.
Sua conformação física aparece atrelada à vida sertaneja e à sua lida como vaqueiro:

Cultivava a força muscular domando touros e poldros bravos e enrijando o corpo


na equitação, não se deixando amollecer no fundo da rede entorpecido pelo fumo e
pelas phantasias de sua imaginação de poeta.
Grande era a cultura intellectual de Queiroz para o tempo e meio em que vivia.
Um jezuita, que se demorou alguns annos em sua freguezia lhe servia de professor.
O discípulo aproveitou bem as lições do mestre, que era erudito.
Queiroz tinha grande paixão pela poesia, e tanto que sabia de cor os Luziadas,
único livro de versos que conhecia e isso por favor do padre que o ensinara a ler
(TEÓFILO, 1897, p. 60-61. Grifo nosso).

O primeiro aspecto que queremos destacar sobre esse puro tipo de sertanejo é a
relação entre o seu pertencimento racial e a sua condição social. Queiroz não era um caboclo
qualquer, ele desempenhava a função de vaqueiro, uma das mais valorizadas na cultura
sertaneja. Ivone Cordeiro Barbosa (2000), ao estudar sobre a forma como o sertão se
configurava na literatura cearense do século XIX, mostrou que desde meados do século XVIII
foi dada uma centralidade à figura do vaqueiro. Isso nos permite dimensionar “a sua
importância na experiência histórica do sertão cearense” (BARBOSA, 2000, p. 103). Ela
também destaca que no século XIX a relação de trabalho entre vaqueiro e proprietário de terra
se dava por meio da “quarteação” (uma forma de pagamento em que a cada quatro crias, uma
era reservada ao vaqueiro). Essa relação abria a possibilidade de ascensão social ao vaqueiro,
pois, assim, ele poderia também possuir seu próprio rebanho. Portanto, podemos afirmar que
ser vaqueiro era uma atividade relativamente valorizada na sociedade sertaneja do período em
que a obra foi escrita. E, tratando-se do período colonial, ao qual o romance fez referência,
destaca-se que a pecuária foi a principal responsável pela ocupação portuguesa do sertão
cearense (PINHEIRO, 2007), possuindo grande relevância para aquela sociedade. É nesse
87

sentido que o protagonista Queiroz foi tratado como um herói, um caboclo destemido que
demonstrava força, coragem e destreza ao se emaranhar na mata, em busca dos touros bravios.
Entretanto, o que tornava Queiroz um sertanejo de qualidades elevadas não era
apenas a sua atividade de vaqueiro. Como mostra a citação, esse personagem possuía uma
grande cultura intelectual para o tempo e o meio em que vivia e possuía grande paixão pela
poesia. Ao fazer essa distinção, Rodolfo Teófilo deixou transparecer sua visão de homem
letrado e citadino sobre o sertão, um olhar que qualificava esse local como inculto e bárbaro.
Mas, numa perspectiva regeneradora, propôs que, por meio das letras, os sertanejos poderiam
se tornar civilizados. Destacamos que essa era uma visão muito difundida no meio intelectual
em que Rodolfo Teófilo circulava.
Manoel Alencar (2009) aponta que na passagem do século XIX para o XX,
período em que a maioria da população brasileira era completamente analfabeta, e, portanto,
considerada inculta, havia uma forte crença, por parte da elite letrada brasileira, no poder
transformador da educação. Para essa elite letrada, apenas uma ampla difusão do saber seria
capaz de resgatar o povo da ignorância. Esse pensamento estava presente nos diversos meios
letrados, com destaque à imprensa e à literatura. Na imprensa cearense era frequente um
determinado tipo de conteúdo que associava instrução à civilização: “A instrução é tão
necessária para ilustrar nosso espírito, como o alimento é indispensável para o sustentáculo do
corpo. Onde não há instrução é morta a civilização; não tem possibilidade de progresso
algum, quer moral, quer material” (O Colossal Apud GONÇALVES, 2006, p. 61). Rodolfo
Teófilo constantemente expressava em seus escritos esse forte poder que creditava à
instrução. Se referindo ao período colonial, ele destacou que a atuação dos jesuítas24 foi
fundamental para salvar os nativos da barbárie. Assim, esse literato reproduzia o discurso dos
dominadores e mais uma vez relacionava a questão racial com a ideia de civilização trazida
pela raça branca.
Ressaltamos que Queiroz, sendo o protagonista do romance, tratado em termos
raciais como um puro tipo de sertanejo, nos possibilitou perceber através de sua
caracterização a construção de um sertanejo idealizado aos moldes do Romantismo. Embora
Rodolfo Teófilo tenha empreendido um grande esforço para escrever esses romances em
conformidade aos ditames naturalistas, através da construção de muitas de suas personagens
fica visível que esse autor não conseguiu romper completamente com a estética do
Romantismo. Exemplo disso é a construção desse protagonista, que muito se assemelhava aos

24
“Até 1759, a educação foi deixada a cargo dos jesuítas, que foram certamente os primeiros responsáveis pela
instrução no período colonial” (ALENCAR, 2009, p. 153).
88

heróis sertanejos do Romantismo. Esses heróis se caracterizavam por levarem uma vida
simples no campo, cujos grandes feitos apareciam relacionados à vida de vaqueiro, na lida
com touros bravios. Queiroz também foi idealizado ao apresentar uma pureza de sentimentos
que não era comum às personagens naturalistas:

A alma do poeta estava embebida do mais puro platonismo. Nem uma scena de
sensualidade, nem um desejo carnal ateou-se-lhe no espírito, quando os seus
sentidos perceberam as formas nuas da sertaneja. Extasiou-se somente deante da
belleza da estatua viva, e como artista que adorou a esthetica daquelle pedaço de
carne (TEÓFILO, 1897, p. 96).

Esse amor platônico que o poeta sentiu por Maria Rita, desde que a viu pela
primeira vez – saindo de um banho, com a roupa ainda molhada –, revela a ideia de pureza
atrelada ao homem do campo, a qual perdurou por muito tempo na literatura sobre o sertão
(BARBOSA, 2000). Ao mesmo tempo, Queiroz foi apresentado como um homem que possuía
uma sensibilidade aguçada, um sertanejo que teve acesso a uma cultura intelectual, capaz de
admirar o belo e transformá-lo em poesia. Essa pureza, relacionada ao amor romântico e
idealizado, presente em Queiroz, se contrastava com os sentimentos de seu amigo Belmonte:

O amor de Belmonte não era casto como o de Queiroz. Enquanto este idealisava
mundos de gosos para Maria, tecia de nuvens as vestes della e depois a punha num
thrôno e a adorava prostrado, aquelle obedecendo ao seu temperamento libidinoso
de mestiço deixava-se espicaçar de desejos sensuaes. O meio actuava de modo
diverso sobre o espírito dos dous moços sertanejos. Um via somente a Natureza
pelo prisma do seu platonismo: as flôres, as aves, as borboletas, os astros se amando
castamente, desse amor puro d’alma e não do corpo. O outro vivia da volupia dos
animaes, cuja sensualidade expunham sem rebuço, e elle gosava do goso delles,
porque todo o seu ser se embebia de um deleite carnal como elle fosse um dos
protagonistas daquelle acto. Amava a noiva como um touro ama a novilha
sentindo por ella somente os fremitos da carne em ancias pela realisação do sonho
que sua mente creava quando seus olhos viam os idyllios dos beija-flôres e lhe
chegavam aos ouvidos o arrulho das rôlas em amoraveis nupcias. Que de desejos
não lhe sacudiam os nervos quando os brutos em toda a sua animalidade amavam-se
à sua vista, sem acanhamento, com toda a volupia de uma carnação nova, vigorosa e
sadia! (TEÓFILO, 1897, p. 96-97. Grifo nosso).

Nesse contraste, percebemos que a um dos sertanejos foi reservado o amor


idealizado do Romantismo, ao outro foi gasta toda a tintura naturalista para expressar o seu
amor animalizado pela noiva. Nota-se que um mesmo meio apareceu atuando de forma
diferente no desenvolvimento dos sentidos e percepções de cada sertanejo. De início, o
narrador já propôs que Belmonte obedecia apenas “ao seu temperamento libidinoso de
mestiço” e deixava-se tomar pelos desejos sensuais. Destacamos, mais uma vez, que a
sensibilidade e a sexualidade, a forma de sentir e se expressar dos indivíduos, foram
89

condicionadas por aquilo que se denominava como temperamento. A sexualidade de


Belmonte foi definida por sua condição racial de mestiço e por essa condição ele foi
qualificado como um sujeito de temperamento libidinoso. Característica essa que se
manifestava quando ele observava as cenas de acasalamento entre os animais presentes na
natureza. Nessa perspectiva, a natureza, portanto, o meio, atuava de modo a estimular as
sensações próprias de cada temperamento.
Belmonte foi qualificado como um mestiço, mas não foi explicitado o tipo de
mestiçagem da qual ele resultara. Porém, compreendemos que nesses dois indivíduos não se
sobressaíram os mesmos elementos raciais, ou não se tratava de um mesmo tipo de
mestiçagem, pois cada um reagia de forma diferente diante de uma mesma situação e sob a
atuação de um mesmo meio. Conforme ressaltamos, Queiroz foi apresentado como um
caboclo, resultado da fusão entre o branco e o índio, fusão essa considerada pelo narrador a
mais perfeita mestiçagem, desde que prevalecessem elementos da raça branca. Para Joaquim
de Queiroz, só foram atribuídas qualidades positivas e até idealizadas, pois nele se sobressaía
o temperamento da raça branca. Já Belmonte foi tratado como um mestiço libidinoso, um
mestiço que herdara a concupiscência das raças inferiores: negros ou indígenas.
Como vimos antes, a personagem Maria Rita, ao se incorporar na floresta, durante
dias vivendo como seus antepassados indígenas, mostrava cada vez mais um temperamento
concupiscente: “E o sangue indigena, que lhe corria nas veias, ainda saturado de uma
concupiscencia selvagem, trazia o coração della num anceio mortificante, num desejo ardente
de deleites, que nunca havia gosado mas sentia em si necessidade delles” (TEÓFILO, 1897, p.
357). Belmonte foi descrito como libidinoso por ser mestiço, e Queiroz, embora se
apresentasse de forma idealizada, portando os sentimentos mais puros que um homem poderia
ter por uma mulher, ao final do romance também foi tomado pela “besta da sensualidade”:

Até aquelle instante, até ouvir a narrativa q’aquelle episodio carnal o seu amor tinha
sido todo contemplativo, todo platonico. A besta existia, mas hibernava em seu
miseravel carcere. Agora ella acordava e Queiroz sentindo-a dentro de si, procurava
contel-a, por-lhe peias aos botes que ella atirava a sua castidade, mas embalde, o
episodio que ouvira havia ateado o fogo da concupicencia em sua animalidade
inteira. Em seu sangue de mestiço o fluido sensual não ficaria em extase, e elle o
casto e sonhador amante, mal grado uns restos de pudor que se escondiam em si
deixaria a besta o seu livre arbitrio (TEÓFILO, 1897, p. 369).

Idealizado aos moldes do Romantismo, em Queiroz se sobressaía o temperamento


da raça branca, e, por isso, o seu amor, até então, se manifestara apenas de forma platônica.
Porém, ao ouvir os relatos sobre o casamento forçado de Maria Rita e sobre o “aparecimento
90

de um homem disputando a posse da mulher que dizia ser sua”, Queiroz foi tomado pelo
ciúme e pelo desejo carnal. A partir desse momento, a sensualidade, que herdara das raças
selvagens e que se mantivera em estado latente, passou a se manifestar de forma violenta.
As personagens analisadas nessa seção foram caracterizadas racialmente como
mestiças, frutos do cruzamento entre brancos e índios. O que pudemos constatar é que, de
acordo com essa narrativa, a miscigenação ocorrida durante o período colonial não foi capaz
de apagar traços que revelavam a forte presença da raça selvagem na formação do povo
cearense, mesmo que, em alguns casos, a mistura com a raça branca, atrelada à civilização
trazida por essa, tenha amenizado o temperamento selvagem. Essa presença do elemento
indígena tomou diferentes proporções, variando de acordo com cada personagem
representada. Isso demonstra que, para o narrador, houve uma grande variedade de
miscigenação. Como vimos, em Vicencia da Gloria prevaleceu a fisionomia e o
temperamento dos indígenas. Já Maria Rita, mesmo se assemelhando fisicamente à raça
branca, aos poucos foi demonstrando um temperamento selvagem que se manifestava ao
estímulo de agentes externos, como a paixão que sentira por Queiroz e ao entrar em contato
com a natureza bravia, ou seja, com o meio. Em Joaquim de Queiroz prevaleceram os valores
e temperamento considerados pertencentes à raça branca. Mas, ao final do romance, nele
também se manifestaram aspectos temperamentais que o caracterizavam como mestiço, além
de possuir uma pele morena.
O que podemos concluir a respeito da visão que essa obra passa sobre a
miscigenação que deu origem ao povo cearense, é que o seu autor não condenava a
miscigenação entre brancos e índios. Pelo contrário, ele até construiu uma visão otimista
dessa mestiçagem, através dos protagonistas, Joaquim de Queiroz e Maria Rita. E, embora
determinadas características negativas fossem de herança indígena – como a índole
sanguinária, a concupiscência, a fúria e a altivez –, também eram a coragem e a insubmissão.
Tais características se manifestavam por meio de diferentes estímulos externos. E é nisso que
consiste a lei do atavismo.
Ainda que na perspectiva do narrador prevaleça uma visão positivada sobre a
miscigenação (desde que o elemento branco seja predominante), também foi possível
constatar vozes dissonantes dentro de uma mesma obra, através das falas de diferentes
personagens. Exemplo disso é a fala do padre Botelho, a partir da qual não se cogitava nem a
possibilidade de melhoramento racial para os descendentes de indígena e nem que esses
fossem civilizáveis:
91

- É melhor exterminar o selvagem do que civilisal-o. Que lucra a religião com a


cathechese de brutos que fingem adorar a Deus, mas uma vez em liberdade voltam a
seus antigos usos e a adoração de seus idolos... A coroa de Portugal com mais acerto
obraria levando a destruição dos gentios a todos os recantos desta grande terra e
colonisando-a com o branco, com uma raça mais pura, mais inteligente (TEÓFILO,
1897, p. 113).

Esse trecho mostra uma visão sobre a catequese dos indígenas, a partir do ponto
de vista do antagonista do romance, para o qual essa catequese seria inviável, pois, os nativos
se tratavam de brutos irredutíveis à civilidade e aos preceitos cristãos. Assim, nessa
perspectiva, a melhor solução que a coroa portuguesa poderia tomar seria exterminar os
nativos e colonizar essas terras apenas com a raça branca, tida por Botelho como “uma raça
mais pura, mais inteligente”. Esse pensamento mais radical de extermínio apareceu como uma
alternativa para aqueles que estariam interessados em civilizar de forma rápida as terras
brasileiras. Para isso seria necessário eliminar os elementos raciais considerados inferiores.
Foi a partir da perspectiva do vigário, assim como do português José Maria da Purificação,
outra personagem que não tinha a simpatia do narrador, que esse apresentou uma visão
contrária à miscigenação. Tal visão referia-se a uma perspectiva dos colonizadores
portugueses sobre os indígenas e sobre a miscigenação, a qual não coincidia com a concepção
do próprio narrador:

A conferencia de José Maria com o vigario acabou por uma palestra, na qual
tomaram parte Prazeres e Bernardo. Dominando alli o ellemento portuguez, a
conversação cahiu fatalmente em negocios do Brazil, e, por associações de idéas,
nos naturaes, cuja preguiça e índole sanguinária foram ainda uma vez
celebradas e exageradas pelo odio estrangeiro. Um paiz de cabras nunca poderá
prosperar, diziam convencidos. Sutentavam sem discrepância ser a matança dos
indios e das gentes de côr, o único meio de civilisar depressa as terras brazileiras,
como se desapparecido o elemento indígena e o mestiço ficasse outro a não ser o
civilisado calceta portuguez (TEÓFILO, 1897, p. 253. Grifo nosso).

Na afirmação que “um país de cabras nunca poderá prosperar”, atentamos para o
fato de que o termo “cabra” é uma expressão que se tornou muito popular no linguajar
sertanejo, mas, em termos raciais, Rodolfo Teófilo utilizava para se referir à mestiçagem
resultante da mistura entre o negro e o índio. Considerada por ele a pior mistura entre as
92

raças25, pois não envolvia o elemento o branco. Nesse trecho, os grupos raciais considerados
inferiores e que deveriam ser mortos eram os índios e a gente de cor.26
De uma forma geral, essa perspectiva contrária à miscigenação representava a
visão de colonizadores portugueses. Assim, ressalta-se o papel desempenhado por essas
personagens dentro daquela narrativa. Na seção anterior vimos que todos esses portugueses
foram caracterizados como pessoas desonestas, mau-caráter, interesseiras e egoístas. Portanto,
suas ações e opiniões eram condenáveis. Entendemos que Rodolfo Teófilo, situado
temporalmente no final do século XIX, não trabalhava nessa mesma perspectiva. Pois, na
temporalidade em que a obra foi produzida, a colonização e a miscigenação já eram fatos
consumados. Para esse autor, era mais interessante pensar no que fazer com essa
miscigenação, já tão avançada. Dessa forma, ao trabalharmos com a fonte literária, é preciso
atentar para a forma como as diferentes falas e concepções das personagens e do narrador
foram arranjadas e hierarquizadas no interior de uma mesma obra.

3.3 A NEGATIVIDADE SOBRE A RAÇA NEGRA NO PROCESSO DE COLONIZAÇÃO


DO CEARÁ

Ao falar do processo de colonização do Ceará, através de sua obra Maria Rita,


pudemos constatar que Rodolfo Teófilo, a todo o momento, destacou que esse processo
resultou da mistura do branco com o índio, e, de um modo geral, buscou negar a forte
presença do negro. Isso ficou explícito desde o início da obra, quando o português José Maria
da Purificação afirmou, de forma enfática, que “aqui não se conhece o julgo da escravidão”
(TEÓFILO, 1897, p. 63). Mas essa tendência se evidenciava também pelo fato de que quando
o elemento negro aparecia, esse era diluído na miscigenação, seja com o branco ou com o
índio. Essa diluição do elemento negro é perceptível através de expressões como gente de cor,
mestiço e cabra. Diante dessa tentativa de negar a presença do negro no processo de
colonização do Ceará, buscamos, por meio de uma leitura na direção contrária dessa narrativa,
encontrar elementos que nos possibilitem perceber essa presença do negro no Ceará e o
interesse, por parte da intelectualidade cearense do século XIX, em apagá-la.

25
Essa concepção negativa que Rodolfo Teófilo possuía sobre a mestiçagem entre índios e negros é evidenciada
de forma explícita na sua obra Os Brilhantes, ao tratar dos Calangros, grupo de bandidos inimigos do
protagonista Jesuíno Brilhante.
26
Essa expressão nos leva a refletir sobre o fato de que até para apresentar o negro como um grupo racial
indesejável há uma negação do mesmo. Pois tratar alguém como “gente de cor” é atribuir uma imediata distinção
por uma marca mais visível, como a cor da pele, destituindo aquele sujeito de seu pertencimento a um grupo
étnico específico.
93

O contraste mais claro, dentro da própria obra, à afirmativa de que “aqui não se
conhece o julgo da escravidão” é o personagem Banda-Fora, um escravo que servia à família
de José Maria da Purificação. Esse escravo foi encarregado, por Vicencia da Gloria, de efetuar
uma desforra contra Queiroz, pois a mesma não aceitava o romance entre o sertanejo e sua
sobrinha Maria Rita. O plano era Banda-Fora pegar Joaquim de Queiroz em uma emboscada
durante a noite, dar-lhe uma surra e depois marcar seu rosto com as iniciais da fazenda
pertencente ao pai de Maria Rita. Porém, esse plano não se realizou, pois, ao tentar acatar o
vaqueiro, Banda-Fora acabou sendo atingido pelo cavalo de Queiroz. Após ter a perna
quebrada no atrito com o cavalo, no dia seguinte à emboscada, Banda-Fora foi encontrado,
quase desfalecido, por Queiroz e Belmonte. Conforme a narrativa: “Queiroz estava com pena
do cabra. A angustia que desfigurava o mestiço, que prostrava e que lhe tolhia todos os meios
physicos de acção não podia deixar de commover a alma generosa do poeta” (TEÓFILO,
1897, p. 146). Como podemos ver, mesmo se tratando de um escravo, Banda-Fora não foi
categorizado como negro. Algumas vezes foi citado pelo narrador como mestiço e na maior
parte do tempo foi tratado por cabra, inclusive por outras personagens.
O historiador Eurípedes Funes (2007), ao pesquisar sobre a presença do negro no
Ceará, problematizou essa ideia, muito frequente, de que no Ceará não há negro porque a
escravidão foi pouco expressiva. Através de um romance de Rodolfo Teófilo, produzido no
final do século XIX, podemos ver que essa ideia é remota e se perpetuou por muito tempo na
historiografia cearense. Esse pesquisador nos mostra que uma forma de justificar essa quase
ausência do elemento negro na formação do povo cearense é contrapondo-a a forte presença
do indígena:

Uma forma recorrente para acentuar a essas considerações é afirmar que entre os
pardos estavam, e estão, os mestiços fruto do cruzamento das demais etnias com o
nativo, o índio. Pode até ser, mas não se deve deixar de considerar a presença do
cafuzo, do mulato, do cabra, que nada mais são do que fruto de uma miscigenação
com forte predominância do negro. Basta estar atento para as formas de
identificação nos censos dos cativos que não são “pretos”, não só no Ceará, e
perceber que essas são as categorias usualmente empregadas (FUNES, 2007, p.
103).

Nesse sentido, destacamos que a forte presença do índio não anula a do negro. É
preciso estar atento às formas sutis de denúncia à presença do negro, diluída através de
categorias como mestiço, mulato, cafuzo e cabra. Eurípides Funes ainda afirma que essa
tentativa de negar a presença do negro no Ceará relaciona-se a uma lógica perversa de
associar o negro à escravidão. Embora a escravidão no sertão nordestino não tenha ocorrido
94

de forma tão intensa como no Nordeste açucareiro, isso não impede que os negros também
tenham ocupado aquele espaço. Não só como cativos, mas também como trabalhadores livres
e agregados das fazendas de criar, durante a colonização. Conforme a atividade pecuária foi
se efetivando, “consolidou-se um espaço de trabalho que atraiu um contingente de homens
livres, em sua maioria pobres, negros e pardos, vindos de províncias vizinhas” (FUNES,
2007, p. 105). E mesmo com o tráfico interprovincial no século XIX, em que muitos cativos
cearenses foram exportados para outras províncias, constatou-se um aumento significativo de
uma população livre negra e miscigenada, fruto de um crescimento vegetativo (FUNES, 2007,
p. 106).
Sendo a presença do negro quase apagada nesse romance histórico sobre a
colonização, quando ele aparecia, eram-lhe atribuídas as piores qualificações. Diferentemente
dos indígenas que se destacavam pela altivez e coragem, o negro Banda-Fora foi qualificado
como uma pessoa covarde e sem muitos valores morais. Após o fracasso na emboscada, esse
cativo teve a vida poupada por Queiroz, que o perdoou com a condição de avisar a Maria Rita
sobre seus planos de raptá-la. Porém, temendo os castigos de Vicencia, Banda-Fora “lembrou-
se então de obter as graças da senhora de outro modo, revelando o segredo de Queiroz” e,
assim, cogitou a possibilidade de “expor a vida do homem que tão generosamente havia
poupado a sua vida” (TEÓFILO, 1897, p. 160).
Ao relatar sobre os sentimentos desse homem negro, o narrador tratava-o como
um homem embrutecido pelo cativeiro e incapaz de cultivar bons sentimentos por qualquer
pessoa, nem mesmo por aquele que havia lhe poupado a vida. Mas, ao lembrar-se das afrontas
descarregadas por seus inimigos, Banda-Fora desejava vingar-se “desapiedosamente”. Para
conseguir tais propósitos recorria ao sortilégio, uma prática tratada como comum naquela
cultura, e de modo específico, para aquele tipo racial:

O gosto do cabra pelo sortilégio apurou-se; a semente do feitichismo cahindo em


terreno proprio germinou e cresceu depressa.
Em pouco tempo Banda-Fora acreditou possuir um poder sobrenatural. A seus
serviços todas as potestades invisíveis do Mal, chefiadas pela Morte, podia vingar-se
desapiedadamente, sem responsabilidade de seus inimigos, que eram Vicencia da
Gloria e Belmonte. Nunca perdoou ao matuto a mutilação das orelhas, o corte do
crespo e nem tão pouco a senhora os ponta-pés que lhe dera no rosto quando chegou
doente (TEÓFILO, 1897, p. 234).

Ao afirmar que o fetichismo havia caído em terreno próprio, o narrador propôs


que Banda-Fora, por pertencer à raça negra, possuía uma maior propensão àquelas práticas
consideradas bárbaras e contrárias à fé cristã, relacionando-as ao mal e tratando-as como
95

potestades demoníacas. Assim, mais uma vez, atentamos para aquilo de Roberto Ventura
ressalta como uma identificação, por parte dos homens letrados, com o pensamento
colonialista, o que favorecia a uma relação etnocêntrica com os grupos populares, entre eles,
indígenas, africanos e mestiços, “cujas formas de cultura e religião eram depreciadas como
atávicas, atrasadas ou degeneradas” (VENTURA, 1991, p. 59).
Ao tratar as crenças desses povos de forma estereotipada e carregada de valores
negativos, buscou-se justificar a sua inferioridade racial. Pudemos verificar que essa forma de
tratamento sobre as crenças dos povos negros apareceu de forma bem recorrente na produção
literária de Rodolfo Teófilo. Assim como em Maria Rita, podemos citar também a cena de um
ritual de fechamento do corpo na obra Os Brilhantes. Através das descrições do narrador,
percebemos um olhar de descrença e preconceito sobre aquilo que era tratado como mandinga
ou bruxaria. Destacamos os tipos raciais dos dois personagens envolvidos. Um desses
personagens era um negro feiticeiro que realizou o ritual, descrito como “um prêto bastante
velho, nojento e maltrapilho” (TEÓFILO, 1972, p. 126), o africano Manoel do Congo. E o
outro era Francisco Calangro, um mestiço criminoso que procurou fechar o corpo para se
proteger da morte: “O matuto quase tão rombo como o africano, e tão crente como êle
naquelas bruxarias, tirou a roupa, muito convencido de que era necessário expor tôda a pele
ao fetichista a fim de ser preservada de todo mal” (TEÓFILO, 1972, p. 128). Posteriormente,
a narrativa relatou seu violento assassinato, comprovando a ineficiência daquele ritual.
O curandeirismo era praticado no Brasil desde o período colonial e envolvia
práticas de cura informal. Muitas vezes, essas práticas envolviam rituais mágicos vindo da
África, baseados no emprego de talismãs, amuletos e fetiches. Rodolfo Teófilo, ao descrever
esses rituais, não escondeu o seu olhar preconceituoso. Nesse trecho da obra Os Brilhantes,
além de tratar tal ritual de forma grotesca, o narrador também atribuiu descrições bastante
repugnantes sobre o velho feiticeiro e o ambiente em que ele vivia: “Aquêle ar, tão puro lá
fora, estava impregnado no casebre de um fedor de anum, que embebedava. Quanto mais se
movia o negro mais fétido se tornava o ambiente” (TEÓFILO, 1972, p. 127). Mais uma vez,
Rodolfo Teófilo associou o ambiente vivido por grupos populares à falta de higiene.
Retomando a discussão sobre a construção do personagem Banda-Fora, no
decorrer da obra Maria Rita, o narrador explicou que o seu espírito acovardado e a sua falta
de sensibilidade moral revelavam um temperamento moldado pela condição de cativo, a qual
embrutecia e desumanizava o indivíduo.
96

A sua sensibilidade moral estava de perfeito accordo com a cultura de seu espírito,
com o seu carater formado na senzala, aviltado pelo chicote desde que teve uso da
rasão. Aquella prisão, a deshumanidade da senhora não podia affligil-o muito
moralmente.
A infelicidade delles captivos era tamanha que lhes negava o direito de uma
esperança, quanto mais o allivio de um consolo! Escravos, a lei dos homens os havia
banido da communhão humana, arrancando-lhes do coração todas as affeições,
negando até as prerrogativas de ser racional e concedendo somente os foros e os
privilégios de besta, mas de besta de carga (TEÓFILO, 1897, p. 167-168).

Mesmo se tratando de uma visão reducionista sobre as sensibilidades dos sujeitos


escravizados, esse trecho se diferencia dos demais aqui analisados, uma vez que não buscou-
se atribuir explicações ancoradas em algum tipo de determinismo para justificar o
temperamento do personagem. Banda-Fora foi caracterizado como um sujeito moralmente
embrutecido porque a escravidão havia lhe moldado assim. Para o leitor foi colocada uma
questão social bastante problemática e que se referia aos horrores do sistema escravista,
responsável por destituir o indivíduo de sua condição humana.
Embora esse romance seja ambientado no período colonial, ao tratar a escravidão
como um ato de desumanidade, através da perspectiva do narrador, Rodolfo Teófilo deixou
transparecer uma questão própria do momento em que a obra foi escrita e da qual ele fazia
parte ativamente, o movimento abolicionista. Relembramos aqui que a obra Maria Rita foi
publicada em 1897, treze anos após o evento que marcou o pioneirismo da província cearense
na abolição da escravatura27, antecedendo a Lei Áurea que determinava abolida a escravidão
em todo o território nacional. Assim, buscamos compreender de que forma se deu a campanha
abolicionista no Ceará e como Rodolfo Teófilo estava envolvido com a mesma, de modo que
isso possa ter interferido na sua maneira de representar os negros.
Naquele momento de euforia, a campanha abolicionista cearense teve grande
repercussão no território nacional. Parte dessa propagação deveu-se à atuação da Sociedade
Cearense Libertadora, considerada a sociedade abolicionista mais atuante do Ceará, tanto em
número, como pela posição social ocupada pelas pessoas que a compunham.28 Foi por meio

27
Não é novidade que o Estado do Ceará vangloria-se por ter sido a primeira província na nação a abolir a
escravidão, em 25 de março de 1884. Tal feito redeu-lhe os epítetos de Terra da Luz e Berço da Liberdade,
alcunhas atribuídas pelo famoso abolicionista e jornalista da Corte, José do Patrocínio. As marcas simbólicas
desse legado são ostentadas através de logradouros e prédios públicos na capital cearense, como, por exemplo, o
Palácio da Abolição, sede do governo do Estado. Além disso, recentemente, o dia 25 de março passou a ser
instituído como a Data Magna do Ceará.
28
À medida que a campanha abolicionista ia se difundindo, também surgiram várias outras sociedades na capital
cearense, como a Perseverança e Porvir, Centro Abolicionista, Democracia e Extermínio, Cavalheiros do Prazer,
Cearenses Libertadoras, Clube Abolicionista Caixeiral, Clube dos Libertos e Clube Abolicionista Militar.
Gleudson Cardoso atenta para o fato de que “muitas vezes elas trabalhavam juntas, ou isoladas, conforme a
afinidade do seu espírito de facção, segundo a sua postura, ou de acordo com os meios de ação em que se
distinguiram os moderados, fervorosos e carbonários” (CARDOSO, 2000, p. 85-86).
97

da criação do jornal Libertador que essa sociedade passou a divulgar suas ideias, além de
estabelecer contato com os abolicionistas de outras províncias, principalmente da Corte.
Inclusive, José do Patrocínio participou de alguns eventos da campanha abolicionista, durante
alguns meses que esteve no Ceará, em 1882.
Rodolfo Teófilo, como destacou seu biógrafo Waldy Sombra, participou
ativamente da campanha abolicionista cearense, já que “não era de seu temperamento
presenciar acontecimentos e sim, deles participar, desencadeá-los” (SOMBRA, 1997, p. 63).
Por isso, se destacou como um dos membros ativos fundadores da Sociedade Libertadora
Cearense e também como um dos colaboradores do jornal Libertador. Além disso, ao lado de
sua esposa Raimundinha, esteve à frente da campanha abolicionista de sua saudosa Pacatuba,
que se tornou o segundo município cearense a libertar os escravos, em dois de fevereiro de
1883, sucedendo a Vila Acarape (Redenção), em 1º de janeiro do mesmo ano.
Diante do forte engajamento desse intelectual na causa abolicionista,
questionamos por que uma obra como Maria Rita, escrita logo após o processo de libertação
dos escravos, buscou apagar a presença do negro em sua narrativa, num momento em que se
construía a narrativa heroica do Ceará como um Estado libertador? Como vimos, o
apagamento do negro nessa narrativa foi marcado tanto pela tentativa de negar a sua presença,
como pelo discurso negativo que o apresentava como um sujeito covarde, sem direito à
cidadania e estereotipado. Ressaltamos ainda que essa esteriotipação e apagamento do negro,
por Rodolfo Teófilo, não se distanciava muito da forma como a imagem do negro era
construída em outras obras literárias cearenses, também escritas no final do século XIX, por
membros dessa intelectualidade branca. Exemplo disso é a forma como o negro Romão foi
apresentado na obra A Normalista, de Adolfo Caminha (SILVA, 2017). Acreditamos que esse
apagamento do negro na literatura cearense ocultou um conjunto de interesses da elite letrada
da província.
Sobre a questão abolicionista, em Escravidão e Razão Nacional, José Murilo de
Carvalho destacou que, diferentemente dos abolicionismos europeu e norte-americano, para
os quais a abolição era fundamentada em argumentos de natureza filosófica e religiosa – já
que a escravidão violava o princípio da liberdade individual, garantido pelo direito natural e
pelo cristianismo –, na tradição luso-brasileira prevaleciam razões políticas. Esse estudioso
nos mostrou que, na tradição luso-brasileira, o movimento abolicionista não possuía raízes
profundas e só passou a ser conhecido nos últimos anos da escravidão. Durante a colonização,
enquanto que nos Estados Unidos, o cristianismo, em sua versão reformada, teve forte atuação
no combate à escravidão, na Colônia Portuguesa, o catolicismo ibérico atuava de forma
98

branda, o que se restringia em aconselhar os senhores a amenizar os castigos e punições. Após


a Independência, a discussão sobre a escravidão ganhou novos contornos e passou a ser uma
questão nacional a ser resolvida, pois se tratava de um empecilho à formação daquela nova
nação.

O tráfico e a escravidão impedem a formação nacional por três motivos: por serem
incompatíveis com a liberdade individual e, portanto, com o governo liberal; por
introduzirem um inimigo interno e porem a risco a segurança interna, como mostrou
a revolta de São Domingos; finalmente, por ameaçarem a segurança externa do País,
na medida em que inviabilizam a formação de um exército e de uma marinha
poderosos (CARVALHO, 1998, p. 49).

Nesse sentido, José Murilo de Carvalho mostrou que o abolicionismo no Brasil


não foi impulsionado pelos sentimentos humanitários ou filantrópicos, prevaleciam razões
políticas. Havia uma razão nacional para dar termo à escravidão e consistia no fato dessa se
apresentar como o obstáculo intransponível à construção da nação brasileira. “As razões
filosóficas e religiosa eram traduzidas em termos políticos. A liberdade, nessa perspectiva,
não era assunto privado, não era problema do indivíduo. Era um problema público, era a
questão da construção da nação” (CARVALHO, 1998, p. 61). Assim, como não se tratava de
uma questão ética, baseada em princípios humanistas ou religiosos, não houve uma defesa
radical da abolição ao longo do período escravista, apenas em seus anos finais.
Ao analisar os interesses envolvidos por trás da campanha abolicionista cearense,
no início da década de 1880, Gleudson Cardoso ressalta que “a construção apoteótica desse
‘heroísmo’ do Ceará deveu-se em longa medida à ação da máquina discursiva dos
intelectuais, ou melhor, da Mocidade Cearense” (CARDOSO, 2000, p. 83). Essa
intelectualidade estava interessada em construir uma memória da província como a Terra da
Luz, a qual, tornando-se exemplo e precursora do movimento abolicionista, se destacaria,
diante do restante do Império, como uma referência nacional de consolidação dos princípios
liberais burgueses.
Como bem mostra Janote Marques (2013, p. 350), “os discursos abolicionistas
eram carregados de matizes cívicos e progressistas, bem como o argumento de que a extinção
do trabalho cativo era necessária para a inserção do país no cenário das nações liberais”. As
contradições do Brasil – enquanto Estado monárquico e escravista que, ao mesmo tempo,
buscava se inserir na nova ordem econômica e fazer parte das nações civilizadas – deram
impulso ao desejo por um conjunto de mudanças. Entre elas, a passagem do regime de
trabalho escravo para o trabalho livre, que já era uma questão superada em quase todas as
99

partes do mundo. Nesse sentido, as camadas emergentes e os grupos intelectuais passaram a


reivindicar a modernização do país e a superação de suas instituições mais arcaicas para se
inserir no mundo civilizado. De um modo geral, o abolicionismo no Brasil teria sido mais um
ato político, no sentido de engrandecer o Estado como uma Nação moderna e liberal e exaltar
o suposto civismo da burguesia branca, do que mesmo uma causa iluminista em favor dos
direitos humanitários. Assim, a abolição se configuraria numa demonstração de evolução da
sociedade brasileira. “Nesse momento, a Nação definir-se-ia como nova, racional, civilizada,
positiva e progressista” (OLIVEIRA, 2001, p. 86). E o abolicionismo cearense se destacaria
por acender as luzes rumo ao progresso.
Juntamente a esse ato político, a ideia de emancipação dos valores tradicionais,
como o fim da escravatura, se alinhava perfeitamente aos interesses econômicos da emergente
burguesia fortalezense que, motivada pelos princípios liberais da nova ordem comercial,
buscava liberdade para negociar, fazer investimentos e consumir. Para essa burguesia, o
projeto que estava acima da abolição era o de inserção da província e da Nação brasileira na
economia mundial capitalista. Os abolicionistas cearenses estavam em sintonia com os seus
pares, espalhados pelo restante do país, em relação aos reais motivos, políticos e econômicos,
para o fim já irreversível da escravidão. Assim, como afirma Gleudson Cardoso, não foi sem
interesses pessoais que os comerciantes fortalezenses, ligados às atividades de exportação,
deram início à campanha abolicionista no Ceará, nos primórdios dos anos de 1880, “em que
logo foram engrossadas as fileiras com a participação dos intelectuais, mulheres, jangadeiros,
libertos etc” (CARDOSO, 2000, p. 89).
Jamily Fonseca (2015, p. 95), ao analisar os discursos evolucionistas dos letrados
na imprensa cearense da década de 1880, destacou que havia uma tentativa de controle e
ordenação do processo da abolição por parte dessa elite letrada. Essa intervenção planejada
funcionaria como uma barreira conservadora a fim de impedir a sublevação dos escravos.
Destaca-se que mesmo os membros da Sociedade Cearense Libertadora, os quais se
autodenominavam carbonários e, inicialmente, praticavam ações consideradas radicais por
seus contemporâneos, como facilitar a fuga de escravos e ajudar a organizar greves 29, sempre
que necessário recorriam ao discurso de ordem. Marques (2013) nos mostra que, de radicados
na causa libertadora, essa sociedade foi se revelando, ao longo de sua trajetória e dos
discursos proferidos no Libertador, como uma associação preocupada em manter o controle

29
Exemplo disso foi a famosa greve que aconteceu no porto de Fortaleza em 1881, conhecida como “greve dos
jangadeiros”, os quais se recusaram a embarcar escravos, afetando diretamente o tráfico interprovincial.
100

sobre aquele movimento, de modo que esse ocorresse de forma ordeira, gradual e pacífica e
sem dar visibilidade ao protagonismo dos cativos.
Da mesma forma, a atuação de Rodolfo Teófilo na campanha abolicionista
ocorreu de forma pacífica. Conforme ressalta Lira Neto (1999, p. 114), Teófilo tivera uma
participação discreta, sem alarde, que consistia em comprar alforrias, através da arrecadação
de fundos ou com seus próprios recursos. Em razão da sua luta pela abolição da escravatura
no Ceará e pelos serviços prestados ao povo cearense, em 1884, Rodolfo Teófilo recebeu de
D. Pedro II a comenda de Oficialato da Rosa, concedida aos que se destacavam por prestar
serviços à humanidade. Nesse sentido, podemos deduzir que a sua atuação ocorreu da forma
mais ordeira e pacífica possível, sem questionar a estrutura social ou mesmo a ordem
imperial, de quem recebeu homenagem.
De acordo ainda com as leituras realizadas por Janote Marques (2013) sobre o
movimento abolicionista do Ceará, aqueles abolicionistas estavam mais preocupados com a
promoção do movimento libertador em si, do que mesmo resgatar os negros escravizados das
condições subumanas em que se encontravam. Para eles era necessário acabar com a forma de
trabalho escravo, responsável, em grande parte, pelo atraso da nação. Porém, não interessava
restituir a dignidade daquelas populações consideradas inferiores e nem lhes dar o direito de
gozar dos direitos plenos à cidadania. Todo aquele alvoroço da campanha abolicionista tinha
como principal propósito a glorificação da abolição e dos sujeitos esclarecidos que a
promoviam. Assim, a libertação dos cativos era colocada como um presente ou um ato de
caridade exercido pelos libertadores, enquanto os escravos eram relegados a uma condição de
passividade, carentes de liderança.
Nesse sentido, colocamos em pauta uma questão presente na escrita desse autor e
que foi problemática para uma boa parte da intelectualidade brasileira, que diz respeito à
confluência de diferentes ideias europeias na construção do pensamento nacional brasileiro, e
se refere à tensão entre o pensamento abolicionista de emancipação dos cativos e a
demarcação de limites ao exercício da cidadania para os negros libertos. Rodolfo Teófilo,
assim como outros intelectuais brasileiros adeptos às teorias raciais, se via na situação de
mediar concepções antípodas como o racismo científico e o liberalismo. Essas contradições
foram analisadas por Lilia Schwarcz:

Paradoxo interessante, liberalismo e racismo corporificaram, nesse momento, dois


grandes modelos teóricos explicativos de sucesso local equivalente e, no entanto,
contraditório: o primeiro fundamentava-se no indivíduo e em sua responsabilidade
pessoal; o segundo retirava a atenção colocada no sujeito para centrá-la na atuação
101

do grupo entendido enquanto resultado de uma estrutura biológica singular


(SCHWARCZ, 1993, p. 19-20).

Se, por um lado, o liberalismo defendia a liberdade e o direito à cidadania para


todos os homens, assim como a igualdade jurídica baseada na responsabilidade individual, por
outro, a teoria racial pregava a inferioridade das raças não-brancas e das culturas não-
europeias. O racismo científico, como já ressaltamos, justificava os diferentes
comportamentos sociais baseado em critérios biológicos de pertença e hierarquização racial e
buscava delimitar limites para a cidadania dos grupos tidos como inferiores. Assim, se tornava
uma questão de jogo de interesses para aquela intelectualidade branca, que tomava para si a
missão libertadora, ao mesmo tempo em que definia o lugar do negro naquela sociedade
excludente. Nesse sentido, “o racismo científico foi adotado, de forma quase unânime, a partir
de 1880, enviesando os ideários liberais, ao refrear suas tendências igualitárias e
democratizantes e dar argumentos para estruturas sociais e políticas autoritárias”
(VENTURA, 1991, p. 58). É desse modo que, ao analisar a inserção dos ideais liberais no
território brasileiro, Maria Odila Dias afirmou que:

Entre nós, os ideais liberais não surgiram como um programa modernizador do


conjunto das forças sociais: foram veiculados por uma minoria ilustrada e culta, que
constituía uma porcentagem ínfima da população do país. Essa minoria de letrados,
inspirada nos ideais do despotismo ilustrado do século XVIII, reservava para si a
missão paternalista de modernizar e reformar o arcabouço político e administrativo
do país, sem comprometer a continuidade social e econômica da sociedade colonial
(DIAS, 2005, p. 128).

Destacamos aqui que as ideias liberais e esse tipo de abolicionismo, realizado por
Rodolfo Teófilo e seus pares, se ligavam aos interesses de grupos letrados e que em nada
coincidiam com os interesses e necessidades dos grupos pobres e marginalizados, os quais
foram ainda mais excluídos e silenciados. Assim, as teorias raciais ganharam forte adesão
entre essa elite letrada, como argumento científico para manter as massas populares afastadas
das instituições de poder. “A teoria racista não exprimiu, portanto, apenas, interesses coloniais
e imperialistas, já que se articulava aos interesses de grupos nacionais identificados à
modernidade ocidental” (VENTURA, 1991, p. 59). É desse modo que liberalismo e racismo –
em essência, contraditórios – foram arranjados de modo singular e original para explicar a
situação da sociedade local. Essa explicação nos ajuda a compreender o fato de Rodolfo
Teófilo ter sido adepto às teorias raciais e defender a inferioridade da raça negra, ao mesmo
tempo em que atuava como um abolicionista.
102

De um modo geral, podemos concluir que o autor de Maria Rita, ao mencionar


nessa obra sobre os horrores do sistema escravista, deixou transparecer o seu posicionamento
de abolicionista, o qual parecia se chocar com suas concepções raciais. Como abolicionista ele
defendia que a escravidão deveria ser extinta, pois desumanizava aqueles sujeitos. Porém,
adepto às teorias raciais, ele também acreditava que as raças não-brancas eram inferiores e
tentava omitir a forte presença dos negros na formação do povo cearense. A complexidade de
seu pensamento revela o seu pertencimento a uma elite cearense letrada e branca que
almejava a inserção daquela província aos ideais de civilização, mas sem alterar a ordem
social.
Entendemos que, por trás da escrita desse romance histórico, houve um
importante propósito que, entre outros, consistia em apresentar a especificidade racial do povo
cearense. Como vimos ao longo de nossas análises, Rodolfo Teófilo procurou mostrar que a
miscigenação ocorreu com muita intensidade e de variadas formas e proporções. Não sendo,
desse modo, possível estabelecer uma tonalidade de pele padrão para os sertanejos do Ceará,
resultado em uma variedade de tipos de cor. Porém, em sua perspectiva, os índios e os
brancos seriam os que mais contribuíram para a formação desse povo. Narrativa essa que
concorreu para a negação da presença negra no Ceará. Assim, os cearenses seriam
predominantemente caboclos. Mas isso não significa dizer que índios e brancos fossem
colocados em um mesmo patamar. Embora em alguns momentos fossem atribuídas
características positivas aos indígenas, esses foram colocados em uma posição
hierarquicamente inferior à raça branca, principalmente, em aspectos físicos e critérios de
beleza. Basta lembrarmos a polarização entre as imagens de Vicencia e Maria Rita.
Da mesma forma, Maria Rita, assim como Joaquim de Queiroz, representava a
comprovação de que essa natureza tropical podia gerar bons frutos e não estava fadada a
sucumbir pela miscigenação. Ela figurou a possibilidade de branqueamento e melhoramento
racial resultante da mistura entre os indígenas e a raça branca, desde que essa fosse
predominante. Porém, nessa narrativa, destaca-se também que tal miscigenação não foi capaz
de apagar os traços temperamentais dos nativos, os quais eram herdados por atavismos pelos
cearenses e se manifestavam aos estímulos dos meios físicos e sociais específicos daquele
território. Queiroz representou o puro tipo de sertanejo, o exemplar mais perfeito dessa fusão
racial entre o branco e o índio. E, por isso, carregava a força, a coragem e a honra sertaneja,
tão valorizada na escrita desse literato.
Porém, Rodolfo Teófilo não deixou de enfatizar que os sertanejos cearenses
estavam expostos às contingências do meio, como as secas, e, decorrentes delas, as migrações
103

e o banditismo. Para esse intelectual foram os estímulos do meio que fizeram despertar, no
cearense, características temperamentais e comportamentos pertencentes às raças que lhe
deram origem e que estavam em estado latente. Assim, a forma como as diferentes
personagens da literatura de Rodolfo Teófilo reagiu diante dessas situações revela a forte
presença da lei do atavismo em sua escrita. Essas e outras questões, relacionadas ao meio e à
raça, analisaremos ainda mais no próximo capítulo.
104

4 A ATUAÇÃO DE DIFERENTES RAÇAS EM MOMENTOS DE INSTABILIDADE


SOCIAL: SECA, MIGRAÇÃO E BANDITISMO

No decorrer da década de 1890, após a publicação de seu primeiro romance, A


Fome (1890), Rodolfo Teófilo intensificou sua inserção no campo intelectual mediante a
publicação de outros romances: Os Brilhantes (1895), Maria Rita (1897) e O Paroara (1899).
A publicação desses romances parece convergir para o propósito desse literato em se
consolidar efetivamente no campo das letras cearenses, dando visibilidade ao que ele mesmo
chamou de “literatura nativista” (TEÓFILO, 1924). São obras encarregadas de falar sobre o
Ceará, dos valores e modo de viver desse povo e de seus problemas, tais como as estiagens, as
migrações delas decorrentes e o banditismo rural. Desse modo, buscamos perceber como
essas temáticas foram abordadas por Rodolfo Teófilo, e como esse foi capaz de atribuir-lhes
explicações social-darwinistas e deterministas.
Ao direcionarmos nosso olhar para a forma como as personagens dessas obras
foram construídas, foi possível perceber que o frequente recurso de descrição baseada nas
concepções raciais e mesológicas ocorre intimamente vinculado a outros elementos cruciais,
tais como a classe social e o gênero dos indivíduos, a ênfase no patológico, a concepção de
civilização e os valores sertanejos, entre outros. Elementos estes que, analisados
conjuntamente, trazem maior clareza sobre a complexidade que envolve a constituição de
cada uma dessas personagens e são fundamentais para a compreensão de aspectos sociais e
culturais que se revelam através do olhar de um homem letrado do século XIX.

4.1 “INDIVÍDUOS DE TODAS AS CASTAS SE CONFUNDIAM ALI”: SECA,


DEGENERESCÊNCIA E SUPERIORIDADE DA RAÇA BRANCA

Entendendo que as teorias cientificistas foram apropriadas de uma forma bastante


singular por Rodolfo Teófilo para interpretar a realidade local de sua província, buscamos
analisar como a abordagem da seca, um elemento regional, lhe serviu de suporte para
expressar essas teorias. A sua literatura nasceu da observação desta terra, com suas
peculiaridades e seus contrastes sociais. Sem reserva alguma, podemos afirmar que a seca é a
principal temática de sua produção escrita. Dos quatro romances analisados neste trabalho,
com exceção de Maria Rita, todos eles apresentam essa temática como fundamental na
construção de seus enredos.
105

Sua primeira obra História da seca do Ceará (1877 a 1880), publicada em 1883,
trata-se de um estudo de cunho histórico sobre a seca de 1877-79 e foi escrita durante essa
estiagem e nos anos que a seguem. Foi a partir dessa obra que ele começou a construir uma
imagem de si para seus leitores: a de “cronista dos infortúnios do Ceará” (TEÓFILO, 1980).
Onze anos após o episódio dessa seca, ele publicou seu primeiro romance, A Fome, tomando
por base as informações colhidas em seu estudo histórico. Uma forma que esse literato
encontrou de reivindicar o status de veracidade para essa obra foi se proclamando como
testemunha ocular da seca. Isso porque ele vivenciou de perto os acontecimentos desse
fenômeno e esteve profundamente engajado com seus problemas.
Essa seca foi um dos acontecimentos mais marcantes na história da província
cearense no século XIX, ocorrendo depois de 32 anos de quadras invernosas e relativa riqueza
na província. Durval Albuquerque Junior (1988) destaca que foi a partir dessa estiagem que se
construiu a concepção da seca como um problema e a sua vinculação ao “Norte”.30 Ao
apresentar dados comparativos da seca de 1877-79 com outras anteriores, esse autor propôs
que tal seca não se diferenciava tanto em termos de intensidade, duração, extensão e nem
consequências negativas sociais e econômicas. Não são, portanto, as características do
fenômeno climático em si que transformaram essa estiagem em um marco histórico. “Ora, a
seca não existe enquanto puro fenômeno, mas como um fato histórico e social e por isso
possui imagens e significações que vão variar ao longo do tempo e conforme o contexto social
em que se insere” (ALBUQUERQUE JR, 1988, p. 2). Nesse sentido, ele propõe que tal
fenômeno se revelou como uma síntese de toda a desorganização das relações tradicionais
abaladas pelas mudanças em curso. Essas mudanças correspondem ao momento de crise
econômica, política e social, pelo qual estava passando a região no final do século XIX.
Em termos econômicos, a seca ocorreu quando uma crise de mercado atingia o
principal produto de exportação do Ceará, o algodão. Esse produto havia passado por uma
fase de esplendor na década de sessenta, denominada como o “boom do algodão”, fruto da
retirada do algodão norte-americano do mercado, por causa da Guerra de Secessão. No
entanto, com a recuperação desse concorrente, o algodão cearense sofreu um golpe em suas
vendas, e com ele toda a economia da Província. Isso porque a economia local havia se
incorporado ao mercado internacional, sujeitando-se, dessa forma, às suas alterações e crises
periódicas, o que não acontecia com tanta intensidade quando a economia local se

30
O Norte do país correspondia ao território que atualmente compreende o Norte e o Nordeste. O termo
Nordeste só vem surgir em 1919, para designar a parte do Norte sujeita às estiagens e que passou a fazer parte da
atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) (ALBUQUERQUE JR., 2011, p. 81).
106

caracterizava, predominantemente, pelo binômio pecuária-agricultura de subsistência. Isso


ocorreu porque com o desenvolvimento da produção monocultora de algodão, a agricultura
comercial, por ter grande lucratividade, passou a subordinar a pequena produção de
subsistência e englobar as reservas de terras antes destinadas aos períodos de seca. Dessa
forma, quando a seca se instalou, os sertanejos não tinham as mínimas condições de
segurança alimentar e a proteção dos proprietários apresentava-se como ineficiente
(ALBUQUERQUE JR, 1988, p. 25-28).
No âmbito político, o deslocamento do polo centralizador econômico do Norte
algodoeiro para o Sul cafeeiro foi acompanhada de uma progressiva perda de importância
política da classe dominante nortista, mudando também o foco de centralização de poder.
Tantas transformações também vieram contribuir para que ocorresse um rearranjo da própria
hierarquia de poder entre os grupos dominantes regionais, o que implica numa
descentralização dos grandes proprietários rurais. Presenciou-se um sensível fortalecimento
da classe comerciante e uma maior atuação das camadas populares (ALBUQUERQUE JR,
1988, p. 36-37).
Foi nesse clima de rupturas econômicas e políticas que o momento se tornou
propício para denotar em alterações nas relações sociais, pois a perda de poder político e
econômico dos proprietários rurais resultou na quebra do contrato tradicional31 com os seus
dependentes, ficando esses desassistidos diante dos possíveis momentos de calamidade. Essas
alterações desembocaram em específicas manifestações de descontentamento e resistências às
transformações nas relações sociais tradicionais, por parte dos dominados. Entre essas
manifestações podemos destacar o Quebra Quilos32, o cangaço e os movimentos messiânicos.
“O Norte é, pois, quando advém a seca de 1877-79, uma fogueira onde ardem as chamas da
mudança que irradia o calor dos conflitos” (ALBUQUERQUE JR, 1988, p. 56).
Esse momento de crise vivido no interior do sertão cearense é bastante
significativo para compreendermos o que se diferenciou entre essa seca e as suas
antecessoras. Com a desestruturação das relações pessoais estabelecidas no campo, a seca
transformou-se “em uma questão de calamidade pública, a ser enfrentada e/ou resolvida no

31
Frederico de Castro Neves destaca que esse modelo de organização tradicional era baseado na relação
paternalista de “reciprocidade desigual”, na qual o sertanejo oferecia submissão e em troca recebia proteção do
proprietário rural. Esse sistema paternalista assegurava, através de frágeis suportes, a estabilidade da vida
sertaneja (NEVES, 2000, p. 44-47).
32
O Quebra Quilos foi um movimento de revolta das camadas populares contra a cobrança de impostos sobre o
consumo e contra a substituição do sistema de pesos e medidas por outro que não conheciam e que beneficiava
ao comerciante na negociação. Esse movimento destacou-se por seu caráter coletivo. Teve importante atuação
em algumas áreas do Norte, mas, não chegou a ter força no Ceará. Porém, é importante para se compreender de
forma panorâmica o que estava acontecendo naquela região.
107

espaço público da cidade, pelo poder público” (NEVES, 2000, p. 45-46). Se antes a fome
atemorizava apenas os sertanejos pobres, sendo desconhecida pelos ricos, ao atingir a elite
rural, num momento de muitas dificuldades, a seca fez com que alguns de seus membros
fossem jogados na miséria. Para representar essa situação, em A Fome, Rodolfo Teófilo narra
a saga de Manuel de Freitas, um fazendeiro abastado que perdeu tudo com a estiagem e saiu
em retirada com a família para a capital cearense, em busca de socorro. A chegada de um
avolumado número de retirantes na capital cearense despertou grande medo e preocupação na
elite urbana, pois atrelado ao préstito de famintos desassistidos surgiram vários problemas
urbanos como a mendicância, a criminalidade, a prostituição e as doenças. Desse modo, a
seca passou a ser um problema que afetava diretamente a população urbana.
Em síntese, a consciência da crise passou a ser tomada quando alguns membros da
elite rural foram atingidos pela miséria e quando os problemas ocasionados pela seca
atingiram a população urbana. Foi a partir dessa situação, tão alarmante nos meios abastados,
que os literatos a tomaram como tema principal para construção de seus romances. Sobre a
experiência vivenciada por esses homens letrados em relação a tal fenômeno, Durval
Albuquerque destaca que “quase sempre de famílias abastadas, estes autores se sentiam um
pouco responsável pela situação que vivenciavam e buscavam aliviar suas consciências ao
deixar que todo o drama da miséria nortista eclodisse nas páginas de seus livros”
(ALBUQUERQUE JR, 1988, p. 223). Esse fenômeno que nunca havia sido vivenciado por
muitos intelectuais daquele período, marcou decisivamente a produção escrita, e, mais
especificamente, a produção literária sobre o Ceará. Ele “definiu com grande intensidade o
pensamento social do período” (ALENCAR, 2002, p. 120) e serviu de referência para que
muitos intelectuais pudessem explicar a realidade local utilizando-se dos referenciais teóricos
em vigor.
Em relação à literatura, a temática da seca foi um elemento tão presente, em quase
todos os romances, que o Naturalismo é comumente relacionado à “literatura da seca”33:

Do ponto de vista dos estudos literários, cunhou-se um termo para designar a


produção literária, de caráter regionalista, que trata do tema da seca no sertão do
nordeste – a chamada literatura da seca. Pretendia-se com isso, não apenas
classificar tematicamente essa produção, mas também estabelecê-la como um
“corpus documental”, elegendo-a a condição de testemunho da realidade, até porque,
seguindo os cânones naturalistas e os compromissos que os estudos literários

33
A referência à “literatura da seca” se faz pela sua escrita particular voltada aos problemas desses momentos
específicos da estiagem que afligem o sertão nordestino. Constitui uma significativa parcela da ficção dita
regionalista nordestina. Começou sob a égide do Romantismo, mas foram nas fases do Realismo/Naturalismo e
Modernismo que ela ganhou maior expressão e um forte teor sociopolítico (LANDIM, 1992; SCOVILLE, 2011).
108

impuseram a si, no sentido de resgatar a cultura nacional, esta produção pretendia-se


fiel a essa mesma realidade (BARBOSA, 2000, p. 189).

É dessa forma que a estiagem de 1877-79 veio marcar o início de um novo tipo de
produção literária sobre o Ceará, e, mais especificamente, sobre o universo sertanejo. Até
então, a literatura dedicava-se a “resgatar a experiência de conquista e colonização do
território cearense pelos portugueses, às lutas contra os índios que aqui habitavam”
(BARBOSA, 2000, p. 45). Essa literatura que produzia uma imagem bucólica e idílica do
sertão deu espaço às imagens trágicas e impactantes da seca.
A literatura da seca, por seus temas em si chocantes, mostrou-se em perfeita
consonância com as novas tendências literárias. De modo geral, o Naturalismo na literatura
das secas acabou mesmo enfatizando o aspecto aterrador do tema. Ao destacarmos a
abordagem específica da seca na literatura naturalista, não desconsideramos que essa temática
tenha recebido um tratamento pelo Romantismo. Entretanto, o que pode ser visto como uma
“literatura das secas” do Romantismo tivera uma configuração totalmente diferente. Até a
seca de 1877-79, essa temática era tratada pela literatura apenas de forma ilustrativa,
“interferindo pouco no desenvolvimento do enredo e na caracterização dos personagens”
(SCOVILLE, 2011, p. 109). A partir da abordagem naturalista, o próprio fenômeno da seca
passou a ter uma atuação preponderante na caracterização desses enredos e personagens. As
obras literárias de Rodolfo Teófilo sobre essa temática apresentam a seca como o fator
climático que, juntamente ao fator racial, foi determinante na constituição do modo de ser do
povo sertanejo e que o distinguiria dos demais povos.
Podemos afirmar que A Fome é a obra de Rodolfo Teófilo que ficou mais
conhecida e que o consagrou como cronista da seca, sendo uma das pioneiras na produção
naturalista sobre essa temática. Desde a sua primeira página, o narrador já apresenta aquele
momento específico em que a “grande seca” atingiu o sertão, “após trinta e um anos de
estações regulares”. E assim, narra a saga de Manuel de Freitas, um rico fazendeiro branco,
que travou uma luta ferrenha contra a estiagem, tentando salvar seu rebanho. Porém, esse
fazendeiro foi vencido e se viu obrigado a se juntar, com a família, ao préstito de retirantes
que migrava para a capital cearense, em busca de meios de sobrevivência. Essa trajetória foi
marcada por cenas sinistras de dissolução do meio que beiravam o irreal. Mas, no entanto, ele
conseguiu manter a integridade física e moral de sua família.
O segundo romance de Rodolfo Teófilo, Os Brilhantes, narra as aventuras de
Jesuíno Brilhante, um homem também branco e fazendeiro, que se tornou assassino por ser
109

portador de uma doença hereditária, a “nevrose do homicídio”. Por carregar essa patologia,
Jesuíno se mostrava um assassino frio e impiedoso com seus inimigos. Porém, a ocorrência da
seca de 1877, com toda a miséria a ela atrelada, veio suspender até mesmo os sintomas da
nevrose de Jesuíno e provocar uma trégua à sua vida de criminalidade. Nesse sentido, a seca,
em sua ação devastadora, foi capaz de ocasionar transformações até nos mais íntimos
sentimentos humanos, fazendo arrefecer o caráter sanguinário do espírito de Jesuíno e
imprimindo nele novos sentimentos como piedade, generosidade e beneficência aos famintos.
O último romance do “ciclo das secas” publicado por Rodolfo Teófilo, O
Paroara, diferentemente dos dois anteriores – que têm como protagonista um fazendeiro
branco – apresenta como personagem central um sertanejo pobre e mestiço, João das Neves,
que sofreu as perdas provocadas pela seca e pela migração. Quando ainda era criança, João
das Neves teve que passar pelo martírio da retirada, ocasionada pela seca de 1877-79.
Sobrevivendo à “Grande seca”, foi o único de sua família que conseguiu retornar à sua terra
natal. Ao chegar à maturidade, esse personagem se casou e tentou reconstruir sua vida no
lugar onde nasceu. Mas, em 1898, foi surpreendido por outra seca que devastou sua plantação.
Sem alternativas de sobrevivência, ele se viu tentado a buscar um meio de vida com a
extração de borrada nos seringais da Amazônia.
Além de interferir de forma incisiva no enredo dessas obras, a seca aparece como
um fator climático desagregador capaz de submeter os sujeitos às piores condições na luta
pela sobrevivência.

A multidão se revolucionava, seguia movida unicamente pelo instinto de


conservação. Todos avançavam, tendo em mira a farinha defendida pelos
comboeiros. (...) Travou-se uma luta tremenda, uma briga de feras esfomeadas sobre
o minguado repasto. Os viveres seriam dos mais fortes e não dos mais fracos. Os
que podiam agredir eram em muito pequeno número. Tomaram conta das sacas, que
abriram, e começou a luta. Os mais esfomeados precipitavam-se sobre a farinha com
uma gula e teimosia para as quais não havia oposição possível. [...] Enquanto os
contendores rolavam no chão enovelados num amplexo fratricida, o sítio foi
invadido pela onda que avançava sempre, e como uma gula difícil de descrever
comiam a farinha às mãos cheias. Freitas observava compungido aquela luta pela
existência. Lembrou-se ainda de pôr termo a ela, mas como, se no delírio famélico
embota-se o senso íntimo e o homem fica reduzido a bruto, a animal carnívoro, e
que se vê faminto? Havia ali uma multidão de homens em tudo semelhantes a
uma manada de porcos esfomeados, a disputar o maior quinhão da ceva
(TEÓFILO, 1979, p. 43-44. Grifo nosso).

Nesse trecho da obra A Fome fica nítida a adoção do darwinismo social para
representar e hierarquizar os sertanejos atingidos pela seca, através das concepções de luta
pela sobrevivência e sobrevivência dos mais aptos. Segundo Maria Augusta Bolsanello, o
110

darwinismo social “considera que os seres humanos são por natureza, desiguais, ou seja,
dotados de diversas aptidões inatas, algumas superiores, outras inferiores. A sociedade
humana é uma luta ‘natural’ pela vida, portanto é normal que os mais aptos vençam”
(BOLSANELLO, 1996, p. 154). Inclusive, foi Herbert Spencer, o mentor do darwinismo
social, que criou a expressão “sobrevivência dos mais aptos”, a qual muitas vezes é atribuída a
Darwin, pois este também se utilizara dela um tempo depois.
Verifica-se nesse trecho uma incisiva descaracterização dos sujeitos sociais ali
representados, os quais foram destituídos de seus atributos individuais e passaram a ser vistos
como parte de uma massa, uma “multidão que se revolucionava”. E ao serem submetidos a
condições críticas que colocava em risco a sua existência biológica – nesse caso, a de carência
alimentar – esses indivíduos passaram a agir guiados apenas pelo “instinto de conservação”.
Ressaltamos que a própria atribuição do termo “instinto” traz consigo o peso da expressão, já
que remete aquilo que é inato e impulsionado naturalmente, ou seja, ao que está acima das
regras sociais e culturais. E mais do que isso, aqueles sujeitos foram assemelhados a porcos
esfomeados. Nesse sentido, o ser humano não foi destituído apenas de sua identidade, mas
também de sua condição humana.
A figuração da luta travada entre os retirantes pelos viveres revela não apenas a
adesão de Rodolfo Teófilo ao darwinismo social, mas também uma estrutura de sentimentos
que se construía na capital fortalezense sobre as vítimas da seca a partir de 1877 e que se
perpetuou no modo de compreender as atividades coletivas desses sujeitos. Frederico Neves,
ao analisar as imagens elaboradas pela elite letrada e urbana sobre essa multidão de retirantes
famintos, destaca que, geralmente, suas ações são apresentadas como espasmos biológicos ou
impulsos involuntários de preservação da vida, mas nunca como uma ação consciente ou um
ato de revolta a toda aquela situação (NEVES, 2000, p. 15-16). Nesse sentido, reforçam a
natureza subumana desses retirantes, associados ao que é bárbaro e contrário às modernas e
civilizadas formas de manifestações coletivas.
Se o darwinismo social define que os seres humanos são, por natureza, desiguais,
a teoria das raças (ou determinismo racial), que se desenvolveu no bojo do darwinismo social,
considera que essa desigualdade se manifesta através de uma hierarquia entre as raças, onde a
“raça branca” se impõe sobre as demais. Esse é o caso do fazendeiro Manuel de Freitas, figura
singular na obra de Rodolfo Teófilo, que se diferenciava daquela multidão ao observar
“compungido aquela luta pela existência” e que “lembrou-se ainda de pôr termo” a tal
conflito. Esse personagem revela-se como aquele indivíduo que a fome não foi capaz de
111

reduzir à condição de animal. A explicação para tal diferenciação está assentada em sua
origem social e racial:

Manuel de Freitas é o seu nome. Descendente de uma das mais antigas e importantes
famílias do alto sertão, herdara do pai modesta fortuna e influência eleitoral na
localidade. Sua educação havia sido completa para o tempo e estado do interior da
província. Sabia as primeiras letras e um pouco de latim, língua esta com que os
sertanejos ricos costumavam prendar os filhos. [...] Emancipado ainda em vida de
seu pai, fez criador como todos os seus ascendentes (TEÓFILO, 1979, p. 5).

O narrador deixa claro que Manuel de Freitas não era um retirante qualquer. Mas,
um rico fazendeiro, pertencente a uma das mais antigas e importantes famílias do alto sertão.
Na sua linhagem não se constata nem um ascendente pobre. Assim como ele, todos os seus
ascendentes eram criadores. Nesse sentido, cabe inferirmos que os donos de fazenda de criar
constituíam o grupo social com maior poder aquisitivo do sertão naquele período. Conforme
Ivone Barbosa (2000, p. 90), apresentar a linhagem da personagem é um dos recursos
utilizados por alguns romancistas para afirmar a nobreza da elite no sertão cearense. Nobreza
essa que se manifestava tanto pela posse de terras como pelo pertencimento à raça branca, tida
como responsável por trazer a civilização ao sertão.
Outro recurso utilizado pelo autor foi demonstrar que aquela personagem se
diferenciava, em meio a um contingente de analfabetos, pelo grau de instrução atingida.
Afinal, “sua educação havia sido completa para o tempo e estado do interior da província”. A
intelectualidade letrada, da qual Rodolfo Teófilo fazia parte, via as letras como uma forma de
emancipação do ser humano e acreditava que através delas era possível tornar civilizável o
sertão inculto e bárbaro. Assim como em Joaquim de Queiroz, protagonista de Maria Rita, em
Manuel de Freitas, o contato com as primeiras letras e um pouco de domínio sobre o latim o
tornavam portador de um espírito elevado, o que o distinguia do restante dos sertanejos de seu
convívio.
Para dar maior visibilidade ao problema da seca e à situação caótica por ela
gerada, Rodolfo Teófilo utilizou as mais grotescas cenas de degradação humana – patologias,
suicídio, assassinatos de membros da família, canibalismo e até autofagia. Na narrativa, todas
essas cenas são observadas pelo personagem central, a quem a fome extremada não atingia:

Freitas achava-se mal com sua caravana naquele meio. Indivíduos de todas as
castas se confundiam ali. Haviam perdido o senso íntimo e deixavam-se
dominar pelas necessidades de animalidade. Poucos eram os que não estavam
reduzidos a magreza extrema. No leito da estrada encontravam-se, a cada passo, os
ossos humanos, cuja pele seca e colada os conservava articulados. Freitas
112

compreendia o perigo da situação. Precavia-se à hora das refeições, deixando a


estrada e se internando com a família pela mata. Trazia as borrachas d’água
escondidas no saco da matalotagem. Ainda assim os famintos, com o instinto de
animal esfomeado, pressentiam que levava alimento e cercavam-no pedindo de
joelhos uma migalha pelo amor de Deus. Freitas fechava o coração aos rogos [...]
(TEÓFILO, 1979, p. 23-24. Grifo nosso).

A narrativa passa pela perspectiva do protagonista, que é colocado numa posição


de distanciamento em relação aqueles indivíduos reduzidos a magreza extrema e a condição
de animais famintos. Freitas “compreendia o perigo da situação” e se sentia mal em estar
inserido naquele meio degenerado: “era grande perigo viver no meio daquela onda de
infelizes, que a perversão moral havia reduzido ao instinto de besta” (TEÓFILO, 1979, p. 28).
Nesse trecho, fica implícita a ideia de degenerescência social. A partir dessa concepção,
acreditava-se que a exposição do indivíduo a um determinado meio social degenerado poderia
atuar de forma negativa na constituição de sua personalidade. No contexto brasileiro, se esse
indivíduo fosse proveniente da raça negra ou indígena, vistas como inferiores, ele já
carregava, em sua formação genética, uma propensão maior ao crime, à doença, à perversão e
à selvageria. E por carregar elementos contraditórios, provenientes de raças diferentes, os
mestiços seriam inferiores às raças que lhes deram origem (ALENCAR, 2002, p. 117).
Acreditamos que essa concepção está fortemente imbricada ao pensamento racial
de Rodolfo Teófilo e ao modo como ele representava os sertanejos pobres e mestiços
atingidos pela seca. Esse foi o modo que ele encontrou para explicar as diferentes ações dos
famintos da seca, tratadas como atos de selvageria e animalidade. Entende-se que Freitas se
diferenciava de toda aquela turba de retirantes porque pertencia à raça branca. Enquanto os
retirantes pobres e mestiços se degeneravam diante das adversidades ocasionadas pela seca,
Freitas sempre conseguia vencer o meio hostil e prover sua família de água e alimento. Assim,
aquele momento que atuava provocando a degenerescência das raças inferiores e
miscigenadas foi o mesmo que favoreceu a formação do tipo cearense forte e arrojado.
Essa hierarquização racial foi tão marcante que interferiu na estrutura narrativa do
romance, de modo a ocorrer uma nítida diferenciação entre o núcleo dramático, representado
pela família do fazendeiro branco e as personagens secundárias. Esse núcleo dramático
manteve a estrutura do Romantismo, suas personagens foram idealizadas e conseguiram
preservar os valores sertanejos, mesmo diante das adversidades do momento, enquanto ao
restante das personagens foram reservadas as descrições naturalistas mais grotescas.
Embora esses sertanejos pertencentes a diferentes raças estivessem vivendo um
mesmo momento, a sensação transmitida ao leitor é a de que Freitas conseguiu encontrar
113

diferentes alternativas de sobrevivência que não foram postas aos outros retirantes. Exemplo
disso é que, enquanto o fazendeiro demonstrava ter domínio na manipulação da mucunã –
uma raiz venenosa, muito consumida em períodos de escassez, que se não recebesse os
devidos preparos era capaz de matar por intoxicação –, os outros retirantes pareciam
desconhecer essa informação, embora pertencessem ao mesmo meio sertanejo, marcado pelas
constantes estiagens. A fome, que se manifestava nas formas extremas de desnutrição e
padecimento dos corpos degenerados, parecia não ter atingido a Manuel de Freitas. Esse foi
caracterizado como um sujeito distinto, capaz de resistir aos infortúnios da seca e apresentar
uma força que o tornava superior às adversidades que estava passando:

A fome com o cortejo de dores não pudera apagar os traços daquela carnação. A
musculatura estava reduzida, mesmo assim ninguém duvidava que os braços daquele
homem pudessem suster um touro pelos cornos. A caixa toráxica bastante larga e
bem conformada guardava os órgãos mais importantes da vida sãos e vigorosos.
Naquelas formas não havia um traço que não denotasse virilidade (TEÓFILO, 1979,
p. 4).

A essa descrição o autor não mais acrescentou características físicas tais como a
magreza extrema ou mesmo o aspecto de fera, tão comuns aos retirantes por ele
representados. Pelo contrário, apresenta a existência de uma força hercúlea que supera as
objeções do meio. Desse modo, o que pudemos constatar é a conformação de um
determinismo geográfico (atuação da seca) à teoria racial. Nessa obra, a seca aparece como
um condicionante climático capaz de despertar no sertanejo um tipo ideal forte e resistente
àquela natureza. Mas, como já ressaltamos, esses seriam selecionados naturalmente,
sobrevivendo apenas os mais aptos, ou seja, a raça branca, constituída por essas famílias de
fazendeiros ricos que haviam se tornado retirantes. Assim, Manuel de Freitas seria aquele
sertanejo capaz de se adaptar ao meio e vencê-lo. Através de sua resistência física e de seus
valores morais, ele conseguiu resguardar sua família de todo tipo de ameaça e
degenerescência. Apesar dos infortúnios da seca, sua filha Carolina conseguia manter a beleza
da raça selecionada:

Tinha quinze anos e o vigor das naturezas completamente sadias. O seu todo
denotava a saúde dos organismos desenvolvidos ao ar do campo. Havia em seu
corpo uma perfeita harmonia de formas, todas obedecendo às leis de uma rigorosa
estética. Tinha um ar nobre que se percebia logo à primeira vista. Os olhos grandes e
de um azul-celeste tinham a suavidade das almas puras e castíssimas, e davam uma
expressão de vontade à fisionomia expandida em um rosto do mais correto oval,
emoldurado por uma saneta de cabelos louros. O nariz era aquilino. A boca formada
por lábios rosados, conservava a castidade dos primeiros anos [...] (TEÓFILO, 1879,
p. 12).
114

Tal descrição revela mais do que a saúde de um corpo que não havia sido
modificado pela fome, evidencia também que “havia em seu corpo uma perfeita harmonia de
formas, todas obedecendo às leis de uma rigorosa estética”. A apropriação das teorias raciais
pelo pensamento social brasileiro, não apenas buscava uma explicação para a mestiçagem,
mas, também, exaltava os caracteres da raça branca. Padrões de diferenciação passaram a ser
utilizados na classificação racial, cujos critérios de análise se encontravam em características
fisionômicas como a cor da pele e do cabelo, formato do rosto, tamanho dos crânios, entre
outros. Desse modo, vejamos que o pertencimento de Carolina à raça branca evidenciava-se
pelas mesmas características físicas que o autor usou para construir a imagem de Maria Rita.
Tais características consistem no formato de seu rosto, no mais correto oval, o nariz aquilino,
os olhos grandes e azuis e o cabelo loiro. Além disso, um “ar nobre que se percebia logo à
primeira vista”. Assim, em meio à seca e todo o flagelo por ela ocasionado, nessa obra
destaca-se um organismo saudável, belo e nobre, que configura a idealização da mulher
branca.
Para além das características fisionômicas, atribuíram-se valores morais a esse
organismo. Carolina “conservava a castidade dos primeiros anos” e os seus olhos “tinham a
suavidade das almas puras e castíssimas”. A sua pureza e castidade – principais valores
atribuídos às moças de “boa família” do sertão nordestino – conservam-se intactas, mesmo
tendo que se juntar, com sua família, ao préstito de retirantes. A esses outros foi destinado um
tratamento completamente diferente. Essas personagens secundárias, no último estágio da
fome, perdiam o pudor e ficavam entregues a todo tipo de perversão moral que a
degenerescência proporcionava.

Freitas, por mais atenção que prestasse ao vulto, não lhe divulgava as formas e
muito menos as feições; não sabia que espécie de animal era. Parecia-lhe onça,
raposa ou cão de monturo. O fato é que o bicho ou farejava ou espreitava. O
fazendeiro apercebendo melhor o animal, se lembrou dos famintos. Um homem a
andar de gatinhas no último período da fome, a farejar migalhas, seria possível. (...)
Manuel de Freitas, temendo o pudor da filha, cuja virgindade moral se macularia
percebendo as formas de um homem todo nu, levantou-se e pôs-se à frente do
faminto. Aquela nudez obscena que o delírio famélico expunha sem rebuço, sem
consciência, mas também sem sensualidade; à vista de um esqueleto, mas de um
esqueleto com sexo o aterrava, porque iria violentar a castidade dos sentidos de
Carolina (TEÓFILO, 1979, p. 33-34).

O que Rodolfo Teófilo propôs, com todo o moralismo presente em seu primeiro
romance, é que a integridade física e moral de Carolina só foi preservada graças à proteção
115

paterna. Com uma enorme força física e moral, Manuel de Freitas conseguiu proteger a honra
e a pureza da filha de todas as ameaças apresentadas. Essas ameaças surgiram tanto na
trajetória de retirada, no perigoso contato com sujeitos degenerados, como é o caso citado
acima, como também durante a estadia da família na capital da província, através das
investidas de Simeão Arruda, um comissário de socorros públicos que se aproveitava de sua
condição para seduzir as jovens retirantes necessitadas de assistência.
Admirado com a beleza de Carolina, Simeão Arruda decidiu que iria seduzi-la
“custasse o que custasse”. Para isso contava com duas armas, primeiro o dinheiro e os favores
que iria prestar à família da vítima, para ganhar-lhes a gratidão e a simpatia. “Se esses meios
falhassem, lançaria mão de uma arma poderosa e terrível – a miséria. Haveria de rendê-los
pelo dinheiro ou pela fome” (TEÓFILO, 1979, p. 102). Os planos do comissário em render
Carolina por meio de agrados se veem frustrados desde a sua primeira tentativa. Ao presenteá-
la com um romance, Carolina se recusou prontamente em recebê-lo: “– Permita que peça o
favor de dá-lo a meu pai; nada leio sem que ele autorize” (TEÓFILO, 1979, p. 107). Essa fala
demonstra o peso que a autoridade paterna exercia, ou deveria exercer, na perspectiva
moralista, sobre as ações de uma jovem pertencente a uma exemplar família sertaneja, que
guardava os valores morais do sertão e da classe proprietária de terras.
Quanto à leitura do livro, a mesma não foi permitida pelo sertanejo por se tratar de
um “romance de época”, uma obra descrita como “realista, por certo, uma fotografia de
costumes e atos reprovados”. Uma leitura nada indicada para uma jovem que “conservava a
castidade dos primeiros anos” sendo, portanto, mais indicada para “espíritos cultos e
amadurecidos” (TEÓFILO, 1979, p. 113). Aqui se revela uma concepção excludente e
misógina sobre quem teria autorização moral à literatura do período. Essa cena também é
reveladora no sentido de mostrar a importância que o domínio das letras exercia na vida de
um homem distinto como Manuel de Freitas. O que a narrativa nos mostra é que esse domínio
o livrava de situações vexatórias e de ser manipulado ou ter a honra da sua família corrompida
pelos aproveitadores das misérias alheias.
Segundo José Olivenor, “a família camponesa, ao chegar à cidade, passa a viver
em um grande impasse, pois, deixando para trás os valores do campo, não consegue criar
espaços significativos em que pudesse praticá-los” (OLIVENOR, 2002, p. 56). Frederico
Neves (2002, p. 91-93) também pontua que a presença massiva desses retirantes pelas ruas de
Fortaleza, a reclamar por assistência pública, interferiu profundamente na estrutura de
sentimentos que delinearam a percepção da elite urbana sobre tal fenômeno. A desordem
provocada pela presença indesejada dessa multidão na capital passou a ser associada à
116

degeneração física e moral, que se revelava através da prostituição, da criminalidade, da


mendicância e da corrupção dos costumes, de um modo geral. Apropriando-se dessa visão
moralista, Rodolfo Teófilo construiu uma narrativa de desagregação social do meio, em que a
preservação da família de Manuel de Freitas ocorreu graças à manutenção dos princípios
morais sertanejos, empreendida por esse sujeito íntegro e incorruptível.
Diferentemente de Maria Rita, que herdara a insubmissão e a sensualidade dos
nativos, Carolina, por sua vez, é uma típica representante da raça superior. Esta personagem
corresponde ao ideal feminino de pureza e submissão, sem transgredir, em nenhum momento,
à ordem estabelecida. Trata-se de uma personagem construída aos moldes do Romantismo,
dotada de virtudes que a aproxima ao divino. Enquanto Maria Rita não conseguia resistir aos
desejos carnais que a paixão provocara em seu temperamento inconstante, Carolina manteve
um amor idealizado por Edmundo:

A visita do moço impressionou-a e, por um desses caprichos tão comum ao coração


humano, antes de retirar-se ele, Carolina já o amava. Não sabia o que se passava.
Acordara em um mundo novo, os sonhos eram diferentes, seguia outra miragem.
Era-lhe impossível brincar como outrora.
Depois que Edmundo saiu, afastou-se dos pais, para chorar à vontade. As lágrimas
caíam-lhe nas faces e não sabia por que chorava! O amor que nascia recebia o
batismo do pranto (TEÓFILO, 1979, p. 114).

Pesando a mão no sentimentalismo, Rodolfo Teófilo construiu a protagonista do


romance A Fome como aquela capaz de manifestar apenas um amor idealizado, distante das
manifestações de sexualidade, tão comuns ao Naturalismo. Mesmo apresentando fortes
descrições naturalistas referentes aos horrores da seca, esse romance segue um enredo típico
do Romantismo e carregado de moralismo. Resulta em um final feliz, marcado pelo fim da
seca e com a união dos seus protagonistas. União essa selada pela bênção de Manuel de
Freitas e pelos votos matrimoniais na igreja. Conforme Rodrigo Marques, “o enredo de A
Fome permanece, na verdade, do começo ao fim, romântico, convivendo, lado a lado, com um
vocabulário mais afeito ao Naturalismo” (MARQUES, 2015, p. 99).
Destaca-se que o casamento de uma pessoa distinta como Carolina não poderia
ocorrer com alguém de uma posição social e racial inferior. O seu noivo era Edmundo, um
jovem também diferenciado e que, embora não possuísse muitos bens, possuía uma cultura
letrada. Ele havia conseguido concluir os preparatórios para o ensino superior no seminário de
Fortaleza e desejava ingressar no curso de Direito da Faculdade de Direito de Recife, uma das
principais instituições brasileiras de ensino superior do período. Ao noivo de Carolina
também foram atribuídas apenas qualidades positivas, pois possuía bons costumes, era
117

inteligente e tinha uma boa fisionomia. Assim, para Carolina, uma sertaneja branca e filha de
fazendeiro, o autor reservou o melhor destino que uma retirante poderia obter naquelas
condições, a preservação de sua castidade e um casamento abençoado pelo pai. Através dessa
personagem, pudemos constatar o ideal de beleza feminina que se expressa na literatura de
Rodolfo Teófilo. Esse ideal carrega a marca racial e a essa marca foram agregados vários
valores morais.
Observamos que essa raça branca do sertão nordestino no final do século XIX,
idealizada por Rodolfo Teófilo, ganhou um tratamento diferenciado dos colonizadores
portugueses apresentados em Maria Rita que, por sua vez, foram tratados como pessoas
desonestas, egoístas e interesseiras. Nesse ponto, podemos questionar quem seriam esses
sertanejos brancos se não, em grande parte, os descendentes dos colonizadores portugueses?
Ou mesmo, qual seria o fator, na perspectiva de Teófilo, responsável por provocar uma
modificação no caráter desses sujeitos? Diante da grande valorização que esse autor também
atribuía ao meio social, podemos deduzir, a respeito da sua perspectiva, que o convívio social
no sertão nordestino, longe da degeneração propiciada pela cidade, poderia ter sido um fator
importante para a formação de uma elite branca sertaneja, ancorada nos valores morais e na
ética sertaneja (a qual será discutida posteriormente).
Embora esse intelectual acreditasse que os caboclos constituíam a maior parte da
população cearense, em seu primeiro romance, esses mestiços não receberam um tratamento
tão pormenorizado quanto à raça branca. Assim, o restante das personagens, pobres e
mestiças, aparece apenas como uma massa amorfa, sem expressão individual e reduzida à
condição de animal. Diferentemente do que é apresentado em A Fome, a obra O Paroara
narra a trajetória de um mestiço pobre, o caboclo João das Neves. Em termos estilísticos, essa
obra é considerada pela crítica o mais bem elaborado romance de Rodolfo Teófilo. 34 Mesmo
abordando uma temática espinhosa, a sua escrita não fez apelo a cenas grotescas e de
animalização dos famintos das secas, diferentemente do que ocorreu em A Fome e Os
Brilhantes.
Na obra O Paroara, ao tratar do drama das secas e das migrações, seu autor
destacou o modo de ser do povo cearense e o modo como esse povo lidava com esses
fenômenos. Dessa forma, em sua perspectiva, sendo a maior parte do povo cearense formada
por caboclos (resultado da mistura do branco com o indígena), para sobreviver à escassez de

34
Charles Pinheiro entende que o aprimoramento estético dessa obra consiste no abandono dos termos e
descrições excessivamente cientificistas, para a escrita de uma narrativa com uma linguagem mais simples e
objetiva, tendendo mais para o que esse pesquisador chama de regionalismo (PINHEIRO, 2011).
118

alimentos provocada pela estiagem, muitos deles desenvolveram características atávicas


herdadas dos indígenas, como a sagacidade para a caça e para a pesca. Esse é o caso de
Chiquinha e João das Neves que, para alimentar os quatro filhos durante a seca, se fizeram
exímios pescadores e caçadores:

Chiquinha, embora em seu estado adiantado de gravidez, ia todas as manhãs, de


landuá às costas, pescar nas ipueiras. E que sagacidade atávica tinha ela. [...]
João das Neves explorava a caça com excelentes resultados. Furava a mata em
todos os rumos, como um selvagem. As suas armadilhas, feitas com muito
engenho e astúcia, pagavam-lhe o trabalho. Raro era o dia em que não amanheciam
preás e tatus nos fojos. Os quebra-cabeças, mondés e arapucas lhe davam
quotidianamente juritis e nambus. Este novo gênero de vida desenvolveu no
mestiço qualidades que até então não se tinham revelado. A sagacidade de seus
avôs índios, aquele faro selvagem igual ao do cão, ressuscitaram nele e fizeram-
no em pouco tempo o mais astuto caçador daquelas paragens. Vivia contente
não só porque trazia farta a família, como pelo constante entretimento de seu
espírito. Não tinha tempo para relembrar o desastre passado e nem tampouco se
lembrava de eventualidades do futuro. Absorvido de todo, ou antes, dominado
pela paixão da caça, só cuidava no presente tão farto de emoções, que tanto lhe
deleitavam a alma e tão de acordo com os seus nervos de índio (TEÓFILO, 1974,
p. 102. Grifo nosso).

Na perspectiva do narrador, a escassez de alimentos provenientes da agricultura


fazia com que os famintos recorressem aos recursos alimentares tidos como primitivos: a caça
e a pesca. Nesse sentido, as adversidades, impostas por aquele momento de estiagem, haviam
despertado no sertanejo a sagacidade herdada, por atavismo, dos ancestrais indígenas. Ainda
nesse trecho, chamamos atenção para o fato de que, ao mesmo tempo em que aquele mestiço
apresentou uma característica positiva herdada da raça indígena, ele também demonstrou ter
herdado a imprevidência dos nativos, característica essa que o impedia de pensar nas
possíveis eventualidades futuras. A visão negativa sobre essa imprevidência, frequentemente
criticada ao longo do romance, remete a um pensamento eurocêntrico, existente desde o início
da colonização. E consistia em um olhar de reprovação ao modo de vida dos primeiros
habitantes do Brasil, o qual divergia da lógica mercantilista baseada no acúmulo.
Essa imprevidência cearense, que o autor tanto criticou, é a mesma que, segundo
ele, fazia com que os retirantes esquecessem os sofrimentos ocasionados por cada estiagem,
sem nunca aprender com as lições passadas e nem se preparar para as futuras secas. Exemplo
disso foram as mortes provocadas por intoxicação devido ao consumo inadequado da mucunã,
uma “planta tradicional e figura obrigada de todas as secas” (TEÓFILO, 1979, p. 38).
Segundo Rodolfo Teófilo, mesmo a mucunã sendo um recurso alimentar tão recorrente
durante os períodos de estiagem, grande parte dos retirantes desconhecia o processo que a
tornava própria para o consumo. Na obra Os Brilhantes, assim como em A Fome, o narrador
119

enfatizou que a mucunã era um recurso alimentar altamente venenoso e abundante, para o
qual os retirantes famintos recorriam sem a menor prudência:

O bando de esfomeados derramou-se pela mata e, sem as precauções ditadas pela


prudência, iam comendo tudo o que encontravam. Muitos ingeriam o alimento e o
veneno, adoeciam e morriam finalmente. A mucunã vegetava ali de uma maneira
assombrosa. O subsolo parecia formado somente pelas raízes daquela leguminosa. A
facilidade de extração e sua abundância faziam com que os retirantes a preferissem a
toda e qualquer comida brava, e dela começaram exclusivamente a se alimentar
(TEÓFILO, 1972, p. 249).

Ao chamar atenção para a abundância daquela raiz venenosa, e ao dar ênfase ao


perigo que ela representava, Rodolfo Teófilo, na sua posição de homem letrado e instruído,
estava interessado em alertar o povo, por ele considerado ignorante e imprevidente, sobre os
perigos da seca. Notamos nesses romances que, enquanto os retirantes pobres e mestiços se
deixavam envenenar pela mucunã, os protagonistas – Manuel de Freitas e Jesuíno,
fazendeiros brancos e instruídos – possuíam conhecimento sobre os perigos que aquela raiz
representava. Em A Fome, Teófilo se deteve a fazer longas descrições sobre o processo de
extração da fécula dessa raiz. Esse processo era realizado através da habilidade e previdência
do protagonista Manuel de Freitas:

Freitas via a mucunã por um prisma diferente. Tinha certeza de ser muito venenosa
e, como tal, a maior assassina que o Ceará tem tido, durantes as secas; mas também
sabia que a ação tóxica podia ser modificada ou mesmo destruída, segundo o
processo empregado na extração da fécula. Preparada por mãos ignorantes, é sempre
um veneno e nunca um alimento. Convencido disso, dispõe-se a prepará-la com o
máximo de escrúpulos (TEÓFILO, 1979, p. 39).

Mais uma vez, Freitas representa a sobrevivência dos mais aptos e a vitória da
civilização trazida pela raça branca sobre a barbárie. Enquanto os outros sertanejos morriam
intoxicados por ignorarem o processo de extração da fécula, Freitas transformava aquela
planta venenosa em uma fonte de alimento. Destacamos também o interesse por parte do autor
em instruir sobre as devidas providências que deveriam ser tomadas em períodos de estiagem.
Nesse sentido, A Fome se apresentou como uma espécie de manual de sobrevivência para que
os sertanejos pudessem se precaver diante de um mal que afligia o sertão cearense, a fome
ocasionada pela seca. Isso revela a visão que Rodolfo Teófilo tinha sobre sua escrita,
enxergando-a em sua função prática.
De um modo geral, ao tratar sobre a seca, Rodolfo Teófilo estava mais
preocupado em mostrar como esse fator climático era capaz de interferir no modo como os
120

diferentes tipos raciais manifestavam seus temperamentos e aptidões de sobrevivência. Na


obra A Fome, o fazendeiro branco e educado compôs o tipo ideal de sertanejo forte e
resistente às intempéries daquele momento. A raça branca apareceu como um pequeno reduto
de civilização diante da barbárie, conseguindo manter sua integridade física e moral em um
meio social degenerado.

4.2 O NOMADISMO DA RAÇA VERMELHA: AS LEIS DO ATAVISMO EXPLICANDO


O PROCESSO DE MIGRAÇÃO DO POVO CEARENSE

João das Neves crescera ouvindo relatar as migrações de seus antepassados. Criança
ainda, acompanhara o pai à Fortaleza na seca de 1877. O avô e o bisavô sabia que
também tinham feito parte do êxodo de famintos nos tempos de fome, que vêm de
anos em anos deslocar a população sertaneja. Contavam até que um de seus
ascendentes, em uma destas migrações, embarcara para a Amazônia e que vivia lá
muito rico e feliz, dono de grandes seringais (TEÓFILO, 1974, p. 100-101).

Essa narrativa ficcional, elaborada por Rodolfo Teófilo, conta a história do


cearense João das Neves e seus antepassados. Uma história marcada por constantes secas e
migrações. Assim também foi a história de centenas de sertanejos pobres que viam na
migração para a Amazônia uma alternativa para tentar melhorar de vida. A seca de 1877-79 é
um marco importante na história da migração de cearenses em direção à Amazônia, pois, a
ocorrência desse fenômeno, em um momento de desestruturação do modelo paternalista da
economia agropastoril, favoreceu a saída de muitos sertanejos pobres do campo. Além disso,
a valorização da borracha, ao longo do século XIX, colocou a Amazônia como um local de
atração para os migrantes. Assim, podemos afirmar que, no final do século XIX, existiu uma
estreita relação entre as secas e as migrações para a Amazônia, embora essas não sejam
ocasionadas exclusivamente por aquelas.
A história de João das Neves, narrada no romance O Paroara, trata-se de uma
denúncia sobre as condições de pobreza vivenciadas por muitos sertanejos, os quais nos
períodos de regularidade climática já conviviam com diversos tipos de privações. Esse
romance também apresenta questões emblemáticas sobre a cultura sertaneja ou, pelo menos,
sobre a forma como Rodolfo Teófilo a concebia.
Já no início do romance, o narrador afirmou que mesmo após vinte anos desde que
ocorrera a seca de 1877, João das Neves ainda guardava com amargura a lembrança da
migração que fizera com sua família do sertão para a capital cearense e o embarque forçado
de seus pais e irmãos para a Amazônia, ficando para trás, sozinho e ainda muito pequeno. Nas
121

primeiras chuvas, depois dessa estiagem, juntou-se aos que retornavam à sua terra e passou a
trabalhar para um fazendeiro abastado. Já era homem feito quando resolveu tomar conta da
pequena propriedade de sua família e da casa que havia sido de seus avós. Mas, para isso, era
preciso primeiro arranjar um casamento, ter uma companheira saudável e bem disposta que
pudesse ajudá-lo na lida com o roçado. “A moça não sendo torta nem aleijada, tendo corpo
para o trabalho35 e de dote um ou dois bichinhos, era bom partido”, João das Neves entendia
que “a mulher do pobre devia ser como o quartau dele, forte e manteúda” (TEÓFILO, 1974,
p. 45-46). Assim, usando como critério a robustez física, ao invés da beleza, João das Neves
escolheu Chiquinha para ser sua companheira.
“Os noivos fortes e sadios em plena juventude, obedeciam ao seu temperamento
excitado pelo clima e sozinhos naquele casarão como o primeiro par no Éden gozaram à farta
todas as delicias do amor” (TEÓFILO, 1974, p. 66). Vejamos que essa citação revela uma
visão idílica sobre a vida no campo, mas também impregnada pelo determinismo climático. E
baseado nesse mesmo determinismo, o narrador afirmou que as mulheres cearenses eram mais
prolíferas36. Desse modo, Chiquinha, “prolífera como toda mulher cearense tinha um filho
todos os anos” (TEÓFILO, 1974, p. 67). Porém, a vida dessa família pobre não se encerrava a
uma visão bucólica sobre o sertão:

A família crescia anualmente e ela e o marido, cada qual mais trabalhador, não
conseguiam fazer economia, acumular reservas para o futuro.
A pequena lavoura lhes dava para viver sem grande abastança. Tinham quatro filhos
e duzentos passos de roçado, embora as plantas vingassem bem quase não chegava
para comer de um ano para outro. A fartura era só enquanto havia legume verde,
logo que se fazia a colheita ficavam à ração (TEÓFILO, 1974, p. 68).

Como podemos ver, para o sertanejo pobre que vivia da agricultura, mesmo em
períodos de regularidade climática e trabalhando em sua própria terra, a colheita não era
suficiente para viver bem o ano todo, e menos ainda que chegasse a fazer reservas para os
períodos de estiagem. Esse trecho se esbarra com a concepção, apresentada também nessa
obra, de que o cearense não se preparava para as secas porque era imprevidente. Pelo
contrário, “João das Neves não media sacrifícios para obter um fundo de reserva que o

35
Podemos compreender, a partir desse trecho, tanto sobre a necessidade que havia entre os sertanejos pobres, do
trabalho familiar para prover o alimento, através da agricultura de subsistência, como também a concepção
higienista que perpassa o pensamento do autor sobre o ideal de corpo saudável e propício ao trabalho. Desse
modo, coloca-se que o principal critério para escolha de uma noiva, por um sertanejo pobre, não seria a beleza,
mas as suas qualidades físicas, propícias ao trabalho e à reprodução.
36
Nesse ponto, atentamos para o fato de que, enquanto alguns teóricos europeus, como Paul Broca, defendiam
que a mistura entre diferentes raças produziria sujeitos estéreis, para Rodolfo Teófilo as mulheres cearenses, em
sua maioria cabocla, eram bastante férteis.
122

garantisse de um ano crítico”. A solução encontrada era abrir “uma lavra de quinhentos
passos”. “Se pegassem um ano bom estariam felizes” (TEÓFILO, 1974, p. 68). A partir dessa
frase tomamos consciência da vulnerabilidade em que vivia o pequeno agricultor do sertão
nordestino. Após o preparo do solo e o plantio, a vida de João das Neves é tomada por
momentos de angústias e expectativas em relação à plantação, a qual é dizimada, primeiro
pela peste de lagartas e, após o replantio, pela falta de chuvas. Quando a seca de 1898 foi
decretada, sem recursos materiais e sem crédito na praça, a alternativa de sobrevivência
apresentada aquele sertanejo foi a migração para a Amazônia.
Momento definitivo no romance foi quando o protagonista se dirigiu a um pagode
propiciado por um conterrâneo, José Simão, que havia se tornado paroara.37 Destacamos que,
ao descrever aquele samba, o autor deixou transparecer o seu olhar de superioridade, de
homem letrado e citadino, sobre aquele grupo de matutos: “Um cheiro picante de suor de
gente mal asseada, e mestiça, misturado à catinga de gordura rançosa e levemente
aromatizada de patchouly fundia-se num fartum nauseante, que enjoaria a qualquer criatura
mediamente educada” (TEÓFILO, 1974, p. 105).
Quanto ao retorno daquele paroara ao Ceará, o narrador afirmou que o único
negócio que o havia trazido ao torrão natal era agenciar seringueiros. Ao destacar a atuação
desse agenciador no convencimento de João das Neves, essa narrativa colocou em evidência a
construção de uma imagem sobre Amazônia que se espalhou pelo Ceará e que, sem dúvida,
influenciou na decisão de muitos cearenses. Tal imagem foi construída a partir da associação
da Amazônia ao Eldorado, um lugar abençoado por riquezas naturais, onde não era preciso
trabalhar para conseguir alimento. Difundiu-se também a ideia de fácil enriquecimento com o
negócio da borracha. Para Rodolfo Teófilo, essa era uma propaganda ilusória usada para
aliciar aqueles que fossem mais ingênuos ou ambiciosos. Utilizando-se da perspectiva do
narrador, o romance apresentou uma realidade vivenciada pelos paroaras na Amazônia que
era bem diferente daquela relatada por José Simão:

As horríveis tragédias representadas diariamente à sombra daquela floresta secular,


as lutas de morte entre o cearense e o indígena, as doenças de toda casta, tendo por
causa o paludismo, as ofensa à liberdade em uma região afastada dos centros
civilizados, onde a lei é a vontade do forte, as pragas de toda natureza a flagelar o
seringueiro dia e noite, José Simão que tudo isso havia sofrido, calava, na esperança
de obter pessoal que o acompanhasse (TEÓFILO, 1974, p. 108).

37
O termo paroara, que deu título à obra, refere-se ao cearense que deixava sua terra natal para trabalhar como
seringueiro na Amazônia e retornava posteriormente.
123

Na realidade, essa obra serviu de libelo para Rodolfo Teófilo denunciar os


horrores da migração. Ele apresentou as condições desumanas em que aqueles indivíduos
eram embarcados e as dificuldades enfrentadas no local de destino. Esse posicionamento foi
compartilhado também por outros membros da elite letrada fortalezense, como Antônio Sales
e Joaquim Pimenta, e entre alguns jornais de oposição ao governo, como O Cearense e O
Retirante. Ressaltamos que essa crítica também partia da preocupação, por parte dessa elite
letrada, com a evasão da mão de obra necessária à lavoura em períodos de regularidade
climática. Essas questões que envolvem a migração e as secas são bastante complexas e a
escrita de Rodolfo Teófilo está carregada de intencionalidades que nos possibilitam perceber
questões debatidas no período.
A seca de 1877 – que no romance provocou a primeira migração de João das
Neves com sua família à Fortaleza – foi responsável por produzir uma onda de mais de 100
mil retirantes nessa cidade, números que quadruplicaram a sua população de 25 mil
habitantes, provocando um caos urbano, como mostra Frederico de Castro Neves em A
multidão e a história (2000). O historiador, ao pesquisar sobre as iniciativas do governo, em
relação àquela multidão que demandava assistência, mostra que, para aliviar as tensões, os
governantes acabavam por conceder passagens para outras províncias, principalmente as que
estavam ao norte do país, tais como Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas. Com isso, o Estado
pretendia livrar-se de um problema que parecia não ter solução em curto prazo.
Lembramos que, nas últimas décadas do século XIX, Fortaleza buscava se alinhar
ao modelo civilizatório e ao caráter modernizante dos grandes centros econômicos
capitalistas, a começar pela remodelação da cidade. Assim, “a desordem provocada pela
pressão que a chegada desta massa ‘adventícia’ exerce sobre os equipamentos urbanos gera a
percepção de uma desagregação da sociabilidade, ameaçada por hábitos, procedimentos e
necessidade incompatíveis com os ditames da modernidade” (NEVES, 2002, p. 87-88). Parte
da população urbana se via incomodada, e até ameaçada, com a imagem de esquálidas
criaturas pedindo esmolas e ocupando as ruas da capital. Nesse sentido, a migração também
servia como “uma estratégia governamental para desafogar os equipamentos urbanos da
enorme pressão exercida pelos milhares de retirantes sem tetos, sem alimento, sem saúde”
(NEVES, 2000, p. 32).
Com a seca de 1898 – sobre a qual foi narrada a maior parte do drama vivido em
O Paroara - ficou mais notória a possibilidade de migrar para a Amazônia. Em um de seus
livros de cunho histórico, o próprio Rodolfo Teófilo, que era contrário à migração, afirmou
que sem essa onda migratória “teria morrido muita gente” (TEÓFILO, 1980, p. 38). O
124

governo cearense, sem tomar medidas mais eficazes para o problema, ficava em um impasse.
Ao mesmo tempo em que percebia a necessidade de desafogar os equipamentos urbanos das
aglomerações de famintos que se avolumavam, também sofria pressão por parte dos
produtores locais para evitar que aquela mão de obra saísse da província (LACERDA, 2006,
p. 138). Ao expressar posicionamento contrário à migração, Rodolfo Teófilo teceu ferrenhas
críticas ao governo, por esse não conseguir criar medidas que fossem capazes de sanar os
problemas da seca e evitar a perda de um enorme contingente de mão de obra para outras
províncias. Para ele, parte da solução consistia na construção de reservatórios de água,
utilizando-se dessa mão de obra disponível. Através de seu romance, esse literato buscou
alertar as pessoas sobre o caráter enganoso da propaganda do “eldorado amazônico” e sobre
os perigos e sofrimentos que iriam enfrentar.
Através do personagem José Simão, o narrador deu visibilidade à decisiva atuação
que tiveram os agenciadores no processo de migração para a Amazônia, tanto na construção
do imaginário sobre o “eldorado amazônico”, como no financiamento das passagens.
Franciane Lacerda mostra que os migrantes poderiam adquirir as passagens por meios
próprios, mas as mesmas também poderiam ser financiadas pela União, pelo governo do
Ceará, ou pelos donos dos lugares para onde os migrantes pretendiam seguir, como é o caso
dos donos dos seringais que enviavam os agenciadores para fazer esse translado (LACERDA,
2006, p. 159). Na narrativa de Rodolfo Teófilo, isso sugere que o financiamento por
particulares submetia o migrante a uma situação de maior exploração, pois já chegavam
endividados em seus destinos. A denúncia à situação vivida pelos migrantes foi feita desde o
momento do embarque na capital cearense. O momento de partida, que já era muito difícil
devido à sua natureza, tornava-se ainda mais agravante pela forma como era feita. Em
embarcações superlotadas, os sertanejos pobres eram amontoados na proa do navio, onde não
tinham espaço nem para se deitar. Além desses inconvenientes, sofriam de fome e enjoo.
De acordo com Lacerda, ao chegar a Belém, os migrantes poderiam ser
encaminhados aos seringais e às colônias agrícolas ou permanecer na capital paraense e servir
como força de trabalho em obras e funções públicas. Mas, a imagem do sertanejo cearense
recluso nos seringais é a que se cristalizou como explicação clássica sobre sua presença na
região (LACERDA, 2006, p. 198). E é essa a única apresentada em O Paroara. Embora
tenham sido muitos os migrantes cearenses que foram viver na condição de colonos, essa
informação foi ocultada no romance. E a ideia que ele passa é que aquela região não era
cultivada: “pela variedade e quantidade dos gêneros importados via-se que aquela grande e
ubérrima região não era cultivada” (TEÓFILO, 1974, p. 144). Com esse relato, o narrador
125

contrariou a propaganda feita por José Simão aos cearenses, de que naquelas terras se
produzia o ano todo. Também negou a informação de que dava para viver bem sem trabalhar,
só com os recursos da terra. Ao conhecer a fauna e flora da Amazônia, João das Neves
percebeu que tudo ali era diferente. “O que era da terra, era selvagem como ela” (TEÓFILO,
1974, p. 175).
Segundo o relato da obra, ao invés de uma vida próspera como fora prometida por
José Simão, os paroaras se depararam com uma enorme dívida contraída desde que saíram do
Ceará, a qual não conseguiriam liquidar, pois tudo era vendido a preços exorbitantes. Do
barracão (centro administrativo do seringal), eles foram encaminhados para o interior da
floresta, onde viveriam isolados, correndo vários riscos, como ser atacados por tribos
selvagens ou contrair várias doenças, como o paludismo. Tudo o que recebiam eram os
instrumentos de trabalho, espingardas para se defenderem e os viveres, compostos apenas por
charque, feijão, café, farinha, açúcar e sal. Para mostrar como era a vida nos seringais, o
narrador apresenta de forma dramática a história de Joaquim dos Cocos, um cearense que já
vivia há dezoito anos naquela situação:

Contou-lhes os perigos e as misérias de toda a casta a que estavam sujeitos ali.


Avaliassem por ele que trabalhava havia mais de dezoito anos e nunca tinha feito
nada. Chegara no rio Juruá com a esposa, três filhos pequenos e seis companheiros
de trabalho. Em menos de seis meses perdeu os filhos e os companheiros de febres, e
a mulher um boliviano raptou-a à força d’arma e vivia metido com ela nas suas
barbas.
Por esse começo de vida tirassem o que tinha padecido. Já não eram as maleitas que
lhe davam um dia e outro não, o que mais o martirizava era ser obrigado a ser
testemunha das poucas vergonhas da mulher sem poder vingar ou fugir para evitar a
presença daquele escândalo. Duas vezes tentou evadir-se, mas embalde. Os mestres
da lancha de parceria com o dono do barracão lhe negaram passagem. Isso não foi
nada; avisaram ao patrão e ele foi surrado e metido no tronco oito dias. Três anos
durou esse cativeiro horrível com toda a sorte de tormentos e vexações. Pôde então
no fim desse tempo saldar a conta, na qual os juros representavam quatro vezes mais
do que o capital (TEÓFILO, 1974, p. 155).

De acordo com essa denúncia, o endividamento dos paroaras que migravam


financiados por donos de seringais tornava-se uma condição de escravidão, da qual só
poderiam se libertar depois que liquidassem a dívida, quadruplicada pela cobrança de juros.
Além dos juros exorbitantes, os trabalhadores eram enganados também na medição e na
divisão da borracha. Enfim, eles foram colocados numa condição de passividade diante das
diversas formas de sujeição: “quase todos analfabetos, não reclamavam, e ai dos que
erguessem a voz para protestar contra aqueles estelionatos” (TEÓFILO, 1974, p. 202).
126

Sobre as punições para aqueles que contestassem, o narrador avisa que a


propriedade de Bernardo das Ipueiras – a maior propriedade de seringais da região, para a
qual João das Neves e seus companheiros foram agenciados – não passava de um “governo
ditatorial, constituindo os seus domínios um Estado autônomo dentro do Estado, cujas leis
eram simples e unicamente a sua vontade” (TEÓFILO, 1974, p. 144). Para conhecer o seu
poder discricionário bastava conhecer o calabouço, repleto de instrumentos de torturas, com
troncos, gargalheiras, algemas, vergastas e palmatórias. Ao enfatizar a ausência do Estado de
direito naquelas “longínquas e esquisitas paragens”, o narrador propôs que aquela região se
encontrava ainda em um estágio primitivo de civilização.
Quanto ao dono dos seringais, a narrativa o apresentou como um cearense que ao
invés de se solidarizar com o sofrimento dos conterrâneos que iam trabalhar em sua
propriedade, a eles reservava o pior tratamento:

Se ele fosse um homem de bem, os seus súditos viveriam felizes, mas era mau por
índole. Os sofrimentos em mais de trinta anos naquelas regiões pestilentas,
empenhado sempre numa luta de morte com o índio traiçoeiro e com a não menos
traiçoeira endemia palustre, acabaram de empederni-lo de todo. Sem cultura de
ordem alguma, completamente analfabeto e bastante rico para o lugar, entregava-
se cegamente a sua vaidade de mandão. A vida em família, a ligação com uma
mulher boa teria modificado muito os seus instintos perversos e refreado as
suas más paixões.
Muito custoso seria encontrar naquela população verminada de vícios uma
companheira que fosse indigna de seus dotes morais (TEÓFILO, 1974, p. 145. Grifo
nosso).

Bernardo das Ipueiras foi apresentado como um homem “mau por índole”, assim,
a perversidade já era algo intrínseco ao seu temperamento, mas o convívio em um ambiente
degenerado o teria tornado ainda pior. O narrador enfatiza que ele era um homem sem cultura
alguma. Aqui, cultura foi tratada como sinônimo de instrução, e a ausência da mesma foi vista
como um fator capaz de tornar o indivíduo ainda mais degenerado. Pois, para o autor, a
educação seria um dos principais elementos capazes de contornar o temperamento do
indivíduo. Verifica-se também algo muito comum naquele período, e que ainda persiste na
cultura machista, que é atribuir à figura feminina o papel de refrear os maus hábitos
masculinos. Desse modo, Bernardo das Ipueiras não tivera a sua índole modificada porque o
ambiente em que vivia há mais de trinta anos era degenerado e convivendo com uma
“população verminada de vícios” era impossível encontrar uma esposa virtuosa.
Um dos fatores apontados como responsáveis pela degeneração social daquele
ambiente seria a mistura entre diferentes povos. A sociedade que se formara em torno do
127

eldorado amazônico foi observada por Vasconcelos, um personagem dotado de valores


morais, mas sem recursos, que havia migrado em buscar de ganhar o pão honestamente:

Havia gente de quase todas as terras do mundo. Os navios lançavam diariamente


na cidade avalanches de aventureiros, que, a não ser os cearenses que seguiam para
os seringais, ficavam a tentar fortuna. (...)
Achou que a sociedade ali era uma amálgama de elementos heterogêneos,
desordenada, como todos os núcleos que se formam rapidamente em volta de um
eldorado e com um único fim enriquecer, mas enriquecer por todos os meios,
abandonados pela consciência e pela vergonha, na frase de Veritas (TEÓFILO,
1974, p. 142. Grifo nosso).

Embora não cite a palavra miscigenação, esse trecho trata, em termos mais
literários, do “amálgama de elementos heterogêneos”. A partir dessa perspectiva,
compreende-se que aquela sociedade viciada era resultante da mistura de povos de diferentes
nações. Vale ressaltar que, no século XIX, a concepção de raça muitas vezes ainda se
confundia a concepção de povo ou nação. E, apesar de Vasconcelos ser considerado um
homem dotado de valores, para sobreviver em um meio tão degenerado, só lhe restaria se
adaptar ao mesmo: “Ficaria chafurdado naquela vérmina moral esperando que se operasse
nele o contágio e se cumprisse a lei fatal da adaptação ao meio” (TEÓFILO, 1974, p. 143).
Como visto anteriormente, ao apresentar a trajetória de sofrimentos vividos na
Amazônia por Joaquim dos Cocos, essa narrativa mostrou que, além de ser submetido a
péssimas condições trabalho, esse cearense ainda presenciou a morte dos filhos e dos
companheiros por febre e o rapto à força de sua esposa por um boliviano. Segundo o relato,
essa talvez tenha sido a situação mais constrangedora para aquele sujeito, pois o mesmo
estava impedido de vingar a sua desonra ou mesmo de fugir. Tal situação nos faz refletir sobre
o que o autor considerava como valores sertanejos, e como esses foram infringidos em outro
meio diferente do sertão nordestino. A honra sertaneja é um dos elementos frequentes nos
romances de Rodolfo Teófilo e aparece como um fator caracterizador de um povo. De acordo
com esses ideais de honra, numa perspectiva extremamente patriarcal, a sexualidade feminina
deveria ser preservada. Caso ela fosse desrespeitada, caberia ao seu protetor vingá-la, fosse
ele o pai ou o marido da vítima. Quando uma desonra não era vingada, a vergonha caía sobre
o homem encarregado de protegê-la e, como afirmou Gustavo Barroso (1917, p. 59), “no
sertão, quem não se vinga está moralmente morto”. Essa frase nos dá dimensão do tamanho
da humilhação sofrida por aquele sujeito que foi “obrigado a ser testemunha das poucas
vergonhas da mulher sem poder vingar ou fugir para evitar a presença daquele escândalo”.
128

Nesse sentido, a Amazônia foi apresentada como um cenário de desagregação dos valores
sertanejos e de degenerescência social.
As descrições sobre a Amazônia foram feitas de forma a ressaltar as diferenças em
relação ao cenário cearense, de modo que a visão sobre a primeira causasse estranhamento e
até horror aos leitores. A apresentação daquela natureza perpassava pelo universo do exotismo
e do fantasioso. Os nativos foram descritos como sujeitos incivilizáveis e uma ameaça à
integridade física dos migrantes. Até a chuva era assustadora para os paroaras: “Acostumados
com as trovoadas mansas de sua terra, com os invernos que começam sem destempero,
estranhavam aqueles exageros da natureza. Tudo ali era descomunal! Para nutrir árvores tão
colossais só chuvas diluvianas” (TEÓFILO, 1974, p. 195).
Bruno Damasceno destaca que “Teófilo, herdeiro da tradição romântica e adepto
do determinismo biológico, compôs uma visão da natureza poderosa, capaz de moldar e
transformar os comportamentos” (DAMASCENO, 2018, p. 7). Na perspectiva do literato, a
vida do cearense era uma constante luta contra a natureza. No Ceará, o sertanejo sofria com os
danos causados pela falta de chuva, na Amazônia ele vivia em iminente perigo, provocado
pelos animais selvagens, os indígenas e as doenças. De um modo geral, os relatos
apresentados em O Paroara sobre a vida na Amazônia concorrem para a comprovação de que
os migrantes cearenses, por mais corajosos que se mostrassem, saíam vencidos por aquele
meio hostil e degenerado. O narrador afirma que esses paroaras, por mais “que quisessem
reagir, ser fortes, não podiam. O meio e sobretudo as pavorosas histórias de Joaquim dos
Cocos lhes haviam amedrontado tanto o espírito, que lhes era impossível qualquer ato de
coragem, de energia” (TEÓFILO, 1974, p. 166). Damasceno compreende que Rodolfo
Teófilo, numa visão moralista, através dessa obra, tem por objetivo “confirmar sua tese de que
por quaisquer motivos que existissem para a evasão, permanecer no Ceará, fosse no aspecto
material, fosse no aspecto das afetividades, era a melhor alternativa” (DAMASCENO, 2018,
p. 98).

Trabalhando por uma chave moralizante, o autor desprezou os códigos de conduta


dos pobres, atribuindo-lhes a necessidade de serem tutorados pela elite letrada e pelo
governo, contribuindo com o projeto das elites de limitar o campo de ação dos
pobres. Deste modo, O Paroara, como discurso, funciona tanto para denunciar as
dificuldades vivenciadas pelos pobres migrantes, como para legitimar o poder
intervencionista das elites sobre a vida dos pobres (DAMASCENO, 2018, p. 47).

Esse pesquisador ainda destaca que o posicionamento de tomar a tutela dos mais
pobres e despossuídos, por parte da elite intelectual, faz parte de um projeto maior de
129

disciplinamento dos corpos ancorado nas teorias científicas (DAMASCENO, 2018, p. 49-50).
Rodolfo Teófilo, assim como boa parte da intelectualidade daquele período, considerava que a
mestiçagem era um problema a ser superados e que a grande população pobre e mestiça, sem
capacidade moral e intelectual de tomar decisões coerentes, deveria ter seus destinos guiados
pelas luzes da ciência, da educação e do progresso. Nesse sentido, os sertanejos que optavam
pela migração não possuíam consciência dos seus danos físicos, morais e econômicos, por
isso deveriam ser educados e informados sobre os problemas que a envolviam. Para realçar
esse pensamento, a obra procurou mostrar os motivos que levavam aqueles sujeitos a decidir
pela migração.
Ao compartilhar o olhar disciplinador e higienista, tão presente entre a elite
letrada do final do século XIX, Rodolfo Teófilo construiu duas imagens sobre os sujeitos que
migravam. Em uma dessas imagens os migrantes foram apresentados como vítimas das
condições climáticas e na outra como aventureiros ambiciosos que largavam suas terras e
famílias para tentar enriquecer em um lugar hostil: “Assim ia até Manaus onde lhe diziam
haver lugar para todos. Uma cidade de aventureiros para onde se encaminham os que se viam
sem pão e os ambiciosos” (TEÓFILO, 1974, p. 126). Por meio desse discurso moralizador, o
narrador propôs que os ambiciosos eram aqueles que se deslumbravam com as promessas de
fortuna fácil. Estes eram acometidos pela “febre de migrar”, uma das “endemias do Ceará”
(TEÓFILO, 1974, p. 131). Tais termos passam a impressão de que a migração era algo que
estava fora do controle dos sujeitos envolvidos e também fazem referência ao campo da
patologia, algo muito presente na escrita desse autor.
Nessa perspectiva, a “febre de migrar” para a Amazônia era tão avassaladora que
atingia os diferentes grupos sociais, até mesmo os homens cultos, os quais faziam de suas
profissões um meio de enriquecer, o que é visto pelo narrador como um grande absurdo:
“Pasmava ver em tão inóspitas e esquisitas paragens homens de uma certa cultura. A
necessidade ou a ambição os arrastara até ali. Todos os ramos de conhecimentos humanos
estavam mais ou menos representados [...]” (TEÓFILO, 1974, p. 174). Entre os diferentes
mercenários, que se arriscavam aos vários perigos (doenças, ataques de índios e animais
selvagens etc.), estavam mascates, homeopatas, médicos, dentistas, rábulas e engenheiros,
entre outros. Todos interessados em beneficiar-se da exploração dos seringueiros. Até mesmo
o padre, representado por Bibiano, “não andava por aquelas brenhas por amor de Deus e do
próximo. Era um mercador como os outros. Como os demais aventureiros expunha a vida
atravessando aqueles ermos em risco de ser flechado por um índio ou comido por uma fera”
(TEÓFILO, 1974, p. 174). Em convívio com os aventureiros e mercenários e sendo
130

explorados por esses, também são representados os seringueiros cearenses, que em grande
parte foram parar ali, não em busca de aventuras e rápido enriquecimento, mas expatriados
pela seca, em busca de sobrevivência. Esse é o caso de João das Neves, assim como
Vasconcelos:

Não era a febre de emigrar, esta endemia do Ceará, que o havia atacado, mas a
necessidade imperiosa de sair para não morrer de fome. O navio que o conduzia ia
cheio de aventureiros que seguiam caminho do eldorado, mas também levava
vítimas, com ele, que a miséria expatriava (TEÓFILO, 1974, p. 131).

Ao acompanharmos a trajetória de João das Neves e sua luta pela sobrevivência


contra as adversidades impostas pelo meio – a praga de borboletas que destruiu a plantação, a
escassez de chuva e a dificuldade em obter alimentos – percebemos que a decisão de migrar
para a Amazônia aparecia como a última alternativa de sobrevivência para muitos cearenses
pobres. Como já afirmado antes, os sertanejos pobres foram colocados numa condição de
passividade diante da ação esmagadora da seca. Além de ter sido um ato de desespero, a
migração também aparece como uma decisão impensada:

Os casados estavam todos nas mesmas condições de Neves, com igual fortuna e os
encargos da família; nem pensavam na miséria que em sua ausência lhe entraria em
casa.
Os solteiros, muitos deles de casamento justo, pensavam na viagem com muita
satisfação, com grande desamor à terra e às noivas, que ficavam.
Na loucura de emigrar, de chegar depressa ao eldorado, de enriquecer sem trabalho,
seguiam completamente indiferentes a todas as belezas do torrão do berço, a todos
os afetos d’alma (TEÓFILO, 1974, p. 111).

Ao tratar os paroaras como sujeitos sem amor à família e à terra natal, esse trecho
concorre para uma desumanização daqueles indivíduos, como se houvesse um desejo cego de
migrar e como se esse desejo aniquilasse suas afetividades. Lembramos que a migração é um
processo social complexo e que é movido por diversos interesses e propósitos. E pelo fato
envolver pessoas, esse processo está repleto de sentimentos e sensibilidades, tanto para os que
partem, como para os que ficam. Sem considerar outros fatores, Rodolfo Teófilo reduziu um
diversificado grupo social a duas categorias: os aventureiros ambiciosos e os famintos
expulsos pela seca. Ao juntar o componente climático e determinista à propaganda realizada
pelo paroara sobre o eldorado amazônico, estava justificada, para esse intelectual, a motivação
para aqueles sertanejos abandonarem suas terras e famílias.
De um modo geral, podemos inferir que o romance de Rodolfo Teófilo contribuiu
para a construção de uma imagem que se cristalizou, até mesmo na historiografia, sobre os
131

motivos que ocasionavam a migração dos cearenses para a Amazônia. Tal perspectiva coloca
os migrantes cearenses numa situação de passividade, como se eles fossem apenas vítimas do
fatalismo e das forças deterministas, enxotados pela seca ou ludibriados pela imagem de um
eldorado amazônico. Sem negar a importância da seca ou da demanda dos seringais para o
processo de migrações, é preciso considerar que as questões que envolvem esse fenômeno
social são bem mais complexas. Algumas pesquisas mais recentes, ao sair desse lugar comum,
têm apresentado outras dimensões do processo (BARBOZA, 2015; CARDOSO, 2014;
LACERDA, 2006). Essas pesquisas nos levam a perceber as diferentes faces da migração e
que foram múltiplas as experiências compartilhadas por aqueles sujeitos sociais. Uma dessas
faces são as redes de solidariedade e informações compartilhadas por parentes e conhecidos,
que fizeram com que muitos migrantes escolhessem aquele trajeto e não outro. Novas análises
têm retirado esses sujeitos da condição de passividade, colocando-os também como
protagonistas de suas próprias vidas. “Entende-se que os migrantes não tiveram que cumprir
uma sina predestinada por fatores externos a sua vontade, e nem seus caminhos foram feitos
ao acaso, sem nenhuma reflexão sobre as possibilidades da travessia” (CARDOSO, 2014, p.
40).
Ao longo do romance percebemos um conjunto de caracterizações atribuídas aos
paroaras, que os definem como miseráveis, ignorantes, imprevidentes, fúteis e egoístas, como
se os mesmos possuíssem um temperamento específico. E tal temperamento estaria ancorado
ao pertencimento racial daqueles sujeitos, em sua maioria caboclos. Assim, para explicar
aquela onda migratória e a falta de amor à terra natal, que fazia com que tantos cearenses
migrassem para a Amazônia, sem pensar em suas consequências, o autor atribuiu ao que ele
chamou de “nomadismo da raça vermelha”:

Sujeito às contingências da vida, como povo algum do mundo, o cearense não pode
contar com o dia de amanhã; e raro é o solar que tem habitado a mesma família em
algumas gerações. O nomadismo da raça vermelha, transmitido por ativismo à
população mestiça, a qual constitui talvez quatro quintos dos habitantes do Ceará, é
o fator principal do despovoamento da terra cearense. Este instinto de
vagabundagem inato no mestiço é alimentado por causas secundárias, entre as
quais as secas e as irregularidades das estações ocupam o primeiro lugar (TEÓFILO,
1974, p. 100. Grifo nosso).

Ao apontar que o principal fator para o despovoamento do Ceará era o instinto de


vagabundagem inato aos mestiços, o autor deu uma enorme credibilidade às crenças raciais e
biológicas, em detrimento dos fatores sociais e econômicos. Talvez essa seja a obra literária
de Rodolfo Teófilo em que a concepção de atavismo aparece de forma mais explícita. Assim,
132

o nomadismo presente na “raça vermelha” seria transmitido hereditariamente à população


cabocla que constituiria a maior parte da população cearense. A seca, que comumente é
apontada pela historiografia como a principal causa da migração, apareceu apenas como um
fator secundário, ou seja, um fator externo capaz de estimular aquilo que já é inato do
indivíduo. Embora esse romance possua um forte teor de denúncia social, os problemas
sociais e econômicos ganharam uma importância menor diante do peso exercido pelo fator
biológico.
Para compreendermos melhor o peso que o fator racial exerceu sobre as
personagens dessa obra, vejamos como João das Neves é descrito. Embora fosse descendente
quase que exclusivamente dos indígenas e tenha herdado o “espírito de vagabundagem” dessa
raça, esse personagem também apresentava características que denunciavam a presença do
elemento branco em sua constituição e que se manifestavam através de aspectos físicos e
psíquicos:

As qualidades afetivas que o faziam entristecer perante as ruínas dos lugares onde
passara a infância eram completamente desconhecidas na raça vermelha da qual ele
quase exclusivamente descendia. Um caboclo com tão apurada sensibilidade
moral, com nervos para sentir uma saudade, para chorar a separação de um amigo,
seria um salto da natureza, que jamais viola as suas leis. Quem com alguns
conhecimentos de antropologia observasse detidamente o tipo de João das Neves
havia de descobrir nele, embora meio apagadas, vestígios de uma outra raça que não
era a que predominava em suas formas e feições. A adolescência em plena
maturidade havia completado o desenvolvimento de sua carnação em todo vigor de
vida e de saúde. A musculatura de seus ascendentes índios salientava-se na pujança
de todas as suas linhas.
A natureza havia sido grandemente pródiga e tão pródiga que não esquecera de
dar a sua criação além de todas as qualidades hereditárias algumas atávicas,
físico-psíquicas. Assim, naquele caboclo entroncado, havia alguns traços que não
eram do indígena brasileiro, era da raça branca. O seu todo era de índio; mas
descendo-se a um exame apurado, aos detalhes, via-se que a cor-de-cobre de sua
pele era um pouco mais desmaiada do que a do caboclo verdadeiro; os seus olhos
mais rasgados, menos oblíquos e com o íris de um castanho quase negro; os cabelos,
embora de um preto intenso, corridos, não eram tão duros como os tapuia e no rosto
havia barba, falhada é verdade, mas ocupando todo o sítio peloso das faces.
O elemento branco se denunciava nestes pequenos detalhes, porém mais se
acentuava na forma e tamanho das mãos e na desigualdade dos dedos.
A estas manifestações da raça branca comprovado a lei do atavismo, se juntavam
outras psíquicas de não menos valor: João das Neves tinha alma afetiva, era capaz de
amar.
Tinha outros nervos que não tem o selvagem, que ama os pais somente enquanto
precisam deles.
Este modo de sentir da raça vermelha, perfeitamente animal, a sua psicologia
fazem com grande eloqüência e verdade estes dois versos populares:
Pai e mãe é muito bom,
Barriga cheia é melhor (TEÓFILO, 1974, p. 27-28. Grifo nosso).
133

Embora seja extensa, essa citação é fundamental para compreendermos como a


mestiçagem do povo cearense era pensada por Rodolfo Teófilo e como seu pensamento era
fortemente marcado pela concepção de atavismo. Ela mostra que, mesmo João das Neves
descendendo quase que exclusivamente da raça vermelha, esse caboclo apresentava alguns
traços físicos da raça branca, os quais se denunciavam em pequenos detalhes e que não
poderiam ser detectados por qualquer pessoa, apenas por alguém que detivesse alguns
conhecimentos de antropologia. Através de um apurado exame seria possível detectar
elementos dessa raça em detalhes discretos, como a cor da pele mais desmaiada, os “olhos
mais rasgados”, o cabelo fino e a presença de uma barba no rosto, mesmo que falhada, e se
“acentuava na forma e tamanho das mãos e na desigualdade dos dedos”.
Segundo o narrador, ainda que João das Neves tenha herdado da raça vermelha o
desapego que o fizera migrar para a Amazônia, ele também possuía qualidades afetivas que o
fizera retornar à sua terra natal e que eram completamente desconhecidas nessa raça tida
como inferior. Ele herdara da outra raça uma apurada sensibilidade moral que o tornava capaz
de sentir saudade e de chorar. Portanto, a miscigenação, nesse caso, não representava um
exemplo de degenerescência, mas, ao contrário, representava um “salto da natureza”, ou seja,
o melhoramento racial.
Para demonstrar a força que o elemento racial exercia naquele mestiço e a relação
entre o atavismo e as qualidades psíquicas e afetivas, o narrador descreveu a luta interna
travada no espírito de João das Neves ao decidir sobre a migração. Assim como Maria Rita,
esse sertanejo, por resultar da mistura de duas raças diferentes, possuía um temperamento
muito inconstante. Essa luta interna em seu espírito era travada por antagônicos sentimentos,
resultantes dos diferentes traços atávicos que o constituía:

De todo em si pensou na viagem com mais calma e menos entusiasmo. O desejo


infrene de tentar fortuna na terra alheia era agora um tanto sofreado por um
sentimento, o amor à terra e à família, que parecia extinto ou pelo menos
adormecido nos mestiços pelo nomadismo.
João das Neves lembrou-se da viagem; que deixaria no dia seguinte, quem sabe se
para sempre a mulher e os filhos, que ignorando o seu desamor, a sua traição, se
reuniam agora em roda dele acarinhando-o as crianças, que tão inocentes lhe subiam
pelos joelhos e se lhe abraçavam ao pescoço. Sentiu-se um pouco comovido com as
carícias dos filhos e dentro de si revoltaram-se com a sua ingratidão algumas
gotas de sangue de outra raça que não era a vermelha. Meio envergonhado da
ação que ia cometer, olhava a companheira, aquela boa e valorosa mulher, que havia
estado sempre ao lado dele na hora dos maiores perigos, nos dias das grandes
provações e que ele ia covardemente abandonar, quando ela mais precisava do seu
socorro, da sua companhia!...
Vendo a inocência dos filhos, que nem suspeitavam das dores, e a miséria que lhes
ia legar emigrando sentiu que os olhos se lhe marejavam de lágrimas. Uma luta
daquele ceitil, daquela partícula de sentimento afetivo perdida e despercebida
134

em meio de paixões ardente e tumultuosas, próprias do temperamento do


mestiço brasileiro, travou-se nos recessos daquele espírito inculto. A lágrima tão
depressa lhe apontou nos olhos desapareceu e secou. Vencia ainda uma vez o
egoísmo brutal de seus avós indígenas. A baga de pranto foi um lampejo fulgente
das qualidades afetivas; durou um instante como um raio último de uma luz que se
extingue (TEÓFILO, 1974, p. 112-113. Grifo nosso).

Vejamos que mesmo com a perturbação dos sentimentos e a comoção que o


abandono à família causava naquele personagem, vencia o egoísmo brutal de seus ascendentes
indígenas. Embora boa parte da narrativa dessa obra seja dedicada à luta do sertanejo contra a
seca e as adversidades encontradas na Amazônia, o fator racial se sobrepõe aos demais para
explicar aquele fenômeno. Isso mostra o peso do pensamento racial nos escritos de Rodolfo
Teófilo e, especificamente nessa obra, o determinismo racial se sobrepõe a qualquer outro tipo
de determinismo. Isso fica ainda mais nítido quando o narrador mostra que o que levou João
das Neves a retornar para sua terra natal foi o sentimento de remorso por ter abandonado a
família. Se o que fez esse mestiço abandoná-la foi o nomadismo da raça vermelha, o que o
levou a retornar foi a presença de uma alma afetiva herdada da raça branca, revelando, assim,
um temperamento bastante instável, próprio dos mestiços.
O desfecho da obra mostra esse retorno de João das Neves e a comprovação da
vitória daquele meio degenerado e insalubre sobre os paroaras. “Depois de dois anos no
Amazonas, de duas safras de borracha, voltava ele doente e desiludido da fama do eldorado”
(TEÓFILO, 1974, p. 220). Escrito de forma bastante trágica, esse desenlace não possui um
final feliz como em A Fome. Enquanto que nesse romance o protagonista Manuel de Freitas –
um fazendeiro branco – conseguiu vencer as adversidades impostas pela seca e manter a
integridade física e moral de sua família, em O Paroara, o protagonista João das Neves –
pobre e mestiço – ao retornar, debilitado e desiludido, se deparou com a perda dos filhos e da
esposa, todos sucumbidos pela fome. Vejamos a carga de dramaticidade utilizada pelo autor
ao escrever o último parágrafo desse romance:

João das Neves ficara derribado num acesso de maleitas, num apavorante abandono,
naquela vivenda solitária, em companhia dos fantasmas que o remorso criava para
castigá-lo. O paludismo foi o único provento que tirara do Amazonas e que o
flagelaria o resto da vida, de parceria com a pungente mágoa que nele havia
produzido as últimas palavras da esposa, grande mártir do amor e do dever. Nunca
mais deixaria de ouvir estas inolvidáveis e terríveis palavras – morreram todos de
fome (TEÓFILO, 1974, p. 236. Grifo do autor).

Sob um viés moralista, Rodolfo Teófilo caracterizou Chiquinha como uma grande
mártir do amor e do dever que, durante a ausência do esposo, resistiu às investidas de outro
135

homem e, mesmo definhando com os sintomas da fome e da tuberculose, lutou até fim para
conseguir algum alimento para os filhos. “Nunca a miséria fez Chiquinha abrir a porta de sua
alcova ao pertinaz sedutor. Já muito tísica, quase desprezível múmia, a se desmanchar em pus
e a curtir febre todas as tardes, andava como uma alma penada pela floresta procurando com
que alimentar os filhos” (TEÓFILO, 1974, p. 237). Pelo mesmo viés moralista, o autor
reservou um desfecho de dor e remorso para João das Neves, como forma de punição pelo ato
imprudente de ter migrado e abandonado a família. Aliado a esse viés moralista e de
denúncia, o desenlace desse romance, totalmente diferente daquele apresentado na obra A
Fome, foi a comprovação de que as adversidades do meio levavam à sobrevivência apenas
dos mais aptos – ou seja, a raça branca.

4.3 A RAÇA BRANCA EM DEFESA DO CÓDIGO DE ÉTICA SERTANEJA E A


DEGENERESCÊNCIA DOS BANDIDOS MISCIGENADOS

Já tendo dito anteriormente que a seca foi a principal temática abordada por
Rodolfo Teófilo, e que o seu segundo romance, Os Brilhantes (1895), se insere na produção
categorizada como o primeiro “ciclo da seca”, ressaltamos que essa obra se dedicou a falar
sobre o banditismo rural, um dos temas que aparecem relacionados a essa “literatura da seca”.
Esse romance é um pretenso “estudo de psicologia” de um bandido, o protagonista Jesuíno
Brilhante, e faz referência àquele que é considerado um dos mais famosos bandidos do século
XIX, Jesuíno Alves de Mello Calado, nascido em 1844, no Patu, Rio Grande do Norte.
Embora Rodolfo Teófilo faça alusão à atuação desses bandos em outras obras, como A Fome
e Historia da seca do Ceará (1877 a 1880), foi em Os Brilhantes que ele se dedicou,
prioritariamente, ao tema. Por percebemos que o autor estabeleceu uma estreita relação entre
as causas desse fenômeno e as teorias deterministas, instigou-nos discutir como se deu essa
relação e como foram inseridos outros elementos nela.
Ainda que o banditismo não tenha sido uma experiência exclusiva do sertão
nordestino, aquilo que Pernambucano de Mello (2011, p. 104) chamou de “banditismo rural”
apresentava nuanças bem específicas e afincadas na cultura da valentia e da honra sertaneja
do Nordeste pecuário. O panorama de insegurança e instabilidade política, que marcou a
conquista do sertão e a instalação da atividade pecuária nessa região, se estendeu ao longo da
colonização e contribuiu para a efetivação de uma cultura de violência e o fortalecimento do
banditismo no século XIX, que posteriormente passou a ser chamado de cangaço:
136

Fornecendo ao banditismo um nome próprio de sabor regional, um tipo de homem


vocacionado à aventura, um meio físico de relevo adequado à ocultação, coberto por
malha vegetal quase impenetrável, e uma cultura francamente receptiva à violência,
o sertão não poderia deixar de se converter no palco principal do cangaço (MELLO,
2011, p. 95).

Do amálgama entre uma cultura de violência e um ambiente natural e social


favorável a esse fenômeno resultou no surgimento, a partir do século XIX, de um banditismo
rural cada vez mais desenfreado, principalmente nas duas últimas décadas daquele século e na
primeira metade do seguinte. Pernambucano de Mello ressalta que em momentos de
desorganização social, como os períodos de secas, em que as atividades repressoras ficavam
inibidas, a atuação do banditismo rural tomava enormes proporções e a situação social se
tornava apavorante (MELLO, 2011, p. 98). Foi na seca de 1877-79, conhecida como a
“Grande Seca”, a qual se refere os dois primeiros romances de Rodolfo Teófilo – A Fome
(1890) e Os Brilhantes (1895) –, que o banditismo rural provocou grande alvoroço entre a
população sertaneja. Mello nos lembra ainda que “houve cangaços dentro do cangaço” e
diversos foram os fatores que levaram a adoção do “viver pelas armas”, sobressaindo-se três
formas básicas: o cangaço-meio de vida; o cangaço de vingança e o cangaço-refúgio
(MELLO, 2011, p. 88-89). O segundo tipo, que se consagrou como a forma de cangaço nobre,
faz jus a ideia de honra sertaneja, segundo a qual um homem deve vingar uma afronta
recebida ou o assassinato de um parente próximo. É nesse tipo de cangaço que a literatura
insere Jesuíno Brilhante.
Destaca-se que, embora tenham existido casos de pessoas que entraram e
permaneceram no banditismo exclusivamente para vingar alguma desonra ou alguma morte,
em torno dessa motivação criou-se uma construção discursiva que transformava a figura do
bandido em um herói guardião da honra sertaneja. Assim, o cangaço por vingança, por possuir
uma aceitação social dentro daquela cultura, acabou sendo usado, muitas vezes, para encobrir
todas as outras motivações que levavam o indivíduo a entrar ou permanecer no mundo do
crime. “Ao invocar as tais razões de vingança, o bandido, numa interpretação absurdamente
extensiva e nem por isso pouco eficaz, punha toda a sua vida de crimes a coberto de
interpretações que lhe negassem um sentido ético essencial” (MELLO, 2011, p. 127). Através
desse entendimento, Pernambucano de Mello construiu o conceito de “escudo ético” que
consiste nessa percepção de que, para o bandido que sofreu alguma afronta, ou que
simplesmente alegava ter sofrido tal afronta, se tornava bem mais cômodo justificar que sua
inserção no banditismo foi impulsionada pelo desejo de vingança, pois essa justificativa era
137

perfeitamente aceitável, e até exaltada, dentro daquela cultura, criando assim um escudo que o
isentava da culpabilidade sobre suas ações. Esse papel desempenhado pela vingança acabou
ganhando uma grande dimensão na explicação como principal fator para a inserção no
banditismo rural. E essa tendência ocorre “praticamente na totalidade de nossa literatura de
ficção sobre o tema” (MELLO, 2011, p. 20). Entendemos que foi através desse “escudo ético”
que a imagem de Jesuíno Brilhante se consagrou como representante do código de honra
sertaneja.
Para apresentar a personagem principal da obra e inseri-la na vida criminosa, o
narrador inicialmente fez uma longa descrição sobre o meio onde aquele modo de viver seria
encenado. Sendo esse um recurso comum em muitos romances de tese, ele pode ser utilizado
para diferentes fins, que tanto pode ser devido ao caráter descritivo e científico desse tipo de
produção, como também pode ser um recurso utilizado para antecipar e expor as condições
que foram determinantes para que as cenas posteriores se desenrolassem de uma determinada
forma e não de outra. Desse modo, o determinismo aparece influenciando não apenas o
conteúdo, mas também a forma de se construir um romance naturalista.
Dito isto, ressaltamos que, antes de Jesuíno se tornar criminoso, o narrador
apresenta o modo de vida tranquilo que ele levava com sua esposa, na lida de fazendeiro,
cuidando de suas terras e rebanhos. Viviam assim, tranquilos, sem ódios e nem aspirações,
quando um acontecimento veio desestruturar aquele modo de vida – o assassinato, em sua
presença, de seu primo Francisco Botelho por Francisco Calangro. De imediato, Jesuíno pôde
conhecer o assassino, mas não teve coragem de persegui-lo, pois ficou extasiado diante de
tamanha brutalidade. Foi nesse momento que, ao tratar da família de Jesuíno, o narrador fez
referência a algo considerado comum no sertão nordestino, as rixas entre as famílias e o
grande número de mortes que isso resultava devido à cultura da vingança: “a sua família,
como tôdas as famílias sertanejas, não deixava de ter suas rixas, intrigas motivadas em sua
maioria pela política” (TEÓFILO, 1972, p. 75). No entanto, mesmo com esse meio social
propício ao crime, Jesuíno, até então se mantinha distante dessas questões “porque o seu
gênio, como ele dizia, não dava para brigar. Assim era e continuaria a ser, se um estranho
acidente não viesse acordar inclinações latentes” (TEÓFILO, 1972, p. 76).
De acordo com o código de honra sertaneja, era dever de Jesuíno vingar a morte
do primo, pois sendo ele o parente próximo que presenciara o assassinato, era também seu o
dever moral de vingar aquela morte. Mesmo assim, a pedido de seu pai, Jesuíno ainda
conseguiu passar três meses sem tentar nenhum tipo de vingança. Porém, essa vingança foi
colocada pela narrativa como algo inevitável, após o protagonista receber um insulto do
138

assassino, Francisco Calangro: “– Faz hoje um ano que morreu teu primo, e sua morte não foi
vingada. Os calangros são cabras, mas cumprem o que dizem e morrem, não correm como os
teus irmãos fizeram na noite de festa no Catolé!” (TEÓFILO, 1972, p. 91). Ao afirmar que os
calangros são cabras, esse assassino ressaltava a condição de mestiçagem de sua família.
Mesmo pertencendo a uma condição racial inferior, Francisco Calangro recorreu ao princípio
básico da honra sertaneja, segundo a qual um homem nunca deve descumprir o que fala e nem
se amedrontar diante de um insulto. Além desse insulto, o Brilhante foi outra uma vez
ferozmente ofendido pelo irmão de Francisco. No meio do rebuliço do dia de “ano-bom”,
Honorato Calangro, após perceber a presença de Jesuíno na vila sertaneja, ficou esperando a
oportunidade para lhe proferir todo tipo de provocação: “já havia infligido ao Brilhante toda
casta de aviltamentos” e por fim levantou “o chicote para descarregar nas faces do inimigo”
(TEÓFILO, 1972, p. 102-103). Jesuíno não pôde suportar tamanha afronta, pois nada seria
mais ofensivo para um sertanejo, segundo esse código de honra, do que ter o rosto maculado.
E, assim, ele se tornou assassino, reascendendo a rixa e a matança entre as duas famílias e
fazendo cumprir aquilo que essa narrativa colocou como já determinado desde o seu início.
Após iniciarmos essa discussão sobre a relação que se estabeleceu, no romance de
Rodolfo Teófilo, entre a vida criminosa de Jesuíno e o dever de vingança, destacamos
também que esse autor atribuiu uma explicação baseada no determinismo genético para tal
acontecimento. Segundo essa narrativa, um fator crucial e determinante para Jesuíno se tornar
um criminoso foi o desencadeamento da “nevrose do homicídio”, após presenciar o
assassinato de seu primo Botelho.

Uma mudança radical havia se operado naquela criatura. Portador da nevrose do


homicídio, herdada de um de seus ascendentes maternos, mas até então em estado
latente, Jesuíno teria talvez logrado viver sem matar, se não tivesse sido testemunha
do assassinato de seu parente.
A nevrose explodiu com violência. Ao período de atordoamento, no qual parecia por
completo suspensa no Brilhante a intelecção, a essa crise de atordoamento de suas
qualidades psíquicas, sucedeu um acesso de loucura, cujo furor via-se-lhe estampado
no semblante (TEÓFILO, 1972, p. 76).

A nevrose do homicídio foi apresentada como uma doença hereditária que Jesuíno
havia herdado, por atavismo, de seu tio materno, Cazuza. Nesse sentido, a atuação daquele
meio social violento apareceu como um fator indissociável ao hereditário e fundamental para
que a nevrose se manifestasse e Jesuíno se tornasse um criminoso. A partir dessa explicação,
o crime foi colocado como um fator patológico, determinado geneticamente. E aqui, mais
uma vez, se sobressai um elemento muito forte na literatura naturalista de Rodolfo Teófilo,
139

que era essa tendência biologizante de atribuir explicações patológicas aos diferentes
fenômenos. É nesse contexto que ressaltamos a forte influência da escola positivista de
criminologia, fundada no pensamento do italiano Césare Lombroso, que via o crime na
perspectiva patológica. De certo modo, acreditava-se que seria possível reconhecer e deter o
criminoso, numa perspectiva organicista semelhante ao infectologista que busca defender o
corpo saudável da atuação de um vírus. Assim, o principal objeto de estudo não era o crime
em si, mas o criminoso.
É possível perceber no segundo romance de Rodolfo Teófilo como essas
concepções estavam presentes na construção de seu personagem principal. Como a narrativa
mostra, a nevrose do homicídio causava reações físicas e psíquicas em Jesuíno que o
diferenciava dos criminosos comuns. Ao presenciar o assassinato, Jesuíno sofreu uma crise
que lhe provocou alterações na fisionomia e que foi facilmente identificada por seu pai, o
velho Soares, que também havia presenciado as transformações ocorridas com seu cunhado
Cazuzinha:

Cazuzinha, tio materno de Jesuíno, começara também assim e chegou a conquistar


grande celebridade no crime. O fazendeiro ainda tinha na mente as recordações
terríveis da noite em que o cunhado lhe entrou de porta a dentro com as mãos
ensangüentadas e quase louco. Os espasmos que lhe agitavam os músculos das
faces, de que jamais se esquecera, são os mesmos que observa agora no rosto do
filho. O mesmo olhar, a mesma alteração nos traços da fisionomia.
(...)
Caiu em um estado apático. A calma das feições, era, entretanto, perturbada de
tempos a tempos. A crise, embora incompleta, impressionava desagradavelmente a
quem o observava.
Era um relâmpago de ferocidade que transformava em sua curta duração as linhas de
todo o rosto. Os olhos faiscavam e as faces tremiam em repetidos espasmos
(TEÓFILO, 1972, p. 84).

O narrador deixa claro que essa era uma doença facilmente detectável através das
expressões faciais do indivíduo. Além da fisionomia de ferocidade e dos espasmos que lhe
transformavam o rosto, numa visão organicista, ele apontou que tal patologia havia
desenvolvido “naquele organismo uma desordem profunda” (TEÓFILO, 1972, p. 86). As
manifestações da nevrose também provocaram em Jesuíno um forte desequilíbrio psíquico e
grande abatimento do espírito. O nevropata sentia-se devorado por um desejo insaciável de
vingança, até que esse fosse consumado. Durante a realização do crime, esse sujeito enfermo
era tomado por um acesso de loucura, fazendo-o perder a consciência dos seus atos. E ao
retornar sua consciência, momentos depois do crime, também não sentia qualquer sentimento
de arrependimento ou remorso. Pelo contrário, para Jesuíno era um deleite observar os corpos
140

de seus inimigos desfigurados. Ao relatar o momento em que o protagonista se encontrou com


Francisco Calangro – o assassino do primo Botelho e seu maior inimigo –, o narrador fez
questão de ressaltar a crueza e prazer com que o Brilhante cometera aquele assassinato:

Jesuíno sem piedade do inimigo, ardendo em vingança, chegou-se mais ao cabra e


num frenesi de gôzo e num ímpeto de cólera fundidos em um sentimento só,
empunhou com firmeza a faca ensanguentada. E feriu-lhe com profundo golpe a
carótida esquerda. [...]
Jesuíno olhava sem constrangimento para as faces do morto.
Saboreava com satisfação os fenômenos que a morte estampava no rosto do cadáver.
(...)
O Brilhante não se fartava de olhar a vítima. O abatimento, a decomposição das
feições do morto davam-lhe ao espírito enfermo uma satisfação que o prendia ali,
como um espetáculo que muito o alegrava.
Comprazia-se em observar aquelas mutações quando teve a idéia de assinar o cabra,
como se fôra um bode. Em um vivo isto seria o requinte do aviltamento. Em um
morto, o maior ultraje que se podia fazer à sua família (TEÓFILO, 1972, p. 166-
167).

Para o narrador, toda essa crueldade com que Jesuíno assassinava seus inimigos se
explicava pelo fato de ele ser portador de uma doença. No entanto, a construção desse
personagem não se limitava à sua condição de nevropata. Apesar de se mostrar um assassino
altamente violento e impetuoso com aqueles que lhe fizeram algum mal, Jesuíno também era
capaz de ter sentimentos elevados e sentir piedade. Isso foi demonstrado na cena que seguiu
ao assassinato de Francisco Calangro. Ao observar a tristeza do bando de seu inimigo, Jesuíno
se condoeu com o sofrimento daqueles rapazes: “Jesuíno viu-os chorar e se doeu deles. [...] O
coração do Brilhante nutria certos sentimentos de piedade, que faziam um contraste perfeito
com a crueza que ostentava nos momentos de vingança” (TEÓFILO, 1972, p. 168-169).
Nesse trecho o narrador deixou claro que o Brilhante só matava por vingança ou para se
defender. Como não possuía nenhuma desavença pessoal com os rapazes que compunham o
bando de Francisco Calangro, não tentou contra a vida deles, embora tenha tido a
oportunidade. Ressaltamos também que, de acordo com essa narrativa, a crueldade se Jesuíno
se limitava ao momento de vingança e era ocasionada pela nevrose. Totalmente contrastante a
essa crueldade era o sentimento de piedade que ele nutria ao presenciar o sofrimento dos
outros. Esse é o caso dos rapazes citados, mas também dos famintos da seca, a quem o
Brilhante se dedicou com total empenho para socorrê-los.
Através da construção ficcional de Jesuíno Brilhante, percebemos que o autor não
estava interessado em apresentar apenas uma face sobre a vida desse assassino. Se por um
lado, Jesuíno era violento e impetuoso na vingança contra seus inimigos. Por outro lado, ele
era capaz de demonstrar bons sentimentos e ajudar aos mais necessitados. Acreditamos que
141

essa ambiguidade na forma de representá-lo, em parte, reflete um tensionamento entre a


estética romântica e naturalista, presente na escrita de Rodolfo Teófilo. Nos romances
analisados nesse trabalho foi possível perceber um esforço por parte desse literato em se
adequar aos ditames naturalistas, através de uma linguagem mais afeita ao cientificismo e das
explicações biológicas sobre os fenômenos sociais. Porém, ele não conseguiu romper com o
Romantismo no modo de construir seus enredos e suas personagens. Na construção do
protagonista de Os Brilhantes, o autor procurou aplicar alguns estudos cientificistas – como a
teoria lombrosiana e o determinismo racial – mas, também atribuiu ideais bem comuns aos
protagonistas românticos, como a honra, a retidão, a benevolência, entre outros.
Sânzio de Azevedo (2013, p. 56) atentou para o fato de Jesuíno ser uma
personagem redonda, conforme a classificação de Foster em personagens planas e redondas.
De acordo com essa classificação, as personagens redondas não são apresentadas por meio de
contornos definidos e definitivos, imediatamente identificáveis. Para além de características
superficiais, essas personagens revelam complexidade pelo seu modo íntimo de ser e isso
impede que tenham a regularidade dos outros. Exemplo disso são os diferentes modos pelos
quais Jesuíno reagiu ao assassinato de Francisco Calangro. Assim, o autor, a cada momento,
lançava mão de uma caracterização diferente, geralmente analítica, e não pitoresca, para
construir essa personagem.
É nesse sentido que nos detemos a analisar dois aspectos, entre outros possíveis, e
que são aparentemente contraditórios, mas que se unem, para caracterizar esse sujeito, o
aspecto patológico, já enfatizado, e a ética sertaneja. Desse modo, retomamos a construção de
um bandido virtuoso, atrelada à ideia de honra sertaneja. O Brilhante se distinguia de todos os
seus inimigos por que era um bandido de valores morais elevados e que estabelecia
rigorosamente o cumprimento do código ético sertanejo ao seu bando. Isso ficou nítido
quando ele se deparou com dois assassinos, os mestiços Pajeú e Cobra-Verde. Os dois ficaram
assustados ao saber que estavam diante do bandido mais afamado da região, o qual, por sua
vez, retrucou aquela reação de espanto afirmando: “Até hoje não derramei sangue sem ser em
minha defesa”. E logo em seguida, Jesuíno os convidou a participar de seu bando, mas deixou
bem claro quais eram as suas condições: “O serviço é defenderem-se e defenderem-me em
caso de perigo. Os que me acompanham, não pegam no alheio e nem faltam com o respeito às
famílias honestas. Êstes dous crimes são os que mais abuso. Fujam de cometê-los porque para
êles não há perdão” (TEÓFILO, 1972, p. 189).
Pernambucano de Mello (2011), ao estudar os diferentes tipos de banditismo já
afirmara que “diversos foram os fatores que condicionaram a adoção do viver pelas armas em
142

cada modalidade, como diversa se mostraria sempre a medida da conduta no respeito a certos
valores, no comedimento das ações e na própria violência empregada” (MELLO, 2011, p. 89).
Representando o “cangaço de vingança”, já consagrado na literatura, a fala do personagem é
bem esclarecedora ao afirmar que só derramava sangue em sua própria defesa. Ao enfatizar
que Jesuíno não pegava no alheio, a narrativa reafirma a sua adequação àquilo que era tão
valorizado na cultura sertaneja, o respeito à propriedade. Sobre esse código de ética sertaneja
que julgava normal o assassinato em nome da honra, mas não perdoava o crime contra a
propriedade, esse pesquisador o compreende como um aspecto bem enraizado na cultura
sertaneja do Nordeste pecuário:

Muito se tem falado nos paradoxos da chamada moral sertaneja. No Nordeste, talvez
melhor que em qualquer outra região, sente-se a existência desse quadro de valores –
segundo já comentamos – inconfundível em muitos de seus aspectos. Chega a ser
quase impossível, por exemplo, explicar ao homem do sertão do Nordeste as razões
por que a lei penal do país – informada por valores urbanos e litorâneos que não são
os seus – atribui penas mais graves à criminalidade de sangue, em paralelo com as
que comina punitivamente para os crimes contra o patrimônio. Não se perdoa o
roubo no sertão, havendo, em contraste, grande compreensão para com o homicídio
(MELLO, 2011, p. 126-127).

Embora tenha se tornado assassino para vingar uma morte, o que era
perfeitamente aceitável dentro daquela cultura, Jesuíno era implacável com os crimes contra a
propriedade e contra a honra. Desse modo, ele criou para si um escudo ético que o fazia ser
temido e louvado. Ao longo da narrativa percebemos que a proibição aos dois crimes deixou
de se restringir ao bando e foi implantada em toda a sua área de atuação. Esse bandido
utilizou o poder que possuía pelas armas e se tornou senhor absoluto sobre o bem e o mal
naquele sertão. Isso também reforça a visão do leitor sobre a ineficácia da justiça estatal do
período e o grande valor atribuído à figura do valentão.

Jesuíno havia conquistado pelo seu valor e crueza uma celebridade, que cada vez
maior se tornava entre os seus conterrâneos. Todos temiam o seu ódio e louvavam as
ações generosas. Não era um assassino comum, um homem torpe, abusando da fôrça
e temor, que havia incutido no ânimo de seus patrícios para cometer toda sorte de
crimes, toda a casta de misérias.
(...)
Nessa vida de tribulações, esperando a todo o instante a bala que o derribaria para
sempre, Jesuíno não deixava de tirar uma parcela desse tempo e empregá-la em
beneficiar os desgraçados, socorrer os oprimidos. Constituiu-se juiz e juiz absoluto
naquelas cercanias. A justiça que administrava, era tão reta que em breve foi grande
a sua fama. Só tomava conhecimento dos crimes praticados contra a honra e a
propriedade. E ai daquele que os tendo cometido, não os reparasse com o casamento
ou a restituição. Para os que se negavam só havia uma pena – a morte. Assim,
castigando com a maior severidade e justiça os delinqüentes, conseguiu quase acabar
143

com aquêles crimes dentro da área de sua jurisdição[...] (TEÓFILO, 1972, p. 227-
228).

É desse modo que, em seu romance, Rodolfo Teófilo transformou a figura do


bandido em um herói guardião da honra sertaneja, um homem virtuoso que se diferenciava de
todas as outras personagens que haviam entrado no mundo crime. Afinal, Jesuíno não era um
assassino comum, um homem torpe cometendo toda sorte de crime. Ele possuía valores
morais. E, assim, ressaltamos outro aspecto que tem sido o fio condutor de nossas análises e
se apresentou como a pedra angular na construção dessa personagem: a questão racial e
social.
Um olhar atento sobre a caracterização física e temperamental dos bandidos
figurados nessa obra nos levou a questionar o fato de Jesuíno ter sido o único preocupado em
defender a honra sertaneja e agir unicamente em defesa de sua vida e dos desamparados.
Enquanto isso, o restante dos bandidos, entregue a todo tipo de degenerescência provocada
por aquele meio social, cometia, inescrupulosamente, os crimes mais torpes. Ressaltamos que
Jesuíno, antes de entrar na vida do crime, já era um fazendeiro bem-sucedido, portanto, o
banditismo não lhe atraiu como um meio de vida. Além disso, ele se distinguia de todos os
outros por ser um homem branco:

Havia mais ou menos harmonia nas linhas do rosto, onde não se encontrava um traço
que destoasse, ou fosse extravagante. Os cabelos de um ruivo côr de fogo, casavam
bem com os olhos, que tinham a mesma côr e eram ligeiramente estrábicos. A pele
alva e mosqueada de sardas assentava com a cor da cabeleira e barba, que apontava,
ruiva como os pelos do croata. A estatura era mediana e o corpo franzino, porém
musculoso (TEÓFILO, 1972, p. 32).

É possível perceber também nessa obra que Rodolfo Teófilo se utilizou de


minuciosas descrições físicas, a fim de estabelecer critérios de diferenciação entre suas
personagens, e, através delas, criar perfis raciais. Desse modo, Jesuíno representava a raça
branca, que se tornava visível através de características como a pele alva, os cabelos ruivos e
a presença de uma barba. Atentamos para a afirmativa de que nesse indivíduo havia uma
“harmonia nas linhas do rosto”. Embora este rosto se transfigurasse durante as crises
provocadas pela nevrose, nessa frase percebemos a intenção do narrador em estabelecer um
critério de beleza associado às características ressaltadas, como forma de exaltar a
superioridade da raça branca. Em contraste a esse tipo racial branco, destacamos a forma
diferenciada como foram descritos dois outros bandidos, citados como “cabra quase negro” e
144

“mulato”. Para estes, não foram reservadas qualificações tão generosas como aquelas
destinadas ao Brilhante:

Era êle um cabra quase negro, de bigodes retorcidos e nariz chato como tromba
de porco.
Mesmo dormindo via-se que o dono de tal cara não podia ter boas entranhas. O
cabra era musculoso, cheio do corpo e de mediana estatura.
O outro era um mulato alvadio e franzino. O rosto pequeno e malfeito era quase
todo ocupado pelo nariz, um nariz fenomenal, muito parecido com sobrecu de
peru e que esparramava as intumescidas asas pelas faces a fora. No queixo inferior e
vis a vis a ponta da venta, cava-se um buraco. O excesso do nariz fazia falta à
depressão da barba. As faces dividiam-se, das maçãs ao pescoço, em uma serie de
papadas mal feitas, balofas, que pareciam cheias d’água. O Brilhante gostou menos
deste tipo, tinha conhecido um sujeito muito parecido com êle, que, além de bêbado
por índole, tinha os sentimentos da víbora da Fábula (TEÓFILO, 1972, p. 187.
Grifo nosso).

A esses sujeitos, apresentados como pessoas miscigenadas, lhes foram destinadas


as descrições mais depreciativas, aspectos fisionômicos que o narrador relacionou a algo feio
ou mesmo deformação física, como as “papadas mal feitas, balofas”. Nos dois sujeitos foi
evidenciada a presença de um nariz grande ou chato, recurso descritivo utilizado para ressaltar
a forte presença do elemento negro em suas constituições. Ao mesmo tempo, esses caracteres
foram associados a formas de animais: “como tromba de porco” e “parecido com sobrecu de
peru”. Ao serem assemelhados a animais, fica nítida a tentativa de destituir a humanidade
desses sujeitos, relegando-os a uma posição de inferioridade. Ao final da citação, o narrador
destacou que Jesuíno teria gostado menos do segundo tipo racial, pois havia conhecido
alguém com aquelas mesmas características físicas que, “além de bêbado por índole, tinha os
sentimentos da víbora da Fábula”. Com essa semelhança, o narrador atribuiu uma relação
entre atributos físicos e morais, o que corresponde, como já vimos, a uma das premissas
básicas do darwinismo social. Além disso, ele deixou nítida a sua concepção de
degenerescência racial sobre os mulatos, os quais possuiriam uma índole, ou seja, um
temperamento, propenso aos maus sentimentos e ao alcoolismo. Como já discutimos, para
Rodolfo Teófilo e o pensamento difundido na faculdade baiana, algumas enfermidades, entre
elas o alcoolismo, seriam transmitidas hereditariamente, através de cruzamentos maus
sucedidos, ou seja, entre raças inferiores.
O que percebemos nesse romance é que, além das características físicas
depreciativas, os mestiços envolvidos com a criminalidade foram estigmatizados pela
ausência de valores morais. Valores esses que eram tão apreciados na cultura sertaneja. Os
bandidos mestiços e negros, invariavelmente, representavam o descumprimento da ética
145

sertaneja, sendo essa respeitada apenas por Jesuíno, o fazendeiro branco. Tal percepção se
revela bastante emblemática para pensarmos sobre os posicionamentos raciais de seu autor.
Diferentemente de Jesuíno, o guardião da moral sertaneja, que não cometia os crimes do furto
e nem de desonra, esses mestiços cometiam os crimes mais torpes. Isso fica bem nítido
quando o mestiço Pedro Jurema procurou o Brilhante para convidá-lo a participar e chefiar
seu bando e juntos levarem o cangaço como um meio de vida:

- Entendamo-nos. Sei que o senhor está sendo perseguido pelos Calangros, e


rejeitando o meu oferecimento, perde a ocasião de meter uma bala em cada um.
Além desta vantagem há outros proveitos de encher barriga. O tempo que estive na
chefia do bando, rendeu-me boa pataca. O senhor será nosso chefe.
- Nunca me entraram em casa patacas ganhas assim e espero em Deus que nunca me
entrarão.
Jurema ficou suspenso, porque supunha que o Brilhante rezava por sua cartilha. Um
malvado, como apregoava o mundo, com tais escrúpulos de consciência!
Aquêles prejuízos de bom cristão, o caudilho pensava dissipá-los com sua retórica
chata, e continuou:
- Tudo é modo de viver. Eu também tinha meus escrúpulos, mas o mundo e as
precisões acabaram com eles. O primeiro crime que cometi foi matar um homem
para roubar-lhe o dinheiro que conduzia.
- Basta, senhor, guarde consigo as suas misérias, disse Jesuíno deixando ver na
fisionomia o nojo que lhe causava aquêle homem (TEÓFILO, 1972, p. 135).

Como o narrador afirmou, para alguém com grande deficiência moral, como o
mestiço Pedro Jurema, era inacreditável que Jesuíno, sendo um famoso assassino, possuísse
tamanhos escrúpulos de consciência. Fica explícito como aquele modo de ganhar a vida
repudiava a Jesuíno. Atentemos também para um aspecto interessante a ser ressaltado na fala
do mestiço que, ao afirmar “eu também que tinha meus escrúpulos, mas o mundo e as
precisões acabaram com eles”, nos faz pensar sobre a questão das desigualdades sociais e da
grande concentração de renda presentes no universo sertanejo. Essas questões contribuíam
para o fenômeno social do banditismo rural, embora não fossem determinantes e nem as suas
únicas causas. Porém, na literatura de Rodolfo Teófilo, ainda que ele fizesse diversos tipos de
denúncia social, esse aspecto se tornava pequeno diante do peso esmagador da questão racial.
Essa aparece como predominante para explicar que era por sua condição de mestiço que
Pedro Jurema cometia os piores crimes. Assim como esse assassino ganhava a vida pegando
no alheio, ele também não se fartava de investir contra a honra das mulheres:

Jurema teria logrado por mais tempo ser o terror daqueles sertões, se à vida e
propriedade se limitasse a sua perversidade e cobiça.
Mestiço e concupiscente, como um bode, não pôs peias ao seu temperamento.
Sem educação, com o espírito embrutecido por quinze anos de cárcere, deixava-
se arrastar sòmente pelos instintos de bêsta.
(...)
146

Farto de cevar os seus maus instintos, derramando sangue pelo mais frívolo pretexto,
vivendo do suor alheio, que esperdiçava sem consciência de tão monstruoso
atentado, devorado de desejos, que lhe dariam à carne outros deleites, atentou contra
a honra das mulheres, que lhe despertavam apetites sensuais.
(...)
Pensava o caudilho que o marido, o pai lhe entregariam a mulher, a filha do mesmo
modo que lhe entregava os rebanhos, os celeiros; mas iludia-se.
O povo, em quem supunha embotados todos os sentimentos, completamente
bestificado, revoltou-se então contra Jurema. Dar-lhe a fortuna e a vida, e por
cúmulo de perversidade, querer êle a honra das donzelas! Era demais.
Revoltou-se e reviveu tudo que de nobre estava amortecido no coração daquela
infeliz gente. A submissão estúpida ao caudilho desapareceu desde o dia em que
uma filha do povo foi arrastada à casa de Jurema para êle satisfazer a sua lascívia. O
pai da donzela, um homem forte e valente, bateu-se como um herói contra os
sequazes de Jurema; bateu-se pela honra da filha até cair morto, até ser-lhe o coração
atravessado pelos punhais dos assassinos (TEÓFILO, 1972, p. 38-39. Grifo nosso).

Embora seja longo, esse trecho é bastante revelador para percebermos o valor
atribuído à honra feminina na cultura sertaneja. Se o crime contra a propriedade era algo
extremamente grave, de acordo com aquele código de ética, o crime contra a honra feminina
era o mais hediondo de todos. Naquela cultura patriarcal, os crimes de sedução e estupro não
eram colocados como ofensivos à própria vítima, mas à figura masculina a ela relacionada,
seja o pai ou o marido, os responsáveis pela defesa dessa honra e que, se preciso fosse,
morreriam em sua causa.
Desse modo, destacamos que esse trecho e o seu apelo ético foram construídos de
modo a enfatizar o quanto Pedro Jurema era um bandido de atitudes repugnante e sem
qualquer respeito à moral. Essa imagem se construiu atrelada ao seu pertencimento racial, o
qual “mestiço e concupiscente, como um bode, não pôs peias ao seu temperamento”. Através
dessa frase, de antemão, o narrador propôs que os crimes cometidos por aquele bandido se
explicavam por seu temperamento irrefreável de mestiço. Adjetivos como mestiço e
concupiscente foram colocados de forma interligada, como se tal condição racial fosse pré-
requisito para ser concupiscente. Como já vimos ao longo desse trabalho, essa característica
foi bastante recorrente no tratamento destinado por Rodolfo Teófilo às suas personagens
mestiças, as quais, frequentemente, também foram assemelhadas a besta ou receberam outra
forma animalização.
Além da predominância do fator racial na definição do temperamento de Pedro
Jurema, destaca-se também a influência do meio degenerado. A concepção de
degenerescência fica implícita na afirmação de que esse mestiço era um indivíduo “sem
educação, com o espírito embrutecido por quinze anos de cárcere” e incapaz de se regenerar,
pois “uma vez restituídos os seus meios de ação, mostrou-se que era – o mesmo malvado”
147

(TEÓFILO, 1972, p. 64). Aqui, mais uma vez, a educação, ou a ausência dela, foi decisiva
para moldar um temperamento, associando-se ao fator racial.
Enquanto que aos bandidos mestiços era atribuído um temperamento
concupiscente e o crime contra a honra, o Brilhante, sendo um homem branco, foi consagrado
como o herói daquelas cercanias por defender, em diferentes ocasiões, a honra de mulheres
que se encontravam em situação de risco. Uma dessas mulheres era a retirante Maria de Góis
que, após desfalecer de fome, “Jesuíno tinha conseguido salvar a faminta e, todo dedicação, a
tratava como filha. N’alma do criminoso não passava por um instante o desejo de seduzi-la”
(TEÓFILO, 1972, p. 303). O Brilhante repudiava os crimes de sedução e estupro. Na
perspectiva racial de Rodolfo Teófilo, Jesuíno, por não ser mestiço, não era um criminoso
concupiscente. Pelo contrário, “as lutas de tantos anos e a forçada continência tinham esfriado
de todo o temperamento do Brilhante; não parecia o mesmo homem do tempo da adolescência
a assistir horas inteiras o ato da procriação dos bodes e dos outros brutos” (TEÓFILO, 1972,
p. 303). Se o temperamento libidinoso dos mestiços era estimulado com a vida no crime,
vivendo como “bestas sexuais”, em Jesuíno esse estilo de vida havia lhe arrefecido o lado
sexual. Completamente diferente de seu amo, era José, o escravo liberto que seguia Jesuíno no
bando e que a vida de continência sexual só aumentava a sua libidinagem:

Temperamento ardente e libidinoso, obrigado pela fôrça das circunstâncias a


uma intérmina continência, sentia-se devorado de desejos sensuais, que lhe
haviam despertado n’alma as cintilações melancólicas do olhar da môça. Aquêles
desejos, vagos ao princípio, ardentes depois, se fundiram numa sede desesperada de
concupiscência. O cérebro do liberto dia e noite ardia em pensamentos luxuriosos.
O Brilhante com sua aguçada percepção havia penetrado n’alma e lido tôdas as
impressões, todos os desejos, que êle procurava esconder.
Jesuíno havia surpreendido um olhar do liberto, um destes olhares de fogo, lançado
sôbre o rosto moreno da retirante. O criminoso revoltou-se e um instante pensou em
puni-lo com a morte.
Grave era a ofensa de José.
O Brilhante levava ao extremo os preconceitos de casta.
Grande crime cometia um homem de côr levantando os olhos para uma mulher
branca, quanto mais seduzindo-a, fazendo dela sua amásia! Para não esfaquear o
mulato, procurou esquecer o olhar que o havia traído.
Mesmo assim, mortificava-o a idéia de que seu ex-escravo tivesse um
pensamento desonesto com relação a uma mulher de condição superior à sua
(TEÓFILO, 1972, p. 301-302. Grifo nosso).

Vejamos que o negro liberto foi tratado com as mesmas características sexuais
que os mestiços desse romance, sem que houvesse uma nítida diferenciação entre esses tipos
raciais. Aliás, só nesse trecho, o narrador atribuiu várias expressões raciais para se referir a
José, tais como “liberto”, “homem de côr”, “mulato” e “ex-escravo”. Isso demonstra que no
pensamento racial desse autor, a concupiscência e a libidinagem, presentes nos mestiços, seria
148

a confirmação da premissa do darwinismo social de que haveria uma determinação do


comportamento do sujeito por sua preponderância racial. Nesse caso, a sexualidade aflorada
dos mestiços seria herdada da raça inferior e adjetivos como ardente, libidinoso,
concupiscente e luxurioso foram diretamente ligados à condição de ser negro ou mestiço.
Como já colocado antes, Jesuíno era impiedoso com aqueles que atentavam contra
a propriedade ou a honra, isto é, com os ladrões, sedutores e estupradores. Se o crime da
sedução já era imperdoável, ele tornava-se ainda mais grave quando desrespeitava a
hierarquia racial. Ao afirmar que “o Brilhante levava ao extremo os preconceitos de casta”,
Rodolfo Teófilo transferiu para aquele personagem os preconceitos que marcaram a
mentalidade de uma época. O desrespeito a essa hierarquia racial, por um indivíduo de
condição inferior, foi colocado como algo inadmissível para o protagonista desse romance.
Ainda mais se esse indivíduo carregasse o estigma da escravidão, como é o caso do ex-
escravo José.
Essa situação foi colocada de forma parecida em outro episódio do romance.
Dessa vez, a vítima a qual Jesuíno defendeu a honra foi descrita como uma mulher branca,
nova e bonita que deu acolhimento ao bando dos Brilhantes. Na ausência de seu marido, que
estava viajando, essa senhora desculpou-se por não poder acolhê-los em sua própria casa e
acomodou-os na casa de farinha, dando prova da grande hospitalidade sertaneja com aqueles
que pedem abrigo. Porém, ela também seguiu a pragmática sertaneja, que proibia a esposa de
dar pousada a peregrinos, caso o marido estivesse ausente. Eis que, enquanto repousava,
Jesuíno escutou de dois integrantes do seu bando que um conhecido estuprador havia passado
em direção à casa da sertaneja. Vejamos a forma como o mesmo foi descrito e a reação de
Jesuíno à tentativa de estupro:

O negro era asqueroso como um sapo. Para mais aterrar a senhora, havia tirado a
faca da bainha e dizia com o maior cinismo, limpando as unhas:
- Tinha de ver dormir eu misturado com bodes e porcos, podendo gozar da
companhia da dona.
(...)
Jesuíno custava conter-se. Lamentava a falta de sua faca, pois, para um negro tão
infame a morte à bala era nobre demais. Queria picá-lo, esfaqueá-lo, devagar,
fazendo-o sofrer as dores mais atrozes. Ocorreu-lhe uma idéia, que aplaudiu, e
depois de refletir um pouco, resolveu executá-la. Para isso necessitava do concurso
dos companheiros, pois tratava-se de agarrar o negro, amarrá-lo, castrá-lo e
depois queimá-lo vivo.
O Brilhante achava pouco todos êsses tormentos: não havia castigo que punisse o
Granjeiro. Um negro estuprar uma mulher branca e casada! Dizia consigo
Jesuíno, cego de raiva! (TEÓFILO, 1972, p. 351-352. Grifo nosso).
149

Também nesse trecho enfatizou-se o pertencimento do estuprador à raça negra,


assemelhando-o a um sapo, por sua asquerosidade. Quanto à punição daquele crime, Jesuíno,
tendo a lei da retaliação como princípio básico, entendia que a castração, seguida de morte,
seria a pena mais adequada ao crime de estupro. Porém, na perspectiva do justiceiro – um
homem branco – esse crime teria diferentes níveis de gravidade, dependendo da posição
social e racial da vítima. Vejamos que o que causava revolta ao Brilhante não era apenas o
estupro em si, mas, principalmente, o fato do criminoso ser um homem negro e a vítima uma
mulher branca e casada.
O esposo dessa sertaneja, ao retornar de viagem e tomar consciência do ocorrido,
escreveu uma carta em agradecido a Jesuíno, na qual afirmava: “A minha obrigação era correr
até encontrar o salvador da honra de minha família e prostrado agradecer-lhe o maior
benefício que se pode fazer a um homem neste mundo” (TEÓFILO, 1972, p. 360). Essa frase
traz consigo o peso que a honra sertaneja exercia sobre aquele universo de valores, no qual a
morte era preferível à desonra. Dispensando qualquer tipo de pagamento pelo serviço
prestado, o Brilhante fez apenas um pedido à sertaneja: “Peço-lhe que, logo ao amanhecer,
mande chamar os vizinhos e conte-lhes o ocorrido, para que o mundo saiba que Jesuíno
Brilhante tem morto mais para punir celerados do que para satisfazer vinganças e ódios
pessoais” (TEÓFILO, 1972, p. 356). Se distanciando um pouco da justificativa que o havia
feito entrar no mundo do crime, Jesuíno tomou para si o papel de guardião dos valores e da
moral sertaneja. E, ao fazer uso de sua força na proteção desses valores, encontrou um
reconhecimento social que ocasionava algum contentamento naquela vida errante.
Representado como um homem branco e guardião dos valores sertanejos, Jesuíno
foi apresentado como um bandido superior aos demais. Enquanto isso, seus inimigos, a
família dos Calangros, foram colocados no último degrau da hierarquização racial. Na
perspectiva do narrador, os Calangros representavam o pior resultado do cruzamento entre as
raças:

Os Calangros formavam uma grande família de mestiços, vulgarmente chamados


cabras, no norte do Brasil, produto do cruzamento do índio e do africano, e inferior
aos elementos de que é formada. O cabra é pior do que o caboclo e do que o negro.
É geralmente um indivíduo forte, de maus instintos, petulante, sanguinário, muito
diferente do mulato por lhe faltarem as maneiras e a inteligência deste. E, tão
conhecida é a índole perversa do cabra que o povo diz: não há doce ruim, nem cabra
bom (TEÓFILO, 1972, p. 93. Grifo do autor).

A partir dessa descrição, o autor quis mostrar sobre um tipo de cruzamento racial
diferente daquele que, na sua concepção, prevaleceu no processo de colonização do Ceará. Se,
150

para explicar a formação do povo cearense e a predominância dos elementos indígenas e


europeus nesse processo, o autor viu a miscigenação de forma positiva, essa concepção
mudou quando o elemento negro entrou em cena. Quando a miscigenação ocorria apenas
entre as raças consideradas inferiores, sem a presença do elemento branco, ela era repudiada
por esse pensador do século XIX. Pois, tal miscigenação só poderia levar à degenerescência
da nação, sem possibilitar qualquer esperança de melhoramento racial. Desse modo, o cabra –
expressão própria do Norte – se referia ao mestiço que hoje é comumente denominado cafuzo.
Era considerado por Rodolfo Teófilo o pior resultado do cruzamento de raças e inferior ao
caboclo (mestiço originário do branco com o índio) e ao mulato (resultante da mistura de
europeus com africanos). Porque, diferente desses outros, o cabra não possuía a raça branca
como um dos elementos de sua formação. O cabra era produto do cruzamento entre o índio e
o africano – as duas raças consideradas inferiores – e, por sua vez, inferior aos elementos de
sua formação.
A degenerescência racial atuava principalmente na formação do caráter dos
indivíduos. Assim, o modo de ser de cada um estaria determinado geneticamente, de acordo
com a raça a qual pertencia. É nesse sentido que os cabras foram caracterizados como
indivíduos fortes, de maus instintos, petulantes e sanguinários. Era esse espírito sanguinário
que fazia com que estivesse na índole dos Calangros o desejo de vingança: “Aquêles
preparativos de luta enchiam-lhes o espírito de contentamento. Estavam na índole deles os
desabafos, as vinditas, por isso no dia aprazado nenhum faltou à reunião” (TEÓFILO, 1972,
p. 120). De forma naturalizada, o autor tratou como pertencente à índole de uma determinada
raça o desejo de vingança. Enquanto isso, para Jesuíno, um homem branco, o forte desejo de
vingança não vinha de seu pertencimento racial ou temperamento, mas da patologia que ele
portava. Ao enfatizar essas explicações, baseadas nos determinismos racial e genético, o autor
preteriu a existência, no sertão nordestino, de uma cultura de valentia, baseada em fazer
justiça com as próprias mãos. E que esta cultura resultava em brigas seculares entre famílias,
envolvendo grande número de mortes, sendo independente do grupo racial aos quais esses
indivíduos pertenciam.
151

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de nossas análises foi possível perceber que a escrita de Rodolfo Teófilo
esteve intimamente relacionada ao cientificismo do século XIX. Mais do que uma prática
científica, o cientificismo se constituiu em uma visão de mundo, onde seus adeptos, por
considerarem a ciência como o único saber objetivo e racional, julgavam-se como os únicos
capazes de decidir sobre o caminho a ser seguido pela sociedade. Rodolfo Teófilo, assim
como boa parte da intelectualidade brasileira do final do século XIX, se via como um
representante dos novos ideais científicos, a indicar o caminho mais seguro para a
sobrevivência e o futuro do país. Esse pensamento esteve muito presente em sua literatura ao
tratar da vida dos sujeitos por ele representados, principalmente os sertanejos pobres, mestiços
e incultos. Ele, na condição de homem de ciência, acreditava que estava incumbido da missão
de guiar aqueles sujeitos pelo melhor caminho na superação de adversidades como a
ignorância, a pobreza, a seca, a migração e as doenças.
Rodolfo Teófilo não foi apenas mais um literato que se apoiava na ciência para
escrever suas obras, ele foi um cientista que se tornou literato. A sua escrita se destacou por
expressar intensamente o pensamento médico compartilhado na Faculdade de Medicina da
Bahia. A sua produção romanesca foi fortemente caracterizada por uma tendência naturalista
de apresentar personagens portadoras de diferentes patologias, tais como a fome que matou
muitos retirantes, a histeria de Vicencia da Gloria, a tuberculose de Chiquinha e a nevrose do
homicídio presente em Jesuíno. A partir do paradigma médico e da compreensão de
degenerescência social, a sociedade foi vista como um organismo doente que dependia da
intervenção médica para ser curada.
Nos romances analisados neste trabalho foi possível perceber o esforço do autor
em se adequar aos parâmetros da literatura naturalista, através do largo uso de termos
científicos, utilizados para descrever cenas naturais e humanas e conferir explicações
biológicas e mesológicas sobre os fenômenos sociais. Porém, ele não conseguiu romper
completamente com o Romantismo no modo de construir seus enredos e suas personagens.
Na obra Maria Rita, o discurso antilusitano, que marcou o Romantismo, teve ressonância no
tratamento destinado aos colonizadores portugueses e aos primeiros indígenas, sendo os
primeiros adjetivados como pessoas mesquinhas e covardes e os indígenas como altivos e
corajosos. O protagonista Joaquim de Queiroz, um vaqueiro destemido, que figurava o puro
tipo de sertanejo, também foi idealizado aos moldes do Romantismo. Tanto em A Fome,
152

como em Os Brilhantes, seus protagonistas também receberam adjetivações bem comuns aos
protagonistas românticos, como a honra, a retidão, a benevolência, entre outros. Enquanto isso
as personagens secundárias foram reservadas as descrições naturalistas mais grotescas.
Ao analisarmos os usos das teorias cientificistas por Rodolfo Teófilo, vimos que,
como outros intelectuais brasileiros do período, ele foi capaz de combinar de forma inusitada
diferentes concepções, algumas delas até mesmo divergentes. A teoria das raças, que se
baseava na tese poligenista e na condenação à miscigenação, se combinou à perspectiva
evolucionista e monogenista para explicar o atraso da nação, mas sem condenar o futuro
daquela população, predominantemente mestiça. Do mesmo modo, na sua posição de
intelectual branco, abolicionista, preocupado com a superação da escravidão e com a ascensão
do país à condição de nação moderna e liberal, o escritor soube conciliar duas concepções
antípodas, o liberalismo e o racismo científico. Como abolicionista ele defendeu que a
escravidão deveria ser extinta, pois desumanizava aqueles sujeitos. Porém, adepto às teorias
raciais, ele também acreditava que as raças não-brancas eram inferiores e tentava omitir a
forte presença dos negros na formação do povo cearense. O que podemos concluir é que ao
conciliar concepções tão contraditórias, ele realizou um trabalho bem original de adaptação
dessas teorias à realidade por ele observada e condizente com o seu posicionamento de
homem branco pertencente à elite letrada cearense.
Entre os vários aspectos que foram emergindo nas análises dos romances de
Rodolfo Teófilo, a questão racial se sobressaiu com grande intensidade. Compreendemos o
propósito desse autor em destacar a especificidade racial do povo cearense, que seria
constituído, predominantemente, da mistura do branco com o índio. No entanto, diferentes
tratamentos foram destinados aos sujeitos pertencentes a essas raças e as suas variadas
miscigenações. Quanto à atuação do homem branco português no período colonial,
representado pelo personagem José Maria da Purificação, este foi apresentado como aquele
capaz superar as adversidades do meio e implantar a colonização no interior do Ceará. E
mesmo na condição de degredado do reino, ele conseguiu se regenerar através do trabalho.
Ainda que Teófilo tenha colocado a raça branca no topo da hierarquia racial, o discurso
antilusitano não deixou de ter ressonância na figuração dos colonizadores portugueses, os
quais foram adjetivados negativamente como pessoas egoístas, interesseiras e desonestas. Ao
contrário dos valores apregoados ao colonizador português, o fazendeiro branco, que vivia no
sertão no final do século XIX, apareceu nessa literatura como o representante do ideal de
honra sertaneja, como era caso de Manuel de Freitas e Jesuíno Brilhante. Assim, o sertão
nordestino também foi apresentado como um meio social que, distante da degeneração
153

propiciada pela cidade, teria desenvolvido um conjunto de valores morais que compõem a
ética sertaneja e que foi muito exaltada pelo autor. O mesmo sertão, que algumas vezes foi
tratado como um lugar onde reinava a ignorância e a barbárie, por se manter distante do
alcance civilizatório, também foi valorizado como um lugar puro, onde a hipocrisia e a
desonestidade ainda não haviam feito morada.
Ressaltou-se que a miscigenação da população brasileira era uma das questões
mais discutidas no campo intelectual brasileiro no final do século XIX e que a aplicação direta
do darwinismo social implicaria na condenação dos grupos raciais miscigenados. Porém, a
ausência de um conceito unívoco e fechado sobre raça possibilitou que se fizessem diferentes
usos dessa concepção, ensejando a possibilidade de se planear um futuro ao país, sem
condenar o mestiço. Assim, a raça deixava de ser um elemento inviabilizador, para ser apenas
um fator limitador. As interpretações elaboradas pelos intelectuais brasileiros foram as mais
variadas possíveis. Alguns mais otimistas defendiam que a mestiçagem levaria à formação de
uma nova raça mestiça. Para Rodolfo Teófilo, a mestiçagem ocorrida no Ceará levou à
formação de uma população predominantemente cabocla.
Uma das questões que mais geraram divergências entre os intelectuais brasileiros
foi sobre a possibilidade de modificação da raça, seja pra melhor ou pra pior. Em relação a
Rodolfo Teófilo, percebemos que ele creditava uma importância muito grande ao poder de
regeneração social pela educação. Essa educação regeneradora estava atrelada à concepção de
civilização trazida pelos europeus e em oposição ao que era concebido como bárbaro e
degenerado. No que se refere ao melhoramento racial por meio do cruzamento, ele possuía
uma visão bastante complexa. Se, por um lado, era bem otimista com o cruzamento entre
índios e brancos - desde que esse último elemento fosse predominante -, por outro lado, era
bem pessimista em relação ao cruzamento das raças tidas como inferiores, ou seja, entre o
índio e o negro, ou mesmo quando esses elementos eram predominantes na mistura com a
raça branca.
Vimos na obra Maria Rita que os seus protagonistas, Maria Rita e Joaquim de
Queiroz, eram a comprovação de que essa natureza tropical podia gerar bons frutos e não
estava fadada a sucumbir pela miscigenação. Maria Rita figurou a possibilidade de
branqueamento e melhoramento racial resultante da mistura entre os indígenas e a raça
branca, sendo esta predominante. Queiroz representou o puro tipo de sertanejo, o exemplar
mais perfeito dessa fusão racial. E, por isso, carregava a força, a coragem e a honra sertaneja,
tão valorizada nesses romances. Porém, na perspectiva do autor, essa miscigenação ocorreu
em diferentes proporções. Exemplo disso é que Vicencia da Gloria se caracterizava
154

fisicamente como uma índia tapuia e Maria Rita como uma mulher branca, mesmo possuindo
uma ascendência muito próxima. E a todo o momento os elementos herdados dessas duas
raças foram hierarquizados, de modo que os indígenas se encontrassem em uma posição
inferior à raça branca, principalmente, em aspectos físicos e critérios de beleza. Basta
lembrarmos a polarização entre as imagens de Vicencia e Maria Rita.
Ao tratar da contribuição do indígena para a miscigenação durante a colonização
do Ceará, Rodolfo Teófilo apresentou uma visão bem dúbia sobre essa raça. Embora os
sujeitos miscigenados herdassem características negativas da raça indígena, como a índole
sanguinária, a concupiscência, a fúria e a altivez, também herdaram características positivas
como a coragem e a insubmissão, as quais faltavam ao colonizador português. O autor
também propôs que mesmo quando o elemento branco era predominante, como no caso da
personagem Maria Rita, a miscigenação não foi capaz de apagar os traços temperamentais dos
nativos, os quais eram herdados por atavismos pelos cearenses e se manifestavam aos
estímulos dos meios físicos e sociais específicos daquele território.
Rodolfo Teófilo, ao propor que a população era predominantemente cabocla,
também estava interessado em mascarar a forte presença do negro no Ceará. Quando esse
elemento racial compunha um personagem, eram-lhe atribuídas as piores características
físicas e morais. Em Os Brilhantes, os bandidos mestiços e negros, invariavelmente,
representavam o descumprimento da ética sertaneja. Esses personagens cometiam os crimes
considerados mais ofensivos à moral sertaneja, contra a propriedade e a honra feminina. Na
perspectiva do autor, a propensão a alcoolismo e a concupiscência seriam herdadas das raças
inferiores. Essas características apareceram diretamente ligadas à condição de ser negro ou
mestiço. Aos cabras, cruzamento entre índios e negros, esse intelectual atribuiu uma forte
negatividade quanto à miscigenação, pois, formados por raças tidas como inferiores,
carregavam a marca da degenerescência social.
No Naturalismo brasileiro do século XIX prevaleceu o estudo do temperamento
humano. Esse temperamento obedecia às regras da hereditariedade. Era a herança genética
que explicava as variadas formas de manifestação de um organismo. Essa tendência
naturalista teve grande influência na caracterização das personagens construídas por Rodolfo
Teófilo. As características psicológicas apresentadas por essas personagens não remetiam a
aspectos individuais e subjetivos do ser, mas resultavam de sua constituição racial. Essa
caracterização confirmava a premissa do darwinismo social de que haveria uma continuidade
entre caracteres físicos e morais, os quais seriam transmitidos hereditariamente. Exemplo
disso foi o personagem João das Neves, do romance O Paroara. Assim como Maria Rita, esse
155

sertanejo, por resultar da mistura de duas raças diferentes, possuía um temperamento muito
instável. Essa dualidade temperamental foi colocada como responsável pelos diferentes
comportamentos desses sujeitos miscigenados. No romance, apesar de toda a problemática
social envolvendo a migração, o que levou João das Neves a abandonar sua terra foi o
nomadismo da raça vermelha. Do mesmo modo, o que o levou a retornar foi a presença de
uma alma afetiva herdada da raça branca. Embora o autor considerasse que a mistura racial
entre o branco e o indígena fosse a melhor forma de miscigenação, para ele faltava uma série
de atributos ao cearense, como a previdência, a fixação no seu lugar de origem etc.
Destacamos também que para Rodolfo Teófilo foram os estímulos do meio, seja
ele físico ou social, que fizeram despertar no povo cearense características temperamentais e
comportamentos pertencentes às raças que lhe deram origem. Para explicar, por exemplo, a
falta de relutância das sertanejas aos casamentos arranjados pelos pais, esse autor utilizou-se
de elementos ancorados ao cruzamento das raças, mas também às influências do meio, como
o clima quente, que tornavam essas sertanejas sensuais e desejosas de serem desposadas.
Assim, um fenômeno que se situava dentro de uma sociedade altamente patriarcal foi
destituído de sua problemática social e cultural e atribuído à uma explicação forjada pelos
determinismos raciais e climáticos.
Rodolfo Teófilo não deixou de enfatizar que os sertanejos cearenses estavam
expostos às contingências do meio, como as secas, as migrações e o banditismo. Ao tratar de
temas tão espinhosos, os seus romances apresentaram um forte teor de denúncia social.
Porém, ele acabou superestimando o fator fisiológico e diferentes tipos de determinismos para
explicar esses fenômenos. No caso do banditismo, ele fez uma miscelânea de justificativas
baseadas tanto no determinismo genético, como no meio social e na degenerescência dos
grupos miscigenados. Quanto à seca, esta foi colocada como um fator climático capaz de
provocar atitudes irracionais das raças inferiores e miscigenadas, pois eram consideradas
degeneradas, ao mesmo tempo em que favorecia a formação do tipo ideal de sertanejo forte e
resistente. Os diferentes desfechos construídos para os protagonistas de A Fome (um
fazendeiro branco) e O Paroara (um mestiço pobre) buscava comprovar que as adversidades
do meio levavam à sobrevivência apenas dos mais aptos – ou seja, a raça branca. Assim, esta
raça seria um pequeno reduto de civilização diante da barbárie, conseguindo manter sua
integridade física e moral em um meio social degenerado. Ao explicar os fatores que
ocasionaram o fenômeno das migrações, Teófilo radicalizou em suas concepções raciais e
sobrepôs o determinismo racial a qualquer outra explicação. Até mesmo a seca, o problema
mais discutido em toda sua literatura, foi colocado como um fator secundário. Nesse sentido,
156

concluímos que o determinismo racial foi a concepção que teve maior peso na escrita de
Rodolfo Teófilo, ao elaborar uma visão sobre os cearenses e o povo sertanejo.
157

REFERÊNCIAS

ABREU, C. de. Capítulos de História Colonial. São Paulo: Editora da USP, 1988.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. A invenção do Nordeste e outras artes. 5. ed. São


Paulo: Cortez, 2011.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário


nordestino - de problema à solução (1877-1922). 1988. 435 f. Dissertação (Mestrado em
História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1988.

ALENCAR, M. C. F. de. A cultura popular sertaneja em José de Alencar e Juvenal


Galeno. 2015. 387 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.

ALENCAR, M. C. F. de. Adolfo Caminha e Rodolfo Teófilo: a cidade e o campo na


literatura naturalista cearense. 2002. 143 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de
Pós-Graduação em História Social, Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza, 2002.

ALENCAR, M. C. F. de. Educar e Civilizar: um projeto das elites letradas para o Ceará no
final do século XIX. Educação em Debate (UFC), v. 1/2, n. 56/58, p. 150-163, jan. 2009.

ALONSO, A. Critica e contestação: o movimento reformista da geração 1870. RBCS, [s. l.],
v. 15, n. 44, p. 35-55, out. 2000.

A QUINZENA. edi. fac-sim. Fortaleza: ACL/BNB, 1984.

AZEVEDO, C. M. M. de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites –
século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

AZEVEDO, S. de. Rodolfo Teófilo e a saga de Jesuíno Brilhante. Fortaleza: Gráfica LCR,
2013.

BARBOSA, I. C. Sertão: um lugar incomum: o sertão do Ceará na literatura do século XIX.


Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

BARBOZA, E. H. L. Retirantes cearenses na província do Amazonas: colonização, trabalho e


conflitos (1877-1879). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 35, n. 70, p. 131-155,
jan. 2015.

BARROS, H. L. Prefácio. IN: DOMINGUES, H. B.; SÁ, M. R.; CLICK, T. (Orgs.). A


recepção do darwinismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003. p. 09-14.

BARROSO, G. Heróis e bandidos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1917.

BOLSANELLO, M. A. Darwinismo social, eugenia e racismo “científico”: sua repercussão


na sociedade e na educação brasileira. Educar, Curitiba, n. 12, v. 1, p. 153-165, jan. 1996.
158

BOURDIEU, P. Campo de poder, campo intelectual, itinerário de um conceito. [S. l.]:


Editorial Montresor, 2002.

BRESCIANI, M. S. Século XIX: A elaboração de um mito literário. História: Questões &


Debates, Curitiba, v. 7, n. 13, p. 209-244, dez. 1986.

CANDIDO, A. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 1985.

CARDOSO, A. A. I. As secas e as migrações entre o Ceará e o Território Amazônico (1845-


1877). Revista Espacialidades, v. 7, n. 1, p. 34-46, jan. 2014.

CARDOSO, G. P. As repúblicas das letras cearenses: literatura, imprensa e política (1873-


1904). 2000. 272 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em
História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2000.

CARVALHO, J. M. Escravidão e Razão Nacional. In: CARVALHO, J. M. Pontos e


Bordados: escritas de história e política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. cap. 2, p. 35-64.

CORRÊA, M. As ilusões da liberdade: a escola de Nina Rodrigues e a antropologia no


Brasil. 2. ed. rev. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2001.

COSTA FILHO, C. J. Padaria espiritual: cultura e política em Fortaleza no final do século


XIX (1892-1898). 2007. 247 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História Social, Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

COSTA, E. V. Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degredados. Revista de


História, v. 13, n. 27, p. 03-23, jul./set. 1956.

COSTA, H. Horizontes raciais: a ideia de raça no imaginário social brasileiro (1880-1920).


2004. 148 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2004.

COSTA, M. C. L. Teorias médicas e gestão urbana: a seca de 1877-79 em Fortaleza.


História, Ciência, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 57-74, jan./abr. 2004.

DIAS, M. O. L. da S. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda,


2005.

DIWAN, P. Raça Pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto,
2007.

DOMINGUES, H. M. B. As ciências naturais e a construção da nação brasileira. Revista de


História: FFLCH-USP, São Paulo, v. 1, n. 135, p. 41-60, dez. 1996.

DOMINGUES, H. M. B. O darwinismo no Brasil, nas ciências naturais e na sociedade.


Revista UFMG, Belo Horizonte, v. 21, n. 1, p. 114-137, jan./dez. 2014.
159

FALCI, M. K. Mulheres no sertão nordestino. In: PRIORI, M. D.; Pinsky, C. B. (Orgs.).


História das Mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2018. cap. 8, p. 241-277.

FERREIRA, A. C. A fonte fecunda. In: PINSKY, C. B.; LUCA, T. R. (Orgs.). O historiador


e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011. cap. 1, p. 62-91.

FONSECA, J. M. Raça, natureza e sociedade: o pensamento evolucionista em Fortaleza na


década de 1880. 2015. 164 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-
Graduação em História Social, Departamento de História, Centro de Humanidades,
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2015.

FRY, P. O que a Cinderela negra tem a dizer sobre a “política racial” no Brasil. Revista da
USP, São Paulo, n. 28, p.122-135, dez./fev. 1995/1996.

FUNES, E. Negros no Ceará. In: SOUZA, Simone (Org.). Uma Nova História do Ceará. 4.
ed. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2007. cap. 4, p. 103-133.

GERBI, A. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.

GONÇALVES, A. Muitos Typos na educação para os pobres: imprensa e instrução no Ceará


de fins do século XIX aos anos 1920. Documentos - Revista do Arquivo Público do Ceara,
Fortaleza, v. 2, n. 2, p. 57-100, jan. 2006.

GOULD, S. J. A falsa medida do homem. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

HOBSBAWM, E. J. A era dos impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

LACERDA, F. G. Migrantes cearenses no Pará: faces da sobrevivência (1889-1916). 2006.


346 f. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social,
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2006.

LANDER, E. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: LANDER, E. (Org). A


colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas.
Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, 2005. cap. 2, p.
8-23.

LANDIM, T. Seca: a estação do inferno. Fortaleza: UFC, 1992.

LIMA, I. S. O Brasil Mestiço: discurso e prática sobre as relações raciais na passagem do


século XIX para o século XX. 1994. 106 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de
Pós-Graduação em História Social da Cultura, Departamento de História, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1994.

LOPES, R. Rodolpho Theóphilo no Museu do Ceará. In: TEÓFILO, R. O caixeiro


(Reminiscências). ed. fac-sim. Fortaleza: Museu do Ceará, SECULT, 2003.

MARQUES, J. P. A invisibilidade do negro na história do ceará e os desafios da lei


10.639/2003. Poiésis, Tubarão. v. 7, n. 12, p. 347-366, jun./dez. 2013.
160

MARQUES, R. A nação vai à província: do romantismo ao modernismo no Ceará. 2015.


172 f. Tese (Doutorado em Literatura) - Programa de Pós-Graduação em Letras,
Departamento de Literatura, Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza, 2015.

MARQUES, R. Literatura Cearense: outras histórias. Fortaleza: Dummar, 2018.

MELLO, F. P. de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. 5. ed.


São Paulo: A Girafa, 2011.

MELO, R. S.; AQUINO, S. R. F. A ideologia cientificista na criação do mito da neutralidade


científica. Revista Húmus, n. 10, p. 93-99. jan./abr. 2014.

MONTEIRO, N. M. Joaquim Catunda e a recepção do debate evolutivo na segunda


metade do século XIX. 2014. 173 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-
Graduação em História Social, Departamento de História, Centro de Humanidades,
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2014.

MURARI, L. Natureza e cultura no Brasil. São Paulo: Alameda, 2009.

NETO, L. O poder e a peste: a vida de Rodolfo Teófilo. Fortaleza: Demócrito Rocha, 1999.

NEVES, F. de C. A multidão e a história: saques e outras ações de massa no Ceará. Rio de


Janeiro: Relume Dumará, 2000.

NEVES, F. de C. A seca e a cidade: a formação da pobreza urbana em Fortaleza (1880-1900).


IN: SOUZA, S.; NEVES, F. de C. (Orgs.). Seca. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002.
cap. 3, p. 75-104.

OLIVEIRA, A. L. de. O Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará:


Memória, representação e pensamento social (1887-1914). 2001. 280 f. Tese (Doutorado em
História) - Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica, São
Paulo, 2001.

OLIVEIRA, A. L. de. Universo letrado em Fortaleza na década de 1870. In: SOUZA, S.;
NEVES, F. de C. (Orgs.). Intelectuais. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002. p. 15-40.

OLIVEIRA, M. da G. de. Crítica, método e escrita da história em João Capistrano de


Abreu. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

OLIVENOR, J. “Metrópole da fome”: a cidade de Fortaleza na seca de 1877-1879. In:


SOUZA, S.; NEVES, F. de C. (Orgs.). Seca. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002. cap.
2, p. 49-74.

O PÃO DA PADARIA ESPIRUTUAL. ed. fac-sim. Fortaleza: UFC/ACL, 1982.

ORTIZ, R. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006.


161

PERRONE-MOYSÉS, L. Paradoxos do nacionalismo literário na América Latina. Estudos


Avançados. v. 11, n. 30, p. 245-259, ago. 1997.

PIERONI, G. Vadios, Heréticos e Bruxos: os degredados portugueses no Brasil-Colônia.


1991. 330 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História,
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1991.

PINHEIRO, C. R. Rodolpho Theophilo: a construção de um romancista. 2011. 201 f.


Dissertação (Mestrado em Letras) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Centro de
Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2011.

PINHEIRO, F. J. Mundos em confronto: povos nativos e europeus na disputa pelo território.


In: SOUZA, S. Uma Nova História do Ceará. 4. ed. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2007. cap.
1, p. 17-55.

PRIORI, M. D. Magia e Medicina na Colônia: o corpo feminino. In: PRIORI, M. D.; Pinsky,
C. B. (Orgs.) História das Mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2018. cap. 3, p.
78-114.

RABELO, F. Raça, clima e imigração no pensamento social brasileiro na virada do século


XIX para o XX. Filosofia e História da Biologia, v. 2, p. 159-177, jan. 2007.

REUTER, Y. A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Rio de Janeiro: DIFEL,


2002.

SÁ, G. J. et al. Crânios, corpos e medidas: a constituição do acervo de instrumentos


antropométricos do Museu Nacional na passagem do século XIX para o XX. História,
Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 197-208, jan./mar. 2008.

SAMARA, E. de M. A Família Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986.

SANTOS, M. A. C. M; SALLES, V. L. R. O fenômeno da histeria e a visão da sexualidade


feminina na literatura: realismo/naturalismo europeu. Revista Interdisciplinar em Cultura e
Sociedade (RICS), São Luís, v. 2, n. 1, p. 109-126, jan./jun. 2016.

SCHWARCZ, L. M. (Org.). História do Brasil Nação: 1808-2010. Rio de Janeiro: Objetiva,


2012.

SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no


Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SCOVILLE, A. L. M. L. Literatura das secas: ficção e história. 2011. 241 f. Tese


(Doutorado em Letras) - Curso de Pós-Graduação em Letras, Setor de Ciências Humanas,
Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011.

SEVCENKO, N. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira


República. 3. ed. São Paulo: brasiliense, 1983.
162

SEYFERTH, G. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de


imigração e colonização. In: Maio, M. C. (Org.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 1996. cap. 3, p. 41-58.

SILVA, R. M. C. O romance histórico da colonização: figuração artística transgressiva do


passado em O tetraneto del-rei, de Haroldo Maranhão, A gloriosa família, de Pepetela, e As
naus, de António Lobo Antunes. 2016. 293 f. Tese (Doutorado em Literatura) - Programa de
Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Instituto de
Letras, Universidade de Brasília, Brasília, 2016.

SIRINELLI, J. Os Intelectuais. In: RÉMOND. R. Por uma História Política. 2. ed. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2003.

SODRÉ, N. W. O Naturalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

SOMBRA, W. Rodolfo Teófilo. O varão benemérito da pátria. Fortaleza: Prefeitura de


Maracanaú, 1997.

SÜSSEKIND, F. Tal Brasil, qual romance: uma ideologia estética e sua história: o
naturalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.

TAKEIA, D. M. Europa, França, Ceará: origens do capital estrangeiro no Brasil. Natal:


UFRN/Ed. Universitária, 1995.

TEÓFILO, R. A Fome. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1979.

TEÓFILO, R. A seca de 1915. Fortaleza: Edições UFC, 1980.

TEÓFILO, R. História da Seca do Ceará (1877 a 1880). Fortaleza: Typ. do libertador, 1883.

TEÓFILO, R. Maria Rita: episódios do Ceará colonial. Fortaleza: Typ. Universal, 1897.

TEÓFILO, R. O Paroara. Fortaleza: Secretaria de Cultura, Desporto, e Promoção Social,


1974.

TEÓFILO, R. Os Brilhantes. 3. ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1972.

TODOROV, T. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

TOLEDO, C. de A; GONZAGA, M. T. Metodologias e técnicas de pesquisa em Ciências


Humanas. Maringá: Eduem, 2011.

VALE NETO, I. F. Batalhas da memória: a escrita militante de Rodolfo Teófilo. 2006. 217
f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História Social,
Departamento de História, Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza, 2006.

VENTURA, R. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914.


São Paulo: Companhia das letras, 1991.
163

WATT, I. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo:
Cia da Letras, 1990.

Você também pode gostar